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No Caminho de Santiago
Sinopse

Partindo da experiência pessoal de fazer o Caminho de Santiago, reflete-se sobre essa


experiência como uma procura de uma consciência do ser em si e no mundo, remetendo para
esse mundo como outro e como espelho de si.

Das Wandern ist des Müllers Lust Caminhar faz a alegria do moleiro,
Das Wandern! Caminhar!
Das muß ein schlechter Müller sein Deve ser um mau moleiro,
Dem niemals fiel das Wandern ein Aquele que nunca pensou em Caminhar,
Das Wandern Caminhar
Vom Wasser haben wir's gelernt Foi a água que nos ensinou,
Vom Wasser! A água
Das hat nicht Rast bei Tag und Nacht Não repousa nem de dia nem de noite,
Ist stets auf Wanderschaft bedacht Só pensa em correr,
Das Wasser A água
Das sehn wir auch den Rädern ab As rodas também nos ensinam,
Den Rädern! As rodas
Die gar nicht gerne stille stehn Nunca ficam imóveis,
Die sich mein Tag nicht müde drehn Infatigáveis elas giram,
Die Räder As rodas
Die Steine selbst, so schwer sie sind As próprias mós, mesmo as mais pesadas,
Die Steine! As mós
Sie tanzen mit den muntern Reihn Dançam uma ronda alegre,
Und wollen gar noch schneller sein E querem sempre ser mais rápidas,
Die Steine As mós
O Wandern, Wandern, meine Lust Oh, Caminhar, eis o meu prazer,
O Wandern! Oh, Caminhar!
Herr Meister und Frau Meisterin O meu mestre e a minha mestra.
Laßt mich in Frieden weiterziehn Deixai-me partir em paz
Und wandern E Caminhar.

Wilhelm Müller (Dessau 1794 –1827) (Wilhelm Müller, Tradução de Maria Helena de
Freitas)

Das Wandern

Com este primeiro poema de Wilhelm Müller – Guilherme Moleiro de seu nome em português
– iniciou o compositor Franz Schubert o seu ciclo “Viagem de Inverno”, uma série de 24
canções para voz e piano publicada em 1824. Esta alegre, altiva e simples canção é somente o
momento inicial desse ciclo; é o instante zero, a alegria de iniciar a viagem, meter-se ao
caminho; mas nada nos revela sobre as outras 23 canções também de Müller, de índole muito
diversa.
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Das Wandern é, também, esse mito germânico do andar a pé, caminhar, de saco metido num
pau ao ombro, pela estrada fora; possivelmente há um destino pensado, um lugar para se
chegar; mas o caminho não se resume a esse lugar nem se perspetiva centrado nesse lugar, na
verdade acessório. O caminho é um conjunto grande de vivências, de momentos, de encontros
e despedidas de outros sítios e pessoas, independentemente de chegar a algum lugar: chega-
se sempre algures.

Na cultura germânica encontramos um caso extremo de caminhante, na balada de Christian


Friedrich Hebbel (1813-1863) com o estranho nome de Ballade von Heideknaben (Balada do
jovem pagão), musicado como um melodrama por Robert Schumann. Neste texto um jovem
aprendiz sonha que faz uma viagem e que é morto, assassinado por alguém que encontra. De
súbito o sono – e o sonho - é interrompido pelo seu Mestre que lhe pede para fazer uma
viagem à cidade: essa viagem, exatamente como no sonho, vai-se tornar fatal; o jovem
aprendiz morre assassinado por um guia que o destino – na história um pastor – lhe impõe.

Das Wandern é, atualmente, uma atividade comum de fim de semana na Europa central: sair
da cidade, andar, colher cogumelos, petiscar uma sandwich no caminho ou numa quinta,
admirar a paisagem; e regressar. É, sempre, caminhar por um caminho definido, procurando
um encontro com a terra, a natureza, a paisagem, as pessoas.

Mas esse Wandern pode ser também um errar eterno, uma pena intemporal, um eterno
caminhar por um mundo de desventura, tal como é concebido num outro mito da Europa
central, o do Judeu errante, Le Juif errant, Der ewige Jude: o Judeu pedinte que viaja pelo
mundo na eternidade, penando a culpa de não ter ajudado Cristo transportando a cruz para o
calvário. Este outro mito confunde-se com o próprio judaísmo na Europa, nessa situação de
constante perigo perante a perseguição, o progrom, que determinará a fuga iminente. O
opressor criou um mito que justifica, de maneira conturbada, o comportamento de fuga
daquele que, na verdade, ele mesmo persegue. Este mito está presente na Europa desde a
Idade Média, talvez mesmo desde um algo utópico bom convívio entre judaísmo e o Islão, ao
tempo do Al Andalus. Foi musicado por Gounod, Halévy, Moustaky. E é assumido por alguns
Judeus ligados, entre outras, à criação musical, como cidadãos errantes entre terras e culturas,
desterrados de um sítio ancestral que, no entanto, lhes é estrangeiro; reconhecem-se nesse
Wandern eterno que se confunde com a própria procura da sabedoria e de si.

