Você está na página 1de 52

Publicação quadrimestral n.

º 121 Setembro/Dezembro 2020


Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância
Preço 8,5¤ (iva incluído) ISSN 2182-8369
Publicação quadrimestral Equipa editorial: Ana Maria Azevedo, Ana Isabel Santos,
n.º 121 Cristina Mesquita, Joana Freitas-Luís, Liliana Marques, Luís Ribeiro,
Tiragem: 4.200 exemplares Maria do Carmo Góis, Maria do Céu Velez, Maria de Fátima Godinho,
Publicação Quadrimestral n.º 120 Maio l Agosto 2020
Edição, Propriedade e Redação: Associação Maria Helena Horta e Susana Alberto
Revisão: António Simões do Paço Design gráfico: Raquel Beato
Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância

de Profissionais de Educação de Infância


Preço 8.50¤ (iva incluído) ISSN 2182-8369

Bairro da Liberdade, Lote 9, Loja 14, Piso 0. Impressão: Sersilito, Empresa Gráfica, Lda Preço por número:8,5¤
1070-023 LISBOA Assinaturas: 1 ano: 25¤ (iva incluído), estrangeiro (1 ano) 35¤
Tel. 21 382 76 19/20 Fax. 21 382 76 21 N.º de registo: ERC: 112028 Depósito legal: 12929/86
E-mail: apei@apei.pt Website:www.apei.pt ISSN: 2182-8369
NIPC: 501 226 737 Os artigos assinados não exprimem necessariamente o ponto de vista da Direção.
Diretor: Luís Ribeiro (Presidente da APEI)

1 Editorial . Luís Ribeiro 32 Artigo . Eunice Jorge Rodrigues Seabra


Tecendo OCEPE no Jardim@Distância

2 Artigo . Fernando Moital


Inclusão rima com inspiração?
35 Artigo . Jorgiana Ricardo Pereira
A relação eficaz entre formações centradas numa pedagogia
4 Práticas . Sílvia Berény e Rita Brandão participativa e o desenvolvimento de lideranças pedagógicas
na educação de infância
”Imaginómetro: de dentro para fora" – viagens em
tempo de confinamento

39 Artigo . Ana Cristina Lavandeira Simões


7 Artigo . Sara del Rio Intervenção Precoce: o papel do educador de infância no apoio
domiciliário
Um ateliê inspirado na abordagem de Reggio Emilia em
tempo de distanciamento social

41 Artigo . Diana Domingos, Ana Catarina Baptista e Susana Rodrigues


Identificação precoce de crianças com perturbações dos sons da fala
11 Artigo . Mariana Estrela
Brincar ao ar livre – transformação das práticas
pedagógicas no espaço exterior 45 Nas Bancas: Edições APEI

15 Artigo . Mariana Moreira, Rita Cordovil, Guida Veiga, Frederico Lopes 46 Nas Bancas: Infância
Mudam-se os tempos, mudam-se os jardins de
infância: O impacto da pandemia COVID-19 na
qualidade do envolvimento físico e práticas do jardim 48 Nas Bancas: Educação
de infância e sua influência no comportamento da
criança do pré-escolar

21 Práticas . Ana de Mesquita Guimarães


A sala é lá fora. A abordagem de Reggio Emilia em dois
projetos no Norte de Portugal

28 Práticas . Lina Nascimento


Tripé mágico da educação financeira

Estatuto Editorial Os Cadernos de Educação de Infância, fundados em 1987, são uma revista quadrimestral, independente e livre, especializada no campo da educação de infância, que pretende contribuir,
através da divulgação de artigos concetuais e de práticas educativas de qualidade, para a discussão da pedagogia e da educação e para o aprofundamento da compreensão da infância. As suas opções
editoriais são orientadas por critérios de qualidade, rigor e criatividade editorial, estabelecidas sem qualquer dependência de ordem ideológica, corporativa, política, social ou económica, valorizando a
pluralidade de olhares que sejam promotores de reflexão e discussão sobre a educação de infância, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento pedagógico e científico dos seus profissionais e para
a definição de políticas educativas a nível nacional e europeu. No campo da informação e da opinião, orienta-se pelas disposições contidas na Declaração dos Direitos da Criança, na Declaração Universal
dos Direitos do Homem, na Constituição da República Portuguesa, no Estatuto do Jornalista, na Lei de Imprensa, no Código Deontológico dos Jornalistas e nos princípios da ética profissional produzida
e assumida no seio da comunidade da informação, de âmbito nacional ou internacional.

A APEI é apoiada pelo Ministério de Educação no âmbito do protocolo de afetação de recursos humanos
# 121
: EDITORIAL
Luís Ribeiro . Presidente da APEI

Depois de 2020 nos ter deixado imersos numa educação de infância, que sofreu uma signifi- escolar; foi, igualmente, excluída dos trabalhos
pandemia à escala global, cujo efeito, em par- cativa inflexão a partir de 2016. do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade
ticular nas crianças, ainda está por apurar, as Desde a instauração da democracia em Portu- Obrigatória, embora a APEI, através da equi-
expectativas de que neste ano a humanidade gal que a aposta no desenvolvimento da edu- pa de autoras das OCEPE, tivesse participado
possa voltar a registos de normalidade é muito cação pré-escolar foi exponencial. Para além em todas as reuniões e tivesse o documento
elevada. da criação do sistema público de educação pré-escolar/escolar concluído; as orientações
Em Portugal, como um pouco por todos os pré-escolar, em 1977, e da formação superior pedagógicas para a creche, apesar de cons-
países ocidentais, os investigadores estão a de educadores de infância, no início dos anos tarem do programa do Governo, teimam em
promover vários estudos para medir os efeitos 80 do século passado, a partir de 1997, com não arrancar; e, recentemente, a indicação
que o distanciamento social teve no desenvol- a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré- dada pela DGE aos agrupamentos de escolas
vimento das crianças, que serão certamente -Escolar, a exigência do nível de mestrado na a propósito do Plano de Capacitação Digital
muito úteis para avaliar os efeitos nefastos do formação inicial para a qualificação profissional foi a da exclusão dos educadores de infância
condicionamento das interações entre crianças para a docência e a integração dos jardins de do processo, referindo-se a estes profissio-
e entre crianças e adultos. infância da rede pública em agrupamentos de nais como “os do ensino pré-escolar”, uma
Mas a pandemia, um pouco paradoxalmente, escolas, este conjunto de medidas de grande terminologia totalmente desadequada, já que
também permitiu que o melhor de todos nós alcance destacou a importância da educação desde a reforma da Lei de Bases do Sistema
emergisse, sendo muitos os relatos de práticas nos primeiros anos e foi consolidando o princí- Educativo de 1973 (há quase 50 anos!) que a
pedagógicas que, apesar de todos os cons- pio de que a educação pré-escolar é a primeira expressão corretamente utilizada é “educação
trangimentos, se conseguiram reinventar e etapa da educação básica, num processo de pré-escolar”.
continuar a prestar às crianças respostas edu- formação ao longo da vida. Um sentimento muito vivo de um regresso
cativas de alta qualidade, algumas das quais No entanto, a partir de 2016 e logo após a a um passado que se julgava definitivamen-
foram traduzidas para artigos que temos o publicação das novas OCEPE, paulatinamen- te ultrapassado e um corte com uma política
privilégio de poder publicar neste número dos te a educação pré-escolar passou a deixar de de promoção da educação de infância pouco
Cadernos de Educação de Infância. constar das políticas educativas: não integrou inteligível.
Mas se há sinais de que 2021 será o ano do o Programa Nacional de Promoção do Su- Excelentes leituras e até maio!
progressivo retorno à normalidade, outros há cesso Escolar, apesar de os discursos oficiais
que nos geram grande apreensão, particular- enfatizarem que uma educação pré-escolar
mente os ligados à política educativa para a de qualidade é o maior preditor de sucesso

1 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO
Inclusão rima com inspiração?
Fernando Moital . Professor “não praticante”, atualmente coordenador de um projeto de inclusão social

No Alentejo há uma população de concida- vezes a escola. Mudou pouco na “V-lândia”.


dãos compulsivamente nómadas. Quarenta Ano de 2019. Numa das visitas ao acampa-
a oitenta famílias? Duzentas a quatro- mento provisório encontro estas crianças a
centas crianças e jovens? Quem são estas brincar às casinhas. Uma brincadeira que eu
pessoas? Quem são estas crianças? A que também fiz e, provavelmente, o ou a cara lei-
brincam? Convocam-nos para uma inclusão tora também.
urgente. Só? É a exclusão maior, a vida destas crianças:
Ano: 1998. Casa Branca, Montemor-o-No- vivem sem água, sem recolha de lixo, sem
vo. Cruzei-me pela primeira vez com conci- casas de banho, sem energia e ao relento.
dadãos compulsivamente nómadas. Desde Obviamente, também sem TV. As ligações
então, por razões profissionais e pessoais, esporádicas ao “nosso mundo” são feitas das
os contactos com estas pessoas têm ocor- idas irregulares à escola, ao médico, ao super-
rido cada vez mais amiúde. mercado, ao estacionamento do shopping...
As fotografias funcionaram sempre como Perguntei a várias crianças se já tinham
um elo de ligação e continuidade. Vou ser- ouvido falar do Cristiano Ronaldo. Nunca.
vir-me de algumas para contar uma história Quantas perguntas terão mais que ser in-
impossível. ventadas para se fazer o retrato da exclusão
V. surge na fotografia em Casa Branca, maior destas crianças? Não saber abrir uma
Montemor-o-Novo. Teria então 8-10 anos. torneira conta?
Frequentava a escola “às vezes”. A família Estas crianças brincam muito. Em grupo
era compulsivamente nómada. Vinte anos alargado, em contacto com a natureza, em
depois, perto de Évora, volto a fotografar autonomia, em brincadeira livre como muito
V. já com quatro filhos e mais um a cami- poucas crianças hoje têm. Quando olho es-
nho. Estas crianças já não andam sempre tas fotografias, mas sobretudo quando es-
descalças, mas continuam compulsivamen- tou com elas, tento ver para além do óbvio,
te nómadas. Os filhos de V. frequentam às dos seus problemas. Até que ponto podem,

2 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


Já?
já tentaste praticar o bem
fazendo mal?
já tentaste praticar o mal
fazendo bem?
já tentaste praticar o bem
fazendo bem?
já tentaste praticar o mal
fazendo mal?
já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?
já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?
já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?
e o contrário, já tentaste?
já?
seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga.
Alberto Pimenta, in “Prodigioso Acanto”

também, ser inspiradoras para lidarmos com E se o processo de inclusão passasse pela ida
os problemas tão presentes, e tão novos, que da escola às famílias?
enfrentamos: obesidade infantil, falta de au- Aprendi a usar o termo compulsivo sempre
tonomia, pouco ou nenhum contacto com a que ensaio algum discurso sobre estes cida-
natureza, quase ausência de brincadeira livre, dãos. E não é por acaso. É porque, ao contrá-
brincadeira em grupos alargados, sem adições rio do que é “assumido”, estas pessoas não
digitais... Será demasiado utópico pensar que gostam e não querem viver desta maneira.
a sua inclusão pode também passar por aquilo Como outras assunções: que não adoecem,
que têm para nos inspirar? que não se querem integrar, que ....

3 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS
?
“Imaginómetro: de dentro para fora” – viagens em tempo de confinamen-
?.?
to
Sílvia Berény . Diretora do OSMOPE – Movimento das Pontes Educativas. Rita Brandão . coordenadora do Ateliê OSMOPE
– Movimento das Pontes Educativas
O projeto “Imaginómetro: de dentro para além da reorganização evidente a que a so- do lugar da casa e dos espaços domésticos,
fora” foi desenvolvido pela equipa de crian- ciedade teve de sujeitar-se, foi também mais confundiu papéis e funções, saturou o es-
ças e adultos da OSMOPE durante o período clara a tomada de consciência do que é a na- paço com múltiplas personagens e funções
de confinamento, consequência da pandemia tureza humana relativamente às suas preo- simultâneas, confundiu intimidade com
causada pela covid-19. Pretendeu-se retratar cupações, nas várias relações com o espaço, profanação. Quanto maiores as dificulda-
a forma como as crianças viram e entende- o tempo e o outro, pondo à prova o concei- des – casas pequenas e desconfortáveis,
ram a repentina transformação do mundo, to de liquidez social que tanto caracteriza a mal insonorizadas, sem varandas, pais aflitos
considerando que os registos dos mais no- nossa nova modernidade (Bauman, 2001), e em teletrabalho, lay off ou desemprego –,
vos são um valioso contributo para o debate. relembrando Habermas (1988) nas suas re- mais se crisparam estas tensões. O papel
flexões sobre a ação comunicativa. A liquidez de refúgio da casa, do regresso ao mundo
A OSMOPE, enquanto instituição educati- de Bauman, como a água que toma a forma de cada um e da família, ficou perturbado.
va para a primeira infância (0 aos 10 anos), do vaso que a contém, salienta o excesso de Repentinamente, a nossa casa passa a ter
evidencia um trabalho de valorização da ex- rigidez da visão estruturalista da sociedade que abraçar também, e em simultâneo para
pressão artística como dispositivo mediador e das suas dinâmicas, para enfatizar a plas- os diversos elementos da família, as funções
crucial no desenrolar do projeto educativo. A ticidade, a mudança, a instabilidade. Desta que anteriormente pertenciam à escola, ao
sua actuação e reflexão baseiam-se na ne- forma, as questões que as tecnologias vão trabalho ou ao lazer. Confinados a um es-
cessidade de uma relação precoce das crian- colocando e a mediação que provocam sobre paço afetivo, físico e social, e com o avultar
ças com a cidade – espaços arquitetónicos, o modo como nos organizamos são mais um do tempo em isolamento, cresce natural-
artísticos e culturais que a envolvem – e a dado para essa permanente instabilidade, mente, quer nas crianças quer nos adultos,
construção de pontes educativas segundo alimentando-a. a vontade de (voltar a) viver experiências
uma perspetiva sensível da educação, ins- O confinamento provocou uma sobrecarga significativas no além portas. A curiosidade
pirada nos dispositivos de mediação que a
arte nos sugere – ver, olhar, reparar, sentir,
experimentar, comunicar e, por fim, traduzir.
A postura sócio-construtivista da educação
que caracteriza o projeto educativo da ins-
tituição, alicerçada num caráter lúdico cons-
tante, em simultâneo com uma forte inten-
cionalidade educativa, supõem uma abertura
efetiva e afetiva a esses espaços de pertença
de todos nós e da escola em particular.
O panorama perturbador da pandemia de
covid-19, que apelou ao isolamento social e
físico de toda a comunidade, levou a escola
a repensar e a refletir, de uma forma mais in-
tensa, sobre várias questões que arquitetam
a nossa vida e a nossa perspetiva de habi-
tar o mundo. A imaginação e a criatividade
evidenciaram-se como palavras-chave para o
contínuo desenvolvimento de aprendizagens
por metodologias de ensino à distância. A
mediação através de interfaces tecnológi-
cos, com todas as limitações que este tipo
de circuitos acarreta, foi uma inevitabilidade,
forçando-nos a reinventar novas formas de
educar, comunicar e nos aproximarmos. Para Fig. 1 - Construção partilhada do imaginómetro em família.

4 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


relacionada com o tempo e com o seu efeito onde nos conseguimos viajar para onde qui-
sobre os objetos, as pessoas e os espaços, sermos. De dentro da sala para fora, eu pos-
que agora, e espera-se momentaneamen- so ir brincar para o parque infantil. De den-
te, estão distantes e portanto não visíveis, tro da cozinha para fora, posso ir conhecer
levam-nos a querer espreitar sem no entanto o Japão. De dentro da lavandaria para fora,
poder sair da nossa redoma. A saudade do posso viajar até à Lua. Vamos precisar do
outro relembra-nos o desejo do relacional. nosso imaginómetro. Tudo a postos? Vamos
Foi no seguimento destas tensões que a começar a nossa viagem!”
OSMOPE decidiu propor às crianças algo Desconstruir para reconstruir, selecionar, re-
que as provocasse no cruzamento de três -elaborar, partir do conhecido e modificá-lo
dimensões: o espaço, o tempo e a relação. de acordo com o contexto: assim começa-
A mediação e a provocação que eram pre- ram a surgir as primeiras produções únicas
viamente feitas pela escola diretamente às e diferenciadas que foram sendo partilhadas
crianças passam a ter mais um intermediá- (fig. 1 a 8). Fig. 2 - Resultado final de um imaginómetro: “Sub-
rio, as famílias, que tanto podem clarificar e Desenhar e criar um objeto mediador entre o marino Manuel”.
facilitar a disseminação da mensagem como “dentro-confinado” e o “fora-desconfinado”
entorpecê-la e distorcê-la. Surge assim a permitiu e exponenciou a criação de pontes
necessidade da criação e desenho de um entre crianças e o mundo exterior, através do
enunciado suficientemente aberto que per- questionamento, do pensamento, da ima-
mita às famílias a sua própria reinterpreta- gem e da criação, catalisando a imaginação e
ção, mas ao mesmo tempo suficientemente mediando relações, espaços e tempos. Este
focado para que a comunicação e o objetivo projeto assume uma importância relacional,
de questionamento sejam alcançados com a focada no processo, mas também funcional,
maior eficácia possível (fig. 1). catalizando pensamento crítico, mediando o
Desta forma, a equipa organizou-se na cons- real-imaginário, que está para além do confi-
trução de uma proposta em formato vídeo nado visível e próximo.
com cerca de cinco minutos que foi enviada Qualquer que seja a diversidade de atitu-
a todos os alunos e que contava com a par- des e expectativas face ao desenrolar deste
ticipação dos vários professores de todas as projeto, a produção de sentidos é a questão Fig. 3 - Relação da criança com o objeto criado, con-
expressões artísticas da escola.1 Neste desa- fundamental que nos interessa explorar. É vocando novos elementos e materiais para a brinca-
fio, a equipa surge em diálogo direto entre a imensidade de recursos e interesses que deira.
si, expondo o espaço de cada um e lançan- o campo artístico disponibiliza que o torna
do questões que vão sendo alternadamente um mediador privilegiado no processo edu-
respondidas por todos. Através da exposição cativo. O contacto com técnicas e materiais
das ideias, suposições e hipóteses do real e diferentes permite uma nova forma de olhar
imaginário por parte da equipa, as crianças o conhecido, explorando outras dimensões
ficam motivadas para a provocação. do comum e organizando novos e velhos
conhecimentos sobre este espaço que si-
“Estar em casa significa que não sabemos o multaneamente nos é tão próximo quanto
que se passa lá fora… Será verdade?” desconhecido. A existência de um limite na
Este foi o mote para o desenvolvimento do seleção dos materiais, inerente à situação de
projeto artístico-pedagógico. confinamento, permitiu o crescendo da cria-
“A nossa casa vai passar a ser o espaço de tividade e da diversidade de produções.
É bem visível neste projeto, e através do ví-
1 André Freitas, Rita Brandão e Rita Galante (Ateliê); deo inicialmente partilhado pela equipa, que Fig. 4 - Resolução de problemas: os materiais e as
Maria José Barros (Música); Tânia Silva (Biblioteca e os professores se devem implicar como pas- suas diversas possibilidades.
Promoção de Leitura).

5 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS

Fig. 5 - Produto final apresentado pela criança ao de- Fig. 6 - Produto final apresentado pela criança ao Fig. 7 - Produto final apresentado pela criança ao
safio proposto. Objeto de mediação do olhar. desafio proposto. A incorporação da criança no ob- desafio proposto. Exploração de diferentes suportes
jeto construído. de comunicação.

sageiros narradores principais de todas as prática. Artmed. São Paulo.


Gomes da Silva, S. (2012). Programa Descobrir. Semen-
aventuras. A produção de discursos narrati- tes de educação artística
vos e/ou provocadores nos quais nos assu- para cidadãos curiosos. Cadernos de Educação de In-
mimos como agentes protagonistas destas fância n.º 96. Associação dos Profissionais de Educa-
ção de Infância. Lisboa.
viagens, como refere Nóvoa (2009), facilita BIBLIOGRAFIA Habermas, J. (1988), Teoría de la Acción Comunicativa.
o processo educativo: “Educar é contar uma Berény, S. (2011). Retratos da arte na educação. Edi-
Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, v. I e
tora Rés. Porto.
história, e inscrever cada criança, cada jo- II. (1ª ed., 1981).
Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Editora Jor-
Katz, L., Chard, S. (1997). A Abordagem de Projecto
vem, nessa história.” ge Zahar. Rio de Janeiro.
na Educação de Infância, Lisboa, Fundação Calouste
Quando existe um limite no não-limite es- Barriga, S. & Gomes da Silva, S. (coord.) (2007). Serviços
Gulbenkian.
educativos na cultura: desenhar pontos de encontro.
tamos a favorecer um campo fértil para o Leite, C. (2003). Para uma escola curricularmente inte-
Coleção Públicos. Setepés. Porto.
ligente, Rio Tinto: Edições ASA.
desenvolvimento da metacognição e con- Blauvelt, A. (2008). Towards relational design. Design
Malaguzzi, L. (1991). La Integración de la Diversidad.
sequente consolidação de aprendizagens Observer. Acedido em 15/05/2019 em http://art.yale.
Contexto Social Dónde se Produce, Infancia, Barcelo-
edu/file_columns/0000/0076/blauvelt.pdf
significativas. Como colorir sem ter acesso na, n.º 6.
Brandão, R, Providência, B., Lopes, L. (2019). O design
Norman, D. (2004). Why we love (or hate) everyday
às tintas a que estamos habituados? Que como ferramenta educativa para a comunicação da
things. Perseus Books Group. New York.
materiais tenho em casa para criar uma su- cultura ao público infantil nos museus. Universidade
Nóvoa, 2009, “Professores: história é o que somos
do Minho (dissertação de mestrado).
perfície transparente? Como dou resistência mais o que podemos fazer”, a Página da Educação,
Dahlberg, G., Moss, P., Pence, A. (2003). Qualidade
acedido em Setembro 2020 em https://www.apagina.
a uma estrutura de cartão? Como combinar na educação da primeira infância. Perspectivas pós-
pt/?aba=7&cat=532&doc=13697&mid=2
materiais com diferentes texturas? São tudo modernas. Artmed. São Paulo.
Oliveira-Formosinho, J., Araújo, S. (2008). Escutar as
Damásio, A. (2017). A estranha ordem das coisas: a
questões e problemas que as crianças e as vozes das crianças como meio de (re)construção de
vida, os sentimentos e as culturas humanas. Temas e
conhecimento acerca da infância: algumas implicações
famílias tiveram que identificar e resolver Debates. Lisboa
metodológicas, in J. Oliveira-Formosinho (org.), A
(fig. 5). Deleuze, G. (1985). Les intercesseurs. L’Autre journal,
escola vista pelas crianças. Porto Editora. Porto.
8, 165-184. Les Éditions de Minuit,
Educar é “fazer uma viagem pela cultura, Vasconcelos, T. (1997). A Educação de Infância no
Paris. Acedido em 15/05/2019 em http://lesilencequi-
Cruzamento de Fronteiras. Texto Editora. Porto.
pelo conhecimento, pela criação. Uma via- parle.unblog.fr/2010/02/23/les-intercesseurs-gilles-
Zabalza, M. (1992). Didáctica da Educação Infantil,
gem, para recorrer a Proust, na qual mais -deleuze/
Rio Tinto: Edições Asa.
Ferreira, I., Semedo, A., Nascimento, E. (2015). Criativi-
importante do que encontrar novas terras dade nos Museus. Espaços entre e elementos de me-
é alcançar novos olhares” (Nóvoa, 2009). diação (tese de doutoramento). Faculdade de Letras da
Olhemos, pois, através destes imaginóme- Universidade do Porto. Porto.
Fontoura, A. M. (2002). EdaDe: educação de crianças
tros, e deixemo-nos viajar. e jovens através do Design (tese de doutoramento).
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis.
Gardner, H. (1995). Inteligências Múltiplas. A teoria na

