Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
25 junho 2021
GETTY IMAGES
Se você usar esse emoji para rir nas redes sociais, seu interlocutor poderá adivinhar sua idade - jovem, não é
E "cringe". Cringe, caso você já não saiba, significa sentir vergonha alheia, uma adaptação do
sentido original em inglês.
A guerra geracional entre os Z e os millennials que bombou entre os americanos no início do ano
chegou à internet brasileira na semana passada, depois de um tuíte sobre o assunto viralizar.
Os nascidos após 1996 deixaram claro o que acham dos adultos dos anos de 1981 a 1996: se
tomam café da manhã, reclamam dos boletos a pagar, usam calça skinny e emoji genérico para rir,
a vergonha é grande.
Sim, isso mesmo. Ligue a caixa alta e sente a mão no teclado. O que sair é jogo. Esse tipo de
risada altamente aleatória - uma subversão da onomatopeia, por que não? - denota mais graça
ainda.
Emoji de risada, por outro lado, é coisa de gente velha. Mais ou menos quando o "nariz" em
emoticons denunciava a idade do interlocutor. :-)
Arqueologia do KKKKKKKKKK
Tendência ou não, o "KKKKKKKK" não é novo. Aliás, é velhíssimo. Essa gargalhada - que quando
lida em voz alta, deve soar como um gostoso "kakakakaka" - é usada pelo brasileiro há pelo
menos 150 anos. Mas era algo mais para os vagarosos "cá cá cá", "quiá quiá quiá" ou "quá quá
quá".
A primeira está em Til, romance regionalista de José de Alencar (1829-1877) publicado em 1872
que se passa em uma fazenda no interior de São Paulo. O livro conta a história de Berta, uma
menina acolhida pela viúva Nhá Tudinha.
Em um trecho, Nhá Tudinha aparece "debulhando-se em uma risada gostosa". "Não fazia a
menina um trejeito, nem dizia uma facécia, que a viúva não se desfizesse em gargalhadas."
"— Ai, menina!... Quiá!... quiá!... quiá!... Já se viu, que ladroninha?...", diz um trecho.
REPRODUÇÃO
Trecho de romance "Til", de José de Alencar, de 1872, tem personagem rindo "quiá, quiá, "quiá"
"Toda gente gozou do caso, entre espirros de riso e galhofa", diz um trecho do conto Um Suplício
Moderno, sobre o personagem Izé Biriba, um pobre estafeta (espécie de carteiro), que fazia
correspondência entre cidades não conectadas por ferrovia. Biriba se lamenta por haver
transportado um bode para só depois descobrir que era para um inimigo seu, e é alvo de risos.
"Trazer o bode da oposição! Quiá! quiá! quiá!", ele ouve de interlocutores.
Na Folha da Manhã, uma crônica chamada Um Homem que Ri, publicada em 1926, diz o seguinte:
"Quem foi o tolo que afirmou que a humanidade deve meditar e crer, chorar e sonhar? Que
patetice é essa, em pleno século XX? A humanidade só deve rir. A vida, no fundo, não passa de
uma grossa piada. Quá, quá quá!"
REPRODUÇÃO
Ok, já deu para entender. O "quá quá quá" era a maneira corrente de expressar riso.
E um dos espaços onde estava presente é terreno fértil para onomatopeias no Brasil e no mundo:
as histórias em quadrinho.
E a internet tem essas mesmas características da linguagem de quadrinhos. "Online, você tem
uma rapidez muito grande para escrever, então a tendência é escrever mais ou menos como se
fala, como nos quadrinhos."
As HQs são repletas de onomatopeias (pense no "pow", "crash", "bang" do Batman), e as risadas
online são justamente isso, onomatopeias - uma tentativa de reproduzir som e ruídos usando
letras ou palavras. E elas se popularizaram a partir do momento em que os quadrinhos passam a
ganhar balões de fala (literalmente aqueles balõezinhos onde ficam os diálogos) no início do
século 20, diz Gomes.
É assim que o "quá quá quá", já presente pelo menos em alguns textos, como vimos acima,
começa a se popularizar de fato no Brasil nos anos 1960 e 1970, sugere o jornalista e pesquisador
de histórias em quadrinhos Gonçalo Junior. Isso porque foi nessa época que os gibis da Disney,
traduzidos para o português, foram publicados no Brasil. E neles havia um importante personagem
que ria "quá quá quá".
Pato Donald
Em 1931, o famoso Mickey Mouse ganha um amigo: Pato Donald, uma criação de Walt Disney. Na
década seguinte, essa criação se desdobraria em todo um maravilhoso universo de patos criados
pelo talentoso ilustrador Carl Barks.
Seus quadrinhos dão origem a Patópolis, no Estado fictício de Calisota (uma junção de Califórnia
com Minnesota), onde viviam Pato Donald, o sovina tio Patinhas, o primo sortudo Gastão, os
Irmãos Metralha, os sobrinhos trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luisinho, entre outros.
Em inglês, esses patos riem apenas "ha ha ha". E havia também o "quack", a típica onomatopeia
para o grasnar de pato na língua inglesa que nos gibis americanos representava espanto,
equivalente a um "uau" ou "puxa" em português.
Na tradução para português, você já imagina: "ha ha ha" virou "quá quá quá".
"A gente puxou a risada para o quá quá quá, que é muito divertido, que é ao mesmo tempo o som
do pato e o som da risada", diverte-se Marcelo Alencar, jornalista, editor e tradutor de quadrinhos
Disney.
