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CODIFICAÇÃO E DESCODIFICAÇÃO: UMA ANÁLISE ACERCA DO TEMA 1

por Antonio Carlos Morato2


1. Introdução

• A discussão entre os que defendem a codificação e os que consideram preferível


a aprovação de leis especiais apresenta utilidade na fixação das premissas à
elaboração de normas que possam obter a pacificação social.
• A principal utilidade da codificação seria a unificação do Direito. A codificação
corresponderia a todas as normas, de certo ramo do Direito, que vigoram em
determinado momento histórico e que passam a viver sob um regime de unidade
orgânica.

• O estudo é desenvolvido tentando responder à questão: É possível prever todas


as condutas humanas, em especial no Código Civil (enquanto lei geral), em um
mundo no qual ocorre um processo de mutação cada vez mais acelerado?
• Jean Portalis concluiu, entre os séculos XVIII e XIX, que a pretensão de prever os
vários aspectos da vida humana era algo absolutamente impraticável (as leis não
poderiam substituir completamente o uso da razão natural nos negócios da vida).
• Em nosso país, a preocupação com as dificuldades que uma lei atravessaria para
continuar eficaz não afastaram a convicção acerca da utilidade de um código.
o Para o então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid a elaboração do CPC de
1973 teria sido mais útil do que a reforma paulatina do CPC de 1939.
o A exposição de motivos do prof. Miguel Reale criticava os que preferiam
a descodificação. Caso prevalecesse tal entendimento, só restaria ao
jurista o papel melancólico de acompanhar passivamente o processo
histórico, limitando-se a interferir, intermitentemente, com leis esparsas.

• Estas dúvidas aprofundam-se também no Poder Legislativo com a acentuada


proliferação de leis que demonstrariam que a codificação teria chegado a seu
próprio ocaso, colocando em dúvida sua real utilidade.

• Orlando Gomes sustentava que a maré de leis especiais atesta a impossibilidade


da codificação e criticava o entendimento de que o Código diferenciava-se das leis
especiais, pois aquele já não era a disciplina geral das relações jurídicas da
sociedade civil.
• Tércio Sampaio Ferraz Júnior afirmou que os códigos atuais são marcados pela
rigidez e conservadorismo, o que fornece impressão de segurança e certeza.

• Pretender a permanência da lei em circunstâncias de mutabilidade das relações


sociais é uma conduta arriscada do legislador, posto que é exigida do Poder
Legislativo cada vez maior celeridade diante dos diversos problemas atuais.
2. Codificação e Consolidação.

1
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. v. 98. p. 95 – 120. 2003.
2
Resumo feito por Bárbara Teixeira.
• A consolidação consiste na justaposição de normas vigentes articuladas sob certa
orientação, sendo uma obra de adaptação morfológica. Por ser uma espécie de
compilação de leis existentes, pode ser estabelecida por decreto.

• Na codificação não se aproveitam apenas as leis existentes, mas elabora-se uma


obra metódica, sistemática. Trata-se de uma obra de criação.

• Segundo Ricardo Lorenzetti a consolidação gerava insegurança, enquanto o


Código é segurança por sua imutabilidade, não se pode alterar uma parte sem
alterar o todo. Antes das codificações, a sociedade era regulada por meio de
consolidações, posto que estas pretendiam reproduzir o Direito sem modificá-lo
(a codificação constituiria uma ruptura).

• José Reinaldo Lima Lopes esclarece que o movimento de codificação do Direito


reflete um desejo de concentração legislativa no Estado. Os códigos foram contra
a tradição medieval e os costumes estabelecidos.
o Exemplo da Argentina, onde a codificação trouxe polêmica entre os que a
viam como avanço do poder central sobre as províncias e os que
acreditavam ser um meio para unificar o país.
• No entanto, ainda hoje são importantes as compilações, pois a possibilidade de se
construírem bancos de dados de normas, jurisprudência e doutrina está
revolucionando a técnica jurídica.
• Tanto a codificação como a consolidação persistem pela atração que, tanto o
legislador quanto os operadores do Direito, sentem pela unidade e aparente
segurança conferida por ambas.
3. A Codificação como Sistema

• A visão sistemática do Código é fundamental para diferenciá-lo das consolidações


anteriores.
o José Reinaldo Lima Lopes aponta a ausência de sistema das ordenações
em comparação com os códigos.

