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ANOS
EDIÇÃO ESPECIAL
Publicação quadrimestral Equipa editorial: Ana Maria Azevedo, Joana Freitas-Luís,
n.º 112 Luís Ribeiro, Maria de Fátima Godinho, Maria Luísa Tavares,
Tiragem: 3000 exemplares Maria Manuela Rosa, Maria Margarida Costa, Susana Alberto.
Edição, Propriedade e Redação: Associação de Colaboradores: Helena Faria, Rosário Leote, Sofia Esteves.
Profissionais de Educação de Infância Revisão: António Simões do Paço Design gráfico: Metropolis Design
Bairro da Liberdade, Lote 9, Loja 14, Piso 0. www.metropolis.pt
1070-023 LISBOA Impressão: Sersilito – Empresa Gráfica, Lda Preço por número: 10¤
Tel. 21 382 76 19/20 Fax. 21 382 76 21 Assinaturas: 1 ano: 17,50¤ (iva incluído), estrangeiro (1 ano) 19¤
E-mail. apei@apei.pt N.º de registo: Direção-Geral da Comunicação Social 112028
Diretor: Luís Ribeiro Depósito legal: 12929/86 ISSN: 2182-8369
(Presidente da APEI) Os artigos assinados não exprimem necessariamente o ponto de vista da Direção.
A APEI é apoiada pelo Ministério de Educação no âmbito do protocolo de afetação de recursos humanos
ENCONTROS 2017/2018
nosnalinha
18
9:30 Sessão de abertura
9:45 Desafiando visões e práticas
pedagógicas dominantes sobre
e com os bebés
Catarina Tomás, Escola Superior de
Educação de Lisboa e CICS.NOVA.UMinho
10:30 Debate
2017
Infância - Reconheça o que traz para
a interação
Ana Teresa Brito, Fundação Brazelton
Gomes-Pedro
11:40 Debate
11:55 Na creche experimentar para todos
aprendermos
Fátima Aresta, Centro de Atividade Infantil,
MADEIRA
Évora
12:25 Debate
PREÇOS DE INSCRIÇÃO
ASSOCIADO 15€
NOVOS ASSOCIADOS
OU ASSOCIADOS QUE
CONVIDEM NOVOS
10€
ASSOCIADOS
XV
PROFESSORES E
GRATUITO
Apoio:
nosnalinha
24
8:30 Abertura do Secretariado
9:30 Sessão de abertura
9:45 ?
Elly Singer, Universidade de Amesterdão
10:30 Debate
10:45 Coffee-break
2018
Sabla D’Oliveira
11:40 Debate
11:55 Prática - MEM na creche: Primeiras
experiências numa comunidade de
aprendizagem
Liliana Videira e Sónia Felix - Centro Social
de Azurva
LISBOA
12:25 Debate
Auditório da
14:15 ?
Ana Coelho - Escola Superior de Educação
de Coimbra
Comunicação Social
?
15:45 Debate
16:00 ?
Gabriela Bento (Universidade de Aveiro)
16:20 Debate
16:35 Sessão de Encerramento
PREÇOS DE INSCRIÇÃO
ASSOCIADO 15€
ria
NOvOS ASSOCIADOS
Ou ASSOCIADOS que
CONvIDem NOvOS
10€
ASSOCIADOS
Inscrições em www.apei.pt
1987-1996
1997-2006
2007-2017
É com imenso prazer (e muito orgulho!) que Portugal. Muitos outros investigadores e dância, é importante afirmar duma forma
escrevo este editorial para o número espe- práticas educativas de qualidade ficaram de assertiva que a qualidade na educação está
cial que comemora os 30 anos de edições fora, não porque se considerasse não serem intrinsecamente ligada à qualidade dos seus
ininterruptas dos Cadernos de Educação de dignos ou representativos do quanto con- profissionais e só profissionais altamente
Infância (CEI), um projeto único em Portu- tribuíram e contribuem para uma educação qualificados, como é o caso dos educadores
gal, uma visão arrojada que um conjunto de de infância de qualidade, mas apenas por- de infância, garantem uma educação de in-
educadoras, no já longínquo ano de 1987, que era manifestamente impossível acolher fância de qualidade.
decidiu pôr em prática, um projeto de exce- tantos contributos. Fica esta referência, o Em Portugal, o facto de os 0-3 anos terem
lência que o tempo só valorizou. Como diz profundo reconhecimento pelo que fizeram estado ausentes do sistema educativo per-
Conceição Moita no seu artigo, é de júbilo e a promessa de que os CEI, mais do que mitiu a proliferação de respostas muito di-
que falamos! estarem disponíveis, procurarão garantir que versificadas, muitas delas protagonizadas
Júbilo pelo facto de ser uma das revistas, tal- o brilhantismo da sua investigação e da sua por pessoas pouco qualificadas profissional-
vez a mais antiga sobre educação ainda em prática será traduzido em publicações. mente, como é o caso das amas e de outros
publicação; júbilo por ter conseguido man- Os últimos anos foram férteis em publica- cuidadores. E se, por um lado, é importante
ter, ao longo da sua existência, um elevado ções internacionais que vieram evidenciar aumentar as qualificações destes cuidado-
nível qualitativo, uma referência que só pode a importância da educação nos primeiros res, numa perspetiva de desenvolvimento
orgulhar quem nela se envolveu; e júbilo anos. As novas Orientações Curriculares para profissional e, por consequência, promover a
porque, passadas três décadas, os CEI ainda a Educação Pré-Escolar relançaram a discus- qualidade das respostas educativas, é tam-
se afirmam pela sua pluralidade, pela inova- são sobre a qualidade na educação pré-es- bém indispensável compreender que uma
ção, pela capacidade de não ficarem presos colar e colocaram na ordem do dia a impor- resposta de alta qualidade só pode ser pres-
ao pensamento dominante e irem acompa- tância da unidade da educação de infância, tada por educadores de infância, os únicos
nhando os diferentes olhares sobre a edu- acompanhando a realidade internacional e que têm qualificação profissional para traba-
cação de infância, que a todos enriquecem as recomendações já formuladas pela OCDE, lhar nesta faixa etária. Onde tudo se decide
e desenvolvem profissionalmente e que o pela União Europeia e pelo Conselho Nacio- é no trabalho direto com crianças e não na
artigo de Teresa Vasconcelos tão bem ilustra. nal de Educação. supervisão, e são as altas qualificações de
Para este número dos CEI foi convidado A importância da inclusão dos 0-3 anos no quem trabalha diretamente com as crianças
um conjunto alargado de investigadores e sistema educativo afigura-se uma medida que garantem uma educação de grande qua-
de práticos que pudessem trazer um olhar imprescindível na promoção da igualdade de lidade nos primeiros anos.
mais holístico sobre a educação de infância, oportunidades e na afirmação do princípio Em matéria de educação de infância, o traço
e a qualidade dos vinte artigos aqui publi- de que todas as crianças têm direito a uma qualitativamente mais distintivo de Portugal,
cados ilustra, de uma forma muito clara, educação de qualidade desde o momento que nos coloca na vanguarda internacional, é
a excelência da educação de infância em em que nascem. No entanto, passe a redun- o de todos os educadores de infância dete-
rem o grau de licenciado como formação ini- como uma verdadeira associação profissional pré-escolar, é partindo da discussão e do
cial (atualmente ao nível de mestrado), pelo de âmbito nacional e nestes últimos anos, confronto de ideias que a pedagogia (e o
que, ao pensarmos no alargamento da oferta conforme dei conta em editoriais anteriores, mundo) evolui. O conhecimento é evolutivo
nos três primeiros anos, em nenhuma circuns- conseguiu voltar a agregar um conjunto mui- e a inovação, por definição, surge sempre
tância ela deverá ser efetuada com recurso a to significativo de novos associados (desde por ruturas com os padrões anteriores. O
profissionais pouco qualificados, independen- setembro de 2016 até final de 2017 são quase que nos parece atualmente como o “estado
temente de essas ofertas serem ou não de mil), o que é muito sintomático do reconhe- da arte”, daqui a uns anos será olhado como
caráter institucional. cimento dos profissionais de educação de datado.
Se recordarmos a história, verificamos que, infância por esta associação. É nessa afirmação de pluralidade e inovação
nos anos 80 e 90 do século passado, quan- A estratégia que foi seguida em 2017 irá que discutir as aprendizagens e, por conse-
do se planearam respostas alternativas para manter-se em 2018, com um conjunto alar- quência, o desenvolvimento das crianças de
crianças dos 3 aos 6 anos, em localidades gado de iniciativas que irão abranger todo o 5 anos só pode ser algo importante e é por
onde não era possível criar jardins de infân- território nacional, com 5 encontros regio- essa razão que a apresentação pública (iné-
cia, através da educação pré-escolar itine- nais e, em total paridade, 5 Encontros Ser dita em Portugal) do mais recente estudo da
rante ou dos projetos de animação infantil e Bebé (reconhecimento da importância que OCDE “International Early Learning and Child
comunitária, não se encontrou a solução na a APEI dá à pedagogia nos primeiros anos), Well-being Study” irá ocorrer com uma con-
qualificação de pais ou auxiliares de ação edu- a preços verdadeiramente low-cost, criando ferência de Rowena Phair, sugestivamente
cativa, mas sim em modelos organizacionais e condições para que nenhum educador que intitulada “Early Learning Matters”, que abri-
pedagógicos protagonizados por educadores queira participar o deixe de fazer por razões rá o XV Encontro Nacional da APEI, a realizar
de infância, e esse é o caminho que deverá económicas. em Setúbal, nos dias 6 e 7 de julho, no Fó-
ser seguido no futuro. Recordemos, também, Pela primeira vez, o muito ambicioso plano rum Municipal Luísa Todi, com um programa
um passado que nos envergonha no primeiro de formação (um destacável desta edição recheado de grandes conferencistas (e de
ciclo do ensino básico, em que, durante déca- especial dos CEI) levará ações a todos os sugestivas conferências).
das a expansão da oferta foi garantida por re- distritos de Portugal, incluindo as regiões Por último, é de referir que, durante o mês
gentes escolares, sem qualquer qualificação. autónomas. Serão cerca de 200 ações em 18 de março, será publicado o primeiro número
As crianças nos primeiros anos de vida não distritos, uma mostra da vitalidade da asso- do novo projeto editorial internacional em
merecem “regentes escolares” e o caminho ciação e o reconhecimento de que todos os que a APEI está envolvida – Infância na Eu-
que terá de encontrar-se é o da excelência e educadores são importantes para a APEI. ropa Hoje – reunindo um conjunto alargado
não o da mediocridade ou da suficiência. 2018 será também o ano do XV Encontro Na- de artigos dos países envolvidos no projeto,
Foi neste sentido que a APEI, enquanto asso- cional, agora com uma periodicidade anual, que será remetido em conjunto com a edição
ciação profissional que defende que a quali- momento que se pretende relevante na vida de encerramento do anterior projeto Infância
dade do serviço educativo na infância deverá dos profissionais de educação de infância. na Europa, um número especial que compi-
ser garantido por educadores de infância, em Nestes encontros nacionais, tem-se procu- la os dez princípios propostos no manifesto
2016 lançou uma petição para inclusão dos rado trazer para a discussão e reflexão os “Para construir uma perspetiva de acolhi-
0-3 anos no sistema educativo, petição essa resultados da investigação e os projetos mento à infância”.
que já ultrapassou o número de assinaturas mais relevantes desenvolvidos nacional e Desejo a todos os leitores dos CEI, aos as-
exigido para que seja discutida na Assembleia internacionalmente, que constituam pontos sociados da APEI e a todos os profissionais
da República. É importante compreender que de partida para outros olhares sobre a edu- de educação de infância um excelente ano
esta é uma matéria sensível, que não será cação de infância, plurais, que rompam com de 2018.
possível a médio prazo reiniciar, pelo que o pensamento dominante que, tantas vezes,
qualquer imprudência ou voluntarismo pode é controlado por correntes ideológicas que,
deitar tudo a perder. A seu tempo, daremos em vez de “abrir janelas”, enclausuram.
conta dos trâmites que se irão seguir. Independentemente do que valorizamos na
A APEI, ao longo da sua já longa história (não educação de infância, das nossas convicções
falta já muito para comemorarmos 40 anos pessoais/profissionais e do nosso posiciona-
de existência!) tem procurado afirmar-se mento sobre as aprendizagens na educação
Em júbilo
Conceição Moita . Educadora de infância, professora (aposentada) da Escola Superior de Educação de Lisboa
Agora que os Cadernos de Educação de In- Continuo a ler a revista assim que me che- fez grupo e quis lutar corajosamente para
fância fazem trinta anos, o meu sentimen- ga às mãos e julgo ser possível afirmar que constituir um corpo de pessoas formadas
to é de alegria e gratidão. E espanto. A ge- estes trinta anos da sua edição ilustram a para responder aos desafios de uma profis-
nerosidade com que múltiplas equipas têm história recente da educação pré-escolar no são exigente e que requer uma permanente
elaborado esta revista ao longo dos anos, nosso país, tecida pelas diversas políticas avaliação das suas práticas. Reconheço a
trabalhando de forma gratuita, emociona- públicas, pelos contributos da investigação APEI nesta dinâmica.
-me. E isto porque tendo sido uma ideia científica, pelo empenho de académicos E penso que os CEI são um polo desta von-
que despontou simultaneamente de modo dedicados, pelas práticas relevantes e um tade e que reflete e dá visibilidade a todas
tão leve e indeclinável, como um projeto pensamento reflexivo de muitos educado- as formas que vão dando corpo a este
(qualquer coisa que se atira para a frente), res de infância. projeto: planos de formação, sábados te-
foi ganhando raízes fortes na história da Penso que seria muito interessante que máticos, Encontros Nacionais e Regionais,
nossa Associação e afinal floresceu, graças alguém se aventurasse a “abrir” os Cader- Encontros Ser Bebé, grupos de autofor-
a uma multiplicidade de mãos cuidadoras. nos de Educação de Infância para “ler” de mação, relações internacionais, parcerias,
Júbilo é a palavra. modo sistemático aquilo que nós, seus lei- publicações, presença ativa nos fóruns de
tores habituais, ainda decisão e debate. Assim, vejo os Cadernos
não descortinamos, de Educação de Infância integrados numa
para encontrar um fio dinâmica mais vasta. É esse movimento
histórico, para tentar associativo que eu quero também saudar,
uma clarificação (a cla- congratulando-me com o gosto e alegria
rificação possível) do que vislumbro sempre naqueles que são
experienciado, dando parte desta tarefa e têm feito um caminho
nome ao que nos foi persistente de valorização da nossa classe
acontecendo durante profissional.
um tempo que ape- Mas em tempos de festejar o que já foi
sar de tudo ainda é feito, se continuarmos a olhar no mesmo
curto. horizonte, fica-nos na cabeça o muito que
Uma coisa é clara: se falta acontecer. Enquanto a qualidade ge-
nos tempos que cor- neralizada das práticas em educação de in-
rem se levantam no- fância não for um dado evidenciado pelos
vas problemáticas, estudos em que confiamos, não podemos
se usamos um novo baixar os braços. Enquanto a educação dos
léxico, se a educa- 0 aos 3 anos não for reconhecida em todas
ção de infância se as suas vertentes, não aliviaremos a mobi-
afirma como um lização. Qualquer dia… qualquer dia, os CEI
campo onde o pro- vão trazer-nos essas novas.
fissionalismo se Por enquanto, para além do júbilo, também
cruza com a pro- tenho saudades do futuro.
cura da qualidade,
se existe um reco-
nhecimento social
da importância
das aprendiza-
gens das crian-
ças pequenas é
porque houve
gente que se
fora implementado em Portugal por Cristina que se Procura – percursos curriculares na Finalmente, e a pedido da direção da APEI
Figueira – adequado também à metáfora da Educação de Infância (notícia no nº 98 e críti- para um número dedicado às novas Orien-
viagem. Nesta metáfora enquadrava-se ainda ca no nº 107), que se me ofereceu como uma tações Curriculares de 1996, escrevi um ar-
a conhecida pedagogia do Movimento da Es- oportunidade para refletir sobre a evolução tigo sobre “O Currículo no Cruzamento de
cola Moderna ou a pedagogia terapêutica da das orientações pedagógicas apresentadas Fronteiras (nº 108-109). Desenvolvi o con-
Casa da Praia, sob inspiração do mestre João pelo Ministério da Educação desde os anos ceito de fronteira introduzido na educação
dos Santos. 70. Elaborei com imenso gosto esta publi- pré-escolar na minha lição de agregação à
No nº 17-18, publicado no ano seguinte, “Pla- cação que se transformou num significativo Universidade de Lisboa2. Recontava a histó-
near: Visões de Futuro”, apresentava uma estímulo intelectual. ria e evolução do currículo, a influência dos
alternativa à planificação de carácter linear, Muito mais tarde publiquei um artigo sobre tempos democráticos e procurava deter-me
ainda feita na base de uma “pedagogia por o papel do educador/a como intelectual do no presente, nas suas contradições e com-
objetivos”. Apresentando uma alternativa à currículo. Intitulava-se “Das Orientações Cur- plexidade. Finalmente, num olhar prospetivo,
unidirecionalidade e baseada numa perspeti- riculares à Prática Pessoal: o Educador como desenvolvia o papel do conceito de fronteira
va sistémica, afirmava uma dinâmica dialética, gestor do currículo” (nº 55). As Orientações num tempo em que se sublinha a necessida-
com caráter circular e complexo, realimen- Curriculares para a Educação Pré-Escolar de de um currículo “aberto ao mundo”, que
tando o próprio sistema de planificação. A (OCEPE) haviam sido publicadas (1997) e tor- integre os movimentos sociais mais recentes
abordagem era problematizada, sendo que a nava-se necessário um alerta que incidisse na sociedade portuguesa – migrações, refu-
avaliação não era apenas feita no final, mas sobre a necessidade de apropriação de um giados, etc. Propunha, então, uma pedago-
durante as diferentes fases do percurso, de documento orientador no sentido da prática gia da desigualdade, conceito introduzido
um modo cumulativo, permitindo reacertos de cada educador/a que, necessariamente por Nóvoa em 20143.
no processo de modo a potenciar ao máximo baseada nas OCEPE, era produto de uma for- No entanto, relacionado com o conceito de
o percurso pedagógico. ma única de estar em pedagogia, específica a fronteira, introduziria hoje o conceito de
Ao analisar hoje as metáforas de Kleibart, e cada educador/a. Apelava-se aos níveis de de- hospitalidade4 tão querido à antropologia
baseada nesse texto sobre planificação, apre- cisão curricular (Roldão): central, institucional, cultural e simbólica e que define o movimen-
sentaria uma nova metáfora, a espiral, ter- grupal e individual, com base nos princípios to expectável quando acolhemos aqueles
minologia que foi introduzida por Bruner na da sequencialidade e “articularidade” consig- que vêm de fora, mas também aqueles que
pedagogia. Segundo Bruner, “o aprendiz deve nados na Lei de Bases do Sistema Educativo. são diferentes e com quem convivemos no
ter a oportunidade de ver o mesmo tópico Refletia-se na diversidade de papéis desem- dia-a-dia. Hospitalidade é diferente de acei-
mais do que uma vez, com diferentes níveis penhados pelo/a educador à luz da inspiração tação, ou mesmo de acolhimento. É receber
de profundidade e com diferentes formas de que continua a ser para mim a “prática educa- o outro como igual e, neste patamar iguali-
representação”. Aqui a complexidade é ainda tiva de Ana”1. Estes papéis diversificados eram tário, aprender com o outro.
maior do que na estrada (viagem), já que a apresentados e ilustrados com exemplos da
profundidade e as diferentes formas de re- prática educativa de Ana: um ambiente cuida- 3. Análise crítica de materiais pedagógicos
presentação não se compadecem com uma dosamente preparado; intencionalidade das Em estreita ligação com o currículo e depen-
“linearidade”, sendo que o resultado e o pon- atividades do quotidiano; construir um puzzle dente de uma das funções do educador/a
to de chegada são imprevisíveis e os níveis de em mudança; alimentar a vida do grupo – a que é a de selecionar os materiais pedagó-
complexidade são diferentes de acordo com Mesa Grande; registar como forma de alimen- gicos para a sua sala de jardim de infância
os conteúdos e as idades das crianças. Se tar a memória do grupo. Concluía com a uma ou de creche de uma forma intencional e
fosse hoje e tendo adquirido uma profunda reflexão sobre Ana enquanto gestora do currí- eivada de sentido crítico, divulguei um novo
experiência de realização e avaliação de proje- culo. Quando o releio ainda hoje me identifico material que havia conhecido nos Estados
tos em jardins de infância, colocaria esta mo- com este artigo e desejaria que um número Unidos nos anos 80. Tratava-se dos blocos-
dalidade pedagógica na metáfora da espiral, cada vez maior de educadores se identificasse -unidade (nº 9), feitos de um material único.
desde que o projeto tivesse um caráter mar- com os papéis que extraí da análise da prática Tratava-se de grandes blocos de madeira
cadamente crítico-sócio-construtivista. de Ana. 2 A Educação de Infância no Cruzamento de Fron-
Foi nessa linha que, muito mais tarde, a APEI teiras. Texto Editores, 2009.
me convidou a elaborar uma brochura, A Casa 1 Ao Redor da Mesa Grande: prática educativa de 3 Vasconcelos, Última Lição, 2014.
Ana. Porto Editora, 1997. 4 Encontro Nacional da APEI no Porto, julho de 2017.
dores. Considero ainda que toda a sala de McMillan preocupava-se com a educação do Centro Infantil Helen Keller destinado a
jardim de infância deve estar organizada em das mães, introduzindo clubes de tricô onde crianças cegas e amblíopes. Apresentámos
áreas de trabalho ou oficinas e não “canti- se bebia uma chávena de chá e se conver- ainda, no nº 35, a grande pedagoga Maria
nhos” estereotipados e limitativos. O termo sava sobre questões de educação. Ainda Montessori, numa reflexão sobre a sua vida
oficina implica trabalho, exploração, concen- hoje existem as nursery schools, cujo nome e contributo para a pedagogia, nomeada-
tração e criatividade. A área da biblioteca é originário da nursery, a secção da casa das mente o método Montessori e os materiais
deve também ser rigorosamente escrutinada famílias abastadas destinada às crianças. Montessori ainda hoje utilizados em esco-
de modo a conter livros de grande qualidade Deste modo McMillan democratizou a nur- las de elite internacionais. Muito mais tarde
estética e literária sem apresentarem este- sery. Já com o apoio da pesquisa efetuada vim a encontrar na Tanzânia uma escolinha
reótipos ou atropelos culturais. O tempo das pelas alunas, surgiu um artigo sobre Irene Montessori destinada às crianças da tribo
“Anitas” pertence definitivamente ao passa- Lisboa enquanto pedagoga (nº 19). Irene Masai, com materiais feitos pela própria
do e não entendo como ainda se reeditam foi aluna daquela mesma escola onde elas educadora.
esses livros. Se hoje reescrevesse este mes- se estavam a formar e tal facto ajudou a Ousei colocar um grupo de alunas a estudar
mo artigo valorizaria de modo mais intencio- criar laços e empatia. A constatação de que Ana Isabel Pindella (nº 70), uma pedagoga
nal os aspetos multiculturais dos materiais: era uma aluna inteligente, cumpridora mas ainda viva que foi minha “mestra” de pe-
bonecas de diferentes raças, livros em que contestatária, mais as inspirou. Irene Lisboa dagogia na escola de formação onde tirei o
apareçam diferentes culturas e contextos de foi a criadora das primeiras escolas infan- meu curso. Chamámos-lhe “uma pedagoga
vida, jogos em que as profissões não apare- tis oficiais, introduzindo materiais e peda- à escuta do seu tempo”. As alunas deslo-
çam estereotipadas. gogias muito próprias, inseridas na cultura caram-se ao Norte, onde ela reside numa
portuguesa e potenciando as tradições lin- quinta (onde chegou a criar uma quinta pe-
4. Pedagogos como modelos inspiradores guísticas. Maria Amália Borges de Medeiros dagógica). Sei que para as minhas alunas foi
Desde que iniciei atividades de formação de (nº 32), fundadora do Movimento da Escola uma verdadeira inspiração entrevistar uma
educadores que me pareceu fundamental Ativa em Portugal, introduziu pela primeira mulher que formou gerações de educado-
que, nos primeiros anos de curso, os/as vez as técnicas Freinet entre nós na esco- ras e foi simultaneamente mãe de seis fi-
alunos fizessem um estudo aprofundado de la infantil criada no sótão de sua casa. Foi lhos. Contactaram um texto escrito por Ana
diferentes pedagogos, uns mais conhecidos ainda cofundadora (com João dos Santos) Isabel Pindella e que intitulou “Reflexões
outros menos, todos eles podendo apre-
sentar-se como modelos com que os jovens
se identificassem. Do estudo de alguns des-
ses pedagogos resultou um conjunto de ar-
tigos que publiquei nos CEI conjuntamente
com as respetivas autoras, proporcionando
aos alunos/as uma gratificante experiência
de escrever para divulgar para outros. Co-
mecei por apresentar individualmente uma
pedagoga inglesa, pouco conhecida entre
nós, Margaret McMillan (nº 29), criadora
do modelo das nursery schools inglesas,
destinadas às crianças mais desfavorecidas,
garantindo-lhes ar fresco e alimentação de
modo a colmatar o terrível flagelo que era
a tuberculose infantil nos inícios do século
XIX. McMillan era, simultaneamente, mi-
litante do Partido Trabalhista inglês e foi
essa militância que a interpelou nas suas
opções sociais e pedagógicas. A par disso,
e os seus escritos são de uma acutilância das educadoras que a conheceram. inglesa. Não há qualquer referência ao con-
e de um rigor importantes. Mas o que nos 5. Desenvolvimentos, transições, terapias texto cultural de origem e à especificidade
interpela é a forma como ela escreve e fala e cidadanias daquela criança. Pelo menos salvaguardo a
dos seus alunos, sobretudo daqueles com Opei por dar este título a uma miscelânea importância do jogo e das interações na vida
maiores dificuldades de aprendizagem. Uma de textos assaz diferentes mas que incidiam daquela menina. Atualmente os sociólogos
verdadeira contadora de histórias, leva-nos sobre aspetos relevantes da educação de in- da infância questionariam os meus critérios.
a viajar pelos contextos de vida das crianças fância. No nº 11 dos CEI, recém-chegada dos E os contextos? E as questões de género?
que descreve, fala delas com uma imensa Estados Unidos, apresentei um “Retrato sob E as infâncias? O trabalho que realizei foi
ternura que não é lamechas mas integrando o ponto de vista do desenvolvimento de uma demasiadamente linear e projetivo e, apesar
a forma como as vê enquanto cidadãs de criança de 4 anos de idade”. Não me revejo das minhas críticas à formulação “estádios
corpo inteiro. Nos anos mais recentes intro- hoje nesse artigo. Querendo ir para além das de desenvolvimento” (nomeadamente os ge-
duzi os livros de Manuela Castro Neves nas teorias do desenvolvimento vigentes, apre- selianos), apenas consegui apresentar uma
minhas aulas de Pedagogia. O processo de sento aspetos algo estereotipados do que criança descontextualizada.
identificação dos meus alunos com ela era pode ser uma menina de 4 anos de idade. Ainda nos primeiros números dos CEI des-
grande. A Manuela vinha à escola de for- Apesar de a situar em Nova Iorque e com crevi uma experiência realizada nos Estados
mação conversar com os alunos depois de origem em Porto Rico, acabo por apresentar Unidos de “ludoterapia” com uma criança de
a terem estudado. Era um face a face que uma típica menina branca, de classe média, 5 anos. Intitulava-se “Juan e a ludoterapia:
veio a determinar grandemente o percurso movendo-se entre a língua espanhola e a uma aventura de domesticar os monstros”
mero de educadores visitaram Reggio Emilia com o uniforme próprio para ir à escola – género. Penso, ainda hoje, que este estudo
e puderam usufruir desta experiência peda- lindas, lindas! Aconchegando-se no nosso foi muito importante para entendermos as
gógica presentemente reconhecida em todo colo com confiança e abandono. Elaborei um dinâmicas de desenvolvimento profissional
o mundo. documento estratégico e um documento pe- dos educadores do sexo masculino.