El Camiño

E falo destes mitos, ou melhor de um mito multifacetado germânico, algo metafórico da


própria vida e da busca de sabedoria, porque sou músico e decidi fazer o Caminho de Santiago:
ir a pé por um caminho pré-definido, tendo segurança bastante que o iria terminar em
razoáveis condições; mas não sabendo o que era, como era, o que iria encontrar, como o iria
viver. Ou mesmo porque o fazia, embora sentisse esse impulso enorme para o fazer. Não foi a
fé católica nem as benesses do santo que me moveram, mas uma outra qualquer vontade.

Conheci anteriormente pessoas que fizeram o Caminho, que sofreram as dores usuais de pés,
pernas, as bolhas, etc. Conheci crentes, católicos que tiveram uma epifania na chegada a
Santiago, que deram as marradinhas na cabeça do santo e assistiram à missa, que se sentiram
melhor ao fim do caminho. Eu, em criança, dei as devidas marradinhas em viagens anuais de
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carro, com os meus pais: um tormento essas viagens no assento de trás. Conheci também não
crentes que o fizeram porque a ideia de chegar, de completar um projeto físico, psíquico e
espiritual, profundamente individual, pareceu-lhes ser importante.

O mito do caminhante foi uma inspiração importante nesse sentido de busca do conhecimento
passo a passo, encontro a encontro, monte acima e a baixo, no cruzamento da estrada, no
peso da mochila, no ribeiro atravessado, no reconhecer a estrada romana.

E outros momentos anteriores também me inspiraram. Lembro, há uns anos, uma conversa
em Ponta Delgada com um empregado de mesa relatando as suas vivências como Romeiro:
uma “lavagem espiritual” como afirmou, absolutamente necessária na sua vida, todos os anos.
Esses romeiros são homens que se juntam na Páscoa, percorrendo durante 8 dias as capelas da
ilha dedicadas à mãe de Cristo, as “casas de Nossa Senhora”. Rezam e cantam no percurso,
vivem da comida e do abrigo que as populações lhes facultam, andam por um caminho que
sabem difícil, longo, com muito frio e humidade nos montes, com condições precárias.
Cumprem esse caminho que conhecem mas que se torna um caminho seu, sempre renovado
de vivências pessoais, uma “lavagem espiritual” feita de fé, frio, dor física, encomendação de
almas, camaradagem. Estes romeiros começaram logo após os terramotos de Vila Franca do
Campo em 1522 e 1563; rezam pelas almas dos mortos e rezam pelos vivos, por aqueles que
as populações, ao longo do caminho, lhes encomendam as preces.

O Caminho da Cultura

O Caminho de Santiago é, desde logo, um caminho da cultura. A própria cidade Santiago de


Compostela desenvolveu-se tendo como base o enclave católico do norte da península no
primeiro milénio, mas fortemente marcada pelo encontro das culturas vindas da Europa
central, de Itália, do Al Andalus e do Mediterrâneo como mar de constante encontro entre o
oriente e o ocidente. Muitas das estradas do Caminho, que são também estradas entre lugares
longínquos da Europa, são estradas romanas ou estradas mais atuais. Por elas conquistaram-se
sítios, colonizaram-se terras, nelas rezou-se a um Deus único de múltiplas maneiras, nelas
trocaram-se costumes e saberes, instrumentos de artes diversas, nelas cantou-se poesia em
diversas línguas, conheceu-se o outro vindo de terras diferentes. Que pessoas, exércitos,
civilizações percorreram esses caminhos? Que gentes se estabeleceram e edificaram à sua
volta? Terão pisado as mesmas pedras? Haveria já essa pequena capela ou algum outro templo
naquele lugar? Serão estas gentes, que vivem nestas casas à beira da estrada, descendentes de
legionários extraviados, de exércitos bárbaros por aqui fixados, de peregrinos sem vontade de
retorno?

Caminante, hay camino: ¡tu camino!