• Como podemos compreender um sistema?


o Luiz Edson Fachin compara uma fotografia e uma moldura, sendo que o
sistema enquanto moldura enquadraria as pessoas, suas relações e os
bens (que corresponderiam à fotografia inserida na moldura), só que nem
tudo que está contido nessa moldura corresponde ao que nela poderia
estar. Nem todo fato é jurídico e nem toda pessoa é, a rigor, sujeito de
direito.

• O esboço de Código Civil, elaborado por Augusto Teixeira de Freitas, merece


destaque pela sua sistematização do Direito Civil.
o Pontes de Miranda resgatou, embora com críticas, a importância de sua
concepção sistemática, afirmando ser apenas o BGB, pelo rigor técnico,
superior ao esboço brasileiro.
o O plano adotado foi o da dicotomia - Parte Geral (pessoas, coisas, fatos) e
Parte Especial, sendo que esta se tripartia em direitos pessoais, direitos
reais e disposições comuns a direitos pessoais e reais.
• Lecionava Carlos Alberto da Mota Pinto que da relação entre parte geral e partes
especiais resulta que as normas no código se dispõem segundo uma ordenação,
que deve estar presente no espírito do julgador ao pesquisar a disciplina legal
completa de qualquer situação da vida submetida ao seu julgamento.

• A Codificação, observada quanto à sua funcionalidade, consistiria na reunião em


texto único, de forma metódica e homogênea, de uma série de normas relativas a
certo ramo do Direito.

• A visão de sistema deve necessariamente estar presente em um código, sendo


mais relevante até mesmo que a unificação legislativa pretendida. A
sistematização deve contribuir para maior facilidade e perfeição do estudo do
Direito.

• Para Luiz Edson Fachin "o sistema conforta porque dá respostas por meio de
regras e presunções, e quando estas não são suficientes, cria ficções, tornando-se
um sistema tão pronto e acabado que não permite a ninguém que o desconheça,
ao menos em termos jurídicos, ainda que o ignore no plano real e material”.
• Quanto à sistematização no novo Código Civil, Miguel Reale salientou que a quase-
unanimidade dos juristas repudiou a proposta de um Código Civil sem sentido de
unidade, condenando a eliminação da parte geral, tradicional em nosso Direito.
4. Aspectos Históricos e Políticos da Codificação
• Embora possamos apontar diversos exemplos de codificações na Antiguidade (de
caráter especialmente penal), o movimento codificador só aparece, de forma
significativa, a partir de 1756 com o Codex Bavaricus, sendo seguido em 1786 pelo
Código Josefino, até culminar, em 1794, no Código Civil da Prússia.
• Este movimento levou a mudança do papel do Estado liberal, que substituía o
Antigo Regime, e foi nesse contexto que o positivismo desenvolveu-se. A
legislação veio para pôr fim ao Direito anterior e seu instrumento privilegiado foi
o Código.

• Henri Capitant destacou que o Código Civil francês serviu como modelo para toda
a Europa. Até mesmo na Alemanha ocorreu a tentativa de codificar o Direito
baseada no modelo francês.
o Na Alemanha, Justus Thibaut defendeu a promulgação de um Código.
Contou com a oposição ferrenha de Friedrich Savigny. Prevaleceu o
entendimento de Savigny até que, a partir da segunda metade do século
XIX, fossem desenvolvidos os trabalhos para a elaboração do Código Civil.
 Os códigos ameaçavam um mundo já conhecido da nobreza e do
clero. Savigny, ao opor-se ao movimento codificador invocando a
tradição e o espírito do povo alemão, na verdade defendia um
mundo antigo.
 O espirito do povo alemão também foi invocado a serviço da
barbárie do regime nazista (juristas defenderam que o Führer
protegia o Direito do pior abuso).
 Quando dos debates acerca do projeto que culminaria no BGB,
Anton Menger afirmou que o período final do século XIX seria a
época mais favorável para codificação voltada à proteção das
classes economicamente menos favorecidas. Os acontecimentos
posteriores do nazismo demonstram que a política encontra-se
interligada à norma jurídica.
• A codificação foi no passado inovação absoluta diante da resistência das classes
privilegiadas que amparavam-se nos costumes para negá-la.

• Não parece correto sustentar que a codificação é um mal ou um bem por si.
5. O processo de descodificação e suas origens

• A codificação foi imposta na Europa, seja como decorrência da vontade de um


poder central autoritário, seja reflexo de um processo de unificação.

• A velocidade dos acontecimentos durante o século XX conduziriam a um processo


de descodificação, entendida como a necessidade de adoção de um processo
legislativo mais célere.

• A função do Estado passou por uma revisão. Um sistema jurídico calcado em


Códigos não pode enfrentar problemas sociais que se acumulam.

