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Fernão Lopes, Crónica de D.

João I
CONTEXTO HISTÓRICO

Fernão Lopes, nascido entre 1380 e 1390, provavelmente em Lisboa, era de origem humilde. Foi tabelião
(notário) geral do reino e, para além disso, também exerceu as funções de guarda-mor da Torre do Tombo
(arquivo geral) e “escrivão dos livros” dos primeiros reis da dinastia de Avis, D. João I e D. Duarte, tendo
igualmente sido secretário de confiança do infante D. Fernando (filho de D. João I).

A partir de 1434, foi nomeado por D. Duarte para desempenhar o cargo de cronista do reino, com a missão de
colocar em crónica “as estórias dos reis que antigamente em Portugal foram”, bem como os “grandes feitos e
altos do mui virtuoso” rei D. João I, seu pai. Em 1454, foi substituído pelo cronista Gomes Eanes de Zurara e
supõe-se que terá morrido em 1459.

Quanto à sua obra, são da sua autoria as crónicas referentes aos reinados de D. Pedro, D. Fernando e D. João I.

A Crónica de D. João I é considerada a crónica medieval portuguesa mais importante, quer pelos
acontecimentos que relata, quer pela qualidade literária da sua prosa. Foi publicada pela primeira vez em 1644,
em Lisboa, e encontra-se dividida em duas partes:

 a primeira ocupa-se do espaço de tempo desde a morte de D. Fernando até à eleição de D. João I;
 a segunda relata o reinado deste monarca até à paz com Castela, em 1411.

Escrita durante o reinado de D. Duarte, a Crónica de D. João I é, na realidade, uma legitimação da nova
dinastia, a dinastia de Avis, iniciada após o período conturbado de interregno na monarquia portuguesa que
vai de 1383 a 1385. A crise dinástica e a revolução popular e burguesa que então se deram foram o resultado de
uma série de acontecimentos, muitos dos quais ocorridos durante o reinado de D. Fernando (1367-83), reinado
este marcado pelas sucessivas guerras com Castela, que empobreceram o reino e que culminaram com a
assinatura do Tratado de Salvaterra de Magos, que determinou o casamento de D. Beatriz, sua filha, com o rei
João I de Castela, pondo em causa a independência de Portugal. Para além disso, acresce a grave crise
económica, que o monarca tentou resolver recorrendo à desvalorização da moeda, à legislação para aumentar
a produção agrícola e ao fomento e proteção do comércio naval.

Face ao exposto, é possível concluir que este reinado ficou marcado por um clima de instabilidade e de
incerteza, que se acentuou aquando da morte de D. Fernando, que não deixou filho varão, pelo que a sucessão
deveria caber a sua filha D. Beatriz, casada com o rei de Castela.

A nobreza e o clero eram partidários de D. Beatriz, enquanto o povo pretendia que o sucessor do trono fosse
um dos filhos bastardos de D. Pedro, meios-irmãos, portanto, do falecido rei Fernando. Graças a uma
conspiração bem urdida pelo influente burguês Álvaro Pais, o povo viria a apoiar entusiasticamente o Mestre
de Avis.

Após a invasão castelhana, seguiram-se um prolongado e doloroso cerco de Lisboa e diversas batalhas, de que,
sob o comando de Nuno Álvares Pereira, os portugueses saíram vitoriosos. Posteriormente, o Mestre de Avis
seria proclamado rei, graças igualmente à habilidade jurídica do Dr. João das Regras que, nas Cortes de
Coimbra, soube encontrar argumentos para defender a aclamação do Mestre, que receberia o nome de D. João
I e seria o fundador da 2.ª dinastia.

O ASSASSINATO DO CONDE ANDEIRO

João Fernandes de Andeiro era um nobre galego do século XIV que ganhou a confiança do rei D. Fernando e
tornou-se uma das figuras mais influentes da corte portuguesa durante este reinado. Gozava do favor pessoal
do rei, que lhe atribuiu o título de 2º conde de Ourém, daí a designação comum de “Conde Andeiro”.