Descrevi também, de seguida, impressões de dagógico (que descrevo no artigo), usando a
uma deslocação ao Oriente profundo: “Pin- metáfora do TAI’s. O TAI’s indica faixas feitas 9. Expansão da educação pré-escolar
celadas sobre a Educação Pré-Escolar na Tai- em tear que adornam pessoas e ambientes. Em 1996 fui chamada pelo Governo para
lândia” (nº 29), em que fui tocada pelo uso Apresentei sugestões de atividades ligadas à assumir a Direção Geral da Educação Bási-
de práticas de ioga nos jardins de infância. A cultura local. Nunca mais pude voltar a Timor ca. O objetivo era cumprir um dos objetivos
serenidade e interioridade das crianças resul- Leste para analisar se a minha consultoria fundamentais do programa do Governo:
tava dessa prática. Na China (nº 31), por oca- teve algum impacto, mas confio que sim. o projeto de expansão e desenvolvimento
sião de um congresso internacional, visitei da educação pré-escolar. Fui entrevistada
um número significativo de jardins de infân- 7. Compromisso com os 0-3 anos longamente pela APEI (nº 39) no sentido
cia: a cultura do Oriente permanentemente Tive a oportunidade de divulgar a recomen- de clarificar o que andava a fazer e qual a
presente: danças sofisticadas com grande dação sobre os 0-3 anos que preparei por minha estratégia. Para esse trabalho contei
número de crianças, grande disciplina na solicitação da presidente do Conselho Nacio- com a dedicação e empenhamento de uma
motricidade ampla e fina resultando em so- nal de Educação de que então fazia parte (nº educadora notável, a Miquelina Saraiva Lobo
fisticados trabalhos manuais. Salas enormes 95), insistindo em “propostas para a criança (ex-presidente da APEI), que chefiou uma
com muitas crianças, enorme concentração futura”. Esta recomendação foi aprovada por equipa de educadoras dedicadas que deram
e autodisciplina. Realizavam-se sobretudo unanimidade. Anteriormente havia publicado o seu melhor pelo projeto. Mais tarde fomos
atividades de grande grupo e muitas ativi- um apelo para que se pensasse “na voz e na ambas condecoradas pelo Presidente da Re-
dades de carácter musical e de movimento. vez das crianças dos 0 aos 3 anos (nº 91). pública Jorge Sampaio.
Entendemos um pouco da cultura chinesa A APEI noticiou amplamente o que se an-
presente nestas instituições educativas tão 8. Educadores de infância dava a fazer: aspetos do Programa de Ex-
radicalmente diferentes das nossas. Visitei Para além de divulgar a organização do mes- pansão e Desenvolvimento da Educação
ainda a Índia e fiquei impressionada com trado em Educação de Infância na ESE de Pré-Escolar (nº 38), a promulgação da Lei-
a condição das crianças (nº 48): situações Lisboa (nº 34), um trabalho em que toda a -Quadro da Educação Pré-Escolar (nº 41).
de trabalho infantil, acesso à escolaridade equipa de professores se empenhou, apre- Mais tarde foi ainda divulgada a notícia do
apenas para algumas, crianças mais velhas sentei ainda um estudo bem interessante por exame temático da OCDE sobre “Educação
cuidando das mais novas, grande pobreza e mim orientado feito por uma ex-mestranda, e Cuidados às Crianças dos 0 aos 8 anos
fome que as levava a procurar alimento nos Andreia Oliveira, intitulado “Construção e de- (nº 50). Infelizmente não foi possível divul-
enormes montes de lixo. No entanto, a be- senvolvimento da identidade profissional do gar a apreciação que a OCDE fez do nosso
leza das crianças e os seus olhos escuros e educador de infância: Estudo (no masculino) trabalho. Mas nunca mais esquecerei que a
profundos era tocante. do percurso profissional de três educadores OCDE considerou o processo de criação das
Finalmente descrevo uma das experiên- de infância” (nº 101). Os dados emergentes Orientações Curriculares de 1997 uma prática
cias profissionais mais gratificantes da mi- dos três estudos de caso demonstram a exemplar, pelo facto de incluir uma negocia-
nha vida: ajudar a desenvolver o sistema aceitação pelas respetivas famílias da sua ção com os parceiros sociais e uma experiên-
de educação pré-escolar em Timor Leste escolha profissional (nomeadamente as cia de um ano no terreno antes de publicar
– “Ajudando a tecer um TAI‘S para a edu- mães), assim como o apoio incondicional das o documento definitivo. Bem mais tarde, na
cação de infância em Timor Leste” (nº 94). famílias das crianças. A aceitação por parte rubrica “Diga de Sua Justiça com Justiça”, es-
Faço uma breve caracterização do contexto: das colegas educadoras ajuda a consolidar crevi sobre o real abandono a que tinha sido
escolas com inúmeras crianças, mas longe o sentimento de pertença ao grupo profis- votada a expansão da educação pré-escolar”
de uma taxa de cobertura suficiente, salas sional. Os resultados demonstram ainda a (nº 68). Estava então em Praga analisando
pobremente equipadas, pessoal pouco pre- existência de uma preferência por parte dos o esforço deste país para desenvolver uma
parado, atividades de grande grupo: muitas diretores das instituições por educadores política educativa para os primeiros anos e
canções, danças, jogos. Todas as crianças do sexo masculino, uma clara vantagem de experimentei algum amargo de boca. Muito
A perspetiva de avaliação é muito clara nas OCEPE. Em primeiro colaborativo e, de acordo com a vossa perceção do que ocorre na
lugar, é dado relevo à intencionalidade educativa e à reflexão do/a realidade, que comentários vos sugerem?
educador/a sobre essa intencionalidade, afirmando-se que “[…] as
Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar não constituem O/a educador/a é responsável pelo grupo com que cada ano trabalha,
um programa a cumprir, mas sim uma referência para construir e gerir cabendo-lhe a articulação com outros profissionais que intervenham
o currículo, que deverá ser adaptado ao contexto social, às caracte- no grupo, quer em tempo letivo, quer não letivo. As OCEPE con-
rísticas das crianças e das famílias e à evolução de cada criança e do sideram fundamental a existência de reuniões regulares da equipa
grupo” (OCEPE: 13). que trabalha com o mesmo grupo de crianças, incluindo auxiliar de
Em segundo lugar, a avaliação não surge como uma atividade des- ação educativa/assistente operacional, animadores da componente
ligada ou paralela do processo educativo, mas integrada no próprio de apoio à família, mencionando ainda os profissionais que inter-
processo. “Observar, registar, documentar, planear e avaliar consti- vêm em tempo letivo, tais como professor/a de educação especial
tuem etapas interligadas que se desenvolvem em ciclos sucessivos ou professor/a com especialidade numa determinada área. Considera
e interativos, integrados num ciclo anual. O conhecimento que vai que este trabalho colaborativo “[…] é indispensável para desenvolver
sendo elaborado ao longo destes ciclos envolve um processo de aná- uma ação articulada, que se integra na dinâmica global do grupo e no
lise e construção conjunta com a participação de todos os interve- trabalho que se está a realizar” (OCEPE: 29).
nientes (crianças, outros profissionais, pais/famílias), cabendo ao/à Assim, não se trata de profissionais que “venham dar uma aula”,
educador/a encontrar as formas de comunicação e estratégias que mas de um processo planeado em conjunto com o/a educador/a, de
promovam esse envolvimento e facilitem a articulação entre os diver- acordo com a “dinâmica global do grupo e o trabalho que se está
sos contextos de vida da criança” (OCEPE: 15). a realizar”, em que o/a educador/a não é apenas espectador, mas
Acrescenta-se ainda que “A avaliação na educação pré-escolar é rein- participante ativo e a que poderá dar continuidade, mesmo sem o
vestida na ação educativa, sendo uma avaliação para a aprendizagem professor externo estar presente. É, assim, um modo de enriquecer
e não da aprendizagem. É uma avaliação formativa por vezes também o currículo e não de o “espartilhar” em atividades de cariz disciplinar.
designada como ‘formadora’, pois refere-se a uma construção parti- Este trabalho conjunto pode ainda contribuir para o desenvolvimento
cipada de sentido que é, simultaneamente, uma estratégia de forma- profissional dos docentes envolvidos.
ção das crianças, do/a educador/a e, ainda, de outros intervenientes
no processo educativo” (OCEPE: 16). 8. As atuais OCEPE, ao contrário do que ocorreu em 1997,
Assim, o/a educador/a planeia e avalia a organização do ambiente explicitam um conjunto de aprendizagens (“aprendizagens a
educativo – suporte do desenvolvimento curricular – a sua interven- promover”), aparentemente mais orientadoras do trabalho dos
ção, o processo educativo e os progressos de cada criança. Aliás, esta educadores de infância com as suas crianças. De que forma é que
concepção e enfoque da avaliação está contemplada desde 2001, no podemos olhar para esta explicitação do currículo com o trabalho
perfil específico de desempenho profissional do educador de infância, que se encontra a ser realizado na educação escolar sobre a iden-
Anexo nº 1 do Decreto-lei nº 240, de 30 de Agosto. tificação das aprendizagens essenciais e o perfil do aluno para o
séc. XXI e, neste sentido, de que forma percecionam a articulação
6. Ainda relativamente à avaliação, fará sentido pensar numa curricular entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo e as questões
brochura de apoio a este nível? da monodocência nestes dois níveis de educação/ensino?
À semelhança das brochuras que já foram publicadas como apoio às Uma análise das aprendizagens a promover propostas pelas OCEPE
OCEPE de 1997, na nossa opinião faz sentido que, também para este nas diferentes áreas permite compreender a sua correspondência
novo texto, sejam elaborados outros documentos complementares, não com o “Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória”. Pode,
só sobre planeamento e avaliação, mas também sobre outros aspetos. por isso, dizer-se que a educação pré-escolar proporciona as “fun-
dações” ou “alicerces” para o desenvolvimento desse perfil ao longo
7. Duma forma cada vez mais recorrente, assiste-se à partici- do percurso escolar dos alunos. Nesse sentido, as aprendizagens a
pação de docentes de outros níveis de ensino (2º e 3º ciclos, por promover são enunciadas de forma geral, ampla e abrangente e não
exemplo), especialistas numa área do saber, na dinâmica de ativi- como objetivos específicos a atingir, para significar que se trata de
dades educativas dentro da componente letiva do educador e/ou competências em construção a que deverá ser dada continuidade nos
crianças. Como olham para este tipo de trabalho potencialmente ciclos seguintes.
e internacionais (Conselho Nacional de Educação, União Europeia Para uma verdadeira apropriação tem de haver disponibilidade do/a
e OCDE) há vários anos que recomendam a unidade da educação próprio/a educador/a para uma reflexão aprofundada sobre as OCE-
de infância sem que tenha havido ainda qualquer alteração nesse PE e a sua prática, de modo a que vá construindo uma forma espe-
sentido em Portugal. A própria APEI iniciou uma petição para in- cífica (a sua forma) de implementar as OCEPE, tendo em conta as
clusão dos 0-3 anos no sistema educativo que, sem grande divul- suas concepções, os seus saberes, a forma de ver o seu papel e as
gação, conseguiu rapidamente cerca de 5000 assinaturas. Como caraterísticas do contexto e do grupo com que trabalha. Este não
pensam que se pode alterar este problema que afeta a unidade e pode, nem deve, ser um processo solitário, pois, para além de exigir
a qualidade da educação de infância e o direito à educação que reflexão pessoal, deve contemplar confrontação com outras ideias,
todas as crianças têm desde que nascem? debate de alternativas, troca de experiências, partilha de dificuldades,
conduzindo a um enriquecimento e crescimento profissional realiza-
Consideramos a importância da unidade da educação de infância, que dos em conjunto.
foi também objeto de uma recomendação do Conselho Nacional de
Educação, em 2011, de que foi relatora Teresa Vasconcelos. Nesse
sentido, os princípios e fundamentos das OCEPE abrangem toda a
educação de infância dos 0 aos 6 anos. Esperamos, pois, que a inicia-
tiva da APEI dê frutos e que a Lei de Bases seja alterada.
Neste panorama e na interlocução entre ças” (Ferreira, 2004; Halldén, 2012; Kjørholt & çados e os patamares de produtividade dos/
sociologia da infância, sociologia da educa- Seland, 2012; Moss, 2014). as educadores/as. Essas classificações e a sua
ção e ciências da educação, este artigo visa A compreensão de tal fenómeno requer a ordenação, que rapidamente passaram a ser
compreender o rumo das recentes mudan- sua contextualização num conjunto de ideo- quantificadas a partir da utilização massifica-
ças políticas da EI no quadro internacional e logias, teorias e conceitos viajantes (cf. Bal, da de dispositivos e instrumentos de avaliação
nacional, sobretudo a partir dos anos 90, e 2002; Otterstad & Braathe, 2016), no sen- da qualidade do JI, refletem discursos e prá-
alguns dos seus efeitos ao nível das práticas tido de que tendo sido estes produzidos à ticas que viajam e se instalam ‘mundo fora´
pedagógicas. A reconstituição do trajeto que escala transnacional atravessaram fronteiras (e.g. A Escala de Avaliação do Ambiente em
vai desde a formulação de políticas à defini- nacionais, sendo acolhidos e gerando altera- Educação de Infância (ECERS-R); Harms, Cli-
ção de orientações curriculares até à reconfi- ções na educação nacional e local. No caso fford & Cryer, 1998)4.
guração de práticas pedagógicas assenta na europeu, Sahlberg (2010; 2011) identifica um A este propósito, convocamos a análise crítica
análise de documentos oficiais – legislação conjunto de tendências na educação que de- de Moss et al (2016) ao relatório International
e OCEPE (1997 e 2016) – produzidos pelo senham uma viragem – e uma viagem – dis- Early Learning Study da OCDE, uma avalia-
Ministério da Educação (ME) e de observa- cernível em torno das lógicas neoliberais, em ção transnacional em que é defendida a ideia
ções realizadas em JI, públicos e privados, que se salientam o estreitamento do currí- de que avaliar as crianças de 5 anos pode
entre 2013 e 2016, abrangendo uma hetero- culo para potenciar o “conhecimento válido” contribuir para melhorar o seu desempenho
geneidade de contextos socioeconómicos, (numeracia, literacia e ciência) e a pressão posterior nos testes PISA e que se baseia na
geográficos, culturais e organizacionais3. para a prestação de contas e a estandardi- aplicação de testes visando obter resultados
Na “viagem” analítica que assim propomos zação dos resultados através do estabele- em seis domínios [early learning outcomes]:
trata-se de identificar os principais marcos e cimento de rankings e de medidas quanti- autorregulação; linguagem oral/emergência
tendências que parecem estar a colonizar o tativas. Com efeito, uma das faces visíveis da literacia; matemática/numeracia; função
campo da EI nos últimos 20 anos – 1997- destas lógicas é a produção e divulgação de executiva; locus do controlo; competências
-2016 – e de percepcionar a sua apropriação relatórios produzidos por organismos trans- sociais5. Nesse posicionamento, os autores
local por via das mudanças nas práticas das/ nacionais (Eurydice, Banco Mundial, OCDE, criticam a visão uniforme, monocultural e limi-
os educadoras/es de infância, no papel das UNESCO, UNICEF, etc.) que têm potenciado tada do relatório chamando a atenção para a
crianças e na função do JI de modo a con- a comparação entre países relativamente à desconsideração da OCDE perante a existên-
tribuir para a desinstrumentalização da EI, EI, desde o acesso, à frequência, à qualidade, cia de um movimento internacional crescente,
interrogando os seus sentidos e a sua iden- ao montante do investimento, entre outros académico e social, que contesta esta visão
tidade. aspetos. Trata-se de um processo de globali- dominante da EI (e.g., currículo da Nova Ze-
zação hegemónica (Santos, 2001), uma mun- lândia Te Wharik); para a desconsideração das
1. TEORIAS E CONCEITOS VIAJANTES: divisão eurocêntrica que afirma uma validade diferenças entre países na comparação de re-
QUANDO A QUALIDADE, A EFICÁCIA E A universal de determinadas concepções de EI, sultados; e para a desconsideração da ampla
EXCELÊNCIA CHEGAM À EDUCAÇÃO DE do papel do/a educador/a e de crianças e, rede de relações socioculturais nas quais as
INFÂNCIA consequentemente, potencia “políticas para crianças circulam além do JI e mesmo dentro
Uma das facetas da mudança paradigmática a competitividade económica, ou seja, o dele (outros espaços para além da sala), na
acima referida tem vindo a assumir a forma crescente abandono ou marginalização (não visão muito limitada da noção de meio am-
de uma pressão exercida pelo discurso neoli- no que se refere à retórica) dos propósitos biente, restrita à sala de atividades.
beral sobre a educação e o sistema escolar e sociais da educação” (Ball, 2001, p. 100). Exis-
os seus métodos e destes sobre a EI, o que tem assim pressões que se exercem de fora 4 Veja-se http://ers.fpg.unc.edu/i-translations-ecers-
tem implicado alterações visíveis na autono- para dentro e de cima para baixo, oriundas -and-ecers-r. Vários autores (Moss et al, 2016) têm
vindo a assumir uma postura crítica face a esse instru-
mia relativa do JI, essa “espécie de grande das várias escalas internacionais, nacionais mento, defendendo que se a avaliação das dimensões
brinquedo educativo” (Chamboredon & Pré- e locais, para que a EI aumente o seu nível “qualidade estrutural” e “resultados” são passíveis de
vot, 1973) e “espaço social para e das crian- de qualidade focalizando-se na obtenção ser mensuráveis, o mesmo já não acontece no que se
refere à qualidade do “processo” (interações dentro
de resultados de aprendizagens úteis a uma dos contextos, relação com famílias, papel do brincar,
3 Partindo de um quadro deontológico e ético na inves- escolarização bem-sucedida, evidenciando etc.)”.
tigação com crianças não serão identificados/as os/as assim os graus de eficácia e eficiência alcan- 5 Para saber mais veja-se https://tinyurl.com/ydy6zmyz
educadores/as de infância, as crianças e os JI.
“As OCEPE não constituem um programa a cumprir, mas sim uma referência
“As OCEPE constituem um conjunto de princípios para apoiar
para construir e gerir o currículo” (p. 13).
o educador nas decisões sobre a sua prática (…) Não são um
Currículo
1. Faz-se referência às crianças dos 3 aos 6 anos e a palavra creche nunca aparece no documento.
2. Faz-se referência às crianças dos 0 aos 6 anos.
3. A palavra currículo aparece duas vezes em todo o documento.
4. A palavra currículo aparece 21 vezes em todo o documento.
práticas a fim de promoverem a melhoria pedagógicos e organizativos para o educa- como o centro da EPE; segundo uma con-
da qualidade da educação nesta etapa, e dor de infância na tomada de decisões sobre cepção de currículo integrado, contextuali-
sendo o resultado de um processo participa- a sua prática, isto é, na condução do proces- zado e no respeito pela individualização do
do de consulta que aconteceu entre 1996 e so educativo a desenvolver com as crianças” ser irrepetível que é cada criança nos pro-
1997, envolvendo vários profissionais ligados (Despacho n.º 5220/97, de 4 de agosto). cessos coletivos de educação que se rea-
à EPE – investigadores, formadores, técni- Estes princípios assentam na articulação lizam no JI.
cos do órgão central e local, sindicatos, etc. dos seguintes fundamentos: o desenvol- As OCEPE (1997) definiram ainda três gran-
– bem como representantes das famílias, a vimento e aprendizagem como vertentes des áreas de conteúdo8 a serem conside-
criação das OCEPE, em 1997, constituía: indissociáveis; o reconhecimento da crian- radas pelos/as educadores/as de infância
“um passo decisivo para a construção da ça como sujeito do processo educativo; a quando do planeamento da sua ação pe-
qualidade da rede nacional de educação pré- construção articulada do saber; a exigência dagógica e da avaliação das aprendizagens
-escolar, implicando a definição de referen- de resposta a todas as crianças (idem, p. das crianças, em que se destaca a área da
ciais comuns para a orientação do trabalho 14). Tais fundamentos apontam, à partida,
8 “Os âmbitos de saber, com uma estrutura própria e
educativo dos educadores de infância (…). As para um arranjo institucional que reitera o com pertinência sociocultural, que incluem diferentes
orientações curriculares constituem-se, as- princípio pedagógico e educativo da crian- tipos de aprendizagem, não apenas conhecimentos,
sim, como um conjunto de princípios gerais ça como sujeito ativo das aprendizagens e mas também atitudes, disposições e saberes-fazer”
(OCEPE, 1997, p. 47).
para o desenho fazendo um gesto como que suas aprendizagens e dos seus progressos. A ludicidade, sendo por definição uma ati-
indicando a “saída da figura” com o dedo. Significa também que os cuidados com o vidade autotélica, autodeterminada e livre
(JI público, 16 de novembro de 2016, crianças resultado final destas produções são, por- (Sutton-Smith, 1997; Brougère, 1998, 2003),
de 4-6 anos) ventura, mais vigiados e controlados pela não pressupõe necessariamente nem a reali-
A solicitação de produções gráficas relativas educadora e que as apreciações suscitadas zação de produtos finais nem a sua divulga-
às atividades desenvolvidas, podendo ser durante o processo da sua concretização e ção, o que torna invisível, de alguma forma,
justificadas como registo de memórias sig- o resultado final se assumem como facetas quer o “trabalho das crianças”, se conceber-
nificativas que contam histórias do grupo e da avaliação na EI, entre outras. Tal como mos que o seu ofício é brincar (Chambore-
do indivíduo, pelo seu grau de recorrência, a situação acima mostra, a explicitação das don & Prevot, 1973), quer, por consequên-
vulgarização e visibilidade dentro e fora da regras, preceitos, conceitos e convenções cia, o das/os educadoras/es. Lidar com esta
sala e na instituição, pode ser igualmente sociais tende a ser objeto de forte regulação, invisibilidade torna-se mais agudo quando
entendida como uma forma de evidenciar e o mesmo acontecendo com as chamadas de vivemos num contexto como aquele que
legitimar quer o trabalho pedagógico desen- atenção para a conformidade das crianças à já referimos, em que os desempenhos das
volvido pelo/a educador/a com as crianças completude de uma dada realidade decor- crianças, mesmo as mais pequenas, come-
quer com uma suposta evidência do nível rente do preenchimento das ´falhas´ dete- çam a ser exigidos mesmo que implícita e
de desempenho que vai sendo atingido pe- tadas: “Ainda faltam aqui coisas. Onde está informalmente.
las mesmas. Isso significa que as produções o apicultor?”; e à correção dos erros: “Mas as
das crianças se assumem como “prova” das abelhas são verdes?”