"O quá quá quá era um jeito 'patoso' de adaptar o 'quiá, quiá, quiá' dos nossos velhinhos, aquela
proto gargalhada."
Ou seja, naquele mundo dos patos, que chegaram a vender 200 mil exemplares por edição nos
anos 1970 e 1980 no Brasil, segundo Alencar, todos riam "quá quá quá".
REPRODUÇÃO
Pato Donald, traduzido no Brasil nos anos 1950 e extremamente popular nas décadas seguintes, ria "quá, quá,
quá"
"O quá quá quá acabou pegando por causa disso, é aquela risada que você não segura, dá
vontade de rir alto. Que é o mesmo som do kkkk", afirma.
E pegou mesmo.
Nas décadas seguintes, textos de jornais são repletos de "quá quá quá", principalmente os
humorísticos.
Elis Regina gargalha e canta "quaquaraquaqua, quem riu?, quaquaquaraquaqua, fui eu" em Vou
Deitar e Rolar (Qua Qua Ra Qua Qua) composta por Baden Powell e Paulo César Pinheiro em
1970.
O "quá quá quá" ainda resiste e aparece forte nos anos 1980, 1990 e no início dos anos 2000.
E é bem aí, no final dos anos 1990 para a virada do século, quando o "quá quá quá" começa a
desaparecer, que o "kkkkk" dá as caras. Na internet, claro.
"No chat, escrevemos com muita rapidez, comemos acento, reduzimos tudo o que podemos para
ganhar tempo", observa Gomes, da UEMS. Se um k representa um quá, por que não?
"Qual é mais fácil ou mais rápido: escrever q-u-a, q-u-a, q-u-a, ainda com acento, ou escrever só
kkkk? É só botar o dedo que a letra corre", diz Gonçalo Junior.
REPRODUÇÃO
Comentário do dia 20 de fevereiro de 1884, no jornal "A Província de São Paulo", na "Secção Livre"
Naquela época, o kkkk surgiu primeiro como risada normal entre os adultos que a adotaram.
Nos anos seguintes, parte dos jovens, no entanto, passou a considerar essa risada cringe (ou
constrangedora).
Mas logo se apropriou dela, passando a fazer um uso irônico. E, bem, isso acabou naturalizando o
"kkkkkk", que hoje, com mais de 20 anos, já completa um ciclo e não é mais visto
necessariamente com ironia.
😂
E nunca, jamais, o emoji "Face with Tears of Joy" ( ), conhecido informalmente como laughing
crying emoji (emoji chorando de rir). Esse é totalmente cringe e entrou em desuso entre os
adolescentes.
Aqui, uma curiosidade: os emojis, diz o jornalista Gonçalo Junior, também têm origem nos
quadrinhos. São praticamente "rosto de quadrinhos", afirma. "As expressões de raiva, de olho
fechado, piscadela, a sobrancelha levantada... Isso tudo foi desenvolvido para representar
expressões de sentimento nos gibis", diz ele.
Voltando ao emoji chorando de rir: essa expressão se tornou seu próprio algoz. Ela foi a mais
popular no Twitter entre todos os emojis durante vários anos monitorados pelo Emojipedia, um site
que documenta o significado de emojis. Mas atingiu seu pico em junho de 2019, e desde então
vinha caindo lentamente em popularidade.
"O emoji virou o novo 'rs'. Foi tão onipresente, espalhado por todas as partes, que perdeu o
sentido e saiu de moda", diz à BBC News Brasil Keith Broni, pesquisador e tradutor de emojis do
Emojipedia. "Ele perdeu seu poder como uma expressão emocional genuína." E, assim, a geração
Z decidiu que seus dias estavam contados.
"Em março de 2021, pela primeira vez, em anos e anos de uso de emojis na cultura ocidental, o
chorando de rir ficou fora do pódio", diz Broni.
E quem subiu para ocupar seu lugar foi o loudly crying face emoji 😭 , o chorando alto.
EMOJIPEDIA/DIVULGAÇÃO
Emoji chorando de rir foi destronado pelo emoji chorando alto segundo levantamento do Emojipedia
Claro, porque há mais de um ano vivemos uma pandemia e estamos todos muito tristes, não?
Não.
Surpreendentemente (ao menos para os velhos não geração Z), o choro alto se tornou a nova
gargalhada.
"O emoji de choro alto, com cachoeiras de lágrimas, está sendo usado não porque as pessoas
estão tristes, mas porque passou a representar a risada", diz Broni. A geração Z adotou esse emoji
para expressar algo positivo - fazendo uso, novamente, do drama exacerbado. É o equivalente à
caixa alta no KKKKKKK.
Enquanto isso, se for usado pelos Z, o emoji chorando de rir tem mais um tom de ironia.
Há outra alternativa - esta, surgida em comentários no TikTok. O emoji da caveira virou uma 💀
versão visual da expressão "estou morto" ou "morri", dito quando algo é muito engraçado.
Basicamente, a geração Z se apropriou do emoji e lhe deu um novo significado.
"Eles usam emojis de maneira mais frívola e irônica, para definir sua geração e separá-la da que
veio antes", diz o pesquisador de emojis.
Entre o quá quá quá, os subsequentes kkkkk e KKKKK e a ascensão e queda de emojis, o que
estamos vendo, simplesmente, é a "velha passagem da tocha entre gerações", segundo Broni.
"O que é legal para uma geração não é legal para a próxima, e isso é natural."