6 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

Um ateliê inspirado na abordagem de Reggio Emilia


em tempo de distanciamento social
Sara del Rio . Ateliê Maria Brinca à Sombra

O ateliê, como espaço de investigação e lias que os frequentam – mas também para
exploração criativa para a infância, tem um todas as pessoas que têm crianças ao seu
conjunto de pressupostos que pensamos a cuidado.
priori impossíveis de adaptar ao novo para-
digma do “à distância”. Permanecendo fiel à O ateliê como multiplicador
importância dos materiais para o desenvol- de possibilidades
vimento infantil, tenho esperança de que as O ateliê é um espaço de pensamento e de
práticas não caiam em adaptações forçadas pesquisa coletiva. Não é apenas o local
que negam os direitos essenciais das crian- para aprender arte e técnicas artísticas. As
ças. Vou reflectir sobre estes desafios neste crianças abordam os materiais com espírito
artigo, escrito inicialmente em abril, no iní- indagador, questionam-se enquanto afun-
cio da crise do covid-19. dam as mãos na tinta, colocam hipóteses
Nestas últimas semanas, apesar de confi- enquanto misturam cores, observam os ou-
nados devido ao covid-19, as coisas andam tros enquanto brincam com o barro. Este
agitadas. Estamos em ensaios, a testar no- pensamento faz-se com os materiais, claro
vos procedimentos. Mas esperamos que está, mas também é preciso perceber o que
seja apenas temporário e que não tarda vol- está para além do espaço físico.
temos todos à vida como a conhecíamos. O ateliê é o espaço, mas também é as pes-
As escolas estão a passar para plataformas soas, as relações. Há toda uma materiali-
online, aquelas que se baseiam num modelo dade, mas há também um lado metafísico, afectou o ateliê. Foi subitamente fechado.
de transmissão de conteúdos só mudam a que está para além dos materiais, do “aqui Não sabíamos por quanto tempo.
forma de os transmitir. Outras adaptam-se e agora”. Primeiro desafio: manter as relações das
às tecnologias para garantir a colaboração Eu quero que o ateliê, como prática de pen- crianças e famílias que frequentam regu-
e autonomia dos seus alunos. As grandes samento, continue nas vidas das pessoas larmente o ateliê. No nosso caso, uns vêm
salas de espectáculo passam os seus pro- depois de nos visitarem. uma vez por semana, outros duas vezes por
gramas em streaming. Os museus fazem O objectivo do Ateliê Maria Brinca à Sombra semana, integrados em sessões coletivas. As
visitas virtuais. Milhares de empresas adap- é oferecer um espaço para a investigação, crianças estão habituadas a fazer parte do
tam-se ao trabalho remoto, gerindo equi- experimentação e construção da aprendiza- seu grupo e a usufruir dos benefícios sociais
pas e projetos através de plataformas on- gem individual e coletiva. E a minha espe- que esse tempo oferece. O meu primeiro de-
line. Até algumas fábricas adaptaram o seu rança é continuar a usar o meu papel de safio foi encontrar um novo espaço para os
sistema produtivo para oferecerem artigos atelierista e oferecer novas perspectivas e nossos encontros.
com procura crescente. desafios às ideias das crianças, para contri- Segundo desafio: como é que vamos fazer
Mas, mesmo que seja temporário, não quis buir para esse multiplicar de possibilidades, isto funcionar, tendo em conta a faixa etária
perder a oportunidade de refletir sobre mesmo que seja à distância. das crianças? Recebemos crianças entre um
como este ateliê, o Maria Brinca à Sombra, Se temos presente a importância do ateliê, e quatro anos de idade. E qual a melhor du-
se pode adaptar ao distanciamento social então temos mesmo de descobrir formas de ração para cada reunião? E qual a plataforma
mantendo a sua relevância. O ateliê é um continuar a envolver as crianças em inves- ideal para as realizar?
espaço importante na vida das crianças por tigações significativas, provocar a observa- Terceiro desafio: não quero que os encon-
ser um multiplicador de possibilidades, de ção, o interesse e as relações. tros do ateliê sirvam para oferecer atividades
explorações e de conhecimento (Gandini, Temos de pôr as limitações da distância a pré-programadas e passo a passo. A internet
2012). É também uma voz defensora da cul- trabalhar a favor dos nossos objectivos e está suficientemente cheia de ideias dessas.
tura da infância, do brincar livre e da apren- valores, e não contra. Quero apenas estar com eles, mostrar-lhes
dizagem activa através dos materiais e das que continuam a ser importantes e a existir
relações. Por isso acredito que esta reflexão Os desafios de um ateliê neste contexto de grupo do ateliê. Podemos
é importante porque estes espaços não são em distanciamento social fazer muitas coisas ou coisa nenhuma. O
apenas relevantes para as crianças e famí- Em finais de março, uma nova situação “quê” não pode sobrepor-se ao “porquê”.

7 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

A imagem que temos de criança e do nosso Tenho tido o privilégio de participar em vi- te essencial do meu trabalho intencional. O
papel vai influenciar bastante a relação que deochamadas semanais com um grupo de conteúdo inclui as relações entre materiais e
vamos criar através das plataformas digitais. atelieristas de várias partes do mundo. Nes- materialidades, os processos, ideias e pensa-
As crianças não precisam de ser entretidas. tas últimas semanas temos refletido sobre mentos das crianças. No ateliê observo, do-
Elas têm tudo o que precisam para se entre- este novo paradigma de distância social. Por cumento, reflicto e relanço este conteúdo ao
ter. Ou seja, para irem a “um sítio raramente exemplo, temos questionado sobre o papel longo do tempo.
visitado pelas crianças hoje em dia – a sua que poderemos desempenhar como atelieris- Materiais. Os materiais, que no ateliê são
imaginação” (Brown, B., 2020). tas e como traduzimos a prática do ateliê para seleccionados e organizados com intencio-
uma modalidade à distância. Temos estado a nalidade, neste paradigma de distanciamento
Dar continuidade à colaboração apoiar-nos mutuamente para repensarmos social passam a ser imprevisíveis e não homo-
durante o distanciamento social a nossa prática com as crianças de forma a géneos. Mas no ateliê os materiais não são
Que novo papel, ou papéis, pode ter a(o) ate- fazer sentido hoje dando especial atenção à apenas as coisas físicas, eles também incor-
lierista? necessidade de continuar a valorizar a inte- poram ideias e conceitos. Neste momento de
A(o) atelierista é a pessoa responsável pelo ração pessoal e a colaboração num espaço distanciamento social, a selecção de materiais
ateliê, geralmente alguém com formação na único que é o ateliê. para actividades online é difícil, pois não sei
área das artes. O atelierista proporciona os Antes da pandemia todos os atelieristas pre- que recursos as famílias terão em casa.
encontros ente as crianças e os materiais e paravam o ambiente com intencionalidade, Tempo. O tempo que vamos passar juntos e
as materialidades apoiando-as nas suas pes- seleccionavam os materiais e montavam o todo o restante que será, ou não, influenciado
quisas, e observa a forma como cada criança espaço do ateliê para os encontros criativos por esses breves encontros. Podemos motivar
os manipula e combina, recolhendo evidências e inesperados (DiBello e Ashelman, 2011). En- um certo espírito pesquisador e observador
sobre os seus interesses, o seu desenvolvi- tão, e agora que deixámos de ter o espaço durante as sessões e esperar que isso influen-
mento, as suas estratégias e as suas estrutu- físico do ateliê? cie as suas interações no resto do tempo.
ras cognitivas. Com base nestas observações Pessoas. Crianças e famílias, com quem vamos
vai oferecer novos materiais, materialidades e Cinco ideias a ter em conta manter uma relação distante, mas próxima,
experiências que façam sentido dentro do flu- Considero que há 5 princípios fundamentais porque estamos disponíveis e porque este é
xo contínuo de ideias e conceitos que estão a para o ateliê neste novo paradigma: um trabalho de colaboração. A forma como
ser explorados pela criança. Conteúdo. O conteúdo do ateliê é uma par- vamos nutrir esta relação está directamente
relacionada com o novo conceito de espaço.
Espaço. O espaço é o “terceiro educador”,
como nos diz Loris Malaguzzi, o fundador da
abordagem de Reggio Emilia. E agora, mais do
que nunca, assume um significado mais pro-
fundo. O ambiente como “terceiro educador”
significa que o espaço é definido como um
contexto de escuta “múltipla” que nos envol-
ve a todos individualmente e em grupo, onde
nos escutamos uns aos outros e a nós mes-
mos (Rinaldi, 2006).

Estratégias para um ateliê à distância


Tendo em conta estes cinco princípios tenho
estado a pensar em estratégias para levar o
ateliê até às crianças, se não fisicamente en-
tão pelo menos simbolicamente e, claro, de
uma forma que faça sentido no nosso con-
texto.

8 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


buscar aqui algumas ferramentas de reflexão
e questionamento da filosofia com crianças
para, por exemplo, provocar o confronto de
ideias, o diálogo, a curiosidade.
• Provocar a imaginação das crianças. O nos-
so cérebro está preparado para responder às
emoções e através de uma narrativa pode-
mos plantar ideias, pensamentos e emoções.
Uma narrativa não tem de ser literária, pode
ser espontânea, e surgir do que observamos,
no momento, de uma situação de causa
efeito. A metáfora, que tanto observamos
no quotidiano do ateliê pode ser uma aliada
também neste contexto.
• Ter sempre uma intencionalidade no início
de cada videochamada. Tendo em conta o
que conheço de cada criança do grupo, os
seus interesses e motivações, posso prepa-
rar a experiência de forma mais significativa
para cada um e estar preparada para adaptar
caminhos diferentes consoante as respostas.
Isto poderá contribuir para uma maior reten-
ção e apropriação do que se fez, depois de
desligada a videochamada.
• Ter atenção ao tempo de resposta para ter-
mos um equilíbrio entre silêncios e voz. Não
é preciso que se oiçam vozes o tempo todo.
Lancei então o desafio às famílias para nos enquadramentos, relações espaciais, parti- No ateliê até prefiro que nem se oiçam as
encontrarmos uma vez por semana durante lhas de ecrã, microfone, luz e sombra. Por vozes dos adultos, mas é preciso ter a noção
15-20 minutos através da plataforma de vi- exemplo, vou mostrar um material (um ani- de que em videochamada um período mais
deochamada Zoom. Este tempo é curto, mas mal de plástico) que temos no ateliê e com longo de silêncio pode fazer que se desli-
achámos que era aceitável tendo em conta que eles brincam muito. Em vez de o segurar guem do ecrã. E ao mesmo tempo gerir o
as idades e o tempo de exposição aos ecrãs, simplesmente na mão posso tirar partido do tempo de microfone para que todos possam
que é uma preocupação natural nesta fase formato rectangular do ecrã e mostrar o ani- participar e ser ouvidos.
de confinamento, porque é a forma eleita de mal a percorrer os quatro lados do mesmo. • A forma como vou reagir ao que eles fize-
contactar com outras pessoas, principalmente Os limites do ecrã de repente passam a ter rem ou disserem de forma a garantir inte-
os avós. outro significado. ractividade e para que percebam que estou
• Estou também a fazer uma lista de pos- ali a ouvi-los. E também, por exemplo, fazer
Organizar ideias para encontrar o seu sibilidades de exploração e de como posso alguns jogos com movimento. Um jogo pode
potencial neste novo paradigma. comunicar isso visualmente através de ví- ir mudando a posição do meu corpo, ou de
Ficam aqui algumas estratégias que estou a deo: por exemplo, motivar a observação e objectos, consoante os movimentos ou sons
adoptar, e que me encontro constantemente reparar em diferenças de alguma coisa que que fizerem: eles batem palmas e eu rodo a
a rever: eles têm em casa, e eu tenho na minha, mas cabeça, eles dão saltos e eu amachuco uma
• Estou a fazer um guia com as potenciali- com outro formato, cor, som, etc. Motivar folha, etc.
dades dos recursos digitais que posso usar. a observação pode não ser só para fora, • Documentar, na medida do possível, o que
Estes recursos incluem: formato do ecrã, pode também ser observação interior, indo acontece durante as videochamadas para fa-

9 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

contribuírem para que estas crianças desen- das crianças com os outros materiais e
volvam um pensamento autónomo, criativo e conceitos?
crítico, fico feliz. 4. A multimodalidade destaca que a co-
municação ocorre em múltiplos meios,
Conclusão e que os meios têm “recursos” que per-
É um facto que ninguém estava preparado mitem diferentes formas de cognição
para mudar para um ateliê à distância. Antes (Bezemer & Kress, 2016). Que tipo de
desta urgência sanitária a maioria iria dizer novas relações e formas de cognição
que era impossível. Impossível fechar as es- irão surgir?
colas. Impossível passar a trabalhar em casa. 5. Como promover e sustentar uma cultu-
Mas aqui estamos. Quis por isso aproveitar ra e comunidade que pensa colectiva-
esta oportunidade para refletir e aprender so- mente (Gandini, 2012)?
bre as relações e ligações que existem entre
os objectivos e a relevância do ateliê na nossa
sociedade nos dias de hoje. E em que medida
podemos adaptar-nos a este novo paradig-
ma. Isto é importante porque um dia vamos REFERÊNCIAS
regressar ao espaço físico, mas não voltamos Bezemer, J., & Kress, G. (2016). Multimodality, lear-
ning and communication: a social semiotic frame.
para o ponto onde o deixámos. London; New York: Routledge, Taylor & Francis
Para já encontrei cinco ideias base para o ate- Group.
liê em tempo de distanciamento social que Brown, B. (2020). Collective Vulnerability, the FFTs
of Online Learning, and the Sacredness of Bored
guiaram a minha reflexão para encontrar al- Kids [online]. Available at: https://brenebrown.com/
gumas estratégias de acção. blog/2020/03/21/collective-vulnerability/ [Accessed
Se o meu foco está no processo e se quero 03 April 2020].
DiBello, A, & Ashelman, P. (2011). Integrating the Arts
zer uma ponte com a próxima, relembrar o continuar a acompanhar as crianças nas suas in Early Childhood Settings: The Role of Materials
que fizemos ou sobre o que conversámos, e buscas de significado, então o meu papel já [online] Available at: https://www.newjerseyreggio-
também para ter material de apoio para pro- não será tanto o de preparar o espaço físico net- work.org/wp-content/uploads/2011/04/Creati-
ve_ Mindfinal_paper.pdf [Accessed 23 March 2020].
por novas interacções. Posso também pedir com materiais e provocações, mas o de pre- Gandini, Lella (2012). O papel do ateliê na educação
aos pais que tenham especial atenção a um parar um espaço simbólico onde haja relação, infantil: a inspiração de Reggio Emilia. Porto Alegre:
ou outro aspecto nas brincadeiras dos filhos, partilha e colaboração. Onde cada criança se Penso.
Rinaldi, Carlina (2006). In Dialogue with Reggio Emi-
ou que comentem o que se evidenciou no sinta motivada a observar, a colocar hipóte- lia. New York: Routledge, Taylor & Francis Group.
intervalo das nossas sessões. Ainda não te- ses, a participar, e onde se sinta valorizada. Agradecimento especial ao Projecto Kalambaka por
nho bem escolhido qual a altura e o formato criar tantas oportunidades para a colaboração e
reflexão e a Louisa Penfold, PhD, pelo seu apoio e
para estas partilhas, mas pela experiência Outras ideias para continuarmos a refletir dedicação.
algo me diz que vão acontecer durante as Tenho outras perguntas que gostava de con-
videochamadas, e é preciso ver como gerir tinuar a refletir em colaboração. E que são: Maria Brinca à Sombra é um ateliê inspirado na abor-
dagem de Reggio Emilia que abriu em Setembro de
isso para que o tempo não seja todo ocupa- 1. Como adaptar uma prática de ateliê, 2017 em Lisboa. Iniciámos este projeto para oferecer
do com “conversa de adulto”. baseada na investigação e colaboração atividades artísticas e experiências sensoriais focadas
• Para além de nos vermos a nós através do com crianças pequenas, a uma platafor- no desenvolvimento integral e no direito das crianças
pequenas de se expressarem livremente. No final do
ecrã, vemos também a mãe, o pai, irmãos, ma digital online? primeiro ano percebemos que por trás de cada gesto
vemos a casa, vemos os brinquedos, vemo- 2. Como irá a videochamada influenciar as havia uma pergunta, uma pesquisa, e começámos a
-nos cada um no nosso mundo. E isso é di- experiências e a produção de significa- escutar activamente e a refletir sobre as interações e
experiências de aprendizagem fornecidas pelos ma-
ferente de estarmos no ateliê. Trazemos mais dos das crianças? teriais disponíveis.
aspectos da nossa individualidade e é diverti- 3. Qual é o potencial destes meios digitais www.mariabrincasombra.com
do descobrir isso, e torna-nos mais próximos para o ateliê à distância? E como po- www.instagram.com/mariabrincasombra
e reais. No fundo, se todas estas experiências dem eles complementar as experiências

10 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO
Brincar ao ar livre – transformação das práticas pedagógicas no espaço exterior
Mariana Estrela . Educadora de infância e diretora pedagógica no Infantário Universo dos Traquinas. Mestre em Ativação
do Desenvolvimento Psicológico (na Universidade de Aveiro) e doutoranda em Currículo e Inovação Pedagógica (na
Universidade da Madeira)

“Parece ser cada vez mais premente enceta- ‘preparar o futuro’, mas de esgotar as suas por pesquisar e recolher imagens de possí-
rem-se esforços para melhorar as oportuni- possibilidades atuais” (idem). veis equipamentos que poderíamos construir
dades de aprendizagem e desenvolvimento Tendo em consideração que os espaços ex- com materiais recicláveis. Dada a enver-
que são oferecidas às crianças, pensando e teriores proporcionam inúmeras oportunida- gadura deste projeto, a sua concretização
fazendo diferente” des de aprendizagem e de desenvolvimento exigiu esforços e cooperação com diversos
(Bilton, Bento & Dias, 2017, p. 7). (para crianças e adultos), reconhecemos a elementos da comunidade educativa. Nesse
necessidade das crianças de terem tempo de sentido, reunimos com os pais interessados
Enquadramento e justificação qualidade para investir, explorar, experimen- em colaborar connosco para que nos ajudas-
da iniciativa tar, seguir o seu ímpeto exploratório e reagir sem a perceber o que era exequível ou não
O Infantário Universo dos Traquinas tem aos estímulos do contexto exterior. Assim de contruir, bem como quais os materiais
capacidade para 124 crianças,1 com idades sendo, o nosso projeto visou a transforma- necessários para a sua execução. Seguida-
compreendidas entre os 3 meses e os 6 anos. ção das práticas pedagógicas nos espaços mente, reuni com a equipa a fim de fazermos
Tem um recreio bastante amplo com 241,45 exteriores e o enriquecimento ecológico uma reflexão profunda e conjunta sobre a
m² e uma horta pedagógica com 336,85 m². destes espaços tendo em vista o desenvol- nossa ação e a compreensão da necessidade
Todavia, dada a escassez de recursos mate- vimento sustentável, pois apesar de ser uma de transformação das práticas nos espaços
riais nos nossos espaços exteriores e valori- ação local, acreditamos que a nossa pegada exteriores, partindo do paradigma “o espaço
zando estes espaços como campos de ação ambiental terá impacto ao nível mundial. exterior é igualmente um espaço educativo
pedagógica por excelência, em Conselho Pe- Em Conselho Pedagógico identificámos as pelas suas potencialidades e pelas oportu-
dagógico, decidimos desenvolver o projeto necessidades e potencialidades dos nossos nidades educativas que pode oferecer, me-
Brincar ao Ar Livre – Transformação das Prá- espaços exteriores e através de abordagem recendo a mesma atenção do/a educador/a
ticas Pedagógicas no Espaço Exterior,2 inspi- fundamentada em pedagogias participativas, que o espaço interior. Se as atividades que
radas nas investigações de Bento & Portugal em prol de uma visão holística do desenvol- se realizam habitualmente na sala também
(2019), Bilton, Bento & Dias (2017), Neto & vimento de crianças e profissionais, conce- podem ter lugar no espaço exterior, este tem
Lopes (2018), Figueiredo (2015) e Santos, bemos o nosso plano de ação. Começámos características e potencialidades que permi-
Mendes, Correia & Santos (2020). Este pro-
jeto teve início no ano letivo 2019/2020 e
continuará em implementação.
Partilhando a conceção de Tardos & Szan-
to-Feder (2016: 42), “criança não brinca,
vive. Vive muito seriamente, implicando-se
completamente, envolvendo todas as suas
funções e todas as suas emoções em cada
ato, desde o nascimento” e sendo brincar
um direito das crianças, é também por nós
reconhecido como uma atividade inata e va-
liosa na infância, através da qual as crianças
adquirem, mobilizam e expandem conheci-
mentos e competências, atribuindo sentido
ao mundo que as rodeia. “Não se trata de
1 48 bebés dos berçários (12 bebés em cada sala), 30
crianças das salas de transição (15 crianças em cada
sala), 46 crianças de jardim de infância (23 crianças
de cada sala). Cada equipa é constituída por uma
educadora de infância e duas assistentes educativas,
o que perfaz um total de oito educadoras e 16
assistentes.
2 O projeto pode ser acompanhado em https://www.
facebook.com/infantariouniversodostraquinas/

11 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

tem um enriquecimento e diversificação de baloiços, uma cabana, duas caixas de areia, como parceiro o Município do Porto Santo.
oportunidades educativas” (Silva et al, 2016, uma ponte do equilíbrio, uma mesa, dez Este concurso surgiu como uma possibili-
p. 27). Selámos igualmente o compromisso carrinhos de cestos, uma cozinha de lama, dade de reflexão e apoio financeiro para a
de toda a equipa de não apenas querer a um caminho dos pés descalços, dois trepa- concretização do nosso projeto. Em março,
mudança, mas efetivamente fazer mudan- -árvores, uma vedação, uma montanha, um fomos distinguidos com uma menção hon-
ça, e para que tal seja possível temos de jardim para bebés. rosa no referido concurso e nesse âmbito
fazer uma reflexão crítica constante, ter Ao longo do percurso realizámos formação continuaremos a implementar iniciativas de
disposição para a mudança, trabalhar em em contexto para todos os elementos da sensibilização pedagógica que promovam
equipa, criar recursos e equipamentos sus- equipa pedagógica acerca das práticas pe- os direitos das crianças, a cooperação com
tentáveis, envolver a equipa, as famílias e a dagógicas nos espaços exteriores e sobre as o envolvimento de diversos elementos da
restante comunidade educativa, valorizar a pedagogias participativas. Contámos com a comunidade educativa, bem como inicia-
agência de cada criança, escutar a criança presença, visão crítica e reflexiva do Prof. tivas de desenvolvimento sustentável que
nos assuntos que lhe dizem respeito, defi- Dr. Mário Fortes, autor do programa “Out- incentivem o gosto pela natureza, à luz da
nir o papel do adulto, articular discursos e door Training” e do projeto “Kids Talentum”, educação para o desenvolvimento susten-
práticas, realizar uma observação naturalis- que nos deu várias dicas para que possa- tável e para a cidadania global.
ta, registar, documentar, planear, avaliar e mos continuar com sucesso este projeto. Em junho, surgiu mais uma possibilidade
refletir na ação. de reflexão e de partilha mais alargada do
A apresentação do projeto nosso projeto através do concurso Escola
Mãos à obra na e com a comunidade educativa Amiga da Criança. “Trata-se de uma inicia-
Juntamente com a equipa, familiares, crian- Em janeiro, quando do I Encontro Regional tiva conjunta da CONFAP (Confederação
ças e outros elementos da comunidade de Educação para a Cidadania Global, tive Nacional das Associações de Pais), da LeYa
educativa (como, por exemplo, um enge- conhecimento do concurso Educar para e do psicólogo Eduardo Sá, que visa distin-
nheiro agrónomo), criámos dois quadros Cooperar – Agora Tu!, promovido pela AID- guir instituições educativas que concebem
de ardósia, uma parede sensorial quatro GLOBAL, com o apoio do Camões IP, tendo e concretizam ideias extraordinárias, contri-

12 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


buindo para um desenvolvimento mais feliz
da criança no espaço escolar e essencial-
mente partilhar essas boas práticas”.3
Foram criadas outras sinergias com entida-
des ou projetos, nomeadamente com o AKI,
que colaborou connosco com descontos
nos materiais, e com o Projeto Eco-Escolas,
que é uma referência para nós e ao mesmo
tempo uma interligação entre projetos, uma
vez que o mesmo também aborda as ques-
tões ecológicas, ambientais e os espaços
exteriores.