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Desempenhou um papel importante nas manobras diplomáticas de D. Fernando junto da corte inglesa, no
contexto das guerras em que se envolveu em Castela. Porém, a sua ligação pessoal à rainha D. Leonor e a forma
como adquiriu poder e influência tornavam-no odiado e temido. Quando o rei morreu, a 22 de outubro de 1383,
a rainha assumiu a regência e preparou a aclamação da infanta D. Beatriz, cujo casamento com o rei de Castela
já tinha sido acordado. Esta situação suscitou oposição e agitação na corte e no país.

Mestre de Avis para além de filho ilegítimo do rei D. Pedro, era também figura em torno do qual se juntaram os
setores da sociedade, sobretudo os burgueses de Lisboa e alguns setores da nobreza, descontentes com a
regência da rainha e o poder crescente do Conde Andeiro, que consideravam que colocava em risco a
independência nacional. D. João I, contava com o apoio do povo de Lisboa, que possuía rancor e ódio à rainha.

O principal sinal de preocupação era o facto de o rei de Castela já se intitular “rei de Castela e de Portugal”,
apesar de os termos do tratado de casamento com a infanta D. Beatriz não o permitirem. Portanto, no dia 6 de
dezembro, um grupo de homens, liderado pelo mestre de Avis, entrou no Paço e matou o Conde Andeiro. Ao
mesmo tempo, e numa manobra combinada, os seus partidários percorriam as ruas de Lisboa a dizer que
estavam a matar o mestre, o que levou uma multidão a juntar-se às portas do Paço. O episódio ficou descrito por
Fernão Lopes, em cores particularmente vivas, na sua crónica de D. João I.

 João Fernandes de Andeiro foi morto no decorrer de um golpe palaciano, cuidadosamente preparado
pelo Mestre de Avis e os seus apoiantes.

A morte do conde Andeiro marca o desencadear da crise política, que teve o seu desfecho apenas dois anos mais
tarde.

A INVASÃO CASTELHANA E O CERCO DE LISBOA

O rei de Castela, apesar do contrato de casamento de D. Beatriz, ter previsto que o reino de Portugal e de
Castela ficariam separados, acabou por invadir Portugal, originando vários confrontos.

D. João I de Castela invade Portugal e ocupa a cidade de Santarém. A resistência portuguesa e o exército
castelhano encontram-se pela primeira vez a 6 de abril de 1384, na Batalha dos Atoleiros. Nuno Álvares Pereira,
figura heroica, soma mais uma vitória para a fação do Mestre de Avis, mas o confronto nada resolve.

Depois da derrota na Batalha dos Atoleiros, D. João I de Castela retira-se para Lisboa, cerca a capital e com
auxílio da sua marinha bloqueia o porto da cidade e controla o Tejo. O cerco era uma séria ameaça à causa do
Mestre de Avis, uma vez que sem Lisboa, sem o seu comércio e o dinheiro dela, pouco poderia ser feito contra
Castela, D. João I de Castela precisava de Lisboa por motivos de ordem política, uma vez que nem ele, nem a sua
mulher tinham sido coroados e sem esta cerimónia, eram apenas pretendentes à coroa.

O cerco de Lisboa implicou, como previsto, sérias repercussões na vida da capital portuguesa.

 A nível económico – Levou à falta de produtos alimentares e à inflação;


 A nível social - Levou à propagação de doenças devido ao mau regime alimentar, à pobreza e ao aumento
da taxa de mortalidade;
 A nível psicológico – gerou um ambiente de tristeza e desespero;

O cerco de Lisboa foi, todavia, levantado a 3 de setembro de 1384, devido sobretudo à epidemia da Peste Negra
que assolou o exército Castelhano, causando-lhe muitas baixas. Houve também ataques na periferia do cerco
por parte de forças do exército de D. João, Mestre de Avis, forças essas chefiadas por Nuno Álvares Pereira.

Finalmente o povo de Lisboa encontrava-se seguro e livre de perigo.

A BATALHA DE ALJUBARROTA

No entanto, os confrontos entre as forças do Mestre de Avis e o exército castelhano não haviam acabado.

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Em 14 de agosto de 1385, as tropas portuguesas e os seus aliados ingleses, comandados pelo Mestre de Avis e
Nuno Álvares Pereira, e o exército castelhano e os seus aliados liderados por D. João I de Castela confrontaram-
se na Batalha de Aljubarrota. O resultado foi uma derrota definitiva dos castelhanos, o fim da crise dinástica e
a aclamação do Mestre de Avis, como Rei de Portugal nas cortes de Coimbra em 1385, dando assim início à
dinastia de Avis.

