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CAPÍTULO 10

CASOS CLÍNICOS
Rosa Maria Lopes Affonso

A seguir, relatarei alguns casos clínicos, como ilustração do uso da técnica


ludodiagnóstica.

Caso Berenice

Identificação
Trata-se de uma criança de 7 anos e 2 meses, do sexo feminino, a quem chamarei
de Berenice. Ela frequentava o primeiro ano do ensino fundamental e o nível
socioeconômico familiar era classe baixa.

Queixa
A mãe procurou a clínica por solicitação da escola, pois a menina apresentava
dificuldades de aprendizagem e comportamento agitado no ambiente escolar. Além disso, a
mãe relatou que Berenice não obedecia às suas ordens, corria o tempo todo, era malcriada,
respondona e só falava gritando, comportando-se de maneira oposta à da irmã. Berenice
tem uma irmã gêmea a quem daremos o nome de Bárbara

Síntese da anamnese
A mãe não se lembrava de quando esse comportamento havia começado, mas
afirmava que até uns 3 anos de idade Berenice era um amor, calma e apresentava-se como
uma criança normal.
Atualmente, quando contrariada, colocava os dedos na boca. A mãe relatou que
quando a criança apresentava esse comportamento não conseguia ter paciência, começava a
gritar com ela e às vezes batia nela. Aos 5 anos de idade a mãe levou-a a uma psicóloga, a
pedido da escola, e esta orientou-a a conversar mais com Berenice, mas sem deixar de
colocar limites. Na época a mãe admitiu que não sabia dizer “não” para suas filhas.
A mãe relatou que a psicóloga encaminhara Berenice ao neurologista e ao
fonoaudiólogo, pois a menina apresentava dificuldades para decifrar as cores, contar os
números e acompanhar as atividades na escola. O exame neurológico demonstrou atividade
irritativa generalizada, o que justificava a sua agitação. Segundo a mãe, o neurologista
receitou um medicamento para que Berenice pudesse ficar “mais calma, menos elétrica e
agitada”.
Na escola, a diretora propôs que a menina mudasse de sala, pois não estava
conseguindo acompanhar as atividades da turma. Na época a mãe concordara com a
sugestão, mas Berenice reclamava por não ter atividades para fazer e só ficar brincando
com massinha. A mãe constantemente comparava Berenice com a irmã, dizendo: “A irmã
faz tudo direitinho, os brinquedos são arrumadinhos, enquanto a ‘outra’ acaba mais rápido
com as bonecas, são todas riscadas, sem braços As roupas e os sapatos acabam primeiro
que os da irmã”. A mãe fazia esse tipo de comparação na frente de Berenice, mas dizia que
esta não demonstrava ligar para as comparações. Afirmava não aguentar mais o
comportamento da filha, frisando que, se esta continuasse assim, iria enlouquecer.
Berenice apresentava dores nas pernas e na cabeça, e diante destes sintomas os pais
demonstravam grande preocupação, porém os exames médicos nada acusavam. Segundo a
mãe, a menina dizia que sentia a dor quando encostavam na cabeça dela, e a mãe acreditava
que o couro cabeludo da filha era solto, por isso as dores na cabeça.
A mãe de Berenice trabalhava há 17 anos como empregada doméstica e o pai estava
desempregado, mas trabalhava fazendo “bicos” como pintor. A relação entre ambos era
bastante conflituosa. Brigavam na frente das crianças e não demonstravam respeito um
pelo outro. A mãe comentou que não conseguia ficar calada e que gritava e dizia coisas
desagradáveis ou palavrões quando brigavam. Os motivos das brigas eram relacionados
com a educação das crianças e as responsabilidades financeiras.
Diante das brigas, as crianças ficavam quietas no canto, vendo tudo. A mãe
mencionou que, quando Berenice tinha apenas 4 anos, presenciara uma briga muito feia
entre eles: o marido pediu para ela bater em seu rosto, tendo ela lhe dado um tapa, e na,
sequência, ele deu-lhe um soco, que a derrubou no chão. Diante dessa cena, as crianças
começaram a gritar, mas a mãe acreditava que elas já não se lembravam desse fato.
Segundo o pai, diante dos comportamentos da filha ele procurava chamar a atenção
dela, pedindo constantemente para que ficasse quieta. Já a mãe deixava as crianças fazerem
o que quisessem dela, frisando que elas a faziam de “gato e sapato”. Comentou que às
vezes a mãe estava atrasada para levar as meninas à escola, mas se elas pediam para pentear
o cabelo dela, ela deixava, e com isso se atrasava mais ainda. O pai dizia que a mãe não
conseguia estabelecer alguns limites e que, quando saíam juntas, se as meninas quisessem
salgadinhos ela comprava, e se passassem em uma barraca de cachorro-quente ela
comprava, mesmo já tendo comprado o salgadinho; se passasse em outra barraca de
cachorro-quente e as meninas quisessem jogar fora o que haviam comprado, ela comprava
outro.
Relatou que, quando Berenice chegava da escola, ia tirando a roupa no meio da casa
e ia para o banheiro tomar banho. Acrescentou que, se a mãe comprasse um batom para
Berenice e ela o destruísse, no outro dia a mãe já aparecia com outro, não ensinado a ela
que não poderia destruir o que tinha.
O pai comentou que não estava de acordo com o comportamento de Berenice,
considerando-o inadequado. Disse que quando estava em casa conseguia colocar limites,
pedia para juntarem as coisas espalhadas, ao que as crianças obedeciam. Afirmou que
quando levava algum presente para as crianças procurava ensinar que este deveria ser
conservado e que não se deve ficar desperdiçando.
Em relação às discordâncias do casal, o pai afirmou que às vezes era possível que a
mãe aceitasse as suas intervenções, mas na maioria das vezes ele era desvalorizado na frente
das crianças. O relacionamento do casal era permeado de cobranças, e a mãe não aprovava
o comportamento do pai de sair com os amigos para tomar alguma coisa e chegar tarde em
casa. Com relação à casa, a mãe decidia o que era melhor e não havia conflitos sobre isso.
Segundo a mãe, sua relação com as crianças era muito boa e ela tentava deixá-las à
vontade, fazendo o que quisessem dela. Mencionou que Berenice adorava mexer em seus
cabelos, pelo fato de ter o cabelo “duro”. Considerava Berenice muito apegada a ela e dizia
que as pessoas comentavam que ela a mimava muito, por isso ela se comportava assim. Em
seu relato, afirmou que Berenice exigia muito mais dela do que a irmã. A mãe ressaltou
ainda que as crianças respeitavam mais o pai do que a ela.
O pai afirmava que Berenice era muito dependente da irmã e ficava todo o tempo
pedindo para que esta buscasse as suas coisas e fizesse a sua lição, mas quando o pai estava
presente evitava esse tipo de comportamento. Disse tentar estabelecer alguns limites, para
que ela fizesse as suas atividades sozinha e não ficasse pedindo para sua irmã fazê-las.
Afirmou que costumava brincar com as crianças e elas se divertiam.
A mãe levava as crianças ao pediatra uma vez por mês ou a cada dois meses. Dizia
ser uma mãe muito preocupada com as suas filhas e, sempre que podia, conversava com
elas. Dizia que as filhas brigavam, mas acreditava ser coisa de criança. Comentou que
Berenice não era bem vista pelas outras crianças, que ninguém a suportava e quando ela se
aproximava, diziam: “Lá vem essa menina”. Segundo ela, Berenice preferia brincar com
meninos do que com meninas e adorava o afilhado do pai, que tinha 4 anos.
A mãe também afirmava que o pai das meninas era mais rigoroso com as crianças
do que ela e que em situações nas quais as crianças pediam coisas ela não conseguia dizer
não. Relatou que às vezes o pai colocava as crianças de castigo, e quando ela chegava as
tirava do castigo, não permitindo que o pai tivesse autoridade sobre elas. Sua vizinha
achava que ela batia em Berenice com “pena” e dizia que a criança precisava de uma surra
bem dada, pois não tinha limites. A mãe disse que preferia conversar do que bater e não
conseguia ser firme com Berenice; até tentava, mas depois cedia, deixando-a fazer tudo o
que quisesse.
A mãe dizia ter uma vida muito corrida e ser uma pessoa organizada, apesar de não
colocar sempre as coisas no seu devido lugar, mas afirmava não poder contar com a
colaboração do marido e das crianças. A família apresentava dificuldades financeiras, sendo
a renda familiar de mil reais por mês. A mãe informava não ter condições de pagar o
tratamento de sua filha, não possuir convênio médico e seu marido estar sem trabalhar,
fazendo apenas “bicos”, quando apareciam. Dizia ser muito dolorido não poder dar o que
suas filhas pediam. Afirmava que Berenice compreendia quando ela não podia dar o que ela
solicitava.
Em momentos de lazer, a família se reunia para ir a festas de aniversários. A mãe
comentou que tomava “algumas cervejinhas” nos finais de semana e afirmava não deixar as
crianças com ninguém para poder sair. Disse que sempre que saía elas estavam junto, e
sempre que podia comemorava os aniversários das filhas.

História da família e herança


Na história da família de Berenice existiam casos de doenças mentais, diabetes e
pessoas com alergia. Segundo a mãe, quando a menina caía e se machucava, ficava com
alergia no local, tal qual sua mãe (avó de Berenice); a mancha logo aparecia, ela não sabia
por quê. Comentou também que sua mãe e mais três tios maternos tinham diabetes. Ela
relatou que sua família era grande e tinha muitos sobrinhos, sendo o mais velho com 30
anos e a mais nova, com apenas 1 ano. Os avós maternos e paternos de Berenice moravam
em Recife, e as crianças já haviam viajado duas vezes para a casa deles.
A mãe contou que, quando morava com seus pais, sempre procurava ajudar. Disse
sentir saudade do tempo em que morava junto com eles, do cuidado que eles tinham com
ela, da união da família. Relatou ter saído de casa porque existia muita repressão com
relação à sexualidade, não se podia “transar” antes do casamento, pois seus pais não
aprovavam. Retornara após um ano e meio para a casa dos pais, para visitá-los, e fora bem
recebida. Fez questão de frisar que sempre ajudou muito a eles.
A mãe de Berenice relatou ainda ser muito parecida com sua mãe. Comentou que
esta sempre cedia aos seus pedidos. Mencionou também que sua mãe era muito exigente
com relação à limpeza da casa e que seu pai não ligava muito para isso. Ela se identificava
com o seu pai nesse aspecto, dizendo que casa é feita para limpar e depois sujar.
Os familiares mais próximos naquela época eram o irmão do marido, a esposa e
uma tia dele. Segundo a mãe, a relação de Berenice com os familiares era boa e a menina
gostava de manter contato com crianças menores e com idosos. Comentou que sua
cunhada estava esperando um bebê e que Berenice estava superansiosa com a chegada dele.
Berenice era então vista pela família como uma criança que havia melhorado bastante,
conseguindo até ficar sentada, pois antes era vista como um furacão. A mãe atribuía essa
mudança de comportamento ao fato de a criança estar tomando um medicamento que o
médico receitara para acalmá-la.
Os pais de Berenice haviam se conhecido na festa de aniversário de uma amiga e,
após alguns dias, iniciaram o namoro. Namoraram durante dois anos e a decisão de morar
juntos partiu dele. No início houve uma resistência por parte dela, pois morava sozinha
com uma amiga, tinha a liberdade de viajar, sair para ir a forrós, e o marido não gostava.
Ela lamentava não poder mais fazer o que fazia antes, pois tinha as crianças, o marido e a
casa para cuidar. Relatou que, após seis meses morando de aluguel, haviam conseguido
conquistar sua própria casa. O marido colaborava com as responsabilidades financeiras e
também ajudava a cuidar das crianças.