Continuidade do projeto
Este projeto terá continuidade no próximo
ano letivo e em todo este processo conti-
nuaremos o trabalho cooperativo com as
crianças, os pais, os familiares, as funcioná-
rias e a comunidade educativa, promovendo
uma cidadania ativa e responsável por parte
de todos. Planeamos também realizar ses-
sões práticas (para a equipa, para as crian-
ças, pais e funcionárias) no terreno com o
Prof. Mário Fortes. O seu projeto é verda-
deiramente inspirador para toda a equipa.
Sem dúvida que a atual situação pandémica
ainda trouxe mais força a este projeto, as-
sim como os nossos autores de referência
que, através das suas investigações, fun-
damentam a importância de se estabelecer
uma relação próxima com a natureza desde
uma idade precoce, como condição base
para aquisição de atitudes de cuidado e
respeito pelo espaço (sentimento de per-
tença e familiaridade) e pelos outros (com-
preendendo o seu papel na relação com os
seres vivos e assumindo responsabilidades
na preservação e cuidado com o mundo que
a rodeia).
Continuaremos a desenvolver ações de sen-
sibilização para pais e funcionários, sobre a
educação para os direitos das crianças e
para o desenvolvimento sustentável, reco-
nhecendo a criança como construtora ativa

3 Retirado do site da iniciativa: https://escolaamiga.pt/


iniciativa

13 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

(sentir, tocar, ver, cheirar, ouvir) e bem-estar os pares e com o apoio dos adultos (disponí-
emocional. O nosso papel será o de adulto veis, empáticos, atentos, congruentes, sen-
em suspensão (Oliveira-Formosinho & For- síveis e promotores de autonomia). Através
mosinho, 2017): observar, colocar o estímu- da observação, da escuta ativa das crianças
lo certo no momento oportuno (Vygotsky, e dos registos dos adultos, estamos a con-
1984), numa atitude sensível, reflexiva, aten- seguir implementar uma mudança efetiva e
ta e disponível. inovadora das práticas neste contexto.

Em suma…
“O desenvolvimento de um trabalho de qua-
lidade ao ar livre exige um grande esforço
por parte dos profissionais, sendo necessária REFERÊNCIAS
uma vontade intrínseca para mudar e para Bento, G. & Portugal, G. (2019). Uma reflexão sobre
um processo de transformação de práticas pedagó-
aprender com os erros ao longo do processo gicas nos espaços exteriores em contextos de educa-
(…) importa apostar no trabalho de equipa ção de infância. In Revista Portuguesa de Educação¸
como principal estratégia para superar as di- 32 (2), pp. 91-106.
Bilton, H., Bento, G. & Dias, G. (2017). Brincar ao
ficuldades” (Bilton et al., 2017, p. 7). Ar Livre. Oportunidades de desenvolvimento e de
Julgo que não é de mais reforçar que o espa- aprendizagem fora de portas. Porto: Porto Editora.
ço exterior oferece diversas oportunidades Figueiredo, A. (2015). Interação Criança-Espaço Exte-
rior em Jardim de Infância. Tese de Doutoramento em
de aprendizagem e desenvolvimento que Psicologia. Aveiro: UA.
apresentam especificidades muito próprias. Fortes, S., Mendes, R., Correia, S. & Santos, N. (2020).
Ao ar livre, em contacto com a natureza, as Metodologia Outdoor Training: Desenvolvimento de
Competências Sociais e Emocionais em Crianças e
crianças vivem um conjunto de experiências Jovens. Estoril: Prime Books.
do seu próprio desenvolvimento e apren- importantes para a sua saúde, bem-es- Neto, C. & Lopes, F. (2018). Brincar em Todo o Lado.
dizagem, papel que lhe é reconhecido pela tar, autonomia, concentração, felicidade, Lisboa: APEI.
Oliveira-Formosinho, J. & Formosinho, J. (2017). Peda-
Convenção dos Direitos da Criança (1989). desenvolvimento holístico, crescimento gogia-em-Participação: a documentação pedagógica
O acesso à educação é também um direi- equilibrado e harmonioso. Os adultos que no âmago da instituição dos direitos da criança no
to de todas as crianças, tendo como base acompanham as crianças devem valorizar e cotidiano. In Em Aberto, v. 30, nº. 100, set./dez. (pp.
115-130). Brasília.
a igualdade de oportunidades, a equidade reconhecer as potencialidades pedagógicas Silva, I., Marques, L., Mata, L. & Rosa, M. (2016).
e a inclusão de todas as crianças. Assim, o destes espaços, apoiando as crianças nas Orientações Curriculares para a Educação Pré-esco-
espaço exterior deve proporcionar um am- suas descobertas. Acredito piamente que lar. ME: DGE.
Tardos, A. & Szanto-Feder, A. (2016). O que é a auto-
biente convidativo para todas as crianças e a articulação entre teorias e práticas, bem nomia na primeira infância? In J. Falk. Educar os Três
adultos. Na organização e estruturação des- como o acompanhamento e supervisão das Primeiros Anos: a experiência de Lóczy. (pp. 39- 52).
te projeto teremos sempre em consideração mesmas em conjunto com a formação em São Paulo: Junqueira & Marin.
UNICEF (s.d.). A Convenção sobre os Direitos da
os estímulos que queremos proporcionar às contexto levarão à transformação das práti- Criança. Adotada pela Assembleia Geral nas Nações
crianças com diferentes interesses e neces- cas pedagógicas. Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por
sidades, reconhecendo que cada uma possui Com o nosso projeto, estamos a conseguir Portugal em 21 de setembro de 1990. Lisboa: UNICEF.
Vygotsky, L. (1984). A formação social da mente. São
um ritmo de aprendizagem único, que vamos aumentar a quantidade e diversidade de Paulo: Martins Fontes.
continuar a respeitar e a valorizar. Usufruir equipamentos e espaços não estruturados
do espaço, apoiar cada criança nas suas ao ar livre, tornando o infantário um espaço
descobertas, estimular a criatividade, a inte- melhor e com mais qualidade, que propor-
ração com os pares e a valorização da na- ciona experiências mais significativas para
tureza têm sido ações constantes. Estamos cada criança e para cada adulto, que prima
muito conscientes de que as práticas ao ar por uma abordagem socio-construtivista,
livre potenciam mais saúde, mais autonomia, onde as crianças são agentes do seu próprio
permitem uma maior estimulação sensorial processo de aprendizagem na interação com

14 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO
Mudam-se os tempos, mudam-se os jardins de infância
O impacto da pandemia COVID-19 na qualidade do envolvimento físico e práticas do jardim
de infância e sua influência no comportamento da criança do pré-escolar
Mariana Moreira, Rita Cordovil, Guida Veiga e Frederico Lopes.

Introdução e dedicatória ces) que são percecionadas pela criança na trar que espaços exteriores naturais, quando
Este artigo pretende dar a conhecer o im- sua relação recíproca com o ambiente, sendo comparados com os tradicionais e pré-fabri-
pacto que a pandemia covid-19 teve na por isso fortes preditores do seu comporta- cados, parecem contribuir para o aumento
qualidade do envolvimento físico e práticas mento lúdico, ativo, social e emocional (Berti, da atividade física das crianças (Määttä et
pedagógicas do jardim de infância (JI), bem Cigala, & Sharmad, 2019; Gibson, 1979; Moore, al., 2019), das oportunidades de jogo livre e
como no comportamento das crianças em 2012) e da sua aprendizagem (Neto, 2017). Por espontâneo, bem como a autonomia, a cria-
idade pré-escolar. Para isso alia uma carac- exemplo, quando a definição espacial dos es- tividade, a atenção, o envolvimento no jogo,
terização objetiva, qualitativa e comparativa paços interiores e exteriores do JI é clara nos a resolução de problemas, a autoconfiança, a
da qualidade do envolvimento físico de 18 JI limites e áreas temáticas, as crianças mostram autorregulação, a socialização e o bem-estar
do concelho de Gondomar, distrito do Por- mais atenção e continuidade no jogo, coope- psicológico (Bilton, 2010; Brussoni et al., 2017).
to, realizada antes da pandemia de covid-19 ração, e emoções mais positivas (Berti et al., Berti e colaboradores (2019) referem ainda
(outubro-novembro 2019) e depois do pe- 2019). Espaços interiores e exteriores peque- que quanto maior perceção de risco estes ele-
ríodo de confinamento (junho e setembro nos e acolhedores, com caráter privado, para mentos oferecerem à criança, mais estarão a
de 2020), ao olhar sensível de 18 educado- onde as crianças podem ir quando se sentem contribuir para a sua autoestima.
ras de infância que retratam as estratégias cansadas, sobrecarregadas ou infelizes pare-
utilizadas para garantir o cumprimento das cem satisfazer a necessidade de privacidade, Para além do envolvimento físico, as práticas
diretrizes da Direção-Geral de Saúde (DGS) afastamento e intimidade e contribuir para a pedagógicas são igualmente moduladoras
nos seus JI e partilham a sua opinião sobre o construção de uma identidade positiva, bem do comportamento da criança. Fortemente
impacto das mesmas na qualidade do espa- como para uma maior capacidade de regula- influenciadas por um contexto sociocultural
ço, nas práticas pedagógicas e no comporta- ção emocional (Berti et al., 2019). próprio e enraizado, estas também podem
mento das crianças. Mais especificamente relacionado com os es- incentivar ou inibir a criança de utilizar os es-
É a estas educadoras que dedicamos este paços interiores, a literatura sugere que quan- paços e materiais do JI (Kyttä, 2004; Laevers,
artigo. São um exemplo de força, coragem do a quantidade de espaço interior é pequena 2015).
e resiliência, a quem queremos demonstrar para o número de crianças, a participação so- Segundo Laevers (2015) as práticas pedagógi-
todo o nosso reconhecimento. Mesmo em cial tende a diminuir e o isolamento, agitação cas deverão guiar a criança a arriscar desco-
tempo de crise abriram as portas à investiga- e agressividade tendem a aumentar (Moore, brir novas brincadeiras de forma espontânea,
ção e partilharam a sua experiência e visão, 2012). Por outro lado, uma circulação clara, facultando o tempo necessário para que se
contribuindo para que se pensasse a educa- facilitada por pistas de circulação a identificar possa envolver com fascínio e perseverança,
ção durante uma pandemia e para que dessa os caminhos que levam até às áreas de ativi- sem constantes interrupções. Esta capacida-
forma prosperassem a ação e a mudança. A dade e que não perturbam as brincadeiras e de de envolvimento é também um indicador
todas elas, obrigada! aprendizagens que nelas decorrem promove a de bem-estar, essencial ao desenvolvimento
autonomia e independência e maior variedade harmonioso da criança e à sua aprendizagem.
Fundamentação de interações entre crianças e entre crianças Os tempos mudaram. Em dezembro de 2019
O JI é um contexto próximo da criança e por e materiais (Berti et al., 2019). Uma boa ilu- começou a ouvir-se falar de uma inexplicável
isso tem grande impacto no seu desenvol- minação parece contribuir para uma maior série de casos de pneumonia reportados na
vimento (Bronfenbrenner, 1995; Flôres et atenção e disponibilidade para aprender. Em China (Tang et al., 2020). Estávamos longe
al., 2019), comportamento e aprendizagem contrapartida, o excesso de ruído nas salas de imaginar que esses casos se iriam trans-
(Moore, 2012). de atividades parece afetar as capacidades de formar, segundo a Organização Mundial de
A forma como os espaços do JI são cons- pré-leitura das crianças em idade pré-escolar. Saúde (OMS), numa pandemia a nível interna-
truídos e equipados e o tipo de práticas Espaços com cores frias promovem compor- cional (Huang et al., 2020), levando o Governo
implementadas pelos agentes educativos tamentos calmos, ao contrário de espaços Português, tal como os de outros países do
(fortemente influenciadas pelo contexto so- com cores quentes, que parecem estimular mundo a decretar no dia 18 de março o estado
ciocultural) influenciam o tipo de atividades comportamentos de excitação e agitação (Ata de emergência e a fechar todos os JI do país.
a realizar (Barker, 1968; Farinha, Correia & et al., 2012). Durante o período de confinamento estudos
Carvalho 2019, Kyttä, 2004), isto é, oferecem Relativamente às características do espaço internacionais como o de Capurso et al. (2020)
diferentes oportunidades de ação (affordan- exterior, vários estudos têm vindo a demons- e Idoiaga et al. (2020) alertaram para o facto

15 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

de as crianças em idade pré-escolar, devido partilhados e retirar das salas os acessórios exteriores de jogo, e v) características de lo-
ao isolamento, estarem a registar sintomas não essenciais às atividades pedagógicas). calização do terreno do edifício relativamente
de ansiedade, problemas emocionais e rela- Estas diretrizes têm criado um verdadeiro à comunidade. Desta avaliação resultou uma
cionais e níveis alarmantes de sedentarismo desafio aos JI que se viram obrigados a reor- pontuação final reveladora do nível de quali-
(Moore et al., 2020). Estes últimos também ganizar o espaço e práticas pedagógicas com dade do envolvimento físico de cada JI (0.00-
foram evidenciados num estudo nacional de o intuito de manter o respeito pelas Orienta- 1.00=má; 1.01-2.00=razoável; 2.01-3.00=bom
Pombo et al. (2020). ções Curriculares para a Educação Pré-Escolar e 3.01-4.00=excelente). A aplicação da EAEFC
Tornou-se claro que manter as escolas fecha- (Lopes da Silva et al., 2016) e assegurar o bem- foi realizada em três momentos diferentes:
das poderia resultar em danos para o desen- -estar das crianças e as oportunidades para antes da pandemia (outubro/novembro 2019),
volvimento social, psicológico e educacional que continuassem a brincar de forma ativa. logo após o confinamento das crianças do
das crianças (Capurso et al., 2020; UNESCO, Estas diretrizes permaneceram as mesmas no pré-escolar (junho de 2020) e no início deste
2020), bem como na perda de rendimentos início do ano letivo em setembro de 2020. novo ano letivo (setembro de 2020).
e produtividade dos adultos que não podiam Assim, avaliar o impacto que a pandemia de Com o intuito de conhecer as estratégias uti-
trabalhar por causa das responsabilidades de covid-19 está a ter na qualidade do envolvi- lizadas pelas educadoras para seguir as dire-
cuidar das crianças (Capurso et al., 2020; Ma- mento físico, nas práticas pedagógicas do JI trizes da DGS, bem como a sua perceção e
cartney et al., 2020). Mais ainda, confirmou- e consequentemente no comportamento das opiniões sobre a viabilidade de execução das
-se a existência de uma taxa de contágio da crianças torna-se absolutamente essencial mesmas, a sua congruência com as OCEPE e o
covid-19 muito inferior entre crianças (Hong para auxiliar uma mudança e adaptação mais seu impacto no comportamento das crianças,
et al., 2020) e que o risco e redes de contágio seguras e fundamentadas do JI nos tempos foi-lhes realizada uma entrevista semiestrutu-
nos JI, quando cumpridas as diretrizes sugeri- atuais e com o menor impacto possível no rada individual com a duração de 45 minutos
das pelas entidades de saúde, tinham menor bem-estar e desenvolvimento das competên- logo após o confinamento das crianças do
probabilidade de proliferar do que noutros da cias cognitivas, motoras e socio-emocionais pré-escolar (junho de 2020) e no início deste
comunidade (European Centre for Disease da criança. novo ano letivo (setembro de 2020). Partici-
Prevention and Control, 2020; Macartney et param 18 educadoras da educação do pré-es-
al., 2020). Neste novo quadro de evidências, o Estudo colar.
Governo decidiu a 1 de junho de 2020 reabrir Deste estudo fizeram parte 18 JI do concelho Os resultados da avaliação da qualidade do
os serviços do ensino pré-escolar nos JI em de Gondomar, do distrito do Porto, 16 do se- envolvimento físico dos JI visitados são apre-
regime presencial e assim os manter no início tor público e dois do setor privado. sentados na Tabela 1.
do ano letivo, em setembro de 2020. A qualidade do envolvimento físico dos JI foi Os resultados mostram que nenhum dos JI
Segundo a Direção-Geral de Saúde (2020), caracterizada com recurso à Escala de Avalia- apresentou um nível de qualidade do envol-
para garantir uma reabertura segura em junho ção dos Envolvimentos Físicos para Crianças vimento físico excelente nos três diferen-
de 2020 e mantê-la no início do ano letivo, em [EAEFC] (Moreira, Cordovil, Veiga & Lopes, tes momentos de avaliação. Como se pode
setembro de 2020, teriam de se cumprir dire- 2020), versão traduzida e adaptada da esca- verificar, em junho de 2020 houve um au-
trizes centradas em assegurar i) maior flexibi- la original americana denominada Children’s mento significativo do número de JI com má
lidade das regras de capacidade/lotação (por Physical Environments Rating Scale (CPERS5) qualidade do envolvimento físico, quando
exemplo, diminuição do número de crianças (Moore, 2012). Esta foi preenchida quando da comparadas com o período pré-pandemia
por área, tendo em vista maximizar a distância visita de um membro da equipa de investiga- (outubro/novembro de 2019). Contudo, em
entre crianças; preferência pela realização de ção ao espaço de cada JI durante cerca de 120 setembro de 2020 a qualidade do envolvi-
atividades no espaço exterior); ii) organização minutos e centrou-se na avaliação de cinco mento físico atingiu valores muito semelhan-
de circuitos e horários alternativos; iii) refor- dimensões: i) proporção entre o tamanho do tes aos atingidos em outubro/novembro de
ço dos procedimentos de desinfeção para edifício do JI e o número de crianças acolhi- 2019, o que sugere que, no geral, os JI con-
adultos, crianças, espaços e materiais (por das em simultâneo; ii) qualidades estéticas, de seguiram voltar a reajustar-se às condições
exemplo, melhorar a limpeza e desinfeção dos escala, de circulação, de ambiente interior, se- que tinham antes da pandemia. É de notar
materiais permanentes, favorecer a utilização gurança e proteção; iii) características dos es- que apenas um dos JI conseguiu manter
de materiais mais fáceis de desinfetar para as- paços interiores para cuidados e para ativida- uma boa qualidade do envolvimento físico
segurar uma devida desinfeção dos materiais des; iv) funcionalidade e riqueza dos espaços em junho de 2020; contudo, em setembro,

16 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


Tabela 1. Resultados da EAEFC dos 18 JI visitados antes da pandemia, logo após o confina- de opiniões positivas é sempre superior tan-
mento e no início do ano letivo to em junho como em setembro. A maioria
das educadoras (sobretudo nos casos dos
Níveis de qualidade pela EAEFC out. / nov. 2019 junho 2020 set. 2020 JI com muitas crianças e poucos recursos)
Má (0.00-1.00) 1 (5.56%) 4 (22.22%) 2 (11.12 %)
consideraram que as diretrizes da DGS não
estavam adequadas à realidade do JI, classi-
Razoável (1.01-2.00) 16 (88.88%) 13 (72.22%) 16 (88.88%)
ficando-as como “utópicas e antipedagógi-
Boa (2.01-3.00) 1 (5.56%) 1 (5.56%) 0 (0%) cas, pouco congruentes com as Orientações
Excelente (3.01-4.00) 0 (0%) 0 (0%) 0 (0%) Curriculares para a Educação Pré-Escolar,
Nota: O número médio de crianças por jardim de infância foi de 53,27 em outubro/novembro, 18,77 em junho limitadoras da capacidade de garantir ao JI
e 51,70 em setembro. um caráter familiar, promotor do afeto e par-
tilha, um contexto rico em oportunidades de
ações potenciadoras do brincar, bem-estar e
reduziu para uma qualidade do envolvimento exemplo as bolas, os objetos da casinha) e desenvolvimento da criança”. As educadoras
físico razoável. limitaram-se na maioria dos JI as zonas de não concordaram também com a semelhan-
Os resultados indicam também que o baixo brincadeira que primavam pela exploração de ça entre as diretrizes definidas pela DGS em
número de crianças que regressaram aos JI materiais soltos naturais como as cozinhas junho e setembro. Defenderam ser “muito
em junho de 2020 (provavelmente porque de lama, as caixas de água e areia), consi- difícil gerir o mesmo espaço da mesma for-
muitos pais ainda estavam em teletrabalho deradas por algumas educadoras “espaços ma, com uma redução drástica dos recursos
e/ou por receio do regresso ao JI) permitiu onde era mais difícil assegurar a correta hi- humanos em contraste com um aumento do
que, comparativamente a outubro/novem- gienização e segurança”. número de crianças tão significativo”. Estas
bro de 2019, existisse uma melhoria signifi- Em setembro de 2020 Portugal já não se educadoras sugeriram que se repensasse no-
cativa do rácio entre o número de crianças encontrava em estado de emergência e as vamente o formato do JI, defendendo “um
e a quantidade de espaço interior e exterior possibilidades de trabalho à distância dimi- JI mais focado na qualidade do atendimento
disponível para brincar, significativamente nuíram, pelo que houve uma maior afluência à criança do que na quantidade, com menos
maior após o confinamento. Contudo, esta das crianças ao JI, o que exigiu uma organi- crianças e mais espaço, para que não se per-
alteração pareceu não ter impacto suficiente zação mais complexa. Este número acrescido desse o caráter humano tão característico
para evitar a redução significativa da qualida- de crianças levou a que as salas de atividade deste contexto”.
de do envolvimento físico em alguns JI nesse tomassem na maioria dos casos a disposição Outro aspeto que contribuiu para aumentar
mesmo período. Os baixos valores registados anterior à pandemia, bem como a colocação as opiniões negativas em setembro foi o facto
pela EAEFC neste período surgem sobretudo de maior quantidade de materiais à disposi- de as educadoras notarem que o comporta-
relacionados com a reorganização dos espa- ção das crianças. Os espaços interiores des- mento das crianças sofreu um impacto nega-
ços de atividades interiores e dos espaços tinados à realização de atividades de grande tivo mais acentuado a nível social e emocional.
para brincadeiras no exterior. Nos espaços grupo reabriram. Na maioria dos JI avaliados, Algumas educadoras sentiram as crianças no
interiores foram encerradas salas que per- com a exceção de um deles, o espaço de início do ano letivo mais agitadas, com menos
mitiam as atividades em grande grupo (salas brincadeira exterior ficou mais limitado e a capacidade para se manterem atentas e en-
polivalentes, ginásios), retiraram-se canti- utilização de materiais fixos também. volvidas, quer nas tarefas orientadas, quer em
nhos de atividade da sala de aula promotoras Na Tabela 2 apresentamos as diferentes es- momentos de brincadeira livre, menos autó-
de maior socialização e trocas de materiais tratégias que foram implementadas, a sua nomas, menos tolerantes à frustração e com
entre crianças, retiraram-se os materiais de frequência de implementação (i.e., o número comportamentos mais agressivos para com
manipulação nestas mesmas áreas que pu- de JI que seguiram essa recomendação, bem os pares. As educadoras relacionaram estes
dessem ser colocados na boca, ou que fos- como a frequência de opinião positiva e ne- comportamentos com a nova definição de
sem de difícil desinfeção. No espaço exterior gativa das educadoras da educação do pré- espaços, a lotação das crianças comparativa-
reduziram-se significativamente os materiais -escolar relativamente à sua aplicabilidade). mente com pouco espaço disponível, a maior
soltos à disposição da criança, sobretudo os Os resultados mostram que o número de dificuldade em frequentar o exterior.
que promoviam atividades em grupo (por opiniões negativas relativamente ao número Na perspetiva das educadoras, em junho,

17 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

Tabela 2. Frequência de implementação de diferentes estratégias (número de jardins de infância que implementaram cada estratégia), e a
avaliação das educadoras (número de opiniões positivas, negativas e nulas) sobre cada estratégia, quando implementada, no período após o
confinamento (junho e setembro).

Frequência de implementação Opinião das educadoras


Estratégias junho setembro
junho setembro Pos. Neg. Nula Pos. Neg. Nula
Limitação do número de crianças que podem utilizar o
16 10 1 5 8 1 6 3
material ao mesmo tempo (interior e exterior)
Aumentar a utilização do espaço exterior 14 4 2 1 9 3 0 2

Remoção de objetos e materiais soltos no interior e/ou


15 12 1 3 10 2 2 7
exterior que promovam a reunião ou partilha

Restrição/proibição da utilização de equipamento fixo


de exterior que promova concentrações (por exemplo, 0 6 0 0 0 2 1 2
escorregas e baloiços)

Utilizar o espaço exterior a um horário fixo, diferente para


3 5 0 1 2 0 1 4
cada turma.

As diferentes turmas utilizam o espaço exterior ao mesmo


tempo, mas o espaço é dividido e cada classe permanece 2 2 1 0 1 0 1 1
sempre na mesma área de jogo no exterior.

As diferentes turmas utilizam o espaço exterior ao mesmo


tempo, mas o espaço é dividido e as turmas rodam de 3 9 1 0 0 1 1 8
tempos a tempos entre as áreas de jogo no exterior.