• Termos de distintas áreas do conhecimento passam a integrar a norma, suscitando


muitas vezes dificuldades para o intérprete.
o Para Luís Cabral Moncada a explicação para tal fato estaria na idolatria da
lei e nas transformações da vida contemporânea, na qual o Estado tem a
necessidade de assumir funções estranhas à sua tradicional atividade.
• A atuação da Jurisprudência seria fundamental para amoldar as concepções do
Código à realidade, somada à novas leis especiais.
• Fábio Siebeneichler de Andrade sustenta a utilidade da codificação:
o Relata, em argumentos a favor da descodificação, que o código como
sistema fechado não se mostraria apto a enfrentar os problemas da
sociedade atual. Por isso acentua-se o desenvolvimento das leis especiais,
que passam a constituir microssistemas que retirariam do Código Civil o
relevante papel que desempenhava até então no sistema jurídico.
o Posicionando-se contrariamente a estes argumentos, afirmou que as leis
especiais não se caracterizam como um sistema já que visam resolver
apenas problemas específicos e com vigência limitada.
• Para Orlando Gomes, as leis especiais constituiriam verdadeiros “microssistemas”,
pois não são desdobramento de institutos codificados, não regulam matéria
estranha ao conteúdo do Direito Privado, nem apanham menor número de
destinatários ou de hipóteses, constituindo "distintos "universos legislativos de
menor porte.
• De acordo com Gustavo Tepedino, a alteração no papel do Código Civil representa
uma profunda alteração na própria dogmática identificando-se sinais de
esgotamento das categorias do Direito Privado, pois os novos fatos sociais dão
ensejo a soluções objetivistas a exigirem preocupação com as atividades
desenvolvidas pelo sujeito de direito.
• Ainda que recorramos ao positivismo é fundamental estabelecer que mesmo tal
corrente não mais admite um dogmatismo exacerbado.
6. Codificação no Mundo Contemporâneo: as mudanças de paradigma e o paradigma pós-
moderno

• Pela complexidade dos problemas em uma sociedade heterogênea, o intérprete


não pode dispensar o recurso a conceitos de outras ciências, tornando a decisão
judicial cada vez mais difícil de ser prolatada.
• Antônio Junqueira de Azevedo afirma que a consideração da realidade parece
pressuposto para a segurança jurídica. Paralelamente, a hiper-complexidade dos
tempos pós-modernos, que se revela na multiplicidade de fontes do direito,
quebram a tendência à unidade do direito.

• Ricardo Lorenzetti constata que a legislação especial dificulta o estabelecimento


de uma ordem e uma manutenção de princípios axiomáticos. A tarefa de
interpretar tornou-se fundamental e a linguagem jurídica contaminou-se de
outras ciências. Em razão disso estaríamos diante de não somente uma
descodificação, mas também de explosão, com força desintegradora, da lei, de
outras fontes, da Doutrina e do Direito Privado em geral.
o O código constituiu-se em um reflexo da criação do Estado nacional. Sua
pretensão era ordenar igualitariamente as condutas jurídico-privadas,
tornando-se garantia de separação entre a sociedade civil e o Estado.
o A ideia de ordenar a sociedade ficou sem efeito a partir da perda de
prestígio das visões totalizadoras. Atualmente o Direito Civil se apresenta
antes como estrutura defensiva do cidadão do que como ordem social e o
Código Civil perde sua centralidade diante dos microssistemas jurídicos.

• Gustavo Tepedino relata que a tônica excessiva do Código Civil em torno do sujeito
de direito cede à atenção do legislador especial a assegurar resultados sociais
pretendidos pelo Estado.
• O que há é uma mudança de paradigma, vez que o recurso a uma única lei,
elaborada dentro de uma visão totalizadora dos problemas sociais, não mais pode
ser considerada como satisfatória para a resolução de conflitos que avançam em
progressão geométrica.
7. O Novo Código Civil brasileiro (Lei n. 10.406/02) e suas perspectivas, enquanto
ordenador do Sistema Jurídico do Direito Privado
• Fábio Siebeneichler de Andrade aponta a nova missão de um Código Civil na
atualidade como ordenador do sistema jurídico do Direito Privado.
o Para tal, defende a utilização das cláusulas gerais e uma revitalização da
Doutrina. Conclui que a codificação dificilmente poderá ser superada
porque, por estar associada ao princípio da continuidade, sempre estará
a (co)ordenar o Direito Privado.

