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Cristãos no século 21

Os dilemas e oportunidades da época atual

Leandro Lima
Cristãos no século 21
Os dilemas e oportunidades da época atual

LEANDRO LIMA

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© Leandro Lima

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Meios Comunicação

Revisão
Adély Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

L732c Lima, Leandro Antonio de, 1975-


Cristãos no século 21: os dilemas e oportunidades da época atual / Leandro Lima.
- São Paulo: 2015.
v.1.

Inclui referências.
ISBN: 978-85-99704-18-9

1. CRISTIANISMO E OUTRAS RELIGIÕES - ROMANA. 2. ATEUS-ASPECTOS RELI-


GIOSOS. 3. RELIGIÕES - DOUTRINAS E CONTROVÉRSIAS. 4. IGREJA E PROBLE-
MAS SOCIAIS. 5. MISTICISMO. 6. PRAGMATISMO. 7. RELIGIÃO - FILOSOFIA.
8. BÍBLIA - COMENTÁRIOS. 9. BÍBLIA - CITAÇÕES. 10. PÓS-MODERNISMO -
ASPECTOS RELIGIOSOS. I.Título.

PeR – BPE 12-002 CDU261


CDD 261.22

2015
Todos os direitos reservados e protegi-
dos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
Editora Agathos, Ltda
www.grandesdoutrinas.com.br

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SUMÁRIO

Volume 1

1 O CONFUSO MUNDO ATUAL 5

2 A DIFÍCIL VIDA DE UM ATEU 10

3 PESSIMISMO DESNECESSÁRIO 16

4 DEVEMOS ESPERAR UM MUNDO MELHOR? 22

5 O ABALO DOS PILARES DA MODERNIDADE (PARTE 1) 28

6 O ABALO DOS PILARES DA MODERNIDADE (PARTE 2) 35

7 A CIDADE DOS HOMENS 42

8 A CIDADE DE DEUS 48

9 O VELHO E SEMPRE NOVO PAGANISMO 55

10 A MAIOR AMEAÇA PAGÃ 63

11 A INVASÃO DO MISTICISMO NA IGREJA 69

12 IGREJA INSATISFEITA COM CRISTO 75

13 O PODER DESTRUIDOR DO PRAGMATISMO 83

14 A FÉ É PRÁTICA SEM SER PRAGMÁTICA 90

15 ÉTICA EM TEMPOS DE RELATIVISMO 95

16 O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 1) 102

17 O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 2) 109

18 BELEZA EFÊMERA 116

Bibliografia 123

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1
O CONFUSO MUNDO
ATUAL

Mt 16.1-4

INTRODUÇÃO ENTENDENDO OS TEMPOS

Dois homens conversavam num avião. O mundo, a sociedade e a cultura são or-
Um deles, um cineasta, se reconhecia ganismos dinâmicos que estão em cons-
como uma pessoa pós-moderna. O ou- tante mudança, adaptação e readaptação.
tro, um cristão evangélico, pediu que o Ideologias surgem, desaparecem, ressur-
homem explicasse o que significava ser gem, convivem mutuamente, contradi-
“pós-moderno”. O cineasta respondeu: zem-se, tornam-se dominantes, caem no
“É não ter preconceitos, é aceitar que to- esquecimento, e isso tudo com a mesma
dos possuem um pouco de verdade, é ter velocidade dos meios de comunicação
a mente aberta para aceitar o diferente”. O modernos. Caso a igreja queira realizar
cristão agradeceu pela resposta e antes de uma obra eficaz de influência e transfor-
sair do avião ofereceu ao cineasta um pe- mação num mundo assim, ela precisa es-
queno exemplar de um plano de salvação. tar atenta para essas transformações. Essa
O cineasta fez uma cara esquisita e foi uma das grandes funções dos profetas
perguntou: do Antigo Testamento. Eles não eram
apenas homens de visão a respeito do
“Isso é coisa de evangélico?”. futuro, mas também homens que enxer-
“É sim”, o evangélico respondeu. gavam muito bem o presente. Esses ho-
“Obrigado, eu não quero”, o cineasta mens tinham um olho em Deus e outro
respondeu, “dê para outra pessoa”. no mundo e, assim, conseguiam perceber
O evangélico ficou surpreso: as ações de Deus na História, o cresci-
“Mas você não disse que ser pós-mo- mento do mal dentro da sociedade e os
derno é não ter preconceito?”. principais desafios para o povo de Deus

O CONFUSO MUNDO ATUAL 5

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daquele período. Embora nem sempre a história da igreja, percebemos que os
fossem aceitos pelos seus contemporâne- religiosos se ocuparam demasiadamente
os, puderam fazer uma obra de influência com essas tarefas.
duradoura dentro de Israel.
Uma das razões pelas quais muitas igrejas
Jesus repreendeu severamente os fariseus históricas estão vazias em nossos dias não
por seguirem um caminho oposto, pois é só porque as pessoas se tornaram apai-
eles demonstravam dificuldades em re- xonadas por modismos e invencionices
conhecer o que chamou de “os sinais dos modernas, mas porque muitos púlpitos
tempos” (Mt 16.3). Eles não conseguiam, têm se tornado irrelevantes, e as pessoas
ou talvez não quisessem, entender a situ- estão cansadas de ouvir coisas irrelevan-
ação de sua própria época. Eles estavam tes. De muitos púlpitos o que se ouve
desatentos para reconhecer os sinais de são mensagens excessivamente técnicas,
Deus para aquela geração; estavam preo- destituídas de vida, piedade e aplicação
1
.John Stott, Ouça o
cupados demais com seus afazeres e em prática, num terrível distanciamento do
espírito, p. 246. manter a posição que haviam conquista-
mundo e de Deus. O radicalismo, seja ele
2
Embora devêsse- do. Ao desconsiderar o que estava acon-
mos preferir “pós- de caráter liberal, carismático ou tradi-
-modernidade” ao invés tecendo em sua geração, eles se tornaram
de “pós-moderno” ou cional, é sempre um pálido substituto da
“pós-modernismo” para irrelevantes e um peso para as pessoas de
evitar mistura de concei- ação de Deus na História.
tos. O termo “pós-moder- seus dias. Tudo o que faziam era manter
nismo” é mais aplicado
um esquema fixo de religião superficial
à literatura, arquitetura MODERNO OU PÓS-MODERNO?
e artes como estilo pró-
prio. Pós-modernidade
que não atendia às verdadeiras necessida-
tem a ver com a época des das pessoas.
generalizada. Ouvimos frequentemente que estamos
3
Antonio Cruz vê o
Esse é sempre o grande risco que a igreja vivendo numa sociedade pós-moderna
desenvolvimento da ide-
ologia pós-moderna ao
enfrenta. Ela pode ficar tão concentra- e pós-cristã. Será que estamos realmen-
longo do século 20: no
vitalismo anti-intelec- da nos seus problemas e tarefas internas te numa sociedade pós-moderna? Então,
tualista do começo do
século, no existencia- que se esquece de que há um mundo lá isso significa que o moderno não existe
lismo das décadas 30 a
50, na contracultura dos fora, onde pessoas, seres humanos, estão mais? Embora utilizemos o termo “pós-
anos 60 e, finalmente,
no atual estágio da gritando de angústia, vivendo sob o ter- -modernismo”2 nestes estudos, é preciso
pós-modernidade. (Ver
Antonio Cruz, Postmo- rível peso da frustração, do ceticismo, do entender a limitação dele. Não é possível,
dernidad, p. 50-52).
desespero e do conformismo. E, mesmo com o termo em si, por exemplo, definir
dentro de suas quatro paredes, há pessoas a data e o sentido exato de um aconte-
cheias de dúvidas, de agressões à fé, de co- cimento3. O mundo pós-moderno, de
rações endurecidos e com absoluta des- certo modo, ainda é um mundo “moder-
preocupação espiritual. Quando a igreja no”, até porque há muito da filosofia do
se esquece de olhar para Deus e para o modernismo atuando hoje. Ou seja, são
mundo, ela corre o risco, como diz Stott, mundos que se sobrepõem, ou interfaces
de “responder perguntas que ninguém que convivem. O fim da modernidade e o
está fazendo, coçar onde não há coceira início da pós-modernidade são períodos
alguma, prover bens para os quais não sobrepostos e que, talvez, jamais deixem
há nenhuma demanda”1 . Olhando para de se sobrepor. Como disse Jencks, o pós-

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-modernismo tem uma filosofia e visão as “pós-modernas” em nossos dias, mas é
de mundo híbrida, misturada e dialetica- preciso que se entenda que ainda há pes-
mente envolvida com o modernismo4. soas “antigas” e “modernas” também. E
talvez nenhuma totalmente pura, como a
O caminho mais adequado, se quiser- história acima nos mostrou.
mos tentar diferenciar “modernidade” de
“pós-modernidade”, é entender as suas Jean-François Lyotard6 pode ser indica-
perspectivas a respeito da realidade. No do como o responsável pela introdução
mundo antigo (anterior ao moderno), a do termo “pós-moderno” na pesquisa
eloquência era o grande trunfo dos eru- acadêmica7. Entretanto, o termo já era
ditos. Os filósofos se destacavam, porque conhecido desde a década de 308. Ele de-
tinham a autoridade e a habilidade de ar- signou mudanças na arte, na arquitetura e
gumentar sobre as coisas. O mundo mo- na literatura. Hoje, o termo se tornou co-
derno rompeu com essa tradição dizen- mum e, embora extremamente discutido,
do: “Não me fale sobre algo, mostre-me”. é um conceito amplamente estabelecido, 4
Charles Jencks, “What
Na essência do modernismo científico, a pelo menos como ponto de partida para is Post-Modernism?”,
p. 478.
verdade não era aquilo a respeito do que discussões. Jameson diz que o sucesso 5
Ver essas expressões e
se podia argumentar, nem aquilo baseado da palavra “pós-modernismo” deveria comparações em: David
Harvey, Condição pós-
na autoridade de alguém, mas aquilo que ser escrito em forma de Best-seller, tal -moderna, p. 46.
se podia comprovar cientificamente. Por foi a capacidade do termo de aglutinar 6
A definição de Lyotard
de pós-modernidade já é
isso, os pensadores modernos rejeitaram pensamentos e sentimentos9. MacGrath clássica: “Simplificando
ao extremo, considera-se
a autoridade da igreja e dos filósofos an- entende que o termo “oferece correta ava- ‘pós-moderna’ a incre-
tigos em troca das pesquisas experimen- liação do tom cultural contemporâneo”10. dulidade em relação aos
metarrelatos” (Condição
tais da ciência. A pós-modernidade, por Certamente a expressão mais famosa as- pós-moderna, p. xvi).
7
sua vez, desacreditou da razão, pois não a sociada ao conceito de pós-modernidade Ver Alister MacGrath,
Paixão pela verdade: a
julgou mais capaz de chegar à verdade, até é o relativismo. Ao longo deste livro, pau- coerência intelectual do
evangelicalismo, p. 137
porque a pós-modernidade desacreditou latinamente, desenvolveremos de forma 8
Ver Margaret Rose, “De-
da existência da própria verdade (pelo aplicada os conceitos de pós-modernida- fining the post-modern”,
p. 119-36.
menos em termos absolutos). Assim, de. Mas desde já, podemos deixar nossa 9
Fredric Jameson, Pós-
podemos diferenciar essas três visões impressão generalizada da situação: pós- -modernismo, p. 17.
do mundo como se três pessoas estives- -modernidade é frequentemente uma 10
Alister MacGrath,
sem conversando. A pessoa “antiga” dirá: atitude em relação à vida que, sob a capa Paixão pela verdade: a
coerência intelectual do
“Fale-me sobre isso, argumente”. A pes- de uma suposta tolerância e aceitação do evangelicalismo, p. 137.

soa moderna dirá “Prove-me com algum “diferente”, esconde o velho orgulho e au-
experimento verificável”. E a pessoa pós- tonomia humanos.
-moderna dirá “É tudo inútil, não dá para
ter certeza de nada, eu não estou interes- Quanto ao termo “pós-cristão”, embora
sado nisso, deixe-me viver a vida”. Por o aceitemos com reservas, é preciso en-
isso, a palavra chave para o modernismo é tender que, para que a sociedade mundial
“epistemologia” (racional) enquanto que fosse de fato pós-cristã, ela precisaria ter
a palavra chave para o pós-modernismo é sido, em algum momento, cristã. Mas isso
“ontologia”5 . Certamente existem pesso- nunca aconteceu. Apesar de sempre te-

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rem existido no mundo cristãos verdadei- vezes, são acusados de não construírem
ros que influenciaram positivamente suas nada.
famílias, suas cidades e até mesmo suas
gerações, este mundo jamais assimilou o Precisamos construir uma fé resistente
verdadeiro Cristianismo. Todavia, ainda aos ataques do mundo moderno ou pós-
que o mundo nunca tenha sido realmente -moderno, mas não só isso, pois é possível
cristão, por bastante tempo o Cristianis- construir uma fé que se torne ainda mais
mo teve forte influência sobre ele, espe- forte e relevante a partir desses ataques.
cialmente sobre o Ocidente. A moralida- O mundo de nossos dias, com toda a sua
de cristã preponderou por muito tempo confusão, as suas contradições, os seus
e conseguiu influenciar fortemente a cul- distúrbios e as suas hostilidades, ainda
tura até a metade do século 20. De lá para pode se configurar uma excelente opor-
cá, o Ocidente tem se libertado dessas in- tunidade para a igreja realizar a obra de
fluências e apregoado novos valores, uma Deus e anunciar o evangelho eterno (Ap
nova moralidade e uma nova religião, os 14.6)12.
11
É claro que não no quais são, geralmente, nada mais do que
mesmo sentido que a
expressão é aplicada imoralidade, desvalorização do ser huma- Esse é o nosso grande desafio. Nosso ob-
a Derrida, Foucault e
outros. Na verdade, esse no e, acima de tudo, paganismo. A cultura jetivo aqui não é uma análise acadêmica
desconstrucionismo é
secular redescobriu no paganismo o seu da pós-modernidade, mas uma avaliação
tipicamente pós-
-moderno. Grenz diz: “os verdadeiro habitat natural. pastoral de seus fenômenos para uma me-
filósofos pós-modernos
aplicaram as teorias lhor mobilização da igreja, ou talvez de-
do desconstrucionismo
literário ao mundo como A ATITUDE DA IGREJA vêssemos dizer, para seu melhor posicio-
um todo” (Stanley J.
Grenz, Pós-modernismo,
namento, o qual Jesus disse que é sobre a
p. 22).
É importante entender as filosofias e as mesa e não escondido debaixo dela (Ver
12
Mesmo que não fosse,
não nos isentaria da
práticas que têm dominado a sociedade Mt 5.15).
responsabilidade de
fazer isso.
atual e influenciado a igreja cristã. Evi-
dentemente, uma análise exaustiva de CONCLUSÃO
algo assim seria impossível, pois nem
sempre conseguimos sequer acompanhar Permanece que Deus deixou, em cada
o dinamismo do tempo. Nossa busca é a época, sinais sobre os tempos e sobre as
de olhar para o mundo e ver o que está expectativas dEle próprio em relação aos
acontecendo e, ao mesmo tempo, olhar homens. Entender a época em que vive-
para Deus, para sua Palavra, em busca de mos é crucial para viver do modo que
respostas ou orientações. A ideia não é só Deus deseja, pois o Todo-Poderoso quer
destruir o que se apresenta errôneo diante que vejamos nos tempos em que vivemos
de nossos olhos, mas oferecer uma opção as marcas deixadas por Ele. Diante da atu-
viável para uma vida significativa à luz da al situação do mundo é possível discernir
Palavra de Deus. Às vezes, os cristãos re- o “vermelho sombrio” que anuncia tem-
formados são chamados de “desconstru- pestades. Por outro lado, os cristãos sem-
cionistas”11, pois têm grande facilidade pre devem se lembrar do maior sinal que
em demolir as estruturas de pensamento Cristo já deu para os homens: o sinal do
que consideram erradas; porém, outras túmulo vazio. Como Jonas, Ele ficou em-

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baixo da terra, porém saiu ao terceiro dia
para demonstrar que é o senhor do tem-
po e da história.

Anotações

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2
A DIFÍCIL VIDA DE UM
ATEU

Salmo 14.1–7

IINTRODUÇÃO TANTOS FILÓSOFOS, MAS CADÊ A


VERDADE?
Não é fácil ser um ateu nesse mundo. A
frase acima pode parecer estranha, pois No mundo moderno, em que a tecnolo-
ouvimos falar de tantos ateus por aí, e eles gia e a ciência conquistaram os maiores
geralmente são hostis à mensagem cristã, espaços, foi declarado que não havia lu-
mas a grande verdade é que é difícil con- gar para as crenças em milagres divinos
seguir ser um ateu convicto. E a razão dis- ou interferências sobrenaturais, nem para
so não está na discriminação que os ateus se acreditar nas velhas histórias da Bíblia.
se dizem alvo, mas no esforço que alguém Tudo o que o homem tinha era sua pró-
assim precisa fazer para se livrar da noção pria capacidade de resolver seus proble-
envolvente da existência de Deus. mas. Nesse sentido, Deus não era mais
necessário, pois o sobrenatural não exis-
O rei de Israel escreveu: “Diz o insensato tia, ou se existia estava tão distante dos
no seu coração: Não há Deus” (Sl 14.1). homens que certamente não podia ser
Ou seja, o ateu precisa fazer um esforço alcançado.
de dizer para si mesmo que Deus não
existe. Ele precisa fazer isso porque tudo Quando estudamos a história da filosofia,
à sua volta e também dentro de si grita percebemos como o racionalismo trouxe
de modo impossível de abafar que “Deus o ceticismo e, por fim, gerou o agnosti-
existe”! cismo, que pode ser definido como a im-
possibilidade de conhecer algo realistica-
mente.

Na Idade Média, o filósofo francês René


Descartes (1596-1650) queria chegar

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às ideias fundamentais das coisas e, para que a ideia da existência de Deus não era
isso, criou um processo rigoroso de dúvi- algo inato no ser humano; ao contrário, o
da sistemática. Tudo o que fosse suscetí- homem pensa na existência de Deus pela
vel de dúvidas deveria ser rejeitado. Sua análise das coisas existentes. Locke en-
máxima era: “Penso, logo existo”. Essa tendeu que a existência de Deus era ne-
frase se tornou bem conhecida e frequen- cessária, pois algo precisava existir desde
temente vemos paródias dela por aí. Mas toda a eternidade, ou então nada existiria;
ele simplesmente estava querendo dizer porém, ele colocou a existência de Deus
que essa era a coisa mais básica que não dentro do campo das experiências e as-
podia ser negada. Isso lhe dava firmeza sim a tornou mais difícil de ser afirmada.
para começar a construir um sistema de Já não era uma ideia em si. Era algo que
pensamento confiável. Do “Penso, logo carecia de comprovação.
existo” Descartes pulou para o “Penso,
logo Deus existe”. Descartes dizia: “Eu A discussão entre Descartes e Locke le-
não teria a ideia de uma substância infi- vou outro importante filósofo daquele
nita, eu que sou um ser finito, se ela não período a trabalhar sobre esta questão: 13
René Descartes,
tivesse sido colocada em mim por alguma David Hume (1711-1776). Ele simples- Meditações, III, 22 (pp.
115-116).
substância que fosse verdadeiramente in- mente levou a abordagem empírica de
14
Ver David Hume,
finita”13. Logo, a existência de Deus era Locke às profundezas do ceticismo. Se a Investigação sobre o
necessária para explicar a existência da ideia de Deus precisava ser comprovada entendimento humano,
IV, 2 (pp. 140-141).
ideia da perfeição e a existência da pró- pela razão e pela experiência, uma vez 15
Grenz & Olson, A
pria pessoa. Nesse sentido, Descartes se que isso era impossível de fazer, então, teologia do século vinte,
p. 28.
colocou alinhado com os filósofos e teó- somente restava a dúvida. O verdadeiro
logos clássicos. Ao longo da história, qua- conhecimento, se existisse, estaria sim-
se todos os que tentaram negar a existên- plesmente além das capacidades huma-
cia de Deus precisaram lutar contra essa nas. Assim sendo, a ignorância podia ser
lógica cartesiana. convertida num tipo de mérito14 .

De acordo com o racionalismo cartesia- O ceticismo de Hume despertou de seu


no, o homem tinha ideias inatas a respeito sono dogmático aquele que seria con-
da divindade, e isso produziu reações na siderado por muitos o maior filósofo
Europa, e uma das maiores foi a do inglês dos tempos modernos, Emmanuel Kant
John Locke (1632-1704). Locke seguiu (1724-1804).
a linha racionalista como Descartes, mas
percebendo falhas e inconsistências no Kant se tornou o divisor de águas da filo-
pensamento cartesiano, duvidou da capa- sofia moderna. Ele entendeu corretamen-
cidade intuitiva do ser humano para con- te que o empirismo cético de Hume im-
seguir adquirir o conhecimento. Locke possibilitava o conhecimento verdadeiro,
dizia que o ser humano nasce como uma e ele não acreditava que a limitação do
“tábula rasa”, ou seja, sem nenhuma ideia conhecimento humano exigisse uma re-
inata, e tudo o que adquire é durante a jeição cética de todos os conceitos meta-
vida, pelas experiências. Locke entendia físicos (sobrenaturais)15 . Para evitar isso,

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fez distinção entre os mundos fenomenal Por causa disso, os seres humanos sempre
e numenal. Disse que somente podíamos conservam certa “semente da religião”
conhecer os fenômenos, ou seja, aquilo (semen religiones)17 , e não conseguem
que se apresenta aos sentidos, pois a esfera viver sem ela.
do númeno, que seria o sobrenatural, era
impossível de ser conhecida. Deus, para A negação do sobrenatural é uma nega-
Kant, ficava no campo numenal; logo, ção de um conceito íntimo. E é também a
não poderia realmente ser conhecido. negação de uma “voz” exterior. O salmis-
Embora Kant acreditasse na existência de ta afirmou: “Os céus proclamam a glória
Deus, sua filosofia tornou a existência de de Deus, e o firmamento anuncia as obras
Deus algo demasiado vago e inverificável. das suas mãos. Um dia discursa a outro
Ela ficou conhecida como Agnosticismo dia, e uma noite revela conhecimento a
Metafísico (negação da possibilidade do outra noite. Não há linguagem, nem há
conhecimento das coisas não físicas). palavras, e deles não se ouve nenhum
16
som; no entanto, por toda a terra se faz
J. Calvino, Institutas,
1.2.1. Assim, a “evolução” da filosofia redire- ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos
17
J. Calvino, Institutas,
cionou o seu alvo da metafísica (sobre- confins do mundo” (Sl 19.1-4). Essa so-
1.2.1. natural) para a natureza. As ideias nora voz da natureza ecoa no ser humano,
18
J. I. Packer, Nunca sobrenaturais deviam ser deixadas de pois seus sentimentos mais íntimos ane-
perca a esperança, p. 105.
lado, seja porque não existia o lam pela existência de Deus. O ateu, seja
sobrenatural, ou porque era impossível ele racionalista, cético ou agnóstico passa
analisá-lo. a vida inteira lutando contra isso, tentan-
do silenciar os apelos íntimos do seu ser e
fechando os olhos e os ouvidos ao que a
EVIDÊNCIAS CLARAS, PORÉM NEGADAS natureza proclama.

O ceticismo, ou o agnosticismo se tornou O ceticismo, de certo modo, é uma de-


a filosofia de vida de muitas pessoas, es- cisão existencial. Um cético é sempre al-
pecialmente no período moderno. Mas guém que se recusa a crer nas evidências.
o cético não tem uma vida fácil. Há um Packer está certo, “o ceticismo nunca é
imenso testemunho diante dos olhos hu- uma atitude a ser admirada. Ele sempre
manos que tem de ser ignorado para que tem algo de deliberado”18 . Na maioria das
uma pessoa rejeite a ideia da existência de vezes, o cético está magoado com alguma
Deus e do mundo sobrenatural. situação da vida e isso o leva a negar o as-
pecto sobrenatural, e outras ele está tão
Há no ser humano uma espécie de “sen- preconceituosamente convicto de que
so” da existência de Deus. Calvino (1509- não é verdade aquilo em que ele não quer
1564) chamou isso de sensus divinitatis. acreditar, que nada consegue fazê-lo ver o
Ele disse: “Nós afirmamos, sem nenhu- contrário.
ma discussão, que os homens têm certo
sentimento da divindade em si mes- O ceticismo e o agnosticismo funcionam
mos; e isso, como por um instinto bem na teoria, mas são terríveis na prá-
natural”16 .

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tica. Eles destroem o sentido da existên- e ao sobrenatural, mas muito otimistas
cia. Não sobram ideais no ceticismo e no em relação ao que o ser humano podia e
agnosticismo. Por isso eles preparam o devia construir por si mesmo. Isso se de-
caminho para o existencialismo do mun- monstrou um otimismo ingênuo.
do pós-moderno. E quando as pessoas
se cansam do existencialismo, só sobra o Bertrand Russel (1872-1970) é um caso
niilismo. O niilismo é o filho natural do bem típico do pensamento que foi her-
existencialismo. No existencialismo o deiro do ceticismo e do agnosticismo. Seu
homem deixou de acreditar no sentido discurso “Porque não sou cristão”, profe-
da vida, então passou a aproveitar a vida rido em 6 de março de 1927, tornou-se
desesperadamente, como sendo tudo o um dos marcos do humanismo secular, e
que lhe resta. O niilismo entendeu que se um claro exemplo do ingênuo otimismo
não há sentido na vida, não há o que se dos modernistas. Russel pretendeu ofere-
aproveitar. Por isso só restou o protesto e cer explicações convincentes sobre a sua
depois de algum tempo o nada (nihil em descrença no Cristianismo e sobre sua 19
Ver Leandro Lima,
latim). expectativa de que a ciência traria o pro- Razão da esperança,
p. 562.
gresso e a paz de que a humanidade tanto
A não-existência de uma vida além da precisava.
morte, e a não-existência de um Deus jus-
to capaz de julgar todos os atos das pes- O grande esforço de Russel foi o de des-
soas tornaria a vida atual algo totalmente fazer os argumentos (naturais) filosóficos
desprezível da perspectiva da moral e da a respeito da existência de Deus, mas o
justiça. Seriam bem-aventurados aqueles que ele fez, na verdade, foi genericamente
que vivem sem nenhuma lei, exceto a de atacar os argumentos da teologia natural,
satisfazer suas paixões e apetites, pois ja- alguns já bem antiquados naquele tempo.
mais haveria algum julgamento pelo que
fizeram. Tolos seriam os que desejam vi- A força dos argumentos de Russel não
ver uma vida sóbria e equilibrada, pois ja- está nos questionamentos bíblicos ou te-
mais receberiam algo por esse esforço. A ológicos, os quais são bem superficiais,
ordem presente de todas as coisas se tor- mas na consciência dos males produzi-
naria irrelevante, animalesca e desprovida dos pela igreja ao longo da História. Ele
de todo sentido. A educação, a religião e acusou a religião de retardar o progres-
a própria sociedade como um todo, pas- so da sociedade pelo uso do medo e de
sariam a ser elementos da conveniência, fazer muito mal ao ser humano. Esse é o
desprovidos de validade intrínseca, apri- verdadeiro motivo pelo qual ele rejeitou
sionadores, condicionadores e ilusórios.19 o Cristianismo. Mas, se ele fosse hones-
to, teria que rejeitar a ciência por razões
CONFIANÇA INGÊNUA parecidas, pois querendo “libertar” o ho-
mem ela também causou muitos males à
O fim do século 19 e o início do século 20 humanidade.
viram surgir uma geração de pensadores
humanistas descrentes em relação a Deus Embora tenha sido totalmente cético em

A DIFÍCIL VIDA DE UM ATEU 13

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relação à religião, Russel se demonstrou De modo geral, o que Russel fez foi atirar
infantilmente crédulo em relação à ciên- em alvos fáceis e irreais21, e ainda assim
cia, pois acreditava que o homem conse- conseguiu errar feio o alvo. Ele não ofere-
guiria, mediante o progresso tecnológi- ceu qualquer resposta à altura da religião
co e filosófico, construir uma sociedade bíblica e fugiu completamente ao con-
decente sem precisar de “ajuda do alto”. fronto com esta, mas demonstrou uma fé
Nesse sentido, suas palavras finais são inabalável, ainda que ingênua, na ciência
muito esclarecedoras: e no progresso humano.

A ciência pode nos ensinar, e penso que CONCLUSÃO


20
O texto está disponível também os nossos corações podem fazê-
em diversos sites na
Internet. Em inglês:
-lo, a não mais procurar apoios imaginá- Deus existe! “Não há outra resposta pos-
http://www.positivea-
theism.org/hist/russell0.
rios, a não mais inventar aliados no céu, sível”22 . Podemos ter a certeza de que
htm. Foi ublicado pela mas a contar antes com os nossos pró- nossa fé bíblica é absolutamente racional.
Brasília Editora, 1977.
21
prios esforços aqui embaixo para tornar A vida tem sentido, porque Deus existe.
Colin Brown, Filosofia
e fé cristã, p. 146. este mundo um lugar adequado para vi- Por esta razão, “Deus, e somente Deus é
22
Francis Schaeffer. O ver (...) o maior bem do homem”23 . A existência
Deus Que Se Revela,
p 52.
dele é a garantia da racionalidade de nos-
Toda a concepção de Deus é uma con- sa própria existência. É a certeza de que
cepção derivada dos antigos despotismos
23
Hermann Bavinck.
Teologia Sistemática,
orientais. É uma concepção inteiramente a vida tem sentido. Quando o cético ou
p. 17.
indigna de homens livres. (...) Um mundo o ateu para de lutar contra essa verdade,
bom necessita de conhecimento, bondade encontra descanso para sua alma cansada.
e coragem; (...) Necessita de esperança
para o futuro, e não passar o tempo todo Há um Deus bom e sábio o suficiente
voltado para trás, para um passado morto,
para planejar todo esse universo e estabe-
que, assim o confiamos, será ultrapassa-
do em muito pelo futuro que a nossa in- lecer todas as leis que governam a criação.
teligência pode criar.20 Nós existimos porque Deus existe. Não é
irracional crer na existência dEle. Não é
Ao que parece, ele não conseguia (ou irracional crer nas Escrituras. É maravi-
não queria) ver que o progresso humano lhoso contemplar as obras da mão dEle e
pode trazer males e desgraças. No enten- saber, lá no fundo do nosso ser, que Ele é
dimento de Russel, o ser humano se basta o grande autor de tudo. Como ao final de
e pode fazer coisas muito boas por si mes- uma apresentação podemos nos levantar
mo e pelo mundo. Mas será que o mun- de pé, ante o imenso palco da natureza e
do tem realmente melhorado desde que aplaudir o criador pela maravilhosa obra
o homem procurou se livrar da ideia da de arte que ele realizou. E acima de tudo,
existência de Deus? O progresso cientí- podemos nos sentir como parte desta
fico melhorou o ser humano? As guerras ordem e propósito. Não somos fruto do
diminuíram? A fome e as doenças retro- acaso. Somos obra das mãos do Ser Infi-
cederam? O egoísmo e o narcisismo re- nito e Inteligente que nos criou e nos in-
cuaram? cluiu em seu plano eterno e perfeito.

14 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Anotações

A DIFÍCIL VIDA DE UM ATEU 15

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3
PESSIMISMO
DESNECESSÁRIO
João 6.60-69

INTRODUÇÃO O LIBERALISMO TEOLÓGICO

Não foram apenas os filósofos seculares A partir do século 19, para se adaptar aos
que se deixaram influenciar pelo pen- novos tempos, muitos teólogos come-
samento do Iluminismo, boa parte dos çaram a abordar a Bíblia como um livro
teólogos também. Eles se tornaram pes- histórico que precisava ser analisado de
simistas com relação ao sobrenatural. uma perspectiva meramente científica. A
24 Uma das maiores dificuldades do homem partir daí, o texto bíblico começou a ser
Embora o método,
propriamente dito, fosse moderno em relação à Bíblia é aceitar os questionado e os elementos sobrenatu-
chamado de “histórico-
crítico”. milagres que estão relatados nela. A ciên- rais foram rejeitados. Um grande esforço
cia que surgiu do Iluminismo procurou foi feito para recuperar o Jesus histórico
analisar todas as coisas a partir da razão. que teria sido distorcido pelos Evange-
Com o novo método e as novas catego- lhos.
rias de abordagem, e com as descobertas
científicas, uma verdade brotou soberana Depois de tantos estudos, pouca coisa
no Iluminismo: milagres não acontecem. na Bíblia permaneceu como verdadeira
e acima de qualquer suspeita, de acordo
Muitos estudiosos da Bíblia e religiosos com essa perspectiva.
aceitaram essa máxima do Iluminismo
e tentaram adequar a Bíblia a essas con- Esse método de análise da Bíblia ficou co-
cepções. Mas, ao rejeitar a possibilidade nhecido como “liberalismo teológico”24,
de milagres, será que ainda resta algo em um método tipicamente modernista. O
que crer na Bíblia? problema é que o liberalismo como filho
do Iluminismo não levou a pesquisa his-
tórica a lugar algum. A busca pelo “Jesus

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histórico”, a partir da rejeição dos catecis- relação ao progresso científico, mas pes-
mos e dos escritos apostólicos, fracassou simistas em relação à Bíblia. Desnecessa-
completamente, por uma razão muito riamente pessimistas, como se compro-
simples: as únicas informações que temos vou posteriormente.
a respeito de Jesus de Nazaré são aquelas
contidas nos Evangelhos bíblicos.
A NEO-ORTODOXIA
Os teólogos, influenciados pelo Iluminis-
mo, rejeitaram esses relatos, porque en- Nem todos os teólogos estavam conten-
tenderam que os evangelistas não foram tes com esta percepção. Percebendo o fra-
historiadores imparciais, antes discípulos casso do velho liberalismo em encontrar
íntimos de Jesus que escreveram aquelas o Jesus histórico, uma nova geração de
coisas com perspectivas teológicas, que- pensadores, influenciados pelo existen-
rendo passar uma imagem fantasiosa de cialismo filosófico, fundou um novo mo-
Jesus. Os liberais não queriam saber o vimento teológico que ficou conhecido
que os discípulos tinham a dizer sobre Je- como “neo-ortodoxia”. Estes tentaram ser
sus, mas o que a História poderia contar. mais otimistas em relação ao sobrenatu-
ral, mas, ao final, caíram no mesmo pes-
Sproul tem um questionamento relevante simismo. 25
R. C. Sproul, Discípulos
hoje, p. 17..
nesse sentido:
A neo-ortodoxia começou a buscar algo
Quero conhecer o Jesus que radicalizou mais do que a pesquisa meramente histó-
Mateus, que transformou Pedro, que virou rica poderia oferecer. Barth (1886-1968)
de ponta-cabeça Saulo de Tarso na estrada e Brunner (1889-1966) eram pastores
para Damasco. Se essas testemunhas em
que perceberam que o liberalismo não
primeira mão não me podem levar ao Je-
sus “real”, quem poderá fazê-lo? Se não deixava qualquer mensagem para ofere-
é por meio de amigos e entes queridos, cer às ovelhas. Assim, começaram a bus-
como alguém pode se tornar conhecido?25 car a mensagem do Novo Testamento. A
proposta parecia boa no início.
O ponto decisivo é justamente este: sem
o que os discípulos de Jesus escreveram, Bultmann (1884-1976) foi o grande es-
não poderíamos saber coisa alguma sobre tudioso do Novo Testamento da Nova
Jesus. O tipo de cristianismo que o Ilumi- Ortodoxia. Ele fez um esforço para re-
nismo produziu foi natimorto. cuperar essa mensagem para o homem
moderno, e fez isso, não tentando retirar
O que se percebe é que estudiosos da os mitos (milagres) da Bíblia, como fazia
época pós-Iluminismo como Schleierma- o liberalismo, mas interpretando-os (ou
cher (1768-1834), Ritschl (1822-1889) melhor, reinterpretando-os), para que a
e Harnack (1851-1930), que rejeitaram mensagem (kerygma) falasse ao homem
as informações dos Evangelhos, estavam moderno.
tentando ler a Bíblia com os preconceitos
de sua própria época. Eram otimistas em Bultmann não acreditava no método da

PESSIMISMO DESNECESSÁRIO 17

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teologia liberal, mas também não acre- O CRISTIANISMO VERDADEIRO
ditava em milagres. Sua proposta foi di-
ferente, mas acabou no mesmo lugar. Se ainda há um Cristianismo verdadei-
Ele propôs que, em vez de “demitizar” a ro, sobrevivente, no mundo, é porque se
Bíblia, ela deveria ser “desmitologizada”. manteve fiel aos conceitos tradicionais da
Ele não propôs um trabalho de tesoura Bíblia e da pessoa de Cristo. A ala cristã
na Bíblia para recortar e jogar fora tudo que seguiu o otimismo em relação à razão
o que fosse sobrenatural, como faziam os e o pessimismo em relação à Bíblia e ao
antigos liberais, mas que esses eventos sobrenatural conseguiu apenas esvaziar
fossem interpretados, para que a mensa- igrejas em todo o mundo.
gem desses mitos falasse ao homem mo-
derno.26 Apesar de todos os ataques de humanis-
tas como Russel e dos teólogos liberais,
De qualquer modo, o milagre como acon- o Cristianismo sobreviveu. Isso é algo
tecimento histórico foi descartado. Por realmente impressionante, pois todas as
isso, a neo-ortodoxia não foi realmente previsões do início do século 20 davam
uma volta à ortodoxia, apesar da admira- poucas horas de vida ao cristianismo.
26 Ver Rudolf Bultmann.
Demitologização. ção de Barth por Calvino, pois não trouxe Os ateus já contavam essa batalha como
São Leopoldo: Editora
Sinodal, 1999.
de volta os fundamentos bíblico-históri- ganha e estavam preparando o funeral.
27
Citado por Rosino
cos dos reformadores. Por fim lançou a Agora estão tendo que se reorganizar
Gibellini, A teologia do teologia no subjetivismo e abriu as portas numa nova cruzada contra o teísmo. Esse
século vinte, p. 18
para que o “pós-modernismo” influen- é o esforço de Dawkins com o seu “Deus,
ciasse a igreja. um Delírio”. O início do terceiro milênio
tem presenciado um recrudescimento do
Os teólogos neo-ortodoxos não conse- ateísmo em todo o mundo. Mas dessa vez
guiram se livrar do pessimismo dos libe- não tão arrogante, pois não estão profe-
rais em relação à Bíblia. Ao final tentaram tizando datas para o fim do cristianismo.
fazer dela um livro que, definitivamente,
ela não era. A razão da sobrevivência do cristianis-
mo é simples: É a melhor resposta para
É interessante que na correspondência os problemas do ser humano moderno
entre o campeão do liberalismo (Harna- ou pós-moderno. Não importa quantas
ck) e o campeão da neo-ortodoxia (Bar- distorções da religião cristã possam ser
th), cada um tenha feito questionamen- encontradas ao longo da História, ou
tos sérios contra o método adotado pelo mesmo na atualidade, elas não abafam
outro, e, como disse Moltmann, nenhum o verdadeiro cristianismo. Rejeitar essas
conseguiu responder27 . Talvez porque distorções não significa invalidar o cris-
sejam igualmente falhos e nenhum esteja tianismo; antes, significa separar o joio
à altura do verdadeiro conceito de revela- do trigo.
ção bíblico.
A resposta cristã para o dilema da existên-

18 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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cia do homem é a única que pode ser con- A única coisa realmente segura na mo-
siderada realmente uma “resposta”. dernidade foi a insegurança. O projeto
da modernidade sempre esteve envolvi-
O cristianismo superou o modernismo do numa implacável ruptura com todas
por várias razões. Uma delas é que os e quaisquer condições históricas prece-
estudiosos conservadores conseguiram dentes.30 Cada nova descoberta sempre
sustentar a autoridade da Escritura e sua procurava derrubar a descoberta anterior.
confiabilidade histórica, diante de todos Isso pode ser chamado de superstição do
os ataques “antissobrenaturalistas”. Os novo 31. Somente o caos poderia resultar
teólogos conservadores conseguiram daquele projeto e foi o que resultou. O
apontar a inconsistência dos argumentos pós-modernismo é esse caos.
racionalistas dos estudiosos pós-ilumi-
nistas, demonstrando quanto eles care- Entendemos, entretanto, que a razão
cem de provas documentais. Além disso, primordial da instalação desse caos foi
demonstraram que, se a Bíblia não puder o abandono da noção da existência de
ser aceita como um documento histórico Deus. Quando a única coisa que poderia 28
Ver Josh McDowell,
Evidência que exige um
confiável, então toda a história antiga de- ser considerada como o absoluto, ou seja, veredicto, p. 49.
verá ser questionada. A razão é simples: Deus, foi abandonado, o modernismo não 29
Esse projeto da
a Bíblia é o documento mais fundamen- conseguiu que algo ocupasse o seu lugar. modernidade é definido
por Habermas. Ver David
tado historicamente de todos os tempos. Não que não tenha havido esforço nesse Harvey, Condição Pós-
-Moderna, p. 23.
A Bíblia, quando submetida aos critérios sentido. Os modernistas tentaram encon- Ver David Harvey,
Condição Pós-Moderna,
usados para testar todos os documentos trar algo que pudesse unificar o pensa- p. 22.

históricos, demonstra ser extremamente mento. E o curioso é que algumas vezes 30


Antoine Compagnon,
Os Cinco Paradoxos da
confiável.28 tentaram fazer isso inventando novos mi- Modernidade, p.12.
tos, como as obras de arte de Picasso, por 31
Antoine Compagnon,
A outra razão é que o modernismo caiu exemplo, intentavam. Eles queriam algo Os Cinco Paradoxos da
Modernidade, p.12.
por si mesmo. O sentido de fragmentação, que lhes devolvesse o absoluto, mas não
efemeridade e mudança caótica já está encontraram nada. O pós-modernismo
presente no modernismo. Ao abandonar desistiu dessa busca e simplesmente acei-
a noção da existência de Deus como o tou que Ele não existe.
absoluto, o modernismo não conseguiu
que algo ocupasse o seu lugar. O projeto PARA QUEM IREMOS?
da modernidade foi a busca pela ciência
objetiva, por uma lei e moralidade uni- Há uma opção melhor do que adotar os
versais, pela emancipação do ser huma- conceitos pessimistas da pós-modernida-
no, pelo abandono da irracionalidade do de ou mesmo tentar manter os otimistas,
mito e da religião29 . Acreditava-se que porém ultrapassados conceitos da mo-
isso traria por fim a revelação das qualida- dernidade. É a opção por Jesus.
des universais e eternas da humanidade,
mas não revelou, ao contrário, mostrou Uma situação envolvendo Jesus e seus
ainda mais vivamente o lado sombrio do discípulos ilustra bem o que pretende-
ser humano. mos dizer. Em certo dia, “muitos dos dis-

PESSIMISMO DESNECESSÁRIO 19

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cípulos de Jesus o abandonaram e já não o confirmou com o seu selo” ( Jo 6.26,27).
andavam mais com ele” ( Jo 6.66). En- A partir daí, aquelas pessoas começa-
tão, Jesus questionou os doze apóstolos: ram a não gostar das palavras de Jesus. E
”Porventura, quereis também vós outros gostaram menos ainda quando ele disse
retirar-vos?” ( Jo 6.67). A resposta que que sua carne era comida e seu sangue
Pedro deu naquele momento continua era bebida ( Jo 6.52-56). Aquelas pesso-
sendo a grande razão para seguir a Jesus: as o abandonaram porque desejavam um
“Senhor, para quem iremos? Tu tens as Cristo conforme os seus próprios pressu-
palavras da vida eterna” ( Jo 6.68). postos e não o Cristo de Deus.

