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Intensificação sem
simplificação:
estratégia de combate à
desertificação
Paulo Petersen, Luciano Marçal da Silveira e Adriana Galvão Freire
“I
ntensificar a agricultura” – essa ideia foi e permanece sendo repe- As numerosas iniciativas do Es-
tida pelos que advogam em favor do padrão produtivo da agricul- tado no apoio a atividades econômi-
tura industrializada. Para eles, esse é o único meio de responder ao cas executadas sob a forma de gestão
crítico desafio de alimentar uma crescente população mundial que até meados empresarial e em regime de monocul-
deste século se estabilizará em torno dos 9 bilhões de pessoas. Uma agricultura tura exerceram papel determinante
intensiva é definida como aquela capaz de alcançar elevados níveis de produtivi- no intenso e sistemático processo de
dade física, ou seja, maiores volumes de produção por unidade de área cultivada. desarborização da paisagem rural da
De fato, a intensificação proporcionada pela agricultura industrial, promovida região: agave, nas décadas de 1950 e
pelo receituário da chamada Revolução Verde, obteve aumentos significativos 60; algodão herbáceo (em substituição
nos níveis produtivos, mas trouxe consigo um conjunto de contrapartidas am- ao arbóreo) na década de 1970; pas-
bientais negativas em razão da simplificação ecológica dos agroecossistemas tagens artificiais a partir da década de
provocada pela generalização das monoculturas dependentes de agroquímicos 1980 etc. Os efeitos mais deletérios
e de motomecanização. da substituição da cobertura vegetal
Um dos efeitos negativos mais alarmantes da disseminação desse modelo cien- se fizeram notar nas áreas de topogra-
tífico-tecnológico foi a acentuação dos processos de degradação das terras agríco- fia mais movimentada e de solos mais
las. Estima-se que anualmente são degradados 12 milhões de hectares no mundo, rasos, exatamente aquelas mais susce-
um ritmo de consumo de recursos naturais que compromete quaisquer possibili- tíveis aos processos erosivos. Grande
dades de equacionamento do dilema alimentar com o qual se depara a humanidade. parte do enorme passivo ambiental
Nas regiões áridas, semiáridas e subúmidas secas do planeta, onde estão localizadas resultante desses processos de desma-
44% das áreas de produção alimentar e onde vivem 800 milhões de pessoas, o pro- tamento foi posteriormente assumida
blema se agrava com o fenômeno da desertificação, um estágio de degradação dos por comunidades rurais assentadas a
solos dificilmente reversível. partir de suas lutas pela reforma agrá-
ria na região.
Diante desse quadro desafiante, torna-se evidente o caráter de urgência da im-
plantação de medidas políticas globais que compatibilizem a intensificação da agri- Nos interstícios das grandes pro-
cultura com o estancamento e a reversão dos processos de degradação dos solos priedades desenvolveu-se grande va-
agrícolas. Com base na experiência acumulada pela AS-PTA em 20 anos de atuação riedade de agroecossistemas de base
em região sujeita à desertificação no semiárido brasileiro1, este texto procura de- camponesa que corresponde à tam-
monstrar como o enfoque agroecológico permite essa compatibilização, não só ao bém diversificada composição ambien-
favorecer a criação de alternativas tecnológicas inovadoras para o uso e manejo tal moldada pelo gradiente decrescen-
sustentável dos solos agrícolas, mas também ao estimular o aperfeiçoamento de te na pluviometria de leste para oeste
instituições locais voltadas a regular a gestão social dos recursos naturais de forma em função do arrefecimento das chu-
que eles interatuem positivamente com as atividades econômicas. vas vindas do oceano pela presença da
Serra da Borborema. Em um quadro
de permanente disputa pela posse do
Um agreste fértil
solo agrícola com os grandes proprie-
Diferente da maior parte do semiárido brasileiro, o agreste paraibano tários e diante de processos contínuos
caracteriza-se pela densa presença da agricultura camponesa e se consolidou de fragmentação das unidades familia-
historicamente como a principal região fornecedora de alimentos básicos para res por conta da partilha por herança,
a sociedade paraibana. Situado entre o litoral ocupado pela monocultura cana- o espaço disponível para assegurar a
