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COMUNICAÇÃO BREVE BRIEF COMMUNICATION 1685

Desafios da prática do acolhimento de surdos


na atenção primária

Challenges for receiving hearing-impaired


individuals in primary healthcare services

Desafíos de la práctica de acogida de sordos en


la atención primaria

Janaina dos Reis Tedesco 1,2

José Roque Junges 1

Abstract Resumo

1 Universidade do Vale do Health services should properly receive and es- O acolhimento e vínculo são fundamentais pa-
Rio dos Sinos, São Leopoldo,
Brasil.
tablish bonds with patients in order to ensure us- ra o acesso e a reorganização das ações. Os por-
2 Secretaria Municipal de er access and reorganization of care. Users with tadores de necessidades especiais exigem uma
Saúde de Dois Irmãos, Dois special needs require specific attention, especial- atenção específica, principalmente os portadores
Irmãos, Brasil.
ly individuals with hearing disabilities, whose de surdez que apresentam maior desafio no aco-
Correspondência needs pose a particular challenge, since “dedi- lhimento de suas necessidades, porque a “escuta
J. R. Junges
cated listening” involves a potential language qualificada” apresenta a barreira da linguagem.
Universidade do Vale do Rio
dos Sinos. barrier. This study was conducted in the Com- A pesquisa foi realizada nos Postos de Saúde
Av. Unisinos 950, São munity Health Centers of the Conceição Hospital Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição,
Leopoldo, RS
Group, a Federal public institution integrated instituição pública federal em Porto Alegre, Rio
93022-000, Brasil.
roquejunges@hotmail.com with the primary care system in Porto Alegre, Grande do Sul, Brasil, integrada na atenção pri-
Rio Grande do Sul State, Brazil. A qualitative ap- mária do município. Foi utilizada a abordagem
proach used semi-structured interviews with 12 qualitativa com entrevistas semiestruturadas
health professionals, the Community Health Co- com 12 profissionais, com a Coordenadora da
ordinator, and the Advisory Department for Us- Saúde Comunitária e a coordenação da asses-
ers with Special Needs. The results showed that soria no atendimento a usuários com necessida-
health professionals test different approaches des especiais. Os resultados evidenciaram que os
to deal with difficulties in communicating with profissionais buscam diferentes ferramentas pa-
hearing-impaired patients, and that the profes- ra obviar a dificuldade da comunicação com os
sionals’ overall attitude revealed their discomfort surdos, e que a postura dos profissionais em geral
and lack of training for dealing with the needs of manifesta desconforto e despreparo para atender
patients with hearing disabilities. às necessidades dos portadores de surdez.

Health Services Accessibility; User Embracement; Acesso aos Serviços de Saúde; Acolhimento;
Hearing Impaired Persons; Primary Health Care Pessoas com a Deficiência Auditiva;
Atenção Primária à Saúde;

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00166212 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(8):1685-1689, ago, 2013


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Introdução nais da saúde comunitária do GHC vivenciam no