• Podemos defender a codificação como instrumento principiológico, tal como


ocorre no CDC.
o Ensina Nelson Nery Júnior que tal lei não é analítica, mas sintética. É uma
lei principiológica porque contém preceitos gerais e fixa os princípios
fundamentais das relações de consumo.

• Esse raciocínio poderia ser aplicado ao Código Civil, sempre visto como lei de
caráter geral?
o O autor não nega as críticas, mas entende que sim, destacando que essa
seria hoje sua principal e talvez única função, até porque diversos
princípios estão nele contidos, o que condicionaria as leis especiais em
que há, primordialmente, apenas relações de caráter civil, com igualdade
entre as partes.

• Gustavo Tepedino critica a visão favorável à codificação, substituindo esta por


uma visão constitucional do Direito Civil.
o O Código Civil perde seu papel de Constituição do Direito Privado, pois os
textos constitucionais, paulatinamente, definem princípios de temas
antes reservados ao Código Civil e o Direito Civil, através da legislação
extracodificada, já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as
atividades por ele desenvolvidas e seus riscos.
o Critica o individualismo do auge da codificação e afirma que o papel
constitucional do Direito Civil e a crença do individualismo como
verdadeira religião marcam as codificações do século XIX e, portanto, o
nosso Código Civil. Nessa época o Código almejava a completude, no
sentido de ser destinado a regular através de situações-tipo todos os
possíveis centros de interesse jurídico de que o sujeito privado viesse a ser
titular.

• No auge da codificação na França substituiu-se a reverência ao monarca pela


adoração da lei. Não há como pretender a segurança e a submissão de outrora na
sociedade heterogênea atual.
• Gustavo Tepedino salienta que o Código de 1916 foi fruto de uma época de
segurança quanto à disciplina balizadora dos negócios. Ao Direito Civil cumpriria
garantir à atividade privada e ao sujeito de direito a estabilidade de regras quase
imutáveis nas relações econômicas.

• Para Luiz Edson Fachin, parece fundamental abandonar-se a postura da segurança


dos conceitos, uma vez que as explicações segmentadas conduzem a uma
banalização da complexidade dos problemas.

• Apesar de tudo que relatamos, não há como negar que a proliferação legislativa
também ocorreu no passado, o que levou aos trabalhos de compilação e culminou
na codificação.
o Estaríamos andando em círculos? Ou sucumbiríamos à constatação de
que, numa sociedade em transformação acelerada, só nos resta admitir
que a perplexidade do jurista é apenas mais um dos sintomas da pós-
modernidade?
• Diante dessas considerações, temos de reconhecer que as respostas ainda estão
por vir, mas que o debate pode e sobretudo deve permanecer, mesmo com a
edição do novo Código Civil.
8. Conclusões

• A codificação surgiu como um movimento decorrente das injunções políticas dos


séculos XVIII e XIX, ora por influência direta dos Estados liberais e ora por reação
dos Estados absolutistas que eram governados por soberanos identificados com o
que se convencionou denominar de despotismo esclarecido (como foi o caso do
Código da Prússia, aprovado e m 1794, no reinado de Frederico, o grande).

• Comparando a codificação com a Consolidação, o autor observa que a primeira


apresenta como característica fundamental a preocupação com a sistematização
normativa, ausente na última.

• Nessa ordem de raciocínio, o juspositivismo pode ser considerado como a


corrente jusfilosófica mais adequada à codificação, já que esta tinha como escopo
eliminar (principalmente negando) as lacunas do ordenamento jurídico. Apesar
disso, sequer é correto visualizar no positivismo contemporâneo, na lição de
Norberto Bobbio, a mesma corrente que ensejou o que costumou designar-se por
fetichismo da lei.
• É fato que, mesmo diante da aprovação da Lei n. 10.406/02, a codificação não terá
mais condições de desempenhar o mesmo papel totalizante e sistemático que
desempenhava no passado, sem que fosse necessário recorrer ao legislador para
que este venha a suprir as cada vez mais constantes lacunas do ordenamento
jurídico. Todavia, não se quer desprezar a relevância principiológica dos códigos,
única justificativa para a manutenção dos mesmos no mundo contemporâneo.
• Complementando a conclusão anterior, o autor sustenta que o Código Civil
brasileiro de 2002 poderá revelar utilidade, na medida em que dele se espere
apenas um vetor principiológico (o que, em certa medida, já era atingido por meio
da Constituição Federal, embora ocorra aí, um certo desvio de sua função original)
e não um repositório de soluções para os problemas da vida contemporânea, que
apresentam uma hiper-complexidade cada vez mais acentuada.

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