Uma delas refere-se à pedagogia da EI e da Finalmente, outra questão refere-se à fun- REFERÊNCIAS
Afonso, A. J. (1998). Políticas Educativas e Avaliação
sua especificidade ou não: entre os princí- ção do JI e do posicionamento dos/as edu- Educacional. Para uma Análise Sociológica da Reforma
pios de uma pedagogia contextualizada e cadores/as. Consideramos que o JI é um con- Educativa em Portugal (1985-1995). Braga: Universidade
praxiológica (Rocha, Lessa & Buss-Simão, texto de preparação para a entrada para o 1º do Minho/CEEP.
Alanen, L. (2011). Critical Childhood Studies? Childhood,
2016) que reconhece a centralidade da crian- CEB ou deve antes ser entendido como mais 18(2), 147–150.
ça (Vasconcelos, 2015), não isolada do todo um mundo de vida das crianças em que es- Bairrão, J. (1998). O que é a qualidade em Portugal. In
social, e do papel do/a educador/a enquanto tas devem ter oportunidade de potenciar as Ministério da Educação (Ed.), Qualidade e projecto na
educação pré-escolar (pp. 41-88). Lisboa: DEB/GEDEP/
dinamizador/a de um currículo coconstruído suas capacidades no presente e num contex- ME.
com as crianças, no reconhecimento dos to coletivo de partilha? Consideramos que o Bal, M. (2002). Travelling concepts in the Humanities: A
seus saberes e experiências prévias bem educador deve ser um especialista nas didá- Rough Guide. Toronto: U. of Toronto P.
Ball, S. (2001). Diretrizes Políticas Globais e Relações
como das suas culturas infantis ou outras ticas e estar preocupado com os resultados Políticas Locais em Educação. Currículo sem Fronteiras,
pedagogias orientadas por objetivos pré- dos conteúdos aprendidos pelas crianças ou 1(2), 99-116.
-definidos e conteúdos pré-programados deve ser antes um especialista dos mundos Bassok, D., Latham, S. & Rorem, A. (2016). Is Kindergar-
ten the New First Grade? AERA Open, 1(4), pp. 1–31
e homogéneos que instrumentalizam os sociais e culturais infantis, em particular das Broker, E., Blaise, M. & Edwards, S. (Eds.) (2014). Hand-
desejos de saber das crianças e convertem culturas lúdicas para ficar capacitado a ler as book of Play and Learning in Early Childhood. London:
as suas ações em estratégias funcionais, su- diversas aprendizagens sociais e culturais em Sage.
Brougère, G. (1998). A criança e a cultura lúdica. Revista
postamente “lúdico-pedagógicas” (Brougère, contexto e na sua mútua articulação? Con- Faculdade Educação, 24,(2), 103-116.
1998, 2003) e “amigas das crianças”, para sideramos que o conhecimento das crianças Brougère, G. (2003). Jogo e educação. Porto Alegre: Edi-
transmitir conteúdos e promover aprendi- é evidenciado pelo uso intensivo de fichas tora Artes Médicas.
Cannella, G., Pérez, M. & Lee, I-F. (Eds.) (2015). Critical
zagens de comportamentos considerados e manuais ou por processos que recorrem Examinations of Quality in Early Education and Care:
úteis e necessários às etapas seguintes do a diversas estratégias metodológicas para Regulation, Disqualification, and Erasure. New York:
seu percurso escolar e de vida. documentar os saberes em uso e em desen- Peter Lang.
Cardona, M. J. (1997). Para a história da Educação de
Uma outra questão refere-se à importân- volvimento das crianças? Infância em Portugal. Porto: Porto Editora.
cia da atividade lúdica na EI, ou não, dada Defender que o JI é um locus de educação e Chamboredon, J-C. & Prevot, J. (1973). Le «Métier d’En-
a pressão que tem vindo a ser exercida so- cidadania (Vasconcelos, 2007) implica a ou- fant» - définition sociale de la prime enfance et fonctions
différentielles de l’école maternelle. Revue Française de
bre os/as educadores/as para a prestação sadia de reinventar práticas sociais, culturais, Sociologie, XII, 7, 295-335.
de contas (accountability) sobre o trabalho educativas e pedagógicas pelo exercício de Codd, J. A. (1988). The construction and deconstruction
que realizam com as crianças e em que as múltiplas imaginações: para além da imagina- of educational policy documents. Journal of Education
Policy, 3, 3, 235-247.
produções destas constituem duplas provas ção pedagógica (Rocha, Lessa & Buss-Simão, Correia J. A. & Matos M. (2001). ‘Da Crise da escola ao
materiais: por um lado da eficácia, eficiên- 2016), a epistemológica e a democrática (San- escolocentrismo’. In R. S. Stoer, L. Cortesão & J. A. Cor-
cia e produtividade do trabalho pedagógi- tos, 2002). A imaginação pedagógica que as- reia (Dir.), Transnacionalização da Educação. Da Crise
da Educação a Educação da Crise (pp. 91-117). Porto:
co desenvolvido e, por outro, do nível das senta no reconhecimento e valorização dos Afrontamento.
competências adquiridas por aquelas. Não saberes e das experiências infantis. A imagi- Dahlberg, G. & Moss, P. (2005). Ethics and Politics in
será por acaso que as crianças brincam cada nação epistemológica que possibilita ampliar Early Childhood Education (Contesting Early Childhood).
London: Routledge.
vez menos e por menos tempo no JI (Neto, e tornar mais complexa a análise da EI, ao Domingos, Ana Maria et al. (1986). A teoria de Bernstein
2000; Ferreira & Tomás, 2016) e quando o incluir no seu seio os múltiplos saberes como em sociologia da educação. Lisboa: Fundação Calouste
podem fazer entre elas, tal deverá respeitar um valor, a multirreferencialidade teórico-pe- Gulbenkian
Ferreira, M. & Tomás, C. (2017). “Já podemos ir brin-
as regras dos adultos, decorrer com ordem dagógica e a reflexividade acerca das práticas. car?” – A construção social da criança como aluno/a
e segurança e assumir uma inteligibilidade A imaginação democrática que reconhece o no jardim de infância. In Cortesão, I. et al (Eds), Tra-
imediatamente acessível aos seus olhos. valor educativo da vida coletiva em sociedade, vessias e Travessuras nos Estudos da Criança (pp. 445-
455). Porto: ESEPF.
Brincar no JI é cada vez mais sinónimo ora que inclui a participação influente das crianças Ferreira, M. (1995). ‘Salvar os corpos, forjar a razão’. A
de sanção das transgressões (“se te portas na organização e nas decisões que afetam o construção médico-social e psico-pedagógica da infân-
mal, não vais brincar”), ora de recompensa quotidiano do JI com base numa ordem nego- cia em Portugal, 1880–1940. (Dissertação de Mestrado
publicada). Porto: Universidade do Porto.
(“quando acabares de fazer isso direitinho, já ciada entre adultos e crianças. Ferreira, M. (2004). A gente gosta é de brincar com os
podes ir brincar), ora de estratégia de ensino outros meninos!”. Relações sociais entre crianças num
(“a brincar também se aprende”). jardim de infância. Porto: Edições Afrontamento.
organizam em torno de uma finalidade ou Outras vezes, é o/a educador/a a prever no De um lado estão os processos globalizantes de
questão central. Há, porém, propostas glo- seu projeto curricular de grupo vários “te- aprendizagem orientados pelo/a educador/a,
balizantes de aprendizagem por vezes desig- mas”, pensados para todo o grupo e, fre- que correspondem, de certo modo, ao que
nadas como “projetos”, mas que não corres- quentemente, para os diferentes períodos também foi designado por “centros de interes-
pondem a “projetos de aprendizagem” como do ano letivo, sem ter também em conta os se” ou “temas de vida” e que a literatura anglo-
são entendidos pelas OCEPE por outras interesses e curiosidades que vão sendo ma- -saxónica chama “unidades”. Neste tipo de
perspetivas ou modelos acima mencionados. nifestados, num determinado momento, por práticas, é o/a educador/a que lança o tema,
É o que acontece, nomeadamente, com pro- uma criança ou grupo de crianças. prevê as fases de desenvolvimento do proces-
postas previamente definidas, muitas vezes Sendo, em qualquer caso, propostas que so, prepara os materiais necessários, motivan-
também designadas por “temas”. não partem de interesses ou curiosidades do, mais ou menos artificialmente, o interesse
Umas vezes, trata-se de um “tema” único das crianças, são por vezes defendidas como das crianças, que até se podem envolver, umas
decidido pelo estabelecimento/agrupamento tratando-se de temáticas abrangentes, que mais, outras menos, na proposta, mas cuja
para todo o ano letivo e para ser desenvol- deixam margem ao/à educador/a para decidir participação reside essencialmente em realizar
vido por todos os grupos de crianças, dan- com crianças como poderão ser abordadas e as propostas do/a educador/a. Trata-se, assim,
do-se até o caso de ser identificado como desenvolvidas, isto é, que permitem a partici- de uma participação passiva.
concretização do projeto educativo. Ora, o pação das crianças. No outro extremo encontram-se projetos de
projeto educativo é um projeto de melhoria De facto, o termo “participação” encerra algu- aprendizagem em que as crianças participam,
da organização, que tendo consequências no ma ambiguidade, porque pode haver diversos não passiva, mas ativamente, na construção
desenvolvimento do currículo, não pode de- graus e níveis de participação. Para situar a par- do processo, que vai sendo negociado entre
terminar, à partida, os interesses das crian- ticipação das crianças importa situá-la numa li- o/a educador/a e as crianças, desde a escolha
ças e dos grupos. nha com dois extremos. do ponto de partida decorrente do seu interes-
numa construção conjunta do pensamento, uma previsão que se vai precisando e refor- Mas um projeto pode ter também um pla-
de modo a que este se desenvolva e alargue mulando ao longo do processo. neamento mais flexível e progressivo, que vai
(Siraj, 2017). Esta forma de apoiar o pensa- Há, assim, projetos que se iniciam com emergindo do próprio desenvolvimento do
mento das crianças, que não estará apenas uma “chuva de ideias” em que crianças e processo, através de uma negociação perma-
presente no desenvolvimento de projetos, educador/a participam e que dará lugar a nente entre as ideias e iniciativas das crianças
tem nestes um papel essencial, não apenas uma representação em teia ou rede, em e as propostas do/a educador/a, baseadas
no momento de problematização do inte- que a questão de partida figura no cen- numa reflexão sobre o que observa e regista
resse e curiosidade, mas também na cons- tro, em torno da qual se situam os vários (Oliveira-Formosinho & Costa, 2011).
trução do pensamento que acompanha aspetos a aprofundar. Nas obras citadas Num projeto planeado com as crianças, o
todo o processo. (Katz e Chard, 1997 e Vasconcelos et al. papel de apoio do/a educador/a implica si-
2012) podem encontrar-se exemplos desta multaneamente um planeamento rigoroso e
Como planear um projeto? representação e da sua evolução, dado que flexível, em que este/a explicita as suas in-
Sendo o projeto um processo globalizante essa teia fica em aberto e pode ser modifi- tenções pedagógicas e prevê diferentes pos-
e complexo, o seu planeamento não pode cada e acrescentada ao longo do processo, sibilidades, que serão, ou não, concretizadas
ser feito de uma forma linear, mas antes de a partir das propostas das crianças e do/a de acordo com as propostas e iniciativas das
forma a prever várias possibilidades de de- educador/a ou dos contributos de outros crianças. Uma forma aberta de planear que se
senvolvimento e os modos de os articular, adultos que venham a ser envolvidos. distingue de um planeamento “fechado” em
gem serão diferentes de um projeto para Ao participarem na construção da sua nessa avaliação de processo fazer quando
outro? Se a possibilidade de saber mais so- aprendizagem e ao partilharem-na com ou- necessário “pontos de situação” que per-
bre um assunto que lhes interessa é impor- tras crianças e adultos, as crianças tomam mitem relançá-lo e/ou reformulá-lo. No fi-
tante para as crianças independentemente consciência do que vão aprendendo e de nal do processo, isto é, quando o projeto
da questão aprofundada, todos os projetos como aprendem, o que o contribui para termina, haverá lugar a uma avaliação glo-
envolvem aprendizagens comuns. Por isso o desenvolvimento da metacognição, isto bal e final, realizada pelas crianças e pelo/a
se acentua na literatura sobre projeto que o é de pensar sobre o pensamento, o que, educador/a.
processo é tão ou mais importante do que além de contribuir para o conhecimento de Estes diferentes momentos de avaliação
o produto. si como aprendentes, favorece a utilização baseiam-se na documentação que vai sen-
Todo o projeto constitui um processo de das aprendizagens realizadas noutras si- do recolhida, compreendendo-se também a
pesquisa em que as crianças, com o apoio tuações e contextos. partir do que foi dito que o projeto é ge-
do/a educador/a, desenvolvem a curiosida- Mas, porque o projeto é planeado e ava- rador de inúmeros documentos (registos do
de e o desejo de aprender, ao explicitarem o liado em conjunto e este planeamento e que as crianças disseram, planos construídos
que sabem e o que querem saber, o que vão avaliação se realizam num processo que em comum e a sua reformulação, represen-
fazer e como. Sendo que para isso precisam engloba ciclos sucessivos de planeamento, tações que as crianças realizaram) e ainda
de recolher informação, observar, experi- ação e avaliação (o que se vai fazer, o que os registos de observação do/a educador/a,
mentar, debater e sistematizar o que vão já foi feito e já se aprendeu para decidir o as suas reflexões e interpretações, que dão
aprendendo, tendo ainda a possibilidade de que se vai fazer a seguir), o projeto possi- sentido à sua participação no processo e
comunicar essas aprendizagens a outros. bilita ainda que as crianças se apropriem aos desafios que coloca às crianças.
Neste processo participativo e interativo, melhor desse ciclo, essencial para serem A avaliação não é, assim, uma atividade ex-
envolvendo diversos participantes, as crian- capazes de autorregular a sua aprendiza- terior ou paralela ao projeto, mas faz parte
ças têm também oportunidade de tomar gem (Piscalho & Veiga Simão, 2014). integrante dele, importando, no entanto,
decisões individuais e coletivas, tornando- Em resumo, ao partir dos interesses e que o/a educador/a reflita previamente
-se mais autónomas, numa dinâmica em curiosidades das crianças e ao estimular sobre o que documentar e como organizar
que têm ocasião de apresentar e funda- a sua participação em todo o desenvol- essa documentação, até porque a partilha
mentar os seus pontos de vista, de escutar vimento do processo, os projetos contri- da documentação com as crianças e com
e compreender o ponto de vista dos outros, buem para a criação de atitudes favoráveis outros intervenientes facilita a sua partici-
de cooperar na realização de uma finalidade à aprendizagem (disposição para apren- pação.
comum, de aprender umas com as outras, der), para o desenvolvimento da metacog- Um registo importante, que surge frequen-
sendo que a cooperação entre crianças de nição e da autorregulação da aprendiza- temente nos relatos de projetos, incide nas
diferentes idades e capacidades amplia essa gem, condições essenciais para que cada opiniões das crianças sobre o que já sabem
aprendizagem entre pares e proporciona criança aprenda a aprender e competência ou como interpretam a questão a aprofun-
uma maior inclusão de todas as crianças no fundamental na aprendizagem ao longo da dar, com a identificação do que cada criança
grupo. vida. disse, por vezes acompanhada duma repre-
A realização deste processo exige inevita- sentação visual das suas ideias. Este registo
velmente que as crianças recorram a dife- Como avaliar um projeto? de avaliação inicial é devolvido e debatido
rentes formas de expressão e representa- Como se infere do que tem vindo a ser com as crianças para apoiar as decisões so-
ção do seu pensamento, em que utilizam dito, todo o desenvolvimento do projeto bre o plano, podendo ainda ser retomado no
múltiplas linguagens, desde a linguagem é acompanhado de uma avaliação, que final do projeto para que as crianças tomem
oral e escrita à representação matemática, começa por uma avaliação inicial do que consciência do que aprenderam.
passando por diversas linguagens artísticas. as crianças já sabem, que permite proble- Os diversos planos que se foram realizando
As formas de representação que o projeto matizar o ponto de partida e formular um são também documentos que necessitam
proporciona tornam-se um meio privilegia- primeiro plano, cuja realização é apoiada de ser partilhados, pois constituem um ins-
do de desenvolvimento e aprendizagem, por avaliação do processo, que regula a trumento coletivo de orientação da ação e
em que a construção de novos saberes tem evolução do projeto, fundamentando as uma referência da avaliação do processo.
sentido para as crianças. decisões que vão sendo tomadas. Cabe Pode, assim, ser útil ter um espaço da sala –
damenta-se, como também foi dito, numa Esta visão global da prática, quer o/a No 3: 3-11 https://southernearlychildhood.org/upload/
pdf/Dimensions_Vol40_3_Martalock.pd
imagem da criança como sujeito e agente educador/a tenha adotado um determina- Niza, S. (1996). O modelo curricular de educação pré-es-
do seu desenvolvimento e aprendizagem. do modelo, quer seja influenciado/a por colar do Movimento da Escola Moderna. In J. Oliveira-
Mas dentro desta imagem global podem vários, constitui a base em que assenta o -Formosinho (org.) Modelos Curriculares para a Educa-
ção de Infância. Porto. Porto Editora: 137-156.
caber imagens mais específicas. Assim, seu projeto curricular de grupo e o modo Oliveira-Formosinho, J., Costa, H. (2011). Porque é que a
por exemplo, considerar as crianças como como, em cada ano, o adequa ao grupo de Lua é redonda e bicuda? In J. Oliveira-Formosinho & R.
curiosas e capazes de pesquisar de forma crianças com que trabalha. A elaboração Gamboa (org.) O trabalho de projeto na pedagogia-em-
-participação. Porto. Porto Editora: 83-124
a apropriarem-se de conhecimentos exis- desse projeto e a autoavaliação da ação Piscalho, I., Veiga Simão, M. (2014). Promoção da autor-
tentes na nossa cultura, ou como capazes do/a educador/a no seu desenvolvimento regulação da aprendizagem das crianças: proposta de
de pensar e refletir em conjunto, a fim de são ocasiões particularmente propícias para instrumento de apoio à prática pedagógica. Nuances vol.
25, nº 3 pp.171-190 http://revista.fct.unesp.br/index.php/
construirem novos conhecimentos parti- fazer uma reflexão mais profunda sobre a Nuances/article/view/3163
lhados, não é exatamente o mesmo e dá sua imagem de criança e se esta se traduz Santos, M.L; Gaspar, M.F. & Santos, S. (2014). A Ciên-
origem a práticas que não são idênticas efetivamente nas práticas que desenvolve, cia na Educação Pré-Escolar. Lisboa. Fundação Fran-
cisco Manuel dos Santos/APEI. https://www.ffms.pt/
(Martalock, 2012). Aliás, como acrescenta a incluindo projetos de aprendizagem com as upload/docs/a-ciencia-na-educacao-preescolar_FwO-
autora, cada um de nós tem, provavelmen- crianças. 9Dz0X50qyerOZavgaHA.pdf
te, a sua imagem de criança. Siraj, I. (1997). Os profissionais de educação de infância
utilizam a escala SSTEW para melhorar a qualidade da
Será, por conseguinte, essencial que cada educação pré-escolar. Cadernos de Educação de Infân-
educador/a reflita e clarifique qual é a sua cia, nº 111: 3- 7
imagem de criança e como esta se traduz na REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Vasconcelos, M.T. (1998). Das perplexidades em torno
de um hamster ao processo de pesquisa: pedagogia do
sua prática profissional. E, porque há sem- Abreu Lima, I, Pinto, A. I., Grande, C., Cádima, J., Mata, projeto em educação pré-escolar em Portugal. In Qua-
pre alguma distância entre o que pensamos L., Pimentel, J., & Marinho, S. (2014). Caracterização dos lidade e projeto na educação pré-escolar. Lisboa: ME/
Contextos de Educação Pré-Escolar. Inquérito Extensivo. DEB/NEP: 127-158.
e o que fazemos, esta reflexão envolve um Relatório Final: UP/ ISPA/DGE http://www.dge.mec.pt/ Vasconcelos, T., Rocha, C., Loureiro, C., Castro, J., Menau,
questionamento permanente sobre a coe- estudo-de-avaliacao-das-orientacoes-curriculares-e-da- J. Sousa, O. & Alves, S. (2012) Trabalhar por projetos na
rência entre essa imagem de criança e a -qualidade-na-educacao-pre-escolar educação de infância: mapear aprendizagens, integrar
Cardona, M. J., Nogueira, C., Vieira, C., Uva, M. & Tavares, metodologias. Lisboa: Ministério da Educação, Direção
prática. T. (2010). Guião de Educação. Género e Cidadania. Pré- Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular. http.//
Neste sentido, e retomando a questão co- -Escolar Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade dge.mec.pt/sites/default/files/EInfancia/documentos/
locada na introdução, pode dizer-se que a de Género/ CIG, Presidência do Conselho de Ministros.
trabalho_por_projeto_r.pdf
Acessível em https://www.cig.gov.pt/wp-content/
adoção de um modelo pode facilitar que uploads/2015/10/398_15_Guiao_Pre_escolar.pdf
o/a educador/a situe a “sua” imagem de Evans, E. (1982). Curriculum models and early childhood
criança e a desenvolva numa prática coe- education. B. Spodeck (org.) Handbook of research in
early childhood education. New York: The Free Press:
rente e consistente, enquadrada pela es- 107-134.
trutura do modelo, uma prática em que o Helm, J. H., Katz, L. (2011). Young investigators: The Pro-
desenvolvimento de projetos se integra na ject Approach in the early years (2nd ed.). NY: Teachers
College Press. (O cap. 1 deste livro pode ser acedido em
visão global de prática que esse modelo re- ttps://www.naeyc.org/files/naeyc/file/Publications/
presenta. Young Investigators chapter 1.pd
No caso mais frequente, como é revelado Katz, L., Chard. S. (1997). A abordagem de projeto na
educação de infância. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
pela análise das respostas ao questionário benkian
inicialmente referido, de o/a educador/a se Lopes da Silva (1998). Projetos em educação pré-escolar e
inspirar em vários modelos, essa reflexão projeto educativo de estabelecimento. In Qualidade e pro-
jeto na educação pré-escolar. Lisboa: ME/DEB/NEP: 91-122
sobre a imagem de criança torna-se ainda Lopes da Silva, I, Marques, L., Mata, L., Rosa, M. (2016).
mais necessária para que essas diferentes Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar.
influências se possam integrar num todo Lisboa: Ministério da Educação/Direção Geral de Educa-
ção. http://www.dge.mec.pt/ocepe/
coerente, ou seja, num modelo que é cons- Malavasi, L., Zoccatelli, B. (2013). Documentar os proje-
truído pelo/a educador/a e dá sentido a tos nos serviços educativos. Lisboa: APEI
toda a sua prática e não apenas o desen- Martalock, P. (2012). What is a wheel? The image of the
child, traditional, project approach and Reggio Emilia
volvimento de projetos. perspectives. In Dimensions of Early Childhood Vol. 40,
a minha reflexão para as relações entre te a estes profissionais com a própria ros níveis básicos, porque verdadeiras
os conceitos de qualidade e de excelên- noção de profissionalidade, outra das bases de toda a escolaridade.