Boa parte das pessoas que seguiam a Jesus Quando Pedro disse: “para quem ire-
o seguia por motivos errados. No início mos?”, isso não significava que não existis-
do capítulo 6, o Apóstolo João relatou o sem opções. Existia a opção dos fariseus
episódio da multiplicação dos pães e dos e seu tradicionalismo e rigor legalista.
peixes. Esse milagre fantástico causou Também existia a opção dos saduceus, os
uma impressão errada em muitas pessoas. filósofos e eruditos que sustentavam uma
João relata: “Vendo, pois, os homens o si- religião mais liberal influenciada pelo
nal que Jesus fizera, disseram: Este é, ver- helenismo, ou a opção dos essênios que
dadeiramente, o profeta que devia vir ao eram ascéticos e acreditavam que a verda-
mundo. Sabendo, pois, Jesus que estavam deira religião consistia em separação total
para vir com o intuito de arrebatá-lo para do mundo. De fato os essênios viviam em
o proclamarem rei, retirou-se novamente, comunidades fechadas próximas ao Mar
sozinho, para o monte” ( Jo 6.14,15). Tal- Morto e praticavam ritos para se purificar
vez pensassem que um homem que podia física e espiritualmente. Ou, se alguém
multiplicar pães e peixes devesse ser o rei, quisesse mais ação, existiam os zelotes
pois então ninguém mais passaria fome. que eram nacionalistas fanáticos que pen-
Além disso, com tanto poder, ele poderia savam que a verdadeira religião consistia
vencer os exércitos romanos. Mas essa em atividade política radical. Sem falar
não era a intenção de Jesus. Ele não mul- que circulavam pela Judéia vários mági-
tiplicou os pães e os peixes para demons- cos que eram tidos como profetas. Havia
trar seu poder a fim de que o coroassem, muitas opções, mas em nenhuma delas se
mas para que entendessem que ele é o ouviria as palavras da vida eterna.
pão vivo que desceu do céu.
CONCLUSÃO
Quando encontrou a mesma multidão
mais tarde, Jesus lhes falou: “Em verdade, Ainda hoje as pessoas se afastam do ver-
em verdade vos digo: vós me procurais, dadeiro Jesus porque não suportam ouvir
não porque vistes sinais, mas porque co- suas palavras. Preferem acreditar numa
mestes dos pães e vos fartastes. Trabalhai, mentira a atentar para a verdade que pode
não pela comida que perece, mas pela que libertá-las. Preferem se apegar às suas tra-
subsiste para a vida eterna, a qual o Filho dições ou aos seus pressupostos pseudo-
do homem vos dará; porque Deus, o Pai, científicos, ou mesmo ao seu pessimismo

20 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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pós-moderno, e morrem em completo palavras estão registradas na Escritura.
desespero porque não tiveram coragem Fora dela não há o que valha a pena saber
de se apegar à esperança. Os vários mo- sobre Jesus ou sobre a vida. Seguir essas
vimentos liberais e neo-ortodoxos da palavras, por outro lado, significa experi-
história da igreja se esqueceram que só mentar uma vida superior tanto em dura-
Jesus tem palavras de vida eterna. E essas ção quanto em qualidade.

Anotações

PESSIMISMO DESNECESSÁRIO 21

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4
DEVEMOS ESPERAR UM
MUNDO MELHOR?
Ec 1.1–11

rio ainda é o mesmo.


INTRODUÇÃO
A modernidade acreditava cegamente que
O mundo pós-moderno não tem apenas
um rosto, mas muitos, que às vezes se o mundo iria melhorar. A ciência, a edu-
32
Ver Isaltino G. C. Filho,
confundem, se misturam ou mesmo cação, o progresso, trariam melhores con-
“A pós-modernidade: um
desafio à pregação do se opõem. Como o rio de Heráclito dições de vida ao homem e, consequen-
evangelho”. Disponível
em: http://www.luz.eti.br/ (540-480 a.C.), o mundo está sempre temente, mais fraternidade, igualdade e
es_aposmodernidadeum-
desafi o.html#r00 “correndo”. A cada momento que paz. Quando a religião, considerada por
passa, parece que colocamos o pé Marx como ópio do povo, desaparecesse,
num rio (mundo) diferente. o mundo iria progredir. Essa era a crença
dos humanistas.
Todas as coisas estão em constante mu-
dança. Mal somos atacados por uma for- O SONHO ACABOU
ma de pensamento e já vem outra que-
rendo tomar o seu lugar. Mas isso não Ao contrário do que cantou John Len-
significa que tudo seja realmente novi-
non (1940-1980), o sonho acabou32. O
dade. Cerca de mil anos antes de Cristo,
mundo imaginado por Lennon (sem céu
o sábio já questionava: “Há alguma coisa
de que se possa dizer: Vê, isto é novo?” E ou inferno), onde os homens sem pensar
ele mesmo respondia: “Não! Já foi nos sé- em Deus ou em religião buscariam a paz
culos que foram antes de nós” (Ec 1.10). e a unidade, jamais se tornou realidade.
Olhar para o passado, portanto, pode ser Todo o otimismo do mundo racionalista-
um excelente modo de entender o futuro. -científico-moderno se mostrou ingênuo
Até porque o passado nunca é realmente e frustrante. A paz e a prosperidade jamais
totalmente passado. A água passa, mas o chegaram.

22 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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O crescimento econômico beneficiou há nada a fazer, exceto tentar continuar
apenas minorias e manteve a maioria na vivendo, sem sofrer porque outros estão
miséria. As descobertas tecnológicas lan- sofrendo
çaram o homem em duas guerras mun-
diais e a centenas de outros conflitos O CRISTIANISMO E AS OUTRAS RE-
menores em todos os cantos do planeta. LIGIÕES
O século 20 viu seis milhões de judeus se-
rem massacrados em campos de concen- Os filósofos e humanistas desanimaram
tração na Europa. em relação às religiões por acreditar que
elas eram todas iguais, que nada contri-
O marxismo, que parecia ser a solução buíam para o progresso da humanidade,
para todo esse mal, acabou numa das pio- antes, pelo contrário, eram responsáveis
res ditaduras da História, mantendo mi- pelo declínio e retrocesso das pessoas.
lhões na pobreza e na ignorância. O mun-
do viu os efeitos colaterais da luta entre O argumento sobre a existência das ou-
capitalismo e comunismo nas ditaduras tras religiões foi um dos mais fortes que
da América Latina e nas guerras civis, e Humanistas agnósticos como Russel e
consequentemente, a fome, as doenças e Ingersoll (1833-1899) utilizaram para
os genocídios na África. questionar as reivindicações do Cristia-
33
nismo de ser a única religião verdadeira33. Em 1896, o agnóstico
Robert Ingersoll, escreveu
Os otimistas viram o massacre na praça Os teólogos liberais também se inquieta- um ensaio intitulado “Por
que sou agnóstico”,
da paz celestial, que demonstrou, em co- ram com isso, tanto que se esforçaram por disponível em: http://
mphp.org/ingerso2.htm.
res vívidas, o inferno que a razão da hu- traçar comparativos entre as religiões, e
manidade entregue a si mesma consegue reforçaram grandemente o diálogo entre
produzir. elas.

As mudanças não vieram. Os experimen- Eles não entenderam que o Cristianismo


tos científicos e os cálculos matemáticos é a única religião que oferece solução para
não funcionaram tão bem na prática. A ci- o grande dilema do ser humano. Nem o
ência e a educação não conseguiram me- humanismo moderno, nem as outras re-
lhorar o ser humano, nem o mundo onde ligiões conseguem fazer isso. O grande
o homem vive. O mito do futuro glorioso problema do homem é moral, e só o Cris-
se desvaneceu. tianismo fala de redenção. Caso a malda-
de do homem fosse apenas uma questão
O que é a pós-modernidade? É a reação natural, algo como um desenvolvimento
de descrença, porque as promessas do de moléculas, então lutar contra o mal no
modernismo não foram cumpridas. Mais homem seria lutar contra algo da essência
do que isso: é uma reação de desânimo de do homem, e toda ética iria por água abai-
quem percebeu que o mundo jamais vai xo. Mas, segundo a Bíblia, o mal entrou na
melhorar. criação de Deus; ele não era parte original
dessa criação. É justamente essa ideia que
A pós-modernidade percebeu que não garante que o mal, que hoje é constatado

DEVEMOS ESPERAR UM MUNDO MELHOR? 23

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no homem, possa um dia desaparecer. Jesus.

O Cristianismo supera todas as religi- O verdadeiro Cristianismo não existe sem


ões “boas” da humanidade, porque essas Jesus. Vemos os grandes mestres religio-
religiões, de um modo ou de outro, são sos apontando para a verdade como algo
“meios” para melhorar o ser humano. O “fora de si mesmos”. Jesus aponta para a
Cristianismo não é um meio de “melho- verdade ao apontar para si mesmo. Ele é
rar” o ser humano, mas de redimi-lo e, a verdade ( Jo 14.6). Seu sofrimento não é
assim, refazê-lo. Redenção significa que um exemplo de salvação, mas é a própria
todos estão perdidos, mas que podem ser salvação. Bavinck disse:
aceitos e podem ser redimidos. O Cristia-
nismo bíblico é a única religião que con- Ele não foi o fundador do Cristianismo em
um sentido usual, ele é o Cristo, o que foi
segue entender o verdadeiro estado da enviado pelo Pai e que fundou seu reino
humanidade, ao mesmo tempo em que sobre a terra e agora expande-o até o fim
oferece a ela a verdadeira transformação. dos tempos. Cristo é o próprio Cristia-
nismo. Ele não está fora, ele está
Tudo o que as outras religiões têm de dentro do Cristianismo. Sem seu nome,
pessoa e obra, não há Cristianismo. Em
34
H. Bavinck. Teologia
sistemática, p. 311. bom pode ser encontrado no Cristianis-
outras palavras, Cristo não é aquele que
35
Doutrina da salvação. mo, mas redenção é uma pregação exclu- aponta o caminho para o Cristianismo,
siva do Cristianismo bíblico. ele mesmo é o caminho34.

Cristo é o fator distintivo do Cristianismo Outro aspecto que torna o Cristianismo


em relação a todas as outras religiões. Em diferente das outras religiões é que, na so-
todas as religiões, o esquema ou estrutura teriologia35 cristã, não é o homem quem
religiosa se torna a coisa mais importante. busca a Deus e tenta agradá-lo, mas Deus
O Hinduísmo, por exemplo, não precisa quem busca o ser humano. Todo tipo de
de nenhum fundador ou divindade, pois religião filosófica ou esotérica estabelece
ele se mantém pelo seu próprio sistema um conjunto de rituais e oferendas para
filosófico. Do mesmo modo, o Budismo “agradar” a divindade ou para fazer con-
pode sobreviver sem Buda, como o Is- tato com ela; o Cristianismo demonstra
lamismo sem Maomé. Os ensinos deles a graça de Deus que, mesmo o ser hu-
podem ser ensinados por qualquer outro mano tendo se tornado decaído, ainda
e são a base da religião. Quando lemos o assim, Deus se dignou a buscá-lo. Nenhu-
Novo Testamento, percebemos o sentido ma mensagem pode ter mais apelo para
em que o Cristianismo difere de todas as o homem moderno ou pós-moderno do
demais religiões. Todas elas tiveram seus que a mensagem de que o próprio Deus
fundadores que formularam princípios a se tornou homem para redimir o pecador,
serem seguidos pelos seus seguidores. No tendo enfrentado a dor, o sofrimento e a
caso do Cristianismo, Jesus não é apenas morte no seu lugar.
o seu fundador, ele é a própria essência
do Cristianismo. Nesse sentido, o Cristia- O cristianismo não é uma maneira de
nismo não é uma religião, é uma pessoa: “melhorar” o ser humano ou o mundo. O

24 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

cristaos18 de janeiro.indd 28 23/1/2012 12:35:46


cristianismo é a única forma de “transfor- usam para explicar o que é fé. Eles contam
mar” as pessoas e o mundo. que um alpinista ficou preso numa mon-
tanha durante uma noite muito escura.
SÓ PELA FÉ Fazia muito frio, ele estava congelando e
suspenso por uma corda, sem saber o que
O Cristianismo permanece porque, de havia debaixo de seus pés, mas imaginava
certo modo, não sonha com um mun- que fosse um abismo. Ele clamou por so-
do melhor. Não há otimismo ingênuo corro e algo dentro de si lhe dizia para cor-
no Cristianismo. A Bíblia não prevê um tar a corda. Ele não teve coragem e mor-
mundo melhor construído pelo próprio reu congelado a menos de dois metros do
homem. O único mundo melhor será o chão. Fé, nessa interpretação, seria cortar
construído por Deus. a corda. Será essa uma boa ilustração do
que é fé? Dificilmente. Fé não é um salto
O verdadeiro Cristianismo vive pela fé, no escuro, um mergulho no desconheci-
não uma fé nas habilidades humanas, e do; antes, é uma atitude de confiança so-
sim uma fé na soberania de Deus. bre bases seguras e não sobre o subjetivis-
mo.
Não há vergonha em dizer que, em última
instância, é só pela fé que podemos ter O cristão não mergulha no transcenden-
certeza da existência de Deus e do sobre- talismo, no misticismo ou em qualquer
natural. Não porque não haja evidências, outro sistema filosófico que lhe dê expli-
mas porque os pressupostos de uma pes- cações da realidade, ou negue a própria re-
soa podem impedi-la de ver e aceitar essas alidade, ele olha para a Escritura e confia
evidências. no que ela está dizendo. Ele coloca o seu
pé sobre a firmeza dessa rocha (Sl 40.1,2).
A existência de Deus é uma questão de fé
e fé é um dom de Deus (Ef 2.8). Mas Deus Na Escritura, a fé não é uma fé cega que re-
deixou suficientes evidências de si mesmo jeita as pesquisas históricas, porém, é uma
no mundo para tornar indesculpável o fé que não está disposta a aceitar todo o
homem que se recusa a crer nele. A maior sensacionalismo da pseudociência ou da
dessas evidências é a Escritura. Nós temos mídia como verídico.
o testemunho de homens que presencia-
ram fatos e os registraram. É isso o que o A Escritura já deu provas suficientes de
Novo Testamento é, o testemunho confi- sua confiabilidade ao longo da História,
ável de testemunhas oculares (1Jo 1.1-4). pois é impressionante que um livro so-
breviva depois de ter passado por tantos
Nesse sentido, a nossa fé não é um salto testes. Se não fosse verdadeiro, teria desa-
no escuro, como diria Kierkegaard (1813- parecido.
1855), mas uma atitude racional de colo-
car a confiança sobre uma base sólida. Essa mesma Palavra tem operado pode-
rosamente na vida de milhões de pessoas
Há uma historinha que muitos pregadores em todos os tempos, que embora não te-

DEVEMOS ESPERAR UM MUNDO MELHOR? 25

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nham visto ou mesmo ouvido a Jesus, cre- silusão, para se tornar um lugar cheio de
ram, e foram transformadas pela operação oportunidades para testemunhar de Cris-
do Espírito Santo ao ler esse testemunho to e sua graça.
dos amigos íntimos de Jesus.
Mas, não resta dúvida de que o cumpri-
Salto no escuro é o que faz o humanista mento mais pleno acontecerá na Vinda
secular, quando confia em frágeis teorias de Jesus. Naquele dia, quando o Senhor
pseudocientíficas que sustentam outras completar sua obra, e o novo céu e a nova
teorias; ou o que faz o relativista quando terra forem criados, somente os seus fi-
abandona a fé nos absolutos; ou o que faz lhos poderão desfrutar das bênçãos e do
o niilista quando desanima de buscar sig- domínio neste novo lar. Segundo a Bíblia,
nificado para a vida e odeia a existência. os justos desfrutarão da Vida Eterna. Os
De todos, estes, o último é o mais racional, santos desfrutarão da presença eterna e
embora seja adepto do irracionalismo. benéfica de Deus, experimentando a vida
em sua plenitude, “sem nenhuma das im-
36
Louis Berkhof. Teologia O cristão, ao contrário, pode adotar uma perfeições e dos distúrbios da presente
Sistemática, p. 743.
37
atitude realmente positiva em relação à vida”36 . Uma das principais bem-aventu-
Gene Veith, Tempos
pós-modernos, p. 204. vida, pois ele tem bases e princípios se- ranças dos habitantes do futuro universo
guros e testados. Em última instância, ele é que verão a Deus. Jesus disse: “Bem-
vive pela fé, e isso, em hipótese alguma é -aventurados os limpos de coração, por-
um demérito, pois a sua fé não é uma ati- que verão a Deus” (Mt 5.8). E João diz:
tude absurda em relação à vida. “Amados, agora, somos filhos de Deus, e
ainda não se manifestou o que haveremos
HÁ UM MUNDO MELHOR de ser. Sabemos que, quando ele se mani-
festar, seremos semelhantes a ele, porque
No entanto, os cristãos realmente espe- haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2).
ram um mundo melhor. Não um mundo Poderemos ver a plena presença de Deus
que será melhorado pelo crescimento na face de Cristo. Esta, sem dúvida, será
econômico, pela educação ou progresso nossa maior recompensa. Então, o mundo
científico; muito menos um mundo melhor será perfeito.
a partir da independência do ser humano
e sua descrença em relação a Deus. O No futuro, quando adentrarmos a nova
mundo melhor que os cristãos esperam é a terra e o novo céu, desfrutaremos de todas
vinda do reino de Deus. as bênçãos de Deus em sua plenitude. Não
haverá qualquer separação entre a terra
Entretanto, num sentido já experimenta- e o céu, e consequentemente, nenhuma
mos esse mundo melhor hoje. De fato já separação entre o homem e Deus. Todos
reinamos com Cristo, já desfrutamos de os crentes ressuscitados ou transforma-
suas bênçãos, já desfrutamos de sua paz dos adentrarão as portas da eternidade,
e da certeza da salvação. Quando cremos e viverão sempre a glorificar a Deus e ao
em Cristo, nosso mundo se transforma. Cordeiro. Essa é a nossa grande e bendita
Deixa de ser um lugar de sofrimento e de- esperança. Quando estivermos lá, pode-

26 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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remos louvar a Deus infinitamente pela pode ser ainda pior. Mas também pode
Revelação, pela Criação, pela Redenção, e oferecer situações melhores para a pre-
até pela Queda, que nos fez conhecer mais gação do evangelho. A igreja precisa se
da sua Graça. Porém, ao mesmo tempo manter firme na pregação da Palavra. Ela
em que olhamos para o futuro e nos en- venceu o modernismo, porque seus fun-
chemos de esperança, precisamos viver damentos eram reforçados, e agora, não
plenamente o presente, remindo o tempo, pode abandonar esses fundamentos, à
porque os dias são maus (Ef 5.16). custa de ver o edifício inteiro cair.

CONCLUSÃO Veith disse: “Os cristãos podem aproveitar


a morte do modernismo para confessar a
O cristão, tendo essa firmeza de prin- fé bíblica histórica a uma geração perdida
cípios, esse direcionamento seguro do e confusa. No esforço de ser relevante à era
passado e do futuro, pode com otimismo pós-moderna, a igreja deve simplesmente
construir uma existência relevante no pre- proclamar a verdade da Palavra de Deus, a
sente. validade da lei de Deus e a suficiência do 37
Gene Veith, Tempos
pós-modernos, p. 204.
evangelho de Jesus Cristo”37.
O mundo “moderno” está dando seus úl-
timos suspiros e o mundo pós-moderno

Anotações

DEVEMOS ESPERAR UM MUNDO MELHOR? 27

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5
O ABALO DOS PILARES DA
MODERNIDADE (PARTE1)
1Tm 3.14–16

38
INTRODUÇÃO quando as duas guerras mundiais, ao fa- Salinas e Escobar,
Pós-modernidade,
zerem um amplo uso de armas que foram p. 18.

A cultura ocidental tem passado por possibilitadas pelo progresso científico 39


Salinas e Escobar,
Pós-modernidade,
muitas transformações nos últimos sé- e tecnológico, mostraram ao mundo, de p. 24.

culos. Grandes invenções e descobertas modo ainda mais contundente, do que o


dos séculos 15, 16 e seguintes levaram o ser humano é capaz. Santos Dumont foi
ser humano a pensar que a razão huma- um inventor humanista que acabou em
na era suficiente e que não precisava de profunda depressão ao ver o seu inven-
Deus. Revoltados contra a religião me- to sendo usado para jogar bombas sobre
dieval, os pensadores iluministas derru- seus semelhantes. De fato, “todos os pi-
baram os dogmas da fé e apregoaram que lares do projeto moderno mostraram ser
somente poderia ser aceito como verda- somente colunas ocas, com uma pintu-
de aquilo que pudesse ser comprovado ra dourada”39. Como já demonstramos,
cientificamente. O universo se fechou ao essa desilusão com a cultura positivista
sobrenatural e a ciência se desenvolveu do modernismo gerou a filosofia do “pós-
ajudada pela hegemonia da razão huma- -moderno”. Os seres humanos começa-
na, procurando produzir o bem comum ram a olhar com desconfiança para o pro-
por meio da pesquisa, da tecnologia e do gresso da ciência, e já não acreditavam
crescimento econômico38 . Logo, a fé se que a razão humana pudesse trazer a tão
tornou incompatível com a razão e, os sonhada era de paz e prosperidade.
que advogavam algum tipo de crença no
sobrenatural foram tachados de iletrados Juntamente com a revolução tecnológi-
e retrógrados. Na euforia do progresso do ca, o fim do século 20 viu a invasão do
fim do século 19, com todas as maravilhas misticismo oriental e seu liberalismo
modernas que estavam sendo descober- moral ocuparem o vácuo deixado pelo
tas, parecia que o cientificismo estava otimismo científico, e o estabelecimento
com a razão. Porém, a fé na razão humana do relativismo místico como a filosofia
sofreu um duro golpe, ou melhor, dois, mais popular. “Tudo é relativo” é uma fra-

O ABALO DOS PILARES DA MODERNIDADE (PARTE 1) 28

cristaos18 de janeiro.indd 33 23/1/2012 12:35:50


se que virou moda entre universitários, ta a verdade num sentido absoluto41. O
varredores de ruas e até mesmo cientis- cientificismo moderno rejeitava a Bíblia
tas. “Não existem absolutos” virou tema por achar que ela estava cheia de impreci-
de músicas, livros, filmes e de conversas sões científicas; o relativismo pós-moder-
entre crianças. Mas até que ponto esse no rejeita tanto a ciência quanto a Bíblia
mundo é realmente relativista? E o que o por causa de suas pretensões de se consi-
Cristianismo tem a dizer e a fazer na situ- derarem “a verdade objetiva”. A sociedade
ação atual? de hoje não está disposta a tolerar isso,
pois a única verdade absoluta aceita é que
RELATIVISMO INTOLERANTE ninguém pode dizer que tem “a verdade
absoluta”. A tolerância, considerada por
Vivemos num mundo que é, ao mesmo muitos o grande bem do mundo pós-mo-
tempo, antiquado, moderno e pós-mo- derno, no fundo é só de aparência, como
derno, e é muito difícil estabelecer mar- uma fachada ilusória para atrair compra-
cos divisórios precisos a esse respeito. dores. O pós-modernismo relativista é
40
Ver Michael Horton,
Para alguns autores, a Era Moderna durou tão radical quanto os movimentos funda-
O cristão e a cultura,
p. 161
exatamente duzentos anos: da queda da mentalistas-extremistas, e não hesitaria
41 Bastilha na Revolução Francesa em 1789 em jogar bombas sobre aqueles que pen-
Ver Gene Veith,
Tempos pós-modernos, à queda do Muro de Berlim em 198940. sam de modo diferente, mesmo que não
p. 13.
42
Talvez essas datas estejam corretas, mas é sejam bombas à base de explosivos con-
Gene Veith, De todo
o teu entendimento, preciso lembrar que os movimentos hip- vencionais. Como disse Veith, “hoje um
p. 67.
pies dos anos 60 já introduziram a semen- acadêmico que duvida da evolução, que
te do pós-modernismo. E mesmo depois rejeita o relativismo moral, que não de-
da queda do muro de Berlim, não é pos- clara a religiosidade do humanismo, com
sível dizer que o “moderno” desapareceu frequência enfrenta oposição violenta e
totalmente. Como já dissemos, a filosofia furiosa”42. O mundo pós-moderno acei-
científico-racionalista dominante na era ta todas as crenças e cosmovisões, menos
moderna foi muito hostil ao Cristianis- aquelas que discordam dele.
mo. Durante esse período, entretanto, as
pessoas acreditavam em absolutos e na O MURO CAIU
existência da verdade objetiva. O cris-
tianismo bíblico era rejeitado pelos pen- Em oito de novembro de 1989 o mundo
sadores modernistas, porque não conse- assistiu, com um misto de surpresa e ale-
guiam (ou ainda não queriam) encaixá-lo gria, a um dos maiores acontecimentos
dentro dos padrões científicos e fi losófi- do século 20: a queda do muro de Berlim.
cos da época. Entretanto, no pensamento Considerado o maior símbolo da Guerra
“pós-moderno” algo diferente acontece. Fria, o muro de Berlim, que foi constru-
O Cristianismo continua sendo descarta- ído em 13 de agosto de 1961, dividiu a
do, mas não porque não possa ser com- Alemanha em dois países, um capitalista
provado cientificamente, e sim porque e o outro comunista, e o mundo ao redor
pretende ser “a verdade”, o que é inaceitá- de duas ideologias conflitantes. A derru-
vel para pessoas que mal crêem que exis- bada desse muro injusto não significou

29 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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apenas a reunificação de um povo, mas a situação atual dos países do antigo bloco
destruição de toda uma cosmovisão. Foi comunista, e que, dentro da própria Ale-
o golpe final ao comunismo e aos ideais manha, permanece um muro invisível de
do marxismo (embora muitos marxistas discriminação e pobreza.
insistam em continuar “vivos”). A deusa
razão foi tirada do trono em que a revolu- Após o fim da guerra fria, depois de dé-
ção francesa a havia colocado em Notre- cadas em que os dois gigantes mundiais
-Dame43. A filosofia marxista do materia- se enfrentavam numa guerra de nervos,
lismo dialético explicava os problemas do um novo tipo de guerra veio para ficar: o
mundo por meio das lutas de classes, em terrorismo. A data de 11 de setembro de
que o homem explora o homem. A solu- 2001 ficou gravada na História. O mun-
ção racional do marxismo era o comunis- do não é o mesmo desde que as torres do
mo, que anularia a propriedade privada, e World Trade Center foram atingidas pe-
traria a paz, a união e a prosperidade aos los aviões dominados por terroristas sui-
povos num clímax da razão e da ciência. cidas. Antes o império americano media
Não deu certo. Quando o povo de ambos forças com o império soviético, agora so- 43
Isaltino G. C. Filho,
os lados da Alemanha arrancou aquelas fre afrontas e humilhações de pequenos “A pós-modernidade:
um desafio à pregação
pedras, elas não simbolizaram apenas a grupos que explodem bombas e que não do evangelho”. Dispo-
nível
queda do absolutismo comunista; de cer- têm nada a perder. As coisas realmente fi- em: http://www.luz.eti.
br/es_aposmodernida-
to modo, elas significaram a queda dos caram muito relativas. deumdesafi o.html#r00.
absolutos em todos os sentidos, pois sig- 44
De nihil “nada”.
nificaram a queda da crença em valores e COLAPSO MORAL 45
Salinas e Escobar,
da própria esperança na razão. Pós-modernidade, p. 27.

O “pós-modernismo” não é uma corrente


O muro caiu, mas a sua queda simboliza o filosófica que começou com determinado
grito de liberdade do ser humano constru- autor ou filósofo. Ele se refere muito mais
ído sobre premissas falsas, repetido tantas ao tempo em que vivemos do que a uma
vezes na História, desde que o primeiro ideologia definida. É um sistema comple-
homem fez isso. O comunismo marxista xo de pensamento criado pelo próprio
foi uma das piores coisas que este mun- Ocidente, que não pode ser definido em
do já presenciou, pois desse movimento poucas linhas, mas que, de um modo
praticamente nenhum resultado benéfico ou de outro, torna relativo tudo o que a
restou para a humanidade; esse grito de humanidade, especialmente o Ocidente
liberdade não tornou a vida humana mais cristão, sempre considerou como verda-
digna, mais justa e nem mesmo melhor, de ou bem. Não é exatamente uma ne-
pois a casa vazia sempre volta a ser ocupa- gação da verdade, mas um esvaziamento
da por demônios (Mt 12.43-45). Assim, dela. É uma atitude de desconstrução45,
a ausência de ideais na Europa deixou o uma “implosão” da verdade. O pós-mo-
caminho aberto para o relativismo e para dernismo seria mais bem denominado
o seu irmão caçula e mais terrível, o nii- de “antimodernismo”, pois é uma manei-
lismo44. A vitória do capitalismo não sig- ra de ver o mundo que, sob o manto da
nificou a melhora do mundo. Basta ver a proclamação da tolerância e do respeito

O ABALO DOS PILARES DA MODERNIDADE (PARTE 1) 30

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entre os povos, destrói a própria estrutu- NADA DE NOVO DEBAIXO DO CÉU
ra sobre a qual a civilização moderna foi
construída. A questão-chave é que, se a Apesar de toda a sensação de novidade
verdade não existe, ou se pelo menos não que permeia os tempos atuais, o relati-
existe uma verdade absoluta, então nada vismo não é realmente algo tão novo as-
é totalmente certo nem errado. Não exis- sim. Relativistas sempre existiram, pois
tindo verdade, também não existe bem o homem sempre aceitou como verdade
ou mal, justiça ou pecado, e nem o oposto apenas aquilo que lhe interessou em de-
da verdade, ou seja, a mentira. Caso essas terminados momentos. Escolher o que
expressões pareçam teológicas ou filosó- é verdade para si e duvidar da verdade
ficas demais, não nos enganemos, pois sustentada por outros é algo tão antigo
a intenção é mudar os padrões morais, quanto o próprio ser humano, e podemos
e estes não são teóricos, mas, sobretudo dizer ainda mais, pois é tão antigo quanto
práticos. Não significa que somente agora o próprio Satanás.
o mundo se tornou imoral, pois, de certo
modo, a imoralidade é a mesma de sem- Desde o início, segundo a Bíblia, o ho-
pre, mas agora não há critérios morais mem foi tentado pelo relativismo da ser-
aceitos, e assim, não há como dizer que pente. O antigo texto do Gênesis descre-
algo está certo ou errado. Antigamen- ve a tentação do ser humano como sendo
te as pessoas se envergonhavam de seus uma relativização da vontade de Deus.
pecados; hoje elas se orgulham deles e A serpente disse à mulher: “É assim que
os ostentam como algo digno de louvor. Deus disse: Não comereis de toda árvore
Quanto mais os ícones da televisão se de- do jardim?” (Gn 3.1). Sutilmente a ser-
monstram livres de “tabus” morais e pro- pente torceu a ordem de Deus com a in-
pagam ideias não cristãs, mais eles são re- tenção de provocar confusão na mulher.
verenciados pelas massas fascinadas pela Ao perceber que obtivera sucesso, pois na
mídia. Quando os governos veiculam resposta a mulher exagerou a respeito da
propagandas que induzem a permissivi- ordem de Deus, a serpente, então, mos-
dade sexual sob a bandeira de incentivar o trou todo o seu relativismo: “É certo que
uso de preservativos, o clima de “vale-tu- não morrereis. Porque Deus sabe que no
do” se torna dominante. Como impedir a dia em que dele comerdes se vos abrirão
avalanche de gravidez na adolescência, de os olhos e, como Deus, sereis conhecedo-
abortos, ou a destruição de famílias pelo res do bem e do mal” (Gn 3.4,5). A ser-
adultério se essa muralha também caiu? pente fez a mulher “descobrir” o motivo
A tão desejada permissividade sexual não oculto daquela proibição de Deus. Em
trouxe qualquer benefício para a humani- outras palavras, a serpente disse: “Não é
dade, apenas mais degradação, violência e bem assim; essa conversa de morrer es-
culpa. E não há o que possa ser feito para conde algo que vocês não sabem; na ver-
deter essas coisas, pois a muralha da ver- dade, comer deste fruto fará muito bem a
dade caiu. Ao mundo só resta contemplar vocês, um bem que Deus não deseja lhes
a avalanche da imoralidade, da corrupção conceder”. A serpente disse que o mal, na
e da violência. verdade, não era tão mau assim; antes,

31 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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podia ser muito bom. É interessante que termos de religião, fé e moral, então, qual
a serpente relativizou apenas o que lhe in- deve ser a nossa postura como crentes
teressava. Ela desejava relativizar a verda- diante dessa situação? Como enfrentar
de de Deus; porém, a sua verdade não era as dúvidas do pensamento pós-moderno
relativa. Assim são todos os relativistas. na evangelização? Como convencer uma
Eles relativizam a verdade dos outros, ao pessoa que não crê que existe a verdade,
mesmo tempo em que sustentam contra- que a Bíblia é a verdade e que Jesus Cristo
ditoriamente que a sua própria visão do é o caminho?
mundo é a verdade. Esse tipo de atitude
tão antiga só comprova que Salomão es- Certamente, alguém diria, isso não cabe a
tava absolutamente certo, pois “o que foi nós, é obra do Espírito Santo, o que está
é o que há de ser; e o que se fez, isso se perfeitamente certo. Porém, se conhecer-
tornará a fazer; nada há, pois, novo debai- mos melhor a base do pensamento pós-
xo do sol” (Ec 1.9). -moderno e suas contradições, será mais
fácil nos aproximarmos dessas pessoas
A COLUNA QUE NÃO CAI sem sermos tachados de intransigentes
e ultrapassados. Demonstrar que as con-
A verdade é o grande legado de Deus para tradições do pensamento pós-moderno 46
IJohn MacArthur,
a igreja. Paulo disse que uma das funções levam à destruição de todos os princípios O poder da integridade,
p. 35.
da igreja é ser “coluna e baluarte da ver- da sociedade e da própria razão da exis- 47
João Calvino, As
dade” (1Tm 3.15). Colunas e baluartes tência humana é um bom caminho para pastorais, p. 98.

sustentavam e protegiam as estruturas alcançar as mentes pós-modernas, e pode


dos templos antigos. A igreja deve susten- ser a rota que o Espírito utilizará para
tar a verdade de Deus diante dos ataques guiar os cegos à luz.
dos falsos mestres, das mentiras e dos re-
lativismos do mundo e de Satanás. Essa Demonstrar que o Cristianismo não é
coluna não pode cair. Como disse Ma- contrário aos bons ideais de igualdade e
cArthur, “Deus confiou à igreja a guarda tolerância também é um caminho ade-
da Escritura, e seu dever é manter e sal- quado. Manter humildade e um espírito
vaguardar a palavra como o mais precio- de constante aprendizado será igualmen-
so bem na terra”46. A verdade (revelação) te útil, pois ainda que creiamos na Bíblia
é realmente o seu maior tesouro que, ao como a infalível Palavra de Deus, não po-
mesmo tempo em que precisa ser guarda- demos dizer o mesmo das nossas inter-
do a sete chaves, deve ser compartilhado pretações dela.
com todos, num maravilhoso paradoxo.
Como diz Calvino, “o silêncio da Igreja Acima de tudo, porém, é preciso demons-
significa o afastamento e a supressão da trar a consistência da fé cristã para o mun-
verdade”47. A igreja deve, portanto, sus- do, não só por causa de seus fundamen-
tentar a verdade, e fazer isso com firmeza tos sólidos (bíblico-históricos), mas pela
e coragem. Mas também deve fazer isso prática consistente, que precisa ser vista
com inteligência. Se as pessoas, cada vez na vida daqueles que falam da verdade.
mais, têm manifestado relativismo em Eles não podem falar da verdade e viver

O ABALO DOS PILARES DA MODERNIDADE (PARTE 1) 32

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a mentira. De fato, “não há melhor postu- viviam de aparências. A verdade de Je-
ra apologética do que uma vida santa”48. sus vencia o relativismo dos sacerdotes e
Muito mais do que ditar conceitos racio- dos poderosos da nação. A mensagem do
nais como máximas da verdade, os cris- evangelho não faz acepção de pessoas. Je-
tãos precisam viver isso por meio de re- sus recebia as prostitutas e os publicanos,
lacionamentos intensos. As pessoas terão muito mais do que as igrejas nos dias de
dificuldades em aceitar proposições arti- hoje estão dispostas a fazer.
ficiais, pois estão armadas até os dentes
contra elas, mas se desarmam diante de CONCLUSÃO
manifestações de amizade, companhei-
rismo e amor, pois essas coisas estão se Como cristãos, recebemos a missão de
tornando raras nos dias atuais. Demons- Jesus de falar da verdade para as pesso-
trar amor pelas pessoas é certamente o as no mundo. Para isso ele nos enviou
modo mais decisivo para expor a verdade. ao mundo. Nestes tempos confusos da
Ao menos, conseguiremos que as pessoas pós-modernidade, é nossa função tes-
nos ouçam. temunhar que existe uma verdade e que
ela é absoluta. Jesus Cristo é a verdade
48
Salinas e Escobar, Pós-
Basta olhar para o modo como Jesus esta- encarnada, e na sua Palavra, a Bíblia, nós
Modernidade, p. 44. beleceu relacionamentos sólidos e inten- o encontramos e podemos conhecê-lo.
sos em seu ministério para perceber que Sempre encontraremos pessoas como Pi-
esse é o caminho para evangelizar pessoas latos que nos perguntarão com um ar de
influenciadas pelo pós-modernismo. Não desdém e, às vezes, até mesmo de supe-
se deve confundir a defesa dos absolutos rioridade: “Que é a verdade?” Resta-nos
com a defesa do absolutismo. A essência o consolo, que se torna esperança, de que,
da igreja é uma essência tolerante, pois os que são da verdade a ouvirão, “porque
Jesus foi essencialmente tolerante com o todo aquele que é da verdade” ouve a pa-
pecador, ainda que não com o pecado. Je- lavra de Deus ( Jo 18.37). A verdade sem-
sus sempre esteve aberto a todos aqueles pre vence a mentira, pois “nada podemos
que o buscassem sinceramente arrependi- contra a verdade, senão em favor da pró-
dos de seus pecados, mas, por outro lado, pria verdade” (2Co 13.8).
rejeitava decididamente os religiosos que

