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Sistemas de Saúde no Brasil e gestão pública

Sistema Único de Saúde


ESTRUTURA, PRINCÍPIOS E COMO FUNCIONA
O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde
pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento para avaliação da pressão
arterial, por meio da Atenção Primária, até o transplante de órgãos, garantindo acesso
integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a sua criação, o SUS
proporcionou o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A
atenção integral à saúde, e não somente aos cuidados assistenciais, passou a ser um
direito de todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde
com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da saúde.
A gestão das ações e dos serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três
entes da Federação: a União, os Estados e os municípios. A rede que compõe o SUS é
ampla e abrange tanto ações quanto os serviços de saúde. Engloba a atenção primária,
média e alta complexidades, os serviços urgência e emergência, a atenção hospitalar, as
ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência
farmacêutica.
Avanço: Conforme a Constituição Federal de 1988 (CF-88), a “Saúde é direito de todos e
dever do Estado”. No período anterior a CF-88, o sistema público de saúde prestava
assistência apenas aos trabalhadores vinculados à Previdência Social, aproximadamente
30 milhões de pessoas com acesso aos serviços hospitalares, cabendo o atendimento aos
demais cidadãos às entidades filantrópicas.

ESTRUTURA DO SUS
O Sistema Único de Saúde (SUS) é composto pelo Ministério da Saúde, Estados e
Municípios, conforme determina a Constituição Federal. Cada ente tem suas co-
responsabilidades.

MINISTÉRIO DA SAÚDE
Gestor nacional do SUS, formula, normatiza, fiscaliza, monitora e avalia políticas e ações,
em articulação com o Conselho Nacional de Saúde. Atua no âmbito da Comissão
Intergestores Tripartite para pactuar o Plano Nacional de Saúde. Integram sua estrutura:
Fiocruz, Funasa, Anvisa, ANS, Hemobrás, Inca, Into e oito hospitais federais.

SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE (SES)


Participa da formulação das políticas e ações de saúde, presta apoio aos municípios em
articulação com o conselho estadual e participa da Comissão Intergestores Bipartite (CIB)
para aprovar e implementar o plano estadual de saúde.
SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE (SMS)
Planeja, organiza, controla, avalia e executa as ações e serviços de saúde em articulação
com o conselho municipal e a esfera estadual para aprovar e implantar o plano municipal
de saúde.

CONSELHOS
O Conselho de Saúde, no âmbito de atuação (Nacional, Estadual ou Municipal), em caráter
permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo,
prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de
estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente,
inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo
chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo.
Cabe a cada Conselho de Saúde definir o número de membros, que obedecerá a seguinte
composição: 50% de entidades e movimentos representativos de usuários; 25% de
entidades representativas dos trabalhadores da área de saúde e 25% de representação
de governo e prestadores de serviços privados conveniados, ou sem fins lucrativos.

Comissão Intergestores Tripartite (CIT)


Foro de negociação e pactuação entre gestores federal, estadual e municipal, quanto aos
aspectos operacionais do SUS
Comissão Intergestores Bipartite (CIB)
Foro de negociação e pactuação entre gestores estadual e municipais, quanto aos
aspectos operacionais do SUS
Conselho Nacional de Secretário da Saúde (Conass)
Entidade representativa dos entes estaduais e do Distrito Federal na CIT para tratar de
matérias referentes à saúde
Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems)
Entidade representativa dos entes municipais na CIT para tratar de matérias referentes à
saúde
Conselhos de Secretarias Municipais de Saúde (Cosems)
São reconhecidos como entidades que representam os entes municipais, no âmbito
estadual, para tratar de matérias referentes à saúde, desde que vinculados
institucionalmente ao Conasems, na forma que dispuserem seus estatutos.

PRINCÍPIOS DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE


Universalização: a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado
assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas
as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais
ou pessoais.
Equidade: o objetivo desse princípio é diminuir desigualdades. Apesar de todas as
pessoas possuírem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm
necessidades distintas. Em outras palavras, equidade significa tratar desigualmente os
desiguais, investindo mais onde a carência é maior.
Integralidade: este princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as
suas necessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção
da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Juntamente, o princípio
de integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, para
assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão
na saúde e qualidade de vida dos indivíduos.

PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS
Regionalização e Hierarquização: os serviços devem ser organizados em níveis crescentes
de complexidade, circunscritos a uma determinada área geográfica, planejados a partir
de critérios epidemiológicos e com definição e conhecimento da população a ser
atendida. A regionalização é um processo de articulação entre os serviços que já existem,
visando o comando unificado dos mesmos. Já a hierarquização deve proceder à divisão
de níveis de atenção e garantir formas de acesso a serviços que façam parte da
complexidade requerida pelo caso, nos limites dos recursos disponíveis numa dada
região.
Descentralização e Comando Único: descentralizar é redistribuir poder e responsabilidade
entre os três níveis de governo. Com relação à saúde, descentralização objetiva prestar
serviços com maior qualidade e garantir o controle e a fiscalização por parte dos
cidadãos. No SUS, a responsabilidade pela saúde deve ser descentralizada até o
município, ou seja, devem ser fornecidas ao município condições gerenciais, técnicas,
administrativas e financeiras para exercer esta função. Para que valha o princípio da
descentralização, existe a concepção constitucional do mando único, onde cada esfera
de governo é autônoma e soberana nas suas decisões e atividades, respeitando os
princípios gerais e a participação da sociedade.
Participação Popular: a sociedade deve participar no dia-a-dia do sistema. Para isto,
devem ser criados os Conselhos e as Conferências de Saúde, que visam formular
estratégias, controlar e avaliar a execução da política de saúde.

Responsabilidades dos entes que compõem o


SUS
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Publicado em 26/10/2022 17h40 Atualizado em 26/10/2022 18h21
União
A gestão federal da saúde é realizada por meio do Ministério da Saúde. O governo federal
é o principal financiador da rede pública de saúde.

Historicamente, o Ministério da Saúde aplica metade de todos os recursos gastos no país


em saúde pública em todo o Brasil, e estados e municípios, em geral, contribuem com a
outra metade dos recursos.
O Ministério da Saúde formula políticas nacionais de saúde, mas não realiza as ações.
Para a realização dos projetos, depende de seus parceiros (estados, municípios, ONGs,
fundações, empresas, etc.).

Também tem a função de planejar, elabirar normas, avaliar e utilizar instrumentos para
o controle do SUS.

Estados e Distrito Federal


Os estados possuem secretarias específicas para a gestão de saúde. O gestor estadual
deve aplicar recursos próprios, inclusive nos municípios, e os repassados pela União.

Além de ser um dos parceiros para a aplicação de políticas nacionais de saúde, o estado
formula suas próprias políticas de saúde. Ele coordena e planeja o SUS em nível estadual,
respeitando a normatização federal.

Os gestores estaduais são responsáveis pela organização do atendimento à saúde em seu


território.

Municípios
São responsáveis pela execução das ações e serviços de saúde no âmbito do seu
território. O gestor municipal deve aplicar recursos próprios e os repassados pela União
e pelo estado.

O município formula suas próprias políticas de saúde e também é um dos parceiros para
a aplicação de políticas nacionais e estaduais de saúde. Ele coordena e planeja o SUS em
nível municipal, respeitando a normatização federal.

Pode estabelecer parcerias com outros municípios para garantir o atendimento pleno de
sua população, para procedimentos de complexidade que estejam acima daqueles que
pode oferecer.

Carta dos direitos dos usuários do Sistema


Único de Saúde (SUS)
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Publicado em 26/10/2022 17h40 Atualizado em 26/10/2022 18h21

A “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde” traz informações para que você conheça
seus direitos na hora de procurar atendimento de saúde. Ela reúne os seis princípios
básicos de cidadania que asseguram ao brasileiro o ingresso digno nos sistemas de saúde,
seja ele público ou privado.
 Todo cidadão tem direito ao acesso ordenado e organizado aos sistemas de saúde.

 Todo cidadão tem direito a tratamento adequado e efetivo para seu problema.

 Todo cidadão tem direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer


discriminação.

 Todo cidadão tem direito a atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e seus
direitos.

 Todo cidadão também tem responsabilidades para que seu trata- mento aconteça da
forma adequada.

 Todo cidadão tem direito ao comprometimento dos gestores da saúde para que os
princípios anteriores sejam cumpridos.

Glossário do Sistema Único de Saúde (SUS)


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Publicado em 26/10/2022 17h40 Atualizado em 26/10/2022 18h21

Assistência farmacêutica – é o processo de planejamento, aquisição, distribuição,


controle da qualidade e uso de medicamentos voltados para proteção e recuperação da
saúde.
Atenção à saúde – é tudo que envolve o cuidado com a saúde do cidadão, incluindo
atenção básica e especializa, ações e serviços de promoção, prevenção, tratamento e
reabilitação.
Ciência e tecnologia – ações de pesquisa, desenvolvimento, difusão e aplicação de
conhecimentos nas áreas de saúde, educação, gestão, informação, além de outras ligadas
à inovação e difusão tecnológica.
Educação em saúde – processo para aumentar a capacidade das pessoas no cuidado da
saúde e no debate com os profissionais e gestores, a fim de alcançar uma atenção à saúde
de acordo com suas necessidades.
Gestão do trabalho – é a organização das relações de trabalho baseada na participação
do trabalhador de saúde como sujeito e agente transformador do seu ambiente.
Gestão participativa – atuação efetiva de cidadãos, conselheiros, gestores, profissionais e
entidades civis na formulação de políticas, na avaliação e na fiscalização de ações de
saúde.
Promoção da saúde – conjuntos de ações sanitárias integradas, inclusive com outros
setores do governo e da sociedade, que busca o desenvolvimento de padrões saudáveis
de: qualidade de vida, condições de trabalho, moradia, alimentação, educação, atividade
física, lazer entre outros.
Regulação – é o poder exercido pelo Estado para fiscalizar e estabelecer padrões, normas
e resoluções para serviços, produtos, estabelecimentos e atividades públicas ou privadas
em prol do interesse coletivo.
Sangue e hemoderivados – sangue é o líquido que circula no corpo humano e que quando
doado será utilizado em transfusões ou transformado em outros produtos, os
hemoderivados, como plasma e albumina.
Saúde suplementar – é o sistema privado de assistência à saúde das operadoras de planos
de saúde e prestadores de serviços aos beneficiários, sob a regulação da Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS).
Vigilância em Saúde – Conjunto de atividades que proporcionam conhecimento,
detecção, análise e monitoramento de doenças decorrentes, inclusive, de fatores
ambientais, com a finalidade de controlar e prevenir problemas na saúde humana.
Vigilância Sanitária – Ações de controle, pesquisa, registro e fiscalização de
medicamentos, cosméticos, produtos de higiene pessoal, perfumes, saneantes,
equipamentos, insumos, serviços e fatores de risco à saúde e ao meio ambiente.

Formação profissional em saúde e desenvolvimento socioeconômico

RESUMO
Este artigo discute o produtivismo acadêmico em detrimento da atuação socialmente engajada de
docentes universitários e seus reflexos na formação dos sujeitos. Tema oportuno em momento de
grave crise política e institucional que ameaça a seguridade social e o direito à saúde no Brasil.
Situação que convoca os atores sociais da educação e da saúde à reflexão sobre o papel da
universidade para a cidadania e sobre o sentido social do que ela produz.

PALAVRAS-CHAVE
Capitalismo; Universidades; Formação profissional em saúde

ABSTRACT
This article discusses academic productivism to the detriment of the socially engaged performance of
university professors and their reflexes in the training of subjects. Timely theme at a time of serious
political and institutional crisis that threatens social security and the right to health in Brazil. This
situation invites the social actors of education to reflect on the role of the University for Citizenship
and the social sense of what it produces.

KEYWORDS
Capitalism; Universities; Health human resource training

Preâmbulo sobre uma paisagem instigante


Uma crise institucional sem dimensões na história recente da democracia no Brasil, a partir do golpe
parlamentar de 2016, tende a comprometer o direito à saúde e a qualidade de vida da população.
Nesse cenário, a justiça social padece perante a tradição jurídica brasileira, no que concerne ao
interesse popular secundarizado (ASSIS ET AL., 2016). Os atores que operam a lógica do Estado mínimo
organizam-se em todos os estratos da sociedade e encontram refúgio para suas opções ideológicas
(neoliberais) também na universidade. Um sinal agudo a evidenciar que as classes menos favorecidas,
que acessam a universidade, carecem de uma formação emancipadora, em detrimento do modelo
tradicional que caracteriza o ensino, a pesquisa e a extensão sob a lógica de mercado. A expansão da
educação superior no Brasil, entre 2003 e 2013, torna esse debate inadiável.

Segundo o Ministério da Educação e Cultura (MEC), a oferta de cursos de graduação evoluiu de 16.505
opções para 32.049 nesse período, o que representa um crescimento de 94%, tanto no setor público
quanto no privado, notadamente, na região Nordeste (BRASIL, 2015).

O modelo de ensino e de produção científica, sob a égide do mercado, ajuda a manter, no que
concerne à saúde como conquista social, um esqueleto sem carne, uma estrutura divergente do
modelo emancipador proposto. Nunca a educação e a saúde careceram tanto de entrelaçamentos
para que o direito à cidadania venha a dar certo no Brasil (RIBEIRO, 2007; SANTOS; SILVA, 2013).

Nesse ponto, o MEC propõe a reflexão sobre o papel humanizador das Instituições Federais de Ensino
Superior (Ifes), em detrimento do que o mercado empreende.

O novo desenho institucional adotado pelas Ifes deve ser suficientemente sustentável, ancorado em
fundamentos humanísticos, que não se curvem aos interesses apenas comerciais, para enfrentar o
tensionamento desse período. (BRASIL, 2015, P. 49).

Como deve 'agir' a universidade frente às perdas de direitos fundamentais da sociedade (sociais,
trabalhistas e previdenciários)? Obter respostas implica entender a morfologia contemporânea do
trabalho, cuja matriz situa-se no modelo econômico, marcado por ritmo e sentido, dentro e fora do
universo acadêmico.

Morfologia do trabalho: de Lafargue à academia produtivista do


terceiro milênio
No texto de Paul Lafargue, escrito na prisão, em 1883, observam-se as marcas do produtivíssimo
intelectual vigente a coadunar com as nuances do pensamento dogmático sobre o trabalho. Hoje, a
produção pela produção, alienante quanto à sustentabilidade e à geopolítica globais, guardaria algum
traço do que se observou no século XIX, na França?

Na nossa sociedade [francesa], quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os
camponeses proprietários, os pequeno-burgueses [...] mexem-se como a toupeira na sua galeria
subterrânea e jamais se endireitam para olhar com prazer para a natureza. (LAFARGUE, 2003, P. 22-
23).

Os atores não percebem a 'natureza' em suas entrelinhas, tampouco os fenômenos sociais que podem
circunscrevê-la. É essa uma postura produtivista; tecnicista, funcional, desprovida de uma razão social.
Ocorre sempre de o trabalhador intelectual 'amar o trabalho pelo trabalho', não obstante o teor
ideológico desumanizador embutido na produção do conhecimento sob tal perspectiva.

Paul Lafargue, em sua época, numa postura crítica, conduzia pelas galerias da França uma tartaruga
pela coleira. Deixava-se levar pela cadência do animal, tendo a visão do entorno. Segundo esse autor,
era de bom-tom levar tais bichos para passear como forma de protesto contra a organização e o
processo de trabalho vigentes (LAFARGUE, 2003). O que mudou no modo de produzir? Ao controle do
tempo-movimento (taylorismo) somou-se a polivalência (toyotismo) e ampliou-se o desemprego
estrutural.