Antecedentes pessoais - história da criança


Segundo a mãe, ela engravidara após mais ou menos um ano de união com o
marido, não se lembrando exatamente quando. A gravidez fora normal, embora não tivesse
sido planejada. A notícia fora recebida com um susto. No início o pai não acreditara, mas
depois compreendeu, ficou contente e disse que iria ajudar.
A mãe realizou o pré-natal, o acompanhamento necessário e seguiu todas as
orientações do médico, mas o pai não podia acompanhá-la nas consultas por conta da
distância, pois o médico era próximo ao trabalho dela. Ela disse que não teve nenhum
problema de saúde nem enjoo durante gravidez. Relatou que comia de tudo, dormia bem e
trabalhara como doméstica até um dia antes de ganhar as crianças. Conta que na época em
que estava grávida ainda estava estudando. Comentou ter sofrido dois abortos espontâneos
antes do nascimento das filhas, que nasceram com oito meses de gestação. A escolha dos
nomes foi feita por ambos os pais.
O parto de Berenice precisou ser através de cesárea, pois as crianças não estavam
na posição correta para nascer de parto normal.
A mãe afirmou ter ficado muito feliz e emocionada no momento em que as
crianças nasceram. Mencionou que o pai não pôde acompanhá-la ao hospital, pois ela
estava sozinha em casa quando começou a sentir as dores e resolveu ir para o hospital.
Contou que quem nasceu primeiro foi Berenice e logo depois nasceu Bárbara As meninas
são gêmeas idênticas.
Após chegar da maternidade, durante os três primeiros meses, a mãe recebeu ajuda
da avó materna e da tia das crianças para cuidar destas. Berenice nasceu com 2,205 kg e
Bárbara nasceu com 2,105 kg. A mãe comentou que as crianças eram bem pequenas e disse
não se lembrar exatamente do tamanho das duas. Afirmou que foi realizado o teste do
pezinho e que estava tudo normal com as crianças.
Segundo a mãe, ela ficou no hospital durante 48 horas. Berenice foi para casa e
depois de um dia teve que retornar ao hospital por estar com icterícia. A mãe disse ter
ficado arrasada e chorado bastante, mas no dia seguinte Berenice teve alta, e antes mesmo
de receber a notícia ela já estava no hospital.
As crianças não tiveram dificuldade em pegar o bico do seio e mamaram no peito
até os 5 meses, quando a licença-maternidade da mãe terminou. No período da
amamentação foi necessária a complementação com outro leite, pois a mãe não tinha leite
suficiente para as duas crianças. A introdução de outros alimentos ocorreu a partir do
quarto mês.
A mãe informou que o uso de chupeta pelas meninas foi até os 2 ou 3 anos e elas
pararam de usá-la quando Berenice ficou com uma infecção na boca por conta da chupeta
suja. Após esse acontecimento, as duas pararam juntas de usar chupeta. Segundo a mãe, na
época da anamnese, Berenice chupava o dedo e, por mais que ela tentasse orientá-la a
parar, a filha não a obedecia.
Em relação à alimentação, a mãe revelou que Berenice gostava de arroz, feijão e
adorava peixe. As crianças tinham horário certo para comer, almoçando às 12h e jantando
por volta das 19h. O pai comentou que não possuía o hábito de jantar com as crianças,
pois chegava muito tarde e elas já estavam dormindo. Segundo ele, no momento das
refeições e nos horários de fazer as lições de casa, a televisão ficava desligada.
Em relação ao sono, Berenice apresentava medo de dormir sozinha desde os 3
anos, dizia ter medo de monstro e reclamava de dor. A mãe comentou que fazia pouco
tempo que a filha deixara de dormir com os pais. Revelou que a psicóloga a orientara a ser
firme com Berenice e que esta conduta funcionou. O pai também mencionou a dificuldade
de orientação para a filha, dizendo que somente após a orientação da psicóloga Berenice
passou a dormir em sua própria cama. Na época ela dormia sozinha e com a luz apagada.
Segundo a mãe, no período em que Berenice dormia junto com os pais na cama, eles não
tinham relações sexuais.
Quanto ao desenvolvimento motor, Berenice começou a andar com um 1 ano e
meio, e a irmã, com 1 ano e quatro meses. A mãe relatou que Berenice caía muito e corria
demais, apresentando constante tremor em sua perna direita, que parecia fraca. Comentou
que as duas crianças começaram a engatinhar com seis meses, e Berenice começou a sentar
e a ficar “durinha” com seis meses. Segundo a mãe, Berenice escrevia com a mão direita.
Em relação ao controle dos esfíncteres, Berenice parou de usar fraldas com 2 anos
de idade. Para treinar as meninas, a mãe utilizava penicos de bichinhos, e as crianças
adoravam. Ela contou que não ficava esperando as meninas pedirem para ir ao banheiro,
estimulava-as, sempre perguntando para elas se estavam com vontade de ir ao banheiro, até
elas se acostumarem a pedir. A mãe relatou que, dois dias antes de ser levada até a clínica,
Berenice fizera xixi na calcinha e, à noite, na cama.
A mãe contou que Berenice gostava de se arrumar sozinha, mas não era possível
permitir isso, por falta de tempo, pois não podiam chegar atrasadas à escola. A casa era
pequena, com apenas um banheiro para quatro pessoas se arrumarem, por isso era
necessária a ajuda dela. A mãe contou ainda que Berenice começou a pedir para se cuidar
sozinha desde os 4 anos e se preocupava com a aparência, dizendo que quando crescesse
teria cabelo comprido e o pintaria de loiro. A mãe mencionou que Berenice se preocupava
com o fato de seu cabelo ser crespo, adorava fazer penteados e já pensava em namorar.
Quanto ao desenvolvimento da linguagem, a mãe contou que as duas meninas
começaram a falar aos 2 anos, porém quando tinham em torno de oito meses falavam
“dadá”, “mama”, algumas coisas, mas ressaltou que aos 2 anos é que de fato passaram a
falar tudo.
Em relação ao interesse pela sexualidade, segundo mãe, Berenice nunca perguntara
sobre sexo, somente Bárbara apresentara tal interesse. Relatou que Bárbara perguntara o
que era transar, mas ela se negara a responder. Após um tempo, Bárbara vira numa novela
um casal dormindo junto e se beijando na boca, então dissera para a mãe que havia visto o
que ela não tinha respondido.
Berenice demonstrou interesse em saber como havia nascido, e a mãe conseguiu
explicar dizendo que foi após o médico ter cortado a sua barriga. Comentou que a filha
acreditou e que nunca demonstrou interesse em saber como entrou na sua barriga. A mãe
considerava a idade da menina inadequada para esse tipo de curiosidade e acreditava que a
idade mais adequada seria após os 12 anos. Comentou que o órgão sexual do homem era
chamado pelas crianças de pipiu e o órgão sexual da mulher, de xexeca.
Em relação a manipulações e tiques, segundo a mãe, Berenice chupava o dedo nos
momentos em que ficava irritada e quando ia dormir, e ela ameaçava a filha de colocar
pimenta em seu dedo ou fazia promessas de dar tudo o que ela quisesse, caso ela parasse.
A mãe contou existir uma rotina onde a filha tinha atividades e fazia cinco refeições
por dia na escola. Berenice dormia na escola aproximadamente duas horas, mas a mãe não
sabia exatamente por quanto tempo. Mencionou que a filha era uma criança muita agitada e
elétrica e já recebera vários bilhetes e reclamações da diretora e da professora.
O pai não participava das reuniões escolares das crianças, alegando que a escola
ficava mais próxima do local de trabalho da mãe. Segundo o pai, a escola não demonstrava
interesse no rendimento das crianças, não tinha interesse em ajudar, simplesmente sendo
dito aos pais que a criança estava com problemas e não se sendo tomada uma atitude para
mudar a situação. A mãe comentou que, quando a professora a chamou pela primeira vez
para conversar sobre Berenice, aquela disse que sua filha precisava de ajuda, e que talvez a
menina fosse doente mental. Relatou que quando a professora disse isso, ela demonstrou
dificuldade em aceitar essa situação, procurou uma psicóloga e esta deu uma outra
orientação. De acordo com a mãe, a psicóloga orientou-a para que Berenice fosse mais
estimulada, a fim de poder acompanhar as outras crianças. Segundo a mãe, na escola
anterior Berenice era mais estimulada.
A mãe relatou que, pelo fato de Berenice ter mudado de classe, não tinha mais
caderno para escrever em casa, pois sua filha fazia as atividades que a escola dava lá
mesmo. Em casa havia uma pasta com algumas atividades e um caderno de desenho.
Berenice estava indo para o segundo ano e ainda não sabia escrever seu próprio nome.
Também apresentava dificuldades com os números, contando só até 4 e acreditando que o
próximo número era 6. O pai contou que participava e ajudava nos estudos das crianças e
disse que quando Berenice ia fazer a lição ele pedia para ela depois mostrá-la para ele.
Afirmou que colocava limites para a filha não brincar nesses momentos.
A mãe explicou que mudara as crianças de escola por causa do pagamento, pois em
escola de bairro era muito difícil conseguir bolsa e nas escolas próximas ao trabalho dela
era mais fácil. Segundo ela, no momento em que foi necessária a mudança, ela conversou
com as crianças e elas adoraram a ideia, pois nessa nova escola elas iriam andar de ônibus e
a mãe iria levá-las e buscá-las todos os dias. De acordo com a mãe, as crianças adoravam a
escola e não gostavam que ela chegasse mais cedo para buscá-las. A mãe contou que todo
fim de mês a escola promovia uma festa de aniversário para os aniversariantes do mês, e as
crianças ficavam superfelizes.
A mãe relatou que Berenice possuía amigos imaginários e vivia brincando de dar
aulas, gostando de se fazer de professora ou de diretora da escola. Segundo a mãe, a filha
falava algumas coisas erradas, como microfone, que ela insistia em pronunciar “ocofone”.
Aos 6 aos, a menina fora atendida por uma fonoaudióloga durante um ano.
Segundo a mãe, Berenice acreditava em Papai Noel, estando certa de que era ele
quem trazia os brinquedos no Natal. A mãe contou alimentar essa fantasia, reforçando para
as crianças que realmente era o Papai Noel quem trazia os brinquedos. Na Páscoa elas
pintavam o coelho, faziam as orelhas e acreditavam que era ele quem trazia os ovos de
Páscoa.
A mãe comentou que Berenice não apresentava nenhum tipo de preconceito, mas
sempre que via uma pessoa um pouco gorda perguntava se estava grávida. Segundo a mãe,
ela não planejava ter mais filhos, pois estava muito feliz com suas duas filhas e dizia que
educar não era fácil. Relatou ser católica, às vezes indo à missa com o marido e as crianças.
De acordo com ela, Berenice ficava inquieta na igreja e sempre que ia fazia muita bagunça.
Os pais não oficializaram o casamento, embora se sentissem casados. Berenice desejava que
os pais realizassem a cerimônia religiosa.
Segundo a mãe, o sonho de Berenice era ser dançarina quando crescesse. A filha
também dizia querer ser professora. Afirmou que procurava orientá-la, dizendo para
prestar atenção na escola, pois para conquistar as coisas era necessário estudar. Em relação
ao manejo do dinheiro, a mãe relatou que Berenice não tinha noção de valor, mas
comentou que ela adorava gastar com besteiras, doces e qualquer coisa que visse.
Na escola, Berenice praticava ginástica. Segundo a mãe, antes ela fazia natação, mas
como houve mudança de turma, teve que parar, e somente Bárbara continuara, porém
Berenice não chegara a se queixar.