Ao contrário da Ballade von der Heidenknabe – Balada do jovem pagão - de Hebbel há


geralmente um regresso à terra de origem, um voltar ao sítio de onde partimos, pelo mesmo
ou por outro caminho. E há caminhos específicos, estradas, sítios, trilhos por onde se passa e
outras que se devem recusar, pois não são “El Camiño”, não são os caminhos destinados aos
peregrinos, não possuem história, não têm a devida aura.
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Caminante, son tus huellas


el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

Antonio Machado, Proverbios y cantares (XXIX)

Ao contrário de António Machado, entendo que o Caminho existe; ele está lá com camadas e
camadas de história, de mitos, de peregrinos, de existências. Resta-nos caminhá-lo. E esse
caminho pré-determinado limita as nossas possibilidades, porque não é um deambular sem
destino. Ao contrário do mito do Judeu errante, não é um penar sem fim: há um fim claro e um
provável retorno; partimos por percursos específicos com um destino, sabendo que queremos
voltar. O Caminho de Santiago está lá, em mapas, há estradas a percorrer e sinais que
devemos seguir.

Parece até que há só um único Caminho de Santiago, mas com estradas diversas, saindo de
lugares diferentes, mas que são o mesmo caminho único, tal como as veias que correm o
mesmo sangue no nosso corpo. Todas têm como destino a cidade de Santiago de Compostela,
mais especificamente a catedral, lugar que todos os peregrinos reconhecem como fim do
caminho; ou, depois de lá chegar, Finisterra.

E esta ideia de caminho vai, por tanto, ao encontro das palavras do poeta António Machado: o
essencial do caminho é o caminho pessoal, individual, feito de existência no caminho, e que
marca o ser em si. Talvez iniciaria o poema de Machado com

Caminante, hay Camino: ¡tu camino!

Caminante, son tus huellas el camino y nada más.

Há um Caminho, o caminho de cada um, qualquer que seja a estrada percorrida.

O Caminho de si

Pois fazer o Caminho é uma procura de si:

• do que cada um de nós é, do seu Dasein (Heidegger),

• e do que nos rodeia, que incorporamos e com que interagimos, nas estradas e trilhos
propostos.

Parece que tudo começa em vivências propriocetivas estranhas, pouco usuais: os pés, as
costas, peso da mochila, os joelhos, o calor; que interagem com o que nos rodeia momento a
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momento (os bosques, os camiões, os outros caminhantes, o empregado de mesa) e que se


misturam com o que temos sido até então.

Fazer o Caminho foi para mim compreender uma pertença estranhamente sentida, porque
procurei também neste o que se encontra noutros caminhos. E foi sentir a pertença a uma
cultura, a uma civilização com valores determinantes:

• em que a fé – uma das fés no Livro – é fundamental, fundadora do Caminho e da


Europa, unindo histórica e miticamente o oriente e o Finisterra aqui já ao lado; uma fé
tanto como veio cultural como necessidade de ligação ao transcendente; talvez tenha
percebido melhor porque se fala dos “estúpidos ateus”;
• uma civilização em que a vida é um valor primeiro, implicando sobreviver, estar o
melhor possível e assegurar-se disso mesmo durante todo o Caminho; que é,
metaforicamente, a própria vida;
• em que esse estar o melhor possível implica não só o respeito como a bondade dos
outros e para com os outros, num humanismo que passa pela hospitalidade, pelo
respeito da alteridade; no Caminho de Santiago esta bondade tem contornos
ancestrais pois o Caminho é a bondade para com o Peregrino.
• uma civilização onde há rituais de múltipla índole que, mais do que diferenciar quem
os pratica, unem - religam – pessoas diversas, de origens distantes. O Caminho é um
ritual que une o que parece disperso.

Fazer o Caminho de Santiago foi, também, ir ao encontro de uma pertença, de uma


identidade, dessa cultura ancestral da Europa que somos.

Foi também partilhar brevíssimos momentos com uma jovem do Sul de Espanha que parou,
num bosque antes de Pontevedra, a ver um verme atravessar o trilho; reencontrar
repetidamente um casal de jovens italianas, num jantar comunitário, depois na estrada no
calor do Verão, noutro dia enrolando cigarros num café, lutando com o cansaço do caminho,
apoiando-se mutuamente. Foi chegar ao convento de Santo António de Hebrón, paragem
estranha, quase destino, lugar com um misticismo inusitado no meio de campos de pimentos,
verdes minhotos e casas pouco cuidadas. E, chegado ao destino, ver a Catedral e não rezar,
mas respeitar aqueles que têm naquela fé o seu caminho: parece ser da maior importância ter
uma fé. Pois o Caminho é, também, a procura de Deus: dentro de si, no percurso, no tempo.

____________________________________Porto 18/11/2020_________________________

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