Atualmente, a nova morfologia do trabalho no setor público, manual ou intelectual, caracteriza-se


pela flexibilidade de direitos, disponibilidade e capacidade de adaptação constantes, situação
reforçada pela raridade de concursos públicos. O pragmatismo produtivista acadêmico converte os
processos ensino/aprendizagem e pesquisa/publicação numa matriz formal de autorreprodução, sem
a devida contextualização sociopolítica e desprovida de significado (ZIZEK, 2015). Tem-se a tragédia na
formação em saúde, como adverte Jaime Breilh (2015, P. 537):

São universidades que perguntam: qual a produção, como apoiar a produção, como resolver as
questões do poder institucional. É uma ciência por contrato, à la carte. É uma ciência por demanda
institucional do poder. No campo da saúde pública isso é uma tragédia.

Embora denunciem a 'injustiça', grande parte dos professores da área da saúde não foi talhada para
uma ação política transformadora. Fixa-se na condição de operários da educação, a 'modelar' os novos
operários da saúde, minimamente prontos para atender aos reclames do mercado. Reproduzem o
politicamente dado, numa postura 'áulica', na concepção do professor Darcy Ribeiro (2007).

A academia tem um papel no desenvolvimento da sociedade. Não pode abster-se ante os conflitos
sociais, sem prejuízo de sua própria sobrevivência. Como salienta Zizek (2012, P. 16), "A mudança
radical nunca é desencadeada pelo pobre, de modo a criar uma desordem explosiva". Então, quem
fala por esse 'pobre' se a universidade pública, mantida também por esse 'pobre', não fizer a sua
parte? Os políticos clientelistas ou o judiciário partidarizado (ASSIS ET AL., 2016), que submetem os
anseios sociais aos interesses privados, cumprirão esse papel?

Não à toa, discute-se o traço estrutural dessa realidade objetiva:

A tendência geral do capitalismo global é na direção de uma expansão maior do domínio do mercado
em combinação com o progressivo fechamento do espaço público, redução dos serviços públicos
(saúde, educação e cultura) e o incremento do autoritarismo. (ZIZEK, 2015, P. 128).

A academia necessita rever o conceito de 'trabalho urgente', urgentemente. A tartaruga de Lafargue


convida a uma visão de mundo onde a 'lerdeza' ganha outro sentido: o tempo necessário para a
maturação das ideias. Um bicho que superou catástrofes ambientais por 340 milhões de anos seria
apenas uma espécie preguiçosa ou inábil simplesmente porque caminha lentamente? Um
professor/pesquisador anti-hegemônico, então, o seria? É imperioso saber como produzir com
qualidade, sem ócio, na condição do humano, numa sociedade onde moer gente é o predomínio. Tal
percepção é uma premissa para o alcance da autonomia mínima defendida por Freire (2008) e que
qualifica a formação em qualquer área do conhecimento. No cenário atual, o professor/pesquisador
quase não se percebe como peça de mercado, e, condicionado, nega a sua própria humanidade:

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do
inacabamento, sei que posso ir mais além dele [...] Gosto de ser gente porque, como tal, percebo
afinal que a construção da minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da
influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente
e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. (FREIRE, 2008, P. 53).

A lógica do capital evoca sujeitos 'aptos', com currículos bem pontuados, contudo, sem qualquer
noção histórica integradora, sem compromisso com a coisa pública ou com as lutas de classe, não
obstante alguns vivam a vida que pediram a Deus por causa dessas lutas que menosprezam e até
combatem. O que está em jogo é o modo como a academia (des)trata as desigualdades e a democracia
no País. Então, no âmbito da formação dos atores da saúde, qual cidadania se pretende estruturar?
Aquela que ignora os determinantes sociais do processo saúde-doença?

Que liberdade tem o docente que não cita a miséria social que adoece e mata?

Ora, não é livre o homem doente que não tem os meios para se tratar, o homem posto na rua porque
não consegue pagar seu empréstimo bancário. Chega-se, então, ao paradoxo de que a liberdade
individual, em cujo nome é rejeitada qualquer intervenção do Estado, fica impedida pela irrestrita
liberdade concedida ao mercado e às empresas. (TODOROV, 2012, P. 106).
Contraditoriamente, a energia universitária pulsante desgasta-se em conflitos burocráticos e
curriculares. Pouco se discute sobre o papel do Estado ou do mercado na definição do modelo de
ensino na universidade, gerador de concorrência e causador de sofrimento mental. Sabe-se que os
transtornos mentais estão presentes no contexto das universidades do mundo e do Brasil (BERNARDO,
2014; DUTRA, 2012; LIMA, 2013).

Reproduzem-se valores, métodos, técnicas e condutas, numa abordagem professoral dotada de um


saber 'autossuficiente', no âmbito do ego, mas impotente quanto à utilidade social, percebida numa
dimensão emancipadora dos outros (SANTOS; SILVA, 2013).

Conforma-se um espaço acadêmico de formação acrítica da força de trabalho para o mercado,


convertido em território devastador de corpos mudos, mentes surdas e almas cegas, produzidas no
transcurso do ensino-aprendizado brasileiro. Não há, portanto, sentido algum em falar de 'escola sem
partido', como um modelo de ensino a ser construído, mas somente legitimado, porque já se
materializou como mecanismo de dominação.

A didática resposta/ação contra-hegemônica dos estudantes


Sabe-se que professores-pesquisadores encontram-se queixosos com relação ao produtivismo
acadêmico (LEMOS, 2007). Além deles, ante a ofensiva capitalista contra as universidades públicas, os
estudantes surgem, também, como atores sociais contra-hegemônicos. São também os estudantes
que protagonizam nas ruas do mundo a luta pela emancipação das sociedades subjugadas pelas regras
do mercado. Eles protagonizaram no Occupy Wall Street e na 'Primavera Árabe' (ZIZEK, 2012).

No Brasil, observa-se quadro semelhante de resistência do movimento estudantil ao Estado mínimo


e às suas repercussões na qualidade do ensino moldado pela lógica de mercado. Em 2013, as
manifestações no Brasil demonstraram o desejo de ruptura dos estudantes com a estrutura político-
econômica vigente e a busca da garantia dos direitos sociais relegados. Essa posição de resistência
não é nova. Almeida (2009) sinaliza que, historicamente, o movimento estudantil centraliza as suas
reivindicações nas melhorias dos serviços públicos, entre os quais, transporte, educação, saúde e
segurança, principais setores atingidos pela flexibilização e pela precarização introduzidas pelas
políticas neoliberais.

Na Bahia, observaram-se manifestações estudantis com objetivos semelhantes e que ganharam


visibilidade através das redes sociais. O movimento dos 'camisas pretas', em Vitória da Conquista, em
setembro de 2016, foi emblemático (figura 1). Universitários do Instituto Multidisciplinar de Saúde da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) vestiram-se de preto e assumiram o 'luto' pelo desconforto
mental causado pelo modelo acadêmico de formação.

Figura 1
Fotografia. Estudantes dos cursos de Saúde protestam contra o modelo de ensino em Universidade Federal
do interior da Bahia
Nota: Imagem pública cedida por estudantes do movimento.

Tratou-se do questionamento coletivo sobre tipo de 'sucesso' obtido na vida acadêmica, modelado
conforme a exigência de mercado. O mesmo mercado que, paradoxalmente, não abre espaço para os
jovens, ao defender o 'enxugamento' e a polivalência na produção de mercadorias e serviços
(ANTUNES, 2007; ZIZEK, 2012).

Tal cenário reflete uma postura hegemônica na educação (modelo empresarial baseado em
resultados), quando a universidade deveria eleger no processo educativo a formação de sujeitos
capazes de atuar de forma proativa na superação das necessidades sociais de saúde, o que vai além
de um profissional focado no modelo tecnicista e biomédico. Esse modelo não corresponde à eterna
urgência de uma Reforma Sanitária Brasileira, que tem como premissas a participação política e a
qualidade de vida da população (PAIM, 2008).

Os estudantes mais conscientes de seu papel emancipador reagem. Querem ser proativos; sabem que
o desemprego que os espera não é um detalhe. É uma estratégia essencial na propagação da
desigualdade no mundo do trabalho. Não poderia ser diferente:

Toda uma geração de estudantes quase não tem chance de encontrar emprego em sua área, o que
leva a um protesto em massa; e a pior maneira de resolver essa lacuna é subordinar a educação
diretamente às demandas do mercado - se não por outra razão, isso ocorre porque a dinâmica do
mercado torna 'obsoleta' a educação dada nas universidades. Esses estudantes inempregáveis estão
predestinados a desempenhar um papel organizador fundamental nos futuros movimentos
emancipatórios. (ZIZEK, 2012, P. 15-16).

O desemprego é uma estratégia do capital para manter o seu contingente de reserva e, mais que isso,
para impor aos empregados o temor do não trabalho, a flexibilização de direitos trabalhistas e a
polivalência adoecedora (ANTUNES, 2007; BREILH, 2003). É para um mercado assim que a universidade
forma os seus alunos. É essa ética que influencia pesquisadores, cuja produção 'em escala' muitas
vezes não reflete as diversidades e as necessidades do Brasil.

Na formação em saúde, ler para memorizar tem sido um meio eficiente de alcançar notas, e nem
sempre de aprender. Assim, acreditar que se está 'indo bem' com a pedagogia da submissão ao
convencional é um autoengano. Atitude que compromete a formação de atores da saúde críticos e,
consequentemente, as conquistas nos campos da saúde e da educação, com risco iminente de
infelicidade coletiva.

Ditosamente, o autoengano tem fronteiras. "Obviamente, há limites para o que somos capazes de nos
fazer acreditar. Como diz o poeta, 'é difícil ter visões comendo merda'" (GIANNETI, 2008, P. 113). Se,
para a saúde, tem-se a economía de la muerte, caracterizada pelas várias iniquidades (BREILH, 2015);
e se, para a sociedade contemporânea, tem-se a economia da desigualdade social (PIKETTY, 2015), a
apatia acadêmica, ante à crise democrática e à perda de direitos à saúde e à vida, corresponderia à
reprodução de uma educação para a injustiça, uma educação para a morte, nem sempre pelo
autoengano, e, muitas vezes, por uma opção ideológica.

A universidade deve ser o espaço da inquietação manifesta de discentes, professores e técnicos e de


quem mais compuser a vida universitária. Assim, não se pode prescindir de um ensino engajado e de
uma pesquisa socialmente comprometida com a emancipação dos sujeitos. Paulo Freire (2008) alerta
que não há problema na inquietação, no alvoroço, na reivindicação ou na vitalidade. Para ele, a ciência
deve compreender bem isso, e o professor/pesquisador deve ter o bom senso para admitir que nem
sempre estará certo diante das suas certezas. Diz ele:

Tenho pena e, às vezes, medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade e que
não suspeita sequer da historicidade do próprio saber. (FREIRE, 2008, P. 63).

Para Freire (2008), todo saber é historicamente e socialmente determinado. Compreende-se, então,
que não há somente boa intensão da parte de quem ensina. Há uma ideologia a pleno vapor no
processo de ensinar, que liberta ou oprime. Que promove mudanças ou perpetua as desigualdades.
A universidade, por essa razão, é um espaço de disputas sociais.

Cabe indagar: o que se está fazendo nas universidades, pela via da educação, para garantir nas ruas e
nos espaços deliberativos ou estratégicos a saúde como direito universal no Brasil? É suficiente
'ensinar' e 'produzir saber' em espaços fechados para que a universidade cumpra o seu papel como
instituição que fomenta o desenvolvimento de uma sociedade?
Indagações como essas não podem ignorar as necessidades sociais de respostas, simplesmente
porque a ação política esteja fora do plano de aula ou do projeto individual de pesquisa. Além disso,
é impossível negar a natureza educativa do fazer político, bem como o caráter político que permeia o
ato de educar. Assertiva pertinente, quando as forças anti-SUS tentam impor um padrão de escola
despolitizada e uma universidade acéfala, produtivista, vulnerável à ofensiva do setor privado e, por
consequência, morbígena (LIMA, 2013).

Despolitização, prazer e a morte no modelo produtivista


Observar o que ocorre no mundo ajuda a entender o Brasil, onde as perdas sociais e trabalhistas são
evidentes após o impeachment de 2016. Todorov (2012) analisa a ofensiva global do capitalismo, agora
sobre as democracias recentes, o que não deve ser menosprezado pelo mundo acadêmico:

Esses são apenas alguns dos exemplos que evidenciam a assustadora corrosão da democracia no
mundo contemporâneo. A cidadania encontra-se cada vez mais ameaçada pela perigosa combinação
entre o cinismo dos políticos tradicionais e, os tratados financeiros internacionais, indiferentes aos
verdadeiros anseios da sociedade, e a ascensão de movimentos populistas à direita e a esquerda.
(TODOROV, 2012, P. 18).

Todorov (2012) e Zizek (2012) salientam a natureza simbólica do capital, que transmuta-se num credo
religioso perante o qual a aceitação (pelo senso comum) dá-se sem qualquer questionamento,
enquanto as democracias são desmerecidas:

O capitalismo global solapa a democracia. Essa questão é fundamental para entender o


funcionamento cínico da ideologia: ao contrário do período em que o sentimentalismo ideológico-
religioso encobria a violenta realidade econômica, hoje o violento cinismo ideológico é que encobre
o núcleo religioso das crenças capitalistas. (ZIZEK, 2012, P. 138).

Não refletir sobre o conteúdo ideológico do que se realiza na condição de educadores/pesquisadores


é uma posição, no mínimo, conivente com a injustiça social que o desmantelamento do Sistema Único
de Saúde (SUS) evidencia. Uma ofensiva capitalista contra o SUS, sem uma contraofensiva da
academia, prenuncia a falência do pensamento emancipador e uma catástrofe social sem
precedentes.

O menosprezo aos determinantes sociais de saúde, nas pesquisas ou nas aulas, conforma um misto
de indiferença ou de aversão ao conjunto de saberes que buscam explicar, fora dos modelos teóricos
preferidos, desigualdades que precisam ser superadas, se quisermos falar de uma academia
comprometida com os melhores perfis de morbimortalidade.

O resgate da luta coletiva pela reforma sanitária passa, impreterivelmente, pela reformulação do
modelo teórico-prático do ensino e do caráter transformador da pesquisa científica, bem como pela
gestão do trabalho que possibilite a autonomia dos que constroem e reconstroem a saúde
cotidianamente. Uma luta utópica implica em ruptura com a proposta de universidades formadoras
de mão de obra 'qualificada' para atender à lógica da produtividade fabril, quando a sociedade precisa
de trabalhadores da saúde críticos e autônomos, envolvidos com a realidade e mais atuantes do ponto
de vista das proposições e da integração dos múltiplos campos do conhecimento, sem a qual não se
faz promoção da saúde. (SANTOS; SILVA, 2013, P. 217).

Como parte da crise política mencionada, o desmonte do SUS aguarda do mundo universitário um
compromisso além do produtivismo fabril-acadêmico. Urge uma reavaliação da postura
política/pedagógica predominante para a formação em saúde. O antropólogo e professor, Darcy
Ribeiro (2007, P. 89) , reafirma a natureza ideológica do ensino: "A futilidade da pesquisa universitária
é quase total do ponto de vista da escolha de opções políticas". Sobre o estado de alienação que pode
afetar o professor-pesquisador, o autor diz que
o intelectual vivendo longe disso tudo, isolado na redoma acadêmica, não compreende nada, fica em
sua fatuidade auto-suficiente, crendo que é fonte de todo saber. (RIBEIRO, 2007, P. 89).