vieira e o sertão pecuarista, o agreste foi marcado por ciclos de campesinização reprodução social e econômica da
e de descampesinização (SILVEIRA et al., 2010). Essa alternância acompanhou agricultura familiar foi se reduzindo de
fundamentalmente os interesses também cíclicos de elites ruralistas que ocupa- geração a geração. Nessas condições,
ram ou abandonaram porções do território conforme a ascensão ou declínio da as famílias agricultoras se viram diante
produção em escala de gêneros agrícolas para os grandes mercados. Repetiu-se da necessidade de intensificar o uso
ali um padrão de ocupação territorial típico do espaço agrário no Brasil, no qual do solo com a redução paulatina, até
a agricultura camponesa se expande nas áreas pouco atrativas ao capital agroin- o completo abandono, da prática de
dustrial e financeiro e tem seus direitos ameaçados sempre que seus territórios pousio, roça e queima tradicionalmen-
despertam interesse. te empregada para a recomposição da
fertilidade do ecossistema. No entan-
1
Desde 2011, as ações de reversão dos efeitos da desertificação na região da Borborema são apoiadas to, essa tentativa de intensificação não
pelo Projeto Terra Forte, cofinanciado pela União Europeia. veio acompanhada de inovações nos
Agriculturas • Separata 2
métodos de manejo ambiental, que permaneceram essen- base tecnológica muito frequentemente foram estimuladas
cialmente extensivos, pois dependentes dos ritmos naturais com a diminuição dos recursos ambientais disponíveis para
de regeneração ecológica. sustentar a coletividade, sobretudo a terra cultivável. Em
outras palavras: aumentos na densidade populacional que le-
Mas cabe aqui indagar a razão desse suposto “conge- vassem à escassez de terra funcionavam como gatilhos para
lamento histórico” nas práticas de manejo por parte das desencadear dinâmicas de inovação tecnológica em direção
famílias camponesas na região. Cabe mesmo questionar se à intensificação agrícola.2 Uma das principais conclusões do
esse congelamento de fato existiu. Ao estudar respostas de trabalho de Boserup é que não existe um “teto agrário” ou
diferentes populações agrícolas no mundo ao aumento de- uma “capacidade de suporte natural” para uma determinada
mográfico, Boserup (1981) demonstrou que as mudanças na região. Os níveis de produtividade possíveis dependem não
3 Agriculturas • Separata
só do capital ecológico, mas também No entanto, esse movimento endógeno de experimentação camponesa passou
do capital social e humano capaz de largamente despercebido durante muito tempo, deixando por isso de ser valori-
aprimorar continuamente os sistemas zado pelas políticas públicas como fonte de práticas e saberes úteis à intensifica-
técnicos a partir do investimento em ção agrícola na região. A invisibilidade das inovações localmente desenvolvidas e/
experimentação e inovação local. ou adaptadas pelos(as) agricultores(as) explica-se, sobretudo, pelas concepções de
desenvolvimento rural amplamente assumidas no Brasil a partir da década de 1960,
Retomando a indagação anterior:
quando o paradigma da modernização passou a prevalecer na teoria, na prática e na
não teriam as restrições fundiárias da
política das instituições oficiais da área. Ao postular que o desenvolvimento agrícola
agricultura familiar da Borborema aciona-
resulta da incorporação de tecnologias exógenas capazes de intensificar a agricul-
do o gatilho da inovação local que permi-
tura e superar o seu atraso vis-à-vis a indústria, o ideário da modernização exerceu
tiria uma intensificação do uso da terra
importante papel ideológico na deslegitimação do histórico protagonismo exercido
em bases mais sustentáveis? Em outro
pelos(as) agricultores(as) na produção e na socialização de conhecimentos para o
texto procuramos demonstrar que sim,
manejo dos agroecossistemas, bem como na gestão dos bens naturais. Dessa forma,
que os agricultores da região foram
a modernização foi concebida por meio da intervenção de instituições e atores
desafiados a exercitar sua criativida- externos ao setor agrícola e pela negação da capacidade das populações locais de
de visando aperfeiçoar e inovar suas equacionarem de forma equilibrada as dimensões econômica, ecológica, social e
formas de manejo agrícola (...) a cultural do desenvolvimento.