33 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Anotações

O ABALO DOS PILARES DA MODERNIDADE (PARTE 1) 34

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6
O ABALO DOS PILARES DA
MODERNIDADE (PARTE 2)

João 17.14-19

INTRODUÇÃO bem como manter o povo primitivamen-


te “satisfeito”; afinal, não tem faltado di-
Não estamos apenas em meio a um colap- versão para as pessoas, como carnaval,
so moral, enfrentamos também um co- futebol, bebidas, sexo e “bolsas-família”
lapso de significado. Diante desta cultura numa versão moderna do velho e eficaz
impregnada de relativismo, o sentido da pão e circo romano. O problema é que
vida desaparece e o desespero só aumen- se trata de diversão de baixa qualidade.
ta. Antigamente as pessoas pensavam Até isso se esvaziou. No passado, para um
que tinham uma “missão” a realizar neste músico fazer sucesso, no mínimo precisa-
mundo; as crianças sonhavam em exercer va ter boa voz ou tocar bem algum instru-
as profissões mais nobres quando fos- mento. Hoje, da noite para o dia, a mídia
sem adultas; hoje, boa parte das pessoas lança ídolos fabricados. Essas pobres al-
só pensa em ganhar dinheiro, e a maioria mas sem talento algum precisam aguen-
nem sabe por que existe. As causas hu- tar o peso artificial do sucesso seguido do
manitárias, a religião e a própria existên- inevitável ocaso. Os sentidos se esvazia-
cia humana perdem o sentido quando os ram, então, “A próxima atração, por favor”.
absolutos são vaporizados. Não é de ad-
mirar que, cada vez mais, as drogas sejam COLAPSO FAMILIAR
o caminho que as pessoas escolhem para
se alienar. Num mundo assim, o sistema As famílias também recebem a pressão
de vida primitivo, no qual impera a lei do desse sistema e caminham cada vez mais
mais forte, é o único que pode proliferar. para a desintegração. Os princípios an-
Por isso, o progresso da humanidade tem tigos da sociedade, na maioria bíblicos,
levado o ser humano cada vez mais para a mantiveram a família tradicional, já os
selvageria. A modernidade tem compro- novos princípios relativistas acabam por
vado que, quanto mais progresso, mais implodir a família, pois destroem a auto-
primitivismo moral e existencial. Mas ridade paterna, extrapolam as responsabi-
aqueles que controlam o sistema sabem lidades maternas e criam filhos rebeldes e

35 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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sem consciência social ou familiar e, mui- a igreja, pois a verdade tem sido rejeitada
tas vezes, sem consciência alguma. Quan- dentro da própria igreja. Em muitas deno-
do meninas de classe média abandonam minações, o conceito de ser ortodoxo ou
suas casas para viver com traficantes nos herege não existe mais. A doutrina é con-
morros em busca de aventura e algum tinuamente posta de lado para que todos
sentido para a vida, fica evidente que os possam se encaixar. Não há como negar
limites não existem mais e que o sistema que a ausência de precisão doutrinária e
familiar moderno faliu. de pregação verdadeiramente bíblica ca-
racteriza a época evangélica atual. O que
Hoje, poucos iniciam uma família pen- se ouve na maioria dos púlpitos não é a
sando realmente em permanecer casados exposição da Palavra de Deus, mas “men-
até que “a morte os separe”. Na maioria sagens de motivação, suavizantes terapias
dos casos nem há casamento legalizado, para o eu e fórmulas para a saúde, a pros-
e mesmo quando há, o divórcio é sem- peridade, a integração pessoal, a harmo-
pre uma possibilidade fácil e bem real. nia celeste, etc.50” Isso nos faz ver que a
“Foi eterno enquanto durou”, dizem, em igreja também está se tornando bastante
mais um reducionismo absurdo da cultu- relativa. Talvez a maior expressão desse 49
R. Mohler, Reforma
ra existencial. Em muitos países, o casa- relativismo sejam as chamadas “igrejas hoje, p. 59.

mento entre pessoas do mesmo sexo já é emergentes”. São igrejas que nasceram ou 50
R. Mohler, Reforma
hoje, p. 66.
uma realidade (inclusive no Brasil) e, em foram reestruturadas para um contexto
51
muitos casos, inclusive filhos podem ser pós-moderno e pós-cristão. São igrejas Ver Mauro Meister,
“A igreja emergente”,
adotados e até gerados por técnicas mo- absolutamente adaptadas aos tempos Revista Servos Ordena-
dos, Ano 3, Edição 11,
dernas de fertilização. O funeral da famí- pós-modernos. Não possuem doutrina out.- dez/06, pp. 16-18.

lia bíblica tradicional parece estar muito definida e são essencialmente inclusivis-
próximo. O que esperar? tas51. Seus idealizadores acreditam que
essa é a única maneira de “alcançar” as
COLAPSO ECLESIÁSTICO pessoas pós-modernas. Pensam que o sis-
tema tradicional de igreja, típico do perí-
Uma igreja que deseja fazer diferença den- odo moderno, não conseguirá sobreviver
tro de uma sociedade como esta precisa nos tempos pós-modernos e pós-protes-
entender a época em que vive, caso con- tante. A igreja emergente, como muitas
trário a sua pregação pode ser completa- outras não tão emergentes, abandonou os
mente alienada da realidade das pessoas. fundamentos bíblico-históricos do Cris-
Mas talvez o grande problema com a igre- tianismo, para se adaptar aos tempos e às
ja hoje é que ela não só parece não enten- épocas, e o fazer isso, perdeu a sua verda-
der o tempo presente, como, paradoxal- deira mensagem.
mente, está impregnada da filosofia deste
tempo. Como afirmou R. Albert Mohler COLAPSO TEOLÓGICO
Jr., “tudo isso já seria suficientemente trá-
gico se tais tendências configurassem a A igreja está assim porque a teologia en-
consciência do mundo, mas não da igre- trou em colapso. Já demonstramos que o
ja”49 . Porém, essas tendências invadiram movimento da teologia liberal dos sécu-

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los 18 e 19 procurou comunicar a mensa- Deus não conhece o futuro. Sua onisci-
gem do evangelho para o homem pós-ilu- ência diz respeito apenas ao passado e ao
minista, e fez isso questionando os textos presente, mas o futuro está aberto. Deus
bíblicos e substituindo o conceito de infa- se adapta às circunstâncias humanas, mu-
libilidade das Escrituras pelo da “infalibi- dando seus planos em reação às decisões
lidade” do método científico, seguindo os dos homens. Essas novas e “libertadoras”
tempos e épocas de sua própria geração. teologias têm se concentrado em esvaziar
Em reação a isso, também dissemos que formulações teológicas, e têm se lançado
teólogos neo-ortodoxos do século 20, numa cruzada contra o “fundamentalis-
como Barth e Brunner, perceberam a cri- mo” daqueles que querem se manter fiéis
se a que o liberalismo conduziu a teolo- ao Texto Sagrado. Esse tipo de teologia
gia e rejeitaram essa visão substituindo-a “kamikaze” tolera qualquer coisa, menos
por uma teologia existencial, e mais uma alguém que insista em manter os funda-
vez se adaptaram ao que era dominante mentos.
no seu próprio tempo. É interessante que
Brunner, ainda na década de 1920, tenha O RELATIVISMO DE PILATOS
52
Emil Brunner, Teolo- percebido que o relativismo brotava do
gia da crise, p. 31.
modernismo, pois declarou: “O homem Quando foi julgado diante da corte roma-
moderno não crê mais num absoluto, em na, Jesus precisou enfrentar um relativis-
qualquer forma que ele possa ser ofereci- ta. O apóstolo João relata que, diante do
do, quer aquele da fé cristã, do idealismo, procurador romano Pôncio Pilatos, Jesus
ou do misticismo. Se ele crê em alguma declarou qual era a sua missão neste mun-
coisa é em absoluta incerteza”52. Mas do: “Eu para isso nasci e para isso vim ao
a teologia neo-ortodoxa, com seu igual mundo, a fim de dar testemunho da ver-
abandono da autoridade da Escritura e dade. Todo aquele que é da verdade ouve
com sua ênfase exagerada no transcen- a minha voz” ( Jo 18.37). Jesus nunca
dente, em nada contribuiu para reverter foi dado a relativismos, suas declarações
esse processo, antes só o acelerou, pois a eram sempre intensas e absolutas, refle-
velha luta entre os opostos ortodoxos e tindo o caráter de Deus. Parece que Pi-
liberais cedeu lugar ao florescimento do latos estava bastante interessado na con-
“tanto faz” da nova teologia. De púlpitos versa com Jesus até esse momento, mas
outrora firmes e fiéis à Palavra, se ouvem ao ouvir falar a respeito da verdade, seu
censuras e ironias contra a “ultrapassada interesse desapareceu. Pilatos perguntou,
teologia medieval”, e uma defesa de uma num aparente tom de descaso: “Que é a
“nova teologia” que liberte o homem dos verdade?” Porém, não esperou qualquer
dogmas antigos e o faça se sentir mais hu- resposta de Jesus. Talvez porque não acre-
mano, mais senhor de seu destino, e mais ditasse que Jesus lhe desse uma resposta,
próximo de Deus, enquanto está cada vez ou, talvez, porque não acreditasse que al-
mais longe da Bíblia. Um exemplo disso é guém pudesse lhe dar essa resposta. Po-
a chamada “teologia relacional” (também deríamos dizer que Pilatos, um homem
conhecida como open theism – teísmo do século 1º, expressou uma maneira de
aberto). Essa teologia tem defendido que pensar amplamente aceita hoje. Não há

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dúvida de que, se Pilatos vivesse em nos- Palavra de Deus”. Esta Palavra nos revela
sos dias, ele se sentiria bem à vontade. Deus, seus atributos, seu plano eterno e
imutável, e todos os meios pelos quais
Caso Pilatos tivesse esperado, talvez Jesus podemos viver e ter uma existência au-
lhe tivesse dado uma resposta clara, como têntica, pois é “inspirada por Deus e útil
já tinha feito em outras ocasiões. Em João para o ensino, para a repreensão, para a
17.17 lemos a expressão de Jesus: “A tua correção, para a educação...” (2Tm 3.16).
palavra é a verdade”. Jesus defendeu a exis-
tência de absolutos, inclusive da verdade LAVANDO AS MÃOS
absoluta. Ele ligou essa verdade com a
Palavra de Deus. No contexto de João 17, O relativismo pós-moderno tem sido a
a Palavra se refere aos atos poderosos de maior demonstração do ódio do mundo
Deus realizados por meio de Jesus Cristo à verdade e também revela o seu amor
que revelavam o Pai ao mundo. Esse co- dissimulado pela mentira. O que fez o
nhecimento do Pai, por meio do Filho, é relativista Pilatos depois da sua conversa
a essência da vida eterna, conforme Jesus com Jesus, mesmo tendo todos os moti-
declarou: “E a vida eterna é esta: que te vos do mundo para não condená-lo? Ele
conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e cedeu às pressões, lavando as mãos em
a Jesus Cristo, a quem enviaste” ( Jo 17.3). público e dizendo que estava inocente do
Então, segundo Jesus, a verdade absoluta sangue daquele justo (Mt 27.24). A cena
é a revelação de Deus aos homens sobre pública de Pilatos foi uma demonstração
como eles podem ser salvos. da falta de coragem de enfrentar os fatos,
uma fuga da realidade, uma exaltação dis-
A verdade não é algo que parte do pró- simulada da mentira. Lavar as mãos, dar
prio homem, pois o máximo que o ho- de ombros, fazer de conta que não tem
mem conseguiria produzir por si mesmo nada a ver com isso, são atitudes próprias
seriam contradições. A verdade absoluta de relativistas.
somente pode vir de fora do ser humano;
ela precisa vir de Deus. Por isso, segundo É sempre mais fácil, para o mundo, fugir
a concepção calvinista, a verdade só pode da verdade. O mundo prefere a mentira,
ser a “verdade de Deus”. Na verdade, ela é porque a mentira não exige compromisso.
o próprio Deus. Jesus disse enfaticamen- Todos estavam fazendo o jogo da mentira
te: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a naquele dia em Jerusalém. Os sacerdotes
vida” ( Jo 14.6). A verdade absoluta não que sabiam exatamente quem era Jesus,
é apenas algo a respeito de Deus, é o pró- mas preferiam dizer que ele era um cri-
prio Deus. Os atos de Jesus são a essência minoso; o povo que sabia quem era Jesus,
da verdade como ela pode ser conhecida, mas não estava disposto a enfrentar seus
uma vez que esses atos revelam o caráter líderes religiosos; e Pilatos, talvez a pes-
e a personalidade de Deus. Essa revela- soa que mais entendia toda aquela situa-
ção está em nossas mãos hoje em forma ção, mas não tinha compromisso com a
descritiva: a Bíblia. Por essa razão, a Bí- verdade e a coragem de defendê-la. Eram
blia é conhecida acertadamente como “a todos prisioneiros da mentira. Somente o

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conhecimento da verdade e sua aceitação, ção à verdade. Jesus orou para que a igreja
podem libertar as pessoas da escravidão fosse santificada na verdade ( Jo 17.17).
da mentira ( Jo 8.32). A supressão da ver- A santificação não é somente “na verda-
dade e a exaltação da mentira é a maneira de”, mas também “para a verdade”. Essa
de ser natural do mundo. Esse é o ensino santificação é profundamente necessária
de Romanos 1.18, que diz que os homens na vida do crente, a fim de que ele possa
“detêm a verdade pela injustiça”. O ver- cumprir a missão que Jesus lhe designou,
bo “deter”, significa “suprimir”, “abafar”. e que está no versículo 18: “Assim como
O ser humano tem vontade de abafar a tu me enviaste ao mundo, também eu os
verdade e elevar a mentira, porque o que enviei ao mundo”. E Jesus enviou seus dis-
a verdade diz é doloroso demais para ele cípulos ao mundo santificados pela Pala-
ouvir. Ela revela quem o ser humano real- vra e com o objetivo de proclamarem esta
mente é, sua depravação, sua culpa e sua mesma Palavra.
condenação; ao mesmo tempo, revela a
santidade e a justiça de Deus. Isso é muito Entretanto, a igreja comete um sério
mais do que os ouvidos humanos podem erro quando passa a enfatizar coisas pe-
suportar. riféricas em detrimento do que é central.
Nesse sentido, a verdade pode ser com-
Caso o ser humano aceite a verdade, ele prometida por causa de dois extremos.
se sentirá nu na presença de Deus, mui- O ecumenismo compromete a verdade,
to mais do que folhas de figueiras con- pois a esvazia, fazendo com que qualquer
seguem esconder (Gn 3.7). Ele terá de coisa possa ser verdade. Mas o sectarismo
abandonar seus pressupostos, deixar de também a compromete, pois cada seita
lado seus motivos de orgulho, e subme- passa a ter a sua própria verdade. As vá-
ter-se humildemente ao Criador. Isso foi rias religiões legalistas que defendem sis-
o que desde o início ele se recusou a fazer. tematicamente usos e costumes, e as que
“Sereis como Deus”, ainda é uma frase advogam revelações pessoais, somente
que ecoa na mente humana, uma terrível contribuem para a relativização da verda-
mentira a que o ser humano se apega de- de.
sesperadamente. O ser humano não su-
porta olhar para a justiça eterna de Deus Mas o que deveria ser considerado cen-
e para sua própria depravação. Por isso, tral na proclamação da igreja? Parece que
“tragam mais bacias e toalhas!” este assunto inquietou o apóstolo Paulo
por algum tempo. Entretanto, ele chegou
A MENSAGEM DA CRUZ a uma conclusão que deve valer para to-
dos nós. Paulo entendeu que a maior,
A verdadeira igreja não pode se intimidar mais completa e mais específica expres-
diante do mundo, como Jesus não se inti- são da verdade que precisa ser procla-
midou diante dos defensores da mentira. mada é a “mensagem da cruz”. Quando
Ela não pode lavar as mãos diante da situ- Paulo diz: “Porque decidi nada saber en-
ação do mundo e se fechar entre quatro tre vós, senão a Jesus Cristo e este crucifi-
paredes. A igreja tem uma função em rela- cado” (1Co 2.2), ele resumiu o epicentro

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da verdade como o mundo a precisa co- olhar para a verdade como ela é. Rejei-
nhecer. A cruz revela todo o conteúdo da tam, porque não admitem se reconhecer
verdade que o mundo precisa entender. A como realmente são e a Deus como ele
cruz revela o pecado do ser humano, pois realmente é.
foi por causa desse pecado que Cristo
teve de ser crucificado. Ela revela o drama CONCLUSÃO
da existência humana e a tragédia do mal
consumada na terrível realidade da mor- A cruz é o oposto de lavar as mãos. A cruz
te. A cruz revela a justiça e a santidade mostra todo o comprometimento de Je-
de Deus, pois esses atributos exigiram o sus com a verdade e toda a intensidade
sacrifício do seu filho. A cruz revela, tam- do seu caráter, que faz com que a existên-
bém, o amor do Deus que se autossacrifi- cia humana seja digna. A cruz revela que
ca para salvar pessoas condenadas. existe a verdade absoluta, pois Deus não
se dispôs a relativizar o problema moral
Por isso, a cruz é a verdade, nua e crua, do homem, nem a sua própria justiça. A
a verdade sem maquiagem, sem reducio- ocorrência da crucificação de Jesus de
nismos, sem relativismos. Por isso, talvez, Nazaré é a grande e decisiva demonstra-
os dois tipos mais comuns de pessoas que ção ao mundo, de que a verdade existe
existem no mundo a rejeitem. Os que se e é absoluta. Sem perceber, Pilatos con-
guiam pela emoção a rejeitam por acha- tribuiu para que a verdade absoluta fos-
rem-na um escândalo, e os que se guiam se vista pelo mundo. De nada adiantou,
pela razão a rejeitam por acharem-na uma entretanto, lavar as mãos, pois isso não o
grande loucura (ver 1Co 1.23). No fun- tornou inocente.
do, eles a rejeitam, porque não suportam

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Anotações

41 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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7
A CIDADE DOS HOMENS

Gn 4.16–24

INTRODUÇÃO pós-moderno, é a própria rejeição da ver-


dade e a aceitação do “vale-tudo” da vida
A base de todas as filosofias e de todos os existencial.
pensamentos do mundo moderno e pós-
-moderno é o humanismo. O modernis- Filosoficamente se diz que o humanismo
53
mo e o pós-modernismo, apesar de todos surgiu com o Iluminismo, mas isso só é Michael Horton, O cris-
tão e a cultura, p. 166.
os seus contrastes e contradições são, parcialmente verdadeiro. O Iluminis-
afinal, facetas do mesmo humanismo. O mo em todo o seu projeto “se dedicou a
primeiro é o humanismo otimista e o se- construir uma torre de progresso que al-
gundo é o humanismo pessimista. cançasse os céus”53, mas esse projeto de
construção humanista começou muito
Para o humanismo, o ser humano não é antes disso. Desde o início, foi o modo
criatura de ninguém, e, por conseguinte, como o homem tentou viver e encon-
não deve satisfação a ninguém. Nesta li- trar sentido para a vida independente de
nha de raciocínio, a existência humana Deus. Protágoras (séc. 5o a.C.), o pai do
tem como objetivo, tão somente, a pró- humanismo antigo, já dizia: “O homem é
pria existência, e o ser humano possui in- a medida de todas as coisas”.
teligência e capacidades suficientes para
ter uma boa vida aqui, que é a única razão A essência do humanismo antigo ou mo-
de existir, ou, pelo menos, tem o direito derno nada mais é do que uma atitude de
de escolher que tipo de vida quer viver, rebelião ao criador, um brado de desafio
ainda que seja o caminho do desespero. a Deus, e, ao final, uma busca insana por
Ele tem o poder de criar a sua própria ser igual a Ele. É o homem tentando ser
verdade. No período moderno, a verda- deus para si mesmo. O Gênesis diz que,
de criada era o otimismo da ciência e da desde o início, a tentação de Adão e Eva
construção de um mundo melhor, por foi a de se tornar “como Deus” (Gn 3.5),
meio da capacidade humana. No período e assim, independentes dEle. A frustração

A CIDADE DOS HOMENS 42

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da Queda não retirou esse desejo do ser “modo de vida” em que Deus não ocu-
humano. Desde a entrada do pecado no paria qualquer “função” importante (Gn
mundo, os homens têm procurado ma- 4.12-17). Essa é a primeira cidade que o
neiras de viver sem precisar de Deus. A ser humano construiu e, de certo modo,
grande tragédia do pós-modernismo é prefigura também a última. Afastando-se
que, apesar de ele ter conseguido se livrar de Deus, Caim e seus descendentes tra-
das garras aprisionadoras do pensamento taram de encontrar um “sentido” para a
moderno, não quis retornar para Deus, e vida e fizeram isso mediante as realidades
preferiu mergulhar no caos. do cotidiano e da luta pela sobrevivência,
estabelecendo relacionamentos para si.
A PRIMEIRA CIDADE O primeiro e mais básico foi o relaciona-
mento amoroso, tanto o lícito (casamen-
Um dos teólogos mais importantes de to- to), quanto o ilícito, como Lameque que
dos os tempos foi Agostinho (354-430). tomou duas mulheres para si (Gn 4.19).
Ele escreveu a obra teológica por exce- Lameque teve três filhos, um foi empre-
lência dos primeiros séculos do Cristia- sário, o outro artista e o outro artífice (Gn
54 nismo, intitulada A cidade de Deus. O 4.20-22). O cultivo de rebanhos, a músi-
Agostinho, A cidade
de Deus, XIV, 28. objetivo de Agostinho era interpretar a ca, os instrumentos de produção, etc.,
História de uma perspectiva teológica, se tornaram as principais ocupações da
envolvendo o conflito entre duas cidades, vida. Esse desenvolvimento dos recursos
a cidade de Deus e a cidade dos homens. e dons naturais não era ilícito, pois estava
A cidade de Deus é inspirada no amor a na ordem da criação (Gn 1.26-30), mas
Deus e nos valores que Cristo pregou e essas coisas deveriam ser desenvolvidas
que estão presentes na igreja. A cidade em submissão a Deus; porém, agora, ser-
dos homens é baseada nos valores ime- viam como instrumentos para o homem
diatos e mundanos, é o apetite de domí- viver e encontrar sentido para a vida in-
nio, de vingança, de soberba, que faz ge- dependentemente de Deus, e se torna-
rar guerras, extermínios, confusão e caos. ram a base da cidade dos homens.
Ele escreveu: “Dois amores construíram
duas cidades: a da terra, pelo amor de si A consequência dessa vida “indepen-
mesmo, até o desprezo de Deus, e, a do dente” de Deus, entretanto, foi trágica. A
céu, pelo amor de Deus, até o desprezo de violência dominava (Gn 6.11), casamen-
si mesmo”54. tos inaceitáveis imperavam (Gn 6.1), até
o ponto em que a leitura que Deus fez é
Agostinho previu que um dia a cidade de que “a maldade do homem se havia multi-
Deus triunfaria, mas até lá teríamos de plicado na terra e que era continuamente
conviver com a cidade dos homens. O ho- mau todo desígnio do seu coração” (Gn
mem começou a construir, literal e figura- 6.5). Deus “entregou” o homem a si mes-
damente, a sua cidade bem cedo. Caim, o mo. Aqueles tempos que precederam os
primeiro filho de Adão, desafiou o julga- dias de Noé foram os tempos em que, pro-
mento divino de andar errante e edificou vavelmente, a atuação da graça comum de
uma cidade para si, começando assim um Deus menos se manifestou. Tal foi a de-

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generação, que Deus entendeu que não 17.5). João anuncia a condenação dela:
valia a pena pensar em restauração; o me-
lhor caminho seria o extermínio. “Caiu, caiu a grande Babilônia e se tornou
morada de demônios, covil de toda espé-
Após o dilúvio, a cidade dos homens vol- cie de espírito imundo e esconderijo de
tou a ser edificada. A partir dos filhos de todo gênero de ave imunda e detestável,
Noé, surgiram as nações que foram sepa- pois todas as nações têm bebido do vinho
radas após Ninrode ter construído a Torre do furor da sua prostituição. Com ela se
de Babel. A degeneração do homem mais prostituíram os reis da terra. Também os
uma vez se manifestou e alcançou o seu mercadores da terra se enriqueceram à
ápice na construção da torre que ansiava custa da sua luxúria.” (Ap 18.2,3)
por estabelecer a notoriedade humana e
figuradamente “chegar até aos céus” (Gn Hoje, a cidade dos homens é esplendoro-
11.3,4). Quando Deus destruiu a torre, sa e aparentemente indestrutível. Os ho-
entretanto, estava demonstrando que mens têm vivido tranquilamente dentro
não deixaria, pelo menos naquele mo- de seus muros e de suas torres que quase
mento, o homem entregue a si mesmo, alcançam o céu, e todo o sentido da vida
e nem que ele chegasse ao ápice do seu humana emana dos empreendimentos,
pecado. Mas é preciso lembrar que Jesus funções e ocupações dessa cidade. Deus
disse que nos últimos dias os homens vol- se torna uma realidade mais vaga a cada
tariam a ser como “nos dias de Noé” (Lc dia que passa. Mas no fundo, todos sa-
17.26,27). Isso só pode significar que, bem que a segurança dessa cidade não é
nos tempos finais, o egocentrismo retor- tão garantida, pois suas bases são extre-
naria com força total, pois o homem seria mamente frágeis.
mais uma vez entregue “a si mesmo”. Se
não estamos nesse tempo, ele certamente UM ‘‘PROFETA’’ DOS HOMENS
não está longe.
Não faltaram gigantes intelectuais que
Na Bíblia, uma cidade se tornou o estere- ofereceram suporte para a cidade dos
ótipo da cidade dos homens: Babilônia. homens e tentaram explicar o dilema da
Aquela primeira Babilônia de Ninrode existência humana sem recorrer a Deus.
(Gn 10.8-10) e também a Babilônia de Como Freud (1856-1939), para quem a
Nabucodonosor que levou Judá cativo e existência humana se resumia na luta do
o fez aprender a cultura dos caldeus, as- ego para se livrar da influência do “id”
sim como a última Babilônia descrita no (ímpetos irracionais) e do superego (me-
Apocalipse. Babilônia representa o po- mória de leis apreendidas: consciência),
derio e o orgulho humano em seu ápice. repudiando toda dependência de outras
Os profetas Isaías e Jeremias já diziam pessoas e, acima de tudo, da mais ilusória
ao povo: “sai da Babilônia” (Is 48.20; Jr das pessoas para ele: Deus. Freud preci-
50.8). No Apocalipse, João descreve Ba- sou dizer que a pessoa de Deus era ilusó-
bilônia, como “a grande, a mãe das me- ria, mas, ao fazer isso, teve de admitir, de
retrizes e das abominações da terra” (Ap algum modo, a existência dessa pessoa.

A CIDADE DOS HOMENS 44

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Outra proposta é a de Sartre (1905- prias leis. O mundo de Deus já não tinha
1980) e a ideia da existência como absur- significado para eles, então, passaram a
da e sem significado, que diria que “ser ou criar o seu próprio significado a partir do
não ser” não faz qualquer diferença, ain- nada, por pura força de vontade, nos mol-
da que raríssimos adeptos dessa filosofia des mais idealizados (ainda que anacro-
optassem pela segunda opção. Ou, a res- nicamente) do cansativo super-homem
posta mais recente e provocativa do “gene de Nietzsche. Algo positivo, a respeito de
de Deus” do geneticista norte-americano Nietzsche, que muitas vezes não é obser-
Dean Hamer, que diz existir nas pessoas vado por seus críticos, é que ele previu de
um “gene” que causa uma predisposição modo absolutamente lúcido (apesar da
para a espiritualidade, e resume a espiri- sua loucura) quais são as implicações da
tualidade a uma pura questão genética. crença na não-existência de Deus. Niet-
No fundo, todos desejam gritar em coro zsche zombava daqueles que, ao mesmo
com o filósofo alemão Friedrich Niet- tempo em que eliminavam a ideia da exis-
zsche (1844-1900), “Deus está morto”. tência do Deus cristão, desejavam manter
Basicamente, isso foi o que Caim e seus a moralidade cristã. Ele sabia muito bem
filhos disseram quando partiram para a que isso era algo inconcebível. Se Deus
55
Ver Cornelius Plan- jornada sem Deus. Eles não estavam mais morreu, a moral também morreu, e a con-
tinga, Não era para ser
assim, p. 165. dispostos a viver em conformidade com o sequência é que o bem e o mal já podem
56
Colin Brown, Filosofia padrão divino; então, para eles Deus esta- ser sepultados. Nesse sentido, Nietzsche
e fé cristã, p. 95.
va morto. Por que Caim matou Abel? Por realmente foi um “profeta” da cidade dos
inveja? Ciúme? O mais provável é que foi homens56.
por causa de Deus. Quando Deus aceitou
a oferta de Abel, mas rejeitou a sua oferta, A DÚVIDA DE HAMLET
um sentimento se apoderou de Caim: “é
impossível satisfazer este Deus”. Então, o Na tragédia de Hamlet, do famoso dra-
ódio contra Deus se redirecionou para o maturgo inglês William Shakespeare
seu irmão. Como não conseguia colocar (1564-1616), o dilema da existência é a
Deus dentro de sua mira, voltou-a para dúvida que corrói o personagem. Existir
seu irmão; afinal, ele era o concorrente55. ou deixar de existir, ele não sabe o que é
melhor, ou talvez, o que é pior. Se ao me-
Logo, os descendentes de Caim estavam nos tivesse certeza de que os sonhos que
fazendo suas próprias leis. Lameque ma- virão com o sono da morte fossem bons...
tou dois homens e adaptou a legislação Mas ele tem de conviver com a dúvida.
divina a respeito de Caim para seu pró- A dúvida de não saber se há punições ou
prio caso: “Sete vezes se tomará vingança recompensas por tudo o que se faz nesta
de Caim, de Lameque, porém, setenta ve- vida; a dúvida de não saber se viver é me-
zes sete” (Gn 4.24). Foi aí que começou a lhor do que morrer, e justamente por isso,
moral circunstancial, ou seja, a ética que ter de continuar vivendo. A dúvida de
se adapta às circunstâncias, pois o padrão não saber a razão da existência. Viver para
divino absoluto foi abandonado, e cada quê? Viver por quê? Quando o homem
ser humano começou a fazer as suas pró- se afastou de Deus e começou a construir

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a sua própria cidade, buscou de muitos faz sentido para ele. Afirmar a existência
modos respostas para essas perguntas, de Deus e seus direitos como criador não
porém, as respostas do humanismo são é, como se pensa, um salto no escuro, ou
incrivelmente reduzidas. Afinal, elas sem- uma declaração irracional da religião, an-
pre terão de dizer que Deus não existe, e, tes é a afirmação mais racional que exis-
consequentemente, jamais conseguirão te. Gênesis 1.1 é esse tipo de afirmação.
dizer por que o homem existe. Quando Nessa passagem, estão contidas as pala-
se nega que o homem seja um ser criado, vras mais importantes e necessárias para
estabelece-se uma lacuna que será impos- que a vida humana tenha sentido: “No
sível de ser preenchida. Toda explicação princípio, criou Deus os céus e a terra”.
que a ciência ou as teorias evolucionis- Essa passagem fala da existência de um
tas consigam oferecer sempre será algum princípio que torna a existência das de-
tipo de “escapismo ou obscurantismo in- mais coisas viável e significativa. Ao con-
telectual”57 , pois de nada adianta oferecer trário das teorias científicas que fogem
mil explicações para o desenvolvimento dessa questão, o Gênesis não tem medo
de algo se não há qualquer explicação de mergulhar no princípio fundamental
para a sua origem. que torna as demais coisas certas e segu- 57
Colin Brown, Filosofia
ras. O que existia antes desse princípio? e fé cristã, p. 22.

CONCLUSÃO Deus. Embora isso seja repugnante para


muitas pessoas que já bradaram sua in-
As pessoas do século 21 olham para todo dependência de Deus, até hoje ninguém
o progresso da humanidade e dizem or- conseguiu dar outra resposta mais con-
gulhosamente: Deus não existe. Mas, vincente. Negar essa resposta não levou
mais do que dizer “Deus não existe”, o o homem a ter qualquer melhoria em sua
que elas pretendem dizer é: “Nós não existência, muito pelo contrário. Afirmar
precisamos de Deus”. De certo modo, elas essa existência leva o ser humano ao ver-
pensam que são as únicas que tiveram a dadeiro humanismo, pois lhe dá a chave
coragem de dizer isso na História, mas es- para a existência autêntica. É só quando
tão tremendamente enganadas. Há pelo essa certeza inunda o coração que tere-
menos três mil anos, o salmista já ob- mos verdadeiramente coragem de ser e
servou que algumas pessoas tinham esse deixaremos de ter medo de não ser. O su-
tipo de pensamento: “Diz o insensato per-homem de Nietzsche, no fundo é um
no seu coração: Não há Deus” (Sl 14.1). medroso. Ele tem medo de admitir seus
Davi chama esse tipo de pessoa de “insen- traumas e sua fraqueza. Ele tem medo de
sata”. De certo modo, quando o ser huma- confiar em Deus. Ele opta pelo “não ser”,
no nega a existência de Deus só lhe resta porque não tem coragem de “ser”.
realmente a insensatez, pois nada mais

A CIDADE DOS HOMENS 46

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Anotações

47 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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8
A CIDADE DE DEUS

Salmo 8

INTRODUÇÃO possível quando nos voltamos para Deus.

Há uma historinha a respeito do famoso João Calvino pode ser considerado um


filósofo do pessimismo, Arthur Scho- humanista. Sua capacidade de pesquisa
penhauer (1788-1860), que diz que ele e de crítica foi herança de sua formação 58
John Stott, Ouça o
espírito, p. 35.
estava sentado, meio maltrapilho, num humanista. Mas a conversão de Calvino
59
parque de Frankfurt, e um guarda do par- o colocou na rota do humanismo bíblico João Calvino, As Insti-
tutas, 1.1.2.
que, que o confundiu com um mendigo e em colisão com o egocentrismo do hu-
ou vagabundo, lhe perguntou: “Quem manismo secular. Calvino entendeu que a
é você?” O filósofo lhe respondeu: “Por exaltação do homem pelo homem e para o
Deus, como eu gostaria de saber!”58 A dú- homem da cultura renascentista não con-
vida de Schopenhauer é ainda mais básica duziria ao verdadeiro conhecimento de si
do que a dúvida de Hamlet. Em Hamlet mesmo, antes a uma distorção. Ele disse:
o homem não sabe a razão da existência; “É notório que jamais chega o homem ao
em Schopenhauer ele não sabe sequer puro conhecimento de si mesmo até que
quem ele é. haja antes contemplado a face de Deus e
da visão dele desça para examinar-se a si
Quando o ser humano virou as costas próprio”59 . O grande erro do humanis-
para Deus, ele virou as costas para o que mo secular é olhar apenas para si mesmo,
lhe dava significado. Quando se lançou como Narciso. Narciso é um personagem
sozinho na jornada pelo deserto e se apai- da mitologia grega, filho do deus-rio Cefi-
xonou pela sua própria imagem, começou so e da ninfa Liríope, um jovem de singu-
uma busca por algo inalcançável, uma mi- lar beleza que, ao contemplar sua própria
ragem que sempre está há alguns metros, imagem nas águas de um rio, apaixonou-
mas permanece totalmente inacessível. A -se por si mesmo. A lenda de Narciso se
retomada do sentido de ser humano passa parece com a história da humanidade que
por uma readequação do entendimento deixou de olhar para Deus e, olhando
da própria essência do homem, e isso só é apenas para si mesma, não conseguiu ver

A CIDADE DE DEUS 48

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mais nada. dizer que o homem seja divino, mas antes
que foi criado para refletir perfeitamente
O HOMEM SEGUINDO A BÍBLIA o caráter de Deus, e tem habilidades na-
turais para se relacionar com ele. Quebrar
Um dos mais impressionantes salmos da esse relacionamento não significou, como
Bíblia Hebraica, o Salmo 8, tem muito a alguém poderia imaginar, romper o cor-
falar ao homem moderno sobre o valor do dão umbilical que nos faria viver por nós
ser humano e sobre o significado da exis- mesmos, mas cortar o fluxo do verdadeiro
tência. No Salmo 8 há uma pergunta que a significado para a existência humana.
humanidade tem tentado responder des-
de o começo do mundo. Uma pergunta Antes da Queda, o homem poderia olhar
que diz respeito à sua própria identidade: para si mesmo e ver Deus, pois a ima-
“Que é o homem?” (Sl 8.4). Não importa gem límpida de Deus estava no homem.
quantas respostas já tenhamos ouvido das Depois da Queda, o homem olha para si
60
R. K. Wright, Soberania mais diversas áreas de pesquisa, da ciên- mesmo e vê uma imagem distorcida de
Banida, p. 83.
cia ao esoterismo, nenhuma delas satisfaz Deus, como se olhasse para um espelho
plenamente. quebrado que assume formas grotescas.
R. K. Mc Gregor Wright escreveu: “Vis-
O pastor de ovelhas Davi, antes de ser o to que somos criaturas, nosso significado
grande rei de Israel, contemplava a lua e origina-se no plano eterno de Deus para
as estrelas criadas por Deus, e se admirava a sua criação. Nenhuma coisa finita tem
diante da grandeza das obras do Criador. qualquer significado à parte de seu lugar
Foi, por isso, tomado por uma sensação no plano de Deus”60.
de pequenez diante da imensidão que
os olhos tentavam inutilmente captar. O ser humano só tem importância por-
Olhando para essas coisas (Sl 8.3), Davi que Deus existe e tem um propósito para
formulou a pergunta filosófica-chave da ele. Para isso Deus o criou e lhe deu do-
humanidade: “Que é o homem, que dele mínio. Somente quando o ser humano re-
te lembres? E o filho d o h omem, q ue o conhece a sua pequenez diante de Deus,
visites?” (v. 4). Davi encontra a resposta reconhece que Deus é gracioso por se
para essa pergunta na criação do homem relacionar com ele, e tenta se adequar ao
e na tarefa que lhe foi dada: “Fizeste- plano de Deus para a sua vida é que vai se
-o, no entanto, por um pouco, menor do sentir humano de verdade. Poucas si-
que Deus e de glória e de honra o coro- tuações são mais difíceis de enfrentar do
aste. Deste-lhe domínio sobre as obras da que quando precisamos assumir um pa-
tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” pel que não é nosso. É difícil quando te-
(8.5,6). Como o salmista conhecia o Gê- mos de fazer de conta que somos o que na
nesis, podemos deduzir que essa frase te- verdade não somos. A ideia de colocar o
nha correlação com a declaração de que ser humano como a razão máxima do uni-
Deus fez o homem à sua imagem e seme- verso só contribuiu para a deterioração
lhança (Gn 1.26). Nenhuma outra criatu- do ser humano. Isso nos mostra que, des-
ra recebeu esse privilégio. Isso não quer de o início, a cidade dos homens estava

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condenada. O humanismo secular é anti- do que a seguinte: “Pois toda carne é
-humano porque tenta fazer do homem como a erva, e toda a sua glória, como a
aquilo que ele não é, nem foi planejado flor da erva; seca-se a erva, e cai a sua flor”
para ser. A Bíblia é um livro humanista no (1Pe 1.24). Não há construção ou arte-
verdadeiro sentido, pois coloca o ser hu- fato feito pela mão do homem que não
mano no seu devido lugar. O humanismo contenha falhas e que, mais cedo ou mais
secular confunde o papel do homem, bem tarde, não vire pó. A terra vence o homem,
como a sua essência. não apenas nos grandes desastres da na-
tureza, mas até no mundo micro, onde os
O DESESPERO DO HOMEM vírus e bactérias quase sempre estão fora
de controle.
O humanismo jamais terá uma resposta
satisfatória para a pergunta-chave da hu- A consciência da finitude e da transito-
manidade. A desilusão com sua própria riedade de todos os empreendimentos
existência leva o ser humano a cultivar o humanos acaba levando o homem ao
desespero como um tipo de virtude. O desespero. Como ele não deseja levantar
mundo criado pelo homem é um mun- os olhos para o Deus que poderia lhe dar
do destinado ao fracasso e ao sofrimen- esperança, só lhe resta a agonia. Essa é a
to. Adão e Eva talvez pensassem em viver essência da existência pós-moderna. É
uma vida cheia de significado e desafios uma cidade de desesperados porque não
após o seu brado de independência de querem levantar os olhos para aquele que
Deus, mas o que conseguiram foi trazer a pode lhes dar esperança.
tragédia para dentro de sua existência. A
existência humana se tornou uma luta de- MATANDO O VELHO LOBO
sesperada por sobrevivência num mundo
amaldiçoado (Gn 3.17). A terra que foi É preciso, porém, dar um passo além, se
criada para o homem subjugar, ou seja, quisermos entender realmente quem é
exercer domínio, agora se voltava contra o ser humano. Não é só uma questão de
ele, produzindo “cardos e abrolhos” inde- aceitá-lo à luz da existência de Deus, e de
sejados, e muitas vezes, fatais. Todo o es- seu propósito para ele; é preciso entender
forço, todo o suor, afinal se demonstram também o dilema moral de sua existência.
inúteis, pois, mais cedo ou mais tarde, a O ser humano tem culpa moral diante de
terra vence a luta e o pó volta a ser pó (Gn Deus. Todo o esforço da moderna psi-
3.19). Essa é a sina do ser humano. cologia para negar essa culpa como algo
objetivo não conseguiu produzir pessoas
A cidade dos homens sempre está desti- melhores. Até porque isso é nadar contra
nada à ruína. Suas torres sempre caem e, a correnteza. Por mais que as pessoas se
em última instância, é Deus quem as der- esforcem por negar a existência da culpa
ruba (Gn 11.1-9). Assim todos os proje- moral, nada conseguem fazer para que ela
tos e toda a glória humana estão fadados se apague completamente. Sempre estará
ao aniquilamento. Não existe declaração lá, bem dentro de cada um, a consciên-
mais filosófica e realista sobre o homem cia de que é transgressor da Lei de Deus.