Nesse contexto, as análises de Lemos (2007) apontam para uma crise de identidade dos trabalhadores
que resulta numa posição acrítica perante as novas formas de organização do trabalho. É quando "o
homem se torna objeto do seu próprio trabalho [...] torna-se inferior e escravo do objeto" (LEMOS,
2007, P. 31). Nessa teia, tanto a função política quanto a científica da universidade encontram-se à
deriva. A autora explica:

A Universidade hoje não consegue nem cumprir totalmente a sua finalidade política, de exercer o
pensamento crítico criativo, nem consegue ser plenamente uma instituição direcionada para formar
habilidades práticas requeridas pelo mercado. Situa-se aparentemente numa 'terra de ninguém', mas
altamente cobiçada pelo poder econômico dominante, uma vez que representa cada vez mais um
negócio de alta lucratividade [...]. (LEMOS, 2007, P. 75).

Nessa direção, Chauí (2001, P. 56) afirma que

a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o
rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição.

Ela explica que a fragmentação da universidade ocorre em vários níveis, tendo o taylorismo como uma
regra.

Desenha-se, com o aval do Estado, uma universidade neoliberal que se expressa no 'capitalismo
acadêmico', discutido desde a década de 1990 por Slaughter e Leslie (1997). Atualmente, o conceito de
capitalismo acadêmico, com ênfase nas produções bibliográficas, é retomado por Bernardo (2014) em
seu estudo sobre as repercussões do produtivismo na saúde psíquica de docentes das universidades
públicas no Brasil.

O produtivismo e a polivalência na academia, que altera o sentido do trabalho, podem ser fatores para
o adoecimento psíquico e suicídios de professores universitários, não somente de estudantes. Sabe-
se que a cobrança de produtividade resulta do modelo organizacional de trabalho sobre o qual o
docente não tem domínio. Esse, por sua vez, quando não adoece e mata, escraviza e aliena. Sobre
esse aspecto, alerta-se que:

[...] a universidade em ritmo de barbárie produtivista seja o melhor lugar para transformar ideias de
autodestruição em ato efetivo, porque nela reinam competição, individualismo, inveja, fogueira das
vaidades, violência simbólica etc. [...] entre professores-pesquisadores narcisicamente constituídos
enquanto grupo de 'capitalistas científicos' (sic), cuja posição de dominantes visa reproduzir alunos
em série, dominados e crentes no sistema teórico. Ou seja, neste ambiente não sobra muito espaço
para o aluno ou professor independente. (LIMA, 2013, P. 82).

Três professores de uma universidade estadual na Bahia cometeram suicídio em um interstício menor
que sete meses, entre 2014 e 2015 (MELO, 2015 ). Em intervalo quase idêntico, outro pesquisador da
mesma universidade foi premiado porque conseguiu produzir 40 artigos em um ano. Contradições no
cerne do universo acadêmico que exigem dos atores em cena a identificação de fatores que geram
prazer e, ao mesmo tempo, sofrimento e morte na academia (LIMA, 2013). Lemos (2007) observa um
outro aspecto desse paradoxo quando se refere a uma 'corrida' para a publicação de artigos
científicos. Tem-se o aumento da produtividade docente e, em contraposição, a estagnação do
conhecimento.

Os trabalhos são publicados repetidas vezes, com pequenas modificações ou são trabalhos
desenvolvidos às pressas sem uma maior maturação o que determina uma produção em série,
massificada, com perda de qualidade. (LEMOS, 2007, P. 77).
É possível vislumbrar, nas relações sociais de produção na universidade, uma teia de conflitos
caracterizada pela interface entre o modelo taylorista, marcado pela fragmentação e pela alienação
no trabalho (CHAUÍ, 2001), e a organização toyotista, tipificada pela flexibilização de direitos, pela
polivalência e por adaptações constantes, conforme a égide produtivista (ANTUNES, 2007).

Nessa direção, o processo alucinante de produção capitalista escapa ao domínio do docente e vai
rebater naquele que deve ser o objeto de sua atenção, o educando:

O produtivismo da universidade [publishorperish/'publica ou perece' epidêmico entre professores-


pesquisadores] e o individualismo narcisista universitário vêm contagiando os alunos, gerando neles
alta ansiedade, estresse, desencadeando transtornos psíquicos, pânico de não dar conta dos trabalhos
e provas, pavor de ser julgado como intelectualmente incapaz pelos colegas e
professores, bullying etc. ('Não deixe que essa universidade, ou algumas pessoas que nela estão te
contaminem assim como fizeram comigo' disse Luiz Carlos de Oliveira, 20 anos, estudante de Filosofia
da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, antes de se enforcar). (LIMA, 2013, P. 81).

Eis um bom contexto para perguntas científicas (e reflexões íntimas) socialmente engajadas. Muito
diferente de se perguntar (agora) qual o efeito da adrenalina na corrente circulatória de um hamster,
quando o coração do sistema de saúde mais universal do mundo (SUS) está parando, em plena calçada
das faculdades de medicina, enfermagem, farmácia, biologia, biotecnologia, psicologia, nutrição e
tantas outras. Situação comprometedora do direito à vida de milhões de pessoas, e permanecem os
atores preocupados com o 'prêmio', tão condicionados quanto o funcionário do mês de uma fábrica
de calçados, que consegue, ao custo de suor e sangue, bater a meta para ter a sua foto sorridente
pendurada no galpão de produção por trinta dias. Que valores são esses? Aonde nos levarão?

Continuamente, fala-se da necessidade de produzir artigos para a progressão na trajetória acadêmica.


Ou faz ou fenece! Nada contra a produção acadêmica; contudo, o modelo subjacente dessa produção
não é neutro (FREIRE, 2008; RIBEIRO, 2007). Para o produtivista, são desconhecidas a raiz, a motivação
e a necessidade do ócio curricular, e o quanto esse ócio serve à maturação do pensamento ou como
incubadora fascinante de perguntas norteadoras, social e politicamente potentes.

Enquanto o SUS agoniza, a universidade, em seu ventre, até o momento, vai parindo para o
capitalismo os filhos do mercado, uma força de trabalho destituída do social, em vez de cidadãos
conscientes de sua identidade de classe. Um modelo ainda funcionalista, visível no poema dedicado
ao epidemiologista Jaime Breilh:

E agora, Breilh? [...]

a. O dia não passa - funciona.

b. O trabalhador não pensa - funciona.

c. O homem não vive - funciona.

d. O ponto digital - controla, vigia e pune.

e. Funcione! [...]. (SANTOS, 2015, N. P.)

Considerações finais
Nesse contexto funcionalista (do instantâneo), o acadêmico deve resistir à tentação de tornar-se um
produtor de 'miojos'. É preciso maturar as ideias, experimentá-las, testá-las e discuti-las com certa
profundidade, à luz de um contexto sociopolítico e econômico, geralmente, opressor. É preciso tempo
(o ócio) e interesse para reconhecer outras áreas do saber, que contribuem para a compreensão do
mundo que nos cerca e dos fenômenos sociais que nos afetam.
A vida em sociedade sempre cobrará a fatura das escolhas. O SUS já está cobrando. Se áulicos ou
iracundos; se coniventes, omissos ou engajados; se produtivistas ou socialmente compromissados
com os destinos da população, tudo isso retornará em forma de perdas ou conquistas sociais. E se o
tempo é suficiente para produzirmos centenas de coisas, como máquinas, é sempre insuficiente para
se reverter, politicamente, o ritmo da destruição de direitos sociais em curso no Brasil e no mundo. A
crise da universidade é a crise do pensamento. Pensamento ameaçado (em crise) contribui para
formar sujeitos estranhos ao cenário onde interagem.

 Suporte financeiro: não houve

Saúde coletiva

Resumos
A Saúde Coletiva pode, em um primeiro contato, parecer bastante múltipla e fragmentada. Buscando
compreender melhor o que a define como conhecimento e atuação na sociedade, realizou-se uma
recuperação de natureza teórica das considerações históricas e epistemológicas desenvolvidas por
pesquisadores dedicados a caracterizá-la como campo científico e social. Primeiro, com base nessa
produção bibliográfica, foi feita uma breve caracterização da emergência da Saúde Coletiva. É de se
destacar que suas origens situam-se no final da década de 1970, em um contexto no qual o Brasil
estava vivendo uma ditadura militar. A Saúde Coletiva nasce, nesse período, vinculada à luta pela
democracia e ao movimento da Reforma Sanitária. Apontam-se as influências do preventivismo e da
medicina social em sua constituição. Ao longo deste estudo, foram exploradas distintas tentativas de
sua delimitação como campo de saberes e de práticas. Buscou-se apresentar a Saúde Coletiva não
com uma definição única, mas considerando a multiplicidade de construções encontradas, o que
permite apontar para uma identidade de difícil elaboração e ainda em desenvolvimento.

Saúde Coletiva; Medicina Social; Domínios Científicos; Conhecimento.

At first sight, Collective Health might seem to be multiple and fragmented. Aiming to understand
better what defines it as knowledge and activity in society, we made a theoretical review of historical
and epistemological considerations developed by researchers who dedicated themselves to
characterizing it as a scientific and social field. First, based on this literature, we provide a brief
panorama of the emergence of Collective Health in Brazil. It is important to notice that its origins date
back to the end of the 1970s, in a context in which Brazil was experiencing a military dictatorship.
Collective Health emerges, at that moment, connected with the struggle for democracy and with the
Health Reform movement. We show the influences of preventive medicine and social medicine in its
constitution. Then, we explore different attempts to delimit it as field of knowledge and practice. We
sought to present Collective Health not through one single definition, but taking into account the
multiplicity of constructions about it that we found. This allows us to point to an identity of difficult
development and that is still under construction.

Collective Health; Public Health; Social Medicine; Scientific Domains; Knowledge


Introdução
O que instigou a escolha do tema para este trabalho foi a percepção de que a Saúde Coletiva pode,
em um primeiro contato, parecer bastante múltipla e fragmentada, tanto do ponto de vista teórico
quanto do prático. Pretendendo, então, conhecê-la melhor, foi realizado um estudo a partir da
produção em Saúde Coletiva na tentativa de buscar respostas para as questões: O que caracteriza e
define a Saúde Coletiva? O que a distingue de outros campos de conhecimento e intervenção?

Com a qualidade de uma primeira reflexão sobre essas questões, optamos por revisitar estudos que
se dedicaram a pensá-la como um campo específico e que foram realizados por autores considerados
referência na Saúde Coletiva, tanto por figurarem entre aqueles que participaram da elaboração e
implantação da proposta de uma Saúde Coletiva no país, ao final dos anos 1970, quanto por serem
pesquisadores da Epidemiologia, das Ciências Humanas e Sociais em saúde e também da Política,
Planejamento e Gestão em saúde, que, desde esses distintos ramos da Saúde Coletiva, estudaram sua
constituição.

A referência de que a Saúde Coletiva configura um "campo" é registrada em quase todas as


publicações. Neste texto, manteremos essa referência seguindo (Paim e Almeida Filho 1999 , 2000), que,
em suas reflexões sobre a Saúde Coletiva, caracterizam-na como "campo de conhecimento e âmbito
próprio de práticas": "A Saúde Coletiva pode ser considerada como um campo de conhecimento de
natureza interdisciplinar cujas disciplinas básicas são a epidemiologia, o planejamento/administração
de saúde e as ciências sociais em saúde" (Paim; Almeida Filho, 2000, p. 63).

No entanto, em recente publicação que examina a Saúde Coletiva, essa qualificação de "campo",
desde o início embasada pelo conceito cunhado por Pierre Bourdieu (1993), é relativizada,
considerando que a Saúde Coletiva, ora denominada como "área", ora como "espaço social", aponta
em seu desenvolvimento uma tendência para consolidar-se como um campo (Vieira da Silva; Paim;
Schraiber, 2014).

Conhecendo essa questão em aberto, como um campo futuro ou consolidado, instigou-nos,


sobretudo, a delimitação de uma identidade, científica e prática, com base em seus conteúdos de
saber e âmbitos de intervenção. Desse modo, buscamos, nessa mencionada revisita às publicações
sobre a construção da Saúde Coletiva, explicitar quais domínios de competência se fala desde suas
origens. Menos que uma revisão bibliográfica, portanto, este trabalho busca uma releitura de
importantes discussões sobre a identidade da Saúde Coletiva.

Trata-se de um esforço para se ter uma clareza maior sobre o que constitui "o todo" da Saúde Coletiva,
tentando superar uma possível visão fragmentária baseada nos diversos recortes disciplinares que a
compõem, de modo, inclusive, a compreender melhor uma construção de sua identidade. Segundo
Everardo Nunes (2005), tal esforço parece ser uma preocupação importante na própria história da
Saúde Coletiva:

Recuperar a história e desvendar sua composição interna (epistemé) tem sido uma das preocupações
presentes em diversos trabalhos e análises que vêm acompanhando a própria construção da Saúde
Coletiva no Brasil. Esse esforço tem estado presente desde os anos 80 e se estende até a atualidade,
buscando fornecer os elementos que configurem nossa identidade e revelem quem somos, onde nos
situamos, o que fazemos, quais os produtos de nossas práticas (p. 14).

O presente artigo está divido em duas partes. A primeira faz uma breve apreciação sobre a
constituição da Saúde Coletiva, tal como apresentada por autores do campo, em que damos destaque
às correntes de pensamento em torno a processos saúde - doença em coletivos, como formas de
aproximação distintas de uma saúde pública e com base no olhar cunhado pela medicina da
modernidade. O modo como são articuladas questões da medicina e da saúde pública é a referência
para a compreensão das questões que cercam o conteúdo disciplinar que a proposta da Saúde
Coletiva abraçou. A nossa segunda parte explora contrastes entre distintas tentativas de definição da
Saúde Coletiva. Tais contrastes também constam em textos de autores do campo, os quais trazem
diferentes perspectivas de delimitação da Saúde Coletiva, já indicando em seu interior uma grande
multiplicidade de correntes de pensamento acerca de suas definições como campo.

A constituição do campo da Saúde Coletiva


As origens do campo da Saúde Coletiva são situadas por Nunes (1994) na década de 1950. Vieira-da-
Silva, Paim e Schraiber (2014) reforçam o final da década de 1970 utilizando como marco o surgimento
do termo Saúde Coletiva no Brasil e a criação da associação civil que representaria o campo - a
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) -, não negando as raízes
apontadas por Nunes em períodos anteriores. A Saúde Coletiva consolidou-se, então, com esse nome
e com suas especificidades no Brasil. Apesar de o nome não ter sido adotado em outros países, muitos
autores veem a Saúde Coletiva como parte de um movimento mais amplo da América Latina, como
aponta o próprio Nunes (1994).

Com base em uma distinção entre "projeto" e "campo" de Saúde Coletiva, Nunes (1994) apresenta a
emergência desse campo composta por três momentos: o primeiro, denominado fase pré-Saúde
Coletiva, durou os primeiros quinze anos a partir de 1955, e foi marcado pela instauração do projeto
preventivista; o segundo, que vai até o final dos anos 1970, é denominado fase da medicina social; o
terceiro vai do final dos anos 1970 até pelo menos 1994, quando o autor escreveu o artigo Saúde
coletiva: história de uma ideia e de um conceito. O autor considera este último segmento como sendo
o período da Saúde Coletiva propriamente dita. Segundo (Nunes 1994, p. 2), "a emergência desses
projetos reflete, de um modo geral, o contexto socioeconômico e político-ideológico mais amplo,
como também as sucessivas crises, presentes tanto no plano epistemológico, como das práticas de
saúde e da formação de recursos humanos".