partir da convivência e da intimidade
Essa forma de conceber a agricultura desde então orientou o campo de per-
com ´os códigos não escritos da na-
cepção de técnicos, cientistas e políticos, que passaram a privilegiar certos proble-
tureza´, experimentando múltiplas va-
mas das dinâmicas de desenvolvimento rural em detrimento de outros. Explica-se
riantes de uso e manejo dos recursos
assim a predominância do viés do economicismo produtivista de curto prazo e,
locais(PETERSEN, et al., 2002 p. 23).
por outro lado, a negligência em relação à integridade ecológica dos ecossistemas
e à equidade na distribuição dos frutos do desenvolvimento. Diante desse enfoque
reducionista e fragmentário sobre os problemas do rural, entende-se também por
2
O trabalho de Esther Boserup colocou em xeque
as teses malthusianas que postulavam que as pres-
que os marcos institucionais moldados pelo paradigma da modernização agrícola
sões populacionais sobre recursos limitados leva- muito frequentemente contradizem as medidas públicas orientadas à conservação
riam inexoravelmente à diminuição da população. ambiental e à inclusão social.
Agriculturas • Separata 4
O desenvolvimento de uma pers-
pectiva multi-setorial que contemple a
complexidade dos fatores envolvidos
nos processos de desertificação que se
alastram no semiárido brasileiro apre-
Da intensificação baseada
no capital ...
As dinâmicas de intensificação
propugnadas pelas políticas moderni-
zantes caracterizam-se pela crescente
subordinação dos sistemas agrícolas à
lógica da economia de escala que re-
gula o funcionamento dos mercados
agroalimentares globalizados e pela
consequente simplificação ecológica
das paisagens rurais com a dissemi-
nação das monoculturas. Se em ou-
tros biomas esse estilo de intensifi-
cação baseado no emprego massivo
de capital resultou em processos de
degradação ambiental de grande en-
vergadura, na Caatinga ele promoveu
efeitos negativos ainda mais rápidos e
profundos em função da maior fragili-
dade ecológica dos seus ecossistemas.
Em ambientes naturais marcados pela As cisternas-calçadão favorecem a criação de ambientes com
imprevisibilidade pluviométrica, como alto potencial de produtividade
o semiárido brasileiro, a integridade
da infraestrutura ecológica é condição
indispensável para a contínua recom-
posição da capacidade de produção drico, mas não o estresse nutricional.4 De fato, as estratégias fisiológicas para
biológica após os períodos secos. O convivência com ambos os estresses ambientais são divergentes entre si (RESEN-
comprometimento dessa capacidade DE, snt), o que faz com que nem mesmo as plantas nativas consigam vegetar com
tem sua expressão mais aguda nos a depauperação química dos solos, configurando assim as condições para que a
processos de desertificação, um es- desertificação se estabeleça.
tágio agudo de degradação ambiental
que pode ser compreendido como a As áreas no agreste paraibano onde os processos de degradação do solo
perda da resiliência ecológica do ecos- são mais agudos coincidem com os terrenos de relevo mais movimentado e que
sistema em razão da queda dos níveis tiveram sua vegetação arbóreo-arbustiva drasticamente suprimida, deixando os
de fertilidade dos solos. solos vulneráveis aos efeitos da erosão. Nas situações mais graves, os horizontes
subsuperficiais dos solos são expostos, comprometendo as qualidades físicas, quí-
Do ponto de vista técnico, essa micas e biológicas indispensáveis ao desenvolvimento vegetal.