Concentrar-se principalmente nas medidas de desinfeção 1 6 0 0 1 3 2 0

embora com todas as restrições e maior des- estratégias mais utilizadas foram remover obje- relação a esta medida estava principalmente
conhecimento em relação à covid-19, o facto tos e materiais soltos no interior e/ou exterior relacionada com a falta de condições de espa-
de estarem menos crianças no JI aumentou promotores da partilha, limitar o número de ço exterior em condições meteorológicas extre-
a quantidade de espaço que as crianças pu- crianças que utilizassem o material ao mesmo mas no verão (pouca sombra, solo de cimento).
deram utilizar tanto no interior como no ex- tempo e aumentar a utilização do espaço ex- Em setembro de 2020 houve um decréscimo
terior, com ambientes mais calmos e tranqui- terior. na implementação da maioria das estratégias,
los. Assim, as educadoras consideraram que Limitar o número de crianças que podiam uti- exceto as centradas na utilização do espaço
as próprias crianças puderam expandir o seu lizar o material ao mesmo tempo foi a medida exterior e na promoção de medidas de desin-
movimento, explorar outras áreas e outros que as educadoras consideraram ser a pior, feção. Esta última estratégia foi a que teve
materiais com mais tempo, parecendo-lhes uma vez que dificultava a socialização das maior perceção positiva entre os educadores,
estarem mais tranquilas e envolvidas no jogo. crianças. Por outro lado, o aumento da utiliza- que consideraram que aumentar as medidas
Para além disso as educadoras sentiram que ção do espaço exterior foi considerado positi- de desinfeção (por exemplo, cada criança de-
nessas condições tinham maior disponibilidade vo. As educadoras associaram mais possibilida- sinfetar as suas mãos antes de entrar numa
para trabalhar de forma mais individualizada. des de ação lúdica e motora no exterior a um área ou antes de partilhar material de artes
Os resultados mostram ainda que, em junho comportamento mais tranquilo e feliz por parte e expressão plástica, como os lápis, canetas,
de 2020, quando as pré-escolas reabriram, as das crianças. A única perceção negativa em tintas ou a plasticina) eram melhores do que

18 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


limitar a utilização de materiais e a sua partilha crianças pudessem frequentá-los em condi- las parecem estar a reorganizar-se para que
entre as crianças, uma vez que não comprome- ções meteorológicas adversas, como o frio, a possam continuar a assegurar oportunidades
tiam as oportunidades de brincadeiras físicas chuva forte ou o vento (algo que já acontecia de ação promotoras de um desenvolvimento
e sociais das crianças. É de notar que a única em período pré-pandémico). Nestas situações estável e do bem-estar da criança.
estratégia que não foi utilizada por nenhuma as crianças tinham o seu tempo de lazer dentro As educadoras, embora preocupadas com os
escola em junho, i.e., a restrição da utilização das salas de aula ou salas polivalentes. impactos que a pandemia de covid-19 teve
do equipamento fixo, foi aplicada por seis es- Outro aspeto importante de notar na Tabela no espaço, nas práticas pedagógicas do JI e
colas em setembro. O aumento significativo 2 é que de junho para setembro aumentou nos comportamentos das crianças, conse-
do número de crianças que frequentavam o a frequência dos JI a utilizar os espaços de guem também identificar aspetos positivos
JI em setembro significava que era mais difí- brincadeira de forma rotativa. Uma das edu- (sentidos na sua maioria em junho), entre os
cil assegurar (segundo as educadoras devido à cadoras reconheceu que desta forma as crian- quais os benefícios da atividade no exterior, o
falta de recursos humanos) que o número de ças poderiam ter mais oportunidades de ação estimular a criatividade na exploração perante
crianças que utilizavam o material era limitado, para brincar, não estando sempre cingidas ao a pouca variedade de materiais disponíveis, o
pelo que algumas pré-escolas decidiram res- mesmo espaço de recreio. Outra educado- trabalho sobre a responsabilidade e autono-
tringir o uso de equipamento de exterior, como ra, com uma perceção mais negativa, referiu mia a partir da individualização dos materiais
forma de prevenir o contágio. As educadoras que o facto de as crianças estarem a trocar e a importância de haver mais espaço para as
destes estabelecimentos conseguiram identifi- no mesmo dia, ou dia após dia, de espaço crianças se poderem movimentar. As educa-
car pontos positivos nesta estratégia, referindo de brincadeira no exterior dificultava a sua doras reconhecem que em junho foi possível
que as crianças descobriram novas formas de ligação com este espaço e o envolvimento e sentir os benefícios de uma educação mais
brincadeira, sobretudo corporais (por exemplo, progressão nas suas brincadeiras. centrada na qualidade e não na quantidade e
jogo da apanhada e da macaca) e que em al- com maior simbiose entre os espaços interior
guns casos começaram a reparar em elementos Reflexão final e exterior.
naturais do recreio até então nunca utilizados Os resultados apresentados mostram que Agora, mais do que nunca, torna-se primordial
(por exemplo, esconderijos nos arbustos). muitos JI estão a tentar encontrar estraté- continuar a lutar contra o declínio do tempo e
A frequência da primeira medida “limitação do gias para mitigar os efeitos que o confina- do espaço para brincar no JI que já se notava
número de crianças que podem utilizar o ma- mento causado pela pandemia covid-19 teve antes da chegada da pandemia de covid-19.
terial ao mesmo tempo (interior e exterior)” di- nas crianças, tentando garantir que elas têm Esta privação de brincar tem origem numa
minuiu de junho para setembro, possivelmente espaço e tempo para brincar. Os resultados acentuada falta de conexão entre o espaço
devido a o número de crianças ter aumentado. indicam também que o pequeno número de interior e o exterior; na pouca qualidade de
De qualquer forma, a perceção negativa sobre crianças que frequentavam a pré-escola em estimulação (materiais e equipamentos); numa
esta medida parece ter-se mantido de junho junho permitiu criar mais espaço disponível conexão pouco adequada às necessidades e in-
para setembro, com grande parte das educa- por criança para a exploração das áreas de ati- teresses dos mais pequenos, com preferências
doras a referir que a utilização de material indi- vidade interior e exterior. Contudo, isto não foi por materiais sintéticos em vez dos naturais; e
vidualizado vai contra os princípios de partilha suficiente para evitar uma redução na qualida- na excessiva proteção do contacto com even-
do JI, e que pode acentuar a questão do ego- de do ambiente físico em alguns JI. De junho tuais riscos, ao abrigo de normas de segurança
centrismo e o afastamento social entre crian- a setembro, os JI começaram a concentrar-se muito questionáveis, que pouco contribuem
ças. A educadora que percecionou de forma mais na promoção principalmente de medidas para que a criança se possa manter ativa e
positiva esta questão referiu que esta medida de desinfeção e menos na remoção de opor- independente nas suas experiências lúdicas
permitia trabalhar a autonomia e a responsa- tunidades lúdicas para as crianças (limitando o de exploração (Neto, 2017). Este quadro de
bilidade. seu acesso a material lúdico). A utilização do privação lúdica contribui em larga escala para
Repare-se também que em setembro a fre- espaço exterior diminuiu sobretudo devido à a deterioração do bem-estar e da saúde física,
quência da estratégia “aumentar a utilização do pouca preparação dos espaços de brincadei- mental e emocional das crianças do pré-escolar.
espaço exterior” foi menos utilizada comparati- ra exterior para condições climatéricas mais Deste modo, é fundamental adequar as estra-
vamente com junho. Segundo as educadoras, adversas típicas do outono. Contudo, mesmo tégias de promoção do jogo e da aprendizagem
esta diminuição deveu-se sobretudo às fracas considerando o impacto negativo em termos em contexto de JI a partir de uma análise dinâ-
condições dos espaços exteriores para que as da qualidade do ambiente físico, as esco- mica de risco/benefício. Mais concretamente,

19 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

é fundamental, por um lado, criar condições AUTORES 2019 (COVID-19) in newborns, infants and children. Pe-
diatrics and Neonatology, 61(2), 131–132. https://doi.
para as crianças estarem suficientemente pro- Mariana Moreira. CIPER, Interdisciplinary Center
org/10.1016/j.pedneo.2020.03.001
tegidas do contágio pela covid-19, e, por outro, for the Study of Human Performance, Faculdade de Huang, C., Wang, Y., Li, X., Ren, L., Zhao, J., Hu, Y.,
Motricidade Humana, Universidade de Lisboa; Rita Zhang, L., Fan, G., Xu, J., Gu, X., Cheng, Z., Yu, T., Xia,
que estas medidas de proteção não coloquem Cordovil. CIPER, Interdisciplinary Center for the Stu- J., Wei, Y., Wu, W., Xie, X., Yin, W., Li, H., Liu, M., …
as crianças sujeitas a um risco mais pernicioso dy of Human Performance, Faculdade de Motricidade Cao, B. (2020). Clinical features of patients infected
para a sua sobrevivência, bem-estar e saúde, Humana, Universidade de Lisboa; Guida Veiga. De- with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. The
que será o de se verem privadas no tempo e partamento de Desporto e Saúde, Escola de Ciências Lancet. 395 (10223), 497-506. https://doi.org/10.1016/
e Tecnologia, Universidade de Évora, CHRC, Com- S0140-6736(20)30183-5
no espaço de experiências lúdicas estimulantes, Idoiaga, N., Berasategi, N., Eiguren, A., & Picaza,
prehensive Health Research Centre, Universidade de
enriquecidas e diversas. Évora; Frederico Lopes. Laboratório de Comporta-
M. (2020). Exploring Children’s Social and Emotio-
nal Representations of the COVID-19 Pandemic.
mento Motor, Faculdade de Motricidade Humana, Frontiers in Psychology. https://doi.org/10.3389/
Como dizia Luís de Camões: Universidade de Lisboa. fpsyg.2020.01952
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Laevers, F. (2015). Fundamentos da educação experien-
Muda-se o ser, muda-se a confiança; BIBLIOGRAFIA cial: bem-estar e envolvimento na educação infantil.
Ata, S., Deniz, A., & Akman, B. (2012). The Physical Estudos Em Avaliação Educacional, 25(58), 152. ht-
Todo o mundo é composto de mudança, tps://doi.org/10.18222/eae255820142794
Environment Factors in Preschools in Terms of Envi-
Tomando sempre novas qualidades. ronmental Psychology: A Review. Procedia - Social Lopes da Silva, I., Marques, L., Mata, L., & Rosa, M.
and Behavioral Sciences, 46, 2034–2039. https://doi. (2016). Orientações Curriculares para a Educação
org/10.1016/j.sbspro.2012.05.424 Pré-Escolar. In Ministério da Educação/Direção-Geral
Os tempos atuais marcados pela pandemia da da Educação (DGE) (Vol. 27, Issue 96). https://doi.
Berti, Cigala & Sharmad (2019). The meanings of spa-
covid-19 reforçam também a necessidade de ces in Early Childhood Education and care centres: a org/10.1590/S0101-73302006000300003
se continuar a realizar investigação científica literature review, advance online publication. https:// Määttä, S., Gubbels, J., Ray, C., Koivusilta, L., Nislin,
doi.org/10.1007/s10648-019-09486-0. M., Sajaniemi, N., Erkkola, M., & Roos, E. (2019). Early
socialmente relevante de modo a apoiar os Childhood Research Quarterly Children’ s physical ac-
Bronfenbrenner, U. (1995). The bioecological model
educadores e outros agentes educacionais e from a life course perspective: Reflections of a par- tivity and the preschool physical environment : The
políticos a delinearem e implementarem estra- ticipant observer. In P. Moen, G. H. Elder & K. Lüs- moderating role of gender. Early Childhood Resear-
cher (Eds.), Examining lives in context: Perspectives on ch Quarterly, 47, 39–48. https://doi.org/10.1016/j.
tégias e práticas pedagógicas (que naturalmen- ecresq.2018.10.008
the ecology of human development (pp. 599–618).
te passam pela promoção de oportunidades de Washington, DC: American Psychological Association. Moore, G. T. (2012). The Children’s Physical Environ-
(inter)ação lúdica entre as crianças e os espaços Brussoni, M., Ishikawa, T., Brunelle, S., & Herrington, ments Rating Scale (CPERS5). University of Sidney ARC
S. (2017). Landscapes for play: Effects of an interven- Physical Environments of Early Childhood Centers Pro-
interiores e exteriores e pela reorganização dos ject. https://doi.org/10.3109/10903120903349747
tion to promote nature-based risky play in early chil-
espaços de ação destas em contexto de JI), de dhood centres. Journal of Environmental Psychology, Moore, S. A., Faulkner, G., Rhodes, R. E., Brussoni, M.,
forma a procurar garantir um equilíbrio saudá- 54(November), 139–150. https://doi.org/10.1016/j. Chulak-Bozzer, T., Ferguson, L. J., Mitra, R., O’Reilly,
jenvp.2017.11.001 N., Spence, J. C., Vanderloo, L. M., & Tremblay, M.
vel entre o proporcionar às crianças diversas S. (2020). Impact of the COVID-19 virus outbreak on
Capurso, M., Dennis, J. L., Salmi, L. P., Parrino, C., &
possibilidades de ação de acordo com os seus Mazzeschi, C. (2020). Empowering Children Through movement and play behaviours of Canadian children
interesses e necessidades e o assegurar uma School Re-Entry Activities After the COVID-19 Pan- and youth: A national survey. International Journal of
demic. Continuity in Education, 1(1), 64. https://doi. Behavioral Nutrition and Physical Activity, 17(1), 1–11.
manutenção eficaz do controlo dos riscos. Para https://doi.org/10.1186/s12966-020-00987-8
org/10.5334/cie.17
isso, aconselha-se que em futuras investiga- European Centre for Disease Prevention and Control Moreira, M., Cordovil, R., Veiga, G. & Lopes, F. (2020).
ções sobre o impacto desta pandemia no JI se (2020). COVID-19 in children and the role of school set- Children’s Physical Environment Rating Scale (CPERS5):
tings in COVID-19 transmission Key messages. https:// Processo de Tradução e Adaptação para avaliação do
procure também colocar as crianças enquanto envolvimento físico do jardim de infância em Portugal.
www.ecdc.europa.eu/sites/default/files/documents/
atores sociais lúdicos na sua relação com o en- COVID-19-schools-transmission-August%202020.pdf In R. Mendes, M. J. C. Silva & E. Sá, (Eds.). Estudos
volvimento enquanto primado, no sentido de Direção Geral da Educação (2020). Orientações - Pré- em Desenvolvimento Motor da Criança 13. Coimbra:
-escolar, Reabertura Educação.1-12. https://www.dge. CIDAF & FCT.
lhes dar vez e voz, tal como preconizado nos Neto (2017).Brincar e Ser ativo na escola. In Diversi-
mec.pt/sites/default/files/orientacoes_para_a_rea-
artigos 12.º, 13.º e 31.º da Convenção sobre os bertura_da_educacao_pre-escolar.pdf dades - Educação e Aprendizagem, 51,9-17. http://
Direitos das Crianças. Farinha, J., Correia, V., & Carvalho, J. (2019). Influência www02.madeiraedu.pt/Portals/5/documentos/Publi-
do behavior setting no comportamento infantil. In Ca- cacoesDRE/Revista_Diversidades/Revista%20Diversi-
dernos de Educação de Infância, 118, 7–13. https://doi. dades%2051.pdf.
org/10.1017/CBO9781107415324.004 Pombo, A., Luz, C., Rodrigues, L. P., & Cordovil, R.
Gibson, J. J. (1979). The ecological Approach to Visual (2020). COVID-19 Confinement In Portugal: Effects On
Perception. Hillsdale, New Jersey: Lawrence Erlbaum The Household Routines Of Children Under 13. 1–16.
Associates. https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-45764/v1
Hong, H., Wang, Y., Chung, H. T., & Chen, C. J. (2020).
Clinical characteristics of novel coronavirus disease

20 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS
A sala é lá fora
A abordagem de Reggio Emilia em dois projetos no Norte de Portugal
Ana de Mesquita Guimarães . Atelierista, formadora e coordenadora do Ateliê Passos de Gigante. Educadora, atelierista e
consultora no Cor da Terra

Em 2004 tive a oportunidade de conhecer tecendo a documentação dos mesmos para


diferentes metodologias de ensino no cen- que se torne visível para a comunidade edu-
tro da Europa. Residia na altura no Luxem- cativa como foi a nossa viagem, o que des-
burgo e o meu trabalho permitia-me viajar cobrimos e para onde queremos ir.
e conhecer diferentes lugares. Uma das As paredes documentam a aprendizagem
metodologias que mais me fascinou foi a de em espiral que reflete o pensamento arbo-
Reggio Emilia. Quando regressei a Portugal, rescente.
em 2010, fui desenvolvendo várias atividades Longe do tempo em que o ateliê era uma
e dando a conhecer um pouco mais sobre sala no centro da escola em Reggio Emilia,
Loris Malaguzzi e Maria Montessori. hoje o atelierista desenvolve o seu trabalho
Trabalho com as premissas de que todas por todos os espaços, criando contextos,
as crianças possuem as competências para reestruturando áreas, evidenciando assim o
aprendizagem, são naturalmente curiosas, quotidiano vivido na escola.
criativas e ousadas nas suas teorias e criam O atelierista privilegia as linguagens artísticas
soluções para as questões e problemas com evidenciando-as onde atua.
que se deparam e que o papel do adulto-e- A estética é procurada pela luz, pela cor, or-
ducador é de ser responsável por criar rela- dem, simetria, riqueza de materiais, e con-
ções e conexões entre o que é falado, ou- duz-nos à reflexão de cuidar do lugar onde
vido, visto e sentido no contacto entre os aprendemos. Figura 1- “Queques de Lama” feitos por crianças
diversos espaços de aprendizagem, os fenó- “A maneira como as crianças são convida- de 4 e 5 anos no Cor da Terra.
menos naturais e o conhecimento adquirido, das a usar os materiais indica o papel que
e, ainda, refinar as competências do saber, se espera que tenham na sua aprendizagem.
saber fazer e saber ser. Os materiais são os textos das salas de aula
“As crianças, como entendidas em Reggio, de educação infantil. Ao contrário de livros
são protagonistas ativas e competentes que repletos de factos e palavras impressas, os
buscam a realização através do diálogo e da materiais são como esboços e contornos.
interação com os outros, na vida coletiva das Eles oferecem aberturas e caminhos pelos
salas de aula, da comunidade e da cultura, quais as crianças podem entrar no mundo do
com os professores seguindo como guias”. conhecimento. Os materiais tornam-se os
“O papel do adulto é acima de tudo o de ou- instrumentos com os quais as crianças dão
vinte, de observador e de alguém que entende forma e expressam a sua compreensão do
a estratégia que as crianças usam numa situa- mundo e dos significados que construíram.”
ção de aprendizagem. Tem, para nós, o papel O espaço exterior deveria ser o mais privile-
de “distribuidor” de oportunidades…” giado nas abordagens pedagógicas e nos va-
Na Comunidade Educação Viva Cor da Terra lores das instituições de ensino portuguesas.
(Maia, Porto) ou no Atelier Passos de Gigan- A natureza e o estar na natureza devem fa-
te (Matosinhos, Porto) desenvolvo o traba- zer parte da vida de qualquer criança. Nas
lho como atelierista com crianças da creche cidades nem sempre é fácil para os pais
(nos ateliês para bebés) e do pré-escolar. conseguirem encontrar respostas educativas
O atelierista traz novas formas de olhar e de com grandes espaços exteriores ou jardins
tornar visível o “sistema de raízes da apren- de infância com uma cultura enraizada de
dizagem”, metáfora que uso para evidenciar saída frequente para áreas verdes e/ou ar-
que devemos compreender a aprendizagem borizadas.
como, mais do que a árvore, todo o ecos- “As crianças de 3-5 anos estão a passar
sistema em que esta se insere. Valorizam-se mais tempo do que nunca em atividades
assim todos os processos intervenientes, estruturadas e organizadas, o que tem Figura 2- Cozinha de Lama, Cor da Terra

21 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS

Figura 3 - Cozinha de Lama, Cor da Terra (de- Figura 4 - Biblioteca, Cor de Terra. Figura 5 - Ateliê Passos de Gigante. Na ima-
talhe). gem, a Francisca, de dois anos, foi buscar a
caixa da matemática com números de madeira
e outros recursos (denominadas de loose parts)
para as suas “contas”.

vindo a criar uma situação calamitosa em “Nenhuma criança deveria crescer sem co- zinha de lama e a área de servir (mesa) na
termos físicos e mentais, já que nas últi- nhecer o coro dos pássaros. relva, as crianças registaram graficamente
mas décadas houve uma perda de mais A sala no Cor da Terra é uma grande quinta os seus desejos e os educadores puseram
de 12 horas de tempo livre por semana.” de onde crianças e adultos participam nas mãos à obra para construir e reunir os ma-
Espaços naturais são ricos de “partes soltas” descobertas. Para além das áreas de cultivo, teriais. O espaço foi então preparado para
que incluem tudo: árvores, pinhas, pedras, das árvores de fruto e dos animais da quinta, corresponder às expectativas deste brincar,
lama e galhos. Simon Nicholson também su- as crianças observam os fenómenos naturais mas imediatamente, com a introdução de
gere a praia como um bom exemplo destes em primeira mão. Observam o dia passar, as alguns elementos reais (como talheres, pa-
ambientes. A areia para moldar, o mar em mudanças trazidas pelas estações do ano, e nelas e outros utensílios de cozinha cedidos
constante movimento, os baixios cuja fauna o espaço de brincar cresce com elas. por familiares), as iguarias gastronómicas
e forma mudam com a maré. Pela excelen- Vamos reestruturando os espaços exteriores tornaram-se mais delicadas, com mais in-
te localização, no Ateliê Passos de Gigante, e interiores para se adaptarem aos grupos gredientes e processos demorados de con-
passamos muito tempo no areal. de crianças, às propostas pedagógicas dos fecção. Não há nada como cozinhar com as
Estes ambientes, quer seja na quinta do Cor adultos e à força natural dos elementos, panelas daqueles que nos são queridos: o
da Terra ou no areal perto do Ateliê Passos construindo novas propostas para brincar, sentimento de pertença e de familiaridade
de Gigante, estão cheios de “coisas” que investigar e documentar a aprendizagem. com os objetos e os espaços ganha outra
cumprem muitas funções diferentes. Lu- A Cozinha de Lama do Cor da Terra é um dimensão relacional.
gares que podem ser adaptados às nossas exemplo da metodologia em ação. Depois Como atelierista, não poderia deixar de
necessidades e ideias. Contudo, nestes am- de questionarmos as crianças sobre aquilo acrescentar à cozinha, a área da escrita dos
bientes, é também crucial a flexibilidade dos de que necessitavam para cozinhar melhor cardápios (lousa e giz), uma coleção de re-
adultos para que seja permitido às crianças e do que precisava de ser melhorado no ceitas, as colheres e panelas de diferentes
explorar todo o seu potencial. espaço que engloba a caixa de areia, a co- tamanhos para as medições, a beleza das

22 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


Figura 6 - Ateliê para bebés, Cor da Terra Figura 7 -Pesquisa das Lagartas, Cor da Terra. Figura 8 - Pesquisa dos Cogumelos, Ateliê Pas-
A Margarida, de cinco anos, a pesquisar sobre sos de Gigante.
as lagartas da couve no Cor da Terra.

flores naturais e as frutas da quinta, poten- O meu amor pelos livros e por incentivar a suas escolhas e que aquele esteja estetica-
ciando cada vez mais a riqueza do brincar. leitura nos mais pequenos faz que organize mente bem-apresentado. As estantes e me-
O interesse pela cozinha motivou que re- inúmeras formações neste âmbito, sempre sas baixas suportam contextos que corres-
pensássemos a biblioteca e conseguíssemos numa perspetiva Reggio Emiliana. pondem aos interesses das crianças.
disponibilizar também alguns livros para con- Neste sentido, no Cor da Terra também te- Todas as estruturas são móveis, servindo
sultas de novas sugestões culinárias. Assim, mos uma biblioteca lá fora. Podem ouvir-se múltiplos propósitos pedagógicos.
recolhemos pela comunidade educativa várias histórias em cima das árvores, deitados na Os objetos e materiais que habitam os espa-
revistas, livros e catálogos de receitas para relva ou na rede, às refeições, antes do sono ços transitam, pois são “vivos” e não seden-
que as crianças tivessem acesso a mais lin- e mesmo enquanto fazemos o walk-stop- tários e imóveis. São trazidos para fora ou
guagens visuais, tácteis e culturais e amplias- -talk nos passeios da quinta. levados para dentro sempre com o propósito
sem o seu repertório sobre a alimentação. de responder às solicitações das crianças e
Todo este material está assim disponível Os livros pertencem às mãos dos meninos à intencionalidade pedagógica dos adultos.
para que as crianças, junto dos educadores, e não à “escola”. Estando nós conscientes destas necessi-
possam partir para novas descobertas. Tanto no Cor da Terra como no Passos de Gi- dades, os espaços são então enriquecidos
Segundo o pensamento de Malaguzzi, de gante, o espaço é visto como o terceiro edu- pelos materiais mais inusitados, variados e
que é importante “que a escola encontre e cador. Enquanto atelierista, procuro sempre estimulantes.
manifeste a sua própria identidade”, e tam- que o ambiente seja convidativo e provoca- Nesta foto, tirada nos ateliês dos bebés do
bém entendo que a fluidez da relação entre tório da investigação. Que esteja organizado Cor da Terra, a Ema, de dois anos, recolheu
espaço interior e exterior deve ser parte vi- para que as crianças se sintam tranquilas e os diversos recipientes de vidro, o recipiente
sível da identidade de qualquer escola. Não confortáveis nas suas buscas criativas, que plástico que continha diversos legumes, se-
limitar os espaços a uma utilização imutável tenham os materiais de que necessitam ao mentes e massas, a sua colher, e foi repetin-
e condicionada. seu alcance para que sejam autónomas nas do a ação de encher, transportar e despejar