Nesse sentido, Paim e Almeida Filho (1999) também alertam para a importância do contexto nas
questões relativas ao campo do conhecimento. Esses autores, a partir de ideias de Kuhn e de Rorty,
defendem que a construção do conhecimento científico não é produzida pelos investigadores de
forma isolada, em abstrato, mas ocorre, sim, organizada institucionalmente, dentro da cultura, imersa
na linguagem. A ciência seria, portanto, determinada social e historicamente. Os autores propõem
que a ciência deva ser entendida como uma prática social que tem fundamentos particulares, que se
exerce em um processo de diálogo e de negociação destinado à produção de um consenso localizado
e datado, baseado em uma certa solidariedade dos atuantes da comunidade científica.

A nosso ver, um importante aporte dessa periodização está em evidenciar o preventivismo e a


medicina social como abordagens do processo saúde-doença em coletivos que podem ser
reconhecidas como as raízes da proposta de Saúde Coletiva elaborada no Brasil e que tiveram
influência na implantação institucional do campo.

A seguir, vamos caracterizar essas raízes para que se possa compreender a modalidade de proposição
disciplinar e prática que constituíam.

O preventivismo

Segundo Paim e Almeida Filho (1998), na década de 1940, começou-se a diagnosticar nos Estados
Unidos uma crise de determinada medicina, que estava extremamente especializada e fragmentada,
o que ocasionava, também, um aumento dos custos relacionados às práticas médicas. Em resposta a
isso, surgiram propostas de mudanças no ensino médico, incorporando nele uma ideia de prevenção.
Essas propostas serviram de base para uma reforma dos currículos escolares dos cursos de medicina
de várias faculdades norte-americanas na década de 1950. Organismos internacionais do campo da
saúde aderiram à nova doutrina, que veio a ser chamada de Medicina Preventiva, ocorrendo, então,
uma internacionalização dessa proposta.

Nunes (1994) aponta que a emergência do "projeto preventivista", na América Latina, aconteceu na
segunda metade dos anos 1950, nos seminários que se realizaram no Chile e no México, sob o
patrocínio da Organização Pan-americana de Saúde (Opas). As reformas defendidas apareceram
vinculadas a um plano pedagógico:

O grande saldo do período é a inclusão, no curso de graduação em medicina, de disciplinas e temas


associados à epidemiologia, ciências da conduta, administração de serviços de saúde, bioestatística.
Procurava-se, dessa forma, ao criticar a biologização do ensino, calcado em práticas individuais e
centradas no hospital, não somente introduzir outros conhecimentos, mas fornecer uma visão mais
completa do indivíduo (Nunes, 1994, p. 7).

O fato de que o ensino fosse pautado na especialização tornava a educação médica muito estilhaçada.
Como reação a isso, buscou-se realizar propostas de mudanças no ensino, a fim de que o futuro
profissional médico tivesse uma compreensão do indivíduo como um todo, acreditando-se que, assim,
haveria uma recomposição do bio-psico-social que tinha sido fragmentado. O movimento social que
originou a Medicina Preventiva como disciplina do currículo das escolas médicas denominou-se
Medicina Integral, com o objetivo de buscar a recomposição das práticas especializadas (Schraiber,
1989). Dele, porém, resultou apenas a inclusão de uma única disciplina curricular, ainda que
perpassasse diversos momentos da formação do médico, mas sem que outros projetos integradores
além do ensino da prevenção fossem incorporados, quer na formação dos médicos, quer em termos
de seus exercícios profissionais em serviços de saúde. Como apontou Schraiber (1989), essas propostas
pretendiam uma reforma da prática médica, mas pressupunham que essa reforma seria alcançada
pela formação do médico, como se cada médico em sua prática fosse o principal recurso
transformador da forma de prestar assistência à população. Esse modo de olhar a reforma da prática
médica foi bem caracterizado, como uma leitura liberal e individualizante das questões sociais,
bastante próprio à cultura norte-americana relativamente ao papel do Estado na sociedade,
por Arouca (2003) em publicação hoje considerada um marco para a Saúde Coletiva brasileira (Vieira
da Silva; Paim; Schraiber, 2014).

Além da Medicina Preventiva, chegou na América Latina a Medicina Comunitária. Esta surgiu, na
década de 1960, também nos Estados Unidos, em um período de intensa mobilização popular e
intelectual em torno das questões sociais. Como mostraram Donnangelo e Pereira (1976), a Medicina
Comunitária foi uma resposta à baixa cobertura de assistência médica aos mais pobres, tais como
comunidades carentes de migrantes ou de estratos de baixa renda da sociedade norte-americana, e
à baixa cobertura aos idosos, que, por estarem fora do mercado de trabalho, também ficavam sem
acesso adequado aos serviços médicos. Diversos modelos de intervenção foram, então, testados e
institucionalizados sob a forma de movimentos organizados em comunidades urbanas, tendo como
objetivo reduzir as tensões sociais nos guetos das principais cidades norte-americanas. No campo da
saúde, houve a implantação de centros comunitários de saúde subsidiados pelo governo federal, que
estavam destinados a efetuar ações preventivas e prestar cuidados básicos de saúde à população local
(Paim; Almeida Filho, 1998).

Assim como na Medicina Preventiva, havia, na proposta da Medicina Comunitária, uma ênfase nas
"ciências da conduta". Nesse caso, entretanto, o conhecimento dos processos socioculturais e
psicossociais destinava-se "a possibilitar a integração das equipes de saúde nas comunidades
'problemáticas', através da identificação e cooptação dos agentes e forças sociais locais para os
programas de educação em saúde" (Paim; Almeida Filho, 1998, p. 304).

Os organismos internacionais do campo da saúde incorporaram, mais uma vez, o novo movimento
ideológico comunitário e preventivista, traduzindo o seu corpo doutrinário às necessidades dos
diferentes contextos em que poderia ser aplicado.
A Medicina Comunitária e a Medicina Preventiva, apesar de terem surgido em momentos diferentes
nos Estados Unidos, chegaram, mais ou menos, ao mesmo tempo no Brasil (Donnangelo; Pereira
1976; Schraiber, 1989).

Medicina Social

O movimento da Medicina Social apareceu na América Latina no final da década de 1960 e no início
da de 1970. Em seu centro está a discussão acerca da valorização do social enquanto esfera de
determinação dos adoecimentos e possibilidades de saúde, na prevenção das doenças e na promoção
da saúde, assim como esfera própria de intervenção, para além de, e em, uma articulação com a
medicina como intervenção nos casos individuais (Vieira da Silva; Paim; Schraiber, 2014). Trata-se, pois,
de um olhar alternativo à redução biomédica em que se estruturou o saber e a prática da medicina,
ainda que com explorações diversas quanto ao sentido da valorização do social. Nesse sentido, a figura
central para a América Latina, e com forte influência no Brasil, foi o médico e sociólogo argentino Juan
Cesar Garcia por meio de sua atuação junto à Opas (Garcia, 1985; Nunes, 1983; Vieira da Silva; Paim;
Schraiber, 2014). Ao valorizar a presença do social na saúde, Garcia, assim como muitos dos
pesquisadores brasileiros partícipes da construção da Saúde Coletiva, buscou referências em uma
abordagem histórico-estrutural do social e não apenas assumiu uma presença segmentada do social
tal como a abordagem isolada de elementos do meio ambiente e da própria população.

De outro lado, diversos autores, ao fazerem referência à Medicina Social, com os estudos que George
Rosen fez sobre o assunto, valem-se do movimento que surge na Europa em meados do século XIX. A
esse respeito, Nunes (1983) diz:

Este artigo de Rosen tem sido considerado de fundamental importância para a compreensão da
medicina social e entre os pontos que levanta fica ressaltada a questão dos problemas sanitários, que
se avolumam quando das transformações decorrentes do processo de industrialização (p. 19).

Rosen (1983) vai apontar que uma questão central na Europa, durante o século XIX, poderia ser
explicitada em termos de qual orientação política o governo devia seguir a fim de aumentar o poder
e a riqueza nacionais. Via-se como um dos principais meios a indústria. Em consequência disso, o
trabalho passou a ser olhado pelos estadistas como um elemento essencial para gerar a riqueza
nacional. Qualquer perda de produtividade no trabalho em relação à doença e morte era, nessa época,
visto como um problema econômico significativo. Essa abordagem implicou na ideia de uma
intervenção pública de caráter nacional para a saúde, que foi desenvolvida em diferentes direções,
dependendo do país.

O primeiro lugar em que apareceu uma preocupação do Estado em relação aos problemas de saúde
da população foi nos estados alemães, antes mesmo de se unificarem ou passarem pelo processo de
industrialização, surgindo pela primeira vez a ideia de polícia médica. Sobre o termo, diz Rosen
(1983), Polizei, em alemão, (police, em inglês), deriva da palavra grega politeia. A teoria e prática da
administração pública veio a ser conhecida ao longo do século XVIII, nos estados alemães,
como Polizeiwissenschaft (a science of police) e o ramo que trata da administração da saúde
como Medizinalpolizei (medical police).

O desenvolvimento da teoria e prática da administração pública estava intimamente relacionado aos


interesses do Estado absolutista. Alcançou-se aí uma sistematização de pensamento e
comportamento administrativo que atribuía ao Estado absoluto as atividades de bem-estar. Ficava,
entretanto, a cargo do legislador determinar qual era o maior bem-estar, de modo que o Estado tinha
o poder de intervir nos assuntos dos indivíduos visando o interesse geral. O desenvolvimento e
aplicação do conceito de "polícia médica" foi uma tentativa pioneira de um exame metódico e preciso
dos problemas de saúde do ponto de vista social. No princípio e na metade do século XIX, foi na França
que esse tipo de estudo se desenvolveu teoricamente. Na França, todavia, o conceito de polícia
médica não foi aceito amplamente (Rosen, 1983).
No contexto da Revolução Francesa, problemas de saúde e de bem-estar haviam sido pensados pelos
governos revolucionários. Chegou-se, inclusive, a uma tentativa de se estabelecer um sistema
nacional de assistência social, que incluía atenção médica. Apesar de isso não ter avançado, algumas
das ideias e objetivos do período iriam influir profundamente na França da primeira metade do século
XIX. "Ideias de serviço público e utilidade social forneceram a semente da qual germinaram novas
ideias sobre a relação entre saúde, medicina e sociedade" (Rosen, 1983, p. 43).

Durante a primeira metade do século XIX, houve na França um fecundo cruzamento entre a filosofia
social e a medicina. "Como resultado, a medicina francesa esteve permeada, em grau considerável,
com o espírito de mudança social" (Rosen, 1983, p. 46). O contato com as novas condições de vida
decorrentes do processo de industrialização, como a condição dos trabalhadores e a realidade social
em que viviam, fez emergir novas ideias no campo da saúde em suas relações com a sociedade. Desse
cenário, germinou a ideia de Medicina Social. Jules Guérin foi um dos primeiros autores a utilizar esse
termo, em 1848.

Nunes (2007) enfatiza que foi em um contexto revolucionário, ocorrido na década de 1840, que
muitos médicos, filósofos e pensadores assumiram o caráter social da medicina e da doença. As ideias
e propostas que tinham progredido na França, antes e durante o movimento revolucionário de 1848,
se espalharam pela Alemanha. Entre os principais nomes do movimento alemão, que assume então a
Medicina Social e não a Polícia Médica como proposta de intervenção nacional, estavam Neumann e
Virchow. Neumann, em 1847 (apud Rosen, 1983, p. 50), afirma que "a ciência médica é intrínseca e
essencialmente uma ciência social e, enquanto isto não for reconhecido na prática, não seremos
capazes de desfrutar de seus benefícios e teremos que nos satisfazer com um vazio e uma
mistificação".

Os proponentes da ideia da medicina como uma ciência social empregavam-na como uma formulação
conceitual sob a qual resumiam princípios definidos:

O primeiro destes princípios é que a saúde das pessoas é um assunto societário direto e que a
sociedade tem a obrigação de proteger e assegurar a saúde de seus membros [...]. O segundo, como
notou Neumann, é que as condições sociais e econômicas têm um importante e - em muitos casos -
crucial impacto sobre a saúde e a doença e que estas relações devem ser submetidas à investigação
científica [...]. O terceiro princípio, que se segue logicamente, é que os passos tomados para promover
a saúde e combater a doença devem ser tanto sociais como médicos (Rosen, 1983, p. 51-52).

A influência de toda essa formulação na Saúde Coletiva brasileira pode ser vista, por exemplo, no fato
de esses princípios terem sido revisitados no Brasil na VIII Conferência Nacional de Saúde, em uma
releitura própria ao contexto histórico dos anos 1980 e para a realidade de um país periférico ao
desenvolvimento capitalista. Portanto, são princípios que, enquanto conexões entre a medicina e o
social, vão influenciar a reforma sanitária brasileira.

O processo revolucionário da década de 1840, entretanto, foi derrotado na Alemanha, assim como na
França, e com isso o movimento de reforma médica terminou rapidamente (Rosen, 1983). Durante as
décadas seguintes, a ampla proposta de reforma transformou-se em um programa limitado. A ideia
de medicina social foi aparecer novamente em uma reunião convocada pela Organização Mundial de
Saúde, OMS, em 1952, em Nancy, e depois, mais uma vez, em um documento da Opas, de 1974
(Nunes, 1994).

O final da década de 1960 e início da década de 1970 foram anos extremamente férteis em discussões
teóricas sobre as relações saúde-sociedade. Houve bastante influência de discussões oriundas de
autores das ciências humanas, sendo um marco nesse sentido a conferência de Michel Foucault, em
1974, no Rio de Janeiro, sobre as origens da Medicina Social (Nunes, 2005), já rediscutindo o conteúdo
significativo desse termo. De acordo com Paim (1992), nesse momento, observou-se no Brasil e no
restante da América Latina uma produção teórica importante, que reconhecia os vínculos das práticas
de saúde com a totalidade social. Nesse sentido, as contribuições das ciências sociais ao estudo da
saúde foram fundamentais para alcançar o grau atual de sistematização dos conhecimentos no
campo.

Sobre a proposta da medicina social, Sérgio Arouca vai dizer o seguinte:

A Medicina Social aparece, pois, com duas tendências; a primeira [...] movimento de modificação da
medicina ligado à própria mudança de sociedade, ou [...] através de sua mudança institucional [...]; a
segunda é uma tentativa de redefinir a posição e o lugar dos objetos dentro da medicina, de fazer
demarcações conceituais, colocar em questão quadros teóricos, enfim, trata-se de um movimento ao
nível da produção de conhecimentos que, reformulando as indagações básicas que possibilitaram a
emergência da Medicina Preventiva, tenta definir um objeto de estudo nas relações entre o biológico
e o psicossocial. A medicina social, elegendo como campo de investigação estas relações, tenta
estabelecer uma ciência que se situa nos limites das ciências atuais (Arouca, 2003, p. 150).

Arouca aponta aqui duas dimensões da Medicina Social: a formulação de propostas de intervenção
na vida social e na medicina baseadas na conexão saúde-sociedade e a proposta de estabelecer um
ramo de estudos dessa específica conexão, seja nas questões de adoecimento, seja nas de produção
da assistência médica e das práticas profissionais nos serviços. Além de uma crítica a certa medicina -
cara, fragmentada e com poucos resultados para a saúde da população - estava em pauta também
uma discussão em torno da extensão da cobertura dos serviços de saúde para a população. De acordo
com Nunes (1994), assistia-se ao início da crise do modelo de saúde pública desenvolvimentista, que
havia postulado que um dos efeitos do crescimento econômico seria a melhora das condições de
saúde. Isso é particularmente válido para o Brasil do período, que, apesar de passar por um momento
de crescimento econômico, não via resultados disso refletidos nas condições de vida de sua
população.