perda de resiliência pode ser explicada
pela criação de condições ambientais
que combinam o estresse hídrico, na-
... à intensificação baseada no trabalho
tural dos ecossistemas da região, com Em vez de se alinhar aos modelos de intensificação baseados na especialização
estresses nutricionais gerados pela produtiva e na dependência estrutural aos mercados, o enfoque da inovação campo-
acentuada perda de nutrientes do am-
biente em decorrência dos processos
3
A salinização dos solos é um fator gerador de desertificação também ligado à mudança na dinâmica dos
erosivos.3 Em suas estratégias bioló-
nutrientes nos solos. Esse fenômeno é mais frequente nas áreas do semiárido destinadas à instalação dos
gico-evolutivas, as plantas nativas da grandes projetos de irrigação, não sendo por isso uma realidade comum no agreste da Paraíba.
caatinga desenvolveram mecanismos 4
Sendo rasos e pouco intemperizados, os solos da caatinga são relativamente ricos do ponto de
fisiológicos para tolerar o estresse hí- vista químico.
5 Agriculturas • Separata
tratégicas principais que orientam esse
movimento local de inovação: 1) a ma-
nutenção e a valorização de alta biodi-
versidade funcional nos agroecossiste-
Práticas
Princípios de manejo
Tradicionais Inovadoras
• Resgate e multiplicação de variedades locais
• Avaliação e introdução de novas variedades
• Consórcios
• Arborização das propriedades
• Aproveitamento das espécies forrageiras
Manutenção de alta • Cultivo em aleias
nativas
biodiversidade funcional • Uso de variedades locais
• “matas produtivas”
• Adubação verde
• Plantio de cercas vivas
• Cordões de contorno vegetados
• Diversificação produtiva nos quintais
• Bancos de sementes comunitários
• Poupança de capital em forma de gado • Barragens subterrâneas
• Barreiros, cisternas, tanques de pedra, etc. • Cisternas de placa e cisternas calçadão
Constituição e manejo
• Armazenamento doméstico de sementes • Barreiros trincheira
de estoques • Armazenamento de restos de cultivo como • Práticas de ensilagem e fenação
fonte forrageira • Campos de palma consorciados
• Esterqueiras
• Barragens subterrâneas
Valorização de espaços • Faxinas
• Quintais domésticos
limitados com alto potencial • Barreiras de pedra
• Plantio intensivo em baixios
de produção biológica • Intensificação produtiva nos quintais com a água
armazenada nas cisternas calçadão
Fonte: adaptado de PETERSEN et.al. (2002)
Agriculturas • Separata 6
um objetivo central: a maximização e a regularização dos diferentes subsistemas e compartimentos ecológicos dos
processos ecológicos de conversão dos recursos abióticos agroecossistemas. Nessa perspectiva, a gestão integrada da
básicos do ambiente (água, radiação solar e nutrientes) em água e dos nutrientes nas unidades camponesas apresenta-
recursos bióticos (biomassa vegetal e animal), sem que para -se como condição essencial para que a fertilidade seja
isso sejam necessários aportes de insumos externos que im- continuamente regenerada, assegurando a sustentação de
pliquem a geração de dependência aos mercados. bons níveis produtivos, mesmo que as áreas cultivadas se-
jam utilizadas permanentemente e sem o aporte de fertili-
Ao serem incorporadas nos agroecossistemas, essas zantes industriais. Ao mesmo tempo, a multifuncionalidade
práticas integram-se entre si de forma complexa, configuran- proporciona o incremento da produtividade e a redução da
do um todo orgânico e indivisível. Nesse sentido, assumem penosidade do trabalho, na medida em que os processos
um caráter multifuncional, na medida em que promovem de conversão se fazem por meio da associação sinérgica
impactos positivos em cadeia (sistêmicos) sobre o funciona- entre o trabalho humano e o trabalho da natureza. Em ou-
mento dos agroecossistemas. São, portanto, coerentes com tras palavras: os ciclos e fluxos ecológicos nos agroecos-
a perspectiva camponesa de intensificar a produção econômica sistemas são intencionalmente orientados para favorecer a
sem simplificar a reprodução ecológica. eficiência da conversão do capital ecológico em recursos
Como ilustrado no Quadro 2, o caráter multifuncio- econômicos sem que isso represente a deterioração da
nal das práticas inovadoras de manejo proporciona o au- fertilidade ambiental.