23 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS

durante largos minutos, iniciando e parando flexível, logo menos restrita, formando assim çoar. Brown e Csikszentmihalyi juntam-se na
sempre que desejava, trocando de colheres e um círculo virtuoso de repetições: aprendi- proposta de deixar brincar as crianças pelo
outros utensílios. zagens-conquista-aprendizagens. tempo que elas determinarem. Quando a
O barulho causado pelos seus movimentos Um dos fatores-chave no processo de com- criança não está preocupada com atingir um
servia também de estímulo, bem como as co- pound flexibility é que a criança se sinta em produto final, mas sim explorar o processo,
res atrativas dos materiais e a transparência controlo. É esta a razão pela qual a brinca- mais motivada estará para a aprendizagem.
dos vidros e plásticos, nesta manhã ensola- deira autodirigida é essencial ao desenvolvi- Aprender in locu, desenvolver o pensamento
rada de outono. mento infantil. científico através da investigação e questio-
A flexibilidade do ambiente, a variedade de Sabemos também que o estado mais ativo namento constante, ampliar a capacidade de
recursos e os múltiplos usos destes são o do cérebro (e mais propício à aprendiza- observação, leva-nos, enquanto educadores,
que alimenta a aprendizagem das crianças e gem), o estado de fluxo (flow) é definido por a querer acompanhar de perto como se pro-
influencia a sua capacidade de concretizar as Mihaly Csikszentmihalyi como o estado ideal cessa o pensamento e se tecem as teorias.
tarefas a que se propuseram. Esta permissão de consciência em que sentimos e realizamos Para mim, enquanto atelierista, é importante
da exploração leva à experimentação, a cor- o nosso melhor. É um estado emocional po- conhecer os processos de pensamento das
rer riscos, testar hipóteses e validar aprendi- sitivo que se caracteriza por uma completa crianças para criar depois as condições ideais
zagens partilhando-as com os outros. envolvência na atividade que estamos a rea- para que elas possam representá-los nas
Estes pequenos sucessos aumentam a au- lizar sem nos importarmos com mais nada. suas diferentes linguagens artísticas.
toestima da criança, o que permite que in- Assim, quanto mais nos dedicamos a algo Os contextos de investigação que acolhem
terpretem o seu ambiente de forma mais que nos dá prazer, mais o iremos aperfei- as questões das crianças são também aque-

26 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


les que relançam o olhar e fazem surgir no- fundamental que traga uma ideia de inova- BIBLIOGRAFIA
vas questões. As lupas, a variedade de ob- ção constante para a vivência com o grupo, Brown, F. Playwork Theory and Practice (2003). Lon-
jetos de pesquisa como microscópios, livros assim criando a imagem de um humano fas- dres: Open University Press.
abertos que convidam à leitura das imagens, cinado com o mundo que o rodeia. Carson, R. El sentido del asombro (2012). Madrid: Edi-
a documentação de parede que evidencia A beleza e a diversidade dos materiais natu- ciones Encuentro.
Cuffaro, H. K. Experience with the world (1995) Nova
o caminho já percorrido e as descobertas rais e a forma como estão organizados nas Iorque: Teachers College Press.
já feitas, os registos e as falas das crianças estantes revelam o cuidado e o amor que Edwards, C.; Forman, G.; Gandini, L. As Cem lingua-
transcritas tornam visíveis os seus conheci- temos pela nossa “escola” e por aprender. gens da Criança: Volume 1: A Abordagem de Reggio
mentos e fazem-nos viajar pela sua forma de O meu papel enquanto atelierista é este: Emilia na Educação da Primeira Infância (2016). Por-
pensar. evidenciar este amor pela aprendizagem. to Alegre: Penso.
Edwards, C.; Forman, G.; Gandini, L. As Cem lingua-
Assim, será mais fácil que as crianças se sin- O cuidado com que documentamos e re- gens da Criança: Volume 2: A Experiência de Reggio
tam encantadas por aprender. E esse sim, gistamos as falas das crianças, como as Emilia em Transformação (2015). Porto Alegre: Penso.
para mim, é o papel primordial da escola. incluímos neste processo de documen- Gandini, L.; Hill, L.; Cadwell, L.; Schwall, C. O papel do
Procurar responder às questões das crianças tar e como partilhamos com as famílias a ateliê na educação infantil: A inspiração de Reggio
é algo a que naturalmente, enquanto educa- nossa documentação, comprometem-nos Emilia (2012) Porto alegre: Penso.
Hoyuelos. A. A estética no pensamento e na obra pe-
dores, queremos atender. Mas e se em vez com a aprendizagem. Esta demonstra que dagógica de Loris Malaguzzi (2020) São Paul: PHorte
de dar a resposta pronta e imediata levás- as crianças florescem quando se sentem Editora.
semos as crianças a formular teorias, para ouvidas e apoiadas para transformar a sua Louv, R. Last child in the woods: Saving our children
que depois fossem pesquisar e encontrar curiosidade em aprendizagem. from Nature-Deficit Disorder (2008). Nova Iorque:
respostas, primeiro autonomamente ou em A pedagogia de Reggio Emilia dedica espe- Algonquin books.
Malavasi, L.; Zoccatelli, B. Documentar os projetos
pequenos grupos e depois discutissem os cial atenção às relações com tudo e com nos serviços educativos (2017). Lisboa: APEI - Asso-
resultados com o grande grupo? todos os que nos rodeiam, à estética e à ciação de Profissionais de Educação de Infância.
Entre os diversos porquês que surgem du- poética da vida, e considera o espaço como Martini, D.; Mussini, I.; Gilioli, C. ; Rustichelli, F.; Ga-
rante um dia no pré-escolar, vamos reco- o terceiro educador. A criatividade está as- riboldi, A. Educar é Busca De sentido: Aplicação de
lhendo algumas questões que suscitam os sim cuidada e mantida através do ateliê e uma abordagem projetual na experiência educativa
dos 0-6 anos (2020). Brasil: Editora Ateliê Carambola
mais belos dos projetos de investigação: As do atelierista. Recordemos que há infinitas Escola de Educação Infantil.
galinhas têm dentes? De onde vêm os ce- capacidades em cada ser, em cada objeto, Neto, C. Libertem as crianças: a urgência de brincar e
reais? Por que é que o nariz do pato é no infinitas formas de ver e de relacionar-se ser ativo (2020).Lisboa Contraponto Editores.
bico? com o mundo.
A “árvore das perguntas” mantém suspensas E tu, com que escola sonhas?
as que ainda não foram respondidas para
que nos recordem a curiosidade natural das
crianças e que devemos sempre atendê-la
dentro da nossa proposta pedagógica.
No projeto de investigação dos caracóis,
foram recolhidas as diferentes conchas dos
que cá habitam. Foram trazidas para dentro
e colocadas sobre as rodelas de um tronco
que outrora fora uma árvore da quinta do
Cor da Terra, tal como o ramo que sustenta
as perguntas. É neste entrelaçar do dentro
e do fora que transgredimos os limites de
onde ocorre a aprendizagem.
O papel do adulto-educador é também o
de investigador, pois tem de manter a sua
curiosidade em permanente reciclagem. É

27 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS
Tripé mágico da educação financeira
Lina Nascimento . Educação financeira para crianças

Acreditar que a educação é o principal fator Até à data, implementei cinco projetos no criança traz para o grupo, nas datas ali de-
de desenvolvimento humano e social signifi- pré-escolar e dois no 3.º ciclo, sendo em qual- terminadas, uma quantia certa e divisível
ca admitir que não há fase da vida em que a quer deles delineado um sonho que, para ser por três, experimentando desta forma a sua
educação não seja crucial. O enriquecimento concretizado, necessita de dinheiro. A sua contribuição monetária seguindo uma regra
cultural e uma atitude de permanente dispo- transversalidade pedagógica e o envolvimen- social mais tarde exercida na sua vida adulta.
nibilidade para a educação cultivam-se desde to da comunidade tornam estes projetos mo- Em cada mealheiro (poupança, investimen-
o início da vida, com uma educação rica e tores de enriquecimento para um bom nível to, doação) é depositado 1/3 do rendimento
geradora de indivíduos equipados com ferra- de literacia financeira sustentando um futuro previamente estabelecido: Tripé Mágico =
mentas para aprender e querer aprender. equilíbrio económico-financeiro. Este é o meu poupar, doar, investir.
A educação formal, a informal e a não formal maior objetivo profissional, pois delineia um A partir do sonho, crio material pedagógico
fazem parte da minha responsabilidade en- caminho sempre acompanhado da preocu- durante a vigência do projeto: histórias, re-
quanto cidadã e educadora de infância. Com pação de assegurar o desenvolvimento geral, gistos gráficos, poesias, jogos, para susten-
33 anos de experiência profissional, trabalhei harmonioso e equilibrado de cada criança. tar a motivação e o foco no objetivo final.
em diversos ambientes socioculturais, com Como já referido, o lançamento do projeto Para conseguir o dinheiro, são delineadas
diferentes modelos pedagógicos, em diversas parte sempre do delinear de um sonho co- estratégias em colaboração com as famílias
entidades e modalidades. mum. das crianças.
Atualmente, desenvolvo a minha função do- O foco e a determinação na conduta em A etapa seguinte é a construção dos três
cente no jardim de infância do Agrupamento qualquer situação da vida são fundamentais mealheiros utilizando material reciclado. São
de Escolas de Vila do Bispo. para garantir o sucesso do sonho. Aqui não sempre transparentes para que as crianças
Em 2013 iniciei um trabalho prático de educa- é diferente: a decisão de gerar um sonho em vejam o dinheiro a “crescer” dentro deles.
ção financeira, depois de estudar o tema de grupo tem por objetivo o trabalho de equipa Estes mealheiros têm sempre relação com
forma autodidata e por iniciativa própria. A e o respeito pelo outro, na diversidade mas os personagens/situação da motivação cria-
sensibilidade para a abordagem a este tema também na particularidade. da em cada projeto. Nestes mealheiros, as
deu-se com a perceção do baixo nível de li- O sonho torna-se realidade graças ao em- crianças depositam o dinheiro arrecadado,
teracia financeira que o grupo de crianças penho e ao trabalho de todos com base na sempre em valores iguais. Daí a importância
apresentava. confiança e na crença que aprendemos com de que o dinheiro trazido de casa (rendimen-
Daí partiu a decisão de trabalhar o dinheiro, Walt Disney: “Se podemos sonhar, também to fixo) seja divisível por 3. O montante não
tema até então inimaginável na minha sala de podemos tornar os nossos sonhos realidade.” é o mais importante, mas sim o valor. Aqui a
jardim de infância. Considerando a missão da E como tornar um sonho realidade? Um sonho criança experimenta a igual importância do
OCDE quanto ao equilíbrio financeiro e eco- que, para ser concretizado, precisa de dinhei- poupar, do doar e do investir. As mais novas,
nómico dos Estados membros, é do meu inte- ro? A resposta encontra-se no sucesso e na que ainda não conhecem o valor das moedas
resse e responsabilidade ajudar na promoção experiência dos projetos já vividos. A criação e notas, compreendem perfeitamente que
da literacia financeira enquanto agente edu- do Tripé Mágico veio em defesa do que en- moedas/notas iguais são distribuídas por
cacional. Criei e implementei, então, um es- tendo como sucesso financeiro: equilíbrio cada um dos mealheiros.
quema lúdico-pedagógico adaptado ao nível entre três vertentes, poupar, doar e investir. Ao longo da vigência de cada projeto, vai
etário do pré-escolar. A partir deste modelo, a Depois de delineado o sonho comum ao gru- sendo aferido com os pais o modo como ga-
que chamei Tripé Mágico, tenho desenvolvido po de crianças e fixado o objetivo do projeto, rantir que a verba final assegure a realização
diversos projetos de educação financeira de é dado ao grupo a possibilidade de orçamen- do sonho das crianças: alterando a forma
crianças em idade pré-escolar, envolvendo as tar os custos, aqui já com a participação das de rendimento ou indo reestruturando as
suas famílias e as comunidades envolventes. famílias. Com estas, estipula-se qual o rendi- estratégias de investimento. A avaliação é
Com base no referencial sobre educação fi- mento mensal dispensado por cada criança contínua e feita em conjunto com os partici-
nanceira emanado do Ministério da Educação ao projeto. Pretendo com isto a proximidade pantes. A criança tem sempre acesso visível
em 2013, com indicadores básicos para todos com a realidade social, já que cada família ao sonho, através de uma imagem posicio-
os níveis de ensino, criei um método didáti- tem, normalmente, como fonte de rendimen- nada junto ao mealheiro da poupança para
co facilitador do enriquecimento da literacia tos, um ordenado, um vencimento fixo, pelo que possa apreender o modelo de educação
financeira. trabalho profissional desenvolvido. Assim, a financeira e nunca se desviar do seu foco.

28 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


Estratégia de angariação do dinheiro sibilidade de compreender como o dinheiro
Desde o primeiro projeto que uma das estra- tem a capacidade mágica de multiplicar-se.
tégias é a venda porta a porta de bolos con- O empreendedorismo é aqui estimulado na
feccionados pelos pais. É criada uma tabela sua forma mais elementar.
para organizar o número e as datas em que Este dinheiro destina-se a investir para au-
os bolos são trazidos de casa. Por vezes, a mentar a fonte de rendimento e voltar a ser
venda é também de outros produtos alimen- repartido pelos três mealheiros. É normal-
tares, como fruta e/ou legumes trazidos das mente utilizado para comprar os ingredien-
hortas das famílias. Esta venda é feita sema- tes para fazer bolos para vender, para com-
nalmente na comunidade pelas crianças. prar os livros de rifas, etc. Esta ação permite
Na sala, também são construídos alguns que a criança entenda que o que vai vender
objetos vendáveis na comunidade e nas fa- tem um preço mais alto do que aquele que
mílias, como bijuteria de lixo apanhado na gastou para fazê-lo ou adquiri-lo.
praia, pinhas pintadas, almofadinhas de re- Aqui dá-se à criança a noção de que “dinhei-
laxamento, tabuleiros pintados e tudo o que ro gera mais dinheiro” ou de que “dinheiro
o grupo decidir. deve trabalhar por si”. Outra forma de usar o ções do projeto, este poderá ser retirado
A venda também pode ser feita nos merca- mealheiro de investimento é adquirir objetos também para compra de materiais para ofe-
dos municipais do concelho e em feiras ou que possam enriquecer os nossos conheci- recer uma prenda a alguém, desde que seja
eventos locais, pelas famílias e pelo pessoal mentos e dar-nos momentos muito felizes no âmbito do projeto.
da sala. (por exemplo: TV, máquina fotográfica, fatos Qualquer que seja o conteúdo do mealheiro
Outra estratégia normalmente utilizada é a para andar à chuva, livros, etc.). das doações, este poderá ser levantado em
venda de rifas de cabazes alimentares, de datas pré-estabelecidas pelo grupo.
objetos oferecidos à sala e/ou de vouchers Doar
oferecidos pelas empresas locais. O dinheiro recolhido no mealheiro das doa- Dormir com os tubarões
No final da venda, as crianças distribuem o ções é utilizado, no final de cada projecto, O primeiro projeto de educação financeira
dinheiro angariado em partes iguais entre para adquirir material e destina-se unica- foi feito no ano letivo 2013/2014. Definimos
os três mealheiros, trabalhando-se neste mente a uma causa social, a empresas, en- como sonho uma visita ao Oceanário de Lis-
processo conhecimentos de matemática (se- tidades ou instituições de utilidade pública boa, na atividade denominada “Dormir com
riação das moedas/notas, classificação, con- significativas para as crianças. Tal decisão é os tubarões” e ainda visitar a Kidzânia. Como
tagem, conhecimento das notas, símbolos estabelecida pelo grupo e/ou pelas famílias. sabemos, aqui as crianças recebem uma certa
numéricos, etc.). A doação a elementos conhecidos da comu- quantia de dinheiro para gerirem (gastarem ou
nidade cria na criança a sensibilidade para o ganharem) durante um dia.
Poupar prazer de dar, sustentada na valorização da Criei a história “Os manos Grunhim”, com os
A ideia de poupar leva a criança a organizar- relação afetiva. Cria-se um estímulo solidá- personagens Poupar Grunhim, Pradar Gru-
-se no espaço e no tempo com um objetivo rio e vivencia-se que o doador é aquele que nhim e Investe Grunhim. Os mealheiros, em
específico criado por si e pelos seus pares. exerce uma função altruísta e filantropa em forma de porquinhos, foram construídos com
O mealheiro da poupança guarda o dinheiro prol do bem comum. garrafas de plástico.
utilizado na concretização do sonho. O di- Este mealheiro poderá ter inúmeros conteú- A Câmara Municipal de Vila do Bispo cedeu
nheiro é retirado do mealheiro apenas para dos, ou melhor, poderão ser construídos vá- bancas nos mercados de Sagres e Vila do Bis-
o que foi estabelecido pelo grupo no início rios mealheiros. Por exemplo, roupas, calça- po para as crianças, mães e avós venderem
do projeto. do, brinquedos, livros, alimentação para ani- bolos e outros produtos (por exemplo, pinhas
O dinheiro da poupança é o foco para con- mais, Dia do Pijama, etc. Este é um mealheiro decoradas e castiçais para o Natal) com a fina-
cretizar o sonho. que acaba também por ser usado em proje- lidade de abastecer os mealheiros.
tos específicos e paralelos ou complementa- Outra receita foi a elaboração e venda do livro
Investir res aos projetos de educação financeira. Mãe, obrigado (a)! Com os teus bolos aprendi
A ideia de investimento dá à criança a pos- Voltando ao dinheiro do mealheiro das doa- educação financeira, criado a partir das recei-

29 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: PRÁTICAS

tas dos bolos vendidos e feitos pelas mães Além da confeção e venda de bolos foi O dinheiro arrecadado pagou a viagem de
durante o ano. Também foi feita a rifa de uma realizado um mega-evento em Barão de S. avião entre Faro e Porto, o autocarro para
“cesta de primavera” com produtos alimenta- Miguel, uma aldeia do concelho de Vila do as deslocações no Porto, a estada e alimen-
res, vendida pelas crianças. Bispo, com grande participação da comu- tação, bem como as visitas a Serralves, ao
O dinheiro arrecadado foi suficiente para nidade. Clubes recreativos, restaurantes, Parque Biológico de Gaia e ao Teatro de Ma-
pagar a concretização do sonho, que durou bares, supermercados e associações despor- rionetas do Porto.
dois dias, e ainda visitar o Pavilhão do Conhe- tivas doaram os seus serviços e produtos em O dinheiro da doação foi entregue à Make-
cimento, em Lisboa, pagando as despesas de prol do projeto. Cobraram-se as entradas e -a-Wish, que viabiliza a realização dos so-
alimentação, não apenas das crianças como as refeições e foi montada uma banca para nhos de crianças com doenças crónicas. Já
também dos familiares que as acompanha- a venda de produtos. Pais e equipa da sala o dinheiro do investimento foi utilizado na
ram. organizaram e serviram e as organizações lo- compra de um projetor multimédia e de uma
O dinheiro do mealheiro das doações foi des- cais responsabilizaram-se pela animação do máquina de cortar papel e tecido.
tinado à ala pediátrica do Hospital do Barla- evento.
vento do Algarve. Já o dinheiro do investi- Outra fonte de receita foi a angariação de Reis e rainhas
mento que restou foi utilizado na aquisição de fundos na inauguração de um salão de be- Depois de definido o projeto “Sonhamos e rei-
uma televisão e de uma máquina fotográfica. leza. Além disso, foram distribuídos “aviões- namos”, criei e adaptei a história “As estrelas
-mealheiros” pelos cafés de todo o concelho douradas”, dos irmãos Grimm. Isto aconteceu
Batismo de voo onde as pessoas podiam fazer a sua doação. porque uma das crianças que frequentavam a
O projeto do ano letivo 2014/2015 intitulou- Este projeto foi sustentado por muitos patro- sala é filha de mãe alemã e descendente dos
-se “Sonhamos e voamos” e consistiu em fa- cinadores particulares, assim como pelas jun- próprios irmãos Grimm.
zer o “batismo de voo”: andar de avião pela tas de freguesia e por muitas empresas locais. As crianças construíram os três mealheiros em
primeira vez. As crianças construíram um O interesse e o envolvimento da comunida- forma de castelo. Além do rendimento fixo
mealheiro-dinossauro (poupar), um mealhei- de foram fundamentais para o sucesso des- (três euros trazidos de casa) e da venda dos bo-
ro-fada (doar) e resolveram manter o Investe te projeto, assim como a participação entu- los, foi feita uma rifa de um quadro doado. Foi-
Grunhim do projeto anterior. siasta das famílias e da equipa de trabalho. -nos atribuído o primeiro prémio do concurso
de máscaras no desfile do carnaval de Sagres,
no valor de 250,00€, com um carro alegórico
construído pelas famílias.
O dinheiro da poupança serviu para pagar a re-
criação histórica no Palácio de Queluz, a estada
e a alimentação das crianças e seus familiares
e ainda sobrou para uma visita ao Museu do
Dinheiro.
Por decisão das crianças, o dinheiro do mea-
lheiro das doações foi destinado à aquisição de
um telescópio para a Walking Sagres (empresa
de caminhadas e preservação da natureza com
quem desenvolvemos projetos de sustentabili-
dade). Como ainda sobrou algum dinheiro, as
crianças decidiram oferecer 50 packs de água
aos bombeiros que estavam a trabalhar no
combate aos incêndios de Pedrógão Grande.
O dinheiro do investimento foi direcionado
para a aquisição de livros com temas desco-
nhecidos para as crianças, como o livro Hori-
zonte. Mais uma vez foi trabalhada uma das

30 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


formas mais interessantes do investimento, seu do Dinheiro em Lisboa e uma viagem de
que é investir em conhecimento. teleférico.
A novidade deste projeto foi o trabalho com o O dinheiro do mealheiro das doações foi des-
dinheiro ao nível emocional. As crianças foram tinado à aquisição de quatro guitarras para os
estimuladas a fazer experiências científicas e doutores palhaços da Operação Nariz Verme-
a brincar livremente com notas e moedas. A lho, que tem como causa apoiar, com alegria,
ideia foi trabalhar as emoções, ou seja sentir, crianças hospitalizadas.
cheirar, enfim, explorar o dinheiro e trabalhar O dinheiro do investimento foi aplicado numa
as crenças negativas e positivas que cada coluna de som para a sala e numa máquina de
criança apresenta, geradas socialmente. costura elétrica.