Nos anos 1970, houve, no âmbito internacional, um fortalecimento da discussão sobre a extensão da
cobertura dos serviços de saúde, de modo que, na Assembleia Mundial de Saúde, em 1977, foi lançado
o lema "Saúde para todos no ano 2000" (Paim; Almeida Filho, 1998). No Brasil, em um contexto marcado
pelo recrudescimento das forças repressivas por parte de um Estado autoritário e pelo aumento das
desigualdades sociais e piora das condições de vida de boa parte da população, foi-se tentando
construir um campo de saber e de práticas inovadores na área da saúde.

Nunes (1983), fazendo referência a Laurell, diz que a reflexão crítica sobre a medicina e suas
instituições, nos países latino-americanos, no período, pode ser vista como resposta a quatro grupos
de questões: 1) a posição de classe explica muito melhor do que qualquer fator biológico a distribuição
das doenças na população; 2) a crença de que as condições de saúde da população melhorariam como
resultado do crescimento econômico se mostrou equivocada; 3) o desenvolvimento da atenção
médico-hospitalar não implicou em um avanço significativo nos índices de saúde dos grupos cobertos
por ela; e 4) a distribuição dos serviços de saúde entre os diferentes grupos e classes sociais não
depende de considerações técnicas e científicas, mas, principalmente, de considerações políticas e
econômicas.

A Saúde Coletiva

Paim e Almeida Filho (1998) apontam influências mútuas entre o desenvolvimento de um projeto de
campo de conhecimento chamado Saúde Coletiva e os movimentos pela democratização no Brasil,
especialmente o da reforma sanitária. Isso nos leva a ressaltar a importância em considerar o contexto
histórico no qual apareceu a Saúde Coletiva, que foi o de um país vivendo sob um regime autoritário.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a

Aliança da Saúde Coletiva com a democracia e os direitos humanos e sociais deve-se ao fato histórico
de que se gesta o campo em plena década de turbulências sociais e movimentos reivindicatórios,
dentro da luta contra a ditadura brasileira e pela reforma social (Schraiber, 2008, p. 15).
Essa reforma social inclui no projeto da Saúde Coletiva uma reforma sanitária. No Brasil, duas
instituições surgem diretamente ligadas a esse projeto: o Cebes e a Abrasco. O Centro Brasileiro de
Estudos de Saúde (Cebes) foi criado em 1976 "trazendo para discussão a questão da democratização
da saúde e constituindo-se como um organizador da cultura capaz de reconstruir o pensamento em
saúde" (Paim, 2008, p. 78). De acordo com Paim (2008), o Cebes é reconhecido como o primeiro
protagonista institucionalizado do movimento sanitário brasileiro, desempenhando papel importante
a partir da socialização da produção acadêmica crítica oriunda da então emergente Saúde Coletiva.

Dois momentos importantes na criação em 1979 da Associação Brasileira de Programas de Pós-


Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) - hoje Associação Brasileira de Saúde Coletiva -, foram o I
Encontro Nacional de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e a Reunião sub-Regional de Saúde Pública
da Organização Pan-americana de Saúde/Associación Latinoamericana de Escuelas de Salud Pública
(Opas/Alesp), ambos realizados em 1978. Eles tiveram como objetivo redefinir a formação de pessoal
para a área da saúde, propondo uma associação que pudesse congregar os interesses das instituições
formadoras em nível de pós-graduação (Nunes, 1994).

O movimento da reforma sanitária brasileira, surgido em meados da década de 1970, tinha como
principal bandeira a luta pela democratização da saúde. Paim (2008) defende que, muito além de um
projeto de reforma setorial da saúde, constituía-se como um amplo projeto de reforma social:

[...] como uma reforma social centrada nos seguintes elementos constituintes: a) democratização da
saúde, o que implica a elevação da consciência sanitária sobre saúde e seus determinantes e o
reconhecimento do direito à saúde, inerente à cidadania, garantindo o acesso universal e igualitário
ao Sistema Único de Saúde e participação social no estabelecimento de políticas e na gestão; b)
democratização do Estado e seus aparelhos, respeitando o pacto federativo, assegurando a
descentralização do processo decisório e o controle social, bem como fomentando a ética e a
transparência dos governos; c) democratização da sociedade alcançando os espaços da organização
econômica e da cultura, seja na produção e distribuição justa da riqueza e do saber, seja na adoção
de uma 'totalidade de mudanças', em torno de um conjunto de políticas públicas e práticas de saúde,
seja mediante uma reforma intelectual e moral (Paim, 2008, p. 173).

Em um cenário de crise no setor da saúde na segunda metade da década de 1970 - apesar de haver
um discurso oficial, por parte do governo, com maior abertura ao social -, as medidas adotadas foram
muito limitadas diante dos determinantes dessa crise que "se expressava pela baixa eficácia da
assistência médica, pelos altos custos do modelo médico-hospitalar e pela baixa cobertura dos
serviços de saúde em função das necessidades da população" (Paim, 2008, p. 75). Nesse mesmo
período, "ocorreu um renascimento dos movimentos sociais, envolvendo a classe trabalhadora,
setores populares, intelectuais e profissionais da classe média" (Paim, 2008, p. 77). No âmbito da
saúde, esses movimentos articularam-se, tornando-se forças sociais contrárias às políticas de saúde
autoritárias e privatizantes.

Em relação aos fundamentos teóricos vinculados à proposta da reforma sanitária, Paim (2008) aponta
que as concepções de saúde utilizadas foram elaboradas pelo seu braço acadêmico, ou seja, pelos
departamentos de medicina preventiva e social e as escolas de saúde pública ou equivalentes. Havia,
na década de 1970, bastante influência do movimento preventivista, que trazia as ideias da Medicina
Integral. Porém, na medida em que as críticas das propostas de Medicina Preventiva e de Medicina
Comunitária eram elaboradas, no Brasil e em outros países latino-americanos, parte dessas
instituições acadêmicas passou a se inspirar na Medicina Social desenvolvida na Europa em meados
do século XIX (Paim, 2008). A Saúde Coletiva apareceu no Brasil, então, como uma ruptura, a partir da
crítica aos movimentos da medicina preventiva, comunitária e ao sanitarismo institucional (Paim,
1992).

Dois conceitos importantes como fundamento teórico para a reforma sanitária, desenvolvidos pela
produção acadêmica em Saúde Coletiva, foram: determinação social das doenças e processo de
trabalho em saúde. Segundo Paim (2008), o "entendimento de que a saúde e a doença não podem ser
explicadas exclusivamente pelas dimensões biológica e ecológica permitia alargar os horizontes de
análise e de intervenção sobre a realidade" (p. 165). Ganhou força a compreensão dos fenômenos da
saúde e da doença como determinados social e historicamente, sendo o materialismo histórico um
importante fundamento epistemológico. A Medicina Social latinoamericana, já alinhada nesse
sentido, passou a ser, no período, uma corrente de pensamento crítico em relação à Saúde Pública
dominante. Essa corrente orientou muitas das proposições do movimento da reforma sanitária
relativas às políticas de saúde (Paim, 2008).

Um marco de grande importância na reforma sanitária brasileira foi a VIII Conferência Nacional de
Saúde, realizada em 1986. Essa foi a primeira conferência com ampla participação da sociedade civil,
contando com "o protagonismo dos profissionais de saúde, trabalhadores e setores populares" (Paim,
2008, p. 99). A Abrasco elaborou um documento para embasar discussões nessa conferência, que
acabou servindo de referência para textos e intervenções apresentados. O documento partia do
reconhecimento de uma conjuntura de crise econômica com mudanças na ordem político-
institucional e buscava revisar questões teórico-políticas, assim como recuperar princípios e diretrizes
do movimento pela democratização da saúde; sublinhava que a saúde deveria ser vista como "fruto
de um conjunto de condições de vida que vai além do setor dito de saúde" (Paim, 2008, p. 100);
defendia a participação popular na política da saúde bem como o controle da sociedade sobre o
aparelho estatal; e reconhecia a saúde como função pública.

Em um dos eixos da conferência, chamado "saúde como direito inerente à cidadania, aos direitos
sociais e ao Estado", nas discussões sobre as respostas sociais visando à ampliação do direito à saúde,
foram destacados os movimentos sociais vinculados ao aparecimento da Medicina Social do século
XIX. Foram, inclusive, retomados os princípios elaborados por Virchow e Neumann (Paim, 2008). Paim
também afirma que a compreensão de saúde presente nas proposições do relatório final da VIII
Conferência Nacional de Saúde (CNS) pode ser creditada à produção teórica sobre determinação
social do processo saúde-doença, realizada por pesquisadores da área de Saúde Coletiva no Brasil e
na América Latina desde a década de 1970, tendo elementos nesse sentido tais como: ampliação do
conceito de saúde, reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, criação do
SUS, participação popular e constituição e ampliação do orçamento social.

Outro evento importante foi o I Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (I Abrascão), cujo tema era
"Reforma Sanitária e Constituinte: garantia do direito universal à saúde" e que aconteceu também no
ano de 1986. Assim, o presidente da entidade definia a linha da atuação da Abrasco, naquela
conjuntura:

A recente convocação da VIII CNS trouxe-nos a grande responsabilidade de dar continuidade a este
processo e de contribuir tanto com o conhecimento técnico científico produzido na área de saúde
coletiva, como na competência política de analisar criticamente certas conjunturas, mobilizar
vontades, articular ações e iniciativas que levem adiante um projeto de transformações profundas e
radicais para o setor saúde. É esta a responsabilidade, é este o compromisso que a Abrasco, ao
organizar este congresso, quer dividir com todos os participantes (Paim, 2008, p. 128).

É possível observar, desse modo, um entrelaçamento, no período, entre outras, das instituições da
Abrasco e do Cebes, com a produção teórica em Saúde Coletiva, no engajamento político em torno
da reforma sanitária. Nesse sentido, Paim (2008) afirma que "a Saúde Coletiva apoiou teoricamente a
RSB a partir do triedro ideologia, saber e prática, porquanto surgiu e se desenvolveu, enquanto campo
científico, de forma vinculada à proposta e ao projeto da Reforma Sanitária" (p. 292). Para o autor, o
campo da Saúde Coletiva apresenta rupturas fundamentais em termos políticos em relação ao da
Saúde Pública, apesar de trazer ainda algumas continuidades.

A visão da saúde da população como resultante das formas de organização social de produção, tal
como concebida pela Medicina Social e pela Saúde Coletiva, acabou sendo, por meio da reforma
sanitária, assimilada pelo arcabouço legal no Brasil (Paim, 2008, p. 306). De acordo com Schraiber
(2008), o campo da Saúde Coletiva instituiu-se como um projeto duplamente reformador: de um lado,
na sua crítica às necessidades de saúde culturalmente dadas e ao modelo assistencial vigente em
satisfazê-las "na assistência médica (modelo biomédico, liberal e privatizante da produção dos
serviços e elitista no acesso) e na saúde pública (modelo da educação sanitária, de cunho liberal-
individualizante no que concerne às práticas de prevenção)" (p. 13); de outro lado, na sua crítica à
alienação da face tecnocientífica do campo.

Segundo a autora, o projeto do campo da Saúde Coletiva "se situa na tensão entre a crítica contra-
cultural de ordem técnico-científica e a democratização dos modelos médico e sanitário
cientificamente tradicionais" (Schraiber, 2008, p. 14). O campo foi sempre desenvolvido em
compromisso com a democratização e com a luta pelos direitos humanos e sociais, em um
compromisso, como disse Donnangelo (1983), com o coletivo desde sua origem:

Essa multiplicidade de objetos e de áreas de saber correspondentes - da ciência natural à ciência social
- não é indiferente à permeabilidade aparentemente mais imediata desse campo a inflexões
econômicas e político-ideológicas. O compromisso, ainda quando genérico e impreciso, com a noção
de coletivo, implica a possibilidade de compromissos com manifestações particulares, histórico-
concretas desse mesmo coletivo, dos quais a medicina 'do indivíduo' tem tentado se resguardar
através do específico estatuto da cientificidade dos campos de conhecimento que a fundamentam
(Donnangelo, 1983, p. 21).

Características e especificidades da Saúde Coletiva: tentativas de


delimitação
Contemporaneamente, com o desenvolvimento da Saúde Coletiva e a emergência de um corpo bem
constituído de produções científicas, observa-se também a importância em debater acerca de suas
delimitações e competências. Uma primeira aproximação mostra que o campo da Saúde Coletiva,
talvez por ser novo e existir apenas no Brasil, ou talvez por articular-se também em uma dimensão
mais prática dos serviços de saúde, por vezes confundindo-se com essa dimensão de corte político-
administrativo, carece de reflexões mais aprofundadas no campo epistemológico. De antemão, chama
a atenção que é comum autores usarem como sinônimos, em um mesmo texto, os termos Saúde
Coletiva e Saúde Pública, ou Saúde Coletiva e Medicina Social, ou ainda Saúde Coletiva e
Epidemiologia.

É interessante que essa própria dificuldade em definir o campo da Saúde Coletiva foi tematizada por
alguns autores. Assim, Nunes (2007) diz que muitas têm sido as tentativas de se definir a Saúde
Coletiva, mas tornou-se difícil um consenso a respeito. O autor, fazendo referência a Stotz, atribui à
interdisciplinaridade e às tensões epistemológicas internas ao campo a impossibilidade de uma teoria
unificadora que explique o conjunto dos objetos de estudo. A dificuldade, portanto, de se definir o
campo residiria no fato de "ser uma criação que transborda os limites disciplinares e que se apresenta
na interface de áreas do conhecimento detentoras de especificidades teóricas e conceituais" (Nunes,
2005, p. 14). Poderíamos acrescentar também como possível fator para essa dificuldade a composição
heterogênea, tanto institucional quanto profissional, dos autores da Saúde Coletiva, cujas pesquisas
abarcam disciplinas diversas, como a Epidemiologia, as Ciências Sociais e Humanas, a Filosofia, ou a
Administração.

Campos (2000) é bastante incisivo nas questões que coloca em relação ao campo: "[a] saúde coletiva
teria criado um novo paradigma, negando e superando o da medicina e o da antiga saúde pública? A
saúde coletiva corresponderia a todo o campo da saúde, ou apenas a uma parte?" (p. 220). E ainda:
"qual a identidade da saúde coletiva? Ou seja, qual o seu núcleo de saberes e de práticas? [...] Quem
é o agente que faz saúde coletiva? Haveria um agente especializado?" (p. 221) E, por último, o que a
troca de nomes de saúde pública para saúde coletiva revelou de novo? "Que rupturas, de fato,
aconteceram? O que existe de continuidade?" (p. 221).
Uma característica muito associada à Saúde Coletiva é a de ser um campo interdisciplinar (às vezes
seus autores usam o termo multidisciplinaridade, ou então transdisciplinaridade - não cabendo aqui
entrar em discussão). Nunes (1994) destaca que o campo fundamenta-se na interdisciplinaridade
como possibilitadora de um conhecimento ampliado de saúde e na multiprofissionalidade como
forma de enfrentar a diversidade interna ao saber/fazer das práticas sanitárias. A Saúde Coletiva
necessita pensar o geral e o específico. Para Birman (1991), o campo "admite no seu território uma
diversidade de objetos e de discursos teóricos, sem reconhecer em relação a eles qualquer
perspectiva hierárquica e valorativa" (p. 15).

Outra característica bastante destacada é o papel das Ciências Humanas nesse campo de
conhecimento. Nesse sentido, Ayres (2002) apresenta a seguinte compreensão:

O campo da "saúde coletiva", termo pelo qual estaremos nos referindo genericamente a um conjunto,
na verdade muito amplo e contraditório, de disciplinas ocupadas do "social da saúde" (medicina social,
medicina preventiva, saúde pública etc.), é, sabidamente, o principal polo de aglutinação e irradiação
dessa renovada preocupação com as relações entre a saúde e sociedade no campo acadêmico (p. 26).