cia na profissão docente, partindo das linhas com que me tenho preocupa-
leituras que sobre eles são mais corren- do no meu trabalho dos últimos anos. A qualidade do professor de 1º ciclo –
tes, nomeadamente no que diz respeito Qualidade de quê? Quem são estes pro- breve perspectiva histórica
ao 1º ciclo. Tentarei estabelecer algum fissionais? O que é que lhes é pedido O primeiro enquadramento que gostaria de
paralelo entre o 1º ciclo e os outros ci- para podermos ter uma noção clara das situar não diz respeito a algumas questões
clos, os níveis iniciais e os níveis subse- áreas de intervenção em que preten- quantitativas nem estatísticas – embora re-
quentes, na medida em que me pare- demos o alegado reforço da qualidade, levantes – nem aos aspectos mais conheci-
ce que a qualidade e a excelência são enquanto formadores destes profissio- dos da evolução da história do professor pri-
olhadas de maneiras muito diferentes nais e sendo também nós, os formado- mário e da sua evolução no sistema, campos
quando se fala de um professor do 1º res, profissionais deste ofício? de conhecimento que autores como António
ciclo ou de um educador de infância, ou 4. E terminaria com uma reflexão sobre Nóvoa trabalharam em grande profundida-
quando se fala de professores de níveis algumas implicações que julgo poderem de. Pretendo, sim, destacar que a evolução
mais avançados, posição que terei oca- inferir-se para as instituições de for- do professor de ensino primário e do edu-
sião de discutir e contestar. mação e para as práticas de formação cador de infância no sistema português, se
3. Um terceiro bloco diz respeito à relação de professores e educadores, para os a pensarmos desde o princípio do século XX
do conceito de qualidade relativamen- responsáveis de formação dos primei- até ao presente, se caracteriza por enormes
do ato de conhecer, que se aprende com es- mos muitas vezes matar o gosto de conhe- de conceitos tão complexos como a quali-
forço e exatamente por isso dá prazer. Seria cer nas salas de aula, às vezes sem prejuízo dade e a excelência, mas apenas gostaria
o primeiro P da minha sigla. da boa vontade dos professores, mas por de deixar alguns apontamentos de análise,
O outro P diz respeito ao poder de com- força das rotinas da cultura escolar que se para refletir, sobretudo quando e se quere-
preender, com que a escola tem a função substituem à verdadeira procura da cultura mos formar para as proclamadas excelência
de apetrechar todos os alunos. O poder de e do conhecimento inteligente e analítico. O e qualidade.
compreender, de entender, de abrir janelas domínio dos instrumentos para alcançar este A primeira ideia que me parece importante
para a inteligência do mundo, é a ferramen- conhecimento e este prazer tem de ser me- clarificar é que a qualidade não é sinónimo
ta-base de todos nós e de cada criança, que diado por funcionalidades técnicas que são de excelência e que estes termos se usam
lhe irá ser necessária em tudo na vida. Este os outros básicos de que falávamos antes: muitas vezes a esmo, porque se tornaram
conceito tem um pouco a ver com o em- ler, escrever e contar, não apenas olhados próximos, num jargão “politicamente corre-
powerment – conceito muito trabalhado na dessa perspectiva técnico-memorista, mas to” em certas óticas atuais, sem que haja a
linha do movimento do school improvement, olhados na perspectiva que tentei associar preocupação de os clarificar com mais rigor.
nomeadamente no Reino Unido, e concep- a estes PPI (prazer, poder e instrumentos). Eu diria que a ideia de qualidade se situa
tualizado nos trabalhos de David Hopkins, sempre no plano da correspondência a cri-
entre outros. Penso que a aquisição deste Qualidade e excelência: o que são? Como térios de bom desempenho. Existe qualida-
poder se joga nos primeiros níveis, no 1º ciclo se relacionam? de quando alguma coisa, neste caso o de-
e na educação de infância, embora não seja Passando à segunda linha de análise que sempenho de um profissional, corresponde
exclusivo desses níveis. Mas sem essa “base” diz respeito aos conceitos de qualidade e a determinados critérios definidores desse
o percurso subsequente fica comprometido. excelência na profissão docente e particular- desempenho e corresponde com um nível
E por fim, o I que se refere ao terceiro dos mente na docência do 1º ciclo, de novo aqui elevado. A qualidade pode existir em contex-
“básicos” – o domínio dos instrumentos, que encontro vários planos de ambiguidade e de tos muito diferentes e com expressões muito
permitem acionar os dois elementos anterio- paradoxo, a vários níveis. Primeiro, gostaria diversas. No fundo, traduz uma relação entre
res: o poder e o prazer de conhecer, que se de sublinhar que não tenho qualquer preten- ação e princípios, marcada por critérios.
desenvolve ali ou morre para sempre. E ve- são de num texto breve fazer a abordagem A excelência reporta-se, e julgo não estar
a ser abusiva nesta análise, a situações de
excepcionalidade dentro de um dado quadro
de qualidade. A excelência refere-se a de-
sempenhos outstanding, a alguma coisa que
excede, transcende, se destaca de um con-
texto. Dentro de um padrão de qualidade,
a excelência destaca-se de duas maneiras:
pelo nível, numa óptica quantitativa, ou seja,
quem é excelente vai um pouco mais longe
do que os outros no nível do desempenho,
e pela natureza, a qualidade ou qualidades
dessa diferença que torna alguém excelente
face a um todo particular. A excelência exige
a qualidade e estrutura-se face a um padrão
de qualidade, mas não é a mesma coisa, e
parece-me importante ter isto em mente. A
definição de excelência requer uma base de
qualidade ou induz-se o equívoco de con-
fundir excelência com qualidade, como tan-
tas vezes se observa em diversos planos do
discurso sobre educação.
Qualidade de desempenho de professores a análise da profissionalidade referenciada à dro da sociologia das profissões, por muitos
– que desempenho? atividade docente e ao seu estatuto atual. aspetos, dos quais destacarei dois que me
Penso então poder passar à minha terceira Será o educador/professor um verdadeiro parece que têm de ser centrais na questão
linha de análise, centrando a questão da qua- profissional ou a sua história encaminha- da qualidade: a clareza acerca da natureza da
lidade especificamente no desempenho dos -o para um estatuto ambíguo, como muitos função e a associação de um saber específico
professores e na qualidade do educador de in- autores vêm sublinhando, mais próximo do ao exercício dessa função. A função do pro-
fância e do professor de 1º ciclo e da sua for- semiprofissional, alguém que está entre o fessor, e aqui entrarei numa área muito con-
mação, relacionando a qualidade com a pro- profissional e o funcionário, por força da troversa, tem sido historicamente associada a
fissionalidade. É impossível discutir situações estrutura e da história do sistema e da pro- um conjunto de ambiguidades. Por um lado,
de qualidade profissional, de qualidade de de- fissão, mas num momento de clivagem entre essa função do professor foi historicamente
sempenho profissional e consequentemente o reforço da profissionalidade que poderá vir muito colada a um saber que se detém e que,
qualidade da formação desses profissionais, a acontecer, se houver determinadas dinâ- porque se detém, se passa. “Quem sabe ensi-
sem uma clarificação muito sustentada do micas, ou o seu esbatimento completo, que na.” Esta conceptualização, que é talvez ainda
que é, como se define, um profissional. Julgo também pode acontecer e de que também há a mais comum na representação social, torna-
que nós não temos esta clarificação assumida muitos sinais. Linda Darling-Hammond, num -nos prisioneiros de um conceito de ensino
no nosso sistema nem na nossa representa- artigo publicado no Journal of Educational como sinónimo de passagem de um saber. É
ção social da profissão, nem no próprio inte- Change, faz uma projeção de vários cenários este o conceito que encontramos nos alunos
rior da classe profissional, do pré-escolar ao possíveis, a partir da análise de dados atuais, que nos chegam ao ensino superior, prova-
superior. A clarificação a que me refiro implica para a profissão docente nos anos futuros, e velmente porque desde o início o interiori-
integrar as contradições e ambiguidades que este problema – esbatimento versus reforço zaram dessa forma, através das experiências
a esta representação se associam no momen- de profissionalidade como duas possibilidades de ensino que tiveram. Isto tem na história a
to atual e compreendê-las. fortes – é muito bem clarificado nesse artigo. sua justificação, porque num tempo em que
A primeira questão que se coloca a mon- De novo, gostava de fazer uma breve incursão o saber era muito mais limitado do que é hoje,
tante da qualidade do desempenho é assim histórica. Um profissional define-se, no qua- e em sociedades em que a sua difusão era
ção profissional assente neste saber propria- de saber muito bem, sabendo fazê-lo com au- sua própria ação, indispensável à qualidade do
mente profissional – saber ensinar no sentido tonomia de decisão e capacidade de análise desempenho.
de fazer aprender – e depois desenvolva as e melhoria. Uma outra recomendação tem a ver com o
nuances e as especializações da área, do cam- desenvolvimento da formação por imersão.
po, do nível, do ano, do contexto em que vai Formar profissionais de ensino – Assistimos a sinais de uma ruptura de pa-
exercer a profissão. implicações da concepção do profissional radigma nas nossas lógicas de trabalho nas
Não dizemos de um médico que trabalha para Para terminar, gostaria de listar para discus- universidades e nas instituições de formação:
crianças que ele tem de saber “menos” porque são algumas implicações que identifico possí- perspetivar a formação como requerendo
têm supostamente menos doenças e menos veis nesta conceptualização que ensaiei aqui, imersão no contexto de trabalho, transfor-
complexas do que as dos adultos… Ou que numa linha de reforço da qualidade da forma- mando gradualmente esses contextos de
numa dada especialidade se dispensa o saber ção dos docentes do 1º ciclo e educadores de trabalho, que têm já uma cultura própria mui-
médico global... Esta observação é uma ironia infância. to resistente que não é imune ao passado e
minha, mas é um pouco esta a caricatura da Uma primeira implicação residirá num reforço portanto tem as suas lógicas, rotinas e cultura
lógica que temos tido na profissão docente. da exigência e da qualidade científicas da for- instaladas. A formação inicial só será eficaz
Admite-se que, se a realidade que estamos a mação. Penso que os nossos alunos têm que se se transformar em formação em imersão,
trabalhar é mais inicial, então haveria menos saber muito mais e muito melhor, e em últi- feita com as escolas, que, por um lado, colo-
necessidade de saber científico. Parece-me ma instância somos nós os responsáveis por que os futuros professores em situação que
esta crença um contrassenso. Tenho dito mui- isso. Refiro-me a saber profissional no sentido alimente o seu percurso de formação inicial
tas vezes que não sou, e não fui, professora que tentei clarificar anteriormente. Sublinho, e, por outro, converta as escolas, os jardins
de 1º ciclo nem educadora, mas acho que, a este respeito, que partilho a concepção da de infância, os contextos de trabalho em que
se o quisesse ser, não saberia o suficiente. Ivor Goodson, quando fala da profissão do os nossos profissionais vão atuar em outras
Digo-o sem nenhuma blague, acho que sei professor como uma profissão intelectual. tantas unidades de formação que connosco,
alguma coisa da profissão, não se trata de Eu diria que o professor tem de ser um pro- ensino superior e investigadores, construam
falsa modéstia. Mas não sei o que é especí- fissional de cultura, e neste momento não o parcerias de formação/investigação, desen-
fico para ensinar bem coisas tão complexas é – nem os professores de 1º ciclo, nem os volvidas dentro da ação quotidiana da escola,
cientificamente (em todos os planos cientí- do 3º ciclo ou secundário. Não temos sido, a transformando-a em espaço real de formação
ficos, em que integro o pedagógico) como a meu ver, profissionais de cultura ou de conhe- profissional permanente.
apropriação dos códigos, a aquisição da leitu- cimento. Quando muito, somos especialistas
ra ou do cálculo, no plano do conhecimento numa área, o que não é a mesma coisa que
pedagógico que requerem. E surpreende-me ser profissional de conhecimento e de cultura.
que isto não seja sentido pelos meus colegas, Uma segunda implicação para a formação tem REFERÊNCIAS
nomeadamente os de 1º ciclo e educadores, a ver com a centragem na ação profissional, Darling-Hammond, L. (2000) Futures of teaching in
American Education. Journal of Educational Change, vol
e pelos seus formadores, em que me incluo. na ação de ensinar, como eixo organizador
1, nº 4, Dezembro, 353-373.
No limite, diria que formar um profissional de de toda a formação, ou seja, não conceber os Goodson, I. (1999). The educational researcher as a pub-
ensino de qualidade significa torná-lo deten- planos de formação como uma soma de par- lic intellectual. British Educational Reasearch Journal, 25,
tor de um saber muitíssimo rigoroso e que tes mas como um projeto organizado em tor- nº 3, 277-297.
seja ativo, um saber em uso, socorrendo-me no do desempenho profissional, que é aquilo Hopkins, D. (2000. Powerful learning, powerful teach-
ing, powerful schools. The Journal of Educational
da expressão muito usada de Philippe Perre- que lhe dá sentido.
Change,vol 1, nº 2, 135-154.
noud, um saber que se usa e não um saber Uma terceira implicação traduz-se em orientar Nóvoa, A. (1992). A reforma educativa portuguesa:
inerte. Significa ainda que esse saber profis- toda a formação para a capacidade de conhe- questões passadas e presentes sobre a formação de
sional, com cujos instrumentos a formação cer, de pensar sobre e de agir fundamenta- professores. In A. Nóvoa e T. Popkewitz (org.) Reformas
desejavelmente apetrecharia os formandos, damente. Se os nossos alunos saírem com Educativas e Formação de Professores. Lisboa: Educa.
Perrenoud, P. (2000). Novas Competências para Ensinar.
lhes deverá permitir exercer bem a sua função esta capacidade ou competência, no sentido
São Paulo: Artmed.
em termos profissionais – e a sua função é mais rigoroso, teremos certamente um ele-
ensinar, fazer que os seus alunos aprendam vado nível de qualidade que neste momento
aquilo que, por isso mesmo, eles também têm não temos. E ainda a capacidade de avaliar a
As crianças têm um papel ativo na constru- dades alfabéticas do nosso sistema de es- Podemos ler ou escrever textos infor-
ção do seu conhecimento sobre a linguagem crita, ou seja, compreender que os grafemas mativos para conhecer ou transmitir
escrita, cuja aprendizagem começa muito an- codificam fonemas e conhecer as regras que explicações ou informações de caracter
tes do ensino formal. Com efeito, as crianças permitem passar de uns a outros. geral quando, por exemplo, lemos ou
não ficam à espera de ter seis anos e uma escrevemos uma notícia, uma carta, um
professora para começarem a refletir acer- Apropriação dos usos e funções da convite, um recado;
ca da linguagem escrita (Ferreiro, 1990). Ou, linguagem escrita Podemos ler ou escrever textos enume-
como refere Vygotsky (1935/1977, p. 39): “A As práticas educativas em torno da lingua- rativos para obter uma ou mais infor-
aprendizagem escolar nunca parte do zero. gem escrita desenvolvidas em contexto de mações precisas, memorizar, etiquetar
Toda a aprendizagem da criança na escola jardim de infância têm um papel determinan- e classificar informação quando, por
tem uma pré-história.” te na construção de um projeto pessoal de exemplo, elaboramos listas de material,
A qualidade dos contextos educativos em leitor/escritor (Chauveau & Rogovas-Chau- listas de compras, etiquetamos os livros
que as crianças se movem e, em particular, as veau, 1994), ou seja, no modo como as crian- da biblioteca, consultamos horários, le-
formas como os adultos se constituem como ças atribuem sentido à sua aprendizagem da mos ementas;
mediadores entre as crianças e a linguagem linguagem escrita. Podemos ler e escrever textos prescriti-
escrita determinam o desenvolvimento da Projeto pessoal de leitor/escritor: vos para seguir ou dar instruções quan-
sua literacia. Com efeito, o modo como as Eu quero aprender a ler para “ Ler histórias, do, por exemplo, lemos ou escrevemos
crianças abordam a linguagem escrita de- ler livros sobre os animais que vivem no mar, receitas, instruções para jogar um jogo,
pende da qualidade, da frequência e do valor ler sobre como se faz um jogo, ler o jornal para realizar um trabalho manual, uma
das atividades de leitura e de escrita que os da escola, ler as receitas que vêm nos li- experiência;
adultos desenvolvem com elas. Trata-se de vros.” Podemos ler e escrever textos literários
um processo socialmente determinado. Eu quero aprender a escrever para “Escrever por prazer e para diversão quando, por
“O que a criança pode fazer hoje com o auxí- os nomes de todos os meninos, escrever his- exemplo, lemos ou escrevemos contos,
lio dos adultos poderá fazê-lo amanhã por si tórias, fazer listas das coisas que são preci- narrativas, poesias, canções, adivinhas,
só” (Vygotsky, 1935/1977, p. 44). sas, escrever cartas.” banda desenhada;
As práticas educativas desenvolvidas em A elaboração deste projeto é inseparável da Podemos ler e escrever textos expositi-
contexto de jardim de infância desempe- relação que se foi estabelecendo, desde mui- vos para aprender ou transmitir novos
nham um papel essencial na forma como to cedo, com as várias práticas culturais em conhecimentos quando, por exemplo,
as crianças se poderão apropriar dos usos torno da leitura e da escrita e com os seus lemos livros para o estudo aprofunda-
e funções da linguagem escrita e no modo utilizadores. do de um determinado tema ou quando
como conseguirão entender as particula- É assim que no jardim de infância a lingua- escrevemos um texto para transmitir os
ridades do nosso sistema de escrita. Estes gem escrita deve ser usada em diversas si- resultados de um estudo que realizá-
aspetos desempenham um papel muito tuações funcionais, com várias finalidades e mos.
importante na forma como as crianças irão propósitos, o que pode desenvolver a cons- Um trabalho realizado por Santos e Alves
abordar a aprendizagem da leitura e da es- ciência das funções que a leitura e a escrita Martins (2011), em que foram analisadas as
crita, que pressupõe aquisições de natureza têm na vida quotidiana, permitindo também práticas de literacia de um grupo de edu-
cultural e de natureza cognitiva/linguística. a compreensão de que a diversos tipos de cadoras de infância e os projetos pessoais
De natureza cultural, na medida em que as suporte correspondem diferentes conteúdos de leitor/escritor dos seus alunos, mostrou
crianças, para aprenderem a ler e a escrever, de escrita (Goodman, 1990; 1995; Sulzby, que estes se relacionavam com a frequên-
têm de apropriar-se das práticas em torno 1985). Para tal, é fundamental que os edu- cia e a diversidade de práticas desenvolvidas
da linguagem escrita de uma dada cultura, cadores leiam e escrevam para as crianças e pelas educadoras e que os tipos de textos
ou seja, têm de apropriar-se dos usos sociais com as crianças diversos tipos de textos.A que as crianças referem querer ler e escre-
da linguagem. leitura e a escrita podem desempenhar di- ver correspondem aos tipos de textos mais
De natureza cognitiva/linguística, na medida versas funções (Alves Martins & Niza, 2014; frequentemente utilizados pelas suas educa-
em que as crianças, para aprenderem a ler e Teberosky, 1987; Teberosky & Colomer, 2003; doras. Estes resultados vão no sentido das
a escrever, têm de entender as particulari- Curto, Morillo & Teixidó, 2000): propostas de Curto, Morillo e Teixidó (2000),
que referem que é fundamental que, desde deste processo, constroem hipóteses sobre vem as crianças procuram atender a fatores
muito cedo, os adultos e em particular os as propriedades da linguagem escrita e sobre como uma quantidade mínima de letras para
educadores tenham um papel de mediadores o que ela representa, hipóteses que podem cada palavra e uma combinatória diferente
das experiências das crianças com os diver- estar mais próximas ou mais afastadas do de letras para discriminar diferentes pala-
sos suportes de linguagem escrita, lendo e princípio alfabético. vras, nomeadamente as letras do seu nome.
escrevendo com elas textos significativos e Ferreiro (1988) e Ferreiro e Teberosky (1986) A figura 2 ilustra este tipo de escrita em que
reais que reenviem para as várias funções da foram as primeiras investigadoras a referir a Carolina usa as letras do seu nome para
linguagem escrita. que o conhecimento das crianças sobre a escrever, variando a posição das letras para
Ora, a forma como as crianças atribuem ou linguagem escrita se desenvolve ao longo de escrever palavras diferentes.
não sentido à aprendizagem da leitura e da um processo durante o qual as crianças pen-
escrita tem implicações nos seus resultados sam sobre a natureza da linguagem escrita
escolares. À entrada para o 1º ciclo, para al- e constroem hipóteses conceptuais sobre os
gumas crianças a linguagem escrita faz parte mecanismos de funcionamento do sistema
do seu universo afetivo e cognitivo: a apren- escrito, até entenderem o princípio alfabé-
dizagem da leitura e da escrita tem sentido; tico. As crianças passam, segundo estas au-
para outras crianças a linguagem escrita não toras, por diversas fases ou níveis evolutivos.
faz parte do seu universo afetivo e cognitivo: Numa fase inicial, denominada pré-silábica,
a aprendizagem da leitura e da escrita não as crianças quando escrevem não tentam
tem sentido. A probabilidade de sucesso fazer corresponder a linguagem escrita à
nestas aprendizagens não é a mesma para linguagem oral. Usam garatujas, misturadas
estes dois grupos de crianças. com letras, algarismos e desenhos, não pa-
Consideramos assim fundamental que os recendo haver uma clara separação entre Figura 2. Escrita de urso e hipopótamo
educadores desenvolvam com as crianças desenho e escrita, tal como é ilustrado na
atividades de leitura de textos diversifica- Por vezes, têm em consideração as proprie-
dos e significativos e promovam a escrita dades dos referentes na forma como escre-
de diferentes géneros e com uma variedade vem, utilizando, por exemplo, mais letras para
de objetivos e de audiências, envolvendo as palavras que reenviam para referentes gran-
crianças em tarefas e atividades de literacia des e menos letras para palavras que reen-
autênticas e significativas, criando uma cul- viam para referentes pequenos. Geralmente,
tura pedagógica que promova a motivação no decorrer destas produções, as crianças
para a leitura e para a escrita. não procedem a qualquer verbalização e a
leitura que fazem das palavras escritas é
Compreensão das particularidades do global. Apresenta-se na figura 3 a escrita de
sistema alfabético de escrita gato e gatinho. Quando se pergunta à Caro-
As práticas educativas em torno da lingua- lina porque escreveu gatinho com letras mais
gem escrita desenvolvidas em contexto de pequenas do que gato ela responde “Porque
jardim de infância têm também um papel o gatinho é pequeno e o gato é grande.”
determinante na forma como as crianças Numa fase posterior, as produções escritas
constroem os seus conhecimentos sobre as das crianças já são orientadas por critérios
particularidades do sistema alfabético de es- linguísticos; as crianças começam não só
crita. Através de interações com os outros Figura 1. Primeiras formas de escrita a ter a noção de que as palavras orais são
(pares e adultos), as crianças vão-se interro- constituídas por vários componentes sono-
gando sobre as relações entre os objetos e Progressivamente, começam a diferenciar ros, mas passam sobretudo a ter em conta
a escrita, entre o desenho e a escrita, sobre o desenho da escrita e a elaborar critérios que a cada um desses componentes corres-
os aspetos gráficos da escrita e sobre as que tornam uma série de letras passíveis de ponde uma letra específica, a qual representa
relações entre o oral e o escrito. Ao longo transmitir uma mensagem. Quando escre- cada um desses segmentos. Esta perceção
Numa investigação de Santos e Alves Martins com crianças de 5 anos que têm tido um letra é que eu vou pôr aqui: a Carlota acha que
(2011) em que foram analisadas as práticas de impacto muito positivo na forma como as é um P, o Hugo um H, a Teresa um T, a Inês
literacia de um grupo de educadoras de infân- crianças evoluem nas suas conceções sobre a um I. E agora?”
cia verificou-se que havia uma relação entre linguagem escrita (Alves Martins, Salvador & Carlota: “É um P, eu sei mesmo de verdade
a forma como as educadoras valorizavam e Albuquerque, 2014; Alves Martins, Salvador, que é um P.”
apoiavam as tentativas de escrita e de leitura Albuquerque & Fernandéz, 2017; Salvador, Al- Adulto: “Podes explicar aos outros meninos
das crianças, criando oportunidades para as buquerque & Alves Martins, 2013). como pensaste?”
crianças pensarem sobre a escrita individual- Nestes programas de natureza experimental, Carlota: “Porque olha, ouçam lá: pena, pe-na,
mente, a pares ou em pequenos grupos com a desenvolvidos ao longo de 10 sessões bisse- Pê, Pê, Pê, portanto é com o P.”
sua ajuda, e as formas como as crianças eram manais de cerca de 15 minutos cada, é propos- Adulto: “É? E o que é que vocês acham, que
capazes de escrever. Nas salas de jardim de to a grupos de quatro crianças que escrevam letra é que vocês acham?”
infância observadas em que a frequência des- algumas palavras. Para tal, devem pensar nas Teresa: “É mesmo o P.”
te tipo de práticas educativas era menor as letras a escrever, discutir e argumentar qual a Adulto: “E a Inês e o Hugo, o que é que
crianças de 5 anos chegavam ao final do ano melhor opção até chegar a um consenso, ditar acham?”
letivo produzindo escritas em que não havia ao adulto quais as letras a escrever. O adulto, Inês e Hugo: “Podes escrever o P.”
relação com a linguagem oral; por sua vez, as para além de escolher a ou as palavras a es- Este tipo de interações entre as crianças e
crianças das salas em que as educadoras mais crever, medeia as interações entre as crianças, de ajudas promovidas pelo adulto ligando
desenvolviam este tipo de práticas chegavam vai chamando a sua atenção para os sons das novas ideias, capacidades e competências, a
ao final do ano produzindo escritas em que palavras, leva as crianças a fazer descobertas ideias, capacidades e competências que as
havia relação com o oral, nomeadamente es- servindo-se das letras que conhecem, nomea- crianças possuíam anteriormente, permitem
critas silábico-alfabéticas e alfabéticas. damente as dos seus nomes, está atento para agir na sua zona de desenvolvimento proxi-
Se as crianças participarem em situações de que todas as crianças participem, explicitem mal (Vygotsky, 1935/1977) e contribuir para o
interação com outras crianças e adultos em o seu pensamento e deem explicações umas desenvolvimento das crianças.
torno da linguagem escrita, da linguagem oral às outras. Num segundo momento, leva as O impacto destes programas na evolução das
e das relações entre linguagem oral e lingua- crianças a confrontar a escrita produzida com conceções das crianças sobre linguagem es-
gem escrita, conseguem perceber a lógica das a escrita correta da palavra feita por outro crita no jardim de infância e na aprendizagem
unidades que são representadas pela escrita grupo de crianças e a pensar nas semelhanças da leitura e da escrita no 1º ano de escolarida-
e aproximar-se da compreensão do princípio e nas diferenças. de tem sido muito significativo (Albuquerque
alfabético (Adams, 1998; Teberosky & Colo- Apresenta-se seguidamente um pequeno ex- & Alves Martins, 2016), pelo que a sua adap-
mer, 2003). certo de uma 1ª sessão de um programa em tação para contextos de jardim de infância
As situações de leitura e de escrita em cola- que se pediu que fosse escrita a palavra Pena. parece ser uma via promissora a explorar.
boração são promotoras do desenvolvimento Adulto: “Como vamos fazer para escrever a Nestes contextos, podem ser criadas situa-
da literacia tal como foi demonstrado por di- palavra pena?” ções de interação entre as crianças sobre a
versos autores que chamaram a atenção para Carlota: “P, um P, um P.” escrita, a propósito de um trabalho que está a
a importância de se promoverem situações Adulto: “A Carlota acha que é um P primeiro. ser desenvolvido, tendo o educador um papel
de escrita e leitura partilhadas com colegas E o Hugo?” fundamental na gestão das interações entre
e adultos (Pontecorvo, 2005; Pontecorvo Hugo: “Acho que é um… Não sei.” as crianças e no tipo de ajudas que considera
& Fabretti , 2003), escrita simultânea de um Adulto: “Então pensa lá. Qual é que é a pala- adequadas ao grupo de crianças. Apresen-
mesmo texto (Mata, 1991; Teberosky, 1987), vra pe-na?” tam-se dois exemplos:
escrita de uma criança apoiada pelos pares Hugo: “H acho que é um H!” Numa sala de jardim de infância de crianças
(Teberosky, 1987) e escrita em pequeno grupo Adulto: “E tu, Teresa, que letra é que achas de 5 anos, num contexto de estudo sobre os
mediada pelo adulto (Ouellette et al. 2008; que é primeiro?” dinossauros.