mento da eficiência ecológica nos processos de conversão Portanto, de forma distinta da estratégia de intensifica-
dos bens naturais em recursos econômicos em razão da ção produtiva baseada no capital, pode-se dizer que a inten-
reciclagem contínua de nutrientes, energia e água entre sificação baseada no trabalho é uma estratégia “ganha-ganha”,
7 Agriculturas • Separata
Mutirão para armazenamento de forragem
A aumento da diversificação produtiva em função da cisterna-calçadão
na qual a eficiência econômica e a eficiência ecológica se rea- sociais de gênero e nas mais variadas formas de violência a
limentam mutuamente em benefício das famílias agricultoras que estão sujeitas.
e da integridade ambiental.
As redes sociais de inovação tendem a ser mais dinâ-
Essa abordagem para a intensificação fundamenta-se micas e abrangentes em seus alcances temáticos e sociais
em trabalho qualificado, no sentido de que associa o traba- quanto mais ativos forem os mecanismos de interação social
lho mecânico ao trabalho intelectual. Isso significa que quem entre agricultores(as)-experimentadores(as).5 Esse aspecto é
executa o trabalho também toma as decisões estratégicas. confirmado por inúmeras evidências encontradas no agreste
Esse caráter artesanal do trabalho é indispensável para a da Paraíba e chama a atenção para o fato de que as decisões
organização sistêmica e complexa das tarefas e subtarefas colocadas em prática por indivíduos e/ou famílias na esfera
próprias da produção camponesa. Entretanto, para garantir doméstica são fortemente condicionadas pelas dinâmicas co-
a reprodução dessa artesanalidade, é primordial o domínio letivas de experimentação de alternativas para a intensifica-
e o permanente enriquecimento desses conhecimentos a ção agrícola em construção na região. Coloca-se em xeque,
partir de processos de observação e experimentação acio- portanto, as abordagens difusionistas adotadas convencional-
nados pela inteligência criativa local. Sob essa perspectiva, mente pelos órgãos de Assistência Técnica e Extensão Rural
no lugar de prescrições técnicas propugnadas por agentes (Ater), ao mesmo tempo em que ressalta-se a importância
externos, os conhecimentos associados ao trabalho campo- dos arranjos institucionais estruturados na escala do territó-
nês não se expressam na forma de regras inflexíveis e são rio para a gestão dos recursos, sejam eles materiais (semen-
aprimorados continuamente a partir de processos sociais tes, biodiversidade, água, terra, trabalho, etc.) ou imateriais
de inovação local. (conhecimentos, normas, valores, etc.).