Segundo Birman (1991), a concepção de Saúde Coletiva "se constituiu através da crítica sistemática do
universalismo naturalista do saber médico. Seu postulado fundamental afirma que a problemática da
saúde é mais abrangente e complexa que a leitura realizada pela medicina" (p. 12).

Essa questão é bastante importante quando consideramos como o âmbito do social foi
progressivamente silenciado, no campo da saúde, pelo discurso biomédico. A Saúde Coletiva teria,
justamente, como uma de suas principais propostas resgatar o social. Ao traçar a história da
epidemiologia em seu livro Epidemiologia e emancipação, Ayres (2002) apresenta como se deu esse
processo de domesticação do social nas ciências da saúde.

Segundo esse autor, a partir de um dado momento histórico, os discursos predominantes acerca da
saúde e da doença passaram "a traduzir os carecimentos humanos associados a esses conceitos em
termos estritamente biológicos" (Ayres, 2002, p. 92). O social foi, então, incorporado meramente como
elemento secundário no processo saúde-doença, uma condição adjetiva, uma espécie de linha auxiliar
de apreensão dos fenômenos que só adquirem positividade no organismo individual. Para Ayres
(2002),

Desde o estabelecimento da hegemonia clínica no pensar e produzir saúde, os eventos extraorgânicos


da doença e de seus determinantes passam a ser, no plano da construção do conhecimento, somente
suporte lógico ou empírico para construções fisiopatológicas (p. 27).

A dimensão extraorgânica da doença passou a ser apenas um elo das relações de eficiência causal, do
"determinismo exato" das ciências da saúde. O "irrequieto social" foi domado pelas variáveis
morfofuncionais e físico-químicas do corpo: traduzida "pelo comportamento coletivo dessas
qualidades empíricas, a determinação social da doença é aprisionada sob o inofensivo emblema de
condicionante externo dos estados de saúde" (Ayres, 2002, p. 132).

A investigação em saúde na dimensão coletiva passou a distinguir, então, de um lado, grupos


populacionais tomando por base características demográficas, e do outro lado, as variáveis
morfofuncionais orgânicas. "O comportamento quantitativo dessas subpopulações torna-se os
elementos necessários e suficientes para as inferências causais" (Ayres, 2002, p. 133). A natureza de
um conhecimento assim gerado reveste-se de um ar de neutralidade, como se fosse uma forma
universal de apreensão da realidade.

Ayres (2002), em sua crítica de como ocorreu esse processo, conclui: "Ao perder-se a dimensão social
dos fenômenos coletivos de saúde em sua objetivação científica, perde-se, imediatamente, a
possibilidade de abordar racionalmente sua substância propriamente pública" (p. 150). O discurso
científico hegemônico tornou unidimensional a apreensão do espaço público da saúde, naturalizando-
o.

Nesse sentido, a Saúde Coletiva, ao ter como uma de suas propostas a aproximação com as ciências
humanas, busca reconfigurar o campo do social na saúde. Paim e Almeida Filho (1998) colocam como
elementos significativos do campo "a superação do biologismo dominante, da naturalização da vida
social, da sua submissão à clínica e da sua dependência ao modelo médico hegemônico" (p. 310).

A partir desse quadro, Paim e Almeida Filho (1998) propuseram compreender a Saúde Coletiva como
um campo científico em que "se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto 'saúde' e onde
operam distintas disciplinas que o contemplam sob vários ângulos" (p. 308). E também como um
âmbito de práticas, em que "se realizam ações em diferentes organizações e instituições por diversos
agentes (especializados ou não) dentro e fora do espaço convencionalmente reconhecido como 'setor
saúde'" (p. 308). Os autores preferiram adotar a visão da Saúde Coletiva como um campo
interdisciplinar, e não como uma disciplina científica ou como uma ciência.

Sobre os pressupostos básicos do marco conceitual do campo, os autores fazem referência a um texto
de Paim de 1982, ou seja, a um documento de um período em que a Saúde Coletiva ainda estava em
nascimento. Paim e Almeida Filho retomam alguns dos pressupostos daquele texto:

1. a) A Saúde, enquanto estado vital, setor de produção e campo de saber, está articulada à
estrutura da sociedade através das suas instâncias econômica e político-ideológica,
possuindo, portanto, uma historicidade.

2. b) As ações de saúde (promoção, proteção, recuperação e reabilitação) constituem uma


prática social e trazem consigo as influências do relacionamento dos grupos sociais.

3. c) O objeto da Saúde Coletiva é construído nos limites do biológico e do social e compreende


a investigação dos determinantes da produção social das doenças e da organização dos
serviços de saúde, e o estudo da historicidade do saber e das práticas sobre os mesmos. O
caráter interdisciplinar desse objeto sugere uma integração no plano do conhecimento e no
plano da estratégia de reunir profissionais com múltiplas formações.

4. d) O conhecimento não se dá pelo contato com a realidade, mas pela compreensão de suas
leis e pelo comprometimento com as forças capazes de transformá-la (Paim; Almeida Filho,
1998, p. 309).

A "delimitação provisória" do campo da Saúde Coletiva na qual Paim e Almeida Filho (1998) chegam, no
mencionado artigo, é:

Enquanto campo de conhecimento, a saúde coletiva contribui com o estudo do fenômeno


saúde/doença em populações enquanto processo social; investiga a produção e distribuição das
doenças na sociedade como processos de produção e reprodução social; analisa as práticas de saúde
(processo de trabalho) na sua articulação com as demais práticas sociais; procura compreender,
enfim, as formas com que a sociedade identifica suas necessidades e problemas de saúde, busca sua
explicação e se organiza para enfrentá-los (p. 309).

Tanto esses autores (Paim; Almeida Filho, 1998), quanto Nunes (1994), identificam na Saúde Coletiva
três grupos disciplinares: a epidemiologia; as ciências sociais em saúde; e a política, planejamento e
administração em saúde. São mencionadas ainda outras disciplinas complementares a essas.

Campos (2000), seguindo uma outra linha, vai defender que a Saúde Coletiva é um pedaço do campo
da saúde. O autor quer contrapor-se a uma tendência que identifica em outros acadêmicos de
confundir a Saúde Coletiva com todo o campo da Saúde. Tendência essa que contribuiria para a
fragmentação e enfraquecimento da Saúde Coletiva enquanto campo de saber e de prática.
Campos (2000) propõe que o núcleo da Saúde Coletiva se constituiria no "apoio aos sistemas de saúde,
à elaboração de políticas, e à construção de modelos"; na "produção de explicações para os processos
saúde/enfermidade/intervenção"; e, talvez seu traço mais específico, na "produção de práticas de
promoção e de prevenção de doenças" (p. 225).

A inserção da Saúde Coletiva no campo da saúde dar-se-ia, segundo sua proposta, em dois planos: no
horizontal e no vertical. No plano horizontal, os saberes e práticas oriundos da Saúde Coletiva
comporiam parte dos saberes e práticas de outras categorias e atores sociais. Assim, todas as
profissões de saúde, em alguma medida, deveriam incorporar em sua formação e em sua prática
elementos da Saúde Coletiva. "Nessa perspectiva, a missão da saúde coletiva seria a de influenciar a
transformação de saberes e práticas de outros agentes, contribuindo para mudanças do modelo de
atenção e da lógica com que funcionam os serviços de saúde em geral" (Campos, 2000, p. 225). No
plano vertical, a Saúde Coletiva consistiria em uma área específica de intervenção. "Uma área
especializada e com valor de uso próprio, diferente da clínica ou de outras áreas de intervenção"
(Campos, 2000, p. 225). Alguns problemas são levantados a partir disso, como: quem seria o agente da
Saúde Coletiva? Haveria um curso básico de formação?

De todo modo, Campos (2000) defende que se combinem as perspectivas do plano horizontal e do
plano vertical na Saúde Coletiva. Ou seja, que tanto se socialize os saberes e práticas da Saúde Coletiva
quanto que se assegure a existência de especialistas que produzam saberes mais sofisticados na área
e que possam intervir em situações mais complexas.

Chegamos, assim, ao final deste percurso ainda com muitas dúvidas. Neste caminho, nos pareceu que
o campo da Saúde Coletiva pode não admitir apenas uma única definição sobre sua delimitação e
caracterização. Talvez pelo fato de ser um campo bastante novo, houve nele ainda poucas
cristalizações no sentido de se formarem culturas tradicionais, de modo que existe, em seu interior,
uma grande pluralidade (e tensões) em termos disciplinares e epistemológicos.

Sempre em construção e muito podendo caminhar na produção e em termos de reflexão sobre a


própria identidade, a Saúde Coletiva, como outros, constitui um "campo vivo" (Schraiber, 2008). Mas
a dificuldade em encontrar elementos aglutinadores, tecendo pontos comuns, pode representar, por
um lado, uma fragilidade, ainda que, por outro, tornar a Saúde Coletiva um campo sempre "aberto à
incorporação de propostas inovadoras" (Paim; Almeida Filho, 1998, p. 312).

Determinantes sociais da saúde

Determinantes sociais de
saúde: o que são e qual sua
importância?
 26/05/2021
Os determinantes sociais de saúde são atribuídos às condições em que os indivíduos
vivem e trabalham. Além disso, são levados em conta outros fatores que podem colocar
a saúde da população em risco, como, por exemplo, aqueles de ordem econômica, social,
étnica, regional, psicológica, cultural e comportamental.

De acordo com a Fiocruz, estudos nessa área podem apresentar muitas variações. Isso
acontece porque os determinantes sociais de saúde não devem ser vistos apenas sob o
ponto de vista das doenças geradas. Mas, também, considerando todo o leque de
problemas que eles podem acarretar ao indivíduo e à sociedade.

Esses problemas, portanto, podem ser observados no âmbito psicológico, na qualidade


de vida ou na experiência mais geral do que deveria ser uma vida saudável. Para entender
melhor a atuação desses fatores, é preciso compreender a dificuldade em se criar uma
hierarquia entre eles, já que atuam de formas diferentes em cada indivíduo.

É notável, no entanto, que as desigualdades sociais são grandes causadoras de problemas


de saúde, e que suas consequências são extremamente amplas e danosas. É preciso
pensar, então, em formas de combatê-la – até mesmo para garantir a saúde e a qualidade
de vida de grande parte dos brasileiros.

Quais são os principais determinantes sociais de saúde?

Os determinantes sociais de saúde podem ser divididos em dois grupos: os


determinantes sociais estruturais e os determinantes sociais intermediários. O primeiro
grupo diz respeito aos fatores mais ligados às desigualdades sociais, apresentando um
impacto mais difícil de se contornar e, em geral, mais grave.

Portanto, os determinantes sociais estruturais dizem respeito justamente à estrutura da


sociedade. Sendo assim, tratam principalmente de classe social e acesso à educação, por
exemplo, abordando também raça e etnia, gênero e sexualidade.
Já os determinantes sociais intermediários, apesar de também envolverem as diferenças
sociais, são mais sutis e geralmente englobam outros fatores que também podem
comprometer uma vida saudável. Nesse sentido, se relacionam a condições de trabalho,
disponibilidade de alimentos e ainda à prática de exercícios físicos.

Por fim, é bom notar: embora esses determinantes sejam classificados separadamente,
na vida real de fato estão muito inter-relacionados. Uma pessoa de classe baixa, por
exemplo, terá menos acesso a alimentos e provavelmente condições de trabalho piores.

Como os determinantes sociais de saúde afetam a minha


rotina?

De acordo com um artigo de pesquisadores da Fiocruz, os determinantes sociais são


totalmente relacionados à rotina. Dessa maneira, para fazer um mapeamento correto a
respeito dos mesmos, também é preciso observar com atenção a rotina das pessoas e
perceber os possíveis fatores que podem desencadear problemas.

Por isso é tão importante buscar informações a respeito de fatores como as condições
de trabalho de uma pessoa, a prática de exercícios, a alimentação, a sua classe social, sua
etnia e seu gênero. Afinal, não se trata só de elementos teóricos, mas de aspectos
práticos que podem fornecer subsídios inclusive para as políticas públicas de saúde.

Esses fatores, no entanto, não estabelecem de forma absoluta que todas as pessoas de
determinada classe, gênero ou etnia vão ter sempre mais problemas de saúde ou até
mesmo irão morrer mais cedo. Afinal, cada indivíduo concreto pode ter peculiaridades
que vão entrar em confluência ou dissonância em relação ao seu grupo social.

Os pesquisadores, nesse sentido, têm como uma das principais preocupações a


observação da rotina e o compartilhamento de informações, visando perceber onde há
problemas que precisam ser combatidos. Cabe a eles, então, indicar ações no âmbito
nacional, local ou até internacional que melhorem a qualidade de vida de todos os grupos
sociais.

Qual a importância dos determinantes sociais de saúde?

A importância dos determinantes sociais de saúde diz respeito justamente à construção


de uma visão mais ampla e moderna a respeito do processo de saúde-doença. Dessa
forma, ele passa a não ser visto apenas como um estado de ausência de doenças, mas
como um estado de bem-estar físico, social e até mesmo mental bem mais amplo.

No passado, a condição de saúde era vista a partir de uma perspectiva de unicausalidade.


Ou seja, todas as doenças que eventualmente se manifestassem eram vistas como se
tivessem uma única origem. Numa visão mais atual, no entanto, foi bastante ampliada a
consciência de que a doença se refere a um conjunto bem mais complexo de sintomas e
sinais.

A saúde não se resume, portanto, à eventual ausência de alguma enfermidade. E a


doença, por sua vez, atinge as pessoas de formas diferentes, podendo provocar reações
também bastante variadas. Sendo assim, podemos notar que os dois conceitos não são
tão opostos, como poderia parecer numa visão mais simplista.

Nesse sentido, focar esforços para entender os determinantes sociais de saúde ajuda a
tratar as doenças a partir de uma perspectiva da multicausalidade. A partir disso, é
possível abarcar todo um leque bem complexo de variáveis inter-relacionadas e
dinâmicas que podem levar ao adoecimento de uma população.

Qual é a linha de atuação dos profissionais que estudam os


determinantes sociais de saúde?

Os profissionais dessa área atuam promovendo e apoiando pesquisas sobre os


determinantes sociais de saúde em várias regiões do país. Trabalham, também, para
pensar e propor medidas mais consistentes e eficazes no contexto das políticas de saúde.
Dessa maneira, esses profissionais produzem conhecimento sobre a relação entre os
determinantes sociais e o acesso à saúde no Brasil. Eles analisam índices gerais, fazem
pesquisas de campo e trabalham com a observação de rotinas que podem levar a riscos
específicos em cada área do país.

Junto com a sociedade civil, esses pesquisadores podem contribuir muito para a
diminuição das iniquidades na área da saúde no Brasil. Eles, afinal, também podem atuar
fortemente na conscientização da população, promovendo ações que visem melhorar o
acesso à uma vida saudável para todas as pessoas.

Para conhecer mais sobre o assunto, recomendamos o acesso ao portal da Comissão


Nacional sobre os Determinantes Sociais de Saúde (CNDSS), no qual se encontram
registros fascinantes a respeito do trabalho que é realizado no Brasil.