Vamos ao circo Conquistadores


No ano letivo 2018/2019 o sonho foi ir ao cir- O projeto “Sonhamos e Conquistamos”, no
co. A decisão surgiu depois de uma pesquisa ano letivo 2019/2020, teve como sonho ter
sobre “trampolim”, pois o Sunny tinha trazido uma caravela no recreio. Com este trabalho
à sala a galinha que saltava com ele no seu ganhamos uma menção honrosa no concurso
trampolim. Ao descobrirmos que o circo apre- “Todos Contam”. O sonho foi criado pelo re-
senta inúmeras acrobacias em trampolins, lato de uma criança que tinha participado na
decidimos que queríamos ver um de perto. construção de uma caravela numa atividade
Assim nasceu o “Sonhamos e Rimos”, com o do Centro de Ciência Viva de Lagos. O entu-
qual ganhamos o Prémio Nacional Pré-Escolar siasmo foi tal que transbordou para a sala a nhamos e Lá Vamos”, tendo sido considerado
do concurso “Todos Contam” (ME, Banco de possibilidade de também termos uma caravela o projeto inovador do concelho naquele ano.
Portugal e CMVM e outros supervisores fi- no nosso recreio. Já no presente ano letivo foi-me atribuído o
nanceiros).Com a história criada para o efeito Este projeto foi interrompido devido ao con- prémio Professor do Ano do concurso “Todos
“Palhaço Rosalino” e com pedras mágicas que finamento provocado pela pandemia do covid Contam”.
nos ajudam a alcançar sonhos partimos para 19, no mês de Março. Mesmo assim consegui- Saliento, neste meu percurso enquanto edu-
uma brincadeira e criação de um circo na sala. mos a compra de um equipamento de exte- cadora financeira, a forma como esta temáti-
Cada um, ao longo de todo o ano, experimen- rior: caravela. ca agregou toda uma comunidade com o foco
tou ser acrobata, palhaço, bailarino, equilibris- O mealheiro do investimento foi utilizado na na concretização de sonhos de uma sala de
ta, mágico, halterofilista e ainda dinossauro e compra de fatos impermeáveis. Investimos pré-escolar. Como diz o provérbio africano,
unicórnio, pois estes foram os nossos animais em alegria por saltar nas poças e por andar à “É preciso uma aldeia inteira para educar uma
circenses. chuva no nosso recreio. criança”. Também foi verdade que o jardim
A alegria e o prazer na participação nestes A verba das doações ainda está por entregar e de infância levou para fora das suas paredes
números de circo ajudaram-nos a alimentar o será decidida em grupo, adaptada às circuns- dinâmicas didáticas, emocionais e de solida-
foco no objetivo final. Mais uma vez, foi um tâncias atuais do funcionamento do jardim de riedade capazes de promover a literacia finan-
projeto muito participado pelas famílias e pela infância. ceira na “sua própria aldeia”.
comunidade. Um dos objetivos era visitarmos O município de Vila do Bispo tem tido um pa- As crianças viveram experiências, aprenderam
a escola circense Chapitô, o que não aconte- pel fundamental para o sucesso destes pro- e aprendem que o dinheiro é bom, ensina,
ceu por falta de disponibilidade desta escola jectos, pois tem sido a principal entidade pa- ajuda-nos, ajuda os outros, disciplina-nos e
para receber-nos no final do projeto. trocinadora e apoiante. A Junta de Freguesia faz-nos concretizar sonhos.
O dinheiro da poupança serviu para pagar a de Vila do Bispo oferece-nos a t-shirt usada
entrada na exposição “Tcharan - brincar ao no final de cada projeto com o nome dos pa-
circo”, no Pavilhão do Conhecimento, a esta- trocinadores materializando o nosso imenso
da no parque de campismo de Monsanto e a agradecimento.
alimentação das crianças e seus familiares e Em 2017 recebi uma agraciação da Câmara
ainda sobrou para compra de livros no Mu- Municipal de Vila do Bispo pelo projeto “So-

31 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

Tecendo OCEPE no Jardim@Distância


Eunice Jorge Rodrigues Seabra . Educadora de infância – Coordenadora do Departamento de Educação Pré-Escolar do
Agrupamento de Escolas Vale do Tamel, Barcelos

Um desafio educativo inesperado e muito um compromisso onde se podem estreitar zem do que ouvem leva-as a “criar novos
disruptivo: ensaiar e experimentar um novo vínculos emocionais duradouros e altruístas instrumentos, novas técnicas, novas histó-
modo de cuidar. Cabia a esta instituição na base do amor porque cuidamos, não im- rias, novas explicações (ibidem: 160)” “Não
escolar da rede pública e às educadoras de portando quem amamos. Na linha de Alison aprendem apenas o que os outros disseram,
infância em particular mediar, manter e ali- Gopnik: “O que nos faz amar uma criança mas quão fiáveis são e quanto deverão con-
mentar a comunidade à distância fazendo não é algo relacionado com ela – é algo rela- fiar nelas no futuro (ibidem: 162). Ou seja,
o acompanhamento educativo das crianças cionado connosco” (2017: 100). Quer se trate se acreditarmos nas crianças e nas suas ca-
em contexto familiar, como consequência de pais ou de outros adultos cuidadores, de- pacidades de compreensão do mundo, elas
da interrupção inesperada da modalidade nominados de “aloprogenitores” (idem: 87), interpelam-nos, mostram-se competentes,
de ensino presencial. Almejando contribuir “as emoções de cuidar são desencadeadas arriscam, investigam e descobrem através
para a igualdade de oportunidades inscrita por um contexto social, pela nossa imersão do que observam e das tecnologias físicas e
na Convenção dos Direitos da Criança,1 era numa teia de amor que liga parceiros, pro- sociais disponíveis (a autora referida inclui os
urgente manter o sentimento de pertença a genitores e outros e por aquilo que experi- rituais na segunda).
uma comunidade, de preferência próxima da mentamos, cremos e aprendemos” (ibidem: O educar, neste contexto histórico, afirmou-
definida por Wenger, McDermott e Snyder 97). Contextualizando o cuidar neste período -se como um exercício político na vertente
(2002), para construir sentidos profundos de pandemia, penso que todos cuidamos e dos fundamentos democráticos da organi-
nas interações e proporcionar aprendizagens nos educamos uns aos outros de alguma zação da oferta educativa, mas um exercício
e bem-estar socioemocional a todos, famí- maneira, igualmente importante e essencial. também social e cultural, pela mediação de
lias, educadoras de infância e outros técni- Não serão também as crianças agentes nes- instrumentos e conteúdos materiais e ima-
cos. te cuidar e educar? Refletindo sobre o que teriais, disponíveis em vários formatos. Edu-
Como base da ação educativa, tínhamos a nos diz Gopnik a respeito da aprendizagem car aconteceu nas vivências, nas experiên-
compreensão de que “O desenvolvimento cultural das crianças, a reprodução que fa- cias, nas partilhas, num espaço e tempo de
motor, social, emocional, cognitivo e linguís-
tico da criança é um processo que decorre
da interação entre a maturação biológica e
as experiências proporcionadas pelo meio fí-
sico e social” (OCEPE, 2016: 8), assim como
a indissociabilidade das vertentes desen-
volvimento e aprendizagem, conjugando o
binómio educar e cuidar. Sabemos que as
crianças são cidadãs gregárias muito de-
pendentes do contacto físico e da relação
interpessoal rica e variada numa comunidade
mais alargada, assim como especialistas na
leitura e integração da comunicação não-
-verbal. São imprescindíveis para elas am-
bientes educativos com rotinas significativas
e de qualidade que lhes deem segurança físi-
ca e emocional, espaços, tempos e materiais
diversos disponíveis na nossa segunda casa,
onde vão aprendendo a habitar e a construir
cidadania. Serão os jovens e adultos de to-
das as idades tão diferentes das crianças?
Refiro-me especialmente às relações próxi-
mas que envolvem a prestação de cuidados,
1 1 Edição revista em 2019, art.º 28 e 29.

32 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


aprendizagem alargado ao espaço doméstico 2016). Deixámos de ter a pressão habitual do pois preferiam brincar sem o adulto, outros
com as famílias. Nesta mediação educativa relógio no dia a dia e os nossos ritmos tive- mencionaram constrangimentos como crian-
surgiram sentimentos ambivalentes. Foi pa- ram de adaptar-se a um quotidiano menos ças de diferentes idades para atender, daí
tente em todos a ansiedade da espera, como estandardizado. Possivelmente, as crianças menos atividades partilhadas. Outros ainda
um tempo suspenso, espelhado na frase de beneficiaram deste tempo mais dilatado, não se queriam expor nas redes sociais ou
uma criança, fresca na memória, proferida pois os adultos, “aguardando que elas che- não tinham meios informáticos, nem à-von-
em contexto de jardim de infância: “Quando guem aonde e quando têm de chegar pelo tade para o fazer. No entanto, sabíamos que
se está à espera parece muito tempo.” Mas seu caminho” (2016: 205), permitiram-se brincar não podia deixar de ser central, pois
igualmente com a necessidade de acreditar- observá-las, acompanhá-las, escutá-las e, é em si expressão de vida. Wenger (2001)
mos que vai tudo correr bem e fruir o mo- ensaiando ser crianças, podem ter benefi- elucida que viver é um processo constante
mento como fazem as crianças quando ob- ciado, mental e culturalmente, os adultos de negociação de significado pelo qual ex-
servam caracóis na sua lentidão e brincam ao disponíveis. Citando Oliver Holmes (referido perimentamos o mundo e nos engajamos de
faz de conta. Estar aqui e agora, que missão em Marques, 2019: 29): “Não paramos de modo significativo, assumindo dois proces-
hercúlea para os adultos socializados para o brincar porque envelhecemos, mas envelhe- sos distintos e complementares em dualida-
tempo cronológico mensurável. Nesta expe- cemos porque paramos de brincar.” Alguns de inseparável: a participação, que pode ser
riência de cuidar fomos surpreendidos pela pais aderiram com entusiasmo, outros foram harmoniosa, conflituosa, permanente, pon-
emergência do kairós, isto é, a atividade com colaborando ao seu ritmo, outros justifica- tual, e a reificação, que torna a experiência
envolvimento inteiro e intenso tão orgânica ram que as suas crianças não se interessa- objetiva porque concretizada em artefactos,
nas crianças (Macedo, referido por Nídio: vam pela tela do computador ou telemóvel, símbolos, instrumentos, etc.

33 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

O espaço e tempo de interação, esse tercei- pondermos ao desafio para trabalhar com as ciência de que estar próximo do outro não
ro educador, foi reinventado e mediado por famílias à distância foram vistas como mais- é só estar fisicamente, mas que o desejamos
via telemática e pela colaboração de cuida- -valias, para encontrar respostas feitas à me- como pão para a boca.
dores mais próximos. Malaguzzi lembra: “O dida de cada grupo e de cada contexto fami-
que as crianças aprendem não ocorre como liar onde se desenvolvem as nossas crianças.
um resultado automático que lhes é ensina- Acreditamos que aprendemos muito e alar-
do. Pelo contrário, isso deve-se em grande gamos competências digitais e relacionais, BIBLIOGRAFIA
parte à própria realização das crianças como ensaiamos tecer currículo através de afetos Dewey, J. (1971). Experiência e educação. São Paulo:
Companhia Editora Nacional.
uma consequência das suas atividades e e cumplicidades, elegemos o bem-estar de Edwards, C, Gandini, L, Forman G. (2016). As cem lin-
dos nossos recursos” (Edwards et al, 2016: todos como base para a intencionalidade guagens da criança. A abordagem de Reggio Emilia
72). Goodman enfatiza que “compreender pedagógica, porque respeitamos a liberdade na educação da primeira infância. (vol.1). Porto Ale-
gre. Penso Editora.
é sentir desejo, drama e conquista” (idem: de escolha na exposição das famílias, aten- Gopnik, Alison (2017). O Jardineiro e o Carpinteiro.
72), sendo o brincar mais do que entreter. demos à diversidade na sua composição, ou Coleção Temas e Debates. Lisboa. Círculo de Leitores.
Nesta época de grande oferta de entreteni- com crianças recém-nascidas, ou de diversos Marques, I. (2019). A brincar também se educa. Bar-
carena. Editorial Presença.
mentos digitais, mais explorados na fase de níveis de ensino e cada uma especial à sua Neto, C, Lopes, F. (2018). Brincar em todo o lado.
confinamento, é importante distinguir estes maneira, assim como atendemos à concilia- Câmara Municipal de Cascais e Associação de Profis-
conceitos. Brincar é uma atividade vital para ção do acompanhamento das crianças com sionais de Educação de Infância (APEI).
Nídio, Alberto (2012). “O tempo das crianças e as
explorar e descobrir, entretenimento é agir o trabalho dos pais e com constrangimentos crianças deste tempo” (203-224) in Araújo, E. & Du-
de forma passiva, automática e pouco cria- ligados à acessibilidade digital. Avaliamos que (eds.) (2012). Os tempos sociais e o mundo con-
tiva (Marques, 2019). Para melhor elucidar, como muito positiva a colaboração das fa- temporâneo. Um debate para as ciências sociais e
humanas. Universidade do Minho: Centro de Estudos
para além de vivência, brincar enquanto jogo mílias na realização e partilha de atividades, de Comunicação e Sociedade/Centro de Investigação
“não é um processo definido, é um processo tendo-se entrelaçado atividades propostas em Ciências Sociais Retirado de
aleatório. Jogar ou brincar não é só incerteza por nós com as resultantes de iniciativas re- http://www.lasics.uminho.pt/ojs/index.php/cecs_
ebooks/article/download/1561/1463
é uma forma acrescida de ganhar segurança lacionadas com interesses emergentes das Silva, I. (coord.) et al. (2016). Orientações Curriculares
e autonomia” (Neto & Figueiredo, 2018: 9). crianças e das condições físicas e materiais para a Educação Pré-Escolar. Lisboa: Ministério da
Muitas brincadeiras foram registadas, desde dos contextos de vidas destas. Educação/Direção-Geral da Educação (DGE).
Spodek, B., Saracho, O. (1998). Multiple Perspectives
manipulativas, motoras, construtivas e dra- No estar em relação por vias telemáticas, on Play in Early Childhood Education. State Univer-
máticas (Spodek & Saracho, 1998) através de será útil e bom olhar para o copo meio cheio. sity of New York, Albany.
imagens partilhadas pelas famílias. Fomos Ilustra esta ideia uma criança que evidencia- UNICEF, Convenção Internacional dos Direitos da
Criança e Protocolos Facultativos (ed. revista 2019).
educadoras mediadoras culturais na aceção va mutismo seletivo desde o início do ano, Retirado de https://www.unicef.pt/media/2766/uni-
mais literal e prática da palavra, aproximando pois só comunicava verbalmente com os co- cef_convenc-a-o_dos_direitos_da_crianca.pdf
o cuidar associado à necessidade de “colo” e legas da sua idade, passando à distância via Wenger, E. (2001). Comunidades de prática. Aprendi-
zagem, significado e identidade. Barcelona: Paidós.
o educar no ensaio de práticas de cidadania, telefone a falar com a educadora sem papas Wenger, E.; McDermott, R.; Snyder, W. M. (2002).
valorizando a participação e a iniciativa das na língua. Emerge também a grande cen- Cultivating Communities of Practice: a guide to ma-
crianças e das famílias. tralidade do agregado familiar na formação naging knowledge. Boston: Harvard University Press.
Planificações Pré-escolar, retirado de https://
Neste período tão especial, foi notória a das crianças, ao mesmo tempo que se fazem apoioescolas.dge.mec.pt/node/351
necessidade de proximidade entre todas as famílias a brincar, a olhar o céu, a semear
educadoras, causada pelo distanciamento fí- emoções e a colher afetos, na lida da casa, a
sico imposto, pois antes de cuidar das crian- jogar às escondidas nos espaços conhecidos
ças e famílias precisavamos de cuidar de nós e a enfrentar os medos, a fazer escolhas e
e nutrir a esperança de que íamos conseguir cócegas, a criar e a recrear-nos com tantos
dar o nosso melhor. Muitas horas bem pas- materiais adormecidos lá em casa. Estamos
sadas em reuniões informais no Teams, va- todos diferentes e com certeza mais próxi-
riadas formações online, partilhas pelo what- mos. Só precisamos de sentir com profundi-
sApp, umas em “sincronia”, outras nem por dade, e a pressa é inimiga da nossa perfeição
isso. A ansiedade e a expectativa de corres- imperfeita. Porventura temos maior cons-

34 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO
A relação eficaz entre formações centradas numa pedagogia participativa
e o desenvolvimento de lideranças pedagógicas na educação de infância
Jorgiana Ricardo Pereira . Professora da Universidade Federal do Ceará, Núcleo de Desenvolvimento da Criança, Brasil, e
integrante da Associação Criança, Portugal

Os grandes movimentos pedagógicos têm no processo de construção de modos par- vista as especificidades dessa educação que
evidenciado a importância da ligação entre ticipativos de pensar e fazer pedagogia (Oli- se projetam no âmbito institucional, sócio-
o desenvolvimento profissional e o desen- veira-Formosinho & Formosinho, 2013). Uma -organizacional e pedagógico.
volvimento da liderança pedagógica. Citando relação fundamentada nos valores, crenças, Na sua opinião, uma liderança transforma-
apenas alguns exemplos, veja-se o caso do princípios e conhecimentos do campo das cional é baseada numa visão inspiradora para
Movimento da Escola Moderna (Niza, 2013), pedagogias da infância participativas, cujos os profissionais, abrange valores e princípios
do movimento Reggio Emilia (Malaguzzi, modelos pedagógicos buscam a promoção de igualdade, solidariedade, liberdade, jus-
2016) ou, mais recentemente, o Observatório da democracia e da aprendizagem com bem- tiça e humanismo, busca promover outras
da Cultura Infantil (Fochi, 2019). O foco deste -estar no quotidiano, por meio das práticas lideranças, é meta-integradora, objetiva o
artigo é o movimento da Associação Criança educativas e das interações que as caracte- desenvolvimento das crianças e adultos e
e a sua pedagogia – a pedagogia-em-parti- rizam. a transformação das práticas educativas e
cipação. A pedagogia-em-participação defende uma dos contextos de trabalho. Essa visão de
Nesse âmbito, o artigo aborda elementos perspetiva de liderança para os centros de liderança tem como base uma pedagogia
do percurso formativo de uma diretora de educação de infância baseada numa visão da infância integradora, que se sustenta na
um centro de educação de infância que fez pedagógica que contemple a especificidade compreensão holística das dimensões que
a opção por aprofundar conhecimentos no da educação dos bebés e demais crianças constituem a ação profissional, ética, com-
campo da pedagogia da infância, destacan- nesses contextos. Formosinho (2003) argu- plexa e situada de educar crianças pequenas,
do como isso mudou a sua atuação pro- menta que esses centros precisam não só de e não em análises isoladas.
fissional, encaminhando-a para a liderança uma gestão competente do ponto de vista A liderança transformacional é meta-inte-
pedagógica. É um recorte de uma pesquisa administrativo, mas também de uma lideran- gradora porque promove, em primeiro lu-
qualitativa, desenvolvida durante o doutora- ça pedagógica transformacional, tendo em gar, uma integração dos profissionais para
mento, realizado na Universidade Federal do
Ceará e na Universidade Católica Portugue-
sa do Porto. Os dados empíricos aqui apre-
sentados foram construídos a partir de uma
entrevista com a diretora de um centro edu-
cativo localizado a oeste de Lisboa. Trata-se
de uma Instituição Privada de Solidariedade
Social (IPSS), onde ocorrem processos de
formação em contexto à luz da pedagogia-
-em-participação.

Pedagogia-em-participação, liderança
pedagógica e formação em contexto
A pedagogia-em-participação, perspetiva
pedagógica da Associação Criança, foi de-
senvolvida progressivamente com base na
cooperação realizada no âmbito dos pro-
jetos de formação, intervenção e pesquisa
apoiados por esta associação (Oliveira-For-
mosinho & Formosinho, 2001).
A pedagogia-em-participação compreende
a liderança pedagógica dos contextos de
educação de infância no âmbito das rela-
ções entre pedagogia e liderança. Uma re-
lação entendida como capaz de cooperar

35 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

o desenvolvimento de uma ação educativa práxis participativa. Esta associação en- tão e a equipa educativa de sala, conside-
coerente com a pedagogia em que se baseia, tende que a complexidade desse proces- rando que a liderança pedagógica tem de
e em segundo lugar promove a integração so exige mediação e liderança pedagógica ser compartilhada (Bolivar, 2012).
dos profissionais no desenvolvimento de (Oliveira-Formosinho & Formosinho, 2001),
um projeto pedagógico que tem por refe- exercida por uma profissional capacitada A perspetiva da diretora sobre a sua
rência esta pedagogia, portanto, considera para assumir estes papéis e na realidade atuação antes e depois das formações
a natureza holística do ato educativo. Essa dos contextos (Oliveira-Formosinho, 2016), situadas na pedagogia da infância
meta-integração tem de ser feita com base por uma formadora que medeia e lidera a As experiências formativas vividas pela di-
em valores e princípios de igualdade, solida- transformação das formas de pensar e fa- retora, nomeadamente a participação na
riedade, liberdade, justiça e humanismo, que zer pedagogia no quotidiano e a formação formação em contexto realizada no centro
orientam a visão da liderança numa perspec- de lideranças que darão continuidade ao educativo em que trabalha e a realização do
tiva transformacional das realidades educa- processo formativo e transformativo após mestrado em Educação de Infância, ambas
tivas (Formosinho, 2003). a sua saída. fundamentadas na pedagogia como campo
A Associação Criança, que assume esses Em interface com a visão de mundo que a do conhecimento, foi identificada como
valores na sua perspetiva pedagógica, in- fundamenta, a pedagogia-em-participação fundamental para a atuação desta profis-
tervém, por meio da formação em contexto, pensa a liderança pedagógica em contextos sional na direção pedagógica da instituição.
nos centros de educação de infância que de educação de infância em bases demo- A formação em contexto alimentou a sua
desejam assumir o desafio da descons- cráticas e progressistas. Nessa significação, vontade de saber e conhecer e impulsionou
trução da maneira tradicional de pensar a liderança pode e deve ser assumida por o ingresso no mestrado:
e fazer pedagogia e a construção de uma profissionais que integram a equipa de ges- “Eu já pensava antes da formação em con-
texto em poder adquirir mais conhecimen-
tos [...]. E realmente, quando comecei a
perceber que a pedagogia-em-participação
era um mundo e que a investigação estava
ao rubro, como costumo dizer, que havia
muita coisa nova, eu de facto percebi que
não podia ficar por ali. Precisamente, por-
que o meu papel também é de fazer que as
coisas cresçam e avancem. Portanto, con-
siderei que indo tirar o mestrado também
criava mais ferramentas para poder apoiar
este processo [a continuidade da formação
em contexto e do desenvolvimento da pe-
dagogia-em-participação no quotidiano do
centro, após a saída da formadora externa],
porque havia muita coisa que nós tínhamos
descoberto e aprendido com a [nome da
formadora em contexto externa], mas de-
pois era preciso continuar. [...]. E o mestra-
do foi uma excelente oportunidade de eu
adquirir mais conhecimentos [...].”
A diretora evidencia como o desenvolvi-
mento profissional envolve encontrar ins-
piração para as coisas que se quer fazer e
para as que se faz (Malaguzzi, 2016), mos-
tra a sua percepção acerca do seu papel na

36 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


direção pedagógica do trabalho educativo e isto é muito bom e, portanto, acaba por sional envolve crescimento e requer empe-
que a instituição assumiu, o compromisso ser algo que é um trabalho individual, mas nho e formação sustentada na especificida-
de desenvolver à luz da pedagogia-em-par- que é partilhado.” de da educação da criança pequena e dos
ticipação. É notório que há partilha de uma pesquisa contextos e desejo de aprender, desenvol-
A diretora revela entender como este papel decorrente de um curso realizado pela di- ver-se e educar-se (Oliveira-Formosinho,
exigia dela conhecer esta pedagogia para retora, o que permite levantar a hipótese 2008). E, ao mesmo tempo, que a mudança
atuar na orientação e acompanhamento de que isso ocorra porque a referida pes- exige consciencialização do que se faz e do
pedagógico necessários à continuidade da quisa assenta na atuação da diretora junto que, e porquê, é preciso mudar (Freire, 1987).
formação em contexto,1 tendo em vista a a essas profissionais. Evidencia-se, aqui, o Essa consciencialização é necessária para
aprendizagem da pedagogia-em-participa- valor da investigação educacional praxioló- que os profissionais transformem ações ro-
ção e a sua concretização no quotidiano. Ao gica para o desenvolvimento profissional3 tineiras e irrefletidas em práxis pedagógica
mesmo tempo, anuncia compreender que a (Formosinho, 2016). Este, como observam (Oliveira-Formosinho & Formosinho, 2013).
mudança das práticas requer a aprendiza- Malaguzzi (2016) e Oliveira-Formosinho e Ao discorrer a respeito de como entendia a
gem de uma pedagogia explícita e as duas Formosinho (2001), é, por um lado, indivi- sua atuação como diretora antes dos pro-
ocorrem por meio de um processo gradual dual e, por outro lado, partilhado. cessos formativos já referidos e como a via
e de uma mediação pedagógica baseada A diretora, ao ponderar como se sente rea- atualmente, a diretora colocou o conheci-
nessa pedagogia. Em concordância com lizando o seu trabalho após ter vivido ativa- mento elaborado no campo da pedagogia no
Oliveira-Formosinho e Formosinho (2018), mente formações centradas na pedagogia da centro das mudanças:
uma mediação que apoie a aprendizagem infância, chama a atenção para a sua satis- “A grande diferença é o foco na pedagogia,
profissional que permite a transformação fação pessoal, atuação profissional e cons- ou seja, neste momento os desafios que se
da práxis, ambas (aprendizagem e transfor- ciência do valor da aprendizagem mútua da colocam têm o foco no processo de trans-
mação) realizadas em companhia. equipe educativa da qual faz parte: formação da pedagogia e em sustentar este
A diretora posiciona o mestrado, especifi- “Eu sinto-me muito mais preparada porque processo e melhorá-lo, continuar a melhorar
camente a produção escrita da pesquisa, sinto que cresci, cresci muito como profissio- [...]. Dou um exemplo: na hora pedagógica,
numa perspetiva compartilhada com o gru- nal, cresci com elas [educadoras e auxiliares] muitas vezes estavam a tratar de questões
po com que trabalha e explica como enten- porque foi um processo formativo em que mais burocráticas, horários, falta de pes-
de que isto contribui para o seu avanço e o participei desde o início com elas, portanto soal, festas com a comunidade, coisas que
de todos os elementos do grupo: foi algo partilhado e em companhia; não é também são necessárias, mas o resto ficava
“O facto de estar a escrever a tese de mes- pelo facto de elas serem educadoras e au- para trás. Quer dizer, o foco maior não era a
trado assente na pedagogia e no trabalho xiliares e eu não, que não fiz esse processo pedagogia, porque eu própria também dei-
que realizo aqui também me leva mais lon- com elas. E obviamente o facto de eu ter ga- xava passar. A partir do momento em que
ge e, consequentemente, toda a equipa. O nho mais conhecimentos permitiu-me cres- o centro e o foco passaram de facto a ser a
facto de só eu estar a fazer o mestrado é cer como profissional e até como pessoa. pedagogia, todo o resto faz-se, mas não é o
algo que é partilhado constantemente com Agora penso: ‘Ah se já tivesse sabido disso foco principal. A grande diferença foi essa.”
a equipa. Gosto de ir partilhando, e agora há mais tempo!’ Há cinco anos teria feito A apreciação das narrativas da diretora
mesmo, enquanto escrevo a tese, há coisas diferente, mas é bom ter esse sentimento.” permite notar a emergência de uma líder
que vou devolvendo. E elas [educadoras2 e É evidente como o desenvolvimento profis- pedagógica que se envolveu ativamente na
auxiliares] gostam de as ver partilhadas e 3 A pesquisa de mestrado da diretora (Ferreira, 2019) foi construção progressiva de um referencial
sentem-se valorizadas quando refiro o tra- realizada por processos de investigação educacional educativo comum, a pedagogia-em-partici-
balho delas e as coisas que estão a crescer, praxiológica, que incluem o estudo da ação do pação, para fundamentar o trabalho realiza-
investigador no âmbito da função que assume e da
sua função profissional no contexto pesquisado do no quotidiano do centro educativo. Nes-
1 Para conhecer em detalhe a formação em contexto (formadora em contexto, diretora, professora, etc). se processo, é notório como as formações
realizada na instituição, ver Sousa (2016) e Ferreira Realizou-se por meio de um estudo de caso focado na a que teve acesso, centradas na pedagogia
(2019). continuidade e sustentação da formação em contexto
2 Em Portugal, o termo educadoras refere-se a após a saída da formadora externa e na compreensão da infância e numa pedagogia participativa
profissionais que atuam na educação de infância, que da sua atuação na liderança pedagógica, no apoio específica e na sua atuação profissional, fo-
no contexto brasileiro são denominadas professoras de formativo à equipa educativa e no desenvolvimento ram fundamentais. Em conjunto, os dados
educação infantil. profissional e organizacional do centro educativo.