Vegas, 2004). Teresa: “Um T.” Beatriz: “Olha, dinossauro tem quatro bocadi-
Referiremos a este propósito trabalhos de Adulto: “E a Inês, o que é que acha?” nhos di-no-ssau-ro.”
investigação sobre programas de escrita em Inês: “Um I.” Educadora: “Pois tem, Beatriz, tem quatro
pequeno grupo desenvolvidos em Portugal Adulto: “E agora pensem lá todos melhor que sílabas. E sabes mais alguma coisa sobre a
Contributos para a definição de um espaço ambíguo “de um entre três – as educação humanista e progressista. Foca-
pedagogia em educação de infância ações as teorias e as crenças – numa trian- liza-se no todo (wholeness) e evita excluir
O conceito de pedagogia em educação de gulação interativa constantemente renova- qualquer aspeto significativo da experiência
infância tem sido utilizado indistintamente da” que se sustenta “numa práxis, isto é, humana. O foco principal desta abordagem
como sinónimo de currículo, prática, ensino numa ação fecundada na teoria e susten- é a interconexão (interconnectedness) entre
ou aprendizagem (Siraj-Blatchford, Sylva, tada num sistema de crenças”. No entan- a experiência e a realidade. Afirma-se que
Muttock, Gilden & Bell, 2002). Num texto to, como esclarece a autora, “os saberes todas as realidades do universo se relacio-
que procura reconstruir o conceito de peda- pedagógicos criam-se na ambiguidade de nam entre si. Tudo o que existe se articula
gogia, Watkins e Mortimore (1999: 3) defi- um espaço que conhece fronteiras, mas num contexto de interconexão e significado
nem pedagogia como a “atividade conscien- não as delimita, porque a sua essência está e uma mudança ou acontecimento afetará
te de uma pessoa para facilitar a aprendiza- na integração” (2007c: 16). Nesta linha de cada um dos elementos que se relacionam.
gem de outra”. Esta ideia centra o conceito pensamento, a pedagogia não existe sem Isso significa que o conjunto é composto de
de pedagogia no valor da aprendizagem em a práxis e é nela que se vivifica e renova. padrões relacionais que não estão contidos
ligação com os diferentes elementos que Esta conceptualização assume as conexões nas partes e, por isso, um fenómeno não
intervêm no processo. Para Moss e Petrie entre o que se pensa sobre a educação, pode ser entendido isoladamente (Miller,
(2002) a pedagogia deve ser uma aborda- a forma como se educa e as perspetivas 2000). Assim, podemos sublinhar que esta
gem relacional e holística, uma vez que a teóricas onde se fundam as ações, relacio- perspetiva contraria as visões fragmenta-
ação do pedagogo se destina à criança nando a educação das crianças, a ação dos das, que marginalizam diversas formas de
como um todo – a criança com corpo, men- profissionais, as interações com a família e expressão da criança e as visões redutoras
te, emoções, criatividade, história e identi- a comunidade, os valores que sustentam as do saber e da aprendizagem, para se afir-
dade social. práticas e as conexões entre o mundo social mar num conceito de práxis enquanto in-
Outro importante contributo conceptual é e o mundo natural. tencionalidade prática para a mudança e
proposto por Paulo Freire (1996), que suge- Todas estas definições de pedagogia desta- num compromisso ético com a ação (Elliott,
re que a pedagogia é um meio de ler o mun- cam a totalidade da criança e a intercone- 2010).
do, dialogar, escutar e conscientizar. Esta xão entre as diferentes dimensões e atores Neste sentido, a visão holística em educa-
conceptualização apresenta uma mudança do processo educativo, do qual resulta o ção de infância incorpora diferentes instân-
na ênfase da pedagogia de sentido único carácter holístico da educação das crianças. cias que se interconectam entre si: a criança
para a pedagogia da interação, onde se par- como um todo, os profissionais, as famílias,
tilham maneiras de ver, ouvir, questionar e Princípios da pedagogia holística: a comunidades, as múltiplas dimensões da
dialogar (Freire, 1996). Este entendimento a globalidade, interconectividade, realidade e os processos de educar e apren-
sobre a pedagogia é sustentador de práti- inclusão e equilíbrio der.
cas democráticas, onde tanto os educado- O movimento da pedagogia holística consti- Nesta perspetiva caracteriza-se também
res como as crianças expressam opiniões e tui-se como uma resposta às pedagogias de por ser inclusiva em dois sentidos. Num
são escutados. Trata-se da pedagogia dos sentido único, mecanicistas, fragmentadas, primeiro sentido, a educação holística res-
relacionamentos, enfatizada por Loris Ma- que valorizam a dimensão cognitiva e racio- peita a diversidade cultural, celebrando as
laguzzi (2008), segundo a qual as crianças nal, adotando uma perspetiva do mundo diferenças entre as crianças e aceitando-as
são entendidas como ativamente envolvi- que visa a transformação das fundações da como pontos de partida para uma ação que
das na coconstrução do conhecimento, das educação. Neste sentido, uma perspetiva valoriza a todos e a cada um. Num segun-
identidades próprias e das dos outros (Da- holística da educação não pode ser definida do sentido é inclusiva, porque pensa em
hlberg, Moss & Pence, 2003). como um método ou uma técnica especí- estratégias que respondam à diversidade
Segundo Oliveira-Formosinho (2007c: 16), a fica. Deve, antes, ser entendida como um e apoiam todas as crianças de forma dife-
pedagogia organiza-se em torno dos sabe- paradigma, como um conjunto de princípios renciada no esforço de ser e de se tornar
res que se constroem na ação situada, em e pressupostos que podem ser utilizados de (Miller, 2000).
articulação com as conceções teóricas (teo- diversas formas (Miller, 1992). No esquema Inclui ainda a ideia de equilíbrio (balance)
rias e saberes) e com as crenças (crenças, 1 sintetiza-se a ideia de pedagogia holística. entre os diferentes aspetos que caracteri-
valores e princípios). A pedagogia é, assim, A pedagogia holística tem as suas raízes na zam as pessoas, intelectual, físico, espiri-
Figura 1. Pedagogia holística em educação de infância entre esses polos em interação e os con-
textos envolventes (Oliveira-Formosinho,
2007b, p.15).
INTRODUÇÃO
Amadeo de Souza-Cardoso foi um pintor
português do século XX, reconhecido nos
meios de vanguarda da época, mas sem a
devida valorização no seu país de origem.
Foi reconhecido tardiamente, quando já a
história da arte se encontrava escrita, o
que torna crucial a importância de mostrar
e divulgar a sua obra.
O projeto teve a intenção de apresentar
o pintor português às nossas crianças e
mostrar-lhes como ele foi “um grande en-
tre os grandes”, tendo-o a sua morte pre-
coce, aos 30 anos, afastado dos livros de
arte internacionais. Não viveu o suficiente
para conseguirmos fazer a comparação,
mas poderia ter sido o “nosso Picasso”.
Amadeo tinha um espírito jovem, foi um
grande artista, numa altura frágil de um
país pequeno. Tinha uma personalidade
complexa, de grande instabilidade emocio-
nal, mas era fervoroso na sua manifesta-
ção artística.
Na exposição do Museu de Arte Contem-
porânea do Chiado, em 2016, o que vimos obras de Amadeo de Souza-Cardoso no de educação passou a dar vida ao tempo
seria o mesmo que foi visto em 1916? A Museu de Arte Contemporânea do Chiado. consagrado às expressões naquela turma.
maneira como observamos as coisas será a Assim, lancei a proposta de conhecermos Iniciámos deste modo o projeto em articu-
mesma de há 100 anos atrás? Por que ten- um pintor português, da primeira geração lação com o 3º B.
taram maltratar os quadros de Amadeo? de pintores modernistas portugueses. O Em primeiro lugar registei num quadro o
Que influências artísticas obtivemos para grupo achou a ideia interessante e inscre- que as crianças já sabiam, o que queriam
a arte de hoje? veram-se no quadro dos projetos. saber, onde iriam procurar e quem fazia o
Uma coisa é certa, o nome de Amadeo é Ao mesmo tempo que decorria este tra- quê. No final do projeto voltámos a este
sinónimo de artista. balho na sala 1 do JI, os alunos do 3.º B, quadro para registar o que aprenderam.
E os nossos pequenos grandes artistas após uma visita de estudo à exposição de Em segundo lugar veio a pesquisa. Depois
têm urgência de o conhecer. Amadeo de Souza-Cardoso no Museu de do registo, conversámos e procurámos na
Arte Contemporânea do Chiado, encon- biblioteca alguns livros relacionados com o
1. O PROJETO travam-se também a iniciar um projeto tema (foto 2). As crianças pesquisaram em
As crianças da sala 1 do JI já conheciam sobre o artista. Este trabalho foi dinami- casa em conjunto com os pais e trouxeram
dois pintores: Matisse, do expressionismo zado pela mãe de um aluno dessa turma, documentação, livros e alguns materiais
francês, e Rembrandt, do renascimento que é pintora e professora universitária. que viriam enriquecer o projeto.
holandês. Havia então uma exposição com Durante várias semanas, esta encarregada Na reunião de grande grupo, as crianças
O que já sabemos O que queremos saber Onde vamos procurar Quem faz o quê O que aprendemos
C. — Gostei de pesquisar porque quase to- entender o espaço e estrutura de a ter iniciativa para fazerem as suas
dos pesquisaram e aprendemos muito. uma exposição de arte; próprias descobertas;
E. — Eu gostei porque quase todos os meni- conhecer ao vivo vários quadros de a expressar as suas opiniões;
nos fizeram o trabalho em equipa. um mesmo artista – a sua obra; a resolver problemas;
T. G. — Gostei de estar lá no Amadeo. perceber a linguagem plástica do pin- a persistir na execução das tarefas;
H.— Gostei de fazer a comunicação. tor; a colaborar com os outros;
V. — Gostei que todos falassem devagarinho. a partir da observação de uma foto- a desenvolver a criatividade;
S. — Foi difícil fazer os desenhos da comuni- grafia de Amadeo de Souza-Cardoso a ser curiosas e a gostarem de apren-
cação porque demorou um bocado de tem- no seu ateliê, perceber o espaço de der.
po. Foi bom porque aprendemos mais coisas trabalho – o ateliê. Ao mesmo tempo que a criança faz a ob-
do que nós pensávamos. A articulação do trabalho com alunos de servação e o registo que lhe permite ava-
diferentes idades promoveu a autonomia, liar, questiona e reflete sobre o que foi
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS o sentido de responsabilidade e a autoes- feito. Assim, torna-se possível melhorar
Pretendeu-se com a ida dos alunos do 3.º B tima das crianças. Os alunos mais velhos e adequar as nossas ações para atingir o
e das crianças da sala 1 do Jardim de Infân- sentiram-se responsáveis por tentar adqui- currículo. (não gosto muito) eu diria antes
cia da Escola Básica Manuel Beça Múrias em rir mais conhecimentos para os transmiti- “para o desenvolvimento holístico/integral
Oeiras ao Museu Nacional de Arte Contem- rem aos mais novos, ao mesmo tempo que da criança”.
porânea do Chiado: estes sentiram orgulho em partilhar o que
proporcionar-lhes novas experiências aprenderam e que, provavelmente, os cole-
e desenvolver a sua sensibilidade es- gas mais velhos não saberiam.
tética; O trabalho de projeto leva as crianças:
universidade, onde tenho uma dupla função: se demitam do seu papel de adultos respon- salas, em brincadeiras dirigidas por elas, sem
no jardim de infância e a dar aulas de mes- sáveis e capazes, estruturando os dias de intenção de introduzir materiais específicos;
trado e doutoramento no programa de Art forma cuidadosa e pensada. Pelo contrário, começo por conversar com os educadores
& Art Education, onde também supervisiono um currículo emergente exige educadores de cada sala para perceber os interesses de
estagiários em salas de arte em vários níveis atentos, responsivos e capazes de ouvir e cada criança e do grupo e deixar que essas
de ensino (desde o jardim de infância até ao mostrar empatia, com uma sabedoria imensa observações inspirem os primeiros materiais
12.o ano) em várias escolas públicas e priva- em termos de materiais, desenvolvimento e a oferecer. Esta atitude continua ao longo
das na cidade de Nova Iorque. O jardim de formas de relacionamento. do ano e os materiais que ofereço são ba-
infância serve famílias afiliadas com a univer- O programa de arte segue o mesmo currícu- seados em condições contextuais, seja inte-
sidade – alunos, funcionários ou professo- lo emergente: em vez de delinear um projeto resses específicos que os alunos expressam
res. Com apenas três salas (bebés, crianças que as crianças têm de seguir, é delas que ou em oportunidades que se apresentam.
dos 1 a 3 anos e dos 4 aos 5), é uma escola vêm as ideias a que respondo (Cabral, 2018). O trabalho que fazemos com materiais
pequena, com um máximo de 40 crianças Muitas vezes trabalho com as crianças em como polpa de papel ou vidro pode servir
dos 0 aos 5 anos. É uma escola baseada pequenos grupos nas salas ou no estúdio. como exemplo deste processo: nenhuma
no brincar com um currículo emergente. Isto Outras vezes trabalho com todo o grupo nas das crianças me pediu especificamente para
significa que a atividade mais importante e a salas. Que nas salas, quer no estúdio, o meu trabalhar com polpa de papel, um material
brincadeira livre: em todas as salas, a maior trabalho começa por oferecer. Apesar de a que não fazia parte dos seus repertórios de
parte do dia é passada em brincadeira lidera- variedade ser imensa, é importante começar conhecimento e com o qual nunca tinham
da pelas crianças na sala, no parque público por limitar a quantidade de materiais dispo- lidado. No entanto, eu ofereci-o. Aprovei-
onde as crianças brincam quase todos os níveis e ajudar as crianças a começarem a tando a visita de uma artista convidada para
dias ou noutros espaços do campus. Isto não conhecer cada material de um modo explo- trabalhar com papel com os meus alunos de
significa, no entanto, que as crianças sejam ratório. No início do ano letivo, começo por mestrado e doutoramento, preparei uma
deixadas ao deus-dará e que os educadores passar tempo a brincar com as crianças nas visita das crianças ao estúdio de escultura
escola, e no último quis estudar um programa pensar as nossas escolhas e as escolhas que
específico desenvolvido em algumas esco- oferecemos aos nossos alunos. Só assim,
las secundárias do país – porque “educação oferecendo aos nossos alunos a liberdade e
é educação e educação de infância tem que o apoio de que precisam para serem eles pró-
ser vista em contexto”. A Teresa Vasconcelos prios, podemos fazer o mesmo por nós mes-
recebeu-me quando se mudou para o ME e mas, já que, como nos lembra Maxine Gree-
lhe fui bater à porta do novo gabinete com ne, “só um(a) professor(a) em busca da sua
perguntas, e a investigação que fiz como par- própria liberdade é que pode despertar nos
te da sua equipa mostrou-me que pesquisar é jovens a vontade de procurarem a sua própria
fundamental na minha vida profissional e que liberdade” (Greene, 1988, p. 14).
questionar o mundo é componente essencial
da educação.
A minha orientadora de mestrado, Isabel Lo-
pes da Silva, fê-lo tratando-me como colega,
respeitando as minhas ideias, sempre com REFERÊNCIAS
rigor académico. Não que as minhas ideias Burton, J. M. (2000). The configuration of meaning:
seguramente inocentes e pouco sofisticadas learner-centered art education revisited. Studies in Art
Education, 41(4), 330–345.
e amigos. Sendo estas atividades baseadas fossem algo de novo para ela; mas, dando-me Cabral, M. (no prelo, 2018). Fighting the Mad King: play,
em materiais com os quais as crianças estão espaço para as discutir e pensar, ensinou-me art, and adventure in an early childhood art studio. In
familiarizadas, são elas quem orienta as visitas que mais do que “ensinar conceitos” o meu C. M. Schulte & C. M. Thompson (Eds.), Communities
– adultos e crianças – na exploração. trabalho é ajudar a descobri-los – às vezes of practice: Art, play, and aesthetics in early childhood.
Num contexto de aniversário e celebração da em conversa, às vezes com materiais, às vezes New York: Springer.
Cabral, M. (no prelo, 2018). Stories, stuff, and what we
APEI e dos profissionais de educação de in- apenas saindo do caminho e dando aos meus do with them. In J. Lampert & F. Duzzo (Ed.), Conversas
fância que são os seus associados e amigos, alunos espaço para o construir. O seu apoio Pictóricas. Florianópolis: Editora Udesc.
resta-me agradecer e reconhecer as educado- tem sido fundamental ao longo dos anos e Cabral, M. (2016a). Coisas partidas podem ser bonitas.
ras que, ao longo dos anos, me têm ajudado trabalhar com ela marcou definitivamente a Crianças pequenas exploram e brincam com a arte. Lis-
a fazer o meu caminho, andaimando (Vascon- minha vida profissional. boa: APEI Associaçāo dos Profissionais de Educaçāo de
Infância.
celos, 1997) as minhas descobertas e escolhas As minhas orientadoras de doutoramento, Cabral, M. (2016b). Art makes us happy. Young children
tal como eu tento fazer para as crianças e Olga Hubard e Susan Recchia, foram fun- explore materials and ideas. Brooklyn, NY: PaperStar.
adultos com quem trabalho. Por me ajudarem damentais na forma como guiaram a minha Cabral, M. (2015a). Story, not Gadget. Digital Media as
a construir as minhas ideias deixando-me ter investigação junto com a minha prática edu- Art Materials and Curatorial Tools in Early Childhood Art
as minhas próprias ideias, perseguir os meus cativa e o meu trabalho no estúdio. No jardim Education. International Journal for Infonomics (IJI),
8(4), 1084-1090.
interesses de forma guiada mas não contro- de infância que dirige e onde eu trabalho, a Cabral, M. (2015b). Artists, curators, and museum educa-
lada. Todas elas trabalharam no terreno, em Susan foi fundamental ao dar-me o espaço, tors: children as part of an artmaker’ community. Pre-
salas de jardim de infância e/ou universidades, apoio e desafios necessários para me ajudar a sented at the END International Conference on Educa-
e me ensinaram que práticas educativas de aprender o que um currículo emergente pode tion and New Developments, Porto, Portugal.
qualidade como as suas são independentes significar, e que play-based é muito mais do Cabral, M. (2014). “We are those artist people!” Connec-
tivity and Artistic Explorations in Early Childhood Educa-
de graus de ensino e reconhecíveis em qual- que “brincadeira livre em 30 dos 480 minutos tion. In E. Lanphar & P. Fitzsimmons (Eds.), Connectivity
quer circunstância. do dia de escola”. across Borders, Boundaries and Bodies: International
Na Escola Superior de Educação de Lisboa, as Estas vidas profissionais são vidas de edu- and Interdisciplinary perspectives (pp. 43–49). Oxford-
professoras Teresa Vasconcelos e Conceição cadoras como nós, independentemente do shire, UK: Inter-Disciplinary Press.
Moita fizeram-no ao mostrar-me diferentes contexto ou grau de ensino. São vidas profis- Ellsworth, E. A. (2005). Places of learning : media, archi-
tecture, pedagogy. New York: RoutledgeFalmer.
perspetivas em educação de infância, ao dizer sionais que ensinam e educam e cabem num Greene, M. (1988). The dialectic of freedom. New York:
“sim” quando no meu primeiro ano de bacha- artigo do mesmo modo que uma qualquer Teachers College Press.
relato quis explorar um modelo pedagógico teoria pedagógica lá tem lugar – porque, de Vasconcelos, T. (1997). Ao Redor da Mesa Grande. A
que não estava “na lista” dos estudados na um modo ou de outro, nos inspiram e fazem prática Educativa de Ana. Porto: Porto Editora.
Introdução
No âmbito do Dia Mundial da Erradicação
da Pobreza, as crianças da sala 1 de jardim
de infância do Centro de Actividade Infantil
de Évora (CAIE), maioritariamente de 4 anos,
inquietaram-se ao descobrirem a carência de
materiais e alimentos em algumas famílias,
destacando-se a preocupação por nem todas
as pessoas terem a possibilidade de morar
numa casa. Em conversa de grande grupo
discutiram-se ideias para habitações de cons-
trução económica. A estagiária da Universida-
de de Évora (UE) recordou um muro em terra
(taipa) visto numa exposição de arte e o grupo
concordou que poderia ser um tipo de cons-
trução a utilizar para que pudesse haver “uma
casa para todos”. Surgiu assim o projeto que
iremos relatar e que visou investigar, planear
e experimentar formas de habitação susten-
táveis, tendo por base o recurso a matérias-
-primas naturais utilizando a técnica da taipa.
Para além da relevância pedagógica e das
aprendizagens que o trabalho de projeto uma
vez mais trouxe ao grupo, não podemos dei- grande implicação de todos os participantes, mais-valia para o desenvolvimento intelec-
xar de evidenciar a valorização e a mais-valia envolvendo trabalho de pesquisa no terreno, tual das crianças no sentido em que “poderá
do trabalho de equipa, desenvolvido neste tempos de planificação e intervenção com a criar ambientes propícios à iniciação do pen-
caso específico, entre a aluna estagiária do finalidade de responder aos problemas en- samento científico e à linguagem específica
mestrado em Educação Pré-escolar da UE, a contrados” (Leite, Malpique e Santos, citados [das diferentes áreas do conhecimento], mas
educadora e auxiliar da sala e a coordenadora por Vasconcelos et al., 2012, p. 10)2 que irá fa- também contribuir para o desenvolvimento
pedagógica do CAIE. Num clima de entreaju- vorecer o esclarecimento de dúvidas e curiosi- da linguagem, numa perspetiva de literacia
da e cooperação, tendo por base este projeto dades iniciais e/ou novas que surjam em todo linguística” (Ramos & Valente, 2011, p. 17)3, o
apresentámos uma candidatura ao Concurso o processo de trabalho. que as levará a estarem mais despertas para
“Ciência na Escola”1, posteriormente premiada A resolução de problemas é constante, uma “tarefas de observação e investigação de fac-
na fase de concurso de ideias com o Prémio vez que são percorridos diversos caminhos tos retirados da sua experiência do quotidia-
de Desenvolvimento. partindo das hipóteses lançadas, que levam no e do seu meio ambiente” (Katz & Chard,
a criança a refletir até se chegar a uma so- 2009, p. 3)4.