Já no âmbito pessoal, é sempre bom prestar bastante atenção aos


próprios exames e consultas médicas, de modo a detectar rapidamente qualquer
alteração na sua saúde. Conheça o app Zello Saúde, uma ferramenta que pode auxiliar
bastante nesse sentido. Faça o download gratuito aqui:

Resumos
Este artigo busca analisar as relações entre saúde e seus determinantes sociais, apresentando
inicialmente o conceito de determinantes sociais de saúde (DSS) e uma breve evolução histórica dos
diversos paradigmas explicativos do processo saúde/doença no âmbito das sociedades, desde meados
do século XIX. Em seguida são discutidos os principais avanços e desafios no estudo dos DSS, com
ênfase em novos enfoques e marcos de referência explicativos das relações ente os diversos níveis de
DSS e a situação de saúde. Com base nesses estudos e marcos explicativos, discute-se, em seguida,
uma série de possibilidades de intervenções de políticas e programas voltados para o combate às
iniqüidades de saúde geradas pelos DSS. Finalmente, são apresentados os objetivos, linhas de atuação
e principais atividades da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde, criada em março
de 2006, com o objetivo de promover estudos sobre os DSS, recomendar políticas para a promoção
da eqüidade em saúde e mobilizar setores da sociedade para o debate e posicionamento em torno
dos DSS e do enfrentamento das iniqüidades de saúde.

Determinantes sociais; eqüidade; políticas públicas; promoção da saúde; comissão nacional


This article aims to analyze the relationships between health and its social determinants, initially
presenting the concept of Social Determinants of Health (SDH) and the historical evolution of
paradigms that account for the health/disease process at societal level since mid-1800's. The main
advances and challenges in the study of SDH are presented with emphasis on the new approaches and
frameworks to explain the complex relationships between the various levels of SDH and health
outcomes. Based on these frameworks, some entry points for interventions on SDH and types of
policies and programs to tackle health inequities are explored. Finally, the article presents the
objectives, lines of actions and main activities developed by the National Commission on Social
Determinants of Health, created in March 2005 to promote studies on SDH, to recommend policies
for promotion of health equity and to mobilize sectors in society to promote awareness about the
importance of SDH and the fight against health inequities.

Social determinants; equity; public policies; health promotion; national commission

A saúde e seus determinantes sociais

Health and its social determinants

Paulo Marchiori BussI; Alberto Pellegrini FilhoII

Presidente da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Membro titular da Academia Nacional de Medicina
I

e coordenador da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS). Endereço


eletrônico: buss@fiocruz.br

Pesquisador titular da FIOCRUZ e coordenador da Secretaria Técnica da CNDSS. Endereço


II

eletrônico: pellegrini@fiocruz.br

RESUMO

Este artigo busca analisar as relações entre saúde e seus determinantes sociais, apresentando
inicialmente o conceito de determinantes sociais de saúde (DSS) e uma breve evolução histórica dos
diversos paradigmas explicativos do processo saúde/doença no âmbito das sociedades, desde meados
do século XIX. Em seguida são discutidos os principais avanços e desafios no estudo dos DSS, com
ênfase em novos enfoques e marcos de referência explicativos das relações ente os diversos níveis de
DSS e a situação de saúde. Com base nesses estudos e marcos explicativos, discute–se, em seguida,
uma série de possibilidades de intervenções de políticas e programas voltados para o combate às
iniqüidades de saúde geradas pelos DSS. Finalmente, são apresentados os objetivos, linhas de atuação
e principais atividades da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde, criada em março
de 2006, com o objetivo de promover estudos sobre os DSS, recomendar políticas para a promoção
da eqüidade em saúde e mobilizar setores da sociedade para o debate e posicionamento em torno
dos DSS e do enfrentamento das iniqüidades de saúde.

Palavras–chave: Determinantes sociais; eqüidade; políticas públicas; promoção da saúde; comissão


nacional.

ABSTRACT

This article aims to analyze the relationships between health and its social determinants, initially
presenting the concept of Social Determinants of Health (SDH) and the historical evolution of
paradigms that account for the health/disease process at societal level since mid–1800's. The main
advances and challenges in the study of SDH are presented with emphasis on the new approaches and
frameworks to explain the complex relationships between the various levels of SDH and health
outcomes. Based on these frameworks, some entry points for interventions on SDH and types of
policies and programs to tackle health inequities are explored. Finally, the article presents the
objectives, lines of actions and main activities developed by the National Commission on Social
Determinants of Health, created in March 2005 to promote studies on SDH, to recommend policies
for promotion of health equity and to mobilize sectors in society to promote awareness about the
importance of SDH and the fight against health inequities.

Key words: Social determinants; equity; public policies; health promotion; national commission.

Que se entende por determinantes sociais da saúde?

As diversas definições de determinantes sociais de saúde (DSS) expressam, com maior ou menor nível
de detalhe, o conceito atualmente bastante generalizado de que as condições de vida e trabalho dos
indivíduos e de grupos da população estão relacionadas com sua situação de saúde. Para a Comissão
Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), os DSS são os fatores sociais, econômicos,
culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas
de saúde e seus fatores de risco na população. A comissão homônima da Organização Mundial da
Saúde (OMS) adota uma definição mais curta, segundo a qual os DSS são as condições sociais em que
as pessoas vivem e trabalham. Nancy Krieger (2001) introduz um elemento de intervenção, ao defini–
los como os fatores e mecanismos através dos quais as condições sociais afetam a saúde e que
potencialmente podem ser alterados através de ações baseadas em informação. Tarlov (1996)
propõe, finalmente, uma definição bastante sintética, ao entendê–los como as características sociais
dentro das quais a vida transcorre.

Embora, como já mencionado, tenha–se hoje alcançado certo consenso sobre a importância dos DSS
na situação de saúde, esse consenso foi sendo construído ao longo da história. Entre os diversos
paradigmas explicativos para os problemas de saúde, em meados do século XIX predominava a teoria
miasmática, que conseguia responder às importantes mudanças sociais e práticas de saúde
observadas no âmbito dos novos processos de urbanização e industrialização ocorridos naquele
momento histórico. Estudos sobre a contaminação da água e dos alimentos, assim como sobre riscos
ocupacionais, trouxeram importante reforço para o conceito de miasma e para as ações de saúde
pública (SUSSER, 1998).

Virchow, um dos mais destacados cientistas vinculados a essa teoria, entendia que a sans-serifciência
médica é intrínseca e essencialmente uma ciência socialsans-serif, que as condições econômicas e
sociais exercem um efeito importante sobre a saúde e a doença e que tais relações devem ser
submetidas à pesquisa científica. Entendia também que o próprio termo sans-serifsaúde públicasans-
serif expressa seu caráter político e que sua prática implica necessariamente a intervenção na vida
política e social para identificar e eliminar os fatores que prejudicam a saúde da população (ROSEN,
1980). Outros autores que merecem destaque nessa corrente de pensamento são Chadwick, com
seu Report on the sanitary condition of the labouring population of Great Britain, de 1842, Villermé,
com Tableau de l'état physique et moral des ouvriers de Paris, de 1840, e Engels, com A situação das
classes trabalhadoras na Inglaterra, Londres, de 1845.

Nas últimas décadas do século XIX, com o extraordinário trabalho de bacteriologistas como Koch e
Pasteur, afirma–se um novo paradigma para a explicação do processo saúde–doença. A história da
criação da primeira escola de saúde pública nos Estados Unidos, na Universidade Johns Hopkins, é um
interessante exemplo do processo de afirmação da hegemonia desse sans-serifparadigma
bacteriológicosans-serif. Desde 1913, quando a Fundação Rockefeller decide propor o
estabelecimento de uma escola para treinar os profissionais de saúde pública, até a decisão, em 1916,
de financiar sua implantação em Johns Hopkins, há um importante debate entre diversas correntes e
concepções sobre a estruturação do campo da saúde pública. No centro do debate estiveram
questões como: deve a saúde pública tratar do estudo de doenças específicas, como um ramo
especializado da medicina, baseando–se fundamentalmente na microbiologia e nos sucessos da teoria
dos germes ou deve centrar–se no estudo da influência das condições sociais, econômicas e
ambientais na saúde dos indivíduos? Outras questões relacionadas: a saúde e a doença devem ser
pesquisadas no laboratório, com o estudo biológico dos organismos infecciosos, ou nas casas, nas
fábricas e nos campos, buscando conhecer as condições de vida e os hábitos de seus hospedeiros?

Como se pode ver, o conflito entre saúde pública e medicina e entre os enfoques biológico e social do
processo saúde–doença estiveram no centro do debate sobre a configuração desse novo campo de
conhecimento, de prática e de educação. Ao final desse processo, Hopkins foi escolhida pela
excelência de sua escola de medicina, de seu hospital e de seu corpo de pesquisadores médicos. Esta
decisão representou o predomínio do conceito da saúde pública orientada ao controle de doenças
específicas, fundamentada no conhecimento científico baseado na bacteriologia e contribuiu para
sans-serifestreitarsans-serif o foco da saúde pública, que passa a distanciar–se das questões políticas
e dos esforços por reformas sociais e sanitárias de caráter mais amplo. A influência desse processo e
do modelo por ele gerado não se limita à escola de saúde pública de Hopkins, estendendo–se por
todo o país e internacionalmente. O modelo serviu para que nos anos seguintes a Fundação
Rockefeller apoiasse o estabelecimento de escolas de saúde pública no Brasil (Faculdade de Higiene e
Saúde Pública de São Paulo), Bulgária, Canadá, Checoslováquia, Inglaterra, Hungria, Índia, Itália, Japão,
Noruega, Filipinas, Polônia, Romênia, Suécia, Turquia e Iugoslávia (FEE, 1987).

Apesar da preponderância do enfoque médico biológico na conformação inicial da saúde pública


como campo científico, em detrimento dos enfoques sociopolíticos e ambientais, observa–se, ao
longo do século XX, uma permanente tensão entre essas diversas abordagens. A própria história da
OMS oferece interessantes exemplos dessa tensão, observando–se períodos de forte preponderância
de enfoques mais centrados em aspectos biológicos, individuais e tecnológicos, intercalados com
outros em que se destacam fatores sociais e ambientais. A definição de saúde como um estado de
completo bem–estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade,
inserida na Constituição da OMS no momento de sua fundação, em 1948, é uma clara expressão de
uma concepção bastante ampla da saúde, para além de um enfoque centrado na doença. Entretanto,
na década de 50, com o sucesso da erradicação da varíola, há uma ênfase nas campanhas de combate
a doenças específicas, com a aplicação de tecnologias de prevenção ou cura.

A Conferência de Alma–Ata, no final dos anos 70, e as atividades inspiradas no lema sans-serifSaúde
para todos no ano 2000sans-serif recolocam em destaque o tema dos determinantes sociais. Na
década de 80, o predomínio do enfoque da saúde como um bem privado desloca novamente o
pêndulo para uma concepção centrada na assistência médica individual, a qual, na década seguinte,
com o debate sobre as Metas do Milênio, novamente dá lugar a uma ênfase nos determinantes sociais
que se afirma com a criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da OMS, em 2005.

O estudo dos determinantes sociais da saúde

Nas últimas décadas, tanto na literatura nacional, como internacional, observa–se um extraordinário
avanço no estudo das relações entre a maneira como se organiza e se desenvolve uma determinada
sociedade e a situação de saúde de sua população (ALMEIDA–FILHO, 2002). Esse avanço é
particularmente marcante no estudo das iniqüidades em saúde, ou seja, daquelas desigualdades de
saúde entre grupos populacionais que, além de sistemáticas e relevantes, são também evitáveis,
injustas e desnecessárias (WHITEHEAD, 2000). Segundo Nancy Adler (2006), podemos identificar três
gerações de estudos sobre as iniqüidades em saúde. A primeira geração se dedicou a descrever as
relações entre pobreza e saúde; a segunda, a descrever os gradientes de saúde de acordo com vários
critérios de estratificação socioeconômica; e a terceira e atual geração está dedicada principalmente
aos estudos dos mecanismos de produção das iniqüidades ou, para usar a expressão de Adler, está
dedicada a responder à pergunta: como a estratificação econômico–social consegue sans-
serifentrarsans-serif no corpo humano?
O principal desafio dos estudos sobre as relações entre determinantes sociais e saúde consiste em
estabelecer uma hierarquia de determinações entre os fatores mais gerais de natureza social,
econômica, política e as mediações através das quais esses fatores incidem sobre a situação de saúde
de grupos e pessoas, já que a relação de determinação não é uma simples relação direta de causa–
efeito. É através do conhecimento deste complexo de mediações que se pode entender, por exemplo,
por que não há uma correlação constante entre os macroindicadores de riqueza de uma sociedade,
como o PIB, com os indicadores de saúde. Embora o volume de riqueza gerado por uma sociedade
seja um elemento fundamental para viabilizar melhores condições de vida e de saúde, o estudo dessas
mediações permite entender por que existem países com um PIB total ou PIB per capita muito
superior a outros que, no entanto, possuem indicadores de saúde muito mais satisfatórios. O estudo
dessa cadeia de mediações permite também identificar onde e como devem ser feitas as intervenções,
com o objetivo de reduzir as iniqüidades de saúde, ou seja, os pontos mais sensíveis onde tais
intervenções podem provocar maior impacto.

Outro desafio importante em termos conceituais e metodológicos se refere à distinção entre os


determinantes de saúde dos indivíduos e os de grupos e populações, pois alguns fatores que são
importantes para explicar as diferenças no estado de saúde dos indivíduos não explicam as diferenças
entre grupos de uma sociedade ou entre sociedades diversas. Em outras palavras, não basta somar os
determinantes de saúde identificados em estudos com indivíduos para conhecer os determinantes de
saúde no nível da sociedade. As importantes diferenças de mortalidade constatadas entre classes
sociais ou grupos ocupacionais não podem ser explicadas pelos mesmos fatores aos quais se atribuem
as diferenças entre indivíduos, pois se controlamos esses fatores (hábito de fumar, dieta,
sedentarismo etc.), as diferenças entre estes estratos sociais permanecem quase inalteradas.

Enquanto os fatores individuais são importantes para identificar que indivíduos no interior de um
grupo estão submetidos a maior risco, as diferenças nos níveis de saúde entre grupos e países estão
mais relacionadas com outros fatores, principalmente o grau de eqüidade na distribuição de renda.
Por exemplo, o Japão é o país com a maior expectativa de vida ao nascer, não porque os japoneses
fumam menos ou fazem mais exercícios, mas porque o Japão é um dos países mais igualitários do
mundo. Ao confundir os níveis de análise e tratar de explicar a saúde das populações a partir de
resultados de estudos realizados com indivíduos, estaríamos aceitando o contrário da chamada sans-
seriffalácia ecológicasans-serif (KAWACHI et al., 1997; WILKINSON, 1997; PELEGRINI FILHO, 2000).

O clássico estudo de Rose e Marmot (1981) sobre a mortalidade por doença coronariana em
funcionários públicos ingleses ilustra muito bem esta situação. Fixando como um o risco relativo de
morrer por esta doença no grupo ocupacional de mais alto nível na hierarquia funcional, os
funcionários de níveis hierárquicos inferiores, como profissional/executivo, atendentes e outros,
teriam risco relativo aproximadamente duas, três e quatro vezes maiores, respectivamente. Os
autores encontraram que os fatores de risco individuais, como colesterol, hábito de fumar,
hipertensão arterial e outros explicavam apenas 35 a 40% da diferença, sendo que os restantes 60–
65% estavam basicamente relacionados aos DSS.