A CIDADE DE DEUS 50

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Todo o esforço humanista, em última ins- se é sem consistência e falsa, transitória e
tância, é uma fuga de Deus, uma tentativa vazia, não leva a lugar algum, morre em si
fútil e sofrível de se evadir da nossa culpa mesma porque em si mesma já é morta61.
diante dele, como Caim ou Lameque que Morte é a palavra-chave para esse tipo de
sabiam quanto eram culpados, e todas as busca. O medo da morte leva a buscar o
suas atividades posteriores não consegui- prazer e ele é, ao mesmo tempo, atraído
ram apagar isso. Disfarçar essa culpa em pela morte.
ocupações ou especulações filosóficas de
nada adianta. Todo o senso de liberdade John Stott resumiu a busca do ser huma-
que dizem ter aqueles que se livraram da no como sendo tríplice. Uma busca por
ideia de Deus não passa de um imenso au- transcendência, significância e comu-
toengano. Somente o teísmo pode livrar o nhão. Ele diz que transcendência é a bus-
homem do seu maior inimigo: o próprio ca por Deus, significância a busca por nós
homem. Thomas Hobbes ( 1588-1679) mesmos e comunhão a busca pelo próxi-
dizia que “o homem é o lobo do mo62. O homem busca essas coisas por
homem”. Hobbes usou essa expressão meio da construção de sua cidade, mas
61 para justificar a necessidade da ins- nenhuma dessas coisas pode ser encon-
Agostinho, A cidade de
Deus, II, 20. tituição do governo sobre o homem, trada sem um repúdio do sistema huma-
62
John Stott, Ouça o pois, segundo ele, no estado da natureza, no de vida distanciado de Deus, ou seja,
espírito, pp. 263-264.
o homem sempre tenta ultrapassar os sem um abandono do humanismo ateísta.
seus semelhantes e satisfazer o seu orgu-
lho e a sua vaidade. O velho lobo mau Há, dentro de todas as pessoas, um anelo
está realmente dentro do ser humano. E, por algo mais do que o materialismo pode
ao contrário do que Hobbes imaginava, oferecer e explicar. Este “senso da divin-
as instituições humanas, sejam elas dade”, que Calvino ensinou, faz o homem
políticas, comerciais ou filosóficas, ja- olhar para além deste mundo e buscar a
mais conseguiram subjugá-lo. A única realidade última de todas as coisas. Por
solução é matar esse lobo. isso, as pessoas nunca estão satisfeitas
com o que possuem. Aqueles que chegam
É interessante que Jesus, ao chamar seus às alturas da riqueza, fama e poder, aca-
discípulos para o seguirem, os chamou bam, muitas vezes, afundados no álcool,
para a morte do eu: “Se alguém quer vir nas drogas e na degeneração sexual, que
após mim, a si mesmo se negue, tome a são também os elementos de escape dos
sua cruz e siga-me” (Mt 16.24). miseráveis das favelas. Nada satisfaz o ser
humano. A explosão da religiosidade no
NOVOS TEMPOS, VELHOS ANSEIOS século 21, com todo o seu misticismo, é
outra demonstração disso. As multidões
O humanismo é uma tentativa de satisfa- que se arrastam atrás de tantos “novos
zer ilicitamente os anseios humanos mais pregadores”, “gurus” e “rituais secretos”
íntimos, transferindo-os de Deus para as deixam a certeza de que algo está faltando
coisas, ou, de modo negativo, negando a dentro do ser humano. Mas a religião hu-
realidade objetiva. Agostinho dizia que a manista nunca conseguiu nem conseguirá
satisfação que só busca o próprio interes-

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satisfazer verdadeiramente essa necessi- porque no fundo, não sabem amar. Elas
dade do ser humano. pintam um quadro de amor totalmente
falso e superficial. O “amor perfeito” dos
A segunda busca, a por significado pessoal, filmes e novelas não existe, porque os
nutre de forças o ser humano para a longa príncipes e princesas existem apenas na
jornada na terra. Aqui é o terreno em que ficção. Na vida prática, as pessoas são vam-
o humanismo mais se dispõe a agir. Mas piros emocionais que jamais se saciam. O
o mundo moderno tem massificado o ser amor do humanismo é muito diferente
humano e reduzido suas expectativas em do amor bíblico, porque é impaciente,
relação à vida. As máquinas substituem os perverso, ciumento, orgulhoso, soberbo,
homens e os heróis verdadeiros são os da inconveniente, egoísta, exaltado, ressen-
televisão, que estão muito acima daquilo tido e injusto (ver 1Co 13.4-6). Ele não
que pessoas comuns podem ser. A única quer sofrer, não quer acreditar, não quer
coisa que resta aos miseráveis é olhar para esperar, não quer suportar (1Co 13.7).
aquelas grandes e importantes figuras na Isso certamente não é amor, apenas uma
televisão e vê-las como seus representan- imitação grosseira e maligna desse senti-
tes. mento grandioso que figura como fruto
do Espírito e como o maior dos dons es-
Frequentemente a busca por significado pirituais.
pessoal faz o homem extrapolar todos os
limites, indo direto para a criminalida- O PROJETO ORIGINAL
de. Na luta insana por sobrevivência, fi-
nalmente o homem comete o seu maior Interessantemente, essas buscas que mo-
crime, quando destrói a vida de seu se- vem o ser humano foram planejadas por
melhante, como Caim fez com Abel. E Deus desde o início. Segundo o Gênesis,
isso se dá, não apenas quando armas são quando Deus criou o homem, o colocou
disparadas, ou quando bombas explodem dentro de uma esfera de três relaciona-
em campos de batalhas, mas, também, mentos. O homem deveria se relacionar
quando homens públicos desviam verbas com Deus, com sua mulher e com a cria-
que salvariam vidas, ou quando pessoas ção em sua tarefa de cultivar o jardim (Gn
comuns praticam o mais simples e cruel 1.26-30). Ou seja, os aspectos espirituais,
de todos os crimes, o descaso. afetivos e culturais estavam na proposta
de Deus para a vida humana.
O tema da maioria das músicas e dos fil-
mes da atualidade não deixa dúvidas de Tendo sido criado à imagem de Deus,
que o “amor” é outra grande busca do ser o homem foi dotado da capacidade de
humano. Encontrar alguém para amar e conversar com Deus e se relacionar inti-
ser amado é o grande desejo da humani- mamente com ele; assim, o aspecto trans-
dade. As pessoas suspiram por isso e se cendental ou espiritual seria plenamente
desintegram emocionalmente em relacio- realizado. O homem deveria constituir
namentos frustrantes cheios de egoísmo família, tomando uma mulher com a qual
e ódio, em constantes trocas de parceiros, estabeleceria um relacionamento estável

A CIDADE DE DEUS 52

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de amor, companheirismo, entendimento salém “desça do céu”. Enquanto ela não
e ajuda mútua, o qual serviria de base para desce, aqueles que desejam ter uma vida
criar filhos integrados ao todo. Assim, o realmente cheia de significado precisam
aspecto afetivo ou social também seria “sair de Babilônia”.
realizado e, a partir do relacionamento
com Deus e com uma família estruturada, CONCLUSÃO
o homem deveria cultivar a criação, pois
Deus determinou que ele tivesse domínio De certo modo, hoje, mais do que nunca,
sobre todas as coisas criadas. Ao desem- Babilônia cumpre a sua vocação. Babel
penhar essas funções em estreito relacio- significa “confusão”. O confuso mundo
namento com Deus, o homem se sentiria pós-moderno é uma ressurreição da con-
completamente útil e integrado com a fusa Babel de Ninrode. Mas a igreja ainda
obra de Deus, e totalmente satisfeito con- tem uma oportunidade. Na própria essên-
sigo mesmo. cia do ser humano está a busca por Deus,
a busca por amor familiar e a busca por
O humanismo deturpa esses três aspectos significado. Toda a confusão dos tempos
originais. A espiritualidade se tornou ido- pós-modernos não apagou isso do ser hu-
latria, misticismo ou ateísmo. O relacio- mano. Essas são excelentes oportunidades
namento familiar afetivo foi substituído para a igreja proclamar a sua mensagem
por todo o tipo de depravação e explora- ao mundo. A mensagem de Jesus é a única
ção sexual. O cultivo responsável da terra que vai ao coração do problema do ser hu-
se tornou em exploração irresponsável, mano, e, ao mesmo tempo, é a única que
opressão e ganância. tem condições de oferecer uma resposta
satisfatória a todos os dilemas da existên-
A Queda não eliminou do homem essa cia humana. Só a cidade de Deus oferece
noção de “domínio” sobre a criação. O refúgio, conforto e empreendimentos à
homem continua trabalhando para pro- altura do homem criado por Deus.
duzir; mas agora, ele não sabe para quem
está fazendo isso, e de certo modo, nem Somente quando o homem reconhece
para quê. Na ordem do Gênesis, o ser sua pequenez diante de Deus, e reconhe-
humano trabalharia para Deus e ajudaria ce que Deus é gracioso por se relacionar
a construir a cidade de Deus, um lugar com o homem, e tenta se adequar ao pla-
maravilhoso e cheio de sentido e signifi- no de Deus para sua vida é que ele vai se
cado, onde Deus e o ser humano pode- sentir humano de verdade. O humanismo
riam se relacionar em perfeita harmonia. é anti-humano, porque tenta fazer do ho-
Mas agora que Babilônia foi construída, mem aquilo que ele não é, nem foi plane-
Deus terá de destruí-la para que a cidade jado para ser. A Bíblia é um livro huma-
de Deus desça do céu, radiante, invicta, nista no verdadeiro sentido. Pois coloca o
esplendorosa (Ap21.2). Não é possível homem no seu devido lugar: ele é criatura
restaurar a cidade dos homens, é preciso de Deus, criado para o louvor de Deus, e
destruir Babilônia, para que a nova Jeru- importante por causa disso.

53 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Anotações

A CIDADE DE DEUS 54

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9
O NOVO E O VELHO
PAGANISMO

Gn 1.26

INTRODUÇÃO As principais manifestações do paganis-


mo hoje estão presentes no ocultismo, no
Gradualmente o mundo tem deixado de feminismo e na ecologia. Precisamos es-
ser racionalista para ser espiritualista-re- tudar o que a Bíblia diz a respeito dessas
lativista. Cada vez mais as pessoas creem coisas.
63 no oculto, no misterioso, no espiritual.
O ex-presidente
americano Bill Clinton e o Os livros mais vendidos da atualidade são CIÊNCIA E OCULTISMO
ex-primeiro-ministro Tony
Blair e suas respectivas aqueles que visam a despertar as pessoas
esposas sempre foram
adeptos de práticas para a espiritualidade. Livros que falam No embalo dos meios de comunicação, a
ocultas e “assessorados”
por gurus espirituais
de anjos, mantras, espiritismo, toda a sor- cultura moderna está se movendo rapida-
64 te de ocultismo e “introduzem” as pessoas mente para a superespiritualidade, ou tal-
J. Armstrong, Evange-
lismo de poder, in Religião nos mistérios. vez fosse melhor dizer para a superstição.
de poder, p. 59.
Isso se torna cada vez mais evidente “à
O mundo pós-moderno é essencialmente medida que alguns reputados cientistas,
aberto ao misticismo. Atores e atrizes pra- filósofos e artistas de todos os tipos ex-
ticam rituais de contato com o oculto, de pressam hostilidade aberta contra o pen-
elevação do espírito e de harmonia com o samento racional e se voltam na direção
universo. Grandes executivos fazem uma de uma mistura de mágica e ciência”64.
pausa no trabalho para um momento de Um exemplo famoso de interação entre
“meditação transcendental”, para recitar ciência e misticismo é o do físico austríaco
um mantra, ou fazer contato com algum Fritjof Capra. Ele escreveu um livro que
espírito “guia”. Chefes de Estado consul- se tornou best-seller, intitulado O Tao da
tam “gurus” espirituais para saber que de- Física. Capra, como os Beattles nos anos
cisões devem tomar63. O povo lê horós- 60, demonstra fascínio pela cultura orien-
copo, prepara mandingas, usa amuletos tal e certo repúdio pelas formas ociden-
e faz todo tipo de simpatias para se livrar tais de percepção do mundo. Segundo ele
dos problemas. mesmo relata no prefácio da obra, certo

55 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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dia, num verão de 1969, estava sentado essencial para a vida moderna. Necessita-
em frente ao mar, numa praia paradisíaca mos, na verdade, não de uma síntese, mas
de uma interação dinâmica entre a intu-
da Califórnia, observando as ondas e pen-
ição mística e a análise científica65.
sando a respeito dos vários movimentos
rítmicos da natureza, como o bater das Não são poucos os cientistas ou pensado-
ondas, as batidas do coração, o ritmo da res que têm se interessado por esse tipo
respiração e, então, teve uma espécie de de relacionamento entre misticismo e
insight ao lembrar que a estrutura física ciência. A mente pós-moderna está ávida
da matéria é composta de átomos e molé- por esse tipo de interação. De certo modo,
culas em constante vibração; tudo aquilo porque ainda não se libertou inteiramen-
lhe pareceu como uma gigantesca dança te das concepções científicas modernas.
cósmica, e então a correlacionou com o Acima de tudo porque o misticismo pa-
que os hindus chamavam de “A dança de gão exerce um apelo muito forte sobre o
Shiva”. Shiva é um dos três deuses princi- homem pós-moderno. Capra tinha sua
pais da mitologia hindu. Em tempos mais própria teoria a respeito da aceitação do
primitivos, era identificado com o mal, seu trabalho:
pois simbolizava a destruição. Em tempos
mais próximos, foi associado com coisas O reconhecimento das semelhanças entre
benéficas, e sua dança foi considerada a física moderna e o misticismo oriental 65
F. Capra, O Tao da
Física, p. 228.
um movimento que destrói para gerar o faz parte de um movimento muito maior,
66
processo de criação. No alto do Himalaia, de uma mudança fundamental de visões F. Capra, O Tao da
Física, p. 241.
de mundo, ou paradigmas, na ciência e na
Shiva dança e derrete a neve sob seus pés sociedade, que agora estão se manifestan-
num ritmo destrutivo, mas a neve conver- do por toda a Europa e América, e que im-
tida em água escorre da montanha e cria o plica numa profunda transformação cul-
rio Ganges. Assim, com a sua dança, Shiva tural. Esta transformação, esta profunda
cria os ritmos do universo. Ele é o mestre mudança de consciência, é o que as pes-
soas sentiram intuitivamente nas últimas
tecelão do espaço e do tempo. Capra viu
duas ou três décadas66.
nesses antigos mitos uma compreensão
apurada das realidades que a física mo- Infelizmente, ele está absolutamente
derna descobriu. certo. A mudança de paradigmas que o
mundo ocidental tem experimentado nos
Capra entende que ciência e misticismo
últimos anos tem aberto as portas para o
são aspectos complementares, pois diz:
misticismo.
Considero a ciência e o misticismo como
manifestações complementares da mente A INVASÃO DO ORIENTE
humana, de suas faculdades intelectuais e
intuitivas. (...) A ciência não necessita do Os países ocidentais sempre olharam
misticismo e este não necessita daquela; com temor para os países orientais. Ainda
o homem, contudo, necessita de ambos.
A experiência profunda da mística é ne- nos tempos do Império Romano, todos
cessária para a compreensão da natureza temiam que, do Oriente, pudessem vir
mais profunda das coisas, e a ciência é invasões que destruíssem o Império, pois

O NOVO E O VELHO PAGANISMO 56

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havia reis vassalos que poderiam se revol- em decorrência de atitudes tomadas em
tar, além de muitas nações que jamais fo- vidas anteriores. Esse tipo de acúmulo de
ram conquistadas por Roma. Talvez, por méritos ou deveres é chamado de “carma”.
isso, o apóstolo João tenha usado no Apo- É o carma que decide o que cada pessoa
calipse a terrível visão dos reis que vêm será na próxima vida e, portanto, isso ser-
do Oriente para a batalha do Armagedom viu de forte instrumento de dominação
(Ap 16.12,16). social.

Nos nossos dias, de algum modo estamos Nestes últimos tempos, palavras próprias
sempre olhando para o Oriente. O mun- do misticismo hindu se tornaram muito
do não se cansa de olhar para Israel e seus comuns no Ocidente. E também no Oci-
intermináveis conflitos com as nações ára- dente, pela união do misticismo oriental
bes no Oriente Médio. Mais recentemen- com a filosofia da Nova Era, o paganismo
te, a China tem chamado muito a atenção se fortaleceu grandemente. A religiosida-
do Ocidente, por causa do seu crescimen- de da Nova Era mistura mágica, reverên-
to econômico e da sua imensa população. cia pela natureza, bruxaria, astrologia e o
Mas, talvez o país que mais tenha influen- misticismo oriental de modo geral. Te-
ciado o Ocidente seja a Índia. A Índia tem mos visto uma verdadeira invasão de gu-
experimentado um crescimento econô- rus, lamas e mestres tibetanos incentivan-
mico e populacional que rivaliza com o do práticas de meditação, yoga, mantras,
da China, mas tem algo que é muito mais cristais, etc. O yoga é certamente uma
atrativo para o Ocidente: a sua religião. das práticas orientais mais difundidas no
Ocidente. Em sânscrito, a palavra “yoga”
Na Índia, o paganismo permaneceu into- se refere à canga que é usada para unir a
cado por séculos, pronto para, no devido junta de bois, ou seja, ela significa “união”.
momento, invadir o Ocidente. A religião O objetivo da prática é unir a consciência
da Índia, apesar de se misturar com o Bu- individual com o espírito divino interior.
dismo (Buda era hindu), manteve-se me- A maioria das pessoas pratica yoga sem
nos ascética. Para o Budismo, a ilumina- pensar que se trata de uma filosofia reli-
ção só podia ser alcançada pela renúncia giosa, crendo que é apenas um modo de
aos prazeres, ainda que algumas corren- exercitar o corpo.
tes, como a filosofia Zen, enfatizassem os
aspectos simples da vida, como lavar pra- O pós-modernismo foi buscar no misti-
tos e fazer tarefas diárias como estágios cismo oriental a sua religião.
importantes para a iluminação.
A VOLTA DAS BRUXAS
O Hinduísmo se manteve mais como uma
religião da natureza, enfatizando a tole- As novas perspectivas familiares também
rância como algo fundamental. Apesar são essencialmente pagãs. A nova lei civil
disso, manteve o seu famigerado sistema que equipara o poder matriarcal ao poder
de castas, segundo o qual as pessoas nas- patriarcal nada mais é do que uma ressur-
cem em situações específicas nesta vida reição do velho paganismo matriarcal. A

57 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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investida da mídia em defesa da homosse- ‘o criador e governador do mundo’, está
xualidade e da transexualidade, incluindo fora do mundo, distante dele; já a deusa
o casamento homossexual, com base na não governa o mundo, ela é o mundo; por
tolerância e na unidade das expressões isso, o panteísmo é a religião da deusa e
sexuais, é apenas uma nova forma de pa- o envolvimento místico-cósmico com a
ganismo. Mas poucas coisas contribuíram natureza é o caminho para o despertar es-
mais para trazer de volta o paganismo do piritual do ser humano.
que o feminismo.
Derivado do feminismo secular surgiu
O movimento feminista surgiu para de- um feminismo teológico. Ivone Gebara,
fender as mulheres da opressão masculina freira católica, teóloga e filósofa descreve
na sociedade. Uma luta sem dúvida jus- a teologia feminista em três processos67.
ta, mas que veio revestida de muitos ele- O primeiro momento foi a descoberta da
mentos pagãos. Se em tempos passados mulher como historicamente oprimida, a
as bruxas foram perseguidas e queimadas partir da influência do movimento femi-
67 Ver Ivone Gebara,
em fogueiras, hoje são admiradas, apare- nista secular. A reação da teologia feminis- “Construyendo nuestras
cem em programas de televisão e “fazem a ta foi destacar a participação feminina na teologias feministas”. In
Tópicos 90 - Cuadernos
cabeça” das crianças. Bíblia, resgatando o trabalho de persona- de Estudios, pp. 71-124.
Citado por Sílvia Regina de
gens femininas como Débora, Miriã, Rute Lima Silva, Teologia femi-
nista latino-americana.
O feminismo atual é um forte braço do e outras que assumiram papel semelhan- Disponível em: http://
ospiti.peacelink.it/zumbi/
paganismo que retorna. O feminismo te ao dos homens na construção de uma afro/atab/cons22.html
buscou no paganismo a sua força, pois sociedade melhor. Porém, isso não trouxe
viu no Cristianismo um sistema patriar- muita contribuição para a causa femini-
cal, masculino e opressor do qual queria na. Então, o segundo momento procurou
se libertar. Os esotéricos acreditam que a estabelecer a chamada “feminização dos
Era de Peixes está acabando. A Era de Pei- conceitos teológicos”. A face masculina de
xes foi a era do masculino e do racional e, certos conceitos teológicos foi mudada
consequentemente, do Cristianismo. A para faces mais femininas. Foi uma busca
Era de Aquário, segundo esses místicos, por descobrir as expressões femininas de
está chegando. Esta será a “Nova Era” e Deus. Mas como isso ainda não foi sufi-
será regida pelo aspecto feminino, inte- ciente, surgiu o terceiro momento, que foi
rior e intuitivo. Por isso, segundo os prog- uma radicalização do conceito de Deus,
nósticos dos adeptos da Nova Era, o Cris- uma crítica à chamada teologia patriarcal,
tianismo do Deus-pai desaparecerá e o ve- levando a uma releitura da Bíblia em que
lho paganismo da Deusa-mãe ressurgirá. tudo o que fosse considerado patriarcal
Eles dizem que enquanto o mundo esteve seria descartado. Nesse ponto, a teologia
sob o domínio do “masculino” só houve feminista se aproximou da religião femi-
sofrimento, guerras e destruições. Com nista da natureza e se tornou algo muito
o advento do “feminino” se estabelecerá próximo do panteísmo pagão.
uma era de paz, compreensão e unidade.
A diferença básica entre o Deus-pai e a Recentemente, a pastora metodista bra-
Deusa-mãe é que Deus, que é tido como sileira foi acusada de bruxaria. A revista

O NOVO E O VELHO PAGANISMO 58

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Época noticiou o fato, evidentemente de- dassem financeiramente, e foram elas as
fendendo a pastora. A pastora participou únicas que permaneceram com ele até o
de uma reunião de mulheres na qual re- fim (Mc 15.40,41).
citavam uma poesia: “Sou uma bruxa? É
claro que sou! Eu e todas as mulheres que, Se Jesus não falou contra as diferenças
como eu, questionam o óbvio e não com- entre homem e mulher, e se nem mes-
pactuam com as injustiças, mas não quero mo revogou os direitos patriarcais do ho-
queimar na fogueira de uma sociedade hi- mem como “cabeça da casa” não foi por
pócrita...”. No carro dela havia um adesivo defender uma perspectiva machista, mas
dizendo: “Bruxa a bordo”68. Numa entre- porque esse foi o modo como Deus es-
vista, a teóloga Ivone Gebara disse: tabeleceu a família, e quando isso é feito
segundo a perspectiva bíblica, traz alegria
68 Revista Época, “Inquisi- Nós mulheres estamos sendo capazes de e paz para homens e mulheres.
ção Moderna”, edição
321, 8/7/2004.
organizar nossa espiritualidade um pouco
fora das instituições religiosas. Todas as
69
Violência: destino ou pessoas têm necessidade de momentos INTOLERÂNCIA AO CRISTIANISMO
realidade a ser mudada?
Disponível em: http://
para celebrar a vida, para chorar a morte
www.mmcbrasil.com. e buscar o sentido da vida. Durante certo O paganismo é, provavelmente, a religião
br/rs/noticias/081205_en-
trev_gebara.htm. tempo, o Cristianismo patriarcal supriu que mais cresce no mundo. E não é difícil
70 essa necessidade. Agora, percebo que está identificar a razão desse crescimento. O
Segundo historiadores
como César Vidal, o ideali- meio longe da vida das mulheres, longe
zador da Constituição Eu- das nossas preocupações69. paganismo está em estreita sintonia com
ropeia foi o ex-presidente
francês, Giscard d’Estaing
o mundo pós-moderno. Enquanto cresce
(d. 1974-1981), um
maçom conhecido como Elas dizem ter encontrado no velho paga- a intolerância em relação ao Cristianismo,
inimigo do Cristianismo.
nismo, nas religiões da natureza, o confor- o paganismo ganha corpo em todas as
Ele se recusou a colocar
qualquer referência ao
to de que precisam. O verdadeiro objetivo classes da sociedade, especialmente nos
Cristianismo no preâmbu-
lo da constituição apesar das feministas radicais não é simplesmen- altos escalões dos governos mundiais.
dos apelos do Vaticano e
de outras organizações te falar em favor dos direitos das mulheres
cristãs. (Ver: http://www.
angelfi re.com/pq/unica/ e contra a opressão machista. No fundo, o A simples resistência para constar na
europa_2005_cesar_vi-
que se deseja é resgatar o velho paganismo constituição da União Europeia qualquer
dal_.htm. Ver também:
http://www. auniao.com/
do culto à mãe terra e ressuscitar a deusa. referência ao Cristianismo, tentando apa-
ler.php?id=2541)..
gar a importância fundamental da religião
É preciso que se entenda que a Bíblia cristã na fundação dos Estados europeus,
não é um livro machista. É possível que é uma clara demonstração de que o Cris-
o Cristianismo organizado tenha se mos- tianismo não é bem-vindo no mundo
trado machista em muitos momentos; pós-moderno70. Enquanto isso, em países
porém, nesse sentido, ele não refletiu os protestantes como a Dinamarca, cresce o
ensinos e a postura de Jesus. Contrarian- número de adoradores de Thor, Odin e
do as expectativas de sua época, Jesus outros deuses, cujas celebrações primi-
concedeu atenção especial às mulheres tivas de matrimônio já são reconhecidas
em seu ministério. Jesus incluiu mulheres como legais perante a lei. E o número de
no seu grupo mais restrito de discípulos e Wiccas (bruxas) na América do Norte
até permitiu que algumas mulheres o aju- cresce assustadoramente.

59 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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As concepções centrais do Cristianismo totalmente inaceitável para a cultura pós-
são frontalmente opostas às concepções -moderna.
pós-modernas, enquanto as concepções
pagãs são muito semelhantes. Uma sim- Além disso, para o Cristianismo, o padrão
ples análise dos principais pontos da fé de moral é fixo e normativo, a partir da
cristã é suficiente para entender isso. No revelação de Deus. Na religiosidade pagã,
Cristianismo bíblico, Deus é criador so- entretanto, o homem pós-moderno en-
berano de tudo o que existe. O homem controu o que precisava para libertar seus
pós-moderno não consegue admitir a impulsos. A moral subjetiva e a busca pelo
ideia de um Deus soberano, uma “mente prazer alegram grandemente o coração do
fora do mundo”, pois isso implicaria per- homem, quer ele seja pós-moderno, mo-
da do controle por parte do homem. Ele derno ou antiquado. O paganismo tem
prefere a ideia de uma “mente dentro do um apelo muito forte ao prazer. Em sua
mundo”, pois assim, ninguém está real- essência, como o relativismo pós-mo-
mente no controle, logo não há princípios derno, apregoa a ausência de limites ou
morais normativos. Se cada um tem “deus de disciplina. Como em suas formas bem
dentro de si”, então cada um é deus para primitivas, o paganismo é essencialmente
si mesmo. “festivo”, pois são os desejos do corpo que
controlam a existência e não a mente ou o
Para o Cristianismo tradicional, a Bíblia é bom senso. Esse forte apelo sensual é uma
a revelação proposicional de Deus. Isso é das razões do seu crescimento.
inaceitável para o homem pós-moderno
porque implica a existência da verda- ECOLOGIA SEM PAGANISMO
de absoluta e objetiva. Por isso o pós-
-modernismo prefere o misticismo, pois, Uma das grandes forças do paganismo
assim, cada um faz a sua própria verdade hoje é o seu apelo ecológico. O mun-
subjetiva. Para o Cristianismo bíblico o do tem despertado para a necessidade
homem é pecador, está perdido e precisa de preservar a natureza. O Cristianismo
de redenção. Talvez essa seja a ideia mais deveria ser o primeiro a fazer isso, pois
inaceitável para o homem pós-moderno. a Bíblia diz que Deus colocou o homem
O pós-modernismo, nesse sentido, ape- como administrador da criação (Gn
nas desenvolveu o conceito humanista do 1.26), mas são os esotéricos e místicos
modernismo e, podemos dizer, o elevou que têm liderado essa marcha. A defesa
à categoria máxima por meio do paganis- da ecologia não tem seguido o rumo da
mo, pois agora o ser humano tem um deus Bíblia, pois para essas pessoas Deus não
dentro de si, e pode entrar em contato di- é o criador da natureza, mas a natureza é
retamente com a divindade por intermé- o próprio Deus. A velha noção do pante-
dio da natureza. Assim, o ser humano não ísmo hindu de que Deus está dentro de
é mau, nem precisa de redenção, apenas cada elemento da criação é a chave para a
de desenvolver as potencialidades que já ecologia moderna. As pessoas estão sen-
estão dentro de si. Por isso, o conceito de do incentivadas a entrar em contato com
inferno sustentado pelo Cristianismo é os espíritos que estão dentro de todos os

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elementos da natureza. Porque a deusa é Deus nos deu este mundo natural no qual
a natureza, as pessoas são convidadas a se vivemos. Este é o nosso lar; este mundo
“identificar” com a n atureza. E las f azem deve ser visto como nosso paraíso apesar
isso supostamente para alcançar o equilí- de ser afetado pelo pecado e pela cor-
brio e a iluminação. rupção. Nós devemos fazer o máximo
para manter nosso meio ambiente limpo
Por outro lado, nem sempre vemos os e saudável para a vida cotidiana. Muitos
cristãos preocupados em cuidar da natu- cristãos não têm atentado para os de-
reza. Para muitos louvar a Deus na igreja safios do meio ambiente e têm deixado
não tem qualquer relação com não jogar o isso para pessoas que tomam posições
lixo na rua, ou fazer a coleta seletiva. Não extremadas, praticamente divinizando a
podemos pensar que só por sermos obe- criação. A criação não é Deus. Deus é se-
dientes espiritual e socialmente já tere- parado da criação, mas se agrada que nós
mos cumprido nosso serviço e obedecido cuidemos dela. Devemos dominar sim,
ao Senhor. Nós não seremos, se tivermos mas com responsabilidade.
separado o cultural, criacional e natural, e
71
feito menção a eles como secular, como CONCLUSÃO
J. I. Packer, Teologia
Concisa, p. 217 se não fizessem parte do reino de Deus e,
72
A Criação Redimida, portanto, sem espaço na nossa vida reli- Imagine o que seria se o mundo fosse
p. 99.
giosa. Como já afirmamos, o homem foi realmente infestado de seres espirituais
feito para administrar o mundo de Deus, estranhos e desconhecidos, e vivêssemos
e “esta administração é parte da vocação rodeados de poderes invisíveis diante dos
humana em Cristo71” , de modo que, não quais não tivéssemos qualquer garantia
podemos agradar a Cristo, se não estiver- de sobreviver. Os antigos deuses compe-
mos envolvidos de forma sadia com todas tiam entre si pela atenção dos homens, e,
as coisas que ele tem domínio. em suas disputas, geralmente quem le-
vava a pior eram os próprios homens. A
Há muita responsabilidade inclusa na de- cosmovisão espiritual do Cristianismo é
claração: “vos tenho dado”. Quer dizer, incomparável. O mundo invisível existe e
antes, tudo pertence a Deus, é dEle, mas as forças malignas também existem, mas
Ele nos deu para que façamos bom uso. há um Deus soberano que está no con-
Embora Deus tenha dado todas as coisas trole de todas as coisas. Este Deus é bom,
ao homem, “não implica que a humanida- gracioso e misericordioso, e em vez de
de, como imagem de Deus na terra, possa exigir sacrifícios das pessoas, ofereceu-se
viver como melhor lhe aprouver”72. O a si mesmo como sacrifício por elas, a fim
bom uso, envolve um uso equilibrado das de redimi-las de seus pecados, e para fazer
coisas de Deus. com que tenham uma vida digna, cheia
de significado e respeito por si mesmas e
pelos semelhantes.