Educação da criança
A mãe demonstrou em seu relato ter dificuldades educacionais, por não conseguir
dizer não para filha, o que impedia o amadurecimento da menina. Os pais não conseguiam
compactuar como casal, descordando entre si o tempo todo na frente das crianças, o que
impossibilitava que as filhas identificassem o certo e o errado.

Resultados dos testes realizados

Síntese do procedimento desenho-história


A criança apresenta atitude oposicionista frente às exigências do meio externo,
reagindo agressivamente. Representa que o seu conflito sádico está em atender as
demandas da vida escolar. Os resultados dos desenhos sugerem uma defasagem na
coordenação motora e intelectual. Sem perspectiva de solução evolutiva. Observa-se essa
defasagem no desenvolvimento perceptivo-motor, intelectual e emocional, com possível
comprometimento neurológico.

Síntese do teste Columbia


Os resultados da performance da criança encontram-se na média inferior em
comparação com a amostra de padronização. Sua capacidade intelectual é compatível com
a de crianças de 4 anos e 11 meses. Observa-se, desta forma, que a criança apresenta
prejuízo quanto à capacidade de abstração, elaboração e formação de conceito.

Síntese do Teste Gestáltico Visomotor de Bender


Os resultados encontram-se dentro do esperado para a idade.

Análise dos cadernos


As atividades propostas ainda são simples e é trabalhada a prontidão básica,
estimulando a percepção: dentro e fora, espaços e limites. As atividades são primitivas,
correspondendo ora ao jardim I, ora ao jardim II, portanto estão regredidas em relação à
idade da criança. Pode-se observar que a criança realiza atividades de correspondência e
pontilhados, típicas de crianças de 4 e 5 anos.
Observa-se nas atividades realizadas que não existe uma motricidade fina
compatível. A criança rabisca desenhos, não atentando a detalhes. Não esboça nos
desenhos livres um desenho socialmente reconhecível.
Não se identificaram atitudes reforçadoras para a estimulação da produção, pois
não há observações da professora nas atividades, e nos desenhos livres não há identificação
e nomeação das produções feitas pela criança.
Conclui-se que as produções realizadas são de uma criança de 4 ou 5 anos,
oscilando entre o jardim I e o jardim II, logo não apresentando condições para
alfabetização.

Transcrição da sessão ludodiagnóstica

Na recepção
– Oi Berenice!
– Ai, não, eu não quero sair daqui.
Ela esconde o rosto.
– Vamos lá?
– Ah, não, estou com preguiça.
– Berenice, eu vou te levar a uma sala para conversarmos e se quiser poderá voltar.
– Tá, tudo bem...
A mãe diz:
– E você não vai cumprimentar?
– Tá bom.
A menina me dá um beijo.
A mãe diz:
– Berenice, cuidado por causa da perna, hein? Sabe, hoje ela acordou já com esta
perna doendo e está com ela tremendo o dia todo.
– Tudo bem. Tomaremos cuidado, sim. Vamos lá, Berenice?
– Vamos
Sai pulando e dá a mão para mim. Não há indícios de comprometimento no andar.

Na sala
– Olha
Berenice para à porta e fica olhando a mesa cheia de brinquedos. Logo sai correndo
e os pega.
– Um espelho! E isso aqui o que é?
Aponta para o avião e e o pega.
– O que você acha? Você sabe por que está aqui?
Vira o avião e fica em silêncio.
– Ah, é um avião!
– Isso mesmo. Berenice tudo isto que está em cima da mesa são materiais que
poderão nos ajudar em nossas conversas. Estavam nesta caixa aqui e coloquei na mesa. Ao
final vamos guardar juntas.
– Ahã...
– Berenice você sabe por que está aqui hoje?
– Não.
Ela pega alguns rolos de massinha, começa a amassar e fazer bolinhas.
– O que a mamãe disse para você quando estavam vindo para cá hoje?
– Que eu ia na psicóloga.
– E o que é uma psicóloga?
– Sei lá, diz, amassando a massinha.
– Eu sei seu nome... Tia Rosa!
– Isso! Berenice, a mamãe e o papai estão preocupados porque você está com
dificuldades na escola.
– É isso mesmo.
Amassa com força a massinha sobre a mesa.
– Tia, o que é isso tudo na mesa?
– São os materiais que você poderá usar enquanto conversa comigo, para entender
o que está acontecendo com você, o porquê de você estar tendo essa dificuldade.
– Humm... E esta água aqui, é pra fazer o quê?
– Você pode usar como achar melhor.
– Oba!
Ameaça jogar a bacia d’água no chão, mas olha para mim.
– Vou jogar a massinha na água.
Pega o barbante e começa a enrolá-lo no pescoço.
– Berenice, e esta história que sua mãe contou da sua perna, o que é?
– Minha perna dói e eu caio muito.
– E por que acontece isso?
– Por quê? Não sei...
– A mamãe também contou que você está muito agitada e as atividades na escola
não saem direito. Como é isso?
– É assim mesmo.
Pega o papel laminado prateado, vira o lado que brilha para a mesa e coloca a
massinha sobre o papel. Enfileira as bolinhas que tinha feito, como se fossem um muro
entre mim e ela.
– O que é isso?
Ela aponta para as tintas
– O que você acha?
– É tinta. Aqui também tem pincel.
Pega os pincéis e as tintas verde, amarela e azul. Conforme vai pintando, repete o
nome das cores.
– Esta daqui é amarelo, né?
– Isso mesmo. O que é isso que você está fazendo?
– Ainda não vou te falar, só quando acabar.
– Tudo bem.
Vejo que ela vai misturando as cores no papel. Passa cola em volta do papel e troca
as cores das tintas.
– Percebo que você quer experimentar tudo o que está aqui. Misturar as cores,
amassar as massinhas. Será que isso também acontece na escola? A professora dá uma
atividade e você quer logo fazer, sem saber ao certo o que tem que fazer?
– A professora briga. Fala: “Sente-se, Berenice, faça a sua lição e pare de
conversar”. Agora vou pintar com as cores vermelho, preto e branco.
Pinta o papel com as novas cores. Tira as massinhas que formavam o muro e dobra
o papel laminado. Com o papel fechado em forma de um quadrado, faz um contorno com
a cola.
– Pronto, acabei este!
– E o que é Berenice?
– É uma casa.
– Hum... e quem mora nela?
– Ué, a cola e a tinta. Agora vou fazer outra coisa!
– E se a cola e a tinta fossem pessoas? Quem seriam?
– Não sei ainda.
Pega outro papel laminado prateado, abre e passa cola. Pega a tinta verde e, como
estava dura, ela põe a água da bacia, mas cai tudo de uma vez, esparramando na mesa. Ela
fecha o papel e passa cola nos dois lados dele. Espalha bastante cola, água e tinta verde
com a mão. Molha a mão na água e espalha mais cola.
– Pronto, acabei.
– E esse aí, o que é?
– É um tapete. Toma
Joga-o para mim e pego-o no ar, pois, do contrário, iria me sujar.
– Vou colocar junto com a casa, tudo bem?
A casa cai no chão. Ponho do lado da mesa.
– Ah, tá, tudo.
Pega outro papel laminado prateado.
– Agora eu vou fazer uma coisa que não posso contar pra ninguém.
– É, Berenice? Mas por quê?
– Este não. Não posso.
Abre o papel e passa bastante cola. Espalha tudo e põe legos coloridos em cima.
– Aqui são as cadeiras das meninas. Mas eu só quero as rosa.
Tira os legos verdes e amarelos e enfileira somente cinco legos cor-de-rosa.
– Que meninas são estas?
– As meninas. Elas vão sentar nestas cadeiras!
Fecha o papel e passa mais cola.
– Pronto, está pronto o presente.
– E para quem é o presente Berenice?
– Para você.
– Posso abrir, então?
– Não, não pode. É um presente.
– Tá.
Ao me entregar o presente, o papel se abre sozinho e os legos caem.
– Ah, não, estragou o presente!
Pega os legos, abre o papel, coloca-os novamente dentro dele e fecha-o.
– Nossa, você fez as unhas, tia!
Para e fica olhando a terapeuta.
– Você é bonita!
– Obrigada! Vou deixar o presente aqui junto com a casa e o tapete, tudo bem?
– Tudo.
– Acho que você está feliz de poder fazer atividades, falar sobre coisas de menina e
até quis me dar um presente de tão contente
Levanta, pega papel sulfite, lápis colorido, giz de cera e massinha e vai em direção à
cadeira de adulto que tem na sala.
– Vou fazer um desenho agora, mas você não pode ver, tá?
– Tudo bem.
Berenice vira-se de costa para a terapeuta, vai até uma cadeira distante da mesa e
desenha em cima da cadeira. Desenha duas linhas na vertical com giz de cera e coloca duas
bolinhas de massinha em cima.
– Acabei!
– Qual é o nome deste desenho, Berenice?
– O pintor.
– Conte-me uma história sobre ele.
– Era uma vez uma menina que usava um chapeuzinho vermelho, aí veio o lobo e
pegou ela. Agora vou fazer outro desenho.
Pega os lápis de cor e faz linhas coloridas e grossas.
– Berenice, nosso tempo já está acabando e vamos ter que guardar todos estes
materiais. Você já está acabando de desenhar?
– Ah, não! Eu não quero ir embora... Este desenho aqui pode ficar comigo?
Mostra o último que tinha feito.
– Você vai precisar dele?
– Ahã. Mas eu vou cortar só a parte que pintei.
Pega a tesoura e faz cortes pequenos no meio do desenho, depois corta em volta.
– Precisamos guardar os materiais. Vamos nos encontrar outras vezes, mas vou
trazer outras coisas. Berenice, vamos! Hoje vou te ajudar a guardar as coisas, acho que você
não quer ir, mesmo.
– Eu vou te ajudar. Eu gosto de ajudar. Na escola eu ajudo a tia.
Na arrumação, Berenice joga na mesa o desenho que fez com giz de cera e
massinha. Sai correndo pelo corredor e entra em todas as salinhas de atendimento.
– Berenice, é por aqui, vamos lá, que a mamãe está esperando.
Berenice pega na minha mão e chegam à recepção.
– Ih, tia, esqueci o desenho! Quero ir lá buscar.
– Então podemos voltar para pegar.
Berenice sai correndo e não me espera, mas, como não lembrava do caminho da
sala, para e espera. Pega o desenho, volta para a recepção e sai, dando a mão para a mãe.