Há várias abordagens para o estudo dos mecanismos através dos quais os DSS provocam as
iniqüidades de saúde. A primeira delas privilegia os sans-serifaspectos físico–materiaissans-serif na
produção da saúde e da doença, entendendo que as diferenças de renda influenciam a saúde pela
escassez de recursos dos indivíduos e pela ausência de investimentos em infra–estrutura comunitária
(educação, transporte, saneamento, habitação, serviços de saúde etc.), decorrentes de processos
econômicos e de decisões políticas. Outro enfoque privilegia os sans-seriffatores psicosociaissans-
serif, explorando as relações entre percepções de desigualdades sociais, mecanismos psicobiológicos
e situação de saúde, com base no conceito de que as percepções e as experiências de pessoas em
sociedades desiguais provocam estresse e prejuízos à saúde. Os enfoques sans-serifecossociaissans-
serif e os chamados sans-serifenfoques multiníveissans-serif buscam integrar as abordagens
individuais e grupais, sociais e biológicas numa perspectiva dinâmica, histórica e ecológica.
Finalmente, há os enfoques que buscam analisar as relações entre a saúde das populações, as
desigualdades nas condições de vida e o grau de desenvolvimento da trama de vínculos e associações
entre indivíduos e grupos. Esses estudos identificam o desgaste do chamado sans-serifcapital
socialsans-serif, ou seja, das relações de solidariedade e confiança entre pessoas e grupos, como um
importante mecanismo através do qual as iniqüidades de renda impactam negativamente a situação
de saúde. Países com frágeis laços de coesão social, ocasionados pelas iniqüidades de renda, são os
que menos investem em capital humano e em redes de apoio social, fundamentais para a promoção
e proteção da saúde individual e coletiva. Esses estudos também procuram mostrar por que não são
as sociedades mais ricas as que possuem melhores níveis de saúde, mas as que são mais igualitárias e
com alta coesão social.

Diversos são os modelos que procuram esquematizar a trama de relações entre os diversos fatores
estudados através desses diversos enfoques. Dois modelos serão analisados a seguir: o modelo de
Dahlgren e Whitehead (GUNNING–SCHEPERS, 1999) e o modelo de Didericksen e outros (EVANS et
al., 2001).

O modelo de Dahlgren e Whitehead inclui os DSS dispostos em diferentes camadas, desde uma
camada mais próxima dos determinantes individuais até uma camada distal, onde se situam os
macrodeterminantes. Apesar da facilidade da visualização gráfica dos DSS e sua distribuição em
camadas, segundo seu nível de abrangência, o modelo não pretende explicar com detalhes as relações
e mediações entre os diversos níveis e a gênese das iniqüidades. Como se pode ver na figura 1, os
indivíduos estão na base do modelo, com suas características individuais de idade, sexo e fatores
genéticos que, evidentemente, exercem influência sobre seu potencial e suas condições de saúde. Na
camada imediatamente externa aparecem o comportamento e os estilos de vida individuais. Esta
camada está situada no limiar entre os fatores individuais e os DSS, já que os comportamentos, muitas
vezes entendidos apenas como de responsabilidade individual, dependentes de opções feitas pelo
livre arbítrio das pessoas, na realidade podem também ser considerados parte dos DSS, já que essas
opções estão fortemente condicionadas por determinantes sociais – como informações, propaganda,
pressão dos pares, possibilidades de acesso a alimentos saudáveis e espaços de lazer etc.

A camada seguinte destaca a influência das redes comunitárias e de apoio, cuja maior ou menor
riqueza expressa o nível de coesão social que, como vimos, é de fundamental importância para a saúde
da sociedade como um todo. No próximo nível estão representados os fatores relacionados a
condições de vida e de trabalho, disponibilidade de alimentos e acesso a ambientes e serviços
essenciais, como saúde e educação, indicando que as pessoas em desvantagem social correm um risco
diferenciado, criado por condições habitacionais mais humildes, exposição a condições mais perigosas
ou estressantes de trabalho e acesso menor aos serviços. Finalmente, no último nível estão situados
os macrodeterminantes relacionados às condições econômicas, culturais e ambientais da sociedade
e que possuem grande influência sobre as demais camadas.

Necessário mencionar, pela crescente influência sobre as condições sociais, econômicas e culturais
dos países, o fenômeno da globalização. Suas principais características, assim como a influência da
globalização sobre a pobreza e as condições de saúde, e sobre as condições de vida em geral foram
analisadas por Buss (2006).

O modelo de Diderichsen e Hallqvist, de 1998, foi adaptado por Diderichsen, Evans e Whitehead
(2001). Esse modelo enfatiza a estratificação social gerada pelo contexto social, que confere aos
indivíduos posições sociais distintas, as quais por sua vez provocam diferenciais de saúde. No diagrama
abaixo (figura 2), (I) representa o processo segundo o qual cada indivíduo ocupa determinada posição
social como resultado de diversos mecanismos sociais, como o sistema educacional e o mercado de
trabalho. De acordo com a posição social ocupada pelos diferentes indivíduos, aparecem diferenciais,
como o de exposição a riscos que causam danos à saúde (II); o diferencial de vulnerabilidade à
ocorrência de doença, uma vez exposto a estes riscos (III); e o diferencial de conseqüências sociais ou
físicas, uma vez contraída a doença (IV). Por sans-serifconseqüências sociaissans-serif entende–se o
impacto que a doença pode ter sobre a situação socioeconômica do indivíduo e sua família.

As intervenções sobre os determinantes sociais da saúde

O modelo de Dahlgren e Whitehead e o de Diderichsen permitem identificar pontos para intervenções


de políticas, no sentido de minimizar os diferenciais de DSS originados pela posição social dos
indivíduos e grupos.

Tomando o modelo de camadas de Dahlgren e Whitehead, o primeiro nível relacionado aos fatores
comportamentais e de estilos de vida indica que estes estão fortemente influenciados pelos DSS, pois
é muito difícil mudar comportamentos de risco sem mudar as normas culturais que os influenciam.
Atuando–se exclusivamente sobre os indivíduos, às vezes se consegue que alguns deles mudem de
comportamento, mas logo eles serão substituídos por outros (ROSE, 1992). Para atuar nesse nível de
maneira eficaz, são necessárias políticas de abrangência populacional que promovam mudanças de
comportamento, através de programas educativos, comunicação social, acesso facilitado a alimentos
saudáveis, criação de espaços públicos para a prática de esportes e exercícios físicos, bem como
proibição à propaganda do tabaco e do álcool em todas as suas formas.

O segundo nível corresponde às comunidades e suas redes de relações. Como já mencionado, os laços
de coesão social e as relações de solidariedade e confiança entre pessoas e grupos são fundamentais
para a promoção e proteção da saúde individual e coletiva. Aqui se incluem políticas que busquem
estabelecer redes de apoio e fortalecer a organização e participação das pessoas e das comunidades,
especialmente dos grupos vulneráveis, em ações coletivas para a melhoria de suas condições de saúde
e bem–estar, e para que se constituam em atores sociais e participantes ativos das decisões da vida
social.

O terceiro nível se refere à atuação das políticas sobre as condições materiais e psicossociais nas quais
as pessoas vivem e trabalham, buscando assegurar melhor acesso à água limpa, esgoto, habitação
adequada, alimentos saudáveis e nutritivos, emprego seguro e realizador, ambientes de trabalho
saudáveis, serviços de saúde e de educação de qualidade e outros. Em geral essas políticas são
responsabilidade de setores distintos, que freqüentemente operam de maneira independente,
obrigando o estabelecimento de mecanismos que permitam uma ação integrada.

O quarto nível de atuação se refere à atuação ao nível dos macrodeterminantes, através de políticas
macroeconômicas e de mercado de trabalho, de proteção ambiental e de promoção de uma cultura
de paz e solidariedade que visem a promover um desenvolvimento sustentável, reduzindo as
desigualdades sociais e econômicas, as violências, a degradação ambiental e seus efeitos sobre a
sociedade (CNDSS, 2006; PELEGRINI FILHO, 2006).

O outro modelo, proposto por Diderichsen et al., permite também identificar alguns pontos de
incidência de políticas que atuem sobre os mecanismos de estratificação social e sobre os diferenciais
de exposição, de vulnerabilidade e de suas conseqüências.

Embora a intervenção sobre os mecanismos de estratificação social seja de responsabilidade de


outros setores, ela é das mais cruciais para combater as iniqüidades de saúde. Aqui se incluem
políticas que diminuam as diferenças sociais, como as relacionadas ao mercado de trabalho, educação
e seguridade social, além de um sistemático acompanhamento de políticas econômicas e sociais para
avaliar seu impacto e diminuir seus efeitos sobre a estratificação social.

O segundo conjunto de políticas busca diminuir os diferenciais de exposição a riscos, tendo como alvo,
por exemplo, os grupos que vivem em condições de habitação insalubres, trabalham em ambientes
pouco seguros ou estão expostos a deficiências nutricionais. Aqui se incluem também políticas de
fortalecimento de redes de apoio a grupos vulneráveis para mitigar os efeitos de condições materiais
e psicossociais adversas. Quanto ao enfrentamento dos diferenciais de vulnerabilidade, são mais
efetivas as intervenções que buscam fortalecer a resistência a diversas exposições, como por exemplo,
a educação das mulheres para diminuir sua própria vulnerabilidade e a de seus filhos. A intervenção
no sistema de saúde busca reduzir os diferenciais de conseqüências ocasionadas pela doença, aqui
incluindo a melhoria da qualidade dos serviços a toda a população, apoio a deficientes, acesso a
cuidados de reabilitação e mecanismos de financiamento eqüitativos, que impeçam o
empobrecimento adicional causado pela doença.

Essas intervenções sobre níveis macro, intermediário ou micro de DSS, com vistas a diminuir as
iniqüidades relacionadas à estratificação social, além de obrigarem a uma atuação coordenada
intersetorial abarcando diversos níveis da administração pública, devem estar também
acompanhadas por políticas mais gerais de caráter transversal que busquem fortalecer a coesão e
ampliar o sans-serifcapital socialsans-serif das comunidades vulneráveis, e promover a participação
social no desenho e implementação de políticas e programas (CSDH, 2006).

A evolução conceitual e prática do movimento de promoção da saúde em nível mundial indica uma
ênfase cada vez maior na atuação sobre os DSS, constituindo importante apoio para a implantação
das políticas e intervenções acima mencionadas.

A Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS)

O conhecimento e as intervenções sobre os DSS no Brasil deverão receber importante impulso, com
a criação da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS). Essa Comissão foi
estabelecida em 13 de março de 2006, através de Decreto Presidencial, com um mandato de dois
anos. A criação da CNDSS é uma resposta ao movimento global em torno dos DSS desencadeado pela
OMS, que em março de 2005 criou a Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde (Commission
on Social Determinants of Health – CSDH), com o objetivo de promover, em âmbito internacional, uma
tomada de consciência sobre a importância dos determinantes sociais na situação de saúde de
indivíduos e populações e sobre a necessidade do combate às iniqüidades de saúde por eles geradas.

A CNDSS está integrada por 16 personalidades expressivas de nossa vida social, cultural, científica e
empresarial.1 Sua constituição diversificada é uma expressão do reconhecimento de que a saúde é um
bem público, construído com a participação solidária de todos os setores da sociedade brasileira. O
Decreto Presidencial que criou a CNDSS constituiu também um Grupo de Trabalho Intersetorial,
integrado por diversos ministérios relacionados com os DSS, além dos Conselhos Nacionais de
Secretários Estaduais e Municipais de Saúde (CONASS e CONASEMS). O trabalho articulado da CNDSS
com esse Grupo permite que se multipliquem ações integradas entre as diversas esferas da
administração pública, e que as já existentes ganhem maior coerência e efetividade.

As atividades da CNDSS têm como referência o conceito de saúde, tal como a concebe a OMS – sans-
serifum estado de completo bem–estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença
ou enfermidadesans-serif – e o preceito constitucional de reconhecer a saúde como um sans-
serifdireito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperaçãosans-serif (artigo 196 da Constituição brasileira de 1988).

Três compromissos vêm orientando a atuação da Comissão:


· Compromisso com a ação: implica apresentar recomendações concretas de políticas, programas e
intervenções para o combate às iniqüidades de saúde geradas pelos DSS.

· Compromisso com a eqüidade: a promoção da eqüidade em saúde é fundamentalmente um


compromisso ético e uma posição política que orienta as ações da CNDSS para assegurar o direito
universal à saúde.

· Compromisso com a evidência: as recomendações da Comissão devem estar solidamente


fundamentadas em evidências científicas, que permitam, por um lado, entender como operam os
determinantes sociais na geração das iniqüidades em saúde e, por outro, como e onde devem incidir
as intervenções para combatê–las e que resultados podem ser esperados em termos de efetividade e
eficiência.

Os principais objetivos da CNDSS são:

· produzir conhecimentos e informações sobre os DSS no Brasil;

· apoiar o desenvolvimento de políticas e programas para a promoção da eqüidade em saúde;

· promover atividades de mobilização da sociedade civil para tomada de consciência e atuação sobre
os DSS.

Para o alcance desses objetivos, a CNDSS vem desenvolvendo as seguintes linhas de atuação:

1) Produção de conhecimentos e informações sobre as relações entre os determinantes sociais e a


situação de saúde, particularmente as iniqüidades de saúde, com vistas a fundamentar políticas e
programas. No âmbito desta linha de atuação, a CNDSS, o Departamento de Ciência e Tecnologia do
Ministério da Saúde e o CNPq lançaram um edital de pesquisa que permitiu apoiar projetos de
pesquisa sobre DSS por um montante de cerca de quatro milhões de reais. Os pesquisadores
responsáveis por esses projetos e gestores locais e estaduais convidados estão conformando uma
rede de colaboração e intercâmbio para seguimento dos projetos e discussão de implicações para
políticas de seus resultados intermediários. Ainda no âmbito desta linha de atuação, foram
identificados e avaliados sistemas de informação de abrangência nacional sobre DSS e foi realizado
um seminário internacional sobre metodologias de avaliação de intervenções sobre os DSS. Os
resultados dessas atividades estarão em breve disponíveis no site da CNDSS.

2) Promoção, apoio, seguimento e avaliação de políticas, programas e intervenções governamentais


e não–governamentais realizadas em nível local, regional e nacional. O GT Intersetorial deve constituir
o principal instrumento para o desenvolvimento desta linha de atuação.

3) Desenvolvimento de ações de promoção e mobilização junto a diversos setores da sociedade civil,


para a tomada de consciência sobre a importância das relações entre saúde e condições de vida e
sobre as possibilidades de atuação para diminuição das iniqüidades de saúde. Membros da CNDSS e
da secretaria técnica vêm participando de congressos e reuniões nacionais e internacionais e
utilizando meios de comunicação de massa para o desenvolvimento desta linha de atuação. Em breve
será organizado um fórum de discussão nacional e regional, com a participação de organizações não–
governamentais que atuam em áreas relacionadas com os DSS.

4) Portal sobre DSS: a CNDSS mantém uma página institucional (www.determinantes.fiocruz.br) com
informações sobre as atividades que vem desenvolvendo, além de publicações de interesse. Em breve
será lançado um Portal sobre DSS, onde, além de informações sobre as atividades da CNDSS, serão
incluídos dados, informações e conhecimentos sobre DSS existentes nos sistemas de informação e na
literatura mundial e nacional. Esse portal deve também se constituir num espaço de interação para
intercâmbio e discussão de grupos estratégicos relacionados aos DSS, como pesquisadores,
tomadores de decisão, profissionais de comunicação e outros.
A partir do segundo semestre de 2007, a CNDSS começará a publicar seu relatório final em fascículos,
para prestar contas sobre o cumprimento de seus objetivos, traçar um panorama geral da situação de
saúde do país e propor políticas e programas relacionados aos DSS. Estamos convencidos de que as
atividades da CNDSS e seus desdobramentos futuros serão uma valiosa contribuição para o avanço do
processo de reforma sanitária brasileira e para a construção de uma sociedade mais humana e justa.

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