Agriculturas • Separata 8
como instância de gestão político-or- Quadro 3: Dispositivos sociais de ação coletiva
ganizativa dessas redes de inovação
local no âmbito do território, o Polo
exerce um papel determinante na me- 1) Gestão compartilhada de equipamentos. Sindicatos e associações vinculadas
diação das dinâmicas sociais voltadas ao Polo se organizaram de forma a gerir coletivamente uma rede de 10 moto-
à intensificação agroecológica com os
-ensiladeiras itinerantes financiada pelo Programa de Desenvolvimento Terri-
órgãos oficiais. Nesse sentido, influen-
torial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Essas máquinas são
cia a elaboração, bem como executa
diretamente um amplo conjunto de utilizadas para estruturar silos, permitindo o armazenamento de alimenta-
programas e políticas públicas coe- ção para o gado para os períodos secos do ano. O regime de circulação das
rentes com a sua perspectiva estraté- máquinas é regulado por regras localmente definidas, estando associado a
gica de fortalecer a agricultura fami- mutirões comunitários que fazem o aproveitamento de grandes volumes de
liar camponesa.6 biomassa forrageira proveniente de variadas espécies vegetais presentes nas
Um aspecto particularmente rele-
unidades familiares. Além de permitir que, em curto período, muitas famílias
vante na atuação do Polo está ligado ao abasteçam-se de forragem, esse sistema estimula a intensificação do plantio de
fato de que os recursos públicos mo- espécies forrageiras com potencial de uso em ensilagem. Esse arranjo institu-
bilizados para impulsionar as dinâmicas cional beneficia cerca de 280 famílias com o aporte médio anual de 4 tonela-
de desenvolvimento rural são aciona- das de forragem. Da mesma forma que as moto-ensiladeiras, um conjunto de
dos por meio de iniciativas descentra- despolpadeiras de frutas é gerido por mutirões comunitários. O uso dessas
lizadas de organização social voltadas à máquinas permite que grandes volumes de frutas nativas e exóticas sejam be-
gestão de bens comuns. O Quadro 3 neficiadas para serem comercializadas na entre-safra, exercendo importante
apresenta alguns desses dispositivos de papel estimulador no plantio de espécies frutíferas.
ação coletiva que vêm permitindo in-
crementar a eficácia coletiva na gestão 2) Práticas coletivas de preservação e reprodução da biodiversidade. Uma rede de
de bens comuns. 65 bancos de sementes comunitários permite que grande patrimônio da agro-
biodiversidade seja conservado e esteja disponível para o plantio logo no início
Contrariando a consagrada hi-
pótese da Tragédia dos bens comuns
das chuvas. Além de serem adaptadas às condições ambientais e aos sistemas
(HARDIN, 1968)7, as iniciativas de de cultivo locais, as sementes da paixão – como são conhecidas localmente
ação coletiva desenvolvidas no agreste – asseguram maior autonomia e segurança às famílias na condução de seus
da Paraíba demonstram a capacidade roçados. A rede de viveiros para a produção de mudas arbóreas (florestais e
da agricultura camponesa para cons- frutíferas) é outra iniciativa que tem proporcionado o acesso de centenas de
truir e manter arranjos institucionais famílias a material genético diversificado e de qualidade. Gerida por sindicatos
localmente adaptados e voltados para e associações comunitárias, essa rede formada por seis viveiros foi o sistema
a governança e o uso eficiente e sus- desenvolvido para rearborizar a paisagem agrícola com espécies de múltiplo
tentável de recursos escassos indis- uso. Uma rede de agricultoras e agricultoras coletoras de sementes florestais
pensáveis à intensificação produtiva posteriormente associou-se à rede de viveiros, estimulando a criação de um
baseada no trabalho. grupo social portador de conhecimentos e práticas sobre propagação de es-
Embora a realidade aqui descrita pécies árbóreas nativas. Para viabilizar a produção das mudas, a organização do
revista-se de peculiaridades não repli- trabalho nos viveiros muito frequentemente lança mão de mutirões.
3) Mutirões comunitários. Como vimos nos itens anteriores, essa prática é bas-
6
O Polo exerce essa mediação institucional tante disseminada em regiões de agricultura camponesa, sendo acionada tam-
por meio da interação com órgãos públicos bém para a construção de pequenas obras voltadas à captação, ao transporte
que atuam em diferentes escalas e manejam
diferentes recursos: prefeituras municipais,
e ao armazenamento de água das chuvas, que têm sido essenciais para a estru-
governos estadual e nacional e Colegiado de turação de vasta e capilarizada malha hídrica destinada a atender a múltiplas
Desenvolvimento Territorial (instância vincula- demandas das famílias agricultoras.