O trabalho por projetos lução final. No caso específico deste projeto É também determinante o papel que o edu-
O trabalho por projetos é visto como uma me- consideramos ainda fundamental o facto de cador assume em todo o processo desta
todologia que permite que as crianças desen- ajudar as crianças a encontrar um sentido metodologia. Como refere o Perfil Específico
volvam temáticas do seu interesse, centradas para o mundo que as rodeia, tendo por base do Desempenho Profissional do Educador de
num objetivo que elas mesmas pretendam a sustentabilidade. 3 Ramos, M. M. S. & Valente, A. C. (2011). Iniciação à
alcançar e aprofundar. Uma vez assumida A metodologia de trabalho por projeto é uma Ciência através da Metodologia de Trabalho de Pro-
em grupo, esta metodologia “pressupõe uma jecto – Um contexto privilegiado para o desenvolvi-
2 Vasconcelos, T., Rocha, C., Loureiro, C., Castro, J. d., mento da linguagem no pré-escolar. Da Investigação
1 14.ª edição do Concurso “Ciência na Escola” subor- Menau, J., Sousa, O., et al. (2012). Trabalho por Proje- às Práticas, I (2), 2-16.
dinado ao tema “Ciência e Tecnologia ao Serviço de tos na Educação de Infância: Mapear Aprendizagens 4 Katz. L & Chard S. (2009). A Abordagem por Projetos
um Mundo Melhor”, promovido pela Fundação Ilídio Integrar Metodologias. Lisboa: Ministério da Educa- na Educação de Infância.(2ª ed.). Lisboa: Fundação
Pinho. ção. Calouste Gulbenkian.
Infância (2001)5 é fundamental que “o edu- é dado às crianças para fazerem as suas pró- várias crianças descreveram, com entusiasmo
cador de infância mobilize o conhecimento prias escolhas de forma ponderada e para ex- e sensibilidade, situações que já tinham ob-
e as competências necessárias ao desenvol- perimentarem sentindo sempre que têm um servado e o que já sabiam acerca da pobreza.
vimento de um currículo integrado, no âm- papel preponderante e ativo ao longo de todo Grande parte do grupo demonstrou muito in-
bito da expressão e da comunicação e do o projeto. teresse pelo assunto, pois as perguntas que
conhecimento do mundo” e é neste sentido faziam eram muitas, dando origem a uma sé-
que consideramos que o diálogo ganha uma Definição do problema rie de atividades como pesquisas em livros e
importância significativa enquanto ferramen- Como já referimos, a situação que desenca- na internet, visitas a instituições que apoiam
ta de trabalho por incentivar as crianças a ex- deou o projeto foi a Comemoração do Dia da pessoas carenciadas e sobretudo originando
primir e expor as suas ideias, alavancando a Erradicação da Pobreza, em que em grande o projeto “Uma casa para todos”, no qual o
interação com o educador e com os colegas. grupo as crianças foram questionadas sobre grupo decidiu fazer a maquete de uma casa
Desta interação diária decorre que o currículo o que sabiam sobre a pobreza, o que originou sustentável.
seja trabalhado de forma transversal, pois um um diálogo interessante registado nas notas
assunto abordado em determinada conver- de campo da estagiária: Planeamento e lançamento do trabalho
sa, nas partilhas de vivências e curiosidades “É não ter comida” (Rita, 4:3). O projeto da construção de uma casa de ter-
que são suscitadas no diálogo, pode originar “Também é não ter roupa e andarem descal- ra surgiu, como referimos, pela curiosidade/
um maior interesse por aprender sobre um ças” (Margarida, 4:5). questionamento que algumas crianças de-
determinado assunto. Nesse interesse está “As pessoas pobres vão à rua nuas?” (Miguel, monstraram durante a visualização de ima-
subjacente a provocação através do questio- 4:6). gens reais em torno da pobreza no mundo,
namento, as possibilidades que existem para “O Luís (um mendigo de Évora) vive na rua” constatando que havia pessoas que viviam na
se estabelecer uma negociação, o espaço que (Maria Inês, 4:7) rua ou em condições precárias. O interesse
5 Diário da República (2001). Decreto-lei n.º 241/2001, (Nota de campo de dia 11 de Outubro de foi ainda mais visível durante a visita à Asso-
de 30 de Agosto: Perfil específico de desempenho 2016) ciação Pão e Paz, quando algumas crianças
profissional do educador de infância. Na sequência destes e outros comentários, interpelavam o ambiente do espaço questio-
tas de terra e esse é um material económico uma casa com telhado e chaminé. No entan- Aparafusar tábuas à base: foi o momento em
que pode ser utilizado em qualquer parte e to, houve uma criança que desenhou uma que a maquete começou a tomar forma e por
por qualquer pessoa. casa de terra, com algumas das etapas da isso suscitou interesse no grupo. Contámos as
Antes de iniciarmos a construção da ma- construção visualizadas no vídeo. Depois de tábuas, classificámo-las por tamanhos e for-
quete da “casa para todos” tivemos ainda a mais uma conversa em grupo foi reafirmada a mas, contámos os parafusos e tivemos que
oportunidade de realizar uma série de ativi- intenção do grupo de construir uma maquete trabalhar cooperativamente (uns seguravam
dades, resultantes de propostas emergentes com a técnica de taipa e decidimos partir para tábuas, outros parafusos, outros aparafu-
e que iriam contribuir para o conhecimento a sua construção. savam). Nesta atividade houve uma grande
das crianças. Por exemplo, a modelagem em Com a ajuda do Pai Tiago, serrámos algumas participação das crianças que geralmente são
terracota (representações tridimensionais de tábuas com uma serra manual, pois pareceu- menos participativas. Pensamos que tal se
casas, exploração que permitiu trabalhar con- -nos fundamental que as crianças pudessem deveu à utilização de um recurso tecnológico
ceitos como a “proporção”, “tridimensional”, observar como se processa o corte da ma- (aparafusadora elétrica).
“horizontal”, “vertical”. deira. Contudo, devido à rigidez das tábuas, Encher, calcar e alisar o solo: esta foi mais
Outra proposta relevante foi a exploração de tornou-se difícil serrá-las, o que nos levou a uma atividade muito participada e em que
medidas convencionais e não convencionais. recorrer ao uso da serra elétrica, no local de o grupo manifestou muito interesse. Houve
Exploraram alguns instrumentos de medida trabalho do Pai Tiago. então a necessidade de dividir o grupo por
com o objetivo de compreenderem que a Esta atividade, que surge após a exploração diferentes tarefas: enquanto dois aplicavam
construção de uma casa implica alguns proce- prévia dos instrumentos de medição, permi- terra nas tábuas, outros quatro calcavam e
dimentos de medição. tiu às crianças aprofundarem o seu conheci- alisavam o solo. Quando se desinteressavam
Assim, seria menos abstrato entender qual o mento sobre quais os instrumentos próprios (era um pouco cansativo calcar com o pau de
tamanho dos materiais a que iríamos recorrer. para medir, como a fita métrica, constatarem madeira ao fim de um tempo), outras crian-
No seguimento desta exploração realizámos diferentes tamanhos em materiais concretos ças aproximavam-se, distribuindo-se assim as
ainda uma visita à Casa da Balança, o museu (maior do que, igual, menor do que) e asso- tarefas. Quando estavam cansados de calcar
de metrologia de Évora. ciarem a tarefa de medição às profissões que entravam em negociação com os colegas para
Através do acesso à internet e utilizando o existem na área da construção (arquitetos, trocarem de tarefas. Preencheram três cama-
computador, visualizámos imagens de maque- engenheiros, pedreiros). das com terra em três dias diferentes. Duran-
tes como uma possibilidade de construirmos a Já tínhamos os materiais preparados, mas te este processo, os diálogos foram muito
casinha usando como suporte uma base de precisávamos da opinião e conselho de um ricos (diferenças entre terra e cal; composição
madeira. Esta atividade originou conversas especialista. Por que não António Bolota? Pes- do solo; o que é a taipa, entre outros).
sobre as profissões de arquiteto e engenhei- quisámos o contacto do arquiteto/escultor, Elaboração do telhado e do chão: quando da
ro civil, que constroem maquetes muito se- enviámos-lhe um convite e, confessamos que visita do escultor António Bolota esclarece-
melhantes à construção real. No seguimento inesperadamente, recebemos uma resposta mos que ainda não sabíamos bem que ma-
visualizámos um vídeo sobre a construção de afirmativa. A visita de António Bolota para terial iríamos utilizar para forrar o telhado e
uma casa de terra. Foram observadas etapas conversar com o grupo acerca do seu traba- ele sugeriu-nos que seria boa opção fazê-lo
semelhantes às da técnica de taipa, mos- lho, das suas obras – em particular o muro da em barro. A sua construção implicou quatro
trando como o homem, de uma forma mais exposição “Cume” feito com a técnica de taipa etapas: colar e pressionar as várias tiras de
primitiva, recolhia terra para a construção de – enriqueceu o projeto na medida em que nos madeira que iriam sustentar o telhado, alisar
habitações. Nesta fase introduzimos a pala- deu dicas essenciais para sabermos se estáva- com o rolo a pasta de terracota (barro), cobrir
vra “sustentável”, que passámos a referir para mos a caminhar na direção certa. Com a sua o papelão com terracota espalhando-a com as
acrescentar mais reportório lexical e fazer a ajuda, aprofundámos o conceito de uma casa mãos e, por fim, marcar as formas das telhas.
ponte de ligação ao tipo de casa que iríamos sustentável para que as crianças percebessem Durante a construção do telhado, fomos con-
construir: uma casa sustentável. melhor o seu significado e a sua relevância tactados telefonicamente por António Bolota
Uma vez já explorada a constituição e cons- nos dias de hoje e no futuro da humanidade. com interesse em saber como estava a decor-
trução de casas, as crianças, através do de- Depois desta importante visita foi tempo de rer a construção da casa e este sugeriu-nos
senho, realizaram o seu projeto de casa. No- construir a maquete tendo como referência a cobrir o chão do interior da casa com terra e
támos que representaram maioritariamente construção em taipa: calcá-lo também. Partilhou que antigamente
Divulgação
Em grande grupo decidimos que a nossa ma-
quete seria mostrada às crianças das outras
salas de jardim de infância e ficaria exposta
para que a comunidade em geral a pudesse
ver e perceber o que se pretendia com este
projeto. Tivemos ainda a oportunidade de
apresentar este projeto no Conselho Eco-es-
colas e escrever uma carta ao presidente da
Associação de Juntas de Freguesia do Centro
Histórico de Évora a divulgar o projeto e a
pedir a sua colaboração/parceria para cons-
truir esta casa na nossa horta do centro his-
tórico, para que toda a população pudesse
ter acesso a um exemplo de casa sustentável
e acessível a todos. Enquanto isso não acon- aprender: “(…) a curiosidade é fomentada e interdependência entre as pessoas e entre
tece a nossa maquete encontra-se exposta alargada na educação pré-escolar através de estas e o ambiente. Assim, vão compreen-
na horta7, testando a resistência deste tipo oportunidades para aprofundar, relacionar e dendo a sua posição e papel no mundo e
de construção e estando disponível para a comunicar o que já conhece, bem como pelo como as suas ações podem provocar mu-
comunidade em geral. contacto com novas situações que suscitam danças neste. Uma abordagem, contextua-
a sua curiosidade e o interesse por explorar, lizada e desafiadora ao conhecimento do
questionar descobrir e compreender. A crian- mundo vai facilitar o desenvolvimento de
Relevância cientifico-pedagógica ça deve ser encorajada a construir as suas atitudes que promovem a responsabilidade
do projeto teorias e conhecimento acerca do mundo que partilhada e a consciência ambiental e de
Consideramos que, partindo do questiona- a rodeia.” sustentabilidade.”
mento sobre um problema social, foram abor- Ao explorarmos a temática da sustentabili- Durante as saídas realizadas e ao longo da
dados conteúdos relevantes do ponto de vista dade (económica, cultural/social e ambien- construção da maquete, foi sempre uma
científico-pedagógico. Para esta reflexão/ava- tal), este projeto tornou-se relevante ao nível questão central a influência do homem na
liação foi essencial basearmos a nossa análise da formação cívica, pois tem na sua génese paisagem de que forma as suas atitudes e
no documento que orienta a ação educativa valores como a educação para a igualdade, comportamentos influenciam o ambiente:
no pré-escolar, as Orientações Curriculares a solidariedade e a interdependência entre “Promovem-se assim valores, atitudes e com-
para a Educação Pré-Escolar8, nomeadamen- pessoas e estas e o meio ambiente: “A abor- portamentos face ao ambiente que condu-
te no que diz respeito à área do conhecimento dagem ao conhecimento do mundo implica zem ao exercício de uma cidadania consciente
do mundo. Assim, consideramos relevante: também o desenvolvimento de atitudes po- face aos efeitos da atividade humana sobre
A forma como estimulámos a curiosidade, o sitivas na relação com os outros, nos cuida- o património natural, cultural e paisagístico.”
interesse por explorar questionar descobrir e dos consigo próprio, e a criação de hábitos Diversificámos as fontes de informação e
de respeito pelo ambiente e pela cultura, pesquisa, facilitando o contacto com tecno-
7 A horta do CAIE situa-se num espaço cedido pela
autarquia no centro histórico de Évora. É um espaço evidenciando-se assim a sua inter-relação logias de informação e comunicação diversi-
visitado por outros jardins de infância e escolas bem com a área de formação pessoal e social. (...) ficadas (computador, vídeo, fotografia): “De
como pela comunidade em geral e turistas. Nestas suas explorações, vão percebendo a facto, hoje em dia, as crianças contactam
8 http://www.dge.mec.pt/ocepe/
gicos da Early Childhood Environment Rating A escala está organizada em 3 domínios — O projeto situa-se no contexto da formação
Scale – Revised (ECERS-R) (Harms, Clifford sustentabilidade social e cultural, sustentabili- inicial de educadores de infância e profes-
and Cryer, 2005), ou em português, da Escala dade ambiental e sustentabilidade económica sores do 1º CEB na Universidade de Évora,
de Avaliação do Ambiente em Educação de – que incluem um conjunto de descritores or- numa estreita colaboração com as institui-
Infância. ganizados numa escala de qualidade entre os ções cooperantes da cidade. Assume-se
A escala ERS-SDEC pode ser utilizada por pro- valores 1 e 7 sendo 1 - inadequado, 3 - mínimo, assim como um projeto de desenvolvimento
fissionais de educação de Infância para avaliar 5 - bom e 7 - excelente. profissional de estudantes, educadores/as e
e regular a implementação de um curriculum Uma análise de conteúdo dos descritores re- professores/as desenvolvendo a dimensão
na área da educação para o desenvolvimento vela que estes incidem sobre diversas temáti- investigativa da profissionalidade docente
sustentável e, assim, ajudar os educadores e cas associadas a cada dimensão do DS: baseada em processos de análise, reflexão e
as equipas a identificarem áreas prioritárias • Sustentabilidade social e cultural — Inclu- intervenção apoiados por instrumentos vali-
de intervenção. Ao ser utilizada por educado- são e diversidade; estereótipos / igualdade dados e promovendo práticas de qualidade
res na sua prática, a escala apoia e facilita a de oportunidades; género, etnia, orienta- na área da EDS.
observação e o desenvolvimento curricular ao ção sexual, religião; condição humana (o Desde o início em 2012 que estabelecemos a
permitir a identificação de prioridades e obje- que temos em comum); direitos humanos; equipa em parceria com três instituições com
tivos, bem como a gestão de mudanças nas interdependência; experiência na área da EDS — o Centro de
práticas. Este instrumento pode ser utilizado • Sustentabilidade ambiental — ambiente; Atividade Infantil de Évora, o Centro Infantil
para ajudar as equipas em conjunto a refle- beleza natural; água de qualidade; saúde Irene Lisboa e a Escola Básica Manuel Ferrei-
tirem sobre as suas práticas e a desenvolve- (práticas); cuidar de plantas e de animais; ra Patrício - que se constituíram como fonte
rem, em colaboração, formas de melhorar a proteção ambiental; de inspiração pelo seu trabalho nesta área.
sua qualidade sustentadas em processos de • Sustentabilidade económica — consumo Estas instituições tinham já na altura uma
investigação. de água, eletricidade, papel; custos; pou- prática explícita de EDS quer por serem Eco-
Se a escala for utilizada para comparar de al- pança; reciclagem; compra e venda, custo- -escolas, quer por assumirem no seu projeto
gum modo instituições ou salas, é necessário -benefício; carências económicas; apoio a educativo a centralidade do DS.
garantir a confiabilidade entre avaliadores. É famílias com menos recursos. A primeira fase do projeto (2012-13) centrou-
importante que os utilizadores reconheçam a Os descritores de cada domínio permitem -se no desenvolvimento da escala ERS-
necessidade de uma validação externa e que ainda analisar diversos fatores da qualidade -EDSEC e contou com a participação de
as suas avaliações podem necessitar de se- como: a qualidade dos espaços (condições es- docentes da Universidade — Maria Assunção
rajustadas colaborativamente. Este processo truturais) e o acesso; as políticas institucionais Folque e Vítor Oliveira, estudantes dos mes-
pode ser feito através de: formação para a expressas no Projeto Educativo e em regula- trados em Educação Pré-escolar e Educação
compreensão do modo de utilização da escala mentos; as práticas pedagógicas (ex: saídas, Pré-escolar e Ensino do 1º CEB durante a
e dos seus objetivos; formação e treino que conversas, projetos, cuidar de…, reciclar); a Prática de Ensino Supervisionada (PES) —
garanta uma interpretação comum da escala qualidade e disponibilidade de materiais; as Rita Mirador, Inês Rocha, Ana Batista, Vera
e dos seus descritores e critérios de qualidade interações entre adultos e crianças e o envol- Sezões, Ana Jordão, e educadoras cooperan-
(definições e diferenças culturais); em muitos vimento das famílias e da comunidade1. tes — Fátima Aresta, Cláudia Peças, Concei-
casos, o recorrer a um ‘amigo crítico’ pode ção Canivete, Susana Reis, Isabel Melo, Ana
ser benéfico no sentido de apoiar e validar o O projeto Construir a Sustentabilidade a Nunes. Durante esse ano fez-se a análise da
processo. partir da infância. 1ª versão da ERS-SDEC, realizaram-se entre-
Mais do que avaliar para comparar, este ins- Em Évora, a participação no projeto da OMEP vistas com as educadoras e foram acordadas
trumento tem como objetivo fundamental o foi o ponto de partida para um projeto mais propostas de revisão da escala para propor
de provocar o questionamento e a tomada de vasto que teve continuidade para além da à equipa internacional. Duas estudantes dos
consciência acerca do desenvolvimento sus- construção da escala ERS-EDSEC e que deno- mestrados utilizaram a escala em projetos
tentável nas suas diversas vertentes (cultural minámos Construir a Sustentabilidade a partir de investigação-ação que deram origem a
e social, ambiental e económica) e do papel da infância. dois relatórios de estágio, um centrado na
que a educação de infância pode ter para o sustentabilidade social e cultural (Mirador,
seu desenvolvimento. 1 OMEP ERS-SDEC em português em http://eceresour- 2013) e outro na EDS de forma geral (Rocha,
cebank.org/index.php?hCode=SCALE_03_01
Figura 3.Publicação do projeto Education for Figura 4. Logo do Seminário Internacional realizado a 11 de abril de 2015 em Évora
Sustainable Development Ratting Scale (Siraj-
-Blatchford, Mogharreban & Park, 2016)
dado se constitui também como uma apren- mundo natural e de lidar com o risco; a obe- uma pertença a uma rede de relações que cui-
dizagem explícita nas OCEPE para as crianças sidade infantil; a conflitualidade baseada em dam e são cuidadas e que partilham recursos
“…cuidados com os mais novos, apoio dos preconceitos; a falta de tempo para conversar na busca de uma igualdade de acesso a bens
mais velhos” (p.28) e especificamente inter- sobre assuntos significativos, a dificuldade de comuns; a segunda ideia centra-se no empo-
ligando a área do conhecimento do mundo acesso a recursos básicos que deixam algu- deramento (empowerment) das crianças para
com a área de formação pessoal e social. mas crianças em situações de vulnerabilidade, a resolução de problemas, quer sejam de na-
“A abordagem ao Conhecimento do Mundo a degradação ambiental, etc.). Isto significa tureza pessoal ou social, ou ainda de natureza
implica também o desenvolvimento de atitu- que a ação educativa se exerce num contexto ambiental ou económica.
des positivas na relação com os outros, nos amplo que extravasa as paredes da sala e com
cuidados consigo próprio, e a criação de há- uma rede de sustentação para que as crianças A criança no espaço público e a utilização
bitos de respeito pelo ambiente e pela cultu- possam sentir e afirmar: partilhada de recursos
ra, evidenciando-se assim a sua inter-relação Sim, nós cuidamos! Sim, nós podemos! Yes Temos assistido a um afastamento das crian-
com a área de Formação Pessoal e Social.” we care! Yes we can! ças do espaço público por via de uma crescen-
(ME, 2016, p. 85). Daremos conta, seguidamente, de algumas te preocupação de adultos com a segurança
Por outro lado, queremos realçar o facto de as práticas desenvolvidas nas instituições em infantil. Além disso, à medida que os carros
OCEPE assumirem uma perspetiva sistémica e Évora e que exemplificam algumas das ideias ocuparam progressivamente o espaço público
ecológica que nos dias de hoje ganha novo centrais da EDS e que, apesar de não serem das cidades, as restrições à sua utilização pe-
significado. Assumindo claramente o trabalho novas, ganham renovados sentidos nos quo- los peões aumentaram, restringindo a fruição
com as famílias e a comunidade como central tidianos das instituições educativas por vezes dos equipamentos. Apesar de haver já uma
e a necessidade de se reconhecer as caracte- instalados em rotinas estéreis. A escolha des- consciência considerável desta questão em al-
rísticas do mundo atual e da qualidade de vida te conjunto de práticas não dá conta de todo guns países ou cidades, em Portugal este ain-
das crianças para assumir o/a educador/a o trabalho desenvolvido no projeto no senti- da é um problema que afeta a vida das crian-
como um/a profissional que responde aos do da EDSEI mas realça duas ideias chave: a ças e sua participação nos espaços públicos.
desafios presentes, como: a diminuição das primeira tem a ver com a presença da criança O Centro de Actividade Infantil de Évora –
oportunidades de brincar e de relação com o no espaço público como requisito básico de CAIE é uma IPSS situada num edifício de tra-
Os conselhos
As reuniões de conselho são uma componen-
te fundamental da organização quotidiana do
modelo pedagógico do Movimento da Escola
Moderna2, modelo este que procura viver com
as crianças na escola uma cidadania democrá-
tica que nos acrescente em humanidade.
O dia no Jardim de Infância da EB Manuela
Ferreira Patrício começa com o acolhimento
das crianças em conselho e é aí que o grupo
partilha as suas vivências, os seus questiona-
mentos, os seus desejos, os seus modos de
ser e de fazer, as suas condições familiares e Figura 5. Utilização dos espaços verdes da cidade
o modo como veem o mundo em que vivem
(figura 6). O tempo de conselho é um tempo
para o diálogo sério e sensível, aberto a dife- de confrontarem os seus pontos de vista, Quando as crianças têm dificuldade em re-
rentes perspectivas. Aqui surgem oportunida- de identificarem as possíveis razões para solver os seus conflitos são encorajadas a
des para se conversar sobre os mais diversos tal acontecimento (“já não chove há muito escrever na coluna do Diário “Não gosta-
assuntos da vida que envolvem preconceitos tempo....”) a educadora desafiou as crianças mos” e a adiar até à “Reunião do Conselho
(ex: os rapazes e os bebés: atividades, roupas a pensarem-se enquanto agentes de mudan- da Sexta-feira” a discussão sobre o inciden-
e comportamentos de meninos e meninas; ci- ça: “O que podemos fazer?” Logo cada um, te. Na reunião e com o apoio do Diário, as
ganos e terroristas: bons ou maus?) hábitos com o seu modo de entender o mundo e de crianças falam sobre o que aconteceu, escla-
saudáveis (ex: alimentação), conhecimento do produzir significados, avançou com algumas recem o seu comportamento e, com o apoio
mundo (ex: países, práticas culturais; a vida no soluções: “Arranjar um protetor de água para do grupo e da educadora, tentam encontrar
campo; nasceram porcos — as necessidades ela (árvore) não arder”... formas de evitar novos conflitos.
dos animais pequenos; cemitérios e mortes; Falaram da importância das árvores nas nos- Identificam-se, discretamente, as fontes de
terrorismo; naufrágios; incêndios...). sas vidas e pintaram de seguida muitas ár- conflito, o quê, onde, e como aconteceu o
No passado dia 16 do mês de outubro a con- vores onde a beleza estética parecia querer que se registou, sem nenhum clima de poli-
versa da manhã foi, inevitavelmente, sobre contrabalançar as imagens do desastre a que ciamento judicial, mas como quem cuida de
os incêndios que assolaram o país e que to- todos assistiram na TV. Em cada uma das saber atenciosamente dos sobressaltos da
dos tinham visto pela televisão: pinturas escreveram-se frases de alerta para vida, dos que fraternalmente partilham um
“Está tudo a arder...”, disseram alguns. E ra- que todos se lembrem da sua responsabili- projeto de transformação acarinhado” (Niza,
pidamente a conversa alastrou. dade na preservação da Natureza. Agora que 2007, p.4).
