Você está na página 1de 11

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO


CURSO DE PSICOLOGIA

RENATA FREITAS

“SONHOS ROUBADOS”

Porto Alegre
2022
RENATA FREITAS

“SONHOS ROUBADOS”

Trabalho apresentado, resenha do filme,


para a disciplina Psicologia do
Adolescente, pelo Curso de Psicologia da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS, ministrada pela professora
Fernanda Hampe Picon.

Porto Alegre
2022
2

Sonhos Roubados estreou no ano de 2010 sob direção de Sandra Werneck. Em seu
elenco mais notório assistimos a Nanda Costa, Kika Farias e Marieta Severo. A
diretora se inspirou no livro “As meninas da Esquina”, para produzir este filme sobre
o olhar feminino de três garotas da periferia, retratando suas adolescências em
situações complexas envolvendo as comunidades, o tráfico de drogas e a violência.

A autora Ana Mercês Bahia Bock, pontua que "A adolescência é vista como
construção social com repercussões na subjetividade e no desenvolvimento do
homem moderno e não como um período natural do desenvolvimento. É um
momento significado, interpretado e construído pelos homens." (2007, p.6)

Em seu artigo “Sonhos Roubados. in: Adolescência em Cartaz.”, Diana Corso nos
propõe uma perversa e dolorosa reflexão, ao passo que

“Se a adolescência é caracterizada pela abertura para o questionamento e


para a escolha de um destino, se é uma etapa em que se espera que o
sujeito se posicione ante uma gama de possibilidades, quais seriam as
alternativas para que um morador da favela vivesse uma genuína
adolescência?”
3

O filme é um relato autêntico da exploração sexual de adolescentes moradoras de


uma comunidade carente, desigualdades (sociais, econômicas, educacionais,
parentais, de gênero, de raça etc.) e conta o drama das adolescentes - Jéssica
(Nanda Costa), Daiane (Amanda Diniz) e Sabrina (Kika Farias) - que moram em uma
comunidade carioca e que acabam sendo vítimas da exploração sexual como
maneira de complementar o orçamento doméstico e/ou alcançar seus sonhos e
desejos de consumo, sejam eles questionáveis ou não. Não há espaço para
moralidade.

No filme, as meninas de “Sonhos Roubados” conhecem o sexo desde cedo e, na


falta de outros espaços de empoderamento, usam a sensualidade e a sexualidade
para se afirmar e se sustentar. A pobreza, a fragilidade da estrutura familiar e a falta
de perspectivas atingem as principais personagens de diferentes maneiras, todas
elas perpassando o desconforto em não ter autonomia ou poder de decisão real
sobre suas vidas, onde cada uma delas tenta reagir como pode.

Jessica, 17 anos, órfã, mãe solteira, vive com seu avô Horácio, se prostitui para
sustentar a filha Britney, mas quase perde a guarda da criança por não ter um
emprego fixo. Ela tenta ser durona e obter poder através de sua sensualidade. “A
pessoa tem que ralar muito para ser gostosa”, ela diz.

Sabrina é expulsa de casa pela mãe, carente de afeto e atrás de um futuro melhor
se apaixona por um traficante, engravida e acaba nas ruas. Durante o dia entrega
panfletos no sinal e à noite faz programas.

Daiane é a mais nova, 14 anos, nunca conheceu a mãe e os irmãos, então ela vive
em busca do afeto de seu pai ausente, mora com a tia e o tio, de quem sofre abusos
sexuais. Ela faz de tudo para tornar reais seus rituais de passagem para a vida
adulta, negando a própria infância, que ela parece associar com a fragilidade.
4

Ser objeto do desejo de homens poderosos, poder comprar roupas bonitas, ter um
celular, pintar os cabelos e frequentar o baile: eis as formas de empoderamento
disponíveis para as jovens.

Silvia Nunes, em "Maternidade na adolescência e biopoder", coloca luz sobre

"Um aspecto fundamental na constituição da maternidade na adolescência


como um problema social a ser combatido é o fato de que tanto os
discursos oficiais quanto aqueles veiculados pela mídia tratam a questão a
partir de uma perspectiva universalizante (HEILBORN, 2006), na qual ela é
vista sempre como um trauma ou estorvo para os personagens nele
envolvidos, como um fenômeno a-histórico, e como um risco ligado à
própria adolescência."