CAPÍTULO XI

RESUMO

O pajem do Mestre de Avis brada pelas ruas, a caminho da casa de Álvaro Pais, que matam o Mestre nos paços
da rainha, o que leva as gentes, em agitação, a saírem para a rua e a pegarem em armas.

 Álvaro Pais, que já estava preparado, dirige-se com o pajem e outros aliados para os paços, apelando à
população para que se junte e corra em auxílio do Mestre;
 Chegada às portas do paço, que estavam fechadas, a multidão mostra-se ansiosa e agitada, querendo
entrar para confirmar que o Mestre está vivo;
 Aconselhado pelos que estavam consigo e atendendo ao alvoroço das pessoas, o Mestre aparece à janela
para apaziguar os ânimos. Perante esta visão, a população manifesta um “gram prazer”;
 Sentindo-se seguro, o Mestre deixa os paços e cavalga pelas ruas em direção aos paços do Almirante,
onde se encontrava o conde D. João Afonso, irmão da rainha;
 Pelo caminho, o Mestre contacta com a população, que se mostra aliviada, alegre e disponível;
 Próximo dos paços do Almirante, o Mestre é acolhido pelo conde, pelos funcionários da cidade e por
outros fidalgos;
 Já à mesa, vêm dizer ao Mestre que as gentes da cidade querem matar o bispo. O Mestre faz tenções de o
ir socorrer, mas é aconselhado a permanecer ali (o bispo é morto pela população).

TÓPICOS DE ANÁLISE

 O episódio narrado neste capítulo enquadra-se na sequência de eventos que levaram ao cerco da
cidade de Lisboa, considerado um dos focos estruturadores da Crónica de D. João I (o outro é a batalha
de Aljubarrota);
 Neste capítulo, Fernão Lopes relata como se deu a aclamação do Mestre, após o assassinato do conde
Andeiro, as ações da população quando soube que o Mestre corria perigo e os seus sentimentos
relativamente ao futuro monarca;
 A população é, aliás, a protagonista deste episódio. Assemelhando-se a um repórter que assistiu ao
desenrolar dos acontecimentos, Fernão Lopes transmite-nos as movimentações (d’ “as gemtes”) através
de sensações auditivas (“dizemdo altas vozes, braadamdo pella rrua”, “e começamdo de fallar huũs
com os outros”, “Soarom as vozes do arroido pella çidade ouvimdo todos braadar que matavom o
Meestre”, “Alli eram ouvidos braados de desvairadas maneiras”), mas também visuais (“se moverom
todos com maão armada, corremdo a pressa”, “A gemte começou de sse jumtar a elle, e era tanta que era
estranha cousa de veer. Nõ cabiam pellas ruas primçipaaes, e atrevessavom logares escusos”);
 Verifica-se uma concentração espacial (rua-paço-janela) que coincide com uma gradação e um ritmo
crescentes das ações (ao apelo do pajem e de Álvaro Pais, segue-se o alvoroço da população, que se
desloca para o paço e que aí mostra o seu estado de espírito – confusão, nervosismo), que culminam no
clímax: o aparecimento do Mestre à janela;
 Após a visão do Mestre, o ritmo narrativo diminui e o estado de espírito da população passa a ser de
alegria, de satisfação e de alívio (“ouveram gram prazer quamdo o virom”);
 Os sentimentos desta “gemte” são ainda realçados através das falas transcritas, que conferem uma
tonalidade realista e expressiva a todo o episódio. Estas falas servem também para denegrir a imagem
de Leonor Teles e para fazer a apologia do futuro monarca (veja-se como sai ilibado de ter matado o
conde – “Oo que mall fez! pois que matou o treedor do Comde, que nom matou logo <e> a alleivosa com
elle!”).