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Anotações

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10
A MAIOR AMEAÇA PAGÃ

2Reis 17.24-41

INTRODUÇÃO O SINCRETISMO RELIGIOSO

O paganismo nunca pretendeu ser uma O paganismo místico oriental da Nova


religião unificada, mas, em suas várias Era pretende substituir o Cristianismo,
manifestações nacionais, algumas coi- mas esse talvez não seja o maior risco. O
sas podiam ser encontradas em comum, problema maior é quando o paganismo
como o culto da natureza (a deusa-mãe se mistura com o Cristianismo. Veith pro-
terra), uma noção panteísta da divindade vavelmente está certo em seu prospecto a
73
Gene Veith, Tempos e a adoração do sagrado feminino (a fer- respeito da nova religião:
pós-modernos, p. 194
tilidade). Com o avanço do Cristianismo
na Europa, o paganismo recuou, até por- A próxima nova religião principal, entretanto,
que, em grande medida, foi substituído é bem capaz de não ser uma das velhas formas
do paganismo patente, e sim um híbrido sin-
pelo catolicismo que providenciou no
crético. Num mundo pós-modernista e cada
culto à Virgem um substituto à altura do vez mais centrado no consumidor, e onde a
culto à mãe terra. É verdade que a deusa verdade é relativa, as pessoas vão optar pelos
do paganismo era essencialmente erótica, vários aspectos das diversas religiões confor-
enquanto a Virgem do catolicismo des- me o que ‘gostam’73 .
taca a castidade, mas o oposto pode ser
igualmente atraente. De fato, embora o A pior coisa que pode acontecer é Cris-
Cristianismo tenha se estendido às Amé- tianismo e paganismo se fundirem. Isso
ricas, por causa da colonização por parte já aconteceu em vários momentos da
dos países cristãos europeus, o paganis- história da igreja, e está acontecendo no-
mo jamais desapareceu. Ele permaneceu vamente. A cultura popular diz: “Deus é
latente no Ocidente, sendo perpetuado um só”. Com isso, se quer dizer que todas
mediante sociedades e rituais secretos e as religiões estão certas em alguma medi-
extremamente vivo no Oriente. da, e que, no fundo, o mesmo Deus está

63 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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por trás de todas. Por conseguinte, não há Sol são recitadas. “Somos todos irmãos”,
um modo único de agradá-lo e a intenção é algo que gostam de dizer aos quatro
vale mais do que os resultados. A ideia é ventos. Mas quem é o pai? Quanto a isso,
que “todos os caminhos levam a Deus”, Jesus tinha uma opinião bem radical (ver
ou seja, se alguém buscar a Deus, não im- Jo 8.44).
porta de que modo, vai achá-lo. A men-
talidade popular crê que todos possuem Nos tempos dos pais da igreja, logo após
um pouco da verdade. Se todos têm um o período apostólico, alguns tentaram
pouco da verdade, então, se conseguir- promover o sincretismo entre o Cristia-
mos juntar algumas partes, chegaremos a nismo e a filosofia grega. Eles entendiam
uma verdade ainda maior. Essa tentativa que Deus havia plantado sementes da
pode ser chamada de “sincretismo”. verdade na filosofia, especialmente nos
escritos do filósofo Platão, de modo que
O sincretismo é a maior ameaça pagã à Cristianismo e filosofia se complemen-
igreja, pois é o mal que atua de dentro. No tavam. O catolicismo da Idade Média,
sincretismo ninguém precisa abrir mão principalmente por meio de São Tomás
completamente de nada, basta se adequar de Aquino (1225-1274), tentou fazer um
a determinada situação, dar e receber sincretismo entre o Cristianismo e a filo-
contribuição para formar algo melhor. O sofia de outro filósofo grego: Aristóteles
próprio movimento ecumênico que bus- (384-322 a.C.).
ca a unificação de todas as denominações
acaba se transformando em sincretismo, O catolicismo é uma religião sincrética
pois almeja que só exista uma denomina- desde a sua origem. O culto às imagens,
ção, mas com características de todas. e especialmente à Virgem, surgiu do sin-
cretismo entre a Igreja Medieval e as reli-
O sincretismo religioso é a mistura de vá- giões pagãs. Na cristianização do Império
rias crenças que se ajustam umas às ou- Romano, a qual se deu, não por evangeli-
tras, formando uma religião que possa ser zação, mas por decreto imperial, os deu-
aceita por todos. No sincretismo, as pes- ses pagãos foram assumindo a forma de
soas não precisam abrir mão de suas cren- personagens bíblicos e cristãos, e cultua-
ças em favor de outras; elas só precisam dos com outros nomes.
aceitar as crenças dos outros e continuar
com as suas próprias. Em alguns concílios A “deusa” que era adorada em quase todos
ecumênicos, e em outros nem tão ecumê- os países do mundo antigo, com diversos
nicos, consegue-se colocar debaixo do nomes como Ísis, Cibele, Astarote, Dia-
mesmo guarda-chuva adeptos de crenças na, etc., passou a ser reverenciada como
historicamente antagônicas e, em certas a Virgem Maria. O catolicismo utilizou a
cerimônias, o Cristo dos cristãos e a mãe imagem de Maria para que os pagãos es-
terra dos naturalistas se assentam lado quecessem sua deusa, assim como usou
a lado, enquanto se cantam louvores ao a imagem dos outros santos para que os
Deus triúno e poesias em homenagem ao deuses menores também fossem abando-

A MAIOR AMEAÇA PAGÃ 64

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nados. ligião puramente bíblica tem sido deixa-
da de lado, pois a Bíblia já não é o único
É no Brasil que temos um dos maiores referencial para as pessoas que se deno-
exemplos do sincretismo entre Cristianis- minam cristãs. Hoje, elas lançam mão de
mo e paganismo. O Brasil foi colonizado recursos das mais variadas origens, sem
por europeus católicos que implantaram questionar ou averiguar se esses recursos
o catolicismo pela força da espada. Foram estão de acordo com a Palavra de Deus.
trazidos escravos negros da África. Esses
escravos possuíam a sua própria religião, O sincretismo é muito prejudicial à ver-
que era composta de crenças em orixás. dadeira religião bíblica, pois, quando
Eles acreditavam em diversos deuses e es- aceitamos as “verdades” de todos, acaba-
píritos da natureza. Quando chegaram ao mos deixando de lado a própria verdade.
Brasil, foram obrigados a se “converter” Por isso, o sincretismo é a maior ameaça
ao catolicismo. Mas, como o catolicis- pagã à igreja.
74
Palmer Robertson, Terra
mo cria em diversos santos, os escravos
de Deus, p. 42. começaram a esconder o nome dos seus LIQUIDIFICADOR DE CRENÇAS
deuses sob cada um dos santos do catoli-
cismo. Assim, Iemanjá, a mãe dos Orixás, No Segundo livro dos Reis está descri-
foi adorada com o nome de “Nossa Se- to um caso claro de sincretismo religio-
nhora da Conceição”, uma das manifesta- so. Foi no repovoamento de Samaria. A
ções católicas da Virgem Maria; Iansã foi Assíria, o poderoso império da época,
chamada de “Santa Bárbara”; Xangô foi conquistou Israel, deportou o povo e re-
chamado de São Jerônimo ou São João; povoou a terra. Para isso, o rei da Assíria
Ogum foi chamado de Santo Antonio e fez vir gente de vários países (2Rs 17.24)
São Jorge; Oxalá, a divindade que criou e os fez habitar no lugar dos samaritanos.
a humanidade, equivale a Jesus Cristo. O relato bíblico diz que aqueles povos to-
Cerca de dezesseis divindades africanas maram posse de Samaria e habitaram nas
foram identificadas com santos católicos. suas cidades. Aquela era a terra que Deus
havia prometido para o seu povo desde os
Também dentro do protestantismo po- tempos de Abraão. Era a terra da promes-
demos identificar práticas sincréticas. sa. Foi exatamente entre as montanhas
Isso acontece quando as igrejas fazem uso gêmeas de Gerizim e Ebal, na Samaria, o
de técnicas e práticas que já eram usadas lugar onde o Senhor indicou para Abraão,
por outras correntes religiosas. Por exem- após ele ter deixado Ur dos Caldeus, se-
plo, quando as superstições da umbanda ria a terra que lhe pertenceria e aos seus
ou do candomblé são aceitas dentro das descendentes para sempre74 (Gn 12.6,7).
igrejas, quando os recursos de “benzer” Mas agora era um povo completamente
objetos para expulsar demônios são pra- estranho e idólatra que habitava ali.
ticados pelos pastores evangélicos, quan-
do são adotadas práticas do catolicismo, O escritor sagrado diz: “A princípio, quan-
como as novenas, água benta, etc. A re- do passaram a habitar ali, não temeram ao

65 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Senhor” (2Rs 17.25). O texto diz que o guém precisou abandonar seus deuses,
Senhor enviou leões para o meio do povo. apenas incorporaram mais um deus à sua
É provável que os leões tivessem se cria- fé. Acrescentaram mais algumas técnicas
do por causa da ausência de habitantes religiosas, mas continuaram servindo aos
na terra, mas logo o povo entendeu que deuses de suas próprias nações, inclusive
Deus estava usando os leões para mostrar sacrificando seus filhos a Adrameleque
que não estava satisfeito com a situação. e a Anameleque, deuses de Sefarvaim.
Por causa disso, foram enviados mensa- Logo puderam constituir sacerdotes den-
geiros para o rei da Assíria, dizendo: “As tre eles mesmos para oficiar nos santuá-
gentes que transportaste e fizeste habitar rios e nem precisavam de ajuda externa.
nas cidades de Samaria, não sabem a ma-
neira de servir o Deus da terra; por isso O interessante é que uma forma de reli-
enviou ele leões para o meio delas, os gião assim pode durar por muito tempo;
quais as matam, porque não sabem como afinal, trata-se de uma religião bastante
servir o Deus da terra” (2Rs 17.26). Era confortável. O escritor diz que eles con-
uma crença comum entre os povos an- tinuaram desse modo e depois os seus fi-
tigos que os deuses precisavam ser agra- lhos, e até os filhos dos seus filhos (v. 41).
dados, e que havia meios estabelecidos Até os tempos de Jesus, os samaritanos
para fazer isso. Em resposta ao pedido, ainda tinham um culto misto. Quando a
um sacerdote que havia sido trazido de fé no Deus vivo se mistura aos conceitos
Samaria foi levado de volta com a missão pagãos, ela se torna apenas uma religião
de ensinar o povo como servir ao Deus de conveniência, muito distante do Cris-
da terra. E o texto sagrado diz: “E lhes tianismo que influencia e faz toda a dife-
ensinava como deviam temer o Senhor” rença.
(v. 28). O sacerdote ensinou ao povo as
cerimônias da lei mosaica e os rituais de COMO ENFRENTAR O PAGANISMO
sacrifícios, pois era isso o que o povo que-
ria aprender, pensando que, desse modo, No Antigo Testamento, Deus chamou
o Deus da terra se satisfaria e pararia de um povo para ser “separado” de todas as
mandar os leões para o meio do povo. demais nações. O culto de Israel o iden-
Entretanto, ninguém se converteu real- tificava como um povo distinto, e Israel
mente ao Senhor. O que eles queriam era era terminantemente proibido de imitar
apenas solucionar um problema, algo que os meios e métodos de culto das nações
estava sendo um empecilho para o de- pagãs que viviam ao redor. Israel não po-
senvolvimento dos seus planos naquela dia se misturar.
nova terra. O que eles desenvolveram foi
uma religião sincrética. O texto diz: “Po- De certo modo, Jesus foi além da reali-
rém cada nação fez ainda os seus próprios dade veterotestamentária, pois entendia
deuses nas cidades em que habitava, e os que seus discípulos não seriam apenas
puseram nos santuários dos altos que os “separados”, mas agentes transformado-
samaritanos tinham feito” (v. 29). Nin- res da realidade. Por isso, Jesus chamou

A MAIOR AMEAÇA PAGÃ 66

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seus discípulos de “sal” e “luz”. A carac- rem se libertar do “jugo” do Cristianismo,
terística principal desses dois elementos mas estão se submetendo ao jugo do pa-
é que eles fazem diferença no lugar onde ganismo e regressando à escravidão aos
estão e não se deixam contaminar. Hoje, antigos ídolos.
constatamos tristemente que, à medida
que o evangelho vai sendo popularizado, CONCLUSÃO
em vez de purificar a cultura das pesso-
as, ele acaba absorvendo os elementos O verdadeiro Cristianismo não precisa se
culturais e se inchando com todo tipo de intimidar diante do paganismo. O Cris-
coisas estranhas e esquisitas. Assim perde tianismo pode vencer o paganismo base-
o seu sabor e o seu poder de influenciar. ado em sua consistência interna. Ele não
Embora o paganismo apareça como uma deve seguir o modelo sincrético do cato-
alternativa melhor para a humanidade licismo medieval. O catolicismo permitiu
pós-moderna, revestido de altos ideais de que o paganismo permanecesse dentro
tolerância, igualdade racial e social, eco- do seu próprio sistema, até que chegou
logia, etc., as pessoas deviam olhar para o o momento em que ele se libertou desse
passado e ver que, quando o paganismo sistema. A acomodação e o sincretismo
reinou na terra foram tempos tenebrosos, comprometem a mensagem cristã. O úni-
cheios de rituais macabros, dominados co modo de o Cristianismo sobreviver é
pelo medo, pela intolerância e pela igno- manter a sua absoluta diferença em rela-
rância. Os deuses pagãos mantinham a ção ao mundo, pois, se o sal perder o seu
fidelidade de seus seguidores pelo medo, sabor, não terá mais qualquer valor (Mt
exigindo até mesmo sacrifícios humanos. 5.13).
As pessoas do mundo pós-moderno que-

67 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Anotações

A MAIOR AMEAÇA PAGÃ 68

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11
A INVASÃO DO MISTICISMO
NA IGREJA

Jeremias 2.9–13

INTRODUÇÃO O RETORNO DO GNOSTICISMO

A força mística da espiritualidade pós- Muitos autores têm visto nesse ressurgir
-moderna tem se feito sentir também den- da espiritualidade moderna da igreja um
75
M. Horton, A face de
. tro da igreja. O misticismo tem ditado os retorno do gnosticismo dos primeiros sé-
Deus, p. 45
rumos da igreja cristã no século 21, tanto culos do Cristianismo76. A Igreja cristã
76
Como Samuel
Vieira, no livro O império no catolicismo, quanto no protestantis- nasceu entre os judeus, mas logo gentios
gnóstico contra-ataca,
publicado pela Editora mo. A individualização, a interiorização, seriam maioria dentro dela. Muitos des-
Cultura Cristã, 1999.
a busca de visões, revelações pessoais e ses convertidos levaram suas práticas pa-
77
Augustus Nicodemus,
a revolta contra instituições religiosas gãs para dentro da igreja. Sabemos que o
Primeira Carta de João,
p. 14 têm marcado a espiritualidade de muitos gnosticismo só se estabeleceu firmemen-
cristãos nos dias atuais. As emoções, os te dentro do Cristianismo a partir do sé-
sentimentos e a intuição têm sido a base culo 2, mas as suas formas embrionárias
do relacionamento das pessoas com o di- já estavam em ação no período apostóli-
vino. Como diz Horton, o tema geral que co.
caracteriza a fé dos espiritualistas hoje “é
Augustus Nicodemus observa que for-
o caráter subjetivo das afirmações: ‘eu sin-
mas de gnosticismo estavam agindo nas
to’, ‘eu achei’, ‘eu creio’75. O Cristianismo
igrejas durante o período apostólico, es-
de muitos cristãos perdeu completamen-
pecialmente nas igrejas helenísticas, nas
te seu caráter objetivo, seu fundamento
quais pagãos haviam se convertido e tra-
histórico, sua fundamentação bíblica e se
zido sua bagagem cultural e neoplatônica
tornou subjetivo e introspectivo e, assim,
para dentro das primeiras comunidades
bastante próximo da religiosidade mística
cristãs77. Apesar de ser um movimento
dos tempos pós-modernos.
cheio de ramificações, na sua essência, o
gnosticismo sustentava a visão dualista
herdada do neoplatonismo, em que a ma-
téria é má e o espírito é bom. O conheci-

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mento (gnosis) é a maneira como a pes-
STATUS ESPIRITUAL
soa pode alcançar a salvação, e, para isso,
precisa rejeitar o corpo, enfraquecendo-o Entre os cristãos, a busca pelas novas
por meio de práticas ascéticas e místicas revelações, pelos arrebatamentos espiri-
de meditação. tuais e pelas visões celestes está entre os
elementos de uma espiritualidade neog-
O gnosticismo tinha sérias implicações
nóstica. O misticismo hoje é o grande
para a doutrina cristã, pois acabaria se
adversário da Bíblia. Tanto o misticismo
chocando com o próprio cerne do Cris-
pagão externo, quanto o misticismo que
tianismo: a encarnação de Cristo. Como
está dentro da igreja.
a matéria é má, então, na visão gnósti-
ca, a encarnação de Cristo precisou ser O movimento carismático (evangélico)
reinterpretada, geralmente negando que surgiu como uma reação à frieza e à orto-
Jesus tivesse realmente um corpo físico. doxia morta de muitas igrejas históricas.
Mas os problemas com o gnosticismo A ênfase na busca por experiências mís-
não estavam apenas no campo da teoria, ticas pessoais procurou modificar a rea-
uma vez que, na prática, surgiam muitas lidade estagnada da igreja. Como apon-
complicações também. Geralmente, os ta Solano Portela, “os ensinamentos do
mestres gnósticos pregavam um total dis- pentecostalismo deixaram a expectativa 78
tanciamento do corpo por meio de prá- de que sem essas experiências algo estava Samuel Vieira,
O império gnóstico
ticas ascéticas, que ajudavam a alcançar faltando na vida do cristão. Era necessá- contra-ataca, p. 20.

o conhecimento salvador. Mas, às vezes, rio atingir um padrão superior, obter-se


79
Samuel Vieira,
O império gnóstico
caminhavam em direção oposta, enten- uma segunda bênção, elevar-se acima do contra-ataca, p. 38.

dendo que corpo e espírito eram coisas nível do crente comum”80. Isso fez muitas 80
Solano Portela,
totalmente distintas. Alguns ensinavam pessoas andarem freneticamente atrás de
“Avaliando as manifes-
tações sobrenaturais”,
que o pecado nunca poderia atingir o es- alguma nova experiência sobrenatural. A in Fé cristã e misticismo,
p. 29.
pírito, e, portanto, admitiam as práticas experiência se tornou o prêmio que coroa
liberais e até encorajavam a participação o esforço de alguém e o faz se sentir espi-
em orgias e bacanais. ritual.
De um modo geral, podemos dizer que “o Há relatos de pessoas que dizem ter visto
gnosticismo prometia um conhecimento Jesus sentado no banco do passageiro do
supremo através de práticas esotéricas e seu carro. Outros dizem que conseguiram
ocultistas”78. Um conhecimento secreto
tirar uma foto de Jesus refletido no pôr
e subjetivo que elevava as pessoas a um ní-
do sol. Uns dizem que foram arrebatados
vel superior de existência em relação aos
não-iniciados. Os gnósticos não estavam ao céu, ou que foram arrebatados até ao
interessados na Escritura como revelação inferno e puderam ver o terror que exis-
de Deus; eles desejavam penetrar os mis- te lá. O famoso propagador da chamada
térios de Deus por meio de experiências “teologia da confissão positiva”, o norte-
extáticas. Eles queriam experimentar um -americano Kenneth Hagin, descreve
“mergulho” em Deus, desejavam “inserir- que, num só dia, ele foi ao inferno três
-se magicamente nele”79. vezes, e uma vez foi ao céu. Depois, ele

A INVASÃO DO MISTICISMO NA IGREJA 70

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relata que Jesus apareceu pessoalmente ram morrer a aceitar tais doutrinas”82.
para ele e lhe revelou segredos sobre an-
jos e demônios e até sobre o governo dos EXPERIÊNCIAS COMUNS
Estados Unidos81 .
As tão desejadas experiências místicas
O testemunho mais comum é aquele em geralmente vêm acompanhadas de uma
que Deus vem e fala pessoalmente com sensação de êxtase e, quanto maior for
alguém, comissionando-o para realizar essa sensação, seja de riso descontrola-
uma obra, ou concedendo novas revela- do ou choro copioso, mais valorizada é
ções. Poucas vezes essas experiências são a experiência. Essas sensações de êxtase
analisadas à luz do que a Bíblia diz. Na que acompanham as experiências caris-
verdade, para muitas pessoas nenhuma máticas são reconhecidas como prova de
experiência precisa ser testada pela Es- que o Espírito Santo está se manifestan-
critura. Outros tentam ajustar a Bíblia à do. O que se ignora, nesses casos, é que
experiência que tiveram e, quando isso essas mesmas sensações podem ser en-
não é possível, simplesmente ignoram a contradas, por exemplo, na Umbanda e
Bíblia. Ter uma experiência mística é si- no Candomblé. As outrora tão desejadas
nônimo de status espiritual. “línguas estranhas” são faladas no movi-
81 mento carismático da Igreja Católica e no
Ver Alan Pieratt, O
evangelho da prosperi-
A Reforma Protestante no século 16 dis- baixo espiritismo.
dade, pp. 40-43. se um “não” para tudo o que pudesse ser
82
Paulo Romeiro, Evan- um acréscimo à Escritura. Especialmente Mesmo nas religiões pagãs antigas, es-
gélicos em crise, p. 29
contra a tradição católica que era coloca- sas práticas já podiam ser vistas. Os his-
da pelos papistas no mesmo nível da Es- toriadores relatam que as pessoas que
critura. Uma das ênfases da Reforma foi participavam das práticas pagãs, que se
o sola Scriptura, ou seja, somente a Escri- constituíam de idolatria, orgias sexuais, e
tura tem autoridade em assuntos de fé e até sacrifícios humanos, experimentavam
prática. Mas os movimentos evangélicos sensações de paz, gozo, felicidade e êxta-
modernos já não se importam com isso, se.
pois colocam as “revelações” e as “visões” As “curas”, que são exibidas como de-
em pé de igualdade com a Escritura. O monstração da ação de Deus, acontecem
catolicismo desacreditava a Bíblia em fa- também em outras religiões. Atualmente,
vor da tradição da igreja, já os movimen- milhares de pessoas dizem ter sido cura-
tos carismáticos pentecostais modernos das por Maria ou algum dos outros santos
desacreditam a Bíblia em favor das supos- católicos. Em cada edição do Sentinela da
tas revelações diretas de Deus e de experi- Ciência Cristã há muitos relatos de curas.
ências espirituais subjetivas. Como disse Muçulmanos são curados em visitas a
Paulo Romeiro, “é chocante ver hoje os Meca. Milhares de hindus, a cada ano,
filhos da Reforma protestante de mãos dão testemunho de curas em seus tem-
dadas com um evangelho rejeitado pelos plos. E o Dr. Fritz continua operando por
reformadores, muitos dos quais preferi- meio de médiuns. Portanto, se os sinais

71 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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comprovam a verdade, todas essas religi- Assim, como já dissemos, e agora repito,
ões são verdadeiras? se alguém vos prega evangelho que vá
além daquele que recebestes, seja anáte-
EVANGELHO ESTRANHO ma” (Gl 1.8,9). Parece que os pregadores,
hoje em dia, não estão muito preocupa-
Na Comunidade da Vinha (Vineyard dos com essa advertência da Escritura.
Fellowship) do Aeroporto de Toronto no É bom lembrar que “anátema” significa
Canadá começou a chamada “Bênção de “maldito”. O que Paulo está dizendo é
Toronto”, em que as pessoas iam à frente, que, se alguém pregar um evangelho di-
em resposta ao apelo do pastor e caíam ferente, e para ser diferente ele não pre-
no chão, “tocadas” pelo Espírito. Logo o cisa ser totalmente diferente, basta ter
movimento se espalhou por todo o mun- coisas que “vão além”, ou seja, que sejam
do. Lá em Toronto, de repente, as pessoas acrescentadas ao evangelho, essa pessoa é
não apenas caíam ao chão, mas começa- amaldiçoada por Deus.
vam a chorar, a rir desesperadamente e de-
pois a urrar como animais. Havia pessoas ATALHO TORTUOSO
que “rugiam como leões, cantavam como
galo, piavam como a águia, mugiam como Na verdade, o misticismo é um atalho tor-
o boi e emitiam gritos de guerra como tuoso para a verdadeira espiritualidade. 83
Augustus
um guerreiro”83. Quando perguntaram MacArthur está certo em sua avaliação Nicodemus, O culto
ao pastor se aquilo era certo, ele disse que do misticismo; ele diz que ele cresceu ra- espiritual, p. 16.
84
Deus estava se manifestando e trazendo pidamente porque promete o que muitas MacArthur, Nossa
suficiência em Cristo,
alguma mensagem profética por intermé- pessoas estão buscando: algo mais, algo p. 153

dio dos sons de algum animal. Para essas melhor, algo mais rico, algo mais fácil –
pessoas, pouco importa se isso pode ser algo rápido e fácil para substituir uma
comprovado biblicamente, o que interes- vida de cuidadosa e disciplinada obedi-
sa é a experiência em si mesma. ência à Palavra de Cristo84.

Um dos livros mais famosos a respeito O gnosticismo tinha igualmente um ape-


da necessidade de sinais e maravilhas foi lo muito forte para os primeiros cristãos.
escrito por John Wimber e se chama Po- Eles seriam “iluminados” por uma única
wer Evangelism (Evangelismo de poder). experiência. Além disso, com essa experi-
Nesse livro, a mensagem evangélica é ência, eles se colocariam imediatamente
praticamente inexistente. Há muita coisa acima dos outros, tornando-se espiritu-
escrita sobre milagres, mas nada sobre a almente superiores aos demais. Muitos
obra de Cristo na cruz e sua ressurreição. cristãos têm abandonado a vida de estu-
O interessante é que esse é um livro so- do da Bíblia, de oração e santificação, por
bre evangelismo, mas é um evangelho es- causa da busca por experiências místicas
tranho. Paulo escreveu aos gálatas: “Mas, e, ao fazer isso, têm se distraído da aten-
ainda que nós ou mesmo um anjo vindo ção que devem prestar à vida de santida-
do céu vos pregue evangelho que vá além de. Ao final, só têm perdido tempo e acu-
do que vos temos pregado, seja anátema. mulado para si decepções e retrocessos

A INVASÃO DO MISTICISMO NA IGREJA 72

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espirituais. à divindade, atraíam e fascinava os isra-
elitas. Judá buscou novos cultos, mas os
O espírito do mundo tem invadido a igre- cristãos de hoje buscam novas maneiras
ja. Ao abandonar a espiritualidade base- mais emocionantes, mais desafiadoras
ada na Bíblia, a igreja segue a espirituali- de adorar a Deus, sem se importar com
dade do mundo, travestida de roupagens o que Ele pensa sobre isso, ou com o que
cristãs. Porém, esse atalho não conduz à a Bíblia prescreve. Muitas vezes, para as
verdadeira espiritualidade, e sim ao mis- pessoas, a religião de Canaã é mais atra-
ticismo que é uma pálida invenção malig- tiva do que a religião simples que a Bíblia
na da verdadeira experiência com Cristo. descreve.
Esse atalho para a espiritualidade, no final
das contas, não é outra coisa senão o ve- A outra troca foi a confiança que Judá de-
lho “caminho largo” que Jesus disse ser o positou nas nações em vez de depositá-la
caminho da maioria, mas o destino final no Senhor. Judá era uma pequena nação
desse caminho não é dos mais agradáveis, no meio de dois gigantes: o Egito e a As-
nem desejáveis (Mt 7.13). síria, que estavam brigando entre si. Judá,
ora buscava ajuda no Egito contra a Assí-
MAU NEGÓCIO ria, ora buscava ajuda na Assíria contra o
Egito e, ao fazer isso, esquecia-se do Se-
Quando os crentes trocam a Palavra de nhor que sempre o havia ajudado. Estava
Deus pelas experiências místicas, ou pe- trocando o manancial de águas vivas por
las mensagens que massageiam o ego, es- cisternas rotas.
tão fazendo um péssimo negócio. Estão
trocando o que Deus lhes confiou, e que Todo campesino desejava ter uma cister-
é seguro e frutífero, por algo incerto e que na. Para isso, ele precisava cavar um reser-
pode ser muito prejudicial. Algo parecido vatório de água nas rochas. Para ter certe-
fez o povo de Judá, como Jeremias regis- za de que a água da chuva não escaparia,
trou: “Porque dois males cometeu o meu ele precisava revesti-la com argila. En-
povo: a mim me deixaram, o manancial tretanto, essas cisternas construídas com
de águas vivas, e cavaram cisternas, cis- argila se quebravam, e deixavam escapar
ternas rotas, que não retêm as águas” ( Jr a água, deixando o campesino numa situ-
2.13). ação desoladora, sem água para matar a
própria sede. Assim são todos os recursos
O povo trocou o manancial de águas vi- que o homem inventa para se satisfazer,
vas por cisternas rotas por causa de duas para matar a sua sede interior, pois não
atitudes. A primeira tinha a ver com a passam de miragens, são cisternas rotas.
religião e a segunda com a política. Judá A água escapa delas e, na hora da sede,
começou a olhar para a religiosidade estarão vazias. Toda vez que o povo tro-
cananita, que era uma religião humana- ca a segurança da Escritura por aventuras
mente muito atrativa. Os famosos cultos espirituais está fazendo o mesmo “mau
da fertilidade, durante os quais as orgias negócio” do povo de Judá.
sexuais eram praticadas em homenagem

73 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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CONCLUSÃO Cristo, o Deus-homem que se encarnou
para superar a distância entre o divino e
O misticismo sempre foi um mau negó- o humano, para anular a barreira do peca-
cio para o povo de Deus. É claro que, ao do que nos separava de Deus. Em nossa
dizer isso, não estamos querendo afirmar união com Cristo experimentamos a ver-
que o cristianismo verdadeiro deve ser dadeira união mística, pois somos aben-
puramente racional. Na essência do cris- çoados com todas as bênçãos celestes,
tianismo há uma realidade mística, porém temos nossa natureza decaída renovada,
não é uma busca por algo transcendente, e experimentamos o verdadeiro conheci-
uma procura por um conhecimento su- mento: um conhecimento simples e aces-
perior que tornará os crentes especiais e sível a todos, o conhecimento de Deus
superiores aos demais. A essência mística através de Cristo, revelado na sua Palavra.
do cristianismo aponta para a pessoa de

Anotações

A INVASÃO DO MISTICISMO NA IGREJA 74

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12
IGREJA INSATISFEITA
COM CRISTO

João 14.1–11

INTRODUÇÃO as passagens que falam do amor de Deus


e as passagens que descrevem a existência
Um grande problema com esta nova reli- do inferno, se o critério do “gosto pesso-
giosidade pós-moderna é o subjetivismo al” for levado em consideração, as pessoas
85
do “gosto pessoal”. Qual é o critério pelo preferirão ouvir falar a respeito do amor Gene Veith, Tempos
pós-modernos, p. 187.
qual uma pessoa escolhe frequentar uma de Deus85.
igreja nos dias atuais? Na maioria das
vezes, depois de visitar várias igrejas, a Se alguém entrar numa igreja, e nessa
pessoa escolhe aquela em que se “sentiu noite encontrar o pregador falando sobre
bem”. O critério não é objetivo, mas sub- a ira de Deus, sobre a justiça de Deus, que
jetivo. A Bíblia diz que o coração humano não deixará o pecado sem punição, sobre
é enganoso ( Jr 17.9), mas muitos cren- a punição no inferno para aqueles que não
tes tomam suas decisões de acordo com se arrependerem de seus pecados e não
o que “estão sentindo no coração”. Não experimentarem uma genuína conversão,
negamos que Deus possa falar ao nosso etc., no dia seguinte, essa mesma pessoa
coração, mas entendemos que é preciso vai a outra igreja. Lá a mensagem é muito
ter cuidado, para que a nossa própria voz diferente. O pregador está falando que o
interior, que representa nossas vontades crente é um filho de Deus e que, portanto,
pessoais, não seja confundida com a voz tem todo o direito de exigir de Deus uma
de Deus. vida próspera e vitoriosa; que o crente
não deve aceitar qualquer doença ou di-
Por isso, a Escritura precisa ser o critério ficuldade em sua vida, porque isso não é
para a avaliação final. O problema é que justo, nem é o que Deus deseja, antes é o
essa questão de “preferência pessoal” atin- que o diabo tem feito; que o crente tem
ge a própria Escritura. Isso faz as pessoas todo o direito à felicidade e ao gozo dos
selecionarem porções da Bíblia que mais prazeres terrenos. Qual dessas duas men-
lhe agradem e descartar as que lhes cau- sagens agrada mais ao coração humano?
sam espanto. Como diz Gene Veith, entre Agora podemos entender por que muitos

IGREJA INSATISFEITA COM CRISTO 75

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pregadores modernos varreram de seu O critério do Novo Testamento é o mes-
dicionário palavras como “pecado”, “jus- mo do Antigo Testamento: a Palavra de
tiça”, “condenação”, ou “arrependimento”. Deus. João, em sua primeira epístola, es-
Também por que as pessoas se apinham creveu: “Amados, não deis crédito a qual-
nos lugares de culto em que pregações quer espírito; antes, provai os espíritos se
de auto-ajuda são proferidas seguidas de procedem de Deus, porque muitos falsos
movimentos de sinais e maravilhas, mas profetas têm saído pelo mundo fora. Nis-
não têm a mínima vontade de frequentar to reconheceis o Espírito de Deus: todo
cultos em que a verdadeira mensagem da espírito que confessa que Jesus Cristo
Escritura é proclamada. veio em carne é de Deus; e todo espíri-
to que não confessa a Jesus não procede
EVANGELHO AUTENTICADO de Deus” (1Jo 4.1-3). Se o espírito, e aqui
João, está se referindo aos falsos profetas,
O que realmente autentica o evange- anunciasse que Jesus não tinha um corpo
lho: os sinais e prodígios ou a Palavra de verdadeiramente humano (gnosticismo),
Deus? Antes de qualquer coisa, devemos então ele era falso, porque isso era contrá-
ter em mente que nem todos os sinais e rio ao ensino apostólico, e, portanto, não
maravilhas descritos na Bíblia eram pro- podia ser de Deus. A revelação bíblica já
cedentes de Deus. Os mágicos no Egito havia dito que “... o Verbo se fez carne e
puderam, por algum tempo, repetir cada habitou entre nós” ( Jo 1.14), mas, de
milagre de Moisés (Êx 7.8-8.18). É dito repente, algumas profecias estavam apa-
também que o Anticristo aparecerá “se- recendo dentro da igreja na qual o após-
gundo a eficácia de Satanás com todo o tolo João estava trabalhando, que diziam
poder, e sinais e prodígios da mentira” não ser verdade ter Cristo vindo em car-
(2Ts 2.9-10). Assim também a Segunda ne, mas antes que ele era apenas um es-
Besta em Apocalipse 13 “opera grandes pírito, ou que tinha apenas aparência de
sinais de maneira que até fogo do céu homem. É provável que essas revelações
faz descer à terra, diante dos homens” (v. fossem acompanhadas de sinais e prodí-
13). Sinais podem acontecer; entretanto, gios, mas estavam erradas, porque contra-
o simples fato de eles acontecerem não diziam a Palavra de Deus.
é prova suficiente de que são de Deus, e
nem que visam ao bem das pessoas. Portanto, a questão não é se os milagres
acontecem ou não, mas se levam as pesso-
A ideia do Novo Testamento de provar as de volta para a centralidade de Jesus. Se
os espíritos dos profetas já demonstra alguma “profecia”, “revelação”, ou “sinal”
que nem tudo pode ser aceito só porque leva ao afastamento da centralidade da
tem uma aparência de legitimidade. Por cruz de Cristo, algo terrível e maligno está
isso, na Igreja primitiva havia pessoas en- acontecendo. Com tristeza podemos ver
carregadas de julgar o que outros profe- que a tendência evangélica atual é colo-
tizavam, para ver se procedia de Deus. O car os milagres no centro de tudo. Livros
motivo é simples: sempre existiram falsos evangelísticos só falam de sinais e não
profetas. têm uma palavra sobre a cruz de Cristo.

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Sermões evangelísticos deixam a Bíblia suficiência de sua manifestação no meio
de lado para se concentrarem em ricas e deles. Uma das expressões mais plenas a
comoventes histórias de milagres pesso- respeito de sua centralidade e suficiência,
ais. As pessoas estão atrás do sensacional; ele proferiu para consolar seus discípu-
a graça e a santidade não lhes interessam los a respeito de sua partida iminente:
mais. Somos admoestados pela Palavra de “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida,
Deus a não nos desviar da centralidade de ninguém vem ao Pai senão por mim” ( Jo
Cristo. Não devemos nos deixar fascinar 14.6). Jesus não disse algo como “eu sei
por nada que queira nos desviar da obra o caminho”, ou “meu ensino é a verdade”,
redentora de Cristo. ou “eu sei como ter vida”, mas tornou ab-
solutos esses conceitos em si mesmo.
Temos o teste para saber se algo é verda-
deiro: está de acordo com a Palavra de Na continuação dessa conversa, no versí-
Deus? Tem como ponto principal Jesus culo 7, Jesus se dirigiu aos discípulos com
Cristo crucificado? Essa cruz já era escân- uma repreensão: “Se vós me tivésseis co-
dalo para os judeus que queriam apenas nhecido, conheceríeis também a meu Pai,
sinais e loucura para os gregos que busca- desde agora o conheceis e o tendes visto”.
vam sabedoria (1Co 1.22,23). Porém, ela Porém, nem todos estavam satisfeitos.
é o verdadeiro “poder” de Deus para todo Pelo menos não Filipe. De algum modo,
aquele que crê (1Co 1.18; Rm 1.16). ele demonstrou que não estava satisfeito
em conhecer o Pai daquela maneira. Ele
A INSATISFAÇÃO DE FILIPE queria ver o Pai, e por isso pediu: “Senhor
mostra-nos o Pai e isso nos basta” ( Jo
O maior de todos os problemas com esse 14.8). O que ele queria? Provavelmente
misticismo cristão é justamente o es- uma manifestação de Deus, uma teofania
vaziamento da suficiência de Cristo e o (teo: Deus; fania: manifestação), como
desleixo em relação à Escritura. Esse era havia acontecido muitas vezes no Anti-
o problema com o gnosticismo. Na busca go Testamento com Moisés, Abraão e os
pelo poder, conhecimento e experiências profetas (ver Êx 24.9-11; 33.18). Ele não
subjetivas, Jesus ficava em segundo pla- entendia que o seu privilégio era muito
no. Jesus não era um salvador suficiente maior que o de Moisés e de todos os cren-
para o gnosticismo e não é um salvador tes do Antigo Testamento, pois o próprio
suficiente para o movimento de sinais e Filho de Deus estava diante dele. Mas Fi-
maravilhas do misticismo evangélico mo- lipe não estava satisfeito. Ele precisava de
derno. O gnosticismo rejeitava a Escritu- algo mais.
ra em troca do seu próprio conhecimen-
to místico revelado, como o misticismo O descontentamento de Filipe desagra-
cristão abandona a Bíblia por suas visões dou a Jesus; por isso, a sua resposta foi
e revelações novas. uma repreensão ainda maior: “Filipe, há
tanto tempo estou convosco, e não me
Jesus criticou seus discípulos quando de- tens conhecido? Quem me vê a mim vê
monstraram não estar satisfeitos com a o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?”

IGREJA INSATISFEITA COM CRISTO 77

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( Jo 14.9). Como Filipe, muitos crentes de “união mística”86. Essa é a verdadeira
nunca estão satisfeitos com a revelação de mística cristã. Estar unido a Cristo signi-
Deus, talvez porque ainda não conheçam fica que Deus não nos vê de modo inde-
realmente a Jesus. Sempre precisam de pendente de Jesus; significa que a nossa
“algo mais” para crer, pois ainda não en- vida é enxertada em Cristo, ou que Cristo
tenderam quanto Jesus é suficiente para foi “formado” dentro de nós (Gl 4.19).
todos os aspectos da salvação e da vida Assim, passamos a fazer parte de tudo o
cristã. que Cristo é, como se mergulhássemos
nele.
CRISTO É TUDO QUE EU PRECISO
Paulo diz que somos ramos que foram
Tudo na salvação e na vida cristã de- enxertados na oliveira. Antes éramos “oli-
pende inteiramente de Jesus; por isso, a veira brava”, mas agora fomos enxertados
Bíblia não diz que ser salvo significa imi- e passamos a desfrutar do sustento da raiz
tar a Jesus, mas “receber” a Jesus. Paulo e da seiva da oliveira (Rm 11.17). O en-
escreveu aos colossenses: “Ora, como tendimento de Paulo sobre este assunto é
recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim tão pleno que ele diz que “viver é Cristo”
86
Não estamos usando
esta expressão para
andai nele, nele radicados, e edificados, e (Fp 1.21). O ideal de um cristão, portan-
defender as ideias de
Deissmann, Bousset, ou
confirmados na fé, tal como fostes instru- to, é poder dizer como Paulo: “Logo, já
até mesmo Schweitzer, ídos, crescendo em ações de graças” (Cl não sou eu quem vive, mas Cristo vive em
que a usavam para
apontar para uma ex- 2.6,7). Tudo o que os crentes precisam mim” (Gl 2.20). Segundo Paulo, o crente
periência sacramental,
uma tendência religiosa fazer, depois que já receberam a Jesus, é unido a Cristo recebe todas as bênçãos
que descobre o caminho
para Deus diretamente continuar “andando nele, radicados e edi- que Cristo merece. Esse é um elemento
por meio da experiência
interior sem a mediação
ficados”. Essas expressões sugerem firme- místico poderoso. Mas é um elemento
do raciocínio. (Ver
James Dunn, A teologia
za e desenvolvimento espiritual, e isso só bem real. O cristão unido a Cristo pode
do apóstolo Paulo, p. é possível “em Jesus”. Por isso, o experimentar a verdadeira espiritualida-
449.)
apóstolo prossegue com uma adver- de pelo fluir da vida de Cristo dentro de
tência: “Cuidado que ninguém vos venha si.
a enredar com sua filosofia e vãs su-
tilezas, conforme a tradição dos Cristo é tudo o que o cristão precisa para
homens, conforme os rudimentos do desenvolver uma espiritualidade autên-
mundo e não segundo Cristo; porquanto, tica; mas, como veremos a seguir, essa
nele, habita, corporalmente, toda a espiritualidade é bem objetiva e não sub-
plenitude da Divindade. Também, nele, jetiva.
estais aperfeiçoados” (Cl 2.8-10).
Toda a perfeição espiritual que alguém ESPIRITUALIDADE INTEGRAL
possa desejar não advém de experiências
místicas subjetivas, mas de se firmar e se Outro problema com a visão espiritua-
desenvolver mais em Cristo. lista moderna, como herdeira do gnos-
ticismo, é a ênfase exagerada no aspecto
Uma das doutrinas bíblicas mais essen- espiritual da vida em detrimento do as-
ciais para o cristão é a doutrina da união pecto corporal. Isso era algo próprio do
com Cristo. Isso geralmente é chamado

78 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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gnosticismo: o desprezo pelo corpo e a que estejamos fazendo coisas bem terre-
ênfase no espírito. O grande problema nas.
com essa visão é que, biblicamente falan-
do, o ser humano é uma unidade formada Os talentos naturais podem glorificar a
de “corpo e espírito”. O ser humano deve Deus, tanto quanto os dons espirituais, ou
ser considerado como um todo indivisí- até mais, pois talentos naturais podem es-
vel. Isso não significa que a alma seja mais tar a serviço de Deus, enquanto que dons
valiosa do que o corpo, como pretendia espirituais podem estar a serviço de seus
Platão e os gregos. O corpo e a alma pos- possuidores. Mesmo no desempenho das
suem o mesmo valor, e ambos decaíram tarefas mais simples da vida, podemos
em Adão, precisando ser redimidos. Por glorificar a Deus e demonstrar genuína
essa razão, a Bíblia enfatiza a ressurrei- espiritualidade. Devemos ter em men-
ção. Não basta ao homem estar em espí- te que “o trabalho corriqueiro feito por
rito junto de Deus após a morte; para ser nós mesmos ou por outros seres huma-
completo, ele precisará ter de novo o seu nos sempre será corriqueiro e rude. Mas
corpo. Não fomos feitos para viver sem o o trabalho corriqueiro feito para Deus é
corpo; por isso, os nossos membros são erguido e transformado”88. É assim que a
87
tão dignos quanto a nossa alma. espiritualidade precisa alcançar todos os Gary Kinnaman,
Crendices dos crentes,
aspectos da vida, e não ser relegada ape- p. 161.
88
Ora, isso deve nos incentivar a viver a nas ao aspecto místico e extrassensorial. Os Guinness, O
chamado, p. 2002
vida plenamente, e faz com que tenha ple- 89
Alan Pieratt, O
no sentido o mandamento bíblico “ofere- A espiritualidade significa viver a vida evangelho da prospe-
ridade, p. 163
cei-vos a Deus, como ressurrectos dentre integralmente para o Senhor, pois “desva-
90
os mortos, e os vossos membros, a Deus, lorizar os aspectos físico e mental do ser Jonathan
Edwards, A genuína
como instrumentos de justiça” (Rm humano é uma atitude contrária à visão experiência espiritual,
p. 90
6.13). Se o nosso corpo é tão importan- cristã da salvação e causa danos à espiri-
te, então devemos zelar por ele. Isso deve tualidade cristã, a qual envolve corpo e
nos influenciar também no evangelismo, alma em todos os aspectos da salvação e
pois não devemos ter preocupação ape- do serviço a Deus”89. A espiritualidade
nas com a alma das pessoas; o evangelho significa mudança de vida, como salien-
deve ser pregado para o ser humano in- tou Jonathan Edwards em pleno período
tegral, numa preocupação com a salvação de avivamento: “Se não há mudança real e
da alma e com a preservação do corpo. duradoura nas pessoas que pensam estar
convertidas, então sua religião não tem
A experiência com Deus não se traduz nenhum valor, não importa quais tenham
apenas mediante visões ou êxtases. Nas sido suas experiências”90.
coisas bem simples e corriqueiras da vida,
Deus pode se manifestar. Como disse À luz do Novo Testamento, a espirituali-
Kinnaman “a verdadeira espiritualidade dade envolve atitudes práticas e não ape-
consiste em ser cheio do céu aqui na ter- nas contemplativas. Isso é muito impor-
ra” 87, ou seja, em tudo o que fizermos, tante, pois, na busca pelo místico, muitas
sermos cheios das coisas do céu, mesmo vezes as pessoas não têm compromisso