E adiciona,

“É importante lembrar que a maternidade antes dos 20 anos até décadas


atrás não se constituía em assunto alarmante. Ao contrário, era até bem-
vinda quando dentro de um projeto matrimonial. Como lembra Bassanezi,
as moças com mais de 20 anos, sem perspectivas de casamento, eram
vistas como “encalhadas”, sendo aos 25 consideradas “solteironas”.
(BASSANEZI, 1997).
Na atualidade, esse panorama se modificou e a maternidade antes dos 20
anos passou a ser percebida como “desvio”, e potencial ameaça à ordem
social.”
5

Os personagens aproveitam as oportunidades para sobreviver e para o crescimento.


O sexo fácil, sem pudores, por dinheiro e por comida. “Eu não tô na vida. Só faço
isso pela minha filha”, diz. O contraste maior é o real querer. Elas buscam o príncipe
encantado, ao som do funk, entre motos barulhentas e correntes de ouro, festas de
aniversário de 15 anos e calças da “gang”. “O que adianta ter 17 anos se eu não
posso ir pro baile”, revolta-se uma delas. “A geladeira vem até com comida dentro”,
diz uma das adolescentes quando encontra um homem de posses, sem se importar
com a origem desta grana. “Mulher minha tem que ter tv de plasma”, ele diz.

“Tenho medo de acabar louca que nem a minha mãe”, “Presa por causa de ex-sogra
é dose”, “Ninguém é de ninguém”, frases realistas em um contexto realista, com
ações ingênuas. A figura de uma mãe é criada para suprir a indiferença de um pai.
Mesmo sem querer, o meio transforma a pessoa. Regras limitam ações. O
impedimento de entrar em um Conselho Tutelar por causa da roupa. Há os clichês
básicos para abrandar os sonhos. As relações familiares por medo de processos. “ –
Pai, fica para o bolo. – Não faz parte do negócio”, dialogam em um mundo sujo,
cruel e real.

O agravamento destes problemas é cavado pela própria pessoa. A falta de cuidados


interfere na realidade como uma visão fatídica. “Quero que conheça a minha
realidade”, diz uma personagem a um preso mostrando a sua filha. Depois de tudo,
a vida volta ao normal. É um respiro para que novos problemas possam ser
vivenciados e novos erros cometidos. Há o esforço para dosar a poesia e a
6

realidade. Abrandar os temas. Mas na maioria das vezes o que acontece é


apresentar a omissão.

Como descrição da sinopse do filme, a seguinte frase:

"No entanto, mesmo nesse quadro de absoluta incerteza e total falta de


horizontes, elas teimam em amar, se divertir e sonhar com um futuro
melhor."

Teimam em amar? Teimam em se divertir? Teimam em sonhar?

E segue,

"Elas eventualmente se prostituem, no intuito de conseguir dinheiro para


satisfazer seus sonhos de consumo. Entretanto, mesmo com os problemas
do dia a dia, elas tentam se divertir e sonhar com um mundo melhor”.

Tentam se divertir? Tentam sonhar um mundo melhor? O que nos diz o tentar? Por
que o uso deste verbo?

Diana Corso corrobora nessa perspectiva:

“No que diz respeito às meninas, sua trajetória acaba sempre associada ao
corpo. As garotas de que nos ocupamos aqui enfrentam sistemáticos
abusos, violência, maternidades precoces e, acuadas por esses traumas,
muitas acabam transitando pela prostituição. Apesar disso, tentam ser
adolescentes românticas, festeiras e livres.”

Novamente “tentam”. Essa amostra brutal de interpretação, produzida na bolha da


intelectualidade, é fruto de uma sociedade que insiste em invisibilizar suas
desigualdades, as crianças, os e as adolescentes, as mulheres, as raças, os
gêneros que não ocupam (não conseguem ocupar) espaço na normatividade
predominante. Questões estas que clamam por compreensão de que falar sobre
elas é, sobretudo, fazer um debate estrutural. É necessário pensar como esse
sistema vem beneficiando economicamente, inclusive, toda a história de uma parte
da população, ao passo que a outra, tratada como mercadoria, não tem acesso a
7

direitos básicos e à distribuição de riquezas. É importante ter em mente que para


pensar soluções para uma realidade, é preciso tirá-la da invisibilidade. Portanto,
frases como “mesmo com os problemas do dia a dia, elas tentam se divertir e sonhar
com um mundo melhor” não ajudam. Esse olhar moralista, que julga, e
discriminatório para a sobrevivência dos sonhos reverbera como subjetividade
fundante para segregar e oprimir.

O longa nos permite, ainda, refletir sobre outra questão importante relacionada ao
apagamento do afro. Personagens brancas usam artifícios para buscar retratar uma
realidade das meninas adolescentes negras das favelas do Rio de Janeiro. Onde
estariam (estão) as atrizes negras?