Depois de partilharem o que tinham visto, se preparam para o Natal que se aproxima, Na preparação de uma comunicação para o
o presépio surge carregado de árvores mos- seminário internacional Construir a Susten-
2 Para saber mais sobre o Movimento da Escola Mo- trando o significado que estas adquiriram tabilidade a Partir da Infância (Melo, 2015)
derna portuguesa e o seu modelo pedagógico http:// nas suas vidas e nos seus imaginários. as crianças disseram à educadora que tipo
www.movimentoescolamoderna.pt/
Que competências são a força motriz de vão ter profissões que não existem hoje e Os investimentos em intervenções na pri-
bem-estar e de progresso nas sociedades que vão viver num mundo marcado pela meira infância são os que garantem o maior
do século XXI? tecnologia e em mudança constante, assu- retorno em termos de competências cog-
Para prosperar num mundo mediado pelas mem que as competências e as qualidades nitivas, sociais e emocionais e resultados
tecnologias, numa economia mediada pela de carácter têm de ser adquiridas e desen- positivos na idade adulta com a família a
inovação, é preciso possuir competências ro- volvidas por todas para que o bem-estar constituir-se, por isso, como o alvo privile-
bustas que vão além das de literacia, nume- individual, económico e social seja possível. giado de intervenção, mas com as escolas,
racia e científicas. É preciso ser igualmente Esta posição baseia-se em estudos como, os pares e a comunidade a tornarem-se
perito em competências sociais e emocio- por exemplo, o de David Deming (2015), da progressivamente mais relevantes, prin-
nais, não cognitivas, também designadas Universidade de Harvard, que mostram que cipalmente no que ao desenvolvimento
soft-skills (OECD, 2015, p. 34). Esta é tam- o desenvolvimento do mercado de trabalho das competências sociais e emocionais diz
bém a posição assumida e prosseguida pelo nos EUA, desde 1980, tem sido no sentido respeito (OECD, 2015 p. 38). É igualmente
World Economic Forum (WEF) com a inicia- de profissões que exigem competências so- importante compreender que “skills beget
tiva New Vision for Education que, em 2015, ciais elevadas. Também se baseia na opinião skills” (OECD, p. 39), ou seja, quanto mais
se concretizou na elaboração do relatório, de macroempregadores, como por exemplo desenvolvidas são as competências de uma
preparado em colaboração com The Boston o Google, de que os seus administradores criança, mais ela beneficia de intervenções,
Consultation Group, intitulado “New Vision mais eficazes são “bons coaches, têm um formais ou informais, que contribuem para
for Education: Unlocking the Potential of Te- interesse ativo na vida dos seus empregados o seu desenvolvimento, o que nos respon-
chnology” e no qual nos são apresentadas as e são competentes a ouvir e a partilhar in- sabiliza ainda mais por intervenções o mais
16 21st century skills: formação” (WEF, 2016, p. 6). O WEF (2016) precoces possíveis e explica o conhecido
- As seis literacias fundacionais que implicam considera ainda que, a estes benefícios da “efeito Mateus” (nome cunhado pelo so-
usar o conhecimento e não apenas adquiri- SEL para o mercado de trabalho, acrescem ciólogo Robert Merton) em que os “pobres
-lo: 1. Literacia; 2. Numeracia; 3. Literacia outros – académicos, sociais e emocionais –, ficam mais pobres e os ricos mais ricos”
científica; 4. Literacia tecnológica de infor- conforme evidenciado numa meta-análise de (Rigney, 2010). Ou o fenómeno de “cross-
mação e comunicação; 5. Literacia financei- 213 estudos que envolveram mais de 270 mil -productivity”, observado pela influência
ra; 6. Literacia cultural e cívica. alunos da pré-escola ao ensino secundário que competências sociais e emocionais têm
- As quatro competências para enfrentar (Durlak, Weissberg, Dymnicki, Taylor, & Sche- na formação das competências cognitivas
desafios complexos: 7. Pensamento crítico e llinger, 2011) e cujos resultados indicam que ao longo do tempo, mas não o contrário,
resolução de problemas; 8. Criatividade; 9. alunos que usufruíram de aprendizagens SEL o que explicaria que uma criança autorre-
Comunicação; 10. Colaboração. obtiveram resultados escolares superiores gulada e persistente tenha mais probabili-
- As seis qualidades de caráter para viver aos que não receberam, ao mesmo tempo dade de ter melhores resultados escolares
num mundo em mudança permanente: 11. que melhoraram os seus comportamentos quando comparada com outra com o mes-
Curiosidade; 12. Iniciativa; 13. Persistência; e atitudes, mostrando igualmente menos mo nível de competências cognitivas mas
14. Adaptabilidade; 15. Liderança; 16. Cons- stress emocional. com menor autorregulação e persistência
ciência cultural e social: capacidade para in- (Cunha & Heckman, 2008).
teragir com os outros de uma forma social, Qual a responsabilidade da educação Já na década de 60 existia uma consciên-
cultural e eticamente apropriada. pré-escolar no desenvolvimento das cia entre os investigadores de que investir
Em 2016 um novo relatório é elaborado por competências sociais e emocionais, na em intervenções na infância que enrique-
esse Fórum: “New Vision for Education: Fos- redução das desigualdades sociais e no cessem os contextos de vida das crianças
tering Social and Emotional Learning throu- aumento da produtividade? poderia fazer a diferença na promoção das
gh Technology” e com ele a posição de que As competências desenvolvem-se ao longo trajetórias de desenvolvimento de sucesso
as quatro competências e as seis qualidades do tempo, mas existem “períodos sensíveis” para crianças que viviam em contextos mar-
de carácter formam o cerne do que a SEL para o seu desenvolvimento, com os primei- cados pela adversidade social. No High Sco-
(social and emotional learning) tem de con- ros anos de vida a terem um “impacto for- pe Perry Preschool Program, 123 crianças
ter (WEF, 2016). Ao estimarem que 65% das tíssimo” por estabelecerem as fundações do afroamericanas de 3 anos, com baixo QI,
crianças que estão a entrar na escolaridade desenvolvimento futuro (OECD, 2015, p. 38). marcadas por forte desvantagem socioeco-
A valorização do brincar na infância é, sem abordagens pedagógicas e do currículo, debate e necessita de ser clarificado, tendo
dúvida, uma das características definidoras constituindo um elemento central da evolu- em conta que o desenvolvimento pode ocor-
da profissionalidade dos/as educadores/as ção das ideias e das práticas em educação rer de diversos modos e que existem outros
de infância, que tendem a assumir o brincar de infância. A ideia de que a criança aprende fatores que com ele interagem.
como uma condição para o bem-estar emo- através do brincar e de que o brincar cons- No centro da discussão acerca do lugar do
cional da criança e também como uma forma titui uma experiência vital, através da qual a brincar na pedagogia para a infância está,
natural de ela aprender. Esta é uma dimen- criança desenvolve competências, nomeada- pois, a relação entre o brincar, o desenvol-
são central do pensamento e do discurso mente sociais e cognitivas e uma compreen- vimento e a aprendizagem, relação que ana-
dos educadores de infância, nomeadamente são do mundo, faz parte da narrativa pro- lisámos noutra publicação (Coelho & Vale,
dos portugueses, e também um aspeto do- fissional do campo da educação de infância. 2017) de forma mais extensa. Essa relação
minante das pedagogias ocidentais. Alguns Todavia, a visão ocidental do brincar tem tem sido, para Pramling Samuelsson e Pra-
autores referem-se a um ethos do brincar sido também descrita como uma idealiza- mling (2013), marcada por duas grandes tra-
que impregnou as pedagogias e as próprias ção romântica (Pramling Samuelson & She- dições dentro do quadro das tendências pe-
políticas para a infância (Kernan, 2007), o ridan, 2010; Ferreira, 2004, entre outros) e dagógicas que dominaram na Europa. De um
qual foi influenciado por pedagogos e re- alguns consideram o ethos do brincar ex- lado, a tradição que se funda sobretudo nos
formadores como Froebel ou Decroly, que cessivo e pouco sustentado, argumentando pedagogos reformadores e nas suas ideias
conferiram estatuto educacional ao brincar, que o seu valor desenvolvimental não está acerca do desenvolvimento global da criança,
e posteriormente pelas ideias progressistas demonstrado (Smith & Pellegrini, 2013). Estes na ideia da criança ativa e do brincar como
de autores como Dewey. autores, embora reconheçam que o brincar é um meio através do qual a criança aprende.
Na verdade, o brincar tem sido assumido necessário às crianças pequenas, argumen- Esta é ainda hoje a perspetiva dominante nos
como o ofício da criança (Chamboredon & tam que o seu papel exato no desenvolvi- países escandinavos, onde o brincar é visto
Prévôt, 1982) e como dimensão central das mento e na aprendizagem está ainda em como o meio através do qual as crianças co-
nhecem e dão sentido ao mundo, se sentem
em controlo, expressam as suas perspetivas,
analisam as experiências e resolvem proble-
mas. De outro lado, o movimento das infant
schools, com origem na Grã-Bretanha, mais
focado na aprendizagem de conteúdos, sen-
do neste caso o brincar encarado sobretudo
como uma forma de relaxar entre atividades
ou lições. Nos países em que domina o mo-
delo de pré-escolarização ou prontidão para
a escola, o brincar tende a ser associado à
necessidade de se identificarem as suas fi-
nalidades ou funções específicas em termos
de aprendizagem e de desenvolvimento,
frequentemente articuladas sob a forma de
conteúdos académicos específicos.
Porém, para além dessas tradições, identifi-
ca-se na atualidade a generalização do que
Whitebread, Basilio, Kuvalja e Verma (2012,
p. 5) designam como “tensões dentro da are-
na educacional”, que têm vindo a tornar-se
transversais a todo o campo da educação de
infância, ligadas nomeadamente com aspe-
tos da vida contemporânea como a aversão
minada na literatura e no campo da educa- iniciativa da criança e a aprendizagem como de ter em conta os objetivos definidos pelos
ção de infância e do modo como as práti- resultado das iniciativas do adulto), as auto- adultos para o brincar e, ao mesmo tempo,
cas pedagógicas moldam as experiências de ras afirmam que as crianças não separam o permitir que as crianças se envolvam em ati-
brincar das crianças pequenas em contextos brincar e o aprender na sua ação, embora o vidades lúdicas verdadeiramente significativas
de educação de infância. Apesar da vasta possam fazer no seu discurso, distinção que e intrinsecamente motivadas. Isto é pedago-
literatura sobre o assunto, afirma a autora, tende a ser mediada pela cultura escolar pre- gicamente desafiador se queremos evitar a
a resposta é difícil e a ligação entre brincar valecente. Esta reconceptualização permite dicotomia brincar/trabalhar, que persiste em
e pedagogia é problemática por diversas também avançar sobre a ideia meramente educação de infância, ou o risco de “pedago-
razões. Primeiro, porque tradicionalmente o utilitária e instrumental do brincar para efei- gizar” o brincar ao ponto de perdermos de vis-
brincar tem sido posto em oposição ao tra- tos de aprendizagem e de desenvolvimento – ta as qualidades de afeto positivo e motivação
balho, em geral mais valorizado, divisão que o aprender através do brincar que predomina intrínseca que lhe são inerentes.
tende a impedir uma integração do brincar em educação de infância –, em direção a um Num sentido idêntico, Pramling Samuelsson e
na prática pedagógica. Em segundo lugar, entendimento de que brincar e aprender são Pramling (2013) referem-se a abordagens em
porque a teorização do “brincar como traba- processos contínuos, sendo, pois, sobretudo que brincar e aprender são integrados numa
lho” pode obscurecer os modos através dos interessante indagar as disposições e proces- pedagogia investigativa, que enfatiza a co-
quais o brincar se torna uma técnica de con- sos comuns ao brincar e à aprendizagem. municação e a interação e uma conceção do
trolo social e um meio de transmitir crenças e Também para Rogers (2011) uma possível al- conhecimento como processo de construção
assunções acerca da natureza e do propósito ternativa para recontextualizar o brincar nos de significados, considerando essas aborda-
da infância, como assinalado pelos sociólo- modelos pedagógicos consiste em repensar gens úteis na reconceptualização da relação
gos da infância. Por último, afirma a autora, a nossa compreensão da pedagogia a par- entre brincar, aprendizagem e pedagogia. Tais
porque a pedagogização do brincar observa- tir e na relação com as suas características abordagens observam-se em educadores que
da em muitos países tem-se tornado, cada e benefícios. Tomadas separadamente, as encaram o conhecimento em termos dos sig-
vez mais, um instrumento para a aprendiza- palavras “brincar” e “pedagogia” têm signi- nificados que as crianças criam, consideram o
gem de competências futuras, enfatizando ficados distintos no discurso educacional, modo como elas dão sentido ao mundo à sua
o realismo social mais do que as qualidades já que a primeira tende a ser compreendida volta, tomam as suas perspetivas em conside-
transformativas, miméticas e prazerosas do como espontânea, dirigida pela criança e in- ração e ampliam-nas, já que na origem tan-
brincar. trinsecamente motivada, enquanto a segunda to do brincar como da aprendizagem está a
Estas e outras ambiguidades têm levado a se associa habitualmente ao papel do adulto criação de significados (Pramling Samuelsson
que, nos últimos anos, se considere necessá- na oferta de um ambiente e estratégias que & Johansson, 2009). Estas abordagens impli-
rio rever as ideias assumidas como verdades apoiem os processos de ensino e de aprendi- cam também que o adulto esteja atento aos
em relação à posição central que o brincar zagem. Rogers (2011) sugere uma abordagem objetos de aprendizagem em que a criança
assume na vida das crianças em contextos alternativa, propondo que o brincar seja visto se detém quando brinca, num processo que
de educação de infância, nomeadamente a partir de dentro, propondo nomeadamente Ridgway, Quinones e Li (2015) definiram como
através da reconceptualização da dicoto- que os adultos indaguem e reflitam acerca reciprocidade conceptual e que descreveram
mia brincar/trabalhar e brincar/aprender. das perspetivas das crianças sobre o brincar como a situação em que o adulto traz para o
Pramling Samuelsson e Carlsson (2008) e o seu valor. Tal permitirá que o conteúdo, brincar da criança conhecimento de conteú-
introduzem a este respeito o conceito de natureza e dinâmica do brincar suporte a pe- do, pois, como afirmam Pramling Samuelsson
playing-learning child, que corresponde à dagogia, de uma forma relacional e recíproca. e Carlsson (2008), todo o brincar tem um con-
ideia de criança que não separa o brincar Assim, vendo a pedagogia do brincar como teúdo e quanto maior a aproximação entre
do aprender, se relaciona com o mundo de emergente, coconstruída e relacional, a auto- esse conteúdo e os resultados de aprendiza-
um modo lúdico, criando ideias, fantasiando, ra sugere que o brincar da criança influencie gem visados pelos educadores, mais integrada
ao mesmo tempo que explora a realidade e a pedagogia, em vez de, como é o caso em será a prática. A construção de conhecimento
constrói significados. Reconhecendo que em muitas salas de educação de infância e em de conteúdo deve, contudo, valorizar a pers-
geral a distinção entre o brincar e a aprendi- certas abordagens pedagógicas, a pedagogia petiva da criança, criando oportunidades de
zagem (ou o “trabalho”) radica em quem tem influenciar o brincar das crianças. Segundo intenções partilhadas, em que o adulto inte-
a iniciativa (o brincar como uma atividade da Rogers, estamos perante o duplo propósito rage desafiando e “andaimando” o brincar e
fundarem pedagogias participativas que, ço familiar, através da deslocação do brincar à luz da pedagogia de fronteira que Teresa
sendo diversas, coloquem a comunicação, a para os quartos das crianças, onde prolife- Vasconcelos (2009) propõe para a educação
interação e o cuidado ético no centro, e des- ram tecnologias que os transformam literal- de infância, num processo de redefinição
se modo intencionalizem o brincar da criança mente em ambientes lúdicos virtuais (Ker- que faça justiça ao potencial comunicador e
na sua potencialidade comunicativa, relacio- nan, 2007), sem sensorialidade, interação e expressivo, mas também transformador, cul-
nal, cognitiva e sociocultural. Essa forma de sentido autêntico de comunidade, mas que tural, heurístico e fenomenológico do brincar
encarar o processo de intencionalização edu- os adultos tendem a valorizar como seguros das crianças. Encarando o brincar como um
cativa do brincar parece-nos também poder e uma alternativa a vivência mais autênticas, ato expressivo e espontâneo da criança, fun-
contribuir para diminuir a sua marginalização nomeadamente no espaço exterior. damental ao conhecimento de si e do mun-
e segregação. Este último aspeto é especial- Como fizemos notar em publicação anterior do, Cunha e Gonçalves (2015) afirmam: “A
mente importante, pois sabemos que nas (Coelho & Vale, 2017), diminuir o fosso entre infância é uma espécie de ponto de partida
sociedades ocidentais o brincar das crianças o que significa a criança estar a brincar ou a que sai do lugar para outros lugares dentro
tem sido progressivamente marginalizado e aprender (e estar a brincar ou a trabalhar) e de si. Nela, têm-se pensamentos e fazem-se
segregado, por exemplo em áreas específicas pensar nas oportunidades que são (ou não) perguntas que não são do campo da racio-
das salas de educação de infância, recreios e dadas para que o brincar inspire a pedago- nalidade, mas do campo fenomenológico –
parques temáticos (Baumer, 2013), segrega- gia e se expanda em projetos partilhados de ou seja, do campo que abre o pensamento”
ção que se observa dentro do próprio espa- aprendizagem, pode igualmente ser pensado (p. 69). Para os autores, este brincar, que
é encarado como expressão, mas também
como realização (exploram, aliás, a dimensão
estética do brincar e as suas afinidades com
a obra de arte), contrapõe-se ao “brincar di-
dático”, denotador de “uma conceção hege-
mónica do brincar na literatura científica” (p.
23), que estreita a temática do brincar e do
brinquedo a um olhar “uniforme”, “obedien-
te”, “que espera resultados”.
Avançar sobre a mera retórica e uma incon-
sequente idealização do brincar, refletindo
sobre as suas finalidades e o estatuto que
lhe é conferido em contextos de educação
de infância, obriga, pois, a centrar a discus-
são nos significados e não nos resultados
e a pensar as dimensões comunicacionais,
interativas e também culturais que lhe são
inerentes. Implica que, reconhecendo o
brincar como um fenómeno universal, tam-
bém se reconheça e respeite que é um fe-
nómeno multifacetado, sob influência de
diferentes atitudes relativas à natureza da
infância e ao valor do brincar. Implica ainda
que essa reflexão considere a natureza poli-
cêntrica dos centros para a infância, já que
como Teresa Vasconcelos (2009) sugere, “o
discurso da criança como centro (child cen-
tered curriculum and education), típico do
universo norte-americano com pretensões
Os 30 anos da revista Cadernos de Educação Alargámos também o número de abordagens centradas na dependência e no défice, que
de Infância representam três décadas de con- que serviram de sustentáculo à presente aná- regularmente condicionam a sua assunção
tributos incontornáveis para a educação de lise. Assim, às quatro abordagens que enfor- enquanto participante naquilo que lhe diz
infância, através da disseminação de artigos maram a nossa primeira análise – a perspetiva respeito. Nestas propostas, a criança não é
destinados à comunidade profissional, onde a educativa da pedagogia em participação, a caracterizada com referência à sua falta de
atenção privilegiada às práticas não inibe um abordagem HighScope, a perspetiva de Reg- competência nem excluída em decorrência
foco na(s) teoria(s), na investigação ou nas gio Emilia, a proposta de Elinor Goldschmied da variável idade. Antes representam pro-
políticas. – acrescentamos a proposta de Emmi Pikler postas que contrariam uma tendência notó-
Perante o convite da APEI para contribuir para e das suas colaboradoras do Instituto Lóczy. ria para a invisibilidade dos bebés e crianças
o número que celebra estes 30 anos, optei por O estudo destas perspetivas faz emergir uma mais pequenas (Gobbato & Barbosa, 2017) e
centrar-me na pedagogia em creche, não só primeira evidência significativa: a de que fo- para o silenciamento e discriminação deste
pela evidente necessidade de refletirmos in- ram geradas a partir de uma atenção particular segmento social (Rosemberg, 2011).
dividual e coletivamente sobre as experiências aos primeiros três anos de vida, concentran- No âmbito da pedagogia em participação é
nestes contextos educativos para crianças do-se nas particularidades das crianças mais reconhecida a agência e competência par-
nos primeiros três anos de vida, mas também novas e em contextos relacionais e materiais ticipativa de bebés e crianças pequenas. O
por ter sido, na última década, um dos focos pedagogicamente sensíveis e responsivos às seu direito à escuta e à participação associa-
prioritários de motivação e preocupação no suas motivações, necessidades e direitos. São, -se ao reconhecimento da sua competência
âmbito da minha atividade profissional. Mais ainda, propostas que beneficiaram de uma para explorar, descobrir, comunicar, criar e
especificamente, retomo neste artigo um tra- construção paulatina ao longo de algumas construir significados (Oliveira-Formosinho
balho de análise comparativa entre diferentes décadas, ciclicamente refletidas na interface & Araújo, 2013). A inclusão das diversidades
perspetivas pedagógicas, com vista à identifi- entre a prática e a teoria, o que reforça o seu é assumida como respeito e responsividade
cação de convergências ao nível dos princípios reconhecimento enquanto sustentáculos rele- a todas as suas manifestações, não apenas
que as norteiam. A primeira análise tentativa vantes da pedagogia em creche. aquelas que mais recorrentemente são evo-
destes princípios foi apresentada em 2009, no Nos próximos pontos, serão apresentados cadas (cultura, etnia, língua, religião, género
âmbito de encontros Ser Bebé, uma relevante seis princípios identificados, procurando es- ou existência de necessidades educativas es-
iniciativa da APEI que dava então os seus pri- clarecer os modos como a sua presença se peciais), mas também aquelas que emergem
meiros passos. Oito anos volvidos, a análise concretiza nas perspetivas pedagógicas anali- de outras diferenças individuais, incluindo
de novos referentes teóricos, o diálogo com sadas. Com este exercício analítico não se pre- a etária (ibidem). Uma imagem de criança
profissionais do terreno e da academia e, so- tende anular a identidade de cada uma destas que encontra semelhanças naquela que en-
bretudo, o envolvimento em processos for- perspetivas; pretende-se antes reconhecer a contramos na proposta de Reggio Emilia e
mativos e investigativos, traduziram-se numa riqueza identitária que as caracteriza do ponto declarada de forma inequívoca pelo grande
revisão dessa análise e respetivos resultados. de vista valorativo, teórico e pragmático, sem mentor da experiência reggiana, Loris Mala-
Consideramos que esta oportunidade de en- deixar de constatar as suas similitudes, certa- guzzi. O pedagogo adianta uma imagem de
cetar um processo revisitador e revisionista mente reveladoras da significância pedagógi- criança com direitos, curiosa, produtora de
não deixa de constituir uma condição essen- ca que estas aproximações representam nos cultura, competente na experimentação do
cial à construção de conhecimento, por defi- quotidianos das creches. A par de princípios mundo e na comunicação dos seus pensa-
nição marcado pela incompletude, incerteza norteadores, procurar-se-á dar atenção a uma mentos, emoções e dos significados que
e necessária abertura epistemológica (Morin, componente mais manifesta destas aborda- constrói (Malaguzzi, 1994). Esta concepção
2008). Deste processo de revisão emergiu, gens, corporizada em implicações para a prá- encontra-se claramente patenteada em Uma
por um lado, a constatação de que os prin- tica, coerentes com os princípios advogados. Carta dos Três Direitos, que “atribui às crian-
cípios anteriormente apurados mantém-se ças potencialidades naturais de extraordiná-
centralmente definidores da pedagogia em 1. Imagem de criança ativa e competente ria riqueza, força, criatividade, as quais não
creche e, por outro lado, a necessidade de As perspetivas analisadas comungam de um podem ser desconhecidas e desiludidas sem
alargamento dessa constelação de princípios, primeiro princípio seminal: o reconhecimen- provocar sofrimentos ou empobrecimentos
em muito derivada da experiência empírica to da competência da criança nos primeiros na maioria das vezes irreversíveis” (Malagu-
que anteriormente referi. três anos de vida, rejeitando-se imagens zzi, 1993, p. 2).