37 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

anunciam que os processos formativos que BIBLIOGRAFIA dagogia-em-participação. In. Oliveira-Formosinho,


Bolivar, A. (2012). Melhorar os processos e os resulta- J. (Org.), Modelos curriculares para a educação de
a diretora viveu apoiaram a constituição de dos educativos: o que nos ensina a investigação. Vila infância: construindo uma práxis de participação (pp.
uma líder pedagógica. Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão. 25-60). Porto: Porto Editora.
Oliveira-Formosinho e Formosinho (2018), Cruz, S. H. (2018). A escuta das crianças nas práticas Oliveira-Formosinho, J., & Formosinho, J. A (2018).
pedagógicas e nas pesquisas. Conferência Plenária. “Formação como pedagogia da relação”. Revista da
sustentados em dados empíricos das pes- In. 1.º Congresso Internacional Integrando Saberes: FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, 27 (51),
quisas que desenvolvem desde o início dos Pedagogia, formação e investigação em educação 19-28.
anos 90, à semelhança de outros estudiosos, pedagogias participativas na educação de infância, Sousa, J. C. M. da S. (2016). Formação em contex-
Escola Superior de Educação de Lisboa. to: um estudo de caso praxiológico (dissertação de
defendem que uma formação orientada por Ferreira, A. R. de A. (2019). O desafio da liderança mestrado). Universidade Católica Portuguesa, Lis-
uma pedagogia da relação, guiada pelo res- pedagógica na continuação e sustentação da for- boa. Recuperado de: https://www.researchgate.
peito mútuo, é um caminho profícuo para al- mação em contexto para o desenvolvimento profis- net/publication/321184829_FORMACAO_EM_CON-
sional: um estudo de caso praxiológico (dissertação TEXTO_UM_ESTUDO_DE_CASO_PRAXIOLOGI-
cançar transformações na qualidade da edu- de mestrado). Universidade Católica Portuguesa. CO_Dissertacao_apresentada_a_Universidade_Ca-
cação das crianças. Este estudo soma-se a Recuperado de: https://repositorio.ucp.pt/hand- tolica_Portuguesa_para_obtencao_do_grau_de_
outros que reiteram a defesa feita pelos fun- le/10400.14/29558 mestre_em_Educacao_de_Infancia-Estudos_Avan-
Fochi, P. S. (2019). A documentação pedagógica cados
dadores da pedagogia-em-participação, que como estratégia para a construção do conhecimento
é essencialmente uma pedagogia da relação. praxiológico: o caso do Observatório da Cultura In-
Assim, uma formação que no quotidiano fantil – OBECI (tese de doutoramento). Universidade
de São Paulo. Recuperado de: https://teses.usp.br/
educativo integra a ação dos profissionais, a teses/disponiveis/48/48134/tde-25072019-131945/
teoria e a ética que levam a práticas colabo- pt-br.php
rativas, é um caminho repleto de possibili- Formosinho, J. (2003). Transformational leadership in
early childhood centres. In. International Conference
dades para promover lideranças pedagógicas Leadership Early Years, Pen Green Centre, Inglaterra.
capazes de apoiar o desenvolvimento profis- Formosinho, J. (2016). “Estudando a práxis educativa:
sional, organizacional e de uma práxis aberta o contributo da investigação praxeológica”, revista
Sensos, 6 (1), 15-39.
ao protagonismo das crianças e da equipa Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Ja-
educativa. neiro: Paz e Terra.
Este é só um dos muitos estudos disponí- Malaguzzi, L. (2016). História, ideias e princípios bá-
sicos: uma entrevista com Loris Malaguzzi. In. Ed-
veis que revelam que a ligação entre o de- wards, C., Gandini, L., & Forman, G. (Orgs.), As cem
senvolvimento das profissionais e o desen- linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia
volvimento das lideranças pedagógicas é um em transformação (pp. 45-85). Porto Alegre: Penso.
Niza, S. (2013). O modelo curricular de educação
caminho difícil de trilhar, mas que sustenta pré-escolar da escola moderna portuguesa. In. Oli-
as organizações educativas no processo veira-Formosinho, J. (org.), Modelos curriculares para
de criar no quotidiano, e com as crianças, a educação de infância: construindo uma práxis de
participação (pp. 142-160). Porto: Porto Editora.
aprendizagens eficazes, respeitosas e demo- Oliveira-Formosinho, J. (2008). O desenvolvimento
cráticas. A garantia dos direitos das crianças profissional das educadoras de infância: Entre os
só pode acontecer no ambiente democrático saberes e os afectos, entre a sala e o mundo. In. Ma-
chado, M. L. de A. (Org.), Encontros e desencontros
característico das pedagogias participativas. em educação infantil (pp. 133-167). São Paulo: Cortez.
Lideranças pedagógicas promovem o de- Oliveira-Formosinho, J. (2016). A formação em con-
senvolvimento profissional e, assim, ajudam texto: a mediação do desenvolvimento profissional
praxiológico. In. Cancian, V. A., Gallina, S. F. da S., &
a construir esse ambiente que apoia e sus- Weschenfelder, N. (Orgs.), Pedagogias das infâncias,
tenta direitos de aprendizagem e desenvol- crianças e docências na educação infantil (pp. 87-111).
vimento das crianças (Cruz, 2018). Brasília: Ministério da Educação.
Oliveira-Formosinho, J., & Formosinho, J. (2001). As-
sociação Criança: Uma comunidade de apoio ao de-
senvolvimento sustentado na educação de infância.
In. Oliveira-Formosinho, J., & Formosinho, J. (orgs.),
Associação Criança: um contexto de formação em
contexto (pp. 27-61). Braga: Livraria do Minho.
Oliveira-Formosinho, J., & Formosinho, J. (2013). A
perspectiva educativa da Associação Criança: a pe-

38 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO
Intervenção Precoce:
o papel do educador de infância no apoio domiciliário
Ana Cristina Lavandeira Simões . Educadora de infância, mestre em Educação Especial e especializada em
intervenção precoce.

A intervenção precoce (IP) tem como princi- acontece em cada momento, como reage a A diversidade familiar é uma realidade cada
pal objetivo dar uma resposta organizada o criança, quem está com a criança, as condi- vez mais atual.
mais precocemente possível às necessidades ções básicas/necessárias estão asseguradas? Há famílias de mães/pais solteiros, mães/
da criança e da família. Para isto acontecer, o educador de infância pais divorciados, mães/pais adotivos, casais
As práticas atuais em IP recomendam uma (inserido numa equipa de IP que deve ser com filhos de ambos, casais do mesmo sexo
intervenção centrada na família e no aumen- transdisciplinar) tem de conhecer individuali- com os seus próprios filhos e adotivos, etc.
to das suas competências e poder em intera- zadamente a realidade familiar para elaborar Não podemos esquecer, também, a família
ção direta nos diferentes contextos naturais com a família a melhor intervenção para a alargada (irmãos, avós, tios…) como estrutu-
da sociedade em que interage. criança e a sua família. Todas as famílias são ra familiar de apoio.
É uma abordagem individualizada e abran- diferentes porque são constituídas por pes- O papel do educador de infância (e dos ou-
gente da família (onde se inclui a criança), soas, todas elas diferentes. tros profissionais da equipa) é fornecer a in-
valorizando as suas competências e capaci- Não há um modelo único de família. Há fa- formação necessária para a tomada de deci-
dades de forma a potencializar ao máximo o mílias. sões fundamentada e consciente da família.
desenvolvimento da criança.
A IP deve ser desenvolvida nos diferentes
contextos naturais da criança (creche, ama,
domicílio), cabendo à família decidir qual o
mais adequado à sua realidade familiar.
Um dos contextos naturais mais enrique-
cedor é o domicílio. É neste contexto que a
criança está inserida continuamente e onde
a família se sente mais confortável (é o seu
domicílio). Neste contexto há maiores opor-
tunidades de aprendizagem natural através
das rotinas diárias familiares.
A intervenção da família no desenvolvimen-
to da criança é contínua e mais pertinente
(dia após dia) que a intervenção esporádica
(semanal ou bissemanal) de qualquer profis-
sional.
O profissional, neste caso o educador de in-
fância, é o intruso na relação entre a criança
e a família e neste contexto específico (casa
da família). O educador de infância tem as
técnicas pedagógicas, mas numa intervenção
centrada na família em contexto domiciliário
tem que saber introduzir essas técnicas nas
rotinas diárias familiares através da família.
As sessões domiciliárias, bem como todo o
trabalho a desenvolver pela família no tempo
entre visitas do educador de infância, de-
vem basear-se nas rotinas diárias familiares
(levantar, casa de banho, vestir, pequeno-al-
moço, brincar, almoço, sesta, lanche, despir,
banho, vestir, jantar, deitar).
Nas diversas e variadas rotinas diárias o que

39 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

A intervenção deve centrar-se no aumento tituição da equipa varia e depende das ne- dades da família. Os objetivos a concretizar
das competências da família e na rede de re- cessidades da criança e das necessidades e devem incidir sobre a criança, mas também
cursos e apoios existentes. prioridades da família. sobre a família. Há famílias que precisam de
A relação de empatia e confiança entre edu- Só há dois elementos permanentes na equi- um apoio inicial global para depois estarem
cador de infância e família deve ser construí- pa: a criança e a família. conscientes do apoio a prestar à criança.
da com base no conhecimento individua- Esta mudança de paradigma, ou seja, a mu- Este documento deve refletir, também, os
lizado e aprofundado da família, nas suas dança do centro de decisões, continua a ser recursos necessários para dar resposta às
múltiplas dimensões (estrutura familiar, in- muitas vezes intimidatória para as famílias e necessidades e dificuldades reais da criança
terações familiares e ciclos de vida familiar). ameaçadora para os profissionais. e da família. O PIIP não pode adaptar as ne-
Esta relação deve iniciar-se desde a primeira Os profissionais têm a função de apresen- cessidades das famílias aos recursos existen-
visita domiciliária, ou seja, a forma como nos tar as opções fundamentadas para decisão tes na sociedade e muito menos adaptar as
apresentamos, a nossa postura, a inexistên- da família. Estas devem ir ao encontro das necessidades que os profissionais conside-
cia de juízos de valor, o respeito pelo fun- respostas necessárias para ultrapassar as ram mais prioritárias para as famílias.
cionamento familiar, ser honesto em relação dificuldades. A família é que tem o poder O PIIP é um documento que reflete a plani-
às capacidades da criança com expectativas de decidir o que quer e como quer atingir o ficação da equipa com base nas preocupa-
realistas, saber ouvir... melhor para o bem-estar físico e psíquico da ções, prioridades e decisões da família (o que
Só com este tipo de relação é possível o criança. É o educador de infância que tem de está a correr bem; a quem recorre quando
envolvimento da família, em que se requer adaptar-se à família através da mudança de necessita de ajuda; quais os assuntos ou
a sua presença e participação ativas e con- atitudes, práticas, crenças e valores. preocupações principais; o que gostaria que
tínuas. Quanto mais jovem é a criança, mais os acontecesse ou mudasse para a sua criança
Uma sessão domiciliária tem, pelo menos, profissionais trabalham com a família que a ou família; que recursos serão úteis).
cinco momentos: rodeia. A família é o primeiro contexto social da
1.º momento: saudação (aos adultos e à O modelo ecológico do desenvolvimento hu- criança e o domicílio o seu primeiro contexto
criança). mano fornece-nos uma visão mais global e natural, sendo fundamental a intervenção
2.º momento: reflexão/avaliação da “se- completa da criança, da família e dos con- centrada nestes contextos o mais precoce-
mana” (como correu, o que fizeram, qual o textos. mente possível.
resultado, observação de registos, caso exis- A avaliação contínua e permanente destes
tam). elementos é fundamental para a intervenção
3.º momento: ação (atividade/tarefa/objeti- individualizada de cada criança e sua família,
vos definidas para aquele dia com a criança em cada momento. BIBLIOGRAFIA
e/ou criança e família). O documento escrito que operacionaliza Dale, N. (1996), Working with families of children
with special needs, Brunner-Routledge.
4.º momento: planificação (indicações para todo o processo de intervenção é o Plano Dunst, C., Trivette, C., Deal, A. (1994), Supporting and
o trabalho a desenvolver com a criança du- Individual da Intervenção Precoce (PIIP). strengthening families, Brooklin Books.
rante a “semana”, se possível com um re- Todo o trabalho de informação, observação Klass, C. (2003), The home visitor’s, Paul H Brookes
Publishing Cº.
gisto para a família indicando quem faz o e avaliação da criança, família e contexto(s) é
quê, quando, quantas vezes, como reagem utilizado para construir o plano de interven-
a criança e a família). ção da equipa. O PIIP é um processo e não
5.º momento: despedida (da criança e dos um documento finalizado quando elaborado,
adultos). ou seja, é um documento em contínua e per-
O paradigma da intervenção mudou. A in- manente construção e reformulação.
tervenção não serve (como em momentos Assumindo que a família é o elemento prin-
anteriores) para os profissionais dizerem às cipal da intervenção, esta deve participar em
famílias o que fazer e como fazer. todas as fases do processo e o seu nível de
Atualmente a equipa nuclear é a família envolvimento em cada fase é definido pela
(onde se insere a criança) e os profissionais é própria família.
que integram esta “equipa familiar”. A cons- O PIIP deve refletir as preocupações e priori-

40 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO
Identificação precoce de crianças com perturbações dos sons da fala
Diana Domingos . Universidade do Algarve, terapeuta da fala
Ana Catarina Baptista e Susana Rodrigues . Universidade do Algarve e Centro de Linguística da Universidade de Lisboa,
terapeutas da fala

Nota introdutória Um dos maiores desafios dos educadores de ra autora, com informação acerca das PSF,
Este artigo pretende dar a conhecer um infância (EI) é a possibilidade de contribuir abordando alguns tópicos relevantes para
projeto de prevenção primária realizado no para que as crianças sejam cada vez mais que os EI sejam capazes de identificar pre-
âmbito da pós-graduação em Perturbações autónomas e que as suas dificuldades de cocemente alguns sinais de alerta de forma
dos Sons da Fala (PSF), da Escola Superior de comunicação e outras possam ser ultrapas- a realizarem atempadamente a sinalização e
Saúde da Universidade do Algarve. sadas, ou pelo menos minimizadas, de modo o encaminhamento para uma avaliação em
Este tipo de prevenção tem como finalida- a que se sintam bem adaptadas à sociedade terapia da fala. Com este site, poderão ainda
de reduzir a incidência de doenças e risco de da qual fazem parte (Germano, 2011). compreender o impacto destas perturbações
novos casos na população, através de uma Os EI reconhecem a importância de ser feito na vida das crianças, bem como ter acesso a
maior informação e educação, para que a o despiste precoce dos problemas ao nível atividades que podem ser desenvolvidas em
população esteja alerta para sinais que pos- da linguagem e da fala dentro das suas sa- sala de aula pelos EI, de modo a potenciar
sam surgir (Almeida, 2005). Na área da tera- las, pois consideram que é aí o espaço pri- as capacidades de linguagem oral das suas
pia da fala, as práticas de prevenção primária vilegiado de desenvolvimento das crianças, crianças.
têm aumentado significativamente. já que é no jardim de infância (JI) que as O site encontra-se disponível em https://
A educação pré-escolar, embora não seja de crianças passam a maior parte do seu dia. psfala.wixsite.com/psfjardiminfancia e pode
frequência obrigatória, constitui a primeira No entanto, na maioria dos casos revelam ser consultado pelos interessados nesta te-
etapa de um longo processo educativo e, dificuldades na identificação específica des- mática.
consequentemente, um marco decisivo no ses problemas (Germano, 2011). A importância do jardim de infância no de-
sucesso escolar e social das crianças (Sim- Posto isto, considerou-se pertinente a di- senvolvimento linguístico da criança
-Sim, 2008). vulgação de um site, realizado pela primei- As crianças que frequentam o JI encontram-
-se numa faixa etária na qual o desenvolvi-
mento linguístico é rápido e determinante.
Nesse sentido, o EI tem um papel funda-
mental na criação das condições favoráveis
para que esse desenvolvimento ocorra. As
estratégias utilizadas por estes profissio-
nais são de extrema importância, pois irão
proporcionar condições e experiências para
a aprendizagem e para um futuro sucesso
escolar ao nível da leitura e da escrita, não
esquecendo os aspetos relacionados com a
autoestima e a inclusão de qualquer criança
(Germano, 2011).
O desenvolvimento de uma criança depende
das oportunidades de aprendizagem que lhe
são oferecidas pelo ambiente que as rodeia.
Com a entrada da criança para o JI, as suas
possibilidades comunicativas são amplamen-
te alargadas. Com efeito, além de alargar o
número de interlocutores, o JI permite ain-
da à criança usufruir de um vasto leque de
experiências e, com um ambiente educativo
bem estruturado, tornar-se-á num contexto
privilegiado para o desenvolvimento de todo
o seu potencial comunicativo e linguístico,
que será fundamental para o seu desempe-

41 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

nho social e académico futuro, promovendo de fala que podem ser caracterizados por às necessidades da criança, tendo em vista a
a vontade de aprender (Sim-Sim, 2008). omissões, substituições, adições e/ou dis- superação das suas dificuldades e o seu de-
A aquisição da linguagem e da fala é reali- torções dos sons da fala, que vão interferir senvolvimento ótimo (Germano, 2011).
zada pela grande maioria das crianças com no discurso do indivíduo (ASHA, 2011). No entanto, nem sempre estes problemas
relativa facilidade. Existem, no entanto, são identificados na altura certa, arrastan-
algumas que experimentam contrarieda- A relevância da identificação e sinaliza- do-se até à entrada para o 1.ºciclo, situação
des nesta trajectória, as quais podem em ção precoce no jardim de infância em que as crianças se confrontam com a
grande medida comprometer o seu desen- Diversos autores sugerem a necessidade de aprendizagem da leitura e da escrita e os
volvimento e aprendizagem e propiciar al- uma identificação atempada das crianças problemas anteriores se agudizam, assumin-
terações ao nível do comportamento (Rice, cujo nível linguístico as coloca em risco de do por vezes contornos difíceis de resolver
2000). virem posteriormente a desenvolver e a ex- (Germano, 2011).
perimentar dificuldades de leitura e de es- Desta forma, o EI é fundamental neste pro-
As perturbações dos sons da fala crita em fases posteriores do seu percurso cesso, por ser o elemento que se encontra
A fala é um modo verbal-oral de comuni- académico (Catts et al., 2001). Sabe-se que mais próximo da criança num período de
cação e realiza-se através da produção e a grande maioria das características par- desenvolvimento tão essencial da sua vida
articulação de sons. No entanto, esta com- tilhadas por estas crianças são evidentes (Castro & Gomes, 2000).
petência não progride normalmente para antes do ingresso no primeiro ciclo (Catts, O educador tem um papel determinante na
um número considerável de crianças, dando 1997). aquisição e desenvolvimento da linguagem
origem a PSF (Bernstein & Tiegerman, 1993; Neste sentido, os EI, em particular os do oral das crianças. Assim, estes profissionais
Lima, 2009; Beitchman & Browlie, 2010). A pré-escolar, devem estar sensíveis e aten- deverão possuir um amplo conhecimento
maioria das crianças comete alguns erros tos a sinais frequentemente associados a linguístico para serem capazes, por um lado,
quando aprende a dizer palavras novas, dificuldades persistentes da linguagem oral de refletir sobre o percurso de desenvolvi-
erros estes que fazem parte do percurso e encaminhá-los assim que possível para um mento das crianças, identificando eventuais
normal do desenvolvimento da fala. O pro- terapeuta da Fala (TF), de modo a que futu- fragilidades e, por outro, terem a competên-
blema é quando esses erros persistem para ras potenciais dificuldades possam ser dete- cia para conceber materiais e/ou promover
além da idade esperada (ASHA, 2003). tadas e trabalhadas atempadamente (Catts atividades que visem a identificação dessas
As PSF constituem um dos diagnósticos et al.,2001). dificuldades. Deverão ainda ser capazes de
mais comuns na casuística dos TF (Oliveira, Dada a prevalência e o impacto negativo fomentar nas crianças o gosto pela “brinca-
Lousada & Jesus, 2015). A prevalência das destas perturbações, é importante que a in- deira com a língua”, no sentido de promover
PSF varia entre 10 e 15% em crianças em tervenção do TF em crianças com PSF seja e desenvolver comportamentos linguísticos
idade pré-escolar (McLeod & Baker, 2014; efetiva, idealmente antes de a criança ingres- adequados (Sim-Sim, Silva & Nunes, 2008).
McLeod & Harrison, 2009; ASHA, 2000) e sar no 1.º ciclo de escolaridade (Nathan et al., Os educadores são profissionais de extre-
comprometem a inteligibilidade do discurso 2004), minimizando o impacto e/ou ajudan- ma importância para o desenvolvimento
das crianças (Bowen, 2009; Broomfield & do a prevenir problemas futuros a nível do da comunicação humana, permanecendo
Dodd, 2004; Joffe & Pring, 2008; Pascoe desenvolvimento das capacidades de apren- sensíveis às variações de desenvolvimento
et al., 2010). dizagem, bem como a nível comportamental existentes dentro da própria normalidade e
As PSF dizem respeito às dificuldades que (Peixoto, 2007). estando portanto aptos, através da sua ex-
algumas crianças apresentam no desen- periência profissional, a identificar quando
volvimento dos sons da fala. Perturbações O papel do educador de infância uma criança é muito diferente das outras
dos sons da fala é uma designação abran- na identificação e sinalização precoce linguisticamente falando e quando essa de-
gente que pode incluir dificuldades diversas O papel do EI na identificação e sinalização sigualdade poderá interferir na sua compe-
ao nível da articulação e/ou organização de problemas ao nível da linguagem e da tência para aprender (Limissuri & Befi-Lo-
fonológica (Bowen, 2011). As crianças que fala é crucial para que as crianças possam pes, 2009). Por serem os profissionais que
apresentam estas dificuldades podem ter ser avaliadas por um TF, a fim de se iniciar contactam mais diretamente com um maior
um desenvolvimento mais tardio dos sons atempadamente, caso necessário, uma inter- número de crianças, podem servir como im-
da fala e/ou apresentar padrões atípicos venção especializada e dirigida que atenda portantes agentes na prevenção e conscienti-