IGREJA INSATISFEITA COM CRISTO 79

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com a santidade. Não são poucos os casos pram a sua função, conduzindo o crente
de pessoas “superespirituais”, cheias de no caminho da perfeição. A vida em amor
experiências de visões e revelações, mas é a vida realmente espiritual.
que na vida prática demonstram todo o
tipo de imperfeição, vícios e transgres- RAZÃO E EMOÇÃO
sões.
Toda essa fixação moderna pelo místico
Em Corinto, Paulo enfrentou muitas difi- e pelo sobrenatural, apesar de tudo, pode
culdades por causa do falso entendimen- ser um bom terreno para semear a men-
to a respeito da espiritualidade por parte sagem do evangelho, pois, como já vimos,
dos cristãos dessa cidade. Os crentes de há muitos elementos “místicos” no evan-
Corinto eram ávidos por demonstrar es- gelho. A espiritualidade é um dos grandes
piritualidade, entretanto estavam errados temas da Bíblia. O homem é um ser do-
no modo como acreditavam que essa es- tado por Deus de habilidades espirituais,
piritualidade deveria ser demonstrada. e isso significa que Deus tem grande in-
Para eles, tratava-se apenas de uma ques- teresse pela espiritualidade humana. Po-
tão de misticismo e demonstrações espe- rém, que tipo de espiritualidade agrada a
taculares. Por isso, desejavam desespe- Deus é o que precisamos entender.
radamente os dons espirituais, não para
edificar a igreja, mas para se autoprocla- Em resposta a essa expectativa das pes-
marem “mestres da espiritualidade”. Pau- soas, podemos anunciar o evangelho ao
lo tinha um pensamento diferente. Para mundo, mostrando a elas que o evan-
ele a espiritualidade deveria ser demons- gelho verdadeiro satisfaz a todas as suas
trada de outras maneiras, especialmente expectativas místicas; no entanto, nesse
pelo amor ao próximo. A vida de amor, caso temos de nos manter no terreno só-
para Paulo, é a maior demonstração de es- lido e confiável das Escrituras. Não é ne-
piritualidade. Nas pegadas de Jesus, Paulo cessário apelar para o ocultismo ou para a
também entende que o amor é o cumpri- superespiritualidade, porque o evangelho
mento da Lei (Rm 13.8-10; ver Lc 10.27; bíblico é sobrenatural em sua essência.
Mt 7.12). Portanto, o amor é o padrão da
vida do crente verdadeiro. Paulo entende O evangelho bíblico consegue satisfazer
que o amor é superior ao saber (1Co 8.1), de modo paradoxal, tanto o apelo místi-
aos dons, à fé e à esperança (1Co 13.13). co, quanto o apelo racional das pessoas,
Por isso, todos os atos de um crente de- pois, se em sua essência ele é sobrenatu-
vem ser feitos com amor (1Co 16.14). ral, o seu conteúdo é, igualmente, essen-
Paulo disse que o amor era necessário cialmente racional. Mas é preciso definir
para que os dons tivessem o seu devido qual é a verdadeira mística cristã.
valor. Sem o amor, os dons espirituais são
maneiras inúteis e aberrantes de autoexi- Poderíamos resumir a espiritualidade
bição (1Co 13.1-4). Mas o amor coloca cristã autêntica a partir de quatro aspec-
cada dom no seu devido lugar, e faz com tos:
que eles, e todas as demais virtudes, cum-

80 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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1) Um misticismo centralizado na pessoa namento com Deus tanto quanto a razão.
histórica de Jesus de Nazaré e na mística Caso nos aproximemos de Deus, susten-
da união pessoal com este Deus encarna- tados pela razão, mas despojados da emo-
do; ção, ofereceremos um culto sem senti-
mento. Caso nos aproximemos cheios de
2) Um misticismo que se alimenta e se re- emoção, mas destituídos da razão, o nos-
gulamenta pela Escritura Sagrada; so culto será ininteligível. Como Paulo
escreveu aos coríntios: “Que farei, pois?
3) Uma prática da adoração que inclui o Orarei com o espírito, mas também ora-
louvor, a meditação, a oração, a busca de rei com a mente; cantarei com o espírito,
Deus, tanto privada quanto coletiva; mas também cantarei com a mente” (1Co
14.15). Orar, cantar, meditar na Escritura
4) Uma prática da ação que envolva preo- são excelentes instrumentos para desen-
cupação com todos os aspectos físicos da volver a espiritualidade. Mas essas coisas
vida, como envolvimento político, preo- precisam ser feitas tanto com o espírito
cupação ecológica, envolvimento com a quanto com a mente. O equilíbrio entre
construção do reino de Deus, manifes- o aspecto racional e o emocional, segun-
tando amor por todas as pessoas. do a Bíblia o estabelece, é o ponto-chave
para mantermos um relacionamento sau-
CONCLUSÃO dável com Deus e também para demons-
trarmos uma espiritualidade autêntica e
Finalmente, é preciso lembrar que as relevante para o mundo atual.
emoções fazem parte da vida e do relacio-

IGREJA INSATISFEITA COM CRISTO 81

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Anotações

82 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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13
O PODER DESTRUIDOR
DO PRAGANISMO

2Sm 6.1–15

NTRODUÇÃO valores são testados de acordo com o seu


resultado prático, ainda que não seja um
O mundo relativista abandonou o con- resultado necessariamente a curto prazo.
ceito de “verdade absoluta”, mas ainda Uma verdade “ideal” seria algo suspeito,
91
acredita, contraditoriamente, em verda- pois somente quando submetida a testes J. D. Thomas, Razão,
ciência e fé, p. 46.
des relativas. Grosso modo, para o mun- é que a verdade poderia ser admitida re-
do, verdade é aquilo que funciona. Isso almente como verdade. Por isso, a simpli-
se chama pragmatismo. O pragmatismo ficação desse pensamento diz: “Verdade
é uma típica filosofia do modernismo, é o que funciona”. É preciso admitir que,
mas se adaptou perfeitamente aos tem- talvez, os filósofos pragmáticos não ti-
pos pós-modernos. Quem nunca ouviu a vessem a intenção de simplificar tanto as
expressão: “O fim justifica os meios”? O coisas e considerassem muitos outros ele-
pragmatismo ensina que pensamentos, mentos envolvidos nessa discussão; mas,
ideias e ações só têm valor em termos de no final das contas, a partir da perspectiva
consequências práticas. Assim, não há pragmática, é difícil não admitir que “ver-
qualquer conjunto fixo teórico de valores. dade é o que funciona ou o que é útil”.
Quando a verdade é julgada em termos
O pragmatismo é uma filosofia norte- de resultado, então ela não é fixa, nem
-americana que se originou de filósofos imutável, mas depende da circunstância,
como William James (1842-1910), Char- sendo determinada pela sua praticidade
les Peirce (1839-1914) e John Dewey em termos de resultado. Como diz J. D.
(1859-1952). Esses homens estavam Thomas, “se considerarmos como verda-
descontentes com o conceito de busca da deiro ‘aquilo que funciona’, a verdade não
verdade da filosofia clássica, racionalista, só será relativa, mas também experimen-
que sustentava a ideia da verdade como tará mudanças ou acréscimos”91.
algo objetivo e ideal de uma perspectiva
absoluta. Para os pragmáticos, a verdade Como já dissemos, o pragmatismo hoje
é, antes de qualquer coisa, um valor, e os está intimamente aliado ao relativismo, e

O PODER DESTRUIDOR DO PAGANISMO 83

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o corolário dessa união é que a verdade em que as pessoas acreditam? No que é
de uma pessoa não precisa ser, necessa- bom para elas, ou seja, no que está dando
riamente, a verdade de outra. O que fun- certo. E assim, paulatinamente, “o que é
ciona, em cada caso, deve ser considerado bom”, vai suplantando “o que é certo”, e
como verdade numa dada situação. Isso “o que funciona” substitui “o que é ide-
vai do mundo dos negócios às atitudes al”, até o ponto em que: “o ideal” é “o que
morais. funciona”; e “o bom” é o que “é certo”. Por
essa razão, a filosofia mais praticada na
QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU atualidade é o pragmatismo. Porém, do
modo como o pragmatismo é aceito hoje,
A maioria das pessoas não está muito in- o que se está fazendo é um verdadeiro
teressada em discussões filosóficas e, tal- suicídio intelectual. Ao se desconsiderar
vez, ache esta discussão sem muito senti- princípios absolutos e ao se construir a
do; porém, não se trata de uma discussão vida sobre princípios relativos, julgados
acadêmica, mas essencialmente prática, pelos resultados, as pessoas estão fazendo
já que, na prática, o pragmatismo reina. o mesmo que admitir que, uma vez que
Podemos dizer que o pós-modernismo é impossível saber se a estrutura da casa
(relativismo) colocou a coroa sobre o é confiável, então, simplesmente isso não
pragmatismo. tem mais importância. O melhor é conti-
nuar construindo o que pode ser visto, ou
O mundo pós-moderno tem rejeitado seja, os andares da casa, sem olhar para os
aquilo que sempre foi considerado a base fundamentos. Podem realmente cantar
sobre a qual a civilização cristã ociden- como os três porquinhos, especialmente
tal foi construída. Na filosofia, essa base os que construíram casas despreocupada-
geralmente é chamada de “metateoria” mente, “Quem tem medo do lobo mau?”
ou “metanarrativa”. Isso se refere à
última base verdadeira sobre a qual as AUMENTANDO O CAMPO DE JOIO
demais teorias são construídas. As
pessoas do passado construíram o seu A igreja cristã tem sido grandemente in-
modo de vida e a sua visão a respeito fluenciada pelos conceitos pragmáticos
do mundo a partir dessas “meta- pós-modernos. Se algo “funciona”, então
narrativas”, algumas das quais são o é verdadeiro também para a igreja. Se a
Iluminismo, o Hegelianismo, o Mar- igreja enche, não importa que meios es-
xismo e, mais recentemente, o “cien- tejam sendo usados para isso, pois, se está
tificismo”. A visão judeu-cristã, nesse dando certo, então, é a vontade de Deus.
sentido, é a maior de todas as “metanarra- A vontade de Deus já não é algo explícito
tivas”, só que ela cedeu espaço, no mundo e objetivo, mas perfeitamente adaptável
intelectual, para essas outras “metanar- às situações. O que realmente importa
rativas”, embora tenha sobrevivido mais não é o princípio de Sua presença santa,
tempo na mentalidade popular. Agora, quem dita as regras, ou o que está escrito
porém, todas essas “metanarrativas” são na Bíblia, mas é aquilo que, do ponto de
questionadas, pois as pessoas começaram vista humano, funciona.
a duvidar de praticamente tudo. Então,

84 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Como disse MacArthur, “o pragmatismo te: “Eu trago sempre em meu bolso um
está em voga; o compromisso com a ver- vidro de óleo previamente consagrado
dade bíblica é desprezado como sendo para curas. Alguns usam água santa. Al-
uma fraca estratégia de mercado”92. De guns usam sal consagrado. Alguns usam o
fato, é o “mercado” quem dita as regras. sacramento da comunhão. Assim muitas
Cada vez mais a pregação da Palavra de pessoas que eu respeito procedem de ma-
Deus cede lugar para novos métodos neiras diferentes, e eu hesitaria em reco-
como teatro, dança, comédia, shows de mendar qualquer delas como melhor que
rock, e outras formas de entretenimento. as outras.” 93 O que esse autor quer dizer
Pelo fato de que esses métodos realmente é que qualquer uma pode ser boa, desde
atraem multidões, eles são considerados que funcione. Por que as igrejas têm usa-
como corretos em si mesmos, indepen- do essas práticas? Por um único motivo:
dentemente de serem bíblicos ou não. A realmente funcionam.
cada momento, os grandes ícones da “mí- 92
John MacArthur, O
poder da integridade,
dia evangélica” aparecem com um novo O povo brasileiro é tradicionalmente p. 31.
slogan que se torna, automaticamente, a místico e a igreja evangélica tem crescido 93
Citado por John
verdade do momento. É “tempo de co- ganhando membros do catolicismo e do Armstrong, “Em busca
do poder espiritual”,
lheita”, “tempo de se apaixonar”, “tempo espiritismo, ou seja, de pessoas acostu- in Religião de poder,
p. 61.
de restituição”, “tempo de cura”, etc. Isso madas a essas práticas em suas religiões. 94
John Stott, Eu creio
dura até que apareça outro mais interes- Essas pessoas têm dificuldades para, de na pregação, p. 51

sante e que dê mais resultados. uma hora para outra, abandonar tudo isso
e passar a crer apenas no Deus invisível.
Até há pouco tempo, havia grandes dife- Elas precisam de algo para apalpar, para
renças entre a igreja Católica, a Protestan- ver e sentir. E, portanto, os pregadores es-
te e o Espiritismo, pois não havia técnicas tão arranjando coisas desse tipo para elas.
em comum. Hoje a situação está bem dife- Isso tem funcionado; então, elas dizem:
rente. A Igreja Católica copia a hinologia “É de Deus!” Portanto, deve ser aceito
evangélica, copia o movimento pentecos- como verdade e ninguém pode ousar
tal de sinais, maravilhas e línguas estra- questionar, pois seria como se estivesse
nhas, e já existem padres superstars. Por questionando o próprio Deus.
outro lado, muitas igrejas evangélicas têm
copiado as técnicas do catolicismo e até Muitos justificam essas práticas dizen-
mesmo do espiritismo. Não é incomum do que é a única maneira de alcançar o
ver igrejas evangélicas fazendo “novenas” mundo, pois as pessoas não querem mais
de oração e “abençoando” objetos ou ouvir pregações bíblicas, e por isso, é
água, o que sempre foi uma prática pre- necessário lhes dar o que desejam, a fim
dominantemente católica. Algumas igre- de levá-las para a igreja e convertê-las. É
jas usam sal grosso em suas cerimônias de preciso reconhecer que, nestes últimos
libertação, o que é algo que sempre per- tempos, como observou Stott, a prega-
tenceu ao espiritismo. Peter Wagner, uma ção tem perdido o fascínio que exercia no
das grandes autoridades mundiais em passado94. Muitos a consideram ultrapas-
crescimento de igreja, disse recentemen- sada, especialmente depois do invento da

O PODER DESTRUIDOR DO PAGANISMO 85

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televisão e da multimídia. Mas as pessoas tar contra o pecado é algo difícil e muitas
têm esquecido que o método divino é sal- vezes frustrante, e essa ideia de um Deus
var os homens pela loucura da “pregação” vingador só faz com que o sofrimento au-
(1Co 1.21), pois, como disse MacArthur: mente; então, muitos desejam ver esses
Os que desejam colocar a dramatização, a conceitos abandonados. Abandona-se
música e outros meios mais sutis no lugar a ideia da justiça de Deus e enfatiza-se a
da pregação deveriam levar em conta o ideia do amor de Deus. Essa é uma esco-
seguinte: Deus, intencionalmente, esco- lha teológica pragmática.
lheu uma mensagem e uma metodologia
que a sabedoria deste mundo considera O liberalismo teológico, em todas as suas
como loucura95. versões que podem ser encontradas na
igreja, também é, em última instância,
Os diversos métodos pragmáticos de uma filosofia teológica pragmática. O ve-
crescimento de igreja têm, de fato, feito lho liberalismo não conseguia acreditar
a igreja crescer. Porém, o que é preciso na Bíblia como infalível e inerrante, mas
pensar é se isso realmente produz conver- também não estava disposto a crucificar
95
John MacArthur, Com
sões. Temos frequentemente ouvido falar o Cristianismo, até porque, se isso acon-
vergonha do evangelho, de artistas famosos que fazem parte de tecesse, todos os teólogos ficariam sem
pp. 117-118, 130
96
alguma igreja, e, com não menos frequên- emprego. Então, ele pragmaticamente
Grenz & Olson, A teolo-
gia do século vinte, p. 73. cia, os vemos envolvidos em escândalos. adotou os conceitos morais do Cristianis-
Os deputados evangélicos no congresso mo de Jesus. Os conceitos sobrenaturais
chegaram lá porque era a única forma foram abandonados, mas permaneceu
de “desdemonizar” o congresso nacio- a ideia do amor ao próximo e das boas
nal, mas ele parece ficar mais demoníaco obras como a essência do Cristianismo.
a cada dia. O esvaziamento da pregação Assim, os teólogos liberais conseguiam
bíblica e a substituição dos elementos viver “em paz” com suas teorias a respeito
bíblicos tradicionais pelos métodos prag- da Bíblia sem precisar deixar de ser cris-
máticos de crescimento de igreja têm, de tãos (pelo menos em tese).
fato, feito a igreja crescer, mas parece que
a única coisa que tem aumentado nesse Os novos teólogos liberais (neo-ortodo-
campo é o joio. xos e dissidentes) que reagiram ao ve-
lho liberalismo adotaram outra postura,
LIBERALISMO PRAGMÁTICO igualmente pragmática. Eles perceberam
a inutilidade dos métodos de pesquisa
De certo modo, os vários tipos de libera- dos antigos teólogos liberais e estavam
lismo que têm existido dentro da igreja seriamente preocupados com o fato de
também são essencialmente pragmáti- o liberalismo protestante ter se esforça-
cos. O liberalismo moral, ou seja, aquele do tanto para tornar a fé cristã aceitável à
que diz que Deus não se importa com os mentalidade moderna a ponto de perder
nossos pecados, pois já que Deus é amor, o evangelho96. Mas não se convenceram
ele nos aceitará de qualquer modo, é uma a voltar à posição ortodoxa; então, muitas
atitude pragmática em relação à vida. Lu- vezes, passaram a viver num meio-termo,

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nem totalmente liberal, nem conservador. batalha e a própria arca. Os filisteus colo-
São teólogos híbridos, pois se adaptam, caram a arca dentro do santuário do deus
pragmaticamente, a qualquer situação. Dagom (1Sm 5.1,2). Porém, essa atitu-
de foi muito prejudicial para eles, pois o
O grande problema com todo esse prag- Senhor humilhou Dagom (1Sm 5.1,2) e
matismo, seja carismático, moral ou te- feriu os filisteus com pragas (v. 6), o que
ológico, é que ele está construindo uma forçou os filisteus a devolverem a arca
casa sobre a areia. A única preocupação para Israel. Os filisteus fizeram um carro
é o edifício que pode ser visto. E, para novo e os bois puxaram a arca para Bete-
isso, não são economizados esforços no -Semes, dentro do território de Israel. Em
sentido de levantar uma belíssima cons- Bete-Semes, os habitantes se alegraram
trução, enquanto se fecha o olho para o por verem a Arca, mas foram castigados
que está debaixo da terra. A fé pragmática por olharem para o interior dela (1Sm
não suporta os testes da vida. Quando cai 6.19). Por fim, a arca acabou chegando
a chuva, transbordam os rios e sopram os até Quiriate-Jearim, onde permaneceu
ventos, a casa desaba e sempre é grande a esquecida por vinte anos (1Sm 7.1,2).
sua ruína (Mt 7.27).
Quando Davi conquistou Jerusalém
O CARRO NA FRENTE DOS BOIS (2Sm 5.6-10) e organizou o reino de ma-
neira política (5.11,12) e militar (5.17-
Davi era um homem que vivia intensa- 25), ele sentiu a necessidade de organizá-
mente a sua fé. Ele foi um grande santo -lo de maneira religiosa também. Para
de Deus; porém, algumas vezes, agiu sem isso, se dispôs a levar a arca para Jerusa-
pensar nas consequências, e precisou lém (2Sm 6.1-5), pois, desse modo, ele
aprender pelo caminho mais difícil: que confirmaria Jerusalém como a capital de
o fim não justifica os meios. Quando ele Israel e o seu próprio reinado sobre Israel.
decidiu levar a arca da Aliança para Jeru- Para essa empreitada, ele ajuntou trinta
salém, tomou uma atitude “pragmática”, e mil homens e adotou o mesmo procedi-
isso lhe custou muito caro (2Sm 6.1-15). mento dos filisteus, providenciando um
Israel sempre depositou grande confiança carro novo para transportar a arca da casa
na arca do Senhor. Era uma relíquia, um de Aminadabe.
motivo de orgulho, pois ela representava
a presença de Deus no meio do povo. Mas Qualquer leitor menos avisado pensaria
houve um tempo em que Israel perdeu a que a atitude de Davi foi coerente; afi-
arca. Isso aconteceu numa derrota que o nal, ele estava, de algum modo, seguindo
povo de Israel sofreu para os filisteus e es- o procedimento dos filisteus, que havia
tes capturaram a arca e a levaram para a dado certo. Porém, olhando atentamen-
terra deles (1Sm 4). te, vemos alguns problemas na atitude
de Davi. Por exemplo, não o vemos con-
Israel levou a arca para o campo de bata- sultando o Senhor para saber se era da
lha como se fosse um amuleto que prote- vontade dele que a arca fosse levada para
geria do mal. O resultado é que perdeu a Jerusalém. Ele consultou o povo (1Cr

O PODER DESTRUIDOR DO PAGANISMO 87

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13.1-4). Ele sabia que aquilo agradaria e foi ferido por Deus, por ter agido de
ao povo e supôs que também agradaria a modo irreverente (2Sm 6.6,7).
Deus, mas nem sempre a voz do povo é a
voz de Deus. Quando Davi percebeu o que havia acon-
tecido com Uzá, entendeu que havia
O segundo equívoco de Davi foi ainda cometido um erro terrível. Naquele mo-
pior. Ele, literalmente, passou por cima de mento ele perguntou: “Como virá a mim
uma prescrição de Deus para fazer aqui- a arca do Senhor?” (v. 9). Naquele ins-
lo que parecia mais conveniente no mo- tante, Davi entendeu que o Senhor é um
mento. Muito tempo atrás, Deus já havia Deus santo, e que, quando alguém fere a
determinado o método que deveria ser sua santa lei, por mais bem-intencionado
usado para transportar a arca. Em Êxo- que esteja, se torna merecedor de puni-
do 25.10-16, quando Deus ordenou que ção. Davi viu a exibição da ira santa de
a arca fosse construída, com respeito ao Deus contra alguém que tinha infringido
transporte dela Ele disse: “Fundirás para a lei, tocando a arca sem autorização ce-
ela quatro argolas de ouro e as porás nos rimonial. Apesar dos seus bons motivos,
quatro cantos da arca: duas argolas num humanamente falando, Uzá pagou pela
lado dela e duas argolas noutro lado. Fa- sua atitude precipitada.
rás também varais de madeira de acácia
e os cobrirás de ouro; meterás os varais Essa passagem nos ajuda a entender que
nas argolas aos lados da arca, para se levar Deus estabeleceu os métodos ou as nor-
por meio deles a arca.” (vs. 12-14) E, além mas para o relacionamento com Ele. O
disso, ela somente poderia ser transporta- fato de alguém estar bem intencionado
da pelos levitas (Dt 10.8). não significa que o que está sendo feito
será aceito por Deus.
Davi, entretanto, preferiu imitar os filis-
teus, que haviam arranjado um carro novo Três meses depois, Davi resolveu nova-
para transportar a arca (1Sm 6.7), que era mente levar a arca para Jerusalém. Porém,
algo bem mais prático, moderno, e que ti- havia aprendido a lição. Dessa vez, ele
nha funcionado. Davi pagou caro pela sua adotou todos os procedimentos corretos
desconsideração daquilo que estava ex- de acordo com o que Deus havia desig-
pressamente revelado na Palavra de Deus nado (1Cr 15.1,2). Escolheu levitas, so-
e por ter ‘colocado o carro na frente dos bre os quais pesava a responsabilidade
bois’, muito embora, no seu caso, os bois de transportar a arca, e dispensou o car-
tenham ido realmente na frente do carro. ro novo, fazendo que a arca fosse levada
“aos ombros pelas varas que nela estavam,
Uzá e Aiô, filhos de Aminadabe, foram como Moisés tinha ordenado segundo a
os responsáveis pela direção do carro. A Palavra do Senhor” (1Cr 15.15; cf. Êx
passagem bíblica diz que, próximo a Na- 25.10-16). Os sacerdotes foram santifi-
com, quando os bois que puxavam a arca cados (15.11-14), cantores foram chama-
tropeçaram, Uzá, na tentativa de impedir dos (v. 16), e a cada seis passos eram sa-
que a arca caísse, tocou-a, segurando-a, crificados bois e carneiros cevados (2Sm

88 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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6.13). A arca foi levada com êxito, nin- seria e é o grande resultado que deve ser
guém se feriu e todos se alegraram, por- almejado pelos crentes verdadeiros. Po-
que o principal havia sido feito: a vontade rém, isso não quer dizer que ficaremos
de Deus foi respeitada. sem resultados práticos quando fizermos
a vontade do Senhor, pois ele é fiel e jus-
CONCLUSÃO to para abençoar o bom procedimento
do seu povo e, segundo a Sua vontade,
Fazer a vontade de Deus é muito mais nos recompensar com boa colheita: “Os
importante do que quaisquer resultados que com lágrimas semeiam com júbilo
que possamos obter através de meios im- ceifarão. Quem sai andando e chorando,
próprios. Mesmo que ficássemos abso- enquanto semeia, voltará com júbilo, tra-
lutamente sem resultados da perspectiva zendo os seus feixes” (Sl 126.5–6).
prática, ter feito a vontade do Senhor já

Anotações

O PODER DESTRUIDOR DO PAGANISMO 89

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14
A FÉ É PRÁTICA SEM SER
PRAGMÁTICA

INTODUÇÃO se preocuparam com a organização da


igreja em cada cidade onde ela se estabe-
Quando dizemos que o pragmatismo é lecia, mas é preciso ficar atento, pois há
um grande perigo para a igreja, não esta- sempre uma forte tendência de burocra-
mos querendo dizer que desejar que as tizar a fé, de tornar a estrutura eclesiástica
coisas funcionem é errado; o que é errado mais importante do que a missão, e de co-
é desrespeitar os princípios bíblicos, ape- locar Deus e o Espírito Santo dentro dos
nas porque se objetiva bons resultados. nossos próprios cronogramas.
Hoje, a igreja cristã se tornou uma ins-
tituição extremamente burocrática. Em Em muitos lugares, seria muito difícil
muitas denominações, toda e qualquer Deus agir, pois ele teria de marcar hora,
ação precisa ser feita por meio de docu- mandar memorandos, afixar editais com
mentos, e trâmites complicadíssimos muita antecedência, e isso sem esquecer
devem ser seguidos para que as coisas de cumprir os rituais de praxe; afinal de
aconteçam. Há todo o tipo de hierarquias contas, o que não está explicitado na lei é
e modelos rígidos de administração, de rezado pela praxe.
liturgia e de comportamento que, nem
sempre, podem ser comprovados biblica- FÉ BUROCRÁTICA
mente.
No seu ministério, Jesus demonstrou pre-
Quando olhamos para esses modelos e ferência por atitudes práticas. Ele que-
para a simplicidade do discipulado de Je- brou muitas das tradições dos judeus e
sus, ou para o modo como Paulo implan- adotou práticas que bem poderiam ser
tou igrejas, não há como não perceber um chamadas de pragmáticas, mas nenhuma
distanciamento. Com isso, não estamos delas foi ilícita. Um costume judaico que
dizendo que toda organização deva ser Jesus quebrou foi o de se purificar antes
abandonada, pois organização é sempre das refeições. Com medo de se contami-
necessária. Os apóstolos, desde o início, narem espiritualmente, os judeus obser-

A FÉ É PRÁTICA SEM SER PRAGMÁTICA 90

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vavam banhos e rituais de lavagem para se pela oferta que está sobre o altar fica obri-
purificar antes de ingerirem os alimentos. gado pelo que jurou. Cegos! Pois qual é
De modo prático, Jesus deixou esse cos- maior: a oferta ou o altar que santifica a
tume de lado, pois entendia que não era oferta? Portanto, quem jurar pelo altar
o que entrava pela boca que contaminava jura por ele e por tudo o que sobre ele
os homens, mas o que dela saía (Mt 15.1- está. Quem jurar pelo santuário jura por
20). Eles lavavam as mãos, mas o coração ele e por aquele que nele habita; e quem
permanecia sujo. A teologia de Jesus foi jurar pelo céu jura pelo trono de Deus e
bem mais prática e lógica: as mãos são por aquele que no trono está sentado.”
menos importantes do que o coração. (Mt 23.16-22).

Jesus censurou a “burocracia teológica” A mente de Jesus era muito simplista


dos fariseus em muitas ocasiões. Ele os nesse sentido. Ele não estava disposto
acusou: “Atam fardos pesados [e difíceis a raciocínios e junções melindrosas de
de carregar] e os põem sobre os ombros conceitos. É como se ele dissesse que as
dos homens; entretanto, eles mesmos ações precisam ser consideradas até as úl-
nem com o dedo querem movê-los” (Mt timas consequências e não apenas em si
23.4; ênfase acrescentada). Desse modo, mesmas. Jurar pela oferta do santuário é
fechavam o reino dos céus diante dos ho- jurar pelo altar, pelo próprio santuário e,
mens, eles próprios não entrando, nem em última instância, pelo próprio Deus. A
deixando ninguém entrar (Mt 23.13). questão dos dízimos foi o que deu vazão
Muitos acreditam que, para ser ortodoxo para um pragmatismo (é claro que isso é
é preciso dificultar a fé. Isso é um erro e um anacronismo) sadio de Jesus. Ele dis-
um modo de desprezar a graça de Deus. se: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócri-
Esse é o grande perigo de todos os que tas, porque dais o dízimo da hortelã, do
são também excessivamente críticos. Às endro e do cominho e tendes negligencia-
vezes, só sabemos destruir, mas não cons- do os preceitos mais importantes da Lei:
truímos nada. De nada adianta a nossa a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, po-
teologia ser ortodoxa se ela não for práti- rém, fazer estas coisas, sem omitir aque-
ca. Se bem que, nesse caso, teríamos que las! Guias cegos, que coais o mosquito e
reconsiderar se ela é realmente ortodoxa. engolis o camelo!” (Mt 23.23,24). É evi-
dente que Jesus não invalidou a prática de
Jesus demonstrou toda a sua lógica e pra- entregar os dízimos, mas demonstrou que
ticidade ao criticar os fariseus por suas existe uma relação de valores e de priori-
práticas cheias de melindres: “Ai de vós, dades no serviço de Deus. A preocupação
guias cegos, que dizeis: Quem jurar pelo excessiva com detalhes (mosquitos) da fé
santuário, isso é nada; mas, se alguém ju- pode levar ao descuido das práticas mais
rar pelo ouro do santuário, fica obrigado importantes (camelos) da fé. Entregar o
pelo que jurou! Insensatos e cegos! Pois dízimo das migalhas era algo correto em
qual é maior: o ouro ou o santuário que tese, mas apenas um mosquito perto de
santifica o ouro? E dizeis: Quem jurar conceitos maiores. Então, nesse sentido,
pelo altar, isso é nada; quem, porém, jurar a verdade está numa relação de valor, por-

91 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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que ela precisa ser aplicada coerentemen- de longe para ver o que Jesus e seus dis-
te às situações específicas da vida. cípulos faziam. O problema quanto à ati-
tude dos discípulos, que os fariseus iden-
Isso fica ainda mais evidente, quando tificaram, não estava no fato de colher as
comparamos essa passagem com a pas- espigas e comer, pois isso era permitido
sagem da oferta da mulher viúva que en- naquele tempo. Os viajantes tinham o di-
tregou algumas moedas (Mc 12.41-44). reito de tirar algo dos campos para satis-
Talvez a soma da entrega do dízimo do fazer sua fome (Dt 23.25). A objeção foi
endro por parte do fariseu fosse seme- feita, não à ação em si, mas pelo fato de ela
lhante à soma que a mulher entregou. ser feita no sábado. Nessa ação dos discí-
Mas o valor diante de Deus era muito di- pulos, os fariseus conseguiriam encontrar
ferente. A viúva estava sendo submissa a quatro quebras da Lei: 1) quebrar as es-
Deus de coração e o fariseu rigorosamen- pigas; 2) esfregar com as mãos; 3) jogar
te hipócrita. No teste prático, a oferta da as palhas ao lado; 4) preparar uma refei-
viúva valia mais que a oferta do fariseu. ção97. A pergunta deles é categórica: “Por 97
Leon Morris, Lucas,
que fazeis o que não é lícito aos sábados?” p. 116.
APROVEITANDO O SÁBADO
A resposta de Jesus foi pragmaticamente
Talvez, a atitude mais prática de Jesus sadia. Ele usou um exemplo para explicar
tenha sido em relação ao sábado. Os fa- o que pretendia dizer: “Respondeu-lhes
riseus eram fanáticos em relação à guarda Jesus: Nem ao menos tendes lido o que
do sábado. Em alguns casos, eles eram hi- fez Davi, quando teve fome, ele e seus
pocritamente pragmáticos (p. ex., eles co- companheiros? Como entrou na casa de
locavam objetos pessoais em certos pon- Deus, tomou, e comeu os pães da pro-
tos do caminho que desejavam percorrer posição, e os deu aos que com ele esta-
no sábado, para que aqueles locais pudes- vam, pães que não lhes era lícito comer,
sem ser considerados como “residência” mas exclusivamente aos sacerdotes?” (Lc
deles, desse modo “ganhando” o direito 6.3,4). Jesus citou a ocasião em que Davi
de andar mais uma distância de sábado). e seus homens, fugindo de Saul, esconde-
ram-se no templo e comeram do pão sa-
Lucas, no capítulo 6, relata dois fatos que grado que somente os sacerdotes podiam
aconteceram no sábado que deram ori- comer (1Sm 21.1-6). Isso não foi um
gem a grandes polêmicas entre Jesus e os pecado, porque representava a satisfação
fariseus. Ele descreve: “Aconteceu que, de uma necessidade básica que não podia
num sábado, passando Jesus pelas searas, ser satisfeita de outro modo.
os seus discípulos colhiam e comiam es-
pigas, debulhando-as com as mãos. E al- Era exatamente isso o que os discípulos
guns dos fariseus lhes disseram: Por que estavam fazendo naquele momento. Eles
fazeis o que não é lícito aos sábados?” (Lc estavam apenas satisfazendo uma neces-
6.1,2). Os fariseus acreditaram ter flagra- sidade básica lícita, e isso não era pecado.
do os discípulos! De onde eles haviam Eles não precisavam ficar sem comer até o
surgido? Talvez estivessem espionando dia seguinte, apenas para guardar o sába-

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do. Isso demonstra claramente que, entre por causa dela, não se podia deixar de
uma interpretação rigorosa e burocrática ajudar quem precisasse. Por essa razão,
da Lei, Jesus preferia uma interpretação Jesus curou o homem (Lc 6.10). Foi uma
mais prática, algo que favorecesse uma atitude prática, porque, como no caso an-
situação de necessidade. Como ressalta terior, não havia nada no caráter de Deus
Hendriksen, a questão-chave aqui é que a que proibisse essa atitude.
regulamentação sabática podia ser deixa-
da de lado por uma questão de necessida- E o mais interessante é que aqueles ho-
de, como foi no caso de Davi98. mens, que tanto queriam guardar o sába-
do, alimentavam em seus corações pen-
O segundo episódio aconteceu em outro samentos de morte em relação a Jesus.
sábado. Lucas relata: “Sucedeu que, em Enquanto Jesus salvava vidas no sábado,
outro sábado, entrou ele na sinagoga e en- eles pensavam em tirar a vida de Jesus (Lc
sinava. Ora, achava-se ali um homem cuja 6.11). O fanatismo é cego.
mão direita estava ressequida. Os escribas
e os fariseus observavam-no, procurando TESTANDO A VERDADE
ver se ele faria uma cura no sábado, a fim
98
W. Hendriksen, Lucas, p. de acharem de que o acusar. Mas ele, co- Isso nos faz pensar num segundo aspecto
316 (Lc 6.3-5).
nhecendo-lhes os pensamentos, disse ao positivo do pragmatismo que é o fato de
homem da mão ressequida: Levanta-te que os conceitos precisam ser realmente
e vem para o meio; e ele, levantando-se, testados. É verdade que não concordarí-
permaneceu de pé. Então, disse Jesus a amos que a verdade precisa ser testada,
eles: Que vos parece? É lícito, no sábado, pois a verdade é a verdade em si. Já deixa-
fazer o bem ou o mal? Salvar a vida ou mos claro que o nosso conceito de verda-
deixá-la perecer?” (Lc 6.6-9). de é que a verdade é de Deus, conforme
Ele a revela em Sua Palavra. A Palavra não
Esse novo acontecimento demonstra cla- precisa ser testada, mas, muitas vezes, as
ramente o modo como Jesus vê as coisas, nossas interpretações dela precisam. Às
especialmente a Lei. A Lei não pode ser vezes, taxamos de pragmático tudo o que
um instrumento que acarreta o mal para não se encaixa nas nossas tradições. Mas
as pessoas; antes, ela deve ser um instru- manter tradições também pode ser uma
mento para o bem das pessoas. Os rabi- atitude pragmática, pois estamos man-
nos também aceitavam que vidas fossem tendo o que está sendo confortável para
salvas no sábado, mas desde que isso não nós, e o que está em conformidade com
pudesse ficar para depois. O homem da nossos gostos pessoais, e nem sempre es-
mão ressequida, entretanto, não estava sas coisas sobrevivem ao teste da Palavra.
correndo risco de morte. Jesus não se
contentava com essa restrição. Para ele, Ter uma atitude prática equilibrada é tes-
fazer o bem estava acima de detalhes téc- tar se o que defendemos como verdade
nicos da tradição que foram acrescenta- passa no teste da verdade. Porém, para
dos à Lei. O espírito da Lei exigia que o o cristão, o teste da verdade não é aqui-
bem fosse feito ao próximo, e, portanto, lo que funciona necessariamente, ou que

93 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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está em conformidade com o gosto pes- que há prioridades e relações de valores
soal, mas aquilo que está em conformida- entre atitudes e atitudes. É perfeitamente
de com a Escritura, com o caráter santo possível abrir mão de detalhes insignifi-
de Deus, sabendo que essas coisas sem- cantes para que o bem maior prevaleça.
pre são para o bem das pessoas. Quando O grande exercício, que como igreja pre-
lançamos mão de algum método ilícito cisamos fazer, é justamente o de ver quais
para alcançar algo bom, estamos compro- são as atitudes que julgamos essenciais
metendo também o objetivo. Não há fins para a igreja, mas que no fundo, apenas
justificáveis se os meios são injustificá- emperram o sistema. O teste da verdade
veis. Aos olhos de Deus, meios e fins têm também passa pelo desapego pelas coisas
o mesmo peso. que valorizamos apenas porque são tra-
dições nossas, pois a verdade da Palavra
CONCLUSÃO tem que estar acima de tudo.