Análise da sessão ludodiagnóstica


Escolha dos brinquedos
Verifica-se que o contato inicialmente é feito com restrições, típico de uma criança
dessa idade diante de alguém desconhecido. Entretanto, diante da visão dos materiais, já na
sala, a menina fica surpresa e sua reação é de impulsividade, como se os materiais
representem o lado prazeroso de sua infância. O primeiro material que utiliza é o espelho,
podendo representar a busca de sua identidade. Imediatamente quer saber o que é o avião.
Aliás, ela sabe que é o avião, mas neste momento expressa sua confusão mental, indicando
que precisa se diferenciar.
Não consegue dar continuidade à sua pesquisa e passa a amassar a massinha. Se
considerarmos estas primeiras escolhas de materiais, e equiparando-as às associações livres
da criança, é como se ela nos dissesse: meu problema está na busca de quem eu sou, de
outro que me permita diferenciar-me, mas não consigo, regrido a um estágio anterior, ou
seja, de uma etapa edípica retorno a uma etapa anal, de exploração e manuseio prático.
Esse manuseio regressivo, no entanto, a faz entrar em contato com seus impulsos
agressivos, que não quer que a terapeuta conheça. Ao reconhecer que a terapeuta pode
‘conter’, permitindo a sua agressividade, novamente se depara com a possibilidade de
descontrole: ameaça jogar a água.
Ao reconhecer este seu lado destrutivo, volta-se para si, na tentativa de se punir.
Isso fica claro ao enrolar o barbante no pescoço. Aqui podemos entender o quanto a
criança, diante da possibilidade de manusear e pesquisar os materiais, de expressar sua
agressividade, rompe com a realidade, desiste de sua exploração e enrola um barbante no
seu pescoço, ou seja, em vez de expressar seus sentimentos ataca-se inibindo sua ação de
exploração.
Possivelmente as dores na cabeça e na perna representam sintomas
psicossomáticos, ou seja, através das dores pode receber atenção ou encobrir a sua
agressividade. As bolinhas de massinha ficam em cima de um papel laminado cujo brilho
fica escondido. O que aparece? É o seu lado regredido, onde o interesse é apenas expresso
na manipulação, ora com as tintas, ora com a massinha.
A cola representa sua necessidade de afeição e de simbiose, sua necessidade de ser
aceita como uma menina “desconjuntada”, “atrapalhada”. Entrega para a terapeuta um
conjunto de legos que representam meninas. Quais meninas? As várias meninas que sente
dentro de si, mas que ela não quer q sejam conhecidas.
Diante da impulsividade da expressão de seus impulsos agressivos, verifica que é
possível pesquisar os conteúdos femininos, mas o faz com angústia e persecutoriedade.
Seus desejos femininos podem, novamente, colocá-la numa situação de perigo. Lembra-se
da história da Chapeuzinho Vermelho, que é comida pelo Lobo Mau. Não há a
possibilidade de reparação dos impulsos agressivos, e novamente ela reproduz o seu
histórico de repressão, demonstrando o quanto não consegue crescer.
Quem sabe as suas dificuldades escolares, tal como descritas por Klein (1930;
1931), estejam relacionadas ao impedimento dessas descobertas típicas da fase fálica.

Modalidade de brinquedo
As manifestações simbólicas da menina demonstram um ego pobre na expressão,
onde os impulsos parecem prevalecer sobre a capacidade expressiva representativa. As
ações da criança demonstram um interesse na manipulação, que, por sua vez, surge para
impedir a capacidade simbólica edípica.
No relato da mãe, nas sessões que precederam o primeiro encontro com a
terapeuta, fora mencionado que a criança, ao saber do atendimento psicológico, ficara
ansiosa e fizera xixi na cama, coisa que há muito tempo não fazia. Ao se apresentar à
terapeuta na recepção, ela diz que não quer ir para a sala. A mãe menciona que naquele dia
a criança está com a perna doendo e tremendo. São dados que revelam a ansiedade da
criança diante da situação de avaliação. É contraditória, porém, sua atitude impulsiva ao
chegar na sala, sugerindo falta de adequação evolutiva no seu comportamento.
Entretanto, o aspecto motor já fora avaliado com o médico, o que nos leva a uma
possível hipótese (associada à sua ansiedade) de que há um aspectos de natureza
psicossomática. Essa hipótese fica mais clara se considerarmos que esse comportamento
impulsivo diminui com o decorrer da sessão. Ora, o que justificaria, então, a ansiedade
persecutória da criança?
Verifica-se que, ao conversar sobre as dificuldades escolares, a manipulação da
massinha também demonstra ansiedade. Provavelmente o seu medo é de ser aniquilada e
não aceita pela mãe, que, por sua vez, a compara com a irmã.
Há ataques a essa falta de aceitação de sua dificuldade que ela deseja expressar, mas
procura evitar. Verifica-se tal atitude de repressão de seus impulsos quando ela tenta evitar
jogar a massinha na água, ou seja, identificamos a presença de uma crítica superegoica no
seu comportamento, esperado para uma criança de sua idade. Seu bloqueio na ação de
atirar a massa na água é evitado, mas o que faz em seguida? Envolve o barbante no
pescoço, sugerindo uma autoagressão, típica de sintomas psicossomáticos.
No desenrolar da sessão, verifica-se que a modalidade do jogo vai adquirindo
aspectos do que é esperado em sua idade, ou seja, mistura cores, faz um tapete para a casa,
esboça uma história para o seu desenho.
No encadeamento de suas ações, identificamos uma sequência desorganizada,
apesar de haver uma lógica quando a interpretamos. Por exemplo, quando usa as tintas, ela
demonstra que sabe as cores, faz uma casa onde moram a cola e a tinta, o que representa a
união e a identidade. Provavelmente, o seu grande problema é este: o conhecimento está
impossibilitado pela dificuldade na identificação.
Em seguida, ela faz com os papéis um tapete da casa, que joga para a terapeuta. O
que pode significar um tapete? O apoio, a segurança, que não encontra no ambiente
familiar. Logo, quem deverá cuidar disso é a terapeuta, daí jogar o tapete para esta.
Ou seja, o que podemos verificar é uma expressão carregada de ansiedade, daí a
desorganização, mas se trata de uma desorganização com uma lógica significativa.

Psicomotricidade
A criança desenha, faz colagens, apresenta preensão manual adequada, faz recortes,
reconhece quando a atitude não corresponde ao esperado – por exemplo, quando os legos
caem no chão. Do ponto de vista evolutivo gráfico, os desenhos ainda estão numa fase pré-
esquemática, ou seja, não correspondem à realidade, sugerindo uma regressão nos
conteúdos.
Além disso, a alternância das atividades também não é a esperada para uma criança
de 7 anos. Discutindo esses indicativos, foi indicada uma avaliação neurológica, que acusou
foco irritativo. Este resultado, porém, foi associado ao comportamento impulsivo, e não a
uma impossibilidade intelectual.
Se considerarmos o resultado do Testes Gestáltico Visomotor de Bender como
normal, é provável que com estimulação adequada na representação de suas ações práticas
este atraso na expressão possa melhorar.

Personificação
Trata-se de uma criança que interage com a terapeuta, há diálogos. Ela realiza
atividades e presenteia a terapeuta, ou seja, há uma relação intensa e que poderíamos definir
como uma personificação primária, ou seja, o faz-de-conta com personagens é ainda
correspondente a uma criança de 3 anos. Ela associa os legos a meninas, que têm uma cor
feminina (cor-de-rosa).
Novamente, identificamos uma necessidade de diferenciação. Essa personificação,
ainda tão regredida para a idade de 7 anos, nos faz entender que o processo de identificação
apresenta dificuldades, com a figura masculina adquirindo sinais de persecutoriedade. Essas
falhas na identificação podem fazer emergir comportamentos estereotipados, o que pode
sugerir o agravamento do quadro regressivo.
Tal aspecto pode ser observado primeiramente quando a criança entrega os legos
para a terapeuta dizendo que são as cadeiras das meninas. Quem poderiam representar
essas meninas? Ela e a irmã? Ao entregar o presente, ela se depara com as unhas da
terapeuta e fica observando-as. Ora, nesta idade a criança fica interessada nos aspectos
femininos, bem como no comportamento dos adultos, e verificamos isso quando ela vai
em direção à cadeira do adulto. O que acontece em seguida? Ela faz um desenho que a
terapeuta não pode ver. O que esta não pode ver? O pintor. O que pode representar o
pintor? O aspecto masculino proibido.
Em seguida aparece a história estereotipada: a menina que usava um chapeuzinho
vermelho, aí veio o lobo e pegou ela. O interesse na figura masculina se transforma em algo
ameaçador. Além disso, usar o chapéu vermelho faz com que o lobo pegue a menina. Aqui
está a grande confusão “psicótica” desta criança: se consideramos que ela foi utilizada pela
mãe como motivo do impedimento da sexualidade conjugal, o comprometimento na
identificação torna-se ainda maior.
O que resta a esta criança? A solução que dá ao conflito é resolver o seu processo
de identificação primária. A expansão da história do chapeuzinho vermelho é inibida, e a
criança retorna ao uso dos recortes, ou seja, novamente regride, indicando que a sua
dificuldade está neste processo de diferenciação materna.

Criatividade
A criança manipula os materiais dentro do esperado, usa os legos como cadeiras,
faz recortes coloridos representando um tapete, mas sem verificarmos relações inusitadas,
ou seja, a criatividade está dentro do esperado.
Se considerarmos que se trata de uma criança de 7 anos, podemos dizer que as suas
ações são muito primárias, uma vez que ela mistura desenho com massinha, ao fazer o
pintor. Evidentemente, ao analisarmos o conteúdo da situação percebemos o quanto a sua
capacidade criativa fica inibida diante da sua impossibilidade, que não lhe é favorável ao
crescimento.

Capacidade simbólica
Verifica-se que a criança expressa as suas dificuldades relacionadas a sua
impossibilidade de lidar com os conflitos edípicos apresentando um comportamento com
fixações anais. Na medida em que suas ações são permeadas de exploração e manipulação,
ou seja, pinta, recorta, desenha, mas, ao tentar estruturar um comportamento mais
elaborado, como a casa ou a história sobre as duas bolinhas que compõe o seu desenho do
pintor, a criança não vai além disso, não consegue representar verbalmente uma hitória
sobre suas ações. A ansiedade persecutória parece impedir o seu crescimento, logo, a faz
regredir ao comportamento de manipulação.
A criança demonstra com isso uma fragilidade egoica, e as defesas preponderantes
são de repressão, deslocamento e, em alguns momentos de maior conflito, aparecem os
mecanismos de cisão.
Por outro lado, ela expressa suas dificuldades, o por quê das dificuldades de
aprendizagem e de agitação e expressa também a sua fantasia de cura. Suas dificuldades na
aprendizagem perecem estar associadas a uma impossibilidade de conhecimento de si
mesma e do processo de diferenciação. Nossa hipótese é de que essas dificuldades foram
impedidas com a não aceitação de seu interesse pelo aspecto feminino. A fantasia de cura
parece associada ao processo de identificação primária, na medida em que há ataques à
figura materna e que, na fantasia inconsciente da criança, só podem ser vivenciadas através
de seu sintoma de deficiente mental ou de não aprendizagem.
Ainda em relação à expressão da sua dificuldade de aprendizagem, podem-se
questionar todos estes significados e dizer que o comprometimento desta criança é
neurológico, logo, deveríamos centralizar nossa preocupação no aspecto cognitivo ou
intelectual, dando um outro direcionamento ao caso – por exemplo, sugerir um trabalho
neuropsicomotor.
Esse procedimento também pode ser utilizado se formos rigorosos na análise do
seu comportamento, tão regredido para uma criança de 7 anos. No entanto, do que adianta
todo um processo de estimulação dissociado das “possíveis” significações das vivências de
um ser humano? Este impasse é algo que o psicoterapeuta terá que decidir mediante o
conjunto das suas avaliações.

Tolerância à frustração
A criança aceita os limites impostos pela atividade lúdica, embora suas ações sejam
quase sempre exploratórias, com esboços de construções. No que diz respeito à separação,
verifica-se que essa foi a sua maior dificuldade, expressa diante do limite do término da
sessão. Diante do inevitável término da sessão, começa a ficar agressiva, atirando o
desenho no chão e deixando a sala ansiosa e agitada.
Por outro lado, suas ações agressivas são permeadas de reparação. Por exemplo,
joga o desenho ao chão, mas precisa retornar à sala, admitindo não poder ficar sem o
desenho.

Adequação à realidade
A criança compreendeu os papéis de cada um na situação lúdica, utilizou os
materiais de acordo com as sua funções e, apesar das dificuldades diante dos limites
impostos pelo tempo da sessão, demonstrou compreensão do contrato e das instruções, ou
seja, apresentou um comportamento adequado à sua faixa etária.