atendimento aos usuários surdos.
O acolhimento está baseado no estabelecimen-
to de relações solidárias e de confiança entre
os profissionais e as pessoas que procuram os Metodologia
serviços, para resolver seu problema de saúde,
tornando-se aspecto importante para que ocorra Estudo de abordagem qualitativa, de caráter
o vínculo, contribuindo para a resolubilidade do exploratório-descritivo que utilizou, para coleta
problema 1. de dados, entrevistas com profissionais do GHC:
Ao acolher, são mobilizados os aspectos das um membro da Coordenação do CEPPAM; a Co-
relações que se estabelecem no âmbito do aten- ordenadora e 12 profissionais da saúde comuni-
dimento para que aconteça o direito à saúde, ba- tária. As entrevistas tiveram como roteiro duas
se para a consciência cidadã. O momento do aco- questões: (1) conhecimento sobre a política de
lhimento na atenção básica à saúde compõe um acessibilidade e mobilidade de pessoas com de-
potencial cenário para conflitos éticos no dia a ficiência; e (2) como acontece o atendimento de
dia das ações 2. Nesse contexto, acolher as neces- pessoas surdas no dia a dia das unidades.
sidades em saúde de pessoas portadoras de defi- As entrevistas foram gravadas e interpretadas
ciência significa um desafio aos profissionais. segundo a análise temática, transformando os
Em 2006, foi lançada a Política Nacional de pontos relevantes em unidades de registro codi-
Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência 2, em ficadas em categorias.
que são assegurados os seus direitos. Os usuários A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética
portadores de deficiência auditiva se deparam do GHC, e para preservar a confidencialidade os
com uma dificuldade acrescida, devido ao pro- nomes dos entrevistados foram substituídos por
blema da comunicação interpessoal, pois no mo- nomes de flores.
mento de acolhida o usuário surdo precisa co-
municar sua necessidade e ser orientado quanto
à conduta a ser seguida. Resultados e discussão
O Decreto Lei no 5.626 de 2005, que garante
o direito à saúde das pessoas surdas ou com de- Com base na análise do conteúdo duas catego-
ficiência auditiva determinando que, a partir de rias ficaram evidentes: (1) ferramentas de comu-
2006, seja organizado o atendimento às pessoas nicação com o usuário surdo; e (2) postura na
com deficiência auditiva na rede de serviços do comunicação com o usuário surdo.
SUS 3.
Os pacientes surdos buscam o sistema de Ferramentas de comunicação com o
saúde com menos frequência que os pacientes usuário surdo
ouvintes, referindo, como principais dificulda-
des, o medo, a desconfiança e a frustração 4. Sobre o atendimento às pessoas surdas, os en-
Durante o acolhimento dos usuários pelos trevistados relatam que ferramentas utilizam
profissionais da saúde, é necessário que se esta- na comunicação. Os meios utilizados no aten-
beleça uma forma de comunicação que possibi- dimento foram: a comunicação escrita; a pre-
lite o entendimento. Na maioria das vezes, essa sença de um familiar ou acompanhante; e o uso
comunicação se dá usando-se a linguagem ver- de gestos.
bal. Mas existem outras formas de comunicação, Alguns entrevistados citam a comunicação
como a LIBRAS, que é a língua oficial utilizada escrita como ponto fundamental para que ocorra
pela população surda brasileira, reconhecida co- a comunicação.
mo meio legal de comunicação e expressão. “...A gente escreve, por sinais, mas não a lin-
O Grupo Hospitalar Conceição (GHC), uma guagem deles... Ela sabe ler então isso já ajuda
instituição pública federal de atendimento dos bastante, porque daí tu se comunica...” (Amor-
três níveis de atenção, que preocupado com a perfeito).
mobilidade e acessibilidade de portadores de É comum a população surda ter menos ins-
deficiência, criou no ano de 2005 a Comissão trução que a população em geral. Esses neces-
Especial de Políticas de Promoção da Acessibili- sitam de maior atenção e cuidados quando são
dade e da Mobilidade (CEPPAM) com o objetivo utilizados termos técnicos, evitando palavras
de refletir, propor, assessorar e acompanhar as que possam levar a confusões e lembrando a ne-
políticas de inserção das pessoas portadoras de cessidade de utilizar letra legível. É necessário ter
deficiência. presente que as pessoas surdas comunicam-se
Diante desse cenário, este trabalho tem o usando a LIBRAS, que tem gramática e vocabulá-
objetivo de apontar os desafios que os profissio- rio diferentes da língua portuguesa 5.