A fé é prática sem ser pragmática. Jesus


foi assim. Suas atitudes demonstravam

Anotações

A FÉ É PRÁTICA SEM SER PRAGMÁTICA 94

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15
ÉTICA EM TEMPOS
DE RELATIVISMO

1Co 15.32–34

INTRODUÇÃO crituras. As pessoas têm se rebelado con-


tra a visão bíblica do ser humano, porque
A pós-modernidade é, mais do que tudo, não querem se submeter aos padrões éti-
uma filosofia com implicações éticas. Por cos do Cristianismo bíblico. Essa é, sem
trás de todo o seu emaranhado de crenças dúvida, a maior causa da rejeição do Cris-
e postulados sobre igualdade e tolerân- tianismo pelo mundo pós-moderno. 99
LPeter Jones,
A ameaça pagã, p. 53.
cia, o que se pretende modificar são os
padrões éticos da sociedade. Todo o tra- Historicamente, tem havido dois tipos de
balho de desconstrucionismo histórico ateu no mundo: os pessimistas e os oti-
que os defensores do pós-modernismo mistas. Estamos falando do modo como
têm tentado fazer, em última instância, essas pessoas encaram o sentido e a reali-
é para tentar adequar a realidade às suas dade da vida e da existência. Os pessimis-
próprias visões da ética e da moral. tas dizem que a vida não tem qualquer
sentido, que não existem padrões morais,
Peter Jones observou que o filósofo fran- nem metas ou objetivos. Os otimistas di-
cês Michel Focault (1926-1984) pro- zem que, embora Deus não exista, e ne-
curou justificar a sua homossexualidade nhuma ideia sobrenatural deva ser con-
mostrando que a heterossexualidade não siderada, ainda assim a vida tem sentido
era mais do que uma construção social, e há base para a ética e para estabelecer
assim como pensadores feministas radi- padrões de conduta moral para a socieda-
cais procuram minar a civilização cristã de. Estes são os “humanistas seculares”,
rotulando-a como uma fraude usada so- que defendem uma espécie de ceticismo
mente para justificar o patriarcado99. moralista, ou ateísmo responsável. Eles
são céticos, ou seja, não creem na existên-
Os teólogos liberais modernos pensavam cia de Deus, ou agnósticos, pois dizem
em abandonar a Bíblia e manter a sua éti- que se Deus existe, não podemos saber
ca, mas o mundo pós-moderno não tem a com certeza; embora rejeitem a ideia do
menor vontade de manter a ética das Es- sobrenatural e do divino, eles sustentam

ÉTICA EM TEMPOS DE RELATIVISMO 95

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uma moralidade e uma atitude positiva cípulo de Kant se sabe obrigado a respei-
em relação à vida e à sociedade. Essa pers- tar as máximas da razão.
pectiva acaba sustentando, não uma mo-
ral absoluta, mas uma moral formulada a O problema com a ética positivista é que
partir da razão e do bom senso, que, por ela é muito ingênua. Os humanistas se-
fim, é conforme as necessidades de cada culares defendem a construção de uma
momento. sociedade melhor e não abrem mão da
ética, mas é preciso perguntar: qual é a
Embora existam mais de oitenta teorias base dessa ética? Se não existe algo “aci-
sobre a ética,100 podemos resumi-las em ma” dos seres humanos que estabeleça
quatro perspectivas básicas: uma ética imutável, então, tudo o que
temos é uma ética que tem que se ade-
ÉTICA POSITIVA INGÊNUA quar às situações. Insistimos: Por que
devemos nos “comportar direitinho”, se
100
R. C. Sproul, Discípu- São formulações éticas herdadas do fim não há qualquer vantagem nisso? Poucos,
los hoje, p. 205.
101
do século 19, em que o clima de otimis- como Kant, diriam que é porque essa lei
Emannuel Kant, Fun-
damentos da metafísica mo mundial levou os humanistas secula- moral está dentro de nós, pois, no final,
dos costumes, 70-1,79.
res, mesmo negando a ideia da existência estaremos apenas servindo aos interesses
de Deus, a buscarem, na razão, elementos dos poderosos. Quem está certo é quem
para a construção de uma ética que se tripudia dos padrões éticos da sociedade
traduzisse em respeito pelo semelhante. e faz o que tem vontade, sem se importar
Embora nem todos concordem, Kant é com as consequências. O mundo pós-
o grande herói desse sistema. Kant ne- -moderno viu, com razão, que a ética po-
gou a possibilidade de falar na existên- sitivista é uma grande bobagem.
cia de Deus, e jogou o sobrenatural para
a esfera do “não-conhecível”, mas, ainda DESONESTO COM DEUS
assim, quis basear a moral em princípios.
Kant disse: “Existe só um imperativo ca- A segunda perspectiva pode ser chamada
tegórico, que é este: Aja apenas segundo de ética situacional. Ela é um desenvolvi-
a máxima que você gostaria de ver trans- mento da anterior, e situa-se num meio-
formada em lei universal”101. Isso é uma -termo entre modernismo e pós-moder-
espécie de adaptação da “regra de ouro” nismo, mas mais inclinada ao último. Os
ensinada por Jesus, a de fazer ao próximo defensores da ética situacional dizem
o que você gostaria que fizessem a você. oferecer um caminho intermediário en-
Mas ele ampliou essa ideia ao dizer que tre o legalismo e o antinomianismo. Na
devemos fazer aos outros o que gostarí- ética situacional há apenas um princípio
amos que todos fizessem para todos. Po- absoluto que deve sempre ser seguido: o
rém, qual é o fundamento dessa postura? amor. Os princípios antigos podem ser
Para Jesus, era o amor revelado por Deus. facilmente abolidos, se o amor for privile-
E para Kant? A razão. Ou seja, mesmo giado pela atitude a ser tomada.
que o universo não tenha o menor senti-
do, mesmo que a alma seja mortal, o dis- Um livreto que causou alvoroço no mun-

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do teológico foi escrito por J. A. T. Robin- dizendo que está fazendo isso por amor.
son, um bispo oficial da Igreja Anglicana,
intitulado Honest to God (Honesto com Não existe ética verdadeira sem a manu-
Deus). A obra toda, apesar do estardalha- tenção de princípios absolutos. Quem
ço que causou, nada mais é do que um garante que situações diferentes não exi-
questionamento do teísmo tradicional e girão padrões de éticas contraditórias? Se
uma “ressurreição” de velhas heresias so- isso for levado ao extremo, teríamos de
bre a pessoa de Deus e de Cristo; conde- concordar com os relativistas culturais,
nadas desde os primórdios do Cristianis- quando afirmam que o infanticídio pode
mo e adotadas pela teologia liberal, como ser certo, desde que a cultura dominante
o panteísmo e o ebionismo102. Nesse sen- o aprove, pois o bem para a maioria é de-
tido, há pouca coisa nova na obra. Mas finido pela própria maioria. Em algumas
é no campo da ética que Robinson real- culturas, o suicídio é uma prática social-
mente cava fundo. Num capítulo intitula- mente aprovada, ou seja, nesses lugares
do “A nova moralidade”, Robinson esta- teríamos de dizer que o suicídio é um 102
Colin Brown,
belece que os padrões morais não podem bem? Entre algumas tribos indígenas, é Filosofia e fé cristã, pp.
137-141
estar baseados em princípios lá do alto, costume comer carne humana, e isso é
103
ou seja, da divindade, nem são imutáveis uma prática socialmente aprovada por J. A. T. Robinson,
Honest to God, p. 118.
e absolutos, pois, segundo ele, “o único eles, logo teríamos de dizer que o caniba- 104
J. A. T. Robinson,
mal intrínseco é a falta de amor”103. lismo é um bem. Nesse ponto, o huma- Honest to God, p. 118.

nista secular dirá que temos de formular


Ele argumenta que os pecados, como rela- uma ética baseada no bem da sociedade
ções sexuais antes do casamento ou o di- e que leve ao progresso cultural. Hitler
vórcio, não são coisas más em si mesmas, tentou fazer isso usando os judeus como
apenas derivadas das circunstâncias104 . cobaias em seus campos de concentra-
Apesar de Robinson não dizer isso expli- ção, e, de fato, conseguiu trazer alguns
citamente, é preciso derivar que os outros benefícios para a sociedade, inventando
pecados como o furto ou o assassinato certos remédios. Se não existe uma moral
também não são. A suposta “honestida- absoluta, toda moral será localizada e de-
de” de Robinson com Deus, na verdade penderá das circunstâncias, podendo se
parece mais desonestidade, pois poderí- tornar muito imoral.
amos questionar: Como saber quando
estamos agindo por amor e quando esta- Embora seja preciso concordar com os
mos agindo segundo os nossos interesses proponentes da ética da situação de que
pessoais? No caso, por exemplo, do man- as decisões éticas não acontecem num vá-
damento para não adulterar: se alguém se cuo, mas são realmente tomadas dentro
deixar guiar pela ética da situação, pode de um contexto real que precisa ser con-
chegar à conclusão de que, em algum mo- siderado, e que o amor é, certamente, o
mento, o adultério seja algo bom. Se um princípio fundamental para todo o bem,
homem deseja “satisfazer” as carências ainda assim o amor não é algo totalmente
afetivas de uma mulher, por exemplo, que aleatório e subjetivo, antes segue princí-
não é a sua esposa, ele pode se desculpar pios absolutos também.

ÉTICA EM TEMPOS DE RELATIVISMO 97

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Para o Cristianismo é a Palavra de Deus propósito moral em si, apenas a sobrevi-
que diz o que é o amor e o que o amor vência, e são os mais fortes que sobrevi-
exige. Como diz Sproul, “o ético cristão vem, então nada é totalmente errado, pois
assevera que a Bíblia não somente requer o errado nem existe, já que a vida moral é
de nós que façamos o que o amor exige, uma mera adaptação ou ajustamento ao
mas revela muito precisamente, em cer- nosso meio ambiente natural. Isso pode
tas ocasiões, o que é que o amor exige”105. ser chamado de “pragmatismo biológico
Jesus disse: “Se me amais, guardareis os superficial”106, ou como preferimos cha-
meus mandamentos” ( Jo 14.15). O amor mar, “ética de Darwin”. Em última instân-
não é livre para fazer o que quiser, de- cia, é a “lei da selva”.
pendendo da situação. O amor guarda os
mandamentos. Na atualidade, essa talvez seja a posição
mais aceita sobre ética. É o sistema que
Só seremos honestos com Deus, se re- adapta os seus padrões ao que é do in-
conhecermos que é por causa dEle que teresse pessoal em dado momento e o
o amor é o nosso padrão ético, mas não justifica à luz da prática comum. É sob
um amor baseado em circunstâncias e essa sombra que a maioria das pessoas
105
R. C. Sproul, Discí-
pulos hoje, p. 237.
na subjetividade de nossas preferências, se esconde quando deseja justificar in-
106
Emil Brunner, Teolo-
e sim na revelação de Deus. Na verdade, timamente os seus atos. Embora muitas
gia da crise, p. 74 trata-se de um amor submisso a outro pessoas exibam uma postura ética de fa-
amor, do mesmo modo que o segun- chada, na prática agem para se beneficiar,
do “maior” mandamento é derivado do sem se importar com o restante.
primeiro “maior” mandamento. Foi o
que Jesus disse: “Amarás o Senhor, teu Essa certamente é a postura “ética” de
Deus, de todo o teu coração, de toda a boa parte dos políticos do congresso que
tua alma e de todo o teu entendimento. aproveitam todas as oportunidades para
Este é o grande e primeiro mandamento. conseguir mais dinheiro para si mesmos,
O segundo, semelhante a este, é: Amarás como se não recebessem salários altíssi-
o teu próximo como a ti mesmo” (Mt mos, sem se importar com o fato de que
22.37,38). O amor ao próximo é deriva- suas atitudes condenam um país ao atraso
do do amor de Deus. Como disse João: e sacrificam milhares de vidas. Mas tam-
“Nós amamos porque ele nos amou pri- bém é o padrão da maioria das pessoas
meiro” (1Jo 4.19). Sem o amor revelado que, se colocadas numa posição em que
de Deus não sabemos como amar. podem se beneficiar, não perdem tempo.

ÉTICA DE DARWIN O grande problema com essa visão é que


a vida se torna um “vale-tudo”. Porém, na
Embora seja um pouco contraditório, po- nossa opinião, esse é o único sistema que
demos falar ainda numa ética naturalista. faz sentido, se a ética cristã não puder ser
Na verdade, isso é uma espécie de “anti- mantida. O darwinismo é um produto do
ética”, pois diz que: uma vez que somos modernismo, mas os seus conceitos ali-
resultado de uma evolução sem qualquer mentaram poderosamente o mundo pós-

98 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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-moderno. O PESSIMISMO E PAULO

ÉTICA RELEVADA Caso Paulo fosse ateu, ele seria pessi-


mista. Paulo não demonstrava qualquer
A única ética que pode realmente ser cha- otimismo em relação aos propósitos
mada de “ética” é aquela que vem de cima. desta vida a partir do conceito da não-
Moisés descendo do monte Sinai com -existência da vida depois da morte. Uma
as duas tábuas da Lei é a única cena que interessante expressão do apóstolo pode
transmite autoridade no campo da moral, ser encontrada em 1 Coríntios 15.32: “Se,
assim como Jesus assentado, revestido da como homem, lutei em Éfeso com feras,
autoridade de mestre divino, dizendo “eu, que me aproveita isso? Se os mortos não
porém vos digo”. ressuscitam, comamos e bebamos, que
amanhã morreremos”. Em todo esse capí-
O caminho correto é o da revelação para tulo, ele está discutindo se existe ressur-
a ética, e não da moral para a metafísica, reição dos mortos e, consequentemente,
como queria Kant, muito menos uma se Cristo ressuscitou. Seus argumentos a
moral “solta no ar”, como querem os ateus favor da ressurreição literal de Jesus po-
otimistas, que acaba se tornando uma dem ser vistos ao longo do capítulo todo
moral circunstancial. A ética verdadeira é e não são fáceis de descartar. Mas nesse
a ética da fé. O Cristianismo assevera que versículo ele diz algo de sua própria expe-
Deus concedeu aos homens uma revela- riência. Ele descreve uma ocasião em sua
ção absoluta de quem Ele é, de quem o vida em que enfrentou algo aterrorizante.
homem é, e de qual é a Sua vontade para Não sabemos exatamente o que aconte-
o homem. Embora isso pareça absurdo ceu com Paulo em Éfeso. Se tomarmos
para o homem moderno e pós-moderno, literalmente o que ele disse, é provável
somente se isso for verdade, há base ver- que ele tenha sido jogado na arena para
dadeira para uma ética. Num ponto, Kant lutar com leões famintos. Mas talvez seja
estava certo: somente se existir um Deus um modo figurado de dizer que enfren-
que possa julgar os atos das pessoas, há tou uma multidão enfurecida em Éfeso, o
base para uma ética. O problema de Kant que de fato é narrado por Lucas em Atos
é que ele pensava que Deus julgaria ati- 19.21-40. De qualquer modo, Paulo teve
tudes baseadas numa ética que vem da consciência do imenso perigo que correu
própria razão do homem. Isso acabaria e da luta muito acima de suas forças que
em subjetivismo e relativismo. Porém, precisou enfrentar. Mas qual era a sua
segundo a Bíblia, Deus julgará as atitudes motivação para enfrentar tudo aquilo? A
dos homens com base no padrão ético convicção da ressurreição de Cristo. Ele
que Ele mesmo estabeleceu. o havia visto ressuscitado e isso lhe dava
a certeza de sua própria ressurreição. Sua
O caráter de Deus é o padrão máximo de declaração pessimista “se os mortos não
toda ética, portanto, a única ética que tem ressuscitam, comamos e bebamos, que
base para existir é a ética revelada. amanhã morreremos”, na verdade, é ex-
tremamente realista. Não existe ética sem

ÉTICA EM TEMPOS DE RELATIVISMO 99

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a existência de absolutos. Se a vida acaba tenção impura para uma mulher” é tão
com a morte, a lei da selva é a única que grave quanto “adulterar com ela” (Mt
faz sentido, por mais insensata que ela 5.27,28). O Sermão do Monte, entre-
seja. tanto, não é apenas um conjunto de leis
éticas fixas. Ele é uma correção da visão
ÉTICA CRISTÃ distorcida da justiça e da graça e, a partir
disso, um padrão ético a ser seguido. No
O Cristianismo não propõe “melhorar” o início do sermão, Jesus elegeu as pesso-
ser humano, mas um “novo nascimento”. as que ele considera “bem-aventuradas”
É evidente que o Cristianismo defende (Mt 5.1-12). Ao fazer isso, ele entrou em
a educação e a cultura como elementos choque com a cultura popular e religio-
que ajudam as pessoas a viverem melhor, sa. Ele corrigiu a interpretação do sentido
e vê nessas coisas a atuação da graça co- da vida, pois a verdadeira felicidade não
mum, mas, somente um “novo nascimen- está nas coisas e situações que as pesso-
to” pode fazer o ser humano ser substan- as normalmente consideram. A chave
cialmente diferente. Jesus disse: “O que é para entender o que Jesus quer ensinar
nascido da carne é carne; e o que é nas- é o versículo 20: “Porque vos digo que,
cido do Espírito é espírito. Não te admi- se a vossa justiça não exceder em muito
res de eu te dizer: importa-vos nascer de a dos escribas e fariseus, jamais entrareis
novo” ( Jo 3.6,7). Enquanto não aconte- no reino dos céus”. Essa afirmação deve
cer essa experiência espiritual dentro do ter assustado as pessoas. Todas viam nos
ser humano, que o torna uma pessoa nova fariseus o exemplo mais acabado de vida
– alguém nascido do espírito –, ele será justa. Aqueles homens eram extrema-
apenas alguém nascido da carne, e jamais mente rigorosos em observar os precei-
conseguirá se elevar acima de si mesmo tos da Lei. Mas Jesus viu neles um terrível
para experimentar uma existência supe- elemento de superficialidade. Eles eram
rior. Nenhuma reforma faz o ser humano rigorosos, mas limitavam a lei a questões
ser o que ele precisa ser. Sua vida atual externas. Nessas questões demonstravam
(da carne) precisa acabar. Uma nova vida todo o rigor, detendo-se em detalhes sem
(do espírito) precisa começar. importância e se esqueciam de assuntos
primordiais que nem sempre estavam cla-
É quase um consenso que o Sermão do ros na letra da lei. Por isso Jesus disse que
Monte é a parte bíblica que mais expõe o eles coavam o mosquito, mas engoliam o
sistema ético do Cristianismo. Uma exce- camelo (Mt 23.24).
ção é a dos dispensacionalistas que veem
o Sermão do Monte como um padrão A repetida expressão “ouvistes que foi
ético reservado para um milênio futuro dito aos antigos” (Mt 5.21); “Eu porém
e não para a atualidade. Por outro lado, vos digo” (Mt 5.22) demonstra que Jesus
psiquiatras, muitas vezes, o condenam, está restaurando a verdadeira interpre-
porque ele, aparentemente, diz que “cha- tação da Lei. Não significa que Jesus es-
mar alguém de tolo” é tão grave quanto tivesse querendo corrigir a própria Lei.
“matá-lo” (Mt 5.21,22); “olhar com in- O que foi dito aos antigos não foi o que

100 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Moisés disse, e sim o que os antigos dis- CONCLUSÃO
seram sobre o que Moisés disse. Jesus não
estava corrigindo a Lei de Moisés, mas Somente uma mudança interior pode re-
justamente a interpretação que os anti- almente conduzir a uma ética verdadeira.
gos intérpretes, e também os modernos, Aqui está a razão pela qual, apesar de a
estavam fazendo da Lei. Jesus se recusou revelação (Bíblia) ser uma referência ab-
a aceitar a interpretação meramente ex- soluta para a ética, ela nem sequer pode
terna da lei. Ele via em cada mandamento ser praticada pelas pessoas. Os ideais da
um “complexo” maior do que um simples Bíblia, principalmente a lei do amor ex-
ato em si mesmo. Ele estava querendo posta por Jesus, estão muito acima do que
dizer que o pecado não está no simples pessoas decaídas conseguem praticar. Por
fato de matar, mas em toda a complexi- isso, pouco adianta tentar impor esses
dade que envolve um assassinato. Ele não conceitos de “fora para dentro”, porque
ensinou que insultar e disparar uma arma o “coração de pedra” não os aceita (Ez
têm o mesmo peso, mas que o pecado vai 36.26). É somente quando há uma trans-
além do ato de disparar uma arma, e que, formação do coração, a fonte da qual pro-
de fato, começa bem antes disso. O assas- cedem todas as atitudes, é que a ética po- 108
sinato, assim como o adultério, começa derá brotar de dentro para fora, mediada
John Stott, A verdade do
evangelho, p. 18.
no coração e na mente. Não adianta mui- pelo Espírito e pela Revelação
to controlar essas coisas externamente, se
elas “correm soltas” no coração.

Anotações

ÉTICA EM TEMPOS DE RELATIVISMO 101

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16
O PERIGO DO RADICALISMO
(PARTE 1)

Dt 5.32

INTRODUÇÃO modo, se alimentado dele. Ele é uma rea-


ção à altura do pensamento pós-moder-
A tolerância pretende ser a marca funda- no. As pessoas nem sempre param para
mental dos tempos atuais, mas, parado- pensar que o extremismo pode ser uma
xalmente, percebemos que o extremismo consequência do próprio relativismo.
está mais forte do que nunca. Quase não
passa um dia sem que vejamos na tele- Em Deuteronômio 5.32, Moisés orde-
visão imagens de extremistas islâmicos nou ao povo: “Cuidareis em fazerdes
brandindo armas e gritando palavras de como vos mandou o SENHOR, vosso
ordem contra o presidente dos Estados Deus; não vos desviareis, nem para a di-
Unidos, ou contra o Ocidente. O terro- reita, nem para a esquerda”. O caminho
rismo é a grande fobia mundial e faz com de Deus é um caminho de equilíbrio,
que posições extremas sejam adotadas mas está comprovado que esse equilí-
em todos os lugares do mundo. Mas ele é brio é uma das coisas mais difíceis para
apenas uma demonstração de que o mun- a humanidade. E também tem sido uma
do pós-moderno pode se demonstrar de dificuldade para a igreja. Há um caminho
modos bastante extremistas. para o povo de Deus, um caminho estrei-
to, como Jesus disse (Mt 7.13,14), mas é
Os movimentos religiosos extremistas sempre mais fácil descambar para a direi-
estão crescendo em todo o mundo. Pen- ta ou para a esquerda do que se manter
tecostais radicais no Brasil, confucionis- equilibradamente.
tas neotradicionais na Coréia, budistas
radicais no Japão e muçulmanos xiitas no MINORIAS BEM GRANDES
Oriente Médio são apenas exemplos de
que o radicalismo religioso tem sobrevi- Algo que virou moda neste mundo pós-
vido ao mundo pós-moderno, e, de certo -moderno é falar no direito das minorias.

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 1) 102

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Todos querem defender os direitos das lha votam em quem vai ser o jantar. Já
minorias étnicas, religiosas, dos homos- a democracia representativa é a que as
sexuais, etc. O problema é que, com o ovelhas elegem quais serão os lobos que
alcance da mídia, essas “minorias” estão, vão escolher quem será o jantar... O que
muitas vezes, se tornando bem grandes e se percebe é que, quando as minorias se
expressivas, mas ainda se escondem atrás tornam maioria, elas ficam tão extremis-
do status de “minoria”. tas e intolerantes quanto seus predecesso-
res. Os homossexuais têm o direito de ser
As mais recentes pesquisas de opinião homossexuais e todo tipo de preconceito
pública no Brasil têm demonstrado uma certamente fere a visão bíblica, mas aque-
ampla aceitação da prática homossexu- les que, sustentando uma visão bíblica,
al, mesmo que seja em familiares. Isso, acham errado ser homossexual também
certamente, é um resultado do maciço precisam ter o direito de achar isso erra-
marketing da mídia brasileira em favor do, e não são obrigados a aguentar propa-
do homossexualismo masculino e femi- ganda na mídia em favor do homossexua-
nino nos telejornais e especialmente nas lismo. Porém, talvez o mais certo mesmo
telenovelas. A justiça brasileira aprovou seja desligar a televisão.
recentemente a veiculação de “beijo ho-
mossexual” no horário livre na televisão Aqueles que sustentam a visão bíblica da
brasileira, entendendo que é algo “nor- sexualidade são mais “minoria” do que
mal” e que não causa influência negativa imaginam. Nem mesmo as igrejas se sal-
nas crianças. O ministério da justiça es- vam. As principais denominações norte-
clareceu, dizendo que isso foi autoriza- -americanas, como a Igreja Episcopal, a
do porque a constituição federal diz que Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos
todos têm os mesmos direitos perante a e a Igreja Metodista já admitem a prática
lei. Então, aqueles que pensam de modo do homossexualismo entre seus mem-
contrário deveriam ter o direito de não bros, e algumas dessas igrejas têm orde-
precisar ver essas coisas na televisão, mas, nado homens e mulheres homossexuais
hoje, os que sustentam uma visão bíblica praticantes ao Sagrado Ministério.
da sexualidade é que são a minoria. Essa
“minoria” não tem o direito de se manifes- CAINDO NOS EXTREMOS
tar, pois pode responder a processos e até
parar na prisão. Percebe-se que a chama- A igreja já conviveu com muitos movi-
da “tolerância” para com as minorias se mentos extremistas dentro dela. O que
torna, na verdade, uma intolerância com percebemos é que esses movimentos ge-
relação aqueles que pensam diferente. ralmente não eram tão extremistas em
seus primórdios, que eles tiveram origem
Num país democrático, é preciso real- por alguma razão nobre, mas se corrom-
mente respeitar o direito de todos. Mas peram depois, pelo radicalismo dos seus
o problema com a democracia é que, seguidores.
muitas vezes, ela se parece com aquela
historinha em que três lobos e uma ove- Um exemplo disso vem do Judaísmo dos

103 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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dias de Jesus, a seita dos fariseus. Eles mas que expressaram uma espiritualida-
eram a elite religiosa de Israel. Eram os de amadurecida, sobrepujando a estatura
mais respeitados, os mais admirados, e, espiritual da maioria dos cristãos de qua-
de certo modo, podemos dizer, também se todas as épocas107. Eles produziram a
os mais dedicados em sua religião. A ori- mais vasta biblioteca teológico-devocio-
gem da seita dos fariseus foi muito nobre. nal do mundo protestante. Os puritanos
No tempo em que Israel havia sido con- se levantaram depois da Reforma, quan-
quistado pelos gregos, uma verdadeira do na Inglaterra e na Escócia aconteceu
invasão da cultura e dos costumes hele- um período de recessão e esfriamento,
nísticos se fez sentir sobre o povo judeu dispostos a purificar a igreja de todas as
e muitos dos judeus começaram a ado- coisas que fossem contrárias à Palavra
tar costumes mundanos e a abandonar de Deus. A palavra “puritano”, no inglês,
os costumes judaicos. Diante do perigo tem o significado de purificar. Mais tarde,
iminente, houve uma reação de judeus o puritanismo acabou sendo associado
ortodoxos que desejavam resguardar a ao radicalismo da guarda do domingo,
Escritura. Esta foi a revolução dos fari- do uso de determinadas roupas, do total
seus. Os primeiros fariseus, chamados de afastamento das diversões, da abstinência
hassidim, promoveram uma grande obra de prazeres, do hiperconservadorismo li-
de reforma no meio do povo. Os fariseus túrgico, etc. A imagem que ficou do pu-
107
enfatizavam a absoluta obediência à lei ritanismo foi a de pessoas extremamente Ver J. I. Packer,
Entre os gigantes de
divina, mas, com o passar do tempo, com introspectivas, distanciadas da graça de Deus, pp. 7-8.

as novas gerações de fariseus que foram Deus e sem qualquer apelo para a socie-
chegando, as coisas começaram a mudar, dade secular. Essa imagem não poderia
e os fariseus passaram a ser muito seleti- estar mais distanciada do movimento pu-
vos em seus atos de purificação. Eles se ritano original.
tornaram mestres da interpretação das
tradições orais dos rabis. Nesse ponto, a Outra manifestação que se tornou extre-
tradição começou a falar mais alto, a Es- mada no protestantismo foi o liberalismo
critura foi deixada de lado e os fariseus teológico. Isso aconteceu principalmente
deixaram de influenciar positivamente o durante os séculos 18 e 19, quando o al-
seu mundo. Eles se tornaram radicais na vorecer da ciência rejeitou os conceitos
manutenção do status quo do seu siste- dogmáticos medievais da religião e esta-
ma. beleceu novos pressupostos para o estu-
do da natureza, sustentando a evolução e
Um exemplo protestante que nos mos- negando a existência dos acontecimentos
tra como um bom movimento pode se sobrenaturais. O liberalismo teológico foi
tornar extremista é o Puritanismo. No o modo como os teólogos se adaptaram
século 16, os puritanos lutaram pela pu- aos novos tempos, procurando transmitir
reza da igreja e da doutrina, sendo real- a mensagem cristã para o mundo moder-
mente gigantes espirituais de sua época. no. O objetivo inicial deles era manter o
J. I. Packer diz que eles foram crentes que Cristianismo relevante para a sociedade
viveram suas vidas com simplicidade, moderna. Entendendo que, somente com

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 1) 104

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a negação dos pressupostos sobrenatura- e extravagâncias”108. Foi desse modo que
listas se poderia manter a mensagem cris- o termo fundamentalista começou a ter
tã, esses teólogos procuraram aplicar o conotação de intransigência, intolerância
método científico ao estudo das Escritu- e anti-intelectualismo. Esse foi mais um
ras. Esse método ficou conhecido como movimento que deixou de ter relevância
“crítica radical”. O título faz jus, porque para a sociedade. Porém, é importante
pouca coisa da Escritura permaneceu esclarecer que o mundo liberal e o neoli-
considerada como autêntica nesse perí- beral tacham de fundamentalista a todos
odo. A crítica radical destroçou a Bíblia, aqueles que se negam a concordar com
deixando apenas um conjunto de regras suas ideias e ideais. Mas é preciso disso-
éticas e morais, absolutamente esvazia- ciar o fundamentalismo, que se tornou
das do impacto original do Cristianismo pejorativo, da ortodoxia teológica. Em-
e totalmente irrelevantes para a sociedade bora muitos conservadores ou ortodoxos
moderna. Basta ver que, em todo o mun- possam se aproximar do fundamentalis-
do, as igrejas influenciadas pelo liberalis- mo, o fato é que ser conservador não sig-
mo estão vazias. nifica necessariamente ser contrário aos
avanços da ciência, nem ser intolerante
108
John Stott, A verdade do
Outra manifestação extremista protes- e intransigente com aqueles que pensam
evangelho, p. 18. tante foi justamente a reação a esse libera- diferente. Ser conservador significa man-
lismo. No século 19, com o crescimento ter aqueles fundamentos sem os quais o
do liberalismo teológico radical entre as Cristianismo deixa de existir. Por exem-
principais denominações históricas dos plo, a fé na autoridade da Escritura. Sem
Estados Unidos, teólogos conservadores essa convicção, o Cristianismo deixa de
se coligaram para defender a fé cristã dian- ser importante, pois já não tem uma base
te dos ataques do liberalismo nos seminá- de fundamentação. Muitos cristãos, de
rios e nas igrejas. Assim, de 1910 a 1915, inclinação liberal ou neo-ortodoxa, acre-
numa série de artigos em doze volumes, ditam que podem deixar a Bíblia de lado
instituídos “Os Fundamentos”, os pontos e, ainda assim, construir um Cristianis-
fundamentais da fé cristã foram expostos mo valioso para a sociedade moderna,
e defendidos, e o modernismo foi ataca- mas isso é uma falácia. O Cristianismo só
do em seus pressupostos fundamentais. existe por causa da Bíblia. Toda a base do
Por causa disso, as pessoas que advoga- ensinamento cristão depende das infor-
ram esse movimento ficaram conhecidas mações que estão na Bíblia. Se ela é de-
como “fundamentalistas”. Posteriormen- sacreditada ou deixada de lado, o Cristia-
te, os fundamentalistas começaram a fun- nismo desaba. Não dá para construir uma
dar novas denominações e seminários e verdade sobre uma mentira. Um Cristia-
foram se associando ao “dispensacionalis- nismo puramente moralista e social, que
mo” teológico, afastando-se das questões seleciona porções da Bíblia, não é, em
sociais e se tornando extremamente sec- hipótese alguma, Cristianismo. É apenas
taristas. Como disse Stott, “aos poucos, uma pálida imitação de outras religiões.
o fundamentalismo foi se associando, na Esse Cristianismo não faz falta alguma
mente das pessoas, a certos extremismos ao mundo, como também não faz falta o

105 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Cristianismo puritano ou fundamentalis- Geralmente, o legalismo é uma espécie
ta extremado. de apego desmesurado à forma da lei,
dissociada de seus significados interiores.
OS EXTREMOS DA LEI É frequentemente usado em benefício
próprio. Para o legalismo o “faça isso” e
Uma das formas mais explícitas de ex- o “não faça aquilo” tornam-se a excelên-
tremismo, que se vê na igreja brasileira cia da vida e da fidelidade. É impressio-
hoje, é o movimento legalista. O legalis- nante como o legalismo geralmente se
mo dentro do Cristianismo assume vá- detém em coisas secundárias. Elementos
rias faces, existindo nas seitas, nas igrejas de pouca ou nenhuma importância as-
históricas e nas igrejas carismáticas. Para sumem status de “estrelas principais” de
o legalista, o que importa é obedecer a certa comunidade. Assim, questões como
certas leis, sem se importar com questões certas roupas, alimentos e rituais acabam
como o que se passa no coração. Os fa- sendo os testes da ortodoxia.
riseus eram bastante legalistas nesse sen-
tido. Para eles, o que importava era obe- A profetisa sabatista Ellen G. White
decer, formal e externamente, ao que a lei (1827-1915) começou suas pregações
ou a tradição ditava. No caso do sábado, sobre o sábado após ter recebido uma vi-
por exemplo, os fariseus conseguiam se são de Deus, em que ela via os Dez Man-
manter em paz com a sua consciência, damentos e havia um destaque especial
ao mesmo tempo em que contornavam o em relação ao quarto mandamento. É
mandamento. Eles não podiam fazer mais interessante que, quando perguntaram a
do que a “jornada de um sábado” que Jesus qual era o principal mandamento,
consistia de certa distância determinada. ele não disse que era o quarto (Mc 12.28-
Porém, se eles quisessem ir mais longe, 31). O que é mais nocivo no legalismo é
então no dia anterior deixavam algum que existe a tendência de obrigar outras
objeto pessoal em determinado lugar, e pessoas a se submeterem ao que está sen-
no sábado poderiam ir até o lugar onde do convencionado. A história da igreja
estava o objeto e mais a jornada de um sá- demonstra que o ser humano nunca se sa-
bado, pois eles consideravam aquele lugar tisfez em confiar somente na graça para a
uma “residência” deles. salvação, e por isso sempre tentou arran-
jar meios para dar uma “ajudinha” a Deus.
Em outras situações, os fariseus costuma-
vam acrescentar legislação à lei divina. A Quando as pessoas dizem que a salva-
questão sobre comer sem lavar as mãos, ção é pela graça mediante a fé, mas co-
que gerou uma discussão entre Jesus e os meçam a colocar ênfase exagerada em
fariseus, era um exemplo disso. Para eles, tipos especiais de batismo, de vestuário,
o elemento introduzido na lei pela tradi- de alimentos ou de rituais, a graça é logo
ção se tornou tão importante que os le- submergida. Será que Deus está preocu-
vou a repreender Jesus por não obedecer pado com o nosso vestuário? Num aspec-
a ele (Mt 15.1,2). to sim, porque Deus não deseja que seus
filhos utilizem roupas que ofendam seus

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 1) 106

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próprios corpos. Mas, será que Deus está minar, porque não lhe entra no coração,
preocupado até com o corte da roupa que mas no ventre, e sai para lugar escuso? E,
usamos? Quando surgiu o movimento assim, considerou ele puros todos os ali-
pentecostal, colocava-se muita ênfase no mentos” (Mc 7.18,19). Claro que ainda
fato de que as mulheres não podiam usar permanece a contraindicação da glutona-
calças compridas. Hoje, poucas igrejas ria (Gl 5.21).
ainda seguem esse princípio, e ao deixa-
rem de fazer isso reconheceram que esta- Com relação à guarda do sábado, entra-
vam erradas. Não obstante, isso foi afir- mos num assunto um pouco mais com-
mado durante toda uma geração e muitas plexo. O sábado é o quarto mandamento
mulheres viveram toda a vida sob esse pe- de Israel. Os mandamentos da lei moral
sado jugo desnecessário. Esse costume se de Deus valem para sempre, muito em-
baseava numa interpretação equivocada bora não tenham poder de salvação, pois
de uma passagem bíblica (Dt 22.5). não foram propostos para isso. Mas en-
tão será que, como dizem os sabatistas,
A questão sobre não cortar os cabelos a igreja mudou a lei de Deus ao estabe-
foi outra distorção de uma passagem em lecer o domingo no lugar do sábado?
que Paulo diz, mais uma vez dentro do Nossa resposta é que, se alguém fez isso
contexto de sua própria época, que cabe- foram os próprios apóstolos, seguindo a
lo comprido é mais digno para a mulher orientação de Jesus. Mas não é que a lei
(1Co 11.14,15). Porém, Paulo não proi- foi mudada, pois o princípio do “Seis dias
biu a mulher de cortar os cabelos. trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o
sétimo dia é o sábado do SENHOR” (Êx
A proibição de certos alimentos também 20.9,10), não é mudado com a guarda do
fazia parte das leis judaicas. O judeu não domingo, pois continua sendo um dia
podia comer carne de porco, nem be- de descanso e seis de trabalho. A Igreja
ber sangue, nem comer diversos tipos Primitiva entendeu que o domingo era o
de peixe e pássaro. Só podia haver duas dia do Senhor por causa da ressurreição
razões para essas proibições no Antigo de Cristo, que aconteceu no “primeiro
Testamento. A primeira talvez fosse por dia da semana” ( Jo 20.1). É interessante
questões de higiene. E a segunda, e mais que, depois da ressurreição, o apareci-
provável, por questão de separação, ou mento seguinte de Jesus aos discípulos
seja, diferenciação em relação a outros aconteceu novamente no “primeiro dia
povos que comiam esses alimentos. Deus da semana” ( Jo 20.26). O sábado recebe
desejava um povo separado e diferente. grande atenção no Antigo Testamento,
Mas nada disso continua tendo valor no mas não há nenhuma ordem no Novo
Novo Testamento, quando a igreja já não Testamento para os cristãos guardarem o
é nacional, mas internacional. O próprio sábado e nem qualquer descrição de que
Jesus fez questão de dizer que todos os eles estejam fazendo isso. No entanto, os
alimentos estavam liberados. Ele disse: cultos e cerimônias cristãs acontecem no
“Não compreendeis que tudo o que de “primeiro dia da semana”, quando há a
fora entra no homem não o pode conta- pregação, é servida a Santa Ceia e é feito

107 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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até o levantamento de ofertas (At 20.7; CONCLUSÃO
1Co 16.1,2). Portanto, há suficiente base
para dizer que o domingo foi sendo esta- Ser atraído para os extremos está na pró-
belecido gradualmente a partir do Novo pria essência pecaminosa do ser humano.
Testamento como o dia do Senhor. Ain- O equilíbrio é uma das coisas mais difí-
da é preciso dizer que o cristão não deve ceis de alcançar. Em todos os níveis da so-
guardar o domingo com o sentimento de ciedade, da política às artes, da teologia à
legalismo com que os fariseus guardavam ciência, as pessoas se polarizam em extre-
o sábado. Jesus disse a eles: “O sábado mos de conservadorismo ou liberalismo.
foi estabelecido por causa do homem, e ‘Nem oito nem oitenta’, diz a sabedoria
não o homem por causa do sábado” (Mc popular, mas os extremos atraem muito
2.27). O dia de descanso não é um dia de mais do que estamos dispostos a conce-
escravidão e sim de gozo e alegria na pre- der.
sença do Senhor.

Anotações

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 1) 108

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17
O PERIGO DO RADICALISMO
(PARTE 2)

Ef 4.15

INTRODUÇÃO reformada, com sua ênfase na justificação


pela fé, independente das obras, trouxe
Continuando as considerações a respeito como efeito colateral o antinomianismo.
das posições extremadas que são adota- Alguns raciocinam: já que a salvação é
das por muitos cristãos apresentadas mui- só pela fé, então as obras são totalmente
tas vezes como o verdadeiro cristianismo, desnecessárias; o que importa é em que
falaremos agora do antinomianismo, dos alguém creia e não como vive. Assim, um
extremismos litúrgicos e do culto à per- cristão teria uma espécie de “licença para
sonalidade. Esses três aspectos podem ser pecar”, pois, como está debaixo da graça
encontrados nas mais variadas denomi- não está debaixo da lei.
nações evangélicas e têm sido uma marca
das igrejas na pós-modernidade. É evidente que aqueles que sustentam
essa visão jamais entenderam realmente a
O ANTINOMIANISMO teologia reformada.