Síntese do ludodiagnóstico
Verifica-se que a criança expressa as suas dificuldades relacionadas a sua
impossibilidade de lidar com os conflitos edípicos apresentando um comportamento com
fixações anais. A angústia preponderante é a persecutória, que parece permear e impedir as
manifestações de seus recursos, desencadeando comportamentos regressivos de
manipulação.
A criança demonstra com isso uma fragilidade egoica, e as defesas preponderantes
são de repressão e regressão, e em momentos de maior conflito aparecem os mecanismos
de cisão e tentativas de desintegração.
As dificuldades na aprendizagem estão associadas a uma impossibilidade de
conhecimento de si mesma e do processo de diferenciação. Essas dificuldades de
exploração e pesquisa parecem estar associadas a sua não aceitação dos seus aspectos
femininos. A fantasia de cura parece associada à elaboração do processo de identificação
primária, na medida em que há representações de ataques à figura materna que, na fantasia
inconsciente da criança, só podem ser vivenciadas através do seu sintoma escolar ou
psicossomático.
Caso Carlos

Identificação
Trata-se de um pré-adolescente de 12 anos do sexo masculino, a quem darei o
nome de Carlos.
Carlos foi levado à clínica encaminhado pela escola, pois, frequentando o sexto ano
do ensino fundamental, recusava-se a fazer os deveres de casa. Além disso, seu
comportamento era agressivo, tanto em casa como na escola. Respondia para os
professores que não iria fazer os deveres. Com os colegas ficava enfurecido quando lhe
chamavam de baixinho. Segundo a mãe, quando o menino ia ao banheiro sentia-se
inferiorizado, uma vez que seu pênis era pequeno. A mãe já o levara ao endocrinologista,
mas não havia problemas.
O pai, em função das várias reclamações da escola, procurara dar mais atenção ao
menino e entendia que ele estava mais calmo. Também acreditava que a mãe dizia muito
para Carlos obedecer, e ela mesma admitia que acabava por se descontrolar, gritando com
Carlos. Segundo os pais, o menino resistia às regras educacionais, nunca obedecendo na
primeira solicitação. Com o pai a obediência era mais frequente.

Síntese da anamnese
Carlos era o filho caçula e temporão. Os pais tinham mais duas filhas, uma de 24
anos e outra de 22. Os pais acreditavam que Carlos sempre fora “mimado” por todos da
casa, em função de ser o caçula, e sempre fizera o que queria desde pequeno.
Quando o menino tinha 6 anos, começou a praticar kung-fu, segundo os pais, para
dar vazão à sua agressividade, pois já naquela época havia queixas da escola. Algumas mães
chegaram a conversar com a mãe de Carlos, pois ele já batia nas crianças.
Carlos sempre conviveu com adultos, pois o local onde a família morava não
permitia o convívio com outras crianças, ou seja, a sua socialização se restringia à escola.
Apesar de ter um quarto para ele, todas as noites ele ia para o da irmã mais velha. Ainda
naquela época havia dias em que acordava e ia para a cama da irmã. O menino alegava ter
medo do escuro e dizia que quando assistia a filmes de terror acabava tendo pesadelos.
Os professores afirmavam que Carlos não podia fazer trabalhos em grupo, pois
brincava e fazia bagunça.

Antecedentes pessoais: história da criança


A gravidez de Carlos não foi planejada e, ao 7 meses de gestação, houve a ameaça
de nascimento prematuro. Isto teria se dado em razão de um susto que a mãe levara
enquanto estava dirigindo, durante uma viagem, quando o carro derrapou. O bebê nasceu
sentado e teria girado devido ao susto. Porém, não houve outras consequências, e o
nascimento foi aos 9 meses.
Segundo a mãe, a gravidez foi boa, com enjoos até o quarto mês, como nas duas
gestações anteriores. O parto foi através de cesárea, pelo fato de o bebê estar sentado.
Carlos nasceu com 3,6 kg e com 48 cm. O menino mamou ao seio até 10 meses, e a mãe
retirou a amamentação aos poucos, como a médica lhe recomendara. A mamadeira foi
usada até até os 5 ou 6 anos, quando Carlos deixou-a por iniciativa própria, pois haviam
descoberto na escola que ele usava mamadeira. Usou chupeta até os 4 anos, tendo esta lhe
sido retirada pelos pais.
O controle dos esfíncteres teve início com 1 ano e 2 meses, e as fraldas foram
retiradas aos 2 anos. A mãe deixava-o horas no urinol, e as irmãs mais velhas é que o
limpavam quando se sujava.
Com 10 meses, Carlos começou a engatinhar, mas pouco, pois com 1 ano já passou
a andar. Começou a dizer frases com 4 anos. Aos 2 anos falava somente palavras bem
curtas. Chamava sua irmã mais velha de Onca, em vez de Mônica, e a irmã mais nova de
Lu, em vez de Lucélia.
Com 5 anos, o menino entrou na pré-escola. Com 6 anos iniciou o primeiro ano do
ensino fundamental. Começou então a ler e escrever, porém muito pouco, sendo tal fato
atribuído a sua falta de paciência. Quando tinha 9 anos, já no quarto ano, começou a ter
explosões de raiva.
Carlos gostava de frequentar a escola, mas não gostava de levantar cedo, o que
gerava dificuldades para levá-lo às aulas. Na época, seu rendimento escolar era bom. Tinha
bom desempenho em matemática, ciências e artes e não ia muito bem em geografia, inglês
e português. Não gostava de história, pois não gostava de ‘decorar’. Tirava notas altas,
como, por exemplo, 9 em matemática, no entanto, não era essa a nota que constava em seu
boletim, devido ao seu mau comportamento. Ainda assim, atingia a média sem problemas.
Carlos era ajudado nas lições pelo pai, rejeitando a ajuda da mãe. A irmã mais velha
ajudava-o eventualmente. O espaço onde Carlos fazia suas lições era uma mesa no quarto
da irmã. O pai de Carlos dizia que tinha de mandá-lo estudar, pois criança nesta idade é
vagabunda. Reclamações por parte dos professores sobre as lições de Carlos eram
interpretadas como Carlos tendo faltado com a educação.
Como exemplo de explosões na escola, os pais relataram que os professores
reclamavam que ele os interrompia quando estavam expondo a matéria e os questionava.
Os professores reagiam com o envio de bilhetes aos pais, convocando-os para ir à escola,
com a exceção da professora de português, que não ligava para as interrupções de Carlos e
costumava conversar com ele em particular. A letra de Carlos era ruim e difícil de entender.
O menino escrevia rápido, para poder ir brincar, mas depois nem ele mesmo entendia o
que havia escrito.
A mãe ia às reuniões da escola e ouvia tudo o que os professores diziam. O pai ia
somente para ver as notas e ficava para a fala do coordenador. Levava o boletim e, se havia
notas baixas, conversava com Carlos e aplicava-lhe castigos, proibindo desenhos,
computador e novelas na televisão, caso o menino tivesse ido mal por não ter estudado. Às
vezes, o pai lhe aplicava castigos físicos (chineladas). Segundo o pai, Carlos perdera o
respeito pela mãe, porque esta falava muito e gritava, o que era negado por ela. O pai
insistia que Carlos só respeitava a ele. Como na época estava desempregado, ele ficava em
casa e tinha condição de auxiliar Carlos nos seus deveres escolares. Pretendia não mais
voltar a trabalhar fora, isto é, pretendia passar a trabalhar só em casa, no que era
desaprovado tacitamente pela mulher.
Carlos fora levado a diferentes pediatras, em razão de mudanças de convênio. Em
relação à estatura de Carlos, o pai dizia que os pediatras seguiam diferentes tipos de tabela
de referência, mas justificava Carlos ter estatura baixa por herança genética – o pai media
1,68m, a mãe, 1,49 m e as irmãs também eram baixas.
Um dos pediatras havia solicitado uma radiografia da mão de Carlos e, com base
nela, chegara à conclusão de que o menino tinha desenvolvimento tardio. A mãe achava
que deveriam retornar dali a um ano para o médico comparar as radiografias da mão nesse
período. No entanto, Carlos não tinha problemas em fazer perguntas por si próprio aos
médicos, e seus pais o deixavam ir sozinho às consultas. Entendiam que o levavam muito a
hospitais, e que Carlos fingia ter sintomas, quando na realidade não tinha nada. Citaram
como exemplo Carlos ter desmaiado, tendo sido levado ao hospital, mas o médico dissera
que ele nada tinha. Os pais concordaram em seguir a sugestão de procurar um hebiatra para
verificar o problema de crescimento, indo verificar junto ao seu convênio médico esta
possibilidade.
Na época Carlos calçava sapatos do mesmo número que o pai (37), mas seu pé
ainda estava crescendo. O pai relatou que também era alvo de brincadeiras na escola por
sua baixa estatura, mas não ligava.
Carlos já fora levado a um oftalmologista. Tinha astigmatismo – 1 grau no olho
direito – e usava óculos. Quanto à alimentação, gostava praticamente de tudo, com exceção
de jiló, nervos em carnes e gordura. Também tinha nojo de osso, não comendo nada que
tivesse ossos, incluindo frango.
Com relação a jogos, Carlos gostava de Banco Imobiliário, Imagem e Ação e Jogo
da Vida. Há algum tempo havia um tio que morava com a família e Carlos jogava futebol
com ele; não jogava com o pai nem com a mãe. Também tinha interesse por videogames.
Quando Carlos ajudava o pai, que era contador, arquivando fichas em ordem
alfabética, o pai depositava dinheiro em sua caderneta de poupança. Carlos ficava feliz de
acompanhar o saldo da conta. O menino não lidava diretamente com dinheiro, pois,
segundo o pai, “tudo o que quer, pede e nós compramos”.
Carlos reclamava da situação econômica da família. Às vezes queria objetos caros
que os amigos tinham e questionava o pai por este não ser empresário, como os pais de
alguns amigos. O pai de Carlos respondia que, embora não fosse empresário, possibilitava
que Carlos estudasse onde seus amigos, filhos de empresários, estudavam.
A mãe de Carlos não trabalhava fora. Cuidava do lar, encarregando-se de todos os
afazeres domésticos, como lavar, passar, cozinhar, arrumar, alimentar os animais de Carlos,
e por vezes ajudava o marido com digitação.
Carlos tinha cachorros, tartaruga e peixes. Os animais de que mais gostava eram um
peixinho e o cachorro menor, da raça cocker spaniel, com o qual brincava deitando e
rolando no chão. Não brincava com o cachorro maior, um pastor belga, em razão da
agressividade do animal.
Quanto a atividades extracurriculares, Carlos já praticara kung-fu e estudara inglês,
mas não continuava no kung-fu em razão das limitações financeiras da família – o pai
explicou que pagava metade do valor das mensalidades de suas filhas na universidade.
Carlos praticava esportes somente na escola, na disciplina de educação física. A família não
ia a clubes ou balneáreos. O pai alegava não convir levar Carlos a esses locais, pois, sendo
explosivo, ele iria “se meter em encrencas com gente estranha”. A mãe ponderava que
havia instrutores e monitores, mas o pai afirmava que, de qualquer forma, Carlos causaria
problemas.
Carlos gostava bastante de futebol, e naquele ano assistira às Olimpíadas,
interessando-se por quase todas as modalidades, especialmente futebol feminino e vôlei
masculino.
Segundo o pai, a família recebia muitas visitas de parentes todos os fins de semana,
o que era desmentido pela mãe, dizendo que os parentes viviam longe. De qualquer forma,
ambos concordavam que Carlos não era agressivo com os parentes, embora às vezes se
dirijisse a eles colocando-se no mesmo nível de adulto, e os parentes o reprimissem,
“colocando-o no seu lugar”.

Transcrição da sessão ludodiagnóstica

Carlos chegou com dez minutos de atraso.