da à política de desenvolvimento territorial do
MDA). Juntamente com a AS-PTA, atua também 4) Poupança e financiamento comunitários. O mecanismo dos Fundos Rotativos
na mobilização de recursos da cooperação in-
ternacional orientados ao fortalecimento de
Solidários (FRS) vem sendo empregado para viabilizar a aquisição de variados
seu projeto para o território. equipamentos e insumos necessários à intensificação produtiva dos agroecos-
7
Em seu famoso artigo que referenciou a ela- sistemas: infraestruturas hídricas, fogões ecológicos, tela para estruturação de
boração de políticas ambientais por muito tem- quintais, esterco, silos de zinco, pequenos animais, etc.
po, Hardin (1968) postulava que indivíduos e
grupos que dependem dos mesmos recursos 5) Organização para acesso aos mercados. Uma rede de 08 feiras agroeco-
ambientais para se reproduzirem caem inevita-
velmente na armadilha da sobreexploração e, lógicas nos municípios da região, bem como a venda coletiva em mercados
consequentemente, provocam degradação eco- intitucionais favorece o escoamento da produção diversificada típica da agri-
lógica. Segundo o autor, para evitar esse qua- cultura camponesa e o aumento da remuneração pelo trabalho das famílias
dro, é indispensável que o acesso a esses bens
comuns seja limitado por regras impostas por produtoras.
alguma instância governamental ou que passem Obs.: Dados até 2014
à gestão privada.
9 Agriculturas • Separata
cáveis a outros contextos, ela reproduz em grandes traços expressa na construção social de mercados locais, condição
situações identificadas em várias regiões do planeta mar- essencial para que a biodiversidade presente nos agroecos-
cadas pela presença da agricultura camponesa. Ao avaliar sistemas seja economicamente valorizada e as monoculturas
o desenho e a implementação de instituições camponesas desestimuladas.
voltadas para o manejo de recursos naturais, Elinor Ostrom,
Por fim, a experiência aqui relatada ressalta que a intensi-
vencedora do Prêmio Nobel de Economia em 2009, identi-
ficação da produção econômica sem a simplificação ecológica
ficou que as mais bem-sucedidas são aquelas ajustadas aos
nos agroecossistemas é possível e primordial para que a de-
contextos locais (OSTROM, 1990). Isso significa que os ar-
sertificação seja efetivamente combatida. Para tanto, é preciso
ranjos institucionais com os resultados mais positivos deve-
reconhecer que o equacionamento desse dramático problema
rão emergir da ação coletiva sobre a base de recursos pre-
socioambiental dificilmente será superado a partir de iniciativas
sente no próprio território. Como tal, podem ser cultivados
reducionistas de órgãos estatais reguladores, tampouco a partir
a partir de estímulos públicos que abram espaço para que
de mecanismos de mercado que expropriem direitos territo-
as capacidades criativas e os potenciais coletivos de auto-
riais de comunidades rurais.
-organização se desenvolvam autonomamente.
Já os programas e políticas públicas desenhados se-
Paulo Petersen
gundo o paradigma da modernização dificultam, senão in-
coordenador-executivo da AS-PTA
viabilizam, a presença de instituições camponesas voltadas
paulo@aspta.org.br
à gestão econômico-ecológica dos recursos do território.
Ao guiar-se por prescrições técnicas controladas por agen-
Luciano Marçal da Silveira
tes do Estado ou dos mercados, a gestão empresarial da
coordenador do Projeto Terra Forte da AS-PTA
agricultura estimula a formação de ambientes sociais do-
luciano@aspta.org.br
minados pelo individualismo e pela competição, criando as
condições propícias para que a Tragédia dos Comuns se
Adriana Galvão Freire
confirme. Não seria essa uma razão determinante para o
assessora técnica da AS-PTA
alastramento dos processos de desertificação no semiári-
adriana@aspta.org.br
do brasileiro?
Agriculturas • Separata 10
Projeto
EXPERIÊNCIAS EM AGROECOLOGIA
ISSN: 1807-491X
Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, Separata
da edição V.9, N.3 (com dados atualizados até 2014)
AS-PTA
Rua das Palmeiras, n. 90
Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, Brasil 22270-070
Parceiros Telefone: 55(21) 2253-8317 Fax: 55(21)2233-8363
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Agriculturas • Separata 12