A psicanalista Neusa Santos, autora de Tornar-se negro, de 1983, um dos primeiros


trabalhos sobre a questão racial na psicologia, afirma que:

a sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o


negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de ser tratado, os
padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra
e posição social inferior.

Em artigo para a Folha, o psicanalista Contardo Calligaris faz um elogio dessa


resiliência (de menina, de mulher, de mãe, de negra): “Nessas condições
8

francamente adversas, elas não deixam de inventar a vida. Jéssica e Sabrina não
desistem de ser mães. Daiane não desiste de encontrar uma profissão e uma família
– se não um pai, pelo menos uma mãe. As três não desistem de sair à noite à
procura de um amor que nunca dá certo, de um pouco de aventura e de umas
risadas entre amigas.”

Calligaris não deixa de notar os homens, na escolha pela não ocupação de seu
espaço, apresentados pelo filme. “Com esses homens, Jéssica, Sabrina e Daiane
não podem contar. Eles são sombras, incapazes de assumir um amor (seja ele
paterno ou conjugal), uma amizade e, na verdade, qualquer compromisso: são todos
nanicos morais. A única exceção é o presidiário encarnado por MV Bill. Nas
periferias e nas favelas, os núcleos familiares estáveis se organizam, em geral, ao
redor de mulheres.”

Corso (2018, p. 9) esclarece e elucida esse não lugar ao nos dizer que: "Os homens
reduzidos à sua força bruta e as mulheres identificadas ao sexo e à maternidade não
se sentem valendo como pais e mães. Não serão, portanto, capazes de transmitir
aos filhos ensinamentos decorrentes de sua experiência e aprendidos com seus
ancestrais. É preciso que eles sejam capazes de sentir-se parte de alguma história,
que por sua vez tenham recursos para contar, para que possam ocupar esses
lugares parentais. Essa capacidade narrativa é ferramenta imprescindível para
colocar os filhos numa linha do tempo, que torna os pais e os avós personagens do
passado e faz, com filhos e netos, a trama de seu futuro."

O filme é primoroso ao mostrar seu desejo de escancarar o ambiente vivido. Expõe


os sonhos limitados, o desejo de continuar seguindo em frente, mesmo com todas
as adversidades.
9

Novamente, Calligaris conclui: “Pois bem, as meninas de "Sonhos Roubados" não


renunciam ao sexo nem à maternidade; elas podem até se servir de seus charmes
para arredondar o fim de mês ou o fim de semana. Mas não por isso elas dependem
dos homens. Talvez seja porque não há homens de quem depender. Talvez seja
porque elas são as novas mulheres - mulheres sem a culpa de serem "mulher".”

E, por fim, NUNES alude

"Ora, no que concerne à juventude brasileira das camadas populares a


probabilidade de se destacar no campo produtivo é bastante limitada,
devido à ostensiva desigualdade na distribuição do gozo que caracteriza a
nossa história e à ausência de um Estado que regule minimamente essa
repartição. Tal quadro agravou-se com a recente inserção do país no
modelo neoliberal, que intensificou bastante essas marcas fundadoras
(BIRMAN, 2006b).
É com essa conjuntura que nossas adolescentes estão confrontadas e na
qual vão ter que encontrar destinos para suas potencialidades, seu
erotismo, angústias e inseguranças. Nesse contexto, a maternidade pode se
tornar um projeto muito bem-vindo. Projeto que, com muita frequência,
revela-se como o único ideal capaz de assegurar a essas jovens um lugar
social valorizado por elas e por seus pares e, consequentemente, a
possibilidade de satisfação pessoal e da necessidade de reconhecimento
pelo outro."

E é por isso que, contudo, a gravidez para muitas dessas adolescentes meninas e
meninas adolescentes é o que sustenta a vida. Depois da gravidez existe a
possibilidade de olhar para outras dimensões de cuidados (antes negligenciados e
esquecidos). Esse novo pulsar permite tomar mais decisões de pulsões do que de
destruição. É um seguir para uma vida que se quer viável.
10

REFERÊNCIAS

Filme Sonhos Roubados. Origem: Brasil, 2009. Gênero: Drama. Direção: Sandra
Werneck.

CORSO, Diana; CORSO, Mário. Sonhos Roubados. in: Adolescência em Cartaz.


Porto Alegre: Artmed, 2018.

NUNES, Silvia. Maternidade na adolescência e biopoder.

BOCK, Ana Mercês. A adolescência como construção social. Rev. Ass. Bras. Psic.
Escolar, 2007.

RIBEIRO, D. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

CALLIGARIS, Contardo. Novas Mulheres. Folha de S.Paulo, São Paulo, 29/04/2010.


Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2904201028.htm. Acesso
em: 28/05/2022.

Você também pode gostar