– Tudo bem com você, Carlos?
– Sim.
– Carlos, você sabe porque está aqui?
– Não faço nem ideia. Não sei mesmo.
– Seus pais não conversaram com você?
– Não, não sei mesmo.
– Carlos seus pais lhe trouxeram aqui porque sua escola entregou para eles uma
carta, por conta do seu comportamento com seus colegas e professores. Parece que você
está com dificuldades em se relacionar com eles, sendo até agressivo. Seus pais estão
preocupados com isso, eles querem ajudar você, mas não sabem como, por isso trouxeram
você aqui, para que possamos verificar o que está acontecendo. Já conversei com os seus
pais e também conversaremos sobre as dificuldades deles. O que você acha de estar aqui?
Eu fiquei sabendo que você não queria vir. Por quê?
– Não sei, talvez porque eu tenha muita lição para fazer, mas vai ser bom, pois
agora não tenho nada pra fazer, se eu estivesse em casa estaria dormindo, já que eu tô de
castigo...
– Carlos para facilitar a nossa conversa, eu trouxe hoje esses materiais, e nos outros
encontros trarei outros. Você pode usar o que quiser, ali na caixa tem mais [dentro da caixa
havia panelinhas e casinhas], caso você queira, e se você também não quiser nenhum desses
materiais e quiser guardá-los, esteja à vontade.
– Ah, tá bom, e o que eu tenho que fazer?
– O que você quiser.
– Sabe, eu tenho um trabalho de gramática para fazer, que é de cortar e colar, vou
ter que procurar figuras em revistas, vai dar trabalho.
Nesse momento Carlos pega um pincel da mesa e gira-o entre os dedos, depois faz
movimento como se estivesse tocando bateria, acompanhando com os pés.
– Nossa eu tenho tantos trabalhos pra fazer esta semana, e a semana que vem ainda
tenho provas, tenho que estudar para a de filosofia e geografia. Hoje eu dormi na aula de
matemática, estava muito cansado. Na noite passada não dormi a noite inteira, aí hoje, na
aula, já viu. Pior que perdi uma explicação importante.
– Por que você não dormiu à noite?
- Por causa dos pernilongos, eles não me deixaram dormir, e também estava muito
calor.
– Carlos, por que você está de castigo?
– Porque minha mãe mandou eu tomar banho à tarde e eu falei que não queria, que
eu não ia tomar banho à tarde, que ia tomar de manhã, igual à Mônica, minha irmã. Aí ela
começou a falar e brigar comigo, aí eu gritei com ela, eu disse pra ela que não é justo, que
se a minha irmã pode, por que eu não posso, aí ela ficou toda nervosa e me pôs de castigo
um mês. Sabe o que é um mês sem jogar videogame, sem assistir à televisão e sem usar o
computador? Um mês, não sei por que tanto tempo, não sei também o que vou fazer,
porque é só isso que eu faço, quer dizer, eu chego da escola, ajudo minha mãe a fazer o
serviço de casa, cuido do meu aquário, depois fico no meu quarto, vou assistir TV, adoro
assistir filme, agora você imagina o que é ficar um mês sem TV, videogame e computador?
- Você costuma ficar de castigo?
– Às vezes.
– Desde quando você está de castigo?
– Desde ontem.
– E o que faz você ficar sempre de castigo?
– Desta vez eu não concordo, não vejo motivo, eu só queria fazer algo como minha
irmã faz. Eu sei que perdi a razão por ter gritado com a minha mãe, aliás eu perco muito
rápido a razão, a paciência, mas isso não é motivo para um mês sem fazer nada. O
problema é que ela já estava irritada, e meu pai adora ficar provocando minha mãe quando
ela esta assim. Sabe, fica fazendo brincadeirinhas, aí sobrou pra mim. Na hora meu pai saiu
de perto de fininho. Acho que já fiz até coisas que realmente mereciam castigo, mas isso,
não concordo, um mês é muito tempo, e o pior é que não sei o que vou fazer. Da última
vez que fiquei de castigo eu disse pra minha mãe que por isso não tinha nada pra fazer. Ela
me respondeu que era pra eu arrumar algo, comecei então a mexer em umas coisas e achei
uma bola. Já que não podia fazer nada fiquei jogando bola dentro de casa. Ela ficou louca,
veio reclamar, aí eu disse pra ela: foi você que me mandou arrumar o que fazer. Agora
desta vez eu vou dormir. Você daria um castigo assim para seus filhos?
– Mas, Carlos, o que você conversou com sua mãe?
– Eu sei que perdi a paciência, gritei com ela, mas só falei que não queria tomar
banho à tarde. E não concordo com o castigo.
Carlos coloca o pincel sobre a mesa, pega um barbante e fica o resto da sessão
brincando com ele. Enrola-o no dedo e no pulso diversas vezes, desenrolando-o depois.
– E com suas irmãs, você se dá bem?
– Agora me dou, elas nem ficam em casa, trabalham e depois vêm pra cá, elas
fazem faculdade. Uma está no quarto semestre, a mais nova, e a mais velha está no terceiro,
elas começaram juntas, mas a mais velha repetiu. Antes eu brigava muito com a do meio,
mas agora estamos bem. Agora minha irmã me aprontou uma. Em um dos meus aquários
eu tenho dois camarões, daqueles pitu, sabe? Aí ela colocou um peixe lá e ele comeu os
camarões. Agora comprei um mais ou menos grande, para o peixe não pegar, até agora ele
está lá. Tenho um outro aquário, que fica na cozinha e é meu e do meu pai. Lá ficam três
lagostins, sabe? Agora todos nós temos aquário. Minha irmã tem uma beteira, com divisão
para 56 daqueles peixes beta Fica no quarto dela. A outra tem outro aquário. Um dos meus
cunhados tem um aquário de 60 litros e o outro, um de 100 litros. Agora diz que vai
comprar um maior. Vou cedo para a escola e não posso esquecer de dar comida para os
peixes.
– A que horas você vai para a escola?
– Eu vou de manhã.
– Em que ano você está, Carlos?
– No sexto ano. Já sei por que você perguntou isso.
– Não entendi...
– É porque sou baixinho, nem parece que estou na sétima série. As pessoas pensam
que tenho 10 anos, quando conto que tenho 12, ninguém acredita. Pode falar que foi por
isso que você perguntou.
– Não, Carlos, não foi por isso. Mas isso te incomoda?
– Bastante, e eu fico nervoso com isso. Os meninos na escola ficam fazendo
brincadeiras que me irritam, aí acabo perdendo a paciência. Tem uns meninos muito
folgados lá, sabe? No começo do ano eu briguei com um menino que é muito folgado. Até
comentaram com meu pai na reunião, porém todos sabem que eu estava com a razão, até a
diretora disse pro meu pai não brigar comigo, porque eu não estava errado.
– Por que você perdeu a paciência?
– É que esse menino folgado e um outro pegaram minha carteira, aí já me estressei,
cheguei junto, fui até a sala da diretora para reclamar dele, mas a diretora estava ocupada,
quer dizer estava conversando com os professores, aí ela só chamou ele e pediu pra que ele
devolvesse. Ele devolveu, mas depois do intervalo entramos para assistir a aula e ele, esse
que eu te falei que é o mais folgado, cheguei nele. Eu tava quieto prestando atenção na aula,
mas ele não parou, aí ele começou a me dar tapa nas costas e no meu braço, eu deixei
quieto, ele continuou, aí eu comecei a revidar, só que ele foi me irritando cada vez mais,
pois ainda ficava me provocando, me xingando. O professor pediu para parar, e ele não
parou. Fiquei tão irritado que levantei e dei uma porrada nele e ele não fez nada. Você
precisa ver, todos ficaram a meu favor, mas fomos para a diretoria. Expliquei pra ela o que
tinha ocorrido, e ela foi a meu favor, ele ainda teve sorte porque só levou uma advertência
oral. Aí chegou na reunião e explicaram pro meu pai o que aconteceu, mas isso foi no
começo do ano. Engraçado, ele é bem mais alto que eu e não fez nada.
– Carlos, o nosso tempo já está acabando. Nós teremos mais três ou quatro
encontros, e a cada encontro vou trazer um material para facilitar nossa conversa. Cada
encontro tem 50 minutos.
Falei do contrato e disse que após a avaliação passaria os resultados para ele e para
os pais.
- Quer perguntar alguma coisa?
– Não, eu entendi. Só não gostei dessa história dos meus pais ficarem sabendo do
que nós conversamos. Eu estava gostando mais, e não entendi por que eles precisam saber.
– Carlos, como expliquei, seus pais procuram uma forma de ajudá-lo, então o que
for necessário eles saberem para te ajudar eles saberão. Embora você não tenha utilizado os
materiais, gostaria que você guardasse pra mim.
– Com certeza, pode deixar que eu guardo.
Carlos pergunta onde colocar as folhas. Mostro a pasta, ele as guarda, coloca todos
os lápis na caixa e guarda os outros materiais. Quando levanta para colocar tudo dentro da
caixa lúdica, olha o saco com os animais.
– Engraçado, você sabe que eu sonhei com uma caixa igual a essa e com esses
brinquedos de bichinhos dentro?
– E o que você sonhou?
– Nada, apenas com uma caixa como esta com aqueles bichinhos dentro. Isso
sempre acontece comigo. Uma vez sonhei que minha tia estava em casa com um pano
bordado com um ursinho, e no dia seguinte, quando cheguei em casa da escola, ela estava
na cozinha conversando com a minha mãe com o pano na mão. Eu perguntei o que era
aquilo e ela disse que tinha ido mostrar pra minha mãe o que ela tinha acabado de fazer.
Foi muito engraçado.
Levantamos-nos para nos retirarmos da sala e Carlos pergunta:
– Você vai trazer um videogame?
– Não, vamos utilizar somente esses materiais.
– Que pena.
Despedimo-nos.

Conversando com a mãe de Carlos, em outro dia, esta informou que o menino
estava de castigo porque, diante das solicitações dela para que tomasse banho, ele havia
jogado nela um sapato, e se este a tivesse atingido teria ferido-a. Naquele dia a mãe tinha
sido chamada na escola porque Carlos fora suspenso por xingar a professora.

Análise da sessão ludodiagnóstica

Escolha dos brinquedos


O menino comentou preferir conversar do que utilizar os materiais. Pode-se
afirmar que talvez a caixa lúdica não fosse o mais indicado. Optei por apresentar esta
sessão, na qual a criança praticamente não interage com os materiais, fundamentando a
ideia de Melaine Klein de que crianças que não brincam têm um comprometimento
psíquico.
Segundo Winnicott (1975), o brincar é próprio da saúde, conduz aos
relacionamentos grupais e está relacionado a um espaço potencial entre o bebê e a mãe.
A agressividade e violência do menino com os amigos apontam para uma
dificuldade e mostram que o lúdico, ou o sentido lúdico das relações, está prejudicado. O
outro é percebido como uma ameaça ou a concretização de um objeto que deve preencher
um vazio. Portanto, verificamos que não há espaço lúdico psíquico para o surgimento do
brincar na relação.
Isso pode ser verificado quando ele diz: “Não queria vir porque tinha muita lição”;
“Agora posso porque não tenho nada para fazer. Se tivesse em casa estaria dormindo”; “Tô
de castigo, logo, posso vir na terapia”. O mesmo se verifica quando, após a apresentação
dos materiais, ele pergunta: “O que tenho que fazer?”, como se a terapeuta fosse dar
tarefas. Está sobrecarregado de tarefas, de trocas que lhe exigem. Se não estivesse de
castigo, talvez não pudesse estar ali. O fazer é carregado de ameaça, daí a sua
impossibilidade de ludicidade. Ele já esperava que a terapeuta lhe desse uma tarefa, ao se
deparar com os materiais, e quando ela lhe diz para fazer o que quiser com os materiais, já
faz associações com um trabalho de gramática, colar, recortar. Ou seja, associa os materiais
que lhe foram apresentados a mais uma tarefa, mais uma obrigação.
Se considerarmos a brincadeira como uma área possível do encontro consigo
mesmo, esta criança, ao não interagir com os materiais, indica que não consegue exercer
essa atividade.
A escolha do pincel para mexer quando está falando de suas tarefas parece ser
muito providencial. O que dá trabalho? Procurar figuras em revistas, cortar e colar. O que
isso pode significar? A procura de sua identidade, reconhecer e utilizar mais percepções e
integrar (colar) segundo uma lógica ou algum critério. O que é a identificação? Não é o
processo pelo qual a criança se diferencia, a partir de uma identidade, ou ser idêntico ao
outro?
O que significa o pincel? Um símbolo fálico? Algo que precisa ter para enfrentar
tantas responsabilidades escolares. O interessante é que a criança fica com o pincel na mão
até o final da sessão, como se mostrasse sua impossibilidade de fazer ou de “brincar” diante
de tantas obrigações.
O menino descreve um ambiente ameaçador, com muitas sanções, e o pincel pode
representar algo ainda mais primário, mas que pode acalmá-lo. É interessante que ele fica
com o pincel até o momento em que reconhece que se descontrolou com a mãe. Que
material escolhe em seguida? Um barbante, ou seja, um material mais primitivo, mas o
sentido é o mesmo: dar apoio ao enfrentamento de suas dificuldades.