Entre a multidão (ator coletivo) destacam-se, porém, alguns atores individuais, nomeadamente:

 Pajem do Mestre – já preparado, desencadeia toda a movimentação posterior;

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 Álvaro Pais – avisado pelo pajem, e também ele pronto, pegou no seu cavalo e, com os seus aliados, foi
até ao paço, espalhando igualmente o alvoroço e influenciando o povo a correr em auxílio do Mestre;
 Mestre de Avis – atua segundo o conselho dos que o rodeiam; de início, parece ter receio da multidão;
depois, mostra-se à janela e, sentindo-se seguro, abandona o palácio e percorre as ruas da cidade a
cavalo até aos paços do Almirante;
 Quanto ao narrador, detetamos a sua subjetividade.

LINGUAGEM E ESTILO

 Visualismo e dinamismo – a movimentação e o sentir das massas são-nos apresentados de uma forma
muito forte e real, não só através de recursos expressivos, como a comparação, como também através
do apelo às sensações ou do uso de verbos de movimento.

CAPÍTULO CXV

RESUMO

 Ao saberem da vinda do rei de Castela, o Mestre e os habitantes de Lisboa começam a recolher


mantimentos e muitos vão às lezírias buscar gado morto.
 As populações movimentam-se: muitos lavradores deslocam-se com as mulheres, os filhos e com tudo o
que têm para dentro da cidade; outros vão para Setúbal e Palmela; outros ficam em Lisboa e há ainda os
que permanecem nas vilas que apoiam Castela.
 Começa-se a preparar a defesa da cidade: primeiro, pensa-se na defesa ao nível dos muros (muralhas)
e das torres, tarefa que o Mestre delega nos fidalgos e cidadãos honrados, que contam com a ajuda de
besteiros e homens de armas. Mostra-se preocupado com a guarda da cidade e ele próprio passa em
revista os muros e as torres, durante a noite. As gentes que aí se encontram estão alerta e são diligentes.
 Depois, analisa-se a defesa ao nível das portas da cidade: quantas eram, quem as vigiava e os cuidados
que eram tidos.
 Passa-se para a ribeira, zona onde foram construídas estacas para impedir e/ou dificultar a passagem
dos castelhanos.
 Ainda relativamente à defesa, refere-se a construção de um muro à volta das muralhas da cidade e a
ajuda das mulheres, que, sem medo, apanham pedras pelas herdades e entoam cantigas a louvar Lisboa.
 A propósito da construção desse muro, o narrador estabelece uma comparação entre os portugueses,
que tão bem defendem a sua cidade (constroem o muro ao mesmo tempo que defendem a cidade), e os
filhos de Israel, que fizeram o mesmo. Salienta-se, assim, a coragem e a determinação da população.
 Para além disso, é dito que todos estavam em sintonia e a pensar no bem comum, o que leva o cronista a
concluir o capítulo num tom elogioso. Com efeito, no final, Fernão Lopes menciona a superioridade do
rei de Castela (“tam alto e poderoso senhor como he elRei de Castella, com tamta multidom de gemtes”),
mas apenas com o objetivo de realçar a postura da cidade de Lisboa, que, perante um adversário tão
feroz, está “guarnecida comtra elle de gemtes e darmas”.

TÓPICOS DE ANÁLISE

 Neste capítulo, o leitor/ouvinte, a quem o cronista desde logo se dirige, começa por ser convidado a
presenciar:
• A descrição da cidade de Lisboa, quando o rei de Castela a cercou;
• A preparação da defesa da cidade pelo Mestre de Avis, juntamente com a população;
• O esforço, a valentia, a determinação que a gente de Lisboa mostrava;
 Continuando a interpelar o leitor/ouvinte (“Omde sabee que”), o cronista passa a relatar o que foi feito
relativamente aos mantimentos (2.º parágrafo), focando depois (a partir do 3.º parágrafo) a sua atenção
numa outra preocupação: a defesa da cidade;