42 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


zação da comunidade em geral para possíveis bem como no trabalho em colaboração com vez que estas têm repercussões não só na
alterações comunicativas e ou linguísticas estes no processo de identificação e reabilita- capacidade de uso da linguagem oral, mas so-
(Araújo, Rocha & Manso 2010). ção de crianças com estas perturbações. bretudo na aprendizagem da leitura e da es-
Williams (2006) afirma, no entanto, que as Para que o EI esteja habilitado a identificar crita (Franco et al., 2003; Lopes et al., 2004).
perceções dos educadores serão diretamente crianças com possíveis dificuldades de fala, Neste sentido, são diversas as estratégias que
influenciadas pelo conhecimento que estes é importante que se criem programas de os educadores podem utilizar com o objetivo
profissionais tenham acerca da linguagem prevenção primários para a divulgação de de promover e desenvolver as competências
oral e das problemáticas a ela associadas. informação a estes profissionais que visem de fala nas suas crianças e deste modo reduzir
Para que fossem capazes de detetar e intervir prevenir/reduzir a ocorrência de perturbações o impacto que as PSF podem ter.
adequadamente sobre os desvios da lingua- da linguagem e da fala, contribuindo para mo- É ainda na fase do JI que as crianças come-
gem, comunicação e fala, seria benéfico que dificar a perceção do EI quanto a esta proble- çam a desenvolver a consciência fonológica
os educadores conhecessem primeiramente o mática. Assim, e caso os educadores tenham que, mais tarde, irá ser fundamental para a
modo como as crianças tipicamente adquirem acesso a informações durante a sua atividade aprendizagem da leitura e da escrita (Sim-Sim,
e desenvolvem a linguagem e a fala ao longo profissional, mais crianças serão precocemen- Silva & Nunes, 2008).
dos primeiros anos de vida. Posteriormente, te sinalizadas, uma vez que vários estudos As atividades de interação comunicativa e de
seria expectável que estes profissionais fos- confirmam que alterações na altura do JI po- desenvolvimento linguístico, em geral, e as
sem capazes de identificar fonemas, grafe- derão implicar dificuldades de aprendizagem atividades de desenvolvimento da consciência
mas, sílabas, morfemas, estruturas frásicas e (Oliveira et al., 2010). fonológica, em particular, beneficiam todas
unidades básicas do discurso. Porém, alguns A intervenção de um TF neste contexto pode as crianças desta faixa etária, mas são funda-
estudos afirmam que o conhecimento destes contribuir para a consciencialização do educa- mentais para as crianças que apresentam difi-
profissionais acerca destes conceitos é bas- dor para o desenvolvimento da linguagem oral culdades ao nível da linguagem e da fala. Além
tante precário (Bos et al.,2001; Moats, 1994; e para que dessa forma crie mais situações de de constituir uma oportunidade para trabalhar
Moats & Foorman, 2003; Spencer, Schuele, uso efetivo da linguagem (Roncato e Lacerda, questões linguísticas em situação natural e lú-
Guillot, & Lee, 2008), o que compromete em 2005). dica, estas atividades permitem ainda ao EI
grande medida a identificação de dificuldades Assim, parece fundamental promover o tra- identificar problemas existentes a estes níveis.
linguísticas e o posterior encaminhamento balho cooperativo nos JI e nas escolas, já que
dos alunos para o apoio especializado provido este é o contexto de aprendizagem mais direto Notas finais
pelo TF. da criança e, como vimos, um dos mais deter- Atendendo ao explicitado anteriormente, con-
O EI desempenha, assim, um papel crucial na minantes para a sua constituição e formação sidera-se fundamental uma boa formação dos
deteção precoce destas dificuldades, uma vez enquanto ser social (Silva & Peixoto, 2008). A EI nos domínios do desenvolvimento típico e
que está numa posição privilegiada para o fa- colaboração entre os educadores e os TF é, atípico da linguagem e da fala, que são por
zer: tem um contacto diário com as crianças e portanto, determinante para a criação de salas excelência os promotores e potenciadores da
é-lhe permitido um olhar conhecedor sobre a de aula facilitadoras e promotoras da comuni- linguagem, da fala e da interação das crian-
criança, mais desapaixonado e mais lúcido que cação (ASHA, 2010). Por outro lado, é neces- ças em desenvolvimento. Do mesmo modo,
o dos pais. Neste sentido, a deteção precoce sário dotar os profissionais da educação de considera-se fundamental que exista uma
permite a tomada de decisões que evitarão o ferramentas que lhes permitam conhecer e de- parceria entre os EI e os TF para que seja pos-
agravamento de uma dificuldade ligeira (Cas- tetar o típico e o atípico da sua língua materna, sível detetar precocemente dificuldades de
tro e Gomes, 2000). dando-lhes assim mais e melhores ferramentas linguagem e fala nas suas crianças, bem como
para a sua prática diária com as crianças. assessorar na promoção e na reabilitação da
A colaboração entre o terapeuta da fala linguagem e da fala através da implementa-
e o educador de infância Potenciação das capacidades de linguagem ção de estratégias de intervenção conjuntas
O TF, enquanto um dos elementos responsá- oral das crianças pelos educadores no contexto natural e diário da criança.
veis pelo processo de reabilitação das crianças de infância Acredita-se que seja igualmente importante
com perturbações da comunicação, da lingua- O papel principal do educador é o de facilitar fornecer ferramentas aos EI para que estes
gem e da fala, tem um papel importante na o desenvolvimento das capacidades de comu- possam atempadamente fazer o despiste e
formação dos EI ao nível destas perturbações, nicação, de linguagem e fala da criança, uma sinalização das suas crianças, bem como uma

43 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: ARTIGO

intervenção adequada, facilitando assim a Roles and responsibilities of speech- language pa- Moats, L. (1994). The Missing Foundation in Teacher
thologists in schools. Disponível em: http://www. Education: Knowledge of the Structure of Spoken
entrada das crianças no 1.º ciclo e a apren- asha.org/slp/schools/prof- consult/guidelines/ and Written Language. Annals of Dyslexia, 44:81-102.
dizagem da linguagem escrita. Para tal, seria American Speech-Language-Hearing Association. Moats, L., & Foorman, A. (2003). Measuring teachers’
(2011). Speech Language Pathology Medical Review content knowledge of language and reading. Annals
fundamental a criação de espaços de forma- Guidelines. American Speech-Language Hearing As- of Dyslexia, 53, n 1, 23-45.
ção para os EI que, ao longo da sua formação sociation Nathan, L. et alii. (2004). The Development of Early
Beitchman, J. e Brownlie, E. (2010). Language Develo- Literacy Skills Among Children with Speech Difficul-
académica e profissional, não adquirem co- pment and its Impact on Children’s Psychosocial and ties: A Test of the “Critical Age Hypothesis”. Journal
nhecimentos suficientes na área da linguagem Emotional Development. Encyclopedia on Early Chil- of Speech, Language, and Hearing Research, 47, pp.
dhood Development: Language Development and 377-391.
e da fala, permitindo-lhes na sua prática diária Literacy, pp. 36-41. Oliveira, R., Zaboroski, A., Oliveira, J., Bougo, G.
reconhecer e avaliar de modo mais concreto o Bernstein, D. e Tiegerman, E. (1993). Language and (2010). Assessoria fonoaudiológica na educação in-
Communication Disorders in Children. fantil. Revista Conexão UEPG. 1(6), 78-83.
desempenho oral das suas crianças e a neces- Macmillan Publishing Company, USA. Oliveira, C., Lousada, M. e Jesus, L. (2015). The clini-
sidade de reencaminhá-las para uma avaliação Bos, C., Mather, N., Dickson, S., Podhajski, B., & cal practice of speech and language therapists with
Chard, D. (2001). Perceptions and Knowledge of pre- children with phonologically based speech sound di-
especializada. service and inservice aducators about early reading sorders. Child Language Teaching and Therapy, 31(2),
Neste sentido, salienta-se a relevância de criar instructions. Annals of Dyslexia, 51, 97-120. pp. 173-194.
Bowen, C. (2009). Children’s Speech Sound Disor- Limissuri, R., & Befi-Lopes, D. (2009). Fonologia e vo-
medidas de sensibilização para os educadores ders. Oxford: Wiley-Blackwell. cabulário na percepção de educadoras sobre comuni-
acerca da importância do desenvolvimento Bowen, C. (2011). Distúrbios dos sons da fala em cação de pré-escolares. Revista Brasileira de Estudos
crianças. Acedido em http://www.speech- langua- Pedagógicos, 90(1):443-448. Pascoe, M., Maphalala,
da linguagem e da fala e as consequências ge-therapy.com/ Z., Ebrahim, A., Hime, D., Mohamed, N., & Skinner,
que as crianças poderão sofrer se não tive- Broomfield, J., & Dodd, B. (2004). The nature of re- M. (2010). Children with speech dificulties: An explo-
ferred subtypes of primary speech disability. ratory survey of clinical practice in the Western Cape.
rem um desenvolvimentonormal destas áreas. Child Language and Therapy, 20 (2), 135-151. South African Journal of Communication Disorders,
De acordo com o CPLOL (2000), o TF deve Castro, S., & Gomes, I. (2000). Dificuldades de apren- 57, 66- 75.
dizagem da língua materna. Universidade Aberta. Peixoto, V. (2007). Perturbações da comunicação -
aumentar o interesse dos profissionais e do Catts, H. (1997). The early identification of langua- A importância da detecção precoce. Porto: Edições
público em geral para a forma como as pertur- ge-based reading disabilities. Language, Speech and Universidade Pessoa.
Hearing Services in Schools, 28:86-89. Rice, M. (2000). Gramatical Symptoms of specific lan-
bações da comunicação podem dar origem a Catts, H., Fey, M., Zhang, X., & Tomblin, J. (2001). guage impairments in children: causes, characteristi-
outros problemas do desenvolvimento social, Estimating the risk of future reading difficulties in cs, intervention and outcome. Eds. Dorothy Bishop e
kindergarten children: A research-based model and Lawrence Leonarde. Hove: Psychology press.
emocional e educacional do indivíduo, tendo its clinical implementation. Language, Speech and Roncato, C., & Lacerda, C. (2005). Possibilidades de
também impacto no bem-estar do próprio e Hearing Services in Schools, 32:38-50. desenvolvimento de linguagem no espaço da edu-
Comité Permanent de Liaison des Orthophonistes- cação infantil. Distúrbios da comunicação, 17(2):215-
da sua família. -Logopèdes de l’UE (2000). Report on prevention of 223
Assim, sendo o TF responsável pelo desenvol- speech and language and language disorders in the Silva, C., & Peixoto, V. (2008). Rastreio e Prevalência
European Union. Paris: CPLOL. das perturbações da comunicação num agrupamen-
vimento de atividades no âmbito da preven- Franco, M., Reis, M., & Gil, T. (2003). Comunicação, to de escolas. Revista da Faculdade de Ciências da
ção, espera-se que este pequeno contributo linguagem e fala. Perturbações específicas de lin- Saúde, 274- 282. Acedido em: http://bdigital.ufp.pt/
guagem em contexto escolar. Fundamentos. Lisboa: bitstream/10284/969/2/272- 282.pdf
sirva o seu propósito e possa contribuir para Ministério da Educação Sim-Sim, I., Silva, A., & Nunes, C. (2008). Linguagem
que os EI consigam identificar ainda mais pre- Germano, C. (2011). Processos de identificação e si- e comunicação no jardim de infância: Textos para
nalização de crianças com problemas na linguagem apoio educadores de infância. Lisboa: Ministério da
cocemente crianças em risco de apresentar oral pelos educadores de infância. Dissertação para Educação e Direção-Geral de Inovação e de Desen-
perturbações dos sons da fala. obtenção do grau de mestre. Lisboa: Escola Superior volvimento Curricular.
de Educação de Lisboa. Spencer, E., Schuele, C., Guillot, K., & Lee, M. (2008).
Joffe, V., & Pring, T. (2008). Children with phonologi- Phonemic awarness skill of speech- language patho-
cal problems: a survey of clinical practice. logists and other educators. Lang Speech Hear Servi-
International Journal of Language & Communication ce Search, 39, n 4, pp. 512- 520.
Disorders, 43, 154164. Williams, D. F. (2006). Stuttering recovery: Personal
BIBLIOGRAFIA Lima, R. (2009). Fonologia infantil: aquisição, avalia- and empirical perspectives. New Jersey: Lawrence
Almeida, L. (2005). Da prevenção primordial à preven- ção e intervenção. Edições Almedina, SA. Erlbaum Associates, Publishers.
ção quaternária. Prevenção em saúde. 23(1). 91-96. Lopes, J., Velasquez, M., Fernandes, P., & Bártolo,
Araújo, A., Rocha, J., & Manso, M. (2010). A perspe- V. (2004). Aprendizagem, ensino e dificuldades da
tiva do Terapeuta da Fala e do Educador de Infância. leitura. Coimbra: Quarteto.
Revista da Faculdade e Ciências da Saúde, 7:342-352. McLeod, S. e Harrison, L. (2009). Epidemiology of
American Speech-Language-Hearing Association. Speech and Language Impairment in a Nationally
(2000). Communication facts. Rockville, MD: Ameri- Representative Sample of 4 to a 5 year old Children.
can Speech-Language-Hearing Association. Journal of Speech, Language, and Hearing Research,
American Speech-Language-Hearing Association. 52, pp. 1213-1229.
(2003). Speech Sound Disorders: Articulation and McLeod, S. e Baker, E. (2014). Speech-Language Pa-
Phonological Processes. Disponível em: http://www. thologists’ practices regarding assessment, analysis,
asha.org/public/speech/disorders/speechsounddi- target selection, intervention, and service delivery for
sorders.htm children with speech sound disorders. Clinical Lin-
American Speech and Hearing Association. (2010). guistics & Phonetics, 28(7-8), pp. 508-531.

44 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: NAS BANCAS: EDIÇÕES APEI
Sorrisos Máscara(dos) de Rosa Montez, ilustrações de Sofia Ambrósio. Edição: APEI, outubro de 2020. ISBN 97898998072-9-7

Na sequência de “À Espera do quê?” e “Ca-


trapum, aqui vai mais um!”, o novo projeto
literário de Rosa Montez (com as magní-
ficas ilustrações de Sofia Ambrósio) situa-
-nos neste tempo de pandemia e nos seus
efeitos nas relações entre crianças.
Uma obra inédita no conceito, em que
cada ilustração remete para elementos li-
gados ao imaginário cultural/literário (Andy
Warhol, Modrian, Capuchinho Vermelho,
Feijoeiro Mágico,...), permitindo, no final,
a personalização do próprio livro por cada
forma lúdica um dos leitores.
a quebrar Para além de permitir a sua abordagem em
Rosa Montez . Sofia Ambrósio

da máscara nos adultos


contexto pré-escolar/escolar ou familiar,
contactam irá certamente constituir uma memória
com futura deste acontecimento histórico que
rianças. afetou toda a Humanidade, um interesse
acrescido que, como referem as autoras,
constitui "uma forma lúdica para quebrar a
barreira da máscara nos adultos que con-
tactam com crianças".
Em formato A4, com 40 páginas a cores e
capa dura, Sorrisos Máscara(dos) introduz
a temática e marca um tempo que será re-
cordado por muitas gerações.
Uma edição exclusiva da APEI!
Sorisos - Máscara(dos)

45 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: NAS BANCAS: INFÂNCIA
A Abelha de Kirsten Hall; Ilustração: Isabelle Arsenault, Edição: Orfeu Negro, março de 2020.ISBN: 9789898868664
A Pequena Semente de Eric Carle. Edição: Kalandraka, março de 2020. ISBN: 9789897491269
O Jaime é uma Sereia de Jessica Love. Edição: Fábula, março de 2020. ISBN: 9789896686857

A abelha é uma das criaturas mais admirá- No outono, algumas sementes de flores são Todos os sábados de manhã, o Jaime vai
veis do mundo... Mas está em perigo. arrastadas para longe por um vento forte. com a avó à natação.
Bzzz, bzzzz, bzzzz... Estás a ouvir? Muito Entre elas, encontra-se uma mais pequena Mas no dia em que vê três mulheres vestidas
perto, a zoar, a zumbir... Uma abelha! Este é que, apesar da sua delicadeza, evita os peri- de sereias no metro tudo muda.
um livro para descobrires o incrível trabalho gos que a ameaçam ao longo de uma viagem O Jaime fica maravilhado. Quando chega a
das abelhas. pelas estações do ano em que cruza o mar, casa, só consegue pensar numa coisa: tor-
Dançando e volteando de flor em flor, as uma montanha alta e gelada ou o deserto. nar-se também ele uma sereia.
abelhas sorvem o néctar e espalham o pólen. Quando o vento por fim cessa e cai no solo, Mas o que irá dizer a avó?
O pólen dá origem às sementes, as semen- a pequena semente consegue também im- Belo e terno, o livro de estreia de Jessica
tes a novas plantas, e estas plantas a novas pedir que os pássaros a devorem ou ser pi- Love é uma maravilhosa celebração da indi-
flores. É um ciclo maravilhoso e perfeito, que sada. E é assim que ela se transforma numa vidualidade e uma vitória do amor incondi-
só pode terminar em mel! flor imensa que todos vêm admirar. cional, Vencedor do Prémio BolognaRagazzi,
Entra nesta viagem e descobre também na categoria Opera Prima.
como podemos defender as abelhas juntos. Depois, chega novamente o outono e é ago- Este livro está recomendado pelo programa
O livro conta ainda com uma atividade para ra a vez de o vento lhe levar as suas próprias LER+ Plano Nacional de Leitura.
fazer na escola. sementes. Mais uma vez, e de uma forma só
Este livro está recomendado pelo programa simples na aparência, Eric Carle incentiva as
LER+ Plano Nacional de Leitura. crianças a aprenderem sobre o mundo que
as rodeia, descrevendo através de cores e
frases poéticas o ciclo natural de uma planta
ao longo de um ano.

46 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


A Migração das Alforrecas, de Rui Cerqueira Coelho; Ilustração: Catarina Gomes. Edição: Livros Horizonte, setembro de 2020.
?
ISBN: 9789722419697
O Protesto de Eduarda Lima. Edição: Orfeu Negro, maio de 2020.ISBN: 9789898868824
? . ? Parar de Iolanda Pereira, com ilustrações de Patrícia Penedo. Edição de autor, Julho de 2020. ISBN: 978-989-33-0620-8
Sem

As alforrecas são animais marinhos. Ou Os pássaros deixaram de cantar. Livro infantil que tem duas intenções. Pri-
eram, até eu ter começado a vê-las em Os gatos já não miavam. meira, ser uma bela história que promova a
sítios bem diferentes do que seria de es- E as vacas recusavam-se a dar leite. fantasia e a exploração por parte da crian-
perar. Talvez fossem migratórias, mas isso Os animais pareciam ter feito um pacto. ça, e como segunda intenção, despertar o
não explicava tudo. Se calhar, as alforrecas Álbum de estreia de Eduarda Lima, O Pro- adulto para o mundo mágico da infância,
eram animais marinhos até precisarem de testo é um grito silencioso. Dos minúscu- através do convite a uma presença plena.
ser outra coisa, e coisa é uma palavra que los insetos aos animais de estimação lá de Como adultos, muitas são as vezes que nos
dá para quase tudo. casa, da floresta virgem ao rio da nossa ci- deparamos com a falta de recursos. Esta
dade, o silêncio ecoa por todo o lado. história convida-nos a olhar para a criança
Conseguem ouvir? como um ser capaz, competente e promo-
Esta é uma história sobre o impacto da tor de enormes ensinamentos.
ação humana no ambiente e um apelo para Fica a sugestão: sentem-se no chão com
nos unirmos hoje em nome da biodiversida- uma atitude de igual valor e observem a
de e de um planeta mais sustentável. transformação que irá ocorrer dentro de
Este livro está recomendado pelo programa cada um de vós. Mágicas leituras!
LER+ Plano Nacional de Leitura.

47 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


: NAS BANCAS: EDUCAÇÃO
A Criança Montessori - De 1 a 3 anos. Um guia para a educação de seres humanos curiosos e responsáveis de Simone Davies; Tradu-
ção: Cláudia Gomes Oliveira. Edição: Editorial Presença, julho de 2020. ISBN: 9789722365345
Libertem as Crianças. A urgência de brincar e ser ativo de Carlos Alberto Ferreira Neto. Edição: Contraponto Editores, novembro de 2020.
ISBN: 9789896662394
O Corpo é que Paga. A Saúde Física e Mental dos Nossos Filhos de Pedro Strecht. Edição:Contraponto Editores, outubro de 2020
ISBN:9789896662301

Inspirada pelos anos em que observou crian-


ças desta faixa etária, a médica e pedagoga
Maria Montessori desenvolveu um método
holístico para ajudá-las a aprender a agir de Numa época de obsessão com a imagem, "Estamos a criar crianças totós, de uma
acordo com as leis da Natureza e não como como podemos ajudar os nossos filhos a imaturidade inacreditável."
os seus professores ou os seus pais exaustos fazerem as pazes com o seu corpo quando Em 2015, esta afirmação do professor Car-
entendem que deve ser. Agora, Simone Da- este não corresponde aos cânones esta- los Neto tornou-se viral e fez o País acor-
vies, uma professora Montessori certificada, belecidos pela ditadura das redes sociais? dar para a situação dramática das crianças
adapta esse método a um programa de pa- Vivemos numa era em que a imagem é de hoje. Em Portugal, escola e modelo
rentalidade. tudo e a padronização da beleza física as- de aprendizagem estão ultrapassados há
Este livro apresenta cinco princípios para esti- sume um peso cada vez mais excessivo. muito, mas é lá que as crianças passam a
mular a curiosidade natural no seu filho, des- Mas o que acontece quando as crianças e maior parte do dia, fechadas dentro das
de "Confiar na criança" a "Promover a sensa- adolescentes veem esse mesmo corpo salas de aula. Os períodos de recreio são
ção de deslumbramento". Contém dicas para transformar-se com o crescimento e o cada vez mais curtos e os espaços de brin-
preparar espaços Montessori, incluindo infor- convertem numa fonte de angústia? Como cadeira padronizados, aborrecidos e pouco
mações sobre mobiliário de tamanho adequa- explicar o aumento de situações de de- desafiantes. O trajeto casa-escola-casa,
do para manter todos os elementos de uma pressão e ansiedade em idades cada vez que antes era feito a pé juntamente com
atividade num único lugar e tirar partido das mais precoces, ao mesmo tempo que os os colegas, passou a ser feito de carro. Os
virtudes do "menos é mais". Inclui ainda sec- episódios de automutilação em crianças e nossos filhos quase nem têm tempo para
ções sobre "Estimular a cooperação e estabe- jovens se tornam mais frequentes? brincar, apenas aqueles minutos que se
lecer limites", e sobre formas de incorporar, Neste novo livro, o pedopsiquiatra Pedro conseguem encaixar na agenda, por entre
passo a passo, este estilo de vida nas rotinas Strecht reflete sobre a relação conflituo- as inúmeras atividades extracurriculares.
diárias como a alimentação, o sono, lavar os sa entre o corpo e a mente e o papel da Em Libertem as Crianças — A urgência
dentes, treino para uso da sanita, lidar com construção da imagem corporal como in- de brincar e ser ativo, o professor Carlos
irmãos e deixar a chupeta. É, em suma, uma tegrante e modeladora de uma verdadeira Neto apresenta-nos as estratégias para
obra que nos apresenta todos os maravilho- identidade emocional. Ao mesmo tempo, invertermos esta situação potencialmente
sos ensinamentos e práticas Montessori. aborda também a dor enquanto expressão catastrófica e devolvermos a magia da in-
Com um design apelativo e ilustrações e foto- do mal-estar físico, quase sempre ligada a fância aos nossos filhos. Só assim podere-
grafias a cores, este livro capta os sentimen- um fundo emocional. mos ter adultos felizes e saudáveis.
tos e transmite os valores de uma autêntica
sala de aula Montessori. . .

48 Cadernos de Educação de Infância n.º 121 Set/Dez 2020


Edições APEI
Próximos lançamentos

www.apei.pt

Você também pode gostar