Modalidade de brinquedo
Se, por um lado, a criança não utiliza os materiais para se expressar, por outro,
demonstra uma riqueza simbólica. A sua verbalização apresenta-se organizada, com
sequência lógica. Ou seja, trata-se de uma criança com recursos, portanto suas dificuldades
de aprendizagem estão relacionadas à sua dificuldade de se submeter às regras educacionais
ou da escolarização.
Demonstra grande dificuldade em lidar com o controle de seus desejos, logo, o
ambiente é vivido como castrador, injusto, onde ou ele enfrenta com agressividade, ou se
submete com sofrimento ou repressão.

Psicomotricidade
Embora não tenha manifestado interação com os objetos, verifica-se que é uma
criança que ficou sentada, expressou suas dificuldades, mencionou uma série de atividades
que realiza no seu dia a dia com sucesso motor.
Há um descontrole comportamental diante das regras. Se considerarmos o
desenvolvimento educacional dos esfíncteres, temos uma mãe intolerante às suas
produções fecais, e talvez o descontrole diante da figura materna seja a forma de reagir a
essa não aceitação primária.
Além disso, a criança descreve na sessão um certo sofrimento na realização das
tarefas escolares, em ter que escrever ou utilizar a coordenação motora fina. Há brigas com
a mãe em relação a seus próprios cuidados higiênicos, ou seja, há um sofrimento, e não
uma dificuldade motora, que pode estar associado a um comportamento afetivo-relacional
com a figura materna.

Personificação
A criança descreve e desempenha papéis com afeto, relações conflituosas,
indicando que a sua capacidade egoica está adequada ao esperado. A figura materna é a
geradora dos conflitos e das sanções. É uma figura materna que exige dele
responsabilidades com as tarefas do lar, mas é intolerante aos seus comportamentos
regredidos, não admitindo, por exemplo, que ele não tome banho quando ela solicita. A
figura paterna é apresentada como participativa (vai às reuniões escolares, ajuda nas
tarefas), mas com pouca intervenção na aplicação das sanções, ou seja, a figura materna
aparece como a figura de autoridade.
O menino considera que as irmãs são privilegiadas pela mãe, pois esta permite que
tenham mais autonomia nos cuidados (por exemplo, a irmã pode tomar banho quando
quer, enquanto ele tem que se submeter aos desejos da mãe). Além disso, a irmã mais velha
tem poderes, pois tem 56 peixes beta.
Ele descreve uma relação social com os amigos permeada de conflitos, sentindo-se
injustiçado, embora reconheça que perde o controle diante das injustiças. É provável que
sofra bullying na escola, mas verifica-se que há um sentimento bem negativo em relação a
seu próprio tamanho, que pode ser gerador desses conflitos agressivos na relação social.
Isso fica claro quando a terapeuta lhe pergunta em que ano ele estuda e ele retruca:
“Já sei por que você perguntou isso”. A terapeuta tinha essa informação, mas a reação do
menino é inusitada: reconhece que é pequeno em relação aos outros ou diante da
expectativa social, mas parece não aceitar isso, e sua reação é compensar com muita
agressividade. É importante lembrar que os pais são chamados frequentemente à escola
devido a suas reações violentas.

Criatividade
A expressão verbal da criança está de acordo com o esperado. A criatividade é
expressa na sua capacidade de interação com o ambiente, sem muito destaque.

Capacidade simbólica
O menino expressa suas dificuldade verbalmente, colocando-se sempre como
vítima da situação. Diante da expressão de seus impulsos agressivos, admite que se
descontrola, perde a paciência e é agressivo, tanto com a mãe quanto com os colegas, mas
considera-se injustiçado diante das consequências que lhe são impostas.
Considerando os conflitos relatados e a fala da mãe no final da sessão, pode-se
considerar que o menino tem dificuldade em admitir sua agressividade, pois relata os fatos
pela metade. Por exemplo, não disse à psicoterapeuta que atirou o sapato na mãe, nem
mencionou que estava suspenso da escola. Nesse sentido, podemos dizer que a criança se
descontrola, mas a sua capacidade de autocrítica está prejudicada, ou seja, o ego e o
superego encontram-se comprometidos, e os mecanismos básicos de defesa são a repressão
e a negação.
Considerando a sua descrição do ambiente externo, verifica-se que esta foi a forma
que encontrou para reagir ao meio pouco acolhedor de suas carências afetivas primárias.
Há uma defasagem entre ao que é esperado dele, como assumir responsabilidades escolares
e ter atitudes mais adultas, e sua necessidade afetiva de ser protegido. Por exemplo, espera
que a mãe o defenda e dê a ele as mesmas regalias que dá às irmãs, sem as condições que
lhe impõe.
No contexto social, descreve uma situação em que se sente diminuído diante dos
colegas. Sua estatura é algo que o incomoda, e provavelmente associa-a e concretiza
internamente este sentimento de ser pequeno ou sentir-se diminuído nas relações sociais. A
agressividade é a expressão de algo de que não consegue dar conta ou a forma que
encontrou para compensar sua representação inconsciente de ser pequeno.
O importante é que a criança evidencia seus sentimentos e a falta de compreensão
do ambiente. Ao final da sessão, deixa claro que as pessoas concretizam os seus desejos.
Sonha com um pano bordado com um ursinho e a tia materna, por identificação projetiva
primária, concretiza o seu desejo. Nesse trecho da sessão também verificamos a presença
de um desejo inconsciente infantilizado (pano bordado com o ursinho). Essa solicitação
lembra a solicitação de um objeto transicional, ou seja, até para enfrentar-se a si mesmo, ao
dormir necessita de apoio, daí o seu comportamento, tanto na infância como naquele
momento, de buscar à noite o apoio dos pais ou familiares.
No entanto, mais uma vez, verificamos sua dificuldade em admitir sua infantilidade,
pois o que solicita à terapeuta é um videogame, ou seja, um material lúdico dentro do
esperado para a sua idade. Outro aspecto importante é que há uma ambivalência típica da
puberdade, entre o desejo de ser criança e o desejo de assumir papéis adultos, o que
representa um ambiente intolerante aos aspectos mais regredidos.

Tolerância à frustração
Trata-se de uma criança que apesar de se sentir desconfortável com os materiais
lúdicos, ou seja, prefere conversar, solicita que a psicoterapeuta traga materiais mais
adequados à sua idade, como o videogame. Faz essa solicitação dentro da expectativa para a
sua idade, ou seja, conversando com a terapeuta.
É interessante que o menino se depara com a falta de um material adequado
quando mexe nos animais. É possível que os animais estejam representando os seus
impulsos agressivos e que ele se dê conta de que é a terapeuta que poderá ajudá-lo, fazendo
com que se sinta maior, ou seja, mais adulto, tal como espera também do ambiente.
Demonstra condições de superar suas dificuldades no controle dos impulsos em
relação às regras, pois conversou e guardou os materiais quando solicitado.

Adequação à realidade
O menino conversou com a terapeuta, aceitou as regras para expressar suas
dificuldades, demonstrou sua posição e aceitou guardar os materiais, o que indica
possibilidades de adequação à realidade.
Entretanto, verifica-se que não admite as reações e consequências externas diante
de seus comportamentos impulsivos e agressivos, colocando-se como injustiçado. Verifica-
se que as punições que lhe são impostas não o fazem refletir ou compreender suas ações.
Logo, ele mesmo aponta que a realidade externa não o favorece na compreensão do que
realmente está acontecendo. É provável a psicoterapia possibilite o contato com os seus
sentimentos de impotência, favorecendo a representação dos mesmos e levando a uma
melhor avaliação de seus comportamentos diante da realidade.

Exemplo de Análise Resumida de Caso Clínico

Há profissionais que realizam uma análise mais resumida, baseada em Aberastury


(1962), já citada anteriormente, que afirma que a criança, já no primeiro contato do
ludodiagnóstico, apresenta o seu conflito, mostra por que está em sofrimento e as possíveis
fantasias de cura.
Apresento a seguir um caso clínico baseado nesta modalidade de avaliação.

Caso André
Identificação
Trata-se de uma criança de 5 anos que frequentava o jardim II, a qual denominarei
André. O menino foi encaminhado pela escola, não tem controle da urina e das
evacuações, é agressivo e violento com os amigos.

Síntese da anamnese
André teve uma gravidez desejada. Nasceu de cesárea, devido à falta de dilatação.
Foi amamentado durante um mês. Andou com 1 ano. Falou com 1 ano e meio. Sempre foi
um bebê chorão. Aos 2 anos, após o nascimento do irmão, o neuropediatra detectou
problema de audição, e aos 4 anos teve infecção no ouvido, tendo que fazer
acompanhamento com otorrinolaringologista.
Largou a mamadeira aos 2 anos, mas chupava o dedo até aquele momento. Devido
a problema de encoprese, os pais evitavam contato social. A mãe era explosiva e o pai,
retraído. O pai não jantava com as crianças por fazerem muito barulho e bagunça. Os pais
são profissionais liberais da área da saúde.
Como André era uma criança forte, a mãe sempre recebia reclamações de que havia
machucado os amigos de forma violenta. As queixas da escola existiam desde que o
menino tinha 4 anos, quando iniciou o jardim I. Teve dificuldades de adaptação escolar, e
quando brigava com os amigos, geralmente a mãe o colocava de castigo. Também chegou a
apanhar da mãe por causa da enurese e da encoprese.