A posição antinomianista é o extremo John MacArthur Jr., o campeão da cruza-


oposto do legalismo. Essa posição é bem da evangélica contra o antinomianismo,
mais pós-moderna do que as que a pre- tem observado acertadamente que mui-
cederam. Pois, se por um lado alguns se tos modos de apresentação do evangelho
apegam muito às questões legais, outros hoje oferecem uma falsa esperança para
fogem completamente delas. Os antino- as pessoas: a de que serão salvas sem mu-
mianos rejeitam a submissão a qualquer dança de vida. Há um ensino equivocado
lei ou prática, sustentando que o Cris- de que alguém que aceitou a Cristo como
tianismo é algo essencialmente interior, Salvador não precisa aceitá-lo como Se-
sem qualquer necessidade de observân- nhor. Nesse modo de ver, com a conver-
cia externa. De certo modo, a teologia são não há necessidade de se abandonar o

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 2) 109

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pecado, nem de uma resultante mudança Para o primeiro, obedecer à lei é essen-
de estilo de vida, nem de se assumir um cialmente necessário para a salvação; para
compromisso, nem mesmo a disposição o último, a lei é algo totalmente descar-
em se submeter ao senhorio de Cristo tável. Antes de sua conversão, o apóstolo
é necessária; pois essas coisas, segundo Paulo foi um legalista e depois se tornou
esses pregadores, equivaleriam a obras um dos grandes responsáveis pela formu-
humanas, as quais corrompem a graça lação da doutrina da justificação pela fé,
e nada têm a ver com a fé109. Essa apre- mas não se tornou um antinomiano após
sentação do evangelho é apenas mais um o encontro com Jesus. O encontro com o
modo de corromper a Escritura. Poucas Cristo ressuscitado no caminho de Da-
coisas na Escritura são tão claras quanto a masco deixou muito claro para Paulo que
necessidade de mudança de vida e santifi- o caminho de Deus é o caminho da graça
cação para o cristão. e não o caminho da lei, mas isso não sig-
nifica que a lei seja algo que possa ser des-
Ainda deve ser lembrado que os antino- cartado. A partir daí, Paulo entendeu qual
mianos, às vezes, são bastante espiritua- é o verdadeiro sentido da lei. A lei não é
listas. Não raro, sob a pretensa revelação algo que está necessariamente contra a
109
John MacArthur,
de algum princípio superior espiritual, graça. No propósito de Deus, a lei é um
O evangelho segundo
Jesus, p. 24. É interes-
abrem mão de certos mandamentos. aspecto da graça. Ela só se torna um em-
sante que MacArthur, Muitos cristãos dizem ser orientados pelo pecilho para a graça quando as pessoas
um dispensacionalis-
ta, veja isso como um Espírito Santo para fazer certas coisas fazem um mau uso dela, como era o caso
problema inerente ao
próprio dispensacio- que são contrárias à Palavra de Deus. É dos fariseus e do próprio Paulo antes de
nalismo em sua visão
dicotômica entre lei e interessante como o mesmo Espírito que se encontrar com o Senhor. Paulo enten-
graça (pp. 25-30).
inspirou as Escrituras possa desmenti-las deu que a lei não pretende ser o meio de
110
J. I. Packer, Vocá-
bulos de Deus, p. 94.
num novo “processo de inspiração”. Tan- salvação; antes, é um aspecto da aliança
to o legalismo quanto o antinomianismo da graça (Gl 5.4, 5). A lei tem o seu pa-
se baseiam em falsos entendimentos a pel dentro da aliança, não como modo de
respeito da lei de Deus. Packer escreveu: salvação, mas como maneira de Deus de-
monstrar ao homem o seu caráter e a sua
“Embora o legalismo e o antinomianis- vontade. Assim, a lei não compete com a
mo, segundo certo ponto de vista, sejam graça, antes faz parte dela. A lei é um po-
pólos opostos de erro, há, na teologia, e deroso instrumento da graça para trazer
frequentemente na experiência, um elo a convicção de pecados que é necessária
entre eles: ambos procedem da mesma para a verdadeira conversão. E, a lei é um
falha suposição de que o único propósito instrumento apropriado para o desenvol-
da observância da lei é obter justiça dian- vimento da salvação, pois ela revela a von-
te de Deus. Assim sendo, o legalista se tade de Deus. Segundo Paulo, o problema
ocupa em estabelecer sua própria justiça, não estava em alguma falha ou inconsis-
ao passo que o antinomiano, regozijando- tência da lei do Antigo Testamento, mas
nas pessoas, que desejavam estabelecer
se no dom gratuito da justificação pela fé,
sua própria justiça e não aceitavam a jus-
não vê razão alguma para guardar a lei.”110
tiça que vem de Deus (Rm 10.3). Desse

110 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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modo, deixavam aparecer o velho orgu- da assim, são os únicos aceitos por muitos
lho humano que deseja fazer as coisas por cristãos. Um dos instrumentos mais dis-
si mesmo111. Esse orgulho aparece tanto cutidos é a bateria. Alguns fizeram desse
no legalismo quanto no antinomianismo. barulhento instrumento um verdadeiro
cavalo de batalha. Porém, quando lemos
É interessante como Paulo se via por um o Antigo Testamento, lá estão diversos
lado sem lei e por outro debaixo da lei. instrumentos musicais que eram tão ba-
Ele escreveu aos coríntios: “Procedi, para rulhentos quanto a bateria moderna, e
com os judeus, como judeu, a fim de ganhar alguns até bem semelhantes.
os judeus; para os que vivem sob o regime
da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para Para alguns, bater palmas durante uma
ganhar os que vivem debaixo da lei, embo- música no culto é algo que cheira a fogo e
ra não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, enxofre. Muitas igrejas não seguem qual-
como se eu mesmo o fosse, não estando sem quer prescrição litúrgica (embora isso
lei para com Deus, mas debaixo da lei de mesmo o seja); são totalmente abertas e
Cristo, para ganhar os que vivem fora do re- dizem seguir a “direção do Espírito”. Em
gime da lei.” (1Co 9.20,21; grifos meus). alguns cultos, as pessoas dançam freneti-
Paulo entendia que não devia obediência camente e pulam como se estivessem em 111
John Stott, Roma-
à Lei como os judeus pensavam, como se shows de rock. Aliás, há shows de rock nos, p. 340..
112
dependesse disso a sua salvação. Por ou- em muitas igrejas com pouca ou nenhu- Para um estudo
mais específico sobre
tro lado, também não vivia como os gen- ma diferença em relação aos shows mun- liturgia ver: Leandro
Lima, Razão da espe-
tios que desconheciam a Lei. Assim, des- danos, exceto talvez a letra das músicas, rança, pp. 511-542

cartar a lei ou enfatizar exageradamente a que de qualquer modo não são ouvidas
lei é distorcer fundamentalmente o senti- mesmo. Em outros cultos, as pessoas ro-
do da lei. dopiam como se estivessem em centros
de macumba. Gritos, choro, riso descon-
EXTREMISMO LITÚRGICO trolado, e todo o tipo de excessos podem
ser vistos e são tidos como “evidências”
Liturgia é uma área que tem também da manifestação do Espírito. Aqueles que
dado margem para muitos extremismos. defendem uma liturgia “fechada” acusam
Qual é o tipo de culto que agrada a Deus? acertadamente os “abertos” de promover
Temos visto respostas bastante variadas baderna em vez de culto. Os “abertos”
para essa pergunta. Um dos pontos crí- acusam os “fechados”, muitas vezes tam-
ticos é o uso de instrumentos musicais. bém acertadamente, de não dar liberdade
Alguns dizem que nenhum instrumento para o Espírito Santo. Este não é o lugar
musical deve ser usado e somente os sal- apropriado para discutir todos os aspec-
mos podem ser cantados à capela. Para tos e implicações litúrgicas112, mas o que
outros, o órgão ou o piano são os únicos percebemos é que, muitas vezes, tudo é
instrumentos que podem ser utilizados questão de gosto pessoal e de compor-
na igreja. Esses instrumentos não exis- tamentos extremistas. Aqueles que de-
tiam nos tempos bíblicos, mas fizeram fendem uma liturgia extremamente tra-
muito sucesso na época dos cabarés; ain- dicional julgam de pragmático tudo que

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 2) 111

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seja inovação; mas, talvez estejam apenas Devemos nos guiar pela Escritura. O
querendo manter o que está em confor- que fere a Escritura deve ser evitado. O
midade com seu gosto pessoal, tanto que não está claramente revelado deve
quanto aqueles que desejam introduzir ser analisado à luz dos princípios gerais
novidades. da Escritura e à luz do mandamento do
amor. Quando nos guiamos pelo que
Duas coisas precisam ser consideradas está revelado, aplicando com amor, não
para se evitar os extremos litúrgicos: a caímos em extremismos litúrgicos, ou
revelação bíblica e o amor. Divergências em qualquer outra forma de extremis-
sempre surgirão, enquanto gostos pesso- mo. Desse modo, em questões que não
ais estiverem envolvidos, e muitas vezes são essenciais, que não estão explícitas
é difícil identificar quando nós mesmos na Bíblia, que não envolvem a majestade
estamos querendo ser bíblicos ou apenas de Deus ou o próprio caráter do cristão,
defendendo as nossas preferências pesso- como Calvino sugere, não precisamos ser
ais. Por isso, esse duplo critério se faz ne- excessivamente rígidos. Mas, por outro
cessário. Calvino entendia as coisas desse lado, não devemos admitir os excessos
modo, pois escreveu: que fazem o culto divino virar uma ba-
113 derna, pois como disse Paulo, tudo deve
João Calvino, As Institu- “Como o Senhor na Escritura tem reunido ser feito “com decência e ordem” (1Co
tas, 4.10.30.
fielmente, e tem declarado plenamente
todo o conjunto da verdadeira justiça e de 14.40).
seu culto divino, e todo o necessário para
a salvação, com respeito a essas coisas, CULTO À PERSONALIDADE
somente ele é o Mestre a quem se deve
escutar. Mas, como ele não quis prescrev-
er em particular o que devemos seguir na Os movimentos extremistas, geralmente,
disciplina e nas cerimônias – porque sabia existem em decorrência da pregação ou
muito bem que isto depende da condição do testemunho de seus líderes. A figura
dos tempos, e que uma só forma não con-
vém a todos – é preciso acolhermos aqui de Osama Bin Ladem nos ajudou a enten-
as regras gerais que ele deu, para que, der muito bem como isso funciona. Seus
em conformidade com elas, se regule e seguidores sempre estiveram dispostos a
ordene tudo quanto exigir a necessidade
da igreja, no tocante à ordem e ao decoro.
morrer por ele. Toda seita tem um funda-
Finalmente, como não deixou expressa dor que é o grande “iluminado”. Quando
nenhuma coisa, por não se tratar de algo um homem (ou mulher) se apresenta
necessário para nossa salvação, e porque diante dos outros como portador de uma
devem se adaptar diversamente para edi-
ficação da igreja conforme os costumes mensagem divina, como revestido de au-
de cada nação, convém, segundo exigir toridade e poder celestes, as pessoas aca-
a utilidade da igreja, mudar e abolir as bam seguindo-o como se fosse o próprio
passadas, e ordenar outras novas. Admi-
to que não devemos nos apressar a fazer
Deus.
mudanças temerariamente a cada passo e
sem motivo sério. O amor decidirá per- Esse culto à personalidade é um dos gran-
feitamente o que prejudica e o que edifica; des problemas da igreja evangélica em
se permitirmos que ele governe, tudo irá
bem.”113 todo o mundo, e a maior causa dos extre-
mismos. Quando a palavra do fundador

112 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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da igreja, do profeta ou de seu líder prin- como eram aquelas pessoas da cidade de
cipal concorre com a Escritura, abre-se a Beréia que ouviram o apóstolo Paulo, mas
porta para todo tipo de abusos. As pes- tiveram a “audácia” de confirmar se aque-
soas se deixam fascinar pelo suposto po- las palavras estavam realmente em con-
der espiritual de muitos líderes e seguem formidade com a Escritura (At 17.11).
seus ensinamentos sem questionamento Era simplesmente o apóstolo Paulo quem
algum. estava pregando ali, mas, ainda assim,
aquelas pessoas queriam ter certeza de
Na igreja evangélica brasileira, isso pode que a pregação era de fato bíblica.
ser visto de modo contundente. Os evan-
gélicos pregam contra a idolatria e a ado- Em Colossos, Paulo enfrentou problemas
ração de imagens dos católicos, mas ido- com algumas pessoas que estavam reivin-
latram seus líderes, pregadores e cantores dicando para si uma autoridade espiritual
famosos. Antigamente, os líderes se con- e o direito de dizer o que os colossenses
tentavam em ser chamados de pastores, deveriam fazer ou deixar de fazer. Por
mas logo começaram a se autoproclamar isso, ele escreveu aos colossenses: “Nin-
“bispos”. Depois, alguns se autodeno- guém, pois, vos julgue por causa de comi-
minaram “apóstolos”. Agora há diversos da e bebida, ou dia de festa, ou lua nova,
pregadores que desejam ser chamados ou sábados” (Cl 2.16). Paulo fala dessas
de “apóstolos”, “patriarcas”. Qual será o pessoas como tendo “raciocínios falazes”
próximo título? Talvez “semideus”. Um (Cl 2.4), e como sendo portadoras de
problema, nesse sentido, é a televisão. uma filosofia cheia de vãs sutilezas, que
Obreiros desconhecidos se tornam famo- eram “segundo a tradição dos homens,
sos da noite para o dia, porque consegui- conforme os rudimentos do mundo e
ram comprar algum espaço na televisão. não segundo Cristo” (Cl 2.8). Os falsos
Quem são esses homens? Qual é o histó- mestres que ensinavam caminhos alter-
rico deles? Qual é o testemunho de vida? nativos para a iluminação espiritual aos
Muitas vezes nenhum. Mais do que nun- colossenses abusavam de seu suposto
ca, a igreja precisa lembrar do antigo avi- status espiritual. Paulo alertou os crentes:
so da Escritura: “Assim diz o SENHOR: “Ninguém se faça árbitro contra vós ou-
Maldito o homem que confia no homem, tros, pretextando humildade e culto dos
faz da carne mortal o seu braço e aparta o anjos, baseando-se em visões, enfatuado,
seu coração do SENHOR!” ( Jr 17.5). sem motivo algum, na sua mente carnal”
(Cl 2.18).
Os católicos têm na palavra do Papa a
solução final para todas as controvérsias, Todo cristão deve depositar sua confian-
mas os evangélicos tradicionais também ça plena apenas na Escritura. Nenhum
precisam tomar cuidado. Às vezes, o títu- homem, por mais confiável ou bem-in-
lo deste ou daquele teólogo ou o carisma tencionado que seja, pode ocupar o lugar
deste ou daquele pregador é o peso que de Deus na nossa vida. Por mais óbvio
faz a diferença na balança. Os cristãos que isso seja, a abundância de exemplos
devem ser um pouco mais desconfiados, negativos deve nos colocar em alerta.

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 2) 113

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CRISTIANISMO EQUILIBRADO E deve se preocupar em defender o direito
INFLUENTE das mulheres, mas não deve abandonar
os princípios que dão a verdadeira digni-
O verdadeiro Cristianismo não é extre- dade à mulher e o sustentáculo à família.
mista. Ele se guia por princípios absolu- Com relação ao homossexualismo, o cris-
tos, mas não torna esses princípios mais tão precisa ter uma posição bem definida.
radicais do que são. Para o cristão, a lei Não há como defender o homossexualis-
não é um instrumento aprisionador, mas mo de uma perspectiva bíblica, pois ele é
libertador. O cristão vê na lei de Deus um amplamente condenado pela Bíblia, ape-
poderoso recurso para desenvolver a sua sar de muitas igrejas aceitarem a prática.
santidade e o seu relacionamento com Porém, o cristão precisa lembrar que o
Deus. Ele entende que não pode simples- Juiz é Deus. Não cabe ao cristão fazer o
mente descartar a lei à custa de descar- papel de Deus. Nós precisamos demons-
tar a própria vontade de Deus. O cristão trar amor por todas as pessoas, pois to-
equilibrado olha para os absolutos, mas das foram feitas à imagem de Deus, por
também olha para as situações práticas da mais distorcida que essa imagem possa
vida e, então, busca a sabedoria de Deus se apresentar em muitos casos. Somente
114
D. M. Lloyd-Jones,
para aplicar os princípios absolutos às assim poderemos levar o amor redentor e
Discernindo os tempos, situações relativas da vida. Se ele se guia transformador de Deus também para es-
p. 162.
pelo amor, por outro lado o amor não o sas pessoas, coisa que as degenerações do
fará desrespeitar a Palavra de Deus, nem puritanismo, do liberalismo, do legalismo
cometer injustiça (1Co 13.6). O cristão e do antinomianismo não conseguem fa-
não pode sacrificar nem a verdade, nem zer.
o amor, antes deve “seguir a verdade em
amor” (Ef 4.15), pois, como Lloyd-Jones O equilíbrio só é mantido quando duas
comenta: “Não se pode amar verdadeira- coisas são consideradas conjuntamente:
mente, senão em termos da verdade”114. a justiça e a graça de Deus. Se olharmos
Esse é o caminho que a igreja deve seguir apenas para sua justiça, vamos proibir
nestes tempos pós-modernos que, apesar tudo de que não gostamos e condenar
de toda a pregação a respeito do amor e sem misericórdia tudo o que achamos
da tolerância, são cheios de extremismos que está errado. Se olharmos apenas para
e intolerância. a graça de Deus, é possível que ache-
mos ser preciso permitir qualquer coisa.
CONCLUSÃO Quando olhamos para a justiça e para a
graça, podemos chegar a um meio-termo
Diante dos extremismos que se levan- não pragmático, mas bíblico, e veremos
tam a toda a hora, quer sejam de caráter que certas coisas, realmente, são proibi-
conservador ou liberal, a igreja precisa se das, porque ofendem a Deus, e não há
manter equilibrada, apoiando-se firme- graça que possa remediar uma ofensa de-
mente no que a Escritura diz, mas tam- liberada à pessoa santa de Deus. Por ou-
bém sabendo aplicar isso com amor às si- tro lado, certas coisas não essenciais nem
tuações práticas da vida. O Cristianismo ofensivas poderão ser permitidas, com o

114 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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espírito de amor e moderação. Com esse E compadecei-vos de alguns que estão
mesmo espírito, poderemos admoestar na dúvida; salvai-os, arrebatando-os do
aqueles que se afastam do caminho reto, fogo” ( Jd 21-23). Com essa mesma pers-
sem a falsa superioridade de quem ima- pectiva, poderemos ser relevantes para
gina que nunca errou. Judas nos ensina a sociedade moderna, seja ela relativista
como fazer isso: “Guardai-vos no amor de ou fundamentalista, coisa que os cristãos,
Deus, esperando a misericórdia de nosso que se corromperam por essas mesmas
Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna. influências, há muito deixaram de ser.

Anotações

O PERIGO DO RADICALISMO (PARTE 2) 115

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18
BELEZA EFÊMERA

Pv 15.13

INTRODUÇÃO de que o mundo pós-moderno foge é da


padronização. Todos querem ser diferen-
‘Gosto não se discute’, diz a filosofia po- tes e exclusivos; assim, o belo precisa ser
pular. É preciso reconhecer que essa distinto. Mas sem perceber, muitas vezes
expressão parece apropriada diante de o inusitado se torna o padrão.
tanto relativismo estético da atualidade.
Uma das coisas mais difíceis, sem dúvi- O BELO E O BEM
da, é definir o que é o belo para o homem
115
Platão, Fédon,
p. 113
pós-moderno. As imensas variedades cul- Definir a essência do “belo” sempre foi
116
Platão,
turais e as misturas de conceitos, facilita- uma das principais preocupações da fi-
República, Livro 3. das pela comunicação global, nos deixam losofia. Os antigos filósofos gregos Pla-
com padrões de beleza contraditórios tão e Aristóteles formularam o ideal do
e esvaziados. Há, sem dúvida, um apelo homem “bom e belo”. Para Platão, o belo
ao assimétrico, ao inusitado, ao “chocan- tem a ver com o mundo das ideias. Ele
te” e ao rebelde. Antigamente, as pessoas afirmava que as representações mate-
procuravam usar roupas bem asseadas, riais do belo, ou seja, aquelas coisas que
com aparência de limpas e novas. Hoje, podiam ser vistas, somente eram belas
gastam muito dinheiro para comprar porque compartilhavam da beleza abso-
roupas rasgadas, com aparência de sujas luta, do “belo em si”115, que só existia no
e desalinhadas. Os penteados preferidos, mundo das ideias, e que tinha a ver com
antigamente, eram aqueles bem alinha- harmonia e simetria. Para Platão, a graça e
dos, do tipo, “nenhum fio fora do lugar”. a harmonia são irmãs gêmeas da bondade
Hoje, quanto mais aparência de desali- e da virtude. Para ele, havia uma ligação
nhado e rebelde melhor. Os padrões de íntima entre a falta de graça e de harmo-
beleza privilegiam liberdade de conceitos nia e a maldade116.
e apelam para o “diferente”. Se existe algo

116 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Aristóteles compartilhava dessa noção de lugar mais distante a cada dia. O belo foi
harmonia e simetria como representando redirecionado do céu para a terra. Nas
o belo117; porém, ele não via como algo obras de arte, o profano passou a concor-
do mundo das ideias, e sim como algo rer com o sagrado.
real que podia ser observado mediante
normas e critérios objetivos. Para Aristó- No Iluminismo, filósofos como Blaise
teles, a perfeição estava nas formas e não Pascal (1623-1662), David Hume e Em-
em algum ideal inalcançável. De qualquer manuel Kant foram, aos poucos, adap-
modo, para ambos os filósofos o belo es- tando o padrão do belo às circunstâncias
tava ligado ao bom e era algo absoluto. e subjetividades pessoais. Aos poucos, o
Por muito tempo, esse padrão a respeito verdadeiro padrão de beleza foi definido
do belo perdurou. Durante a Idade Mé- como totalmente subjetivo. A beleza pas-
dia, as obras de arte de um modo geral de- sou a ser considerada aquilo que está na
monstravam isso. O belo tinha a ver com mente das pessoas, bem como em seus
o divino, com o transcendente, enquanto sentimentos e emoções. A beleza já não
o feio tinha a ver com o pecado, com o era mais um padrão objetivo, não existin-
diabo e o mal. Os padrões de beleza eram do, portanto, o belo em si; antes, ele es-
117
absolutos, pois o belo era objetivo e bom; taria na mente de quem observa, e cada Aristóteles,
Metafísica, XIII, 3.
do mesmo modo o feio era objetivo, mas mente observa de modo diferente. Des- 118
AFrancis Schaef-
mau. Seguindo os antigos filósofos Platão se modo, o conceito de beleza passou a fer, A morte da razão,
p. 25.
e Aristóteles, para a arte, antes do Renas- ser determinado pela sociedade. A bele-
cimento, o belo tinha um conceito ineren- za está nos olhos de quem a contempla, 119
David Hume, O
cético, p. 216.
te de proporção, equilíbrio e harmonia, e como os sabores estão na língua e as cores
o feio era o desproporcional. Influenciada nos olhos. A beleza depende da “paixão”
também por Pitágoras (c.571-496 a.C.), a que está dentro do homem que observa
arte buscava o belo mediante proporções alguma coisa119.
matemáticas.
Desse modo, a arte renascentista que ex-
BELEZA SUBJETIVA pressava a natureza em termos mais rea-
lísticos passou, a partir do Iluminismo,
Com o Renascimento, uma grande revi- a seguir um padrão subjetivo a respeito
ravolta de conceitos atingiu a arte; desa- do belo. A natureza não foi mais descrita
pareceu o interesse pelo celestial e surgiu objetivamente, mas de acordo com um
o interesse pelo terreno. Assim, a arte dei- “ideal” que está na mente do pintor. Tudo
xou de retratar o ideal celeste e passou a o que havia sido condenado nos tempos
retratar a natureza. Schaeffer diz que “ao clássicos começou a ser valorizado. As
longo de todo o Renascimento, desde o formas grotescas, informes, estranhas,
tempo de Dante até Leonardo da Vinci, bizarras, desproporcionais passaram a
a natureza foi gradativamente se tornan- ter valores estéticos. Assim, cada nova
do mais e mais autônoma”118. Os temas geração de artistas foi abandonando a si-
religiosos foram perdendo a força entre metria e a harmonia clássicas, buscando
os artistas, pois o céu foi se tornando um inovadoras formas cada vez mais subjeti-

BELEZA EFÊMERA 117

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vas de arte, até aparecerem formas total- Expressões de arte moderna como “pop
mente subjetivas, como o Dadaísmo e o arte”, “op arte”, “new data”, “minimalis-
Surrealismo do fim do período Moderno. mo”, “neoconcretismo”, “arte conceptual”,
“hapenning”, “performance”, “land art”,
Pintores como Van Gogh (1853-1890), etc., são apenas demonstrações de que o
Gauguin (1848-1903), Cézanne (1839- absurdo e o ridículo podem ser arte, ou
1906), Picasso (1881-1973) e Mondrian numa definição mais pós-modernista, “o
(1872-1944) demonstram bem clara- belo virou feio, e o feio virou belo, ou ne-
mente a evolução dessa visão a respeito nhuma dessas coisas”.
do belo e do conceito de arte. Cada um
deles representa um degrau descenden- O mais impressionante é que todas essas
te nessa escala de mistura de conceitos e formas de arte são consideradas “moder-
de nebulosidade a respeito do bom e do nas”. O que seria então arte pós-moder-
120
Francis Schaeffer belo120. na? Não é difícil imaginar; é só acrescen-
demonstra isso
sublimemente em tar uma porção gigantesca de confusão
seu livro O Deus que
intervém, pp. 51-58.
Na “evolução” da arte, o bom e o belo e irracionalismo ao Dadaísmo, ao Surre-
121 se tornaram totalmente relativos. O Da- alismo, e às demais expressões listadas
Jorge Coli, O que
é arte, p. 65 daísmo é uma filosofia a respeito da arte acima, batê-las no liquidificador, e chega-
122
Marco de Araújo, que sublima o acaso. O próprio nome mos à arte pós-moderna. No mundo pós-
“Breve paralelo
entre arte moderna foi escolhido ao acaso, quando alguém -moderno, o conceito de estética perdeu
e pós-moderna”,
Revista Centro de
apontou o dedo num dicionário francês os critérios-chave do período moderno,
Educação, Edição
2001, Vol. 26, no 1
e caiu sobre a palavra “dada” que significa pois já não é preciso ser original, inova-
disponível em http:// “cavalinho de balanço”. Assim, o nome da dor, como foi no tempo das vanguardas;
www.ufsm.br/ce/re-
vista/revce/2001/01/ escola de arte foi escolhido. No dadaísmo agora o que importa é ser “desorganiza-
a2.htm
não há compromisso algum com simetria do” e pluralista. O pluralismo do mundo
ou lógica. Tudo é feito ao acaso e o absur- pós-moderno se expressa perfeitamente
do é o ideal. A arte virou um conceito e na arte dos artistas que conseguem mis-
não um estado. Assim, um aparelho sani- turar conceitos antigos e modernos, das
tário igual ao que se usa nos banheiros do mais variadas escolas, formando um con-
mundo todo, numa exposição dadaísta do ceito híbrido de arte122.
artista francês Duchamp (1887-1968), é
uma obra de arte, porque “o em si da obra ARTE MAIS REALISTA DO QUE SE PODE
de arte, ao qual nos referimos, não é uma VER
imanência, é uma projeção. Somos nós
que enunciamos o em si da arte, aquilo A arte contemporânea pretende ser tudo
que nos objetos é, para nós, arte”121. menos realista. O Realismo, enquanto
escola de arte, foi uma expressão do sé-
O Surrealismo, influenciado por Freud, culo 19, reacionária ao romantismo, que
pretendia ver nas telas o inconsciente, procurava expressar de maneira “neutra”
libertando-se da lógica e da razão, indo a realidade que se vê aos olhos do pintor.
além do que a consciência consegue Tratava de temas do cotidiano de manei-
produzir, mergulhando no irracional. ra simples e crua. A arte moderna, e con-

118 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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sequentemente a pós-moderna, fogem modo, realmente representam o mundo
desse tipo de representação da realidade. decaído com todas as suas distorções e
Porém, de certo modo, esse tipo de arte é confusões, muito mais do que o concei-
ainda mais realista, pois mostra a verda- to clássico demonstrava. Isso é coerente,
deira realidade do ser humano decaído. A pois o conceito clássico tinha como ob-
partir da Renascença, os pincéis pararam jetivo o bem supremo, ou seja, o céu, en-
de retratar as coisas da perspectiva celes- quanto a arte pós-iluminista, como tudo
tial e se fixaram na representação da natu- o mais, aponta para a terra.
reza e da humanidade. Em nossa opinião,
isso foi perfeitamente alcançado, muito MUDANÇA INTERNACIONAL
mais do que os artistas renascentistas e
iluministas pretendiam. A arte conseguiu Paulo declarou que a distorção dos con-
realmente retratar o ser humano. Como ceitos está na própria essência pecamino-
diz Francis Schaeffer, “grande parte da sa do ser humano e disse que o homem se
arte contemporânea, enquanto expres- esforça para “deter a verdade pela injusti-
123
são própria do que o homem é, é horro- ça” (Rm 1.18). Em todas essas distorções, Francis Schaef-
fer, A morte da razão,
rosa”123. O estilo confuso, e muitas vezes que vão do culto verdadeiro à idolatria, p. 71.
124
ridículo, desse tipo de arte conseguiu re- em todas as manifestações, da filosofia Francis Schaef-
fer, O Deus que
fletir, talvez meio sem querer, a confusão às artes, Paulo resume a atitude huma- intervém, p. 61.

mental e espiritual do homem decaído. na com as “realistas” palavras: “[eles] se


Toda a feiúra expressa em tantas obras de tornaram nulos em seus próprios raciocí-
arte é realmente uma expressão do inte- nios, obscurecendo-se-lhes o coração in-
rior do ser humano alienado de Deus. sensato. Inculcando-se por sábios, torna-
ram-se loucos” (Rm 1.21,22). A loucura
Schaeffer está certo ao dizer que devemos interior de homens alienados de Deus se
levar esses homens a sério, pois realmen- expressa perfeitamente em ensaios filosó-
te refletiram em suas telas o desespero de ficos, obras de arte, religiões humanistas
suas existências: e/ou místicas, e em todos os empreendi-
mentos que o ser humano faz para se sen-
“Ousaríamos nos sentir superiores, quan- tir algo que nem mesmo sabe o que é. É o
do observamos estas expressões de almas
torturadas em forma de arte? Os cristãos eterno esforço de dizer que o feio é belo.
deveriam parar de rir e passar a levar es-
sas pessoas mais a sério. Somente então Essa foi a mensagem que a serpente, em
teremos conquistado o direito de dirigir a sua sagacidade, tentou passar à mulher
palavra à nossa geração novamente. Es- ainda no Éden. Após convencê-la de que
sas pessoas estão morrendo enquanto vi-
algo muito bom estava por trás daquele
vem.”124
fruto proibido, os olhos da mulher viram
uma beleza que antes não estava lá, con-
Eles conseguiram refletir isso realistica-
forme o autor sagrado relata: “Vendo a
mente em seus quadros subjetivos, ne- mulher que a árvore era boa para se co-
bulosos e provocativamente confusos. As mer, agradável aos olhos e árvore desejá-
distorções que aparecem na arte, de certo vel para dar entendimento, tomou-lhe do

BELEZA EFÊMERA 119

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fruto e comeu e deu também ao marido, e gação. É o esforço humano para negar
ele comeu” (Gn 3.6). Isso nos ajuda a en- a objetividade dos conceitos que estão
tender o que é o pecado. É enxergar a fal- acima dele. O conceito do belo e do feio
sa beleza. É fazer o feio se passar por belo. realmente não mudou. Todas as pessoas
É por isso que o pecado aparece como continuam sabendo exatamente o que
atraente ao ser humano. Ele é a corrupção é bonito e o que é feio. Se elas, às vezes,
do bem. Assim, não existe o feio absoluto, adotam o feio como se fosse bonito é por
como não existe o mal absoluto. O feio se questões ideológicas. Assim, os jovens
alimenta do belo, como o mal se alimen- usam calças rasgadas e roupas desalinha-
ta do bem. O pecado é o feio. Ele é ainda das, mas não fazem isso, necessariamen-
mais horroroso porque quer se fazer pas- te, porque acham bonito, antes fazem por
sar por belo. Satanás é feio, terrivelmente causa da mensagem que estão querendo
feio, mas costuma se apresentar disfar- passar, ainda que, muitas vezes, alguns
çado como “anjo de luz” (2Co 11.14). nem saibam qual é a mensagem, pois
Seu modo de trabalhar é levar até o alto só estão fazendo isso porque outros es-
do monte, mostrar a falsa formosura dos tão fazendo. Ainda assim, estão seguin-
reinos do mundo e oferecê-la em troca de do uma ideologia. Nisso se incluem as
adoração (Mt 4.8,9). perfurações, os piercings, as tatuagens e
todo tipo de modismos a que as pessoas
Schaeffer está certo, ao dizer que deve- se submetem em busca de aceitação e de
mos nos compadecer de tantas almas identificação social.
torturadas que expressaram em seus qua-
dros a nebulosidade da existência huma- Isso é demonstrado ainda mais claramen-
na alienada de Deus. Mas talvez Schaeffer te porque, na prática, as pessoas continu-
credite mais “esforço” a esses artistas do am buscando padrões de beleza aceitos
que eles mereçam. Parece que as mudan- pela maioria. A mídia, por exemplo, tem
ças de conceito a respeito do “belo” são propagado um modelo físico “perfeito”
bem mais intencionais do que a imagem para as pessoas, exibindo pessoas lindas,
que é passada. O mundo pós-iluminista que parecem muito felizes e sem nenhu-
quis acabar com a “verdade de Deus” ma imperfeição. Esses modelos de con-
e com os absolutos. E fez isso em todos sumo, que estão muito longe do padrão
os sentidos, especialmente nas artes. As da sociedade, fazem com que muitos se
mudanças foram intencionais, por ques- lancem numa busca por ser magro, saudá-
tões ideológicas. A ideia era romper com vel e ter boa aparência a qualquer custo.
os absolutos. Mas será que os conceitos E, frequentemente, os custos são altos de-
a respeito do belo e do feio foram real- mais.
mente mudados? As evidências práticas
parecem dizer que sim, mas podemos di- A valorização da magreza e a repugnân-
zer que não, por uma razão bem simples: cia em relação a ter um corpo obeso se
porque isso é algo impossível. demonstram pelo esforço sobre-humano
que as pessoas fazem para emagrecer. É
Na verdade, o que acontece é uma ne- evidente que, se uma pessoa se esforça

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por emagrecer por questões de saúde e é preciso ter cuidado com ela, pois pode
também por querer ter uma boa aparên- ser enganosa. O livro de Provérbios con-
cia, sua atitude é louvável: mas, na maior tém muitos sábios conselhos que alertam
parte das vezes; o que importa é o padrão contra isso: “Enganosa é a graça, e vã, a
estético absurdo, pois as pessoas até co- formosura, mas a mulher que teme ao
locam a saúde em risco, tomando remé- SENHOR, essa será louvada” (Pv 31.30).
dios e se abstendo de alimentos essen- “Como jóia de ouro em focinho de porco,
ciais, com o único propósito de obterem assim é a mulher formosa que não tem
o corpo que a moda está ditando. Nesse discrição” (Pv 11.22). Isso já nos aponta
sentido, um estudo recente feito por uma para o verdadeiro conceito de beleza se-
universidade dos Estados Unidos trouxe gundo a Bíblia. Ele tem a ver com o que é
resultados assustadores. Foi perguntado bom. Deus criou a beleza. Deus é o belo
para cerca de quatro mil pessoas o que absoluto. É assim que a Bíblia o descreve:
elas estavam dispostas a sacrificar para “Glória e majestade estão diante dele, for-
terem um corpo magro: 46% responde- ça e formosura, no seu santuário... Adorai
ram que abririam mão de um ano de suas o SENHOR na beleza da sua santidade; 125
Pesquisa citada
em “A sonhada beleza
vidas; 25% preferiam ser estéreis a serem tremei diante dele, todas as terras” (Sl virtual”, Revista ele-
trônica de jornalismo
gordas; 15% chegariam a desistir de até 96.6,9). científico. Disponível
em http://www.com-
dez anos de sua vida para ter um corpo ciencia.br/comciencia/
magro; 15% preferiam uma depressão Pedro exorta as mulheres (e não podemos ?section=8&edicao=15
&id=141
profunda a serem gordas; 14% preferiam excluir os homens): “Não seja o adorno
ser alcoólatras; e quase 5% abririam mão da esposa o que é exterior, como frisado
de um de seus membros ou ficariam ce- de cabelos, adereços de ouro, aparato de
gas para não ter um corpo muito acima vestuário; seja, porém, o homem interior
do peso125. As pessoas estão fazendo de do coração, unido ao incorruptível trajo
tudo para serem aceitas pelas demais. O de um espírito manso e tranquilo, que
ser humano está disposto a fazer as trans- é de grande valor diante de Deus” (1Pe
formações que julgam necessárias no 3.3,4). Pedro está respondendo a uma
próprio corpo para alcançar um padrão pergunta interessante: O que faz que uma
de aceitação que é imposto de fora. mulher seja bela? A resposta mais óbvia é:
aquilo que está no exterior, como enfeites
RESGATANDO O CONCEITO DO BELO e outros embelezamentos, quem sabe a
própria beleza natural. Pedro responde:
A Bíblia não tem qualquer problema com Não é isso. É o que está no interior. É o
o conceito de beleza física exterior. Mui- coração verdadeiramente transformado,
tas pessoas na Bíblia foram consideradas é a bondade implantada ali pelo novo
formosas, tanto homens quanto mulhe- nascimento. O belo é o bom. Com isso,
res (Gn 39.6; At 7.20; Gn 12.11; 29.17; a Bíblia não pretende fazer uma distinção
1Sm 25.3), e outras foram consideradas entre os aspectos interiores e exteriores
sem beleza ou formosura (Gn 29.17; Jz do ser humano, como se o importante
15.2). Por outro lado, ainda que reco- fosse apenas o interior. Essa distinção não
nheça a formosura física, a Bíblia diz que é bíblica, porque o homem é uma unida-

BELEZA EFÊMERA 121

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de, e o seu aspecto interior é tão impor- CONCLUSÃO
tante quanto o seu aspecto exterior. Na
verdade, um influencia o outro, e o ideal O padrão máximo da beleza é a santidade
é que o interior transformado influencie de Deus, que enche os seres celestes de
o exterior. A beleza pode se manifestar de admiração e respeito. A beleza de Deus
dentro para fora, pois, como diz o antigo emana de sua santidade e de sua perfei-
provérbio: “O coração alegre aformoseia ta bondade. O salmista diz qual é o seu
o rosto, mas com a tristeza do coração o maior anseio: “Uma coisa peço ao SE-
espírito se abate” (Pv 15.13). NHOR, e a buscarei: que eu possa morar
na Casa do SENHOR todos os dias da
É preciso ainda entender que Pedro não minha vida, para contemplar a beleza do
proibiu o uso de embelezamentos exte- SENHOR e meditar no seu templo” (Sl
riores, ele apenas alertou para o excesso 27.4). Deus criou um mundo bom e belo
deles, e apontou para a beleza “ideal”. Isso como um reflexo de sua própria bondade
nos ensina que não precisamos desprezar e beleza. O bem é o fundamento do belo.
a beleza exterior, aquilo que os olhos e os Mas será que isso tem algo a ver com a
sentidos admiram como belo, pois isso beleza física exterior? Num sentido não,
pode ser um reflexo da nossa capacidade noutro sim. É óbvio que não podemos
de reconhecer o “belo” absoluto, assim dizer que toda pessoa bela é boa, mas po-
como temos a capacidade de saber da demos dizer que toda pessoa boa é bela,
existência do “bem” absoluto. Mas é pre- porque o bem é o fundamento do belo.
ciso saber admirar a manifestação interior Assim, muitas pessoas podem ser belas e
do belo, que é bem mais valiosa porque não ser boas; nesse caso, porém, são falsa-
é fundamentada em conceitos eternos e mente belas, como o pecado é a distorção
não em aspectos efêmeros. do bem.

Anotações

122 CRISTÃOS NO SÉCULO 21

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Informações do autor

LEANDRO ANTONIO DE LIMA é bacharel e mestre em teologia, e doutor em literatura. Escreveu: Razão da Es-
perança - Teologia para Hoje (2006), Brilhe a Sua Luz: O cristão e os dilemas da sociedade atual (2009), O Futuro do
Calvinismo (2010), e da coleção As Grandes Doutrinas da Graça - Um curso de teologia para classes bíblicas ou pequenos
grupos v.1, v.2, v.3, v.4, As Grandes Doutrinas do Novo Testamento - A Essência da Fé v.1 e v.2 e As Grandes Doutrinas
do Antigo Testamento - A Aliança para uma vida plena v.1 e v.2. Atualmente é Pastor da IP Santo Amaro - São Paulo,
Professor de teologia no seminário JMC - São Paulo. Professor de Novo Testamento no Andrew Jumper (CPAJ - SP).

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