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 Relativamente à defesa de Lisboa, a informação apresentada é bastante detalhada: primeiro fala-se dos
muros, depois das torres, chegando-se por fim às portas da cidade e ao rio. Os pormenores descritivos
abundam;
 Porém, à medida que o cronista vai descrevendo o que foi feito para proteger a cidade, vai também
mostrando os grupos sociais – os atores coletivos – que participaram nestes preparativos. Desta forma,
vemos como os lavradores se recolheram à cidade, como a defesa das muralhas foi entregue aos
“fidallgos e çidadaãos homrrados”, aos “hom˜ees darmas”, aos “mesteiraaes”. Até as mulheres tiveram
um papel a desempenhar, apanhando pedras e cantando;
 A cantiga transcrita ilustra bem o espírito de solidariedade, de entreajuda, de patriotismo e de orgulho
que reinava entre as gentes da cidade. Aliás, a atitude dessas gentes é várias vezes elogiada pelo
narrador. É, assim, evidente a afirmação da consciência coletiva, uma consciência pela defesa da
cidade contra o inimigo;
 Mas não são só as gentes da cidade que têm um comportamento digno de louvor. Também o Mestre de
Avis – ator individual – merece uma caracterização favorável, destacando-se a sua diligência e
determinação, bem como todo o apoio que deu à população.

LINGUAGEM E ESTILO

 Registo coloquial – evidente nos apelos ao leitor/ouvinte e no uso da 2.ª pessoa do plural; a transcrição
da cantiga, ao reproduzir uma linguagem popular e carregada de insinuações, contribui também para o
tom coloquial;
 Descrição viva e dinâmica – os preparativos de defesa são apresentados com minúcia, recorrendo a
pormenores (quantificação), a vocabulário técnico e a recursos expressivos, como a enumeração
(“forom feitos fortes caramanchoões de madeira, os quaaes eram bem forneçidos descudos e lamças e
dardos e beestas de torno”) e a adjetivação (“gramde e poderoso çerco”, “fortes caramanchões”, “Oo
que fremosa cousa”, “tam alto e poderoso senhor”, “tam fremoso cerco”).

CAPÍTILO CXLVIII

RESUMO

 Estando a cidade cercada, os mantimentos começam a faltar, por causa da quantidade de pessoas que
estavam dentro das muralhas de Lisboa, o que leva a que alguns procurem alimentos fora da cidade e
vão de barco, à noite, buscar trigo, correndo perigo;
 As esmolas também escasseiam e já não há como socorrer os pobres. Então, estabelece-se quem deve ser
posto fora da cidade: as pessoas miseráveis, os que não combatem, as prostitutas, os judeus.
Inicialmente, os castelhanos acolhem estas gentes, mas, quando percebem que tal ato se devia à fome,
também eles as expulsam do seu acampamento;
 Na cidade, há carência de todo o tipo de alimentos, como trigo, milho e vinho. O preço destes produtos
é elevado e, por isso, os hábitos alimentares mudam e até há quem procure apenas grãos de trigo na terra
ou quem beba tanta água que acabe por morrer. A carne e os ovos são outros dos alimentos em falta e
muito caros;
 As crianças não têm de comer e andam pela cidade a pedir; as mães não têm leite para os seus filhos e
veem-nos morrer. Toda a cidade está envolta num ambiente de tristeza, de pesar e de morte. As pessoas
dirigem preces a Deus. O desespero é tal que há até rumores de que o Mestre vai expulsar da cidade
todos os que não têm que comer. Porém, esse rumor é desmentido;
 O capítulo termina com um forte apelo ao leitor/ouvinte, representante da “geeraçom que depois veo”,
designado de bem-aventurado, pois não teve que enfrentar os sofrimentos descritos.

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TÓPICOS DE ANÁLISE

 Mais uma vez, o capítulo inicia-se com uma interpelação ao leitor/ouvinte (“Estamdo a çidade assi
çercada na maneira que ja ouvistes”), através da qual se estabelece uma ponte com o capítulo anterior e
se transmite uma ideia de continuidade e de ligação a um dos centros nevrálgicos da narrativa: o cerco
de Lisboa.
 Mais uma vez também, o protagonismo é dado às gentes de Lisboa (ator coletivo), que vivem momentos
atrozes por causa da fome que assola a cidade, devido ao grande número de pessoas que nela se
acolheram.
 Num estilo vivo e emotivo, o cronista narra e descreve, pormenorizadamente, o sofrimento da
população: a procura arriscada de trigo, à noite e em barcos; a falta de meios (esmolas) para socorrer os
pobres; a expulsão de todos aqueles que não podiam combater, bem como dos judeus e das prostitutas;
a recusa dos castelhanos em receber no seu acampamento os que foram expulsos; a procura
desesperada de algo que comer e beber. O sofrimento é evidenciado através de pormenores, como, por
exemplo, o preço exorbitante de alguns alimentos.
 Perante este cenário, o narrador mostra-se solidário e pretende mesmo comover/sensibilizar os
leitores. Por isso, dirige-lhes, repetidamente, perguntas retóricas carregadas de intensidade;
 O Mestre de Avis (ator individual) aparece-nos neste capítulo como o chefe que tem de tomar decisões,
algumas difíceis até, a bem da comunidade, como a expulsão dos inaptos. Por outro lado, mostra-se
solidário com as suas gentes;