Transcrição da sessão lúdica


André entra na sala e vai direto para a massinha. Pergunto se ele sabe por que está
ali, mas ele não responde. Digo-lhe que seus pais estiveram ali e ele pergunta:
- Você sabe o nome do meu pai?
- Você acha estranho eu saber o nome do seu pai?
Continua mexendo na massinha, esfregando-a na mesa.
- Não faz mal que sujou? – pergunta, referindo-se à mesa, que está com massinha. –
Como monta isso? – pergunta, referindo-se à cerca. – Eu tenho tinta igual a essa aí e aí
passa no papel. Esse durex é meu? Tudo isso? Isso é um jacaré?
Pega a massa e volta a amassá-la. Então digo-lhe:
– É, eu trouxe essas coisas para conversar com você e tentar entender por que você
não está conseguindo fazer cocô...
Ele me interrompe.
– Meu pai veio aqui? À noite?
– Não...
Tento explicar-lhe, mas ele continua perguntando.
– Tem papel para eu recortar?
Digo-lhe que ele faz um monte de perguntas, mas não quer que eu fale. Ele logo
me interrompe. Com a tesoura na mão pega a cerca e pergunta como se faz para consertar
e continua:
– Tem que encaixar. Vou recortar (refere-se à cerca).
– Pois é, a mamãe disse-me que você sabe que tem que fazer algo para não fazer
cocô na calça, mas não consegue, talvez seja porque você fique nervoso.
– É, nervoso quando...
Continua mexendo nos materiais e fazendo comentários:
– Tá duro para abrir.
Refere-se à cola. Abre a cola, mas essa demora para sair.
– Não quero ficar com a cola porque não sai. Tá dura a cola. Por que aqui é
apartamento? É embaixo ou em cima esse andar?
Vai até a janela e volta. Passa o pincel numa folha de papel e diz:
– Meu irmão, que se chama Alan, queria vir aqui.
– E você, o que acha? Ele deve vir?
Risca com o lápis no papel e apaga. Recorta a folha, dobra, cola e larga. Tento
perguntar algo sobre o que ele havia feito, mas ele não responde. Pega a massinha vermelha
e diz:
– Demorou para eu fazer aula aqui.
– Poxa, é mesmo, você queria já ter vindo, mas eu estive conversando com o papai
e a mamãe a seu respeito.
Recorta a massa.
– E, sabe, também conversei sobre eles, pois eles também ficam um pouco
nervosos.
Continua recortando a massa em pedacinhos. Pega um canguru, enfia sobre uma
massa e cola num papel. Pega o hipopótamo e o coloca sobre dois pedaços de massa. Diz
que é um zoo. Corta um pedaço de folha amarela e pede para eu tirar a tampa da cola, pois
diz que a cola não quer sair. Tiro, então, a tampa da cola e lhe entrego. Diz que daquele
jeito era melhor. Cola um pedaço de massa verde na folha amarela e põe o canguru. Abre a
tinta preta, pinta nos dois pedaços de papel onde estão os bichos.
– Sabe, o papai e a mamãe também acham que precisam de ajuda e que às vezes
eles não querem ficar bravos com você, mas não conseguem.
- Eu tenho uma tinta igual a essa.
Pega o papel laminado. Pega o avião, passa o dedo nas rodinhas e o deixa de lado.
Volta-se para o papel laminado e o recorta. É importante ressaltar que suas ações,
principalmente de recortar e enfiar os bichos na massa, são acompanhadas de ansiedade.
Pega a cola e joga em cima do papel e na mesa. Passa o dedo sujo de cola embaixo da mesa.
– Agora vou brincar.
Corta a massinha amarela.
– Você viu meu irmão no banheiro? Minha mãe tá aí. Aqui tem fechadura?
Vai até a porta e diz que está fechada. Abre a porta e fecha-a, observando a
fechadura. Volta e pega a massinha azul e cola-a na amarela. Ouve a buzina de um carro,
vai até a janela e volta. Pega a massinha branca e enfia no rabo do jacaré. Pega as massas e
faz uma pessoa.
Pergunto sobre a pessoa. Diz que fez uma pessoa de 5 anos. Põe os braços e corta
com a tesoura. Diz que eles estavam grandes. Corta a pessoa ao meio com a tesoura.
– Mataram ela. Ela se perdeu da mãe e o ladrão pegou ela.
Corta a pessoa aos pedaços.
– Como ela se perdeu?
– Ela saiu de casa sozinha. A mãe dela achou que ela foi passear. Agora vou fazer
trabalho.
Larga a massinha. O chão, em volta da mesa, está cheio de massa e pedaços de
papel. Pega outra folha de papel branco e fica ansioso, pois não acha a tesoura.
– Cadê a tesoura? Cadê a tesoura? Achei.
Corta as pontas do papel, mas depois vai recortando-o. Desiste e pega outra folha
amarela e também recorta, agora um círculo, e desenha um rosto com olhos, nariz e boca.
Recorta a folha branca e cola o rosto. Pergunto sobre o que ele estava fazendo , mas ele diz
para eu esperar. Diz que eu falo muito. Pega o durex.
– Não abre, não abre. Abre para mim, não consigo.
Encontro a ponta do durex e devolvo-o a ele. Ele corta um pedaço com a tesoura e
cola no papel. Pega as tintas azul, amarela e preta e pinta nas folhas. Pega a tinta branca e
fica mexendo com o pincel com certo prazer, pois parecia ansioso. Pergunta se pode pôr
um pouco de água na tinta branca, alegando que ela estava dura. Volta-se para a sua
montagem e recorta o papel, colando os braços. Diz que esqueceu de fazer as mãos no
homem.
Tento perguntar sobre o homem, mas pede para eu esperar. Corta o braço do
homem (tinha feito os braços com tiras bem compridas). Cola papel espelho. Novamente
pergunto e ele diz que o homem “tá esperando fazer ele”. Cola outro braço, e o homem
fica com um braço de um pedaço de papel laminado amarelo, outro de papel espelho azul,
as pernas e a cabeça de papel amarelo. Toda essa composição ele faz colando na folha
branca, onde havia pintado com algumas tintas.
Digo-lhe que na próxima vez em que ele vier levarei outras coisas e peço para ele
guardar o material na caixa, mas ele diz que não e continua. Ao ver que eu começo a
guardar, sai da sala. Eu tinha mais coisas para lhe falar sobre o enquadre, mas ele sai sem
querer me ouvir.

Análise da sessão ludodiagnóstica


Inicialmente, o menino preocupa-se com o pai e acha estranha a presença deste
naquela situação. Pode-se levantar a hipótese de algum problema da criança em relação ao
que diz respeito a sua participação nessa situação, ou seja, é como se estivesse fora do
contexto do que é comumente esperado.
Verifica-se também nas suas perguntas que ele sabe mas não utiliza elementos da
sua observação. Por exemplo, "Tem papel aqui?". Ao referir-se no início da sessão à cerca,
parece que o que a criança não sabe consertar são as suas ligações afetivas. É uma criança
que não tolera a falta, e provavelmente isso está relacionado à ausência das figuras
parentais.
Ao referir-se ao andar do prédio e depois ao irmão, provavelmente não sabe a
diferença entre ele e o irmão, entre ser maior e menor. Ao colocar as massas embaixo dos
animais, verifica-se uma necessidade de apoio, de estrutura. Entretanto, é possível que ele
esteja se referindo aos pais, que necessitam de estrutura.
O menino não consegue controlar seus impulsos, sai muita cola. Por outro lado,
tem que sair muita cola, ou seja, há um medo de que as coisas possam ficar dentro dele,
elas têm que sair. Provavelmente, quando bebê, sofreu de cólicas ou dores, quem sabe as
dores de ouvido.
Ao perguntar se a mãe está lá fora e demonstrar preocupação com a fechadura e a
porta, a criança manifesta uma dificuldade de estar ligada à mãe. Ou seja, quer saber como
é esse negócio de abrir e fechar onde ele fica sem a mãe. Será que pode perdê-la ao separar-
se dela? Provavelmente, o menino está preso à mãe através das fezes, ou seja, a encoprese é
uma forma de controle da mãe, de mantê-la sob seu domínio.
É interessante observar que entre o casal também há essa relação de domínio, pois
a mãe se queixa que, apesar de trabalhar, o faz à custa demuita imposição, sem o apoio do
marido, que a quer em casa. O sintoma da criança é o sintoma da relação dos pais, ou seja,
de domínio, de quem domina quem (Mannoni, 1965).
A fantasia de abandono novamente aparece quando ele diz que a pessoa se perdeu
da mãe. Morre se fica longe, não pode afastar-se. Isso novamente aparece quando ele fica
desesperado ao perder a tesoura.
Diante da angústia de perda, ele tenta, por mecanismos de racionalização (ao dizer
trabalho), montar algo, mas o faz de maneira cindida (por exemplo, o homem é de diversas
cores). Além disso, pode-se verificar como é difícil para essa criança compartilhar o irmão
com a mãe. É ele o dono da situação onde se encontra? Ou tem que dividir?
Verifica-se também que ele não consegue esperar o enquadre no início da sessão, e
mesmo no fim, ou seja, não espera a demanda. Assim como em relação às fezes, não
consegue ter o controle. Provavelmente, reter siginifica se submeter. Freud diz que o
princípio do prazer em relação às fezes é uma questão social e atende a uma domesticação.
O prazer é produzir as fezes na hora que quiser. O difícil é aceitar a frustração.
O fato de perguntar se pode sujar a mesa com a massinha confirma as colocações
de Aberastury, pois ele quer saber logo no início se a terapeuta vai aceitar essa sujeira ou
não, se vai tolerar suas fezes ou não. Há uma culpa ou perseguição em relação à sujeira.
Qual seria o seu medo? Que invadisse a terapeuta. Depois ele vai lidar com a cerca, com
limites, ou seja, vai explorar como lida com isso.
Verifica-se também que é uma criança que se coloca no papel de dependente. Faz
perguntas cujas respostas ele sabe, pede para a terapeuta fazer coisas por ele – por
exemplo, abrir a cola. Mostra, assim, que tem recursos, mas não os utiliza, apresentando
atitudes regressivas.
É importante ressaltar que a escolha dos seus brinquedos, a maneira com que os
utiliza, sua atitude egocêntrica em relação ao jogo, não se importando com as intervenções
da terapeuta, sua labilidade passando de um jogo a outro, etc, demonstram características
de conteúdos do tipo anal, o que está de acordo com o sintoma de encoprese.
Além disso, a psicomotricidade da criança está carregada de ansiedade. Deixa cair
massas, papéis, corta, tira, põe, muda de jogo, etc., tudo com muita ansiedade, o que
caracteriza um ego imaturo, que não pode postergar desejos, insatisfeito e ainda sob o
domínio do prazer, situação na qual o jogo tem a função de descarga.
Em relação ao diagnóstico, pode-se dizer que se trata de uma criança com
explosões de caráter, despotismo e defesas obsessivas.

Conclusão ludodiagnóstica
Trata-se de uma criança que procura elaborar e expressar seus conflitos associados
a ameaças de perda e de abandono pelas figuras parentais, logo, associados a dificuldades
afetivas correspondentes a fixações na fase anal, daí a encoprese e a agressividade. Os
mecanismos básicos de defesa para lidar com os conflitos são a negação e a racionalização,
mas quando a criança não consegue controlar os impulsos se desestrutura, desencadeando
ansiedade persecutória e agressividade, caracterizando um ego imaturo, que não pode
postegar desejos, insatisfeito e ainda sob o domínio do prazer, situação na qual o jogo tem
a função de descarga. Há fantasias de integração relacionadas ao processo de identificação,
mas ainda carregadas de muita ansiedade.

Referências:
ABERASTURY, A. (1962) Teoria y técnica Del psicoanalisis de niños. 6. ed. Buenos
Aires, Paidós, 1978.
KLEIN, M. (1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento
do ego. In: KLEIN, M. Contribuições à psicanálise. Trad. Miguel Maillet. São Paulo: Ed.
Mestre Jou. 1970. p. 295-314.
KLEIN, M. (1931) Uma contribuição à teoria da inibição intelectual. In: KLEIN,
M. Contribuições à psicanálise. Trad. Miguel Maillet. São Paulo: Ed. Mestre Jou. 1970. p. 319-
334.
MANNONI, M. (1965) A primeira entrevista em psicanálise. Trad. de Roberto C.
Lacerda. 2a. ed. Rio de Janeiro, Campus, 1982.

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