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Durante as entrevistas os profissionais tam- Nas entrevistas, ficou evidente que os pro-
bém consideraram a presença de um familiar, de fissionais sentem-se desconfortáveis ao atender
um acompanhante do usuário surdo como im- pessoas surdas. Referiram o sentimento de an-
portante para que ocorra o atendimento. Esse faz siedade e de angústia como fatores presentes du-
uma “tradução”, como se nota nas seguintes falas. rante os atendimentos. Esses sentimentos sur-
“...Ele é acompanhado na unidade, ele tem gem porque se sentem despreparados para um
acesso, só que normalmente ele vem acompanha- atendimento não comum.
do de um familiar...” (Violeta). Diante das dificuldades ficou evidenciada a
“...Assim, o acompanhante a entende, ele vem necessidade de uma postura de disponibilidade
junto e traduz pra nós o que ela está tentando di- e dedicação.
zer...” (Azaleia). “...O profissional tem que estar muito dispo-
Ao depender de outras pessoas para acessar nível, não pode ir cheio de dedos. Disponível para
os serviços e informações de saúde, a cidadania utilizar outras linguagens, na relação com estas
dos surdos fica prejudicada 6. Uma barreira im- pessoas...” (Bromélia).
posta aos surdos e profissionais é não compar- Foi também referida a busca de aperfeiçoa-
tilharem a mesma linguagem. O atendimento mento por meio de cursos e capacitações.
igualitário na área da saúde não é garantido ao “Acho que qualquer profissional pode se habi-
surdo, embora seja brasileiro e da mesma cultura litar para trabalhar com essa população... a gente
das pessoas ouvintes 7. se beneficia dos treinamentos...” (Copo-de-leite).
Ainda aparece a importância de ter um pro- Em pesquisa sobre o acesso dos surdos aos
fissional de referência na unidade de saúde para serviços de atenção básica em São Paulo, relata-
a população surda. se que os gerentes, não sabendo os caminhos
“Nós temos uma funcionária que fez curso de a serem traçados para a melhoria deste tipo de
Libras, ela fica mais designada para estas situa- acesso, reconhecem a falta de discussão e proble-
ções assim” (Copo-de-leite). matização do tema e a necessidade da promoção
Em estudo realizado para conhecer as ne- do acesso da comunidade surda à rede de aten-
cessidades de saúde dos surdos 8, pontua-se as ção básica de saúde 9.
dificuldades enfrentadas ao procurarem os ser- Autores apontam o acolhimento como a dire-
viços, sendo a principal delas a comunicação. triz operacional fundamental para a inversão do
Citam-se como propostas, um intérprete em modelo técnico-assistencial no SUS, por meio da
LIBRAS ou profissionais que saibam se comuni- garantia da acessibilidade universal e a qualifica-
car nesta língua. ção das relações 10.
Geralmente, os surdos utilizam gestos e ex- Teixeira 11 considera que o trabalho em saúde
pressões que não pertencem à LIBRAS, mas que possui uma natureza eminentemente conversa-
são entendidas universalmente como expres- cional. Assim, o cuidado dialogado só é possível
sões de dor, apontar o local para auxiliar quem o entendendo a conversa como um instrumento
está atentendo. O profissional deve atentar para do acolhimento e organizando o serviço como
os sinais usados, e se não entender perguntar uma rede de conversações. Essa constatação é
novamente 5. fundamental para o atendimento qualificado do
usuário surdo.
A postura na comunicação com o Considerando o acolhimento, uma ferramen-
usuário surdo ta importante para a qualificação das relações e
processos no SUS deve refletir sobre como se po-
Sobre o atendimento às pessoas com surdez, de ter uma atitude de escuta qualificada e como
muitos entrevistados referiram algumas posturas. reorientar o serviço.
“Já tive contato. Pra mim é uma dificuldade.
Eu não peguei nem um analfabeto. A minha sorte.
...Eu ficava mais angustiado...” (Boca-de-leão). Considerações finais
“Desculpa, mas eu presencio pessoas falando
alto, tentando se comunicar desta forma, acho Se o acolhimento compreende ao mesmo tempo
que gera ansiedade” (Copo-de-leite). ferramentas adequadas de comunicação e pos-
A linguagem utilizada pelos surdos foi com- tura ética de escuta qualificada, os resultados da
parada pelos entrevistados como uma língua es- pesquisa demonstram que existem deficiências
trangeira. Essa postura fica evidenciada nas falas no acolhimento. Por isso, a comunicação não
a seguir. utiliza ferramentas adequadas para o usuário
“A linguagem do surdo é como ir para outro surdo, lançando mão de substitutivos que não
país, se fala através de gestos, quando não tem possibilitam uma verdadeira escuta qualifica-
ninguém que possa interpretar...” (Margarida). da e, por fim, o despreparo para essas situações

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provoca angústia e ansiedade nos profissionais, permanente, a fim de capacitar os profissionais


impedindo uma atitude verdadeira de diálogo e e reorientar os serviços para a escuta qualificada
acolhimento. Essa constatação aponta para a ne- das necessidades dos usuários surdos.
cessidade de introduzir esse tema na educação

Resumen Colaboradores

Las directrices de universalidad, integridad y equidad, J. R. Tedesco foi responsável pela coleta de dados, análi-
acogida y vínculo son fundamentales para la calidad se e redação do artigo. J. R. Junges contribuiu na análise
de los servicios de salud. Los portadores de sordera re- e redação do artigo.
presentan un desafío especial para la atención en sa-
lud. La investigación ha sido realizada en los servicios
de salud comunitarios del Grupo Hospitalario Con- Agradecimentos
cepción en Porto Alegre, integrada en la atención pri-
maria del municipio. Se utilizó un enfoque cualitativo A autora principal, J. R. Tedesco, agradece à pesquisado-
con entrevistas a 12 profesionales, con la coordinadora ra Lisiane Andréia Denivar Périco, orientadora da pes-
general de salud comunitaria y en coordinación con la quisa que deu origem a este artigo, e à Lidiane Barazzet-
comisión para la atención de necesidades especiales. ti, responsável pela formatação do artigo nas normas da
Los resultados evidenciaron que los profesionales bus- revista. Um agradecimento especial aos profissionais da
can diferentes herramientas para superar las dificulta- atenção primária do Grupo Hospitalar Conceição por
des de comunicación de los sordos; que la postura de los sua prontidão e interesse em participar da pesquisa.
profesionales manifiesta en general disconformidad y
falta de preparación para atender las necesidades de los
portadores de sordera.

Accesibilidad a los Servicios de Salud; Acogimiento;


Personas con Deficiencia Auditiva; Atención
Primaria de Salud

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(8):1685-1689, ago, 2013


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Referências

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29(8):1685-1689, ago, 2013

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