LINGUAGEM E ESTILO

 Rigor do pormenor – patente, por exemplo, na descrição detalhada dos que saíam à noite de barco e iam
buscar trigo; na informação precisa sobre o preço de alguns alimentos, como o trigo, o milho, o vinho, a
carne – recurso à enumeração.
 Conjugação de planos – por um lado, é-nos dado um plano geral da cidade; por outro, são-nos
apresentados planos de pormenor (por exemplo, quando a atenção se foca nos pobres, nos que foram
expulsos da cidade, nos homens e nas moças cheios de fome que esgaravatavam a terra).
 Coloquialismo – muito evidente nas interrogações retóricas e no uso do imperativo, no último
parágrafo, combinado com a comparação (“Hora esguardaae, como se fossees presente”).

ESTRUTURAÇÃO DA OBRA

Estando agora contextualizados em relação ao que é narrado na obra de Fernão Lpes, podemos afirmar que
esta pode dividir-se em duas partes:

1ª parte – Nesta parte são narrados os acontecimentos decorrentes da morte do rei D. Fernando, desde
a crise de sucessão de 1383-1385, até à aclamação do Mestre de Avis como D. João I, Rei de Portugal;

2ª parte – Esta parte narra os acontecimentos ocorridos durante o reinado de D. João I.

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ATORES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

O facto de o povo ser o protagonista por excelência das crónicas de Fernão Lopes, e em particular da Crónica
de D. João I, não invalida, porém, a existência de atores individuais.

INDIVIDUAIS

Na crónica em questão, podemos identificar alguns atores individuais e alguns com papéis relevantes, como é
o caso de:

 D. João I, Mestre de Avis – É caracterizado como um homem vulgar, hesitante/receoso e vulnerável às


fraquezas, como é possível verificar, por exemplo, pelas oscilações do seu comportamento aquando da
conjura contra o conde Andeiro. Apesar destes defeitos – que o tornam uma personagem
profundamente realista –, D. João I mostra também ser capaz de atos espontâneos de solidariedade, o
que o converte numa figura cativante, carinhosa e apoiada pelo povo de Lisboa;
 Álvaro Pais – o burguês que espalha pelas ruas de Lisboa que estão a matar o Mestre, influenciando o
povo a correr em seu auxílio;
 D. Leonor Teles – É caracterizada de forma profundamente negativa, na medida em que é descrita como
objeto de um ódio profundo por parte do povo, sendo, além disso, alvo das acusações do partido que
queria a independência do trono português e suspeita de ter sido a responsável pela morte do marido,
D. Fernando. Apesar disto, Fernão Lopes não oculta a sua grandeza e força, que lhe permitem
manipular figuras masculinas, como D. Fernando, D. João de Castro (filho ilegítimo de D. Pedro e de D.
Inês de Castro) e o próprio Mestre de Avis, e enfrentar, mesmo após a derrota, o rei de Castela,
recusando-se a ingressar num convento. Pode ser considerada como, a mulher que gera ódios na
população e que é apelidada de “aleivosa” (traidora);
 Nuno Álvares Pereira – É caracterizado como um herói hagiográfico, isto é, com traços de santidade, e,
ao mesmo tempo, como um grande guerreiro;
 Rei de Castela – Representa a força de Castela é caracterizado por ser orgulhoso, ambicioso e calculista;
 Conde Andeiro – Rosto da ameaça castelhana sobre a integridade nacional, acabando por funcionar
como “bode expiatório” para o desencadear da revolução.

Todas estas figuras são apresentadas pelo cronista na sua densidade psicológica, nos dramas, nas angústias e
nos anseios e, por isso, ainda que muito diferentes, aproximam-se pelo seu lado humano. Mesmo quando o
cronista foca a sua atenção nestes atores individuais, fá-lo, porém, apenas no sentido de os integrar num todo,
na sociedade à qual pertencem. Daí a consciência coletiva ser tão marcante na sua obra.

COLETIVOS

As personagens coletivas têm um papel ativo e decisivo, determinando o curso dos acontecimentos.

Com efeito, sempre que é narrado um evento importante, o cronista faz questão de expor a opinião pública no
respetivo assunto, como sucede aquando do cerco de Lisboa, momento em que a população da cidade oscila
entre a esperança de que a frota castelhana fosse derrotada e o receio de que os castelhanos saíssem vitoriosos,
exercendo uma vingança cruel sobre os sitiados.

Esta expressão de sentimentos da coletividade é, por vezes, resumida através de um dito que sai de uma
multidão – como sucede com as cantigas entoadas durante o cerco de Lisboa, que mostram a profunda
determinação dos habitantes da cidade.

A importância conferida a uma entidade coletiva nos eventos históricos (como sucede aquando da derrota dos
castelhanos no cerco de Lisboa, cujo mérito é atribuído à população da cidade) torna Fernão Lopes um cronista
único entre os seus congéneres medievais.

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AFIRMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA COLETIVA

A Crónica de D. João I representa a legitimação da dinastia de Avis, mas importa referir que essa legitimação
se originou da força do povo, habilmente “conduzido”, é certo, por Álvaro Pais. Na verdade, o povo, foi a força
motora da revolução, representando todos aqueles que queriam preservar a independência de Portugal, todos
aqueles que manifestavam um amor à terra onde nasceram, que cultivavam e da qual dependiam para viver.

Por essa razão, é possível dizer que a Crónica de D. João I constitui uma afirmação da consciência coletiva, no
sentido em que o verdadeiro herói que povoa as suas páginas não é um herói individual, mas antes um herói
coletivo – o povo. Fernão Lopes mostra-nos com imenso realismo, vivacidade, pormenor descritivo e
emotividade o povo que se revolta, que surge nas ruas de Lisboa à procura do Mestre, que defende a cidade
contra os castelhanos, que passa fome e privações por causa do cerco.

A voz do povo, o sentir dos homens e das mulheres, dos mesteirais, dos homens-bons, é muitas vezes
transmitida através de uma voz anónima da multidão. Outras vezes, é a própria cidade que parece revelar essa
consciência do todo, assumindo quase o estatuto de uma personagem coletiva.

A afirmação da consciência coletiva é uma inovação e, simultaneamente, uma prova da originalidade e da


modernidade de Fernão Lopes. De facto, ele é um cronista, um historiador que se preocupa mais com os
movimentos de fundo, com as massas e com a visão de conjunto do que propriamente com a minoria
populacional da sociedade, sendo esta as figuras de elite.

SÍNTESE DE CONTEÚDOS

CRÓNICA DE D. JOÃO I
Autor Fernão Lopes

Género Crónica – narração histórica pela ordem do tempo em que se deram os factos

1.ª parte – da morte de D. Fernando até à eleição de D. João I


Estrutura
2.ª parte – do início do reinado de D. João I (1385) até 1411 (paz com Castela)

Morte do rei D. Fernando e crise de sucessão dinástica

Revolução popular e burguesa

Morte do conde João Fernandes Andeiro


Contexto histórico: Nomeação do Mestre de Avis como regedor e defensor do reino
Crise política de 1383 -
1385 Cerco de Lisboa (capítulos 115 e 148) e luta pela independência contra Castela

Proclamação do Mestre de Avis como D. João I de Portugal – início da dinastia de Avis

Batalha de Aljubarrota

O povo manifesta o seu patriotismo, o seu apoio ao Mestre, garante da independência de


Afirmação da Portugal, pelas ruas da cidade de Lisboa, após o assassinato do conde Andeiro
consciência coletiva
O povo é o verdadeiro herói da revolução e da crónica de Fernão Lopes

Atores individuais – figuras históricas como o Mestre de Avis, Álvaro Pais, D. Leonor Teles
Atores individuais e
coletivos Atores coletivos – as gentes de Lisboa, quer como uma massa, uma coletividade

Descrição viva e dinâmica – sensações visuais, auditivas; ritmo acelerado; uso de recursos
expressivos
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