Constituindo uma das dimensões vitais da Em creche, a proposta reggiana adianta as expressos sob a forma de interações quoti-
pedagogia, na concepção da pedagogia em ideias de um/a educador/a de referência e dianas próximas, o que radica numa aborda-
participação as interações são instituintes de vinculação partilhada (Malaguzzi, 1998). gem em que um/a educador/a específico/a
da identidade de bebés e crianças peque- Este conceito (e prática) encontra as suas se centra de uma forma mais atenta, sis-
nas (Oliveira-Formosinho & Araújo, 2013). bases na evidência de que, desde muito temática e prolongada nas necessidades de
O respeito pelos direitos e competência da cedo, as crianças possuem uma predispo- um grupo específico e restrito de crianças.
criança materializa-se, na intervenção do/a sição para formar laços significativos com Finalmente, também a proposta de Emmi
educador/a, na (co)construção de ambien- adultos para além dos pais, sem colocar em Pikler defende o valor daquilo que Kálló
tes e situações interativas que efetivem a causa as responsabilidades e prerrogativas (2016) designa as relações pessoais está-
criação de múltiplas zonas de desenvolvi- destes (ibidem). De facto, e após anos de veis da criança, considerado um dos quatro
mento próximo e de diferenciação pedagó- reflexão acerca do papel do adulto em cre- princípios básicos do cuidado com bebés
gica (Oliveira-Formosinho, 2007). che, a comunidade reggiana aceitou a res- em espaços coletivos e uma condição basi-
Neste apartado, a abordagem HighScope ponsabilidade emocional da formação de lar para que a criança se sinta rodeada por
enfatiza a centralidade das relações de con- laços significativos com os bebés e crianças um meio abrangente e compreensível (Falk,
fiança entre a criança e o adulto, caracteri- pequenas, embora qualitativamente dife- 2012, p. 29). Rejeitando qualquer ideia de
zadas pelo respeito, cuidado, positividade, rentes da mãe (Mantovani, 2001). No âmbi- tratamento mecânico ou despersonalizado
reciprocidade, consistência e continuidade to desta reflexão, o papel do/a educador/a dos bebés e crianças mais novas, esta pro-
(Kruse, 2005; Post & Hohmann, 2003). É passou de uma atenção exclusiva à criança posta enfatiza a relevância do vínculo entre
reconhecida a importância dos processos para uma atenção à criança e aos pais, mu- crianças e adultos, da sintonização mútua
de vinculação que, ao propiciarem à criança dança tornada possível por duas caracterís- e dos momentos compartilhados. Através
uma base de segurança e conforto, promo- ticas centrais desta experiência italiana: o de observações diretas, Pikler reconheceu
vem a exploração e o desenvolvimento da elevado grau de continuidade e a participa- a importância das mãos da educadora, isto
curiosidade, coragem, iniciativa, empatia, ção e envolvimento familiares sistemáticos. é, das formas de pegar, segurar, mover as
sentido de si própria e o sentimento de per- A centralidade da interação adulto-criança extremidades ou todo o corpo do bebé, de
tença a uma comunidade social amigável também surge espelhada na proposta de modo a que, desde muito cedo, e a partir
(Post, Hohmann & Epstein, 2011). Em termos Goldschmied e colaboradores através da deste vínculo, este esteja aberto à relação,
práticos, são adiantadas quatro estratégias abordagem da pessoa-chave (key-person, ao contexto e aos acontecimentos com ele
básicas para a construção e manutenção de no original) (Elfer, Goldschmied & Selleck, relacionados (Kálló, 2016). Nesta medida, é
relações de apoio e respeito: (i) fomento 2003, 2012; Goldschmied & Jackson, 1994; reconhecido o papel da educadora de re-
da continuidade ao nível dos processos; (ii) 2004). Esta abordagem é definida como um ferência ou privilegiada, que é a primeira
criação de um clima de confiança; (iii) for- modo de trabalhar nas creches em que o responsável pelo bem-estar de um peque-
mação de parcerias com a criança; e, (iv) foco e a organização se centram na promo- no grupo de crianças e pela criação de uma
apoio contínuo das intenções das crianças, ção e apoio a vinculações estreitas entre relação estável, continuada, autêntica e
através do conhecimento, respeito e aber- crianças específicas e adultos específicos calorosa dentro da instituição (Falk, 2012).
tura aos seus interesses e ideias. (Elfer, Goldschmied & Selleck, 2003, 2012). A qualidade desta relação é muito signifi-
A relevância da interação adulto-criança en- Goldschmied e Jackson (1994) argumentam cativa, por exemplo, no apoio à atividade
quadra-se, na perspetiva de Reggio Emilia, que o estabelecimento de relações privile- autónoma da criança, um dos elementos
numa concepção mais ampla de educação giadas entre um adulto e uma criança exige essenciais do pensamento de Pikler. Este
enquanto relação (Malaguzzi, 1998, p. 13). condições propícias, nomeadamente a con- apoio é efetivado, entre outras estratégias,
Na ótica de Malaguzzi (1998), a relação é tinuidade e constância ao nível das intera- através da criação de um vínculo profundo
concebida como a dimensão conectora pri- ções, assim como um rácio adulto/ crian- e estável com a criança, da compreensão do
mária de todo o sistema. O autor refere a ças que permita ao primeiro uma atenção valor afetivo do sentimento de competência
ideia de pedagogia da relação, defenden- privilegiada a cada criança, sobretudo ao da criança, da riqueza linguística durante os
do a inextricável ligação entre as relações nível da comunicação. As autoras salientam intercâmbios (gestos, palavras, olhares), da
e a aprendizagem, processos coincidentes que esta apenas reconhecerá a atenção e assunção do papel de parceiro de jogo da
no âmbito do processo ativo de educação. o apoio como significativos se estes forem criança mas sem que o adulto se outorgue
nentemente: a ordem e flexibilidade do am- estimula a investigação; e, (iv) comunica com zagem ativa (Kruse, 2005; Post & Hohmann,
biente, o conforto e segurança de crianças e recurso a uma multiplicidade de linguagens 2003). Em termos práticos, o primeiro prin-
adultos, e o apoio à abordagem sensoriomo- (Rinaldi, 2001). cípio associa-se a um conjunto de estraté-
tora das crianças no que concerne à aprendi- Já no entendimento de Goldschmied e Ja- gias: (i) a organização do dia em torno de
zagem (Kruse, 2005; Post & Hohmann, 2003; ckson (1994, 2004), é central que o ambien- acontecimentos diários regulares e rotinas
Post, Hohmann & Epstein, 2011). te suscite interesse e prazer nas crianças e de cuidados; (ii) a adesão a um horário diá-
O espaço educativo dos contextos de aten- adultos, incorporando elementos relativos rio de forma consistente; (iii) a acomodação
dimento a bebés e crianças pequenas de àqueles que ali vivem (ex.: criações das dos ritmos e temperamentos naturais e sin-
Reggio Emilia, tal como aquele para crianças crianças) e constituindo um importante ins- gulares das crianças; e (iv) o proporcionar
mais velhas, é objeto de grande centralidade, trumento de iniciação à tradição cultural. As de transições suaves entre experiências em
sendo mesmo considerado o terceiro educa- autoras indicam a atratividade e a organiza- que a criança se envolve (Post & Hohmann,
dor (Gandini, 1998). Carlina Rinaldi (2001), um ção como dois elementos críticos, bem como 2003). Por seu turno, a organização do ho-
dos nomes mais identificados internacional- a necessidade de as salas de atividades para rário e das rotinas diárias tendo presente a
mente com as experiências de Reggio Emilia, crianças mais pequenas combinarem de for- noção de aprendizagem ativa pressupõe a
aponta dois princípios básicos que norteiam ma equilibrada a amplitude e a intimidade. valorização da necessidade das crianças de
as experiências pedagógicas para crianças Finalmente, a perspetiva de Pikler também exploração sensoriomotora em cada acon-
dos 0 aos 6 anos em Reggio Emilia: a ima- reconhece a importância de um ambiente tecimento e rotina, a partilha do controlo
gem da criança e a qualidade do ambiente seguro, promotor de bem-estar, acolhedor, dos acontecimentos do dia com as crianças,
educacional e de cuidados. Relativamente ao contínuo e estável (Falk, 2012; Szoke, 2016). possibilitando-lhes escolhas, o estar alerta
segundo princípio, reconhece-se, em primei- Estas condições são ingredientes que con- relativamente às comunicações das crianças
ro lugar, que os contextos de atendimento correm para assegurar a segurança afetiva ao longo do dia, o trabalho em equipa no
são concebidos não apenas como serviços de que a criança necessita para estar aberta sentido de proporcionar apoio contínuo a
sociais, mas também como lugares de edu- ao conhecimento do mundo exterior (Falk, cada criança ao longo do dia e a observação
cação, referindo-se a uma educação que 2012). Em termos práticos, estas premissas das ações e comunicações das crianças utili-
foca a criança em relação com a família, o/a reclamam, segundo Szoke (2016), a concep- zando, enquanto lentes, os indicadores-cha-
educador/a, as outras crianças e o contexto ção cuidadosa de espaços seguros e livres, ve do desenvolvimento (Post & Hohmann,
sociocultural mais lato (Rinaldi, 2001). De fac- bem como a escolha e disposição criteriosa 2003; Post, Hohmann & Epstein, 2011).
to, os centros para atendimento a bebés e de brinquedos e objetos de jogo para que Na proposta de Reggio Emilia também são
crianças pequenas são concebidos como sis- a criança possa exercitar a sua competência discerníveis diferentes momentos do dia,
temas relacionais em que crianças e adultos no movimento livre e na atividade autónoma, iniciados ou finalizados de acordo, primor-
se iniciam formalmente numa organização centrais a esta proposta. dialmente com os interesses e desejos das
que é, ela própria, uma forma de cultura, no crianças (Strozzi, 2001, op. cit. Thornton &
âmbito da qual podem criar cultura (a cultura 4. Regularidade e flexibilidade na organi- Brunton, 2009). Mais concretamente, desta-
das crianças, a cultura da infância, a cultura zação do tempo cam-se o momento de chegada (concebido
do próprio centro de atendimento). Estamos A perspetiva HighScope é aquela que, entre enquanto tempo de estabelecimento de li-
perante um sistema complexo, em que três as analisadas, se debruça mais detalhada- gações entre o contexto familiar e a creche),
sujeitos centrais, as crianças, os educadores mente sobre a organização do tempo em o período da manhã (destinado ao envolvi-
e as famílias, se cruzam relacionalmente, creche. Esta organização das atividades diá- mento das crianças, em pequenos grupos,
constituindo um sistema interconectado e rias surge centrada na criança e compreende em diferentes atividades), o tempo de re-
mutuamente influenciador. Carlina Rinardi um horário e rotinas concebidas de forma a feição, a preparação para o sono, o período
(2001) esclarece, em termos pragmáticos, promover sentimentos de segurança, conti- destinado ao sono e o tempo de jogo tran-
quatro aspetos centrais caracterizadores do nuidade e controlo. Para prosseguirem esta quilo (que paraleliza o tempo de refeição e
espaço pedagógico reggiano: (i) apresenta intenção, os horários e rotinas diárias são de reunião de discussão, reflexão e planifica-
um ambiente caloroso e favorecedor de sen- coerentes com dois princípios básicos: são ção dos educadores), o lanche, a preparação
timentos de bem-estar; (ii) apresenta uma previsíveis, embora flexíveis, e incorporam para a partida (em que, em reunião conjunta,
natureza flexível e aberta a mudanças; (iii) permanentemente o conceito de aprendi- se fala acerca do dia e se contam histórias)
participarem ativamente nas experiências de os centros de atendimento e o ambiente ao acompanhamento da criança em contex-
crescimento dos seus filhos, no âmbito daqui- familiar, assegurando a máxima continui- to familiar e escrito livros dirigidos aos pais.
lo que designou o entrosamento cooperativo dade e coerência entre os mesmos (Elfer, Em contexto de atendimento coletivo, uma
entre os contextos de educação de infância Goldschmied & Selleck, 2003). Goldschmied das tarefas centrais é a apoiar a compreen-
e os pais. Uma tradução para a prática deste (2002) salienta que a construção de relações são, por parte dos pais, da importância do
princípio é o processo de inserção, um con- de confiança recíproca tem uma tradução movimento e jogo autónomos, não dirigidos,
ceito italiano que designa o processo de aco- relevante na experiência dos adultos, mas da criança, assim como a experimentação de
lhimento da criança numa nova comunidade, sobretudo no bem-estar e tranquilidade da uma atitude observadora que os possa aju-
em que os pais são participantes ativos nos criança. A experiência de Pikler-Lóczy é igual- dar a reconhecer as competências dos seus
processos de planificação e experimentação mente valorizadora da relação com os pais, filhos (Libertiny, 2016).
deste momento de transição, numa parceria tendo Pikler dedicado muito do seu trabalho
centrada numa progressiva abertura ao outro,
no reconhecimento de emoções e na partilha
(Bove, 2001).
A construção de uma relação aberta e de
confiança com as famílias, e particularmente
com os pais, é também apanágio da pers-
petiva da pedagogia em participação. Esta
construção inicia-se com o acolhimento
atento das crianças e pais nos centros e
concretiza-se, a partir daí, sob diferentes for-
mas, desde a participação em rotinas diárias
e em atividades e projetos, ou na presença
de objetos familiares e fotografias das famí-
lias. A documentação pedagógica é, nesta
perspetiva, um formato privilegiado de diá-
logo contínuo com as famílias, contribuindo
para a emergência de bem-estar e sentido
de pertença das famílias, bem como para o
seu envolvimento contínuo nas jornadas de
aprendizagem das crianças (Azevedo, 2009;
Oliveira-Formosinho & Araújo, 2011).
A construção de parcerias com os pais é
também valorizada pela abordagem HighS-
cope, que avança quatro linhas de orienta-
ção: (i) o reconhecimento da separação de
papéis inerentes ao/à educador/a e aos pais;
(ii) a prática de uma comunicação aberta; (iii)
o foco no potencial dos pais; e (iv) a utili-
zação de uma abordagem de resolução de
problemas face a situações de conflito (Post,
Hohmann & Epstein, 2011). Por seu turno, as
relações profissionais com os pais são cons-
tituintes da proposta de Elinor Goldschmied,
que confere atenção à criação de pontes e
ao fomento de fluxos informativos entre
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Construir um futuro promissor a partir sado por adversidades pelas quais passam informações transmitidas por práticas ligadas
dos primeiros tempos de vida algumas crianças. com os estilos de vida da mãe e até das avós.
A importância das primeiras aprendizagens Por exemplo, a alimentação da mãe durante
é cada vez mais reconhecida. Se é verda- Por que é tão importante investir na a gravidez e a amamentação influenciam o
de que o desenvolvimento das capacidades relação com a criança desde o início? metabolismo, a pressão arterial e o desenvol-
sociais, cognitivas e emocionais ocorre ao As primeiras experiências de vida são determi- vimento cognitivo da criança2,3, para além de
longo do tempo, a ciência também tem nantes para o desenvolvimento e percurso ao influenciarem as suas preferências alimenta-
demonstrado que este é fortemente de- longo dos anos vindouros, havendo mesmo res através dos sabores que lhe chegam dos
pendente das experiências, mais ou menos um registo biológico das mesmas. alimentos ingeridos pela mãe, quer através do
estruturantes, que tiveram lugar desde os Na aventura do desenvolvimento do ser líquido amniótico, quer do leite materno4–7.
primeiros momentos de vida. humano, ainda mesmo in utero, existem À ciência que estuda a influência do ambiente
Parece clara a relevância de se investir des- múltiplas oportunidades para a aquisição de na expressão dos genes, mesmo sem os alterar,
de cedo na criança, garantindo, nos diversos competências e preferências. Até mesmo os dá-se o nome de epigenética. A epigénese é
contextos em que vive, a atenção, o afeto, genes, ainda que não se alterando, podem um dos vários mecanismos através dos quais o
a estimulação adequada, a alimentação, o ser “educados” em relação à forma como rea- sistema genético humano se adapta continua-
sono e todos os cuidados que irão estrutu- gem ao ambiente. Muitas das alterações que mente às condições ambientais 8. Condições e
rar a base do seu desenvolvimento e fazer ocorrem neste sentido podem ser devidas a experiências no início da vida podem determi-
toda a diferença no seu futuro. A capacita-
ção dos pais constitui-se como uma inter- Figura 1. Períodos sensíveis nos primeiros tempos do desenvolvimento do cérebro
venção fundamental na melhoria dos seus
níveis de literacia e na criação de ambientes
familiares saudáveis. A qualidade da relação
entre os pais e a criança é essencial para o
seu desenvolvimento a longo prazo. Mas as
crianças pequenas também podem benefi-
ciar significativamente de relacionamentos
com outros cuidadores, dentro e fora da fa-
mília, sem que isso interfira com a força do
seu relacionamento primário com os pais.
Assim, vários cuidadores podem promover
o desenvolvimento social e emocional das
crianças pequenas1.
Neste artigo abordamos o importante papel
que pode ser desempenhado pelos profis-
sionais e instituições de educação e cuida-
dos na infância no sentido de promover um
bom e promissor início de vida e de mitigar Fonte: Adaptado de Council of Early Child Development 18
o impacto no desenvolvimento infantil cau-
nar a forma de expressão dos genes,9 o que nalmente na escola e criar relacionamentos gência (QI) e desenvolvimento cognitivo aos
corresponde à possibilidade de podermos in- bem-sucedidos ao longo da vida 8,19. De 4 anos e meio; melhor desempenho acadé-
tervir no nosso “destino genético”.10 facto, há muito que é conhecida a impor- mico aos 7; um mais alto QI e autoestima
Quando um ser humano nasce, o seu sistema tância da relação afetiva desde o nascimen- e menores problemas comportamentais e
nervoso central ainda não está completo.10 O to20. Uma vinculação segura entre a criança emocionais aos 12 anos.22
cérebro desenvolve-se a um ritmo acelerado e o seu cuidador (mãe, pai, outro adulto) é A responsividade é frequentemente en-
até aos 3 anos, sendo as ligações (sinapses) determinante para a sua saúde mental e irá tendida em três etapas: (1) Observação:
entre as suas células (neurónios) a grande ter reflexos ao nível da autoestima, controlo o cuidador observa os sinais da criança,
“construção”. A forma como essas ligações emocional, competências sociais e compor- como expressões faciais, comportamentos,
se fazem está muito dependente das expe- tamentos, mesmo durante a adolescência e movimentos e vocalizações. (2) Interpre-
riências pelas quais as crianças passam nos idade adulta.21 tação: o cuidador interpreta estes sinais,
primeiros tempos. Apesar do sistema nervoso Um artigo de revisão sobre a influência que por exemplo percebendo que uma criança
central manter alguma plasticidade, os primei- o tipo de relação com a criança tem sobre o irritada está cansada e precisa descansar,
ros registos são os que constituirão os alicer- seu desenvolvimento, publicado pela Orga- ou mostra sinais de doença. (3) Ação: o
ces para as aprendizagens posteriores.12 nização Mundial de Saúde, conclui que uma cuidador atua de forma rápida, adequada
A arquitetura do cérebro vai sendo montada relação afetiva e responsiva entre o cuidador e consistente para atender as necessidades
e reestruturada em função das experiências e a criança determina fortemente a saúde da criança23.
tidas durante os chamados períodos críticos e e o desenvolvimento desta, assegurando a
sensíveis. Estes períodos têm particular inte- sua saúde física, neurofisiológica e psicoló- Stress na criança pequena
resse para os educadores porque representam gica22. São referidos neste mesmo artigo As perturbações nas experiências das
alturas em que certas capacidades cognitivas resultados de estudos que mostram que a crianças, seja por negligência, altos níveis
e emocionais são realmente formadas – ou responsividade nos cuidados da criança está de stress, violência ou abuso, podem cau-
“deformadas” – pelas vivências da criança.13 associada a: aquisição de competências so- sar padrões irreversíveis do seu desenvol-
Podemos falar dos períodos sensíveis para di- ciais e menos problemas de comportamento vimento. Por exemplo, na comparação dos
ferentes funções como a visão (do nascimen- aos três anos; um maior quociente de inteli- cérebros de crianças de três anos que foram
to até aos 2 anos), da audição (dos 6 meses
até 1 ano), do controlo emocional (do nasci- Figura 2. O impacto negativo da negligência no cérebro em desenvolvimento
mento aos 3 anos) e das aptidões motoras (ao
longo de toda a infância)14. Também a apren-
dizagem da linguagem tem o seu período mais
sensível (do nascimento aos 6 anos)15–17.
No gráfico apresentado na figura 1 é possível
observar de forma clara os períodos sensíveis
para o desenvolvimento de algumas funções
no cérebro das crianças.
Vinculação e responsividade
O desenvolvimento emocional, muito relacio-
nado com a vinculação, é um aspeto crítico
do desenvolvimento da arquitetura global
do cérebro, com enormes consequências no
futuro1. Os fundamentos das competências
sociais, por exemplo, que são estruturados
nos primeiros cinco anos, estão ligados ao
bem-estar emocional e afetam as capacida-
des de uma criança para se adaptar funcio- Fonte: Perry e Pollard, 199724
Figura 3. Estilos parentais conforme os níveis de afeto e exigência no cumprimento de regras Ao consultarmos a literatura, podemos
elencar algumas características de uma re-
lação promotora do desenvolvimento sau-
dável da criança: 32,33
Respeito pelos interesses e necessidades
da criança, tendo atenção ao que ela diz
e aos seus sinais e respondendo de forma
adequada e consistente (responsividade);
Expectativas realistas, adequadas às ca-
racterísticas e às fases de desenvolvimen-
to da criança;
Empatia, colocando-se no lugar da crian-
ça, valorizando os seus sentimentos e
procurando ajudá-la a compreender as
situações e a regular as suas próprias
emoções;
Atenção positiva, que valoriza a opinião,
Fonte: Adaptado de Spurrier, N.J.; Magarey, A.; Wong, C., 2006 os questionamentos e as ideias da criança
e reforça as boas atitudes e comporta-
mentos;
muito cedo e quanto mais significativa for volvimento dos bebés (figura 4) e das crian- Regras claras e explicadas, sem frustrar a
a experiência, mais fortemente ela será ças até aos 3 anos de idade (figura 5).14 busca de autonomia por parte da criança;
relembrada e quanto mais integrada na Escusado será dizer que a maneira como as Disciplina que orienta sem reprimir,
vida familiar, maior força terá e maior será atividades são vivenciadas pelo adulto e pela aproveitando os erros como oportunida-
a sua sustentabilidade. O PapaBem (www. criança é fundamental para o alcance dos des de aprendizagem;
papabem.pt) é um exemplo de programa efeitos positivos pretendidos. O estilo auto- Prazer partilhado.
que contempla estas várias dimensões, va- ritativo do adulto na relação com a criança,
lorizando o estilo autoritativo de relação do firme mas responsivo, acolhedor e carinhoso, Sinais de stress nos bebés
adulto com a criança para a promoção de um reflete-se em diferentes gestos, como pode e crianças pequenas
crescimento saudável e prevenção da obesi- ser observado no quadro 1. As crianças podem estar expostas ao stress devi-
dade infantil.31 As escolhas orientadas, exemplificadas na do a um único acontecimento, a vários aconteci-
coluna central do quadro 1, refletem um es- mentos ao longo de um período ou a circunstân-
Da teoria à prática: apoiar o desenvolvi- tilo autoritativo do adulto na relação com a cias difíceis existentes no ambiente ao seu redor.
mento das crianças no dia-a-dia criança. O adulto orienta selecionando alter- São exemplos: perda de emprego por parte dos
Agora que já falámos acerca da importância nativas adequadas ao bem-estar, idade e fase pais ou familiares próximos; falta de tempo dos
das experiências vividas pelas crianças nos do desenvolvimento da criança e também pais; divórcio ou perda de um ente querido; hos-
seus primeiros anos para um desenvolvi- viáveis para ambos, considerando eventuais pitalização de um familiar; abuso ou negligência;
mento saudável, resta levarmos os nossos limitações que o adulto possa ter – de tempo, violência doméstica; desastres naturais, entre
conhecimentos à prática, promovendo um dinheiro, etc. Permitir que a criança faça pe- tantas outras situações 34.
início de vida estruturante e um futuro pro- quenas escolhas, com oferta de alternativas Acontecimentos ou ambientes geradores de
missor para os nossos pequeninos. adequadas, reduz a frustração e aumenta a tensão podem afetar os bebés e as crianças
Kim Roberts, especialista em parentalidade, segurança e a autoconfiança da criança, po- mesmo depois de a situação já ter melhorado
suporte familiar e desenvolvimento infan- dendo ser a base para a tomada de decisões e o ambiente e as pessoas à volta estarem re-
til, diretora do Programa HENRY (Health, responsáveis no futuro. À medida que a crian- compostos.
Exercise, Nutrition for the Really Young), dá ça cresce e amadurece, será possível aumen- Considerando que o stress tóxico tem impacto
exemplo de 9 formas de promover o desen- tar o seu leque de opções. no presente, afetando o bem-estar da criança,
Figura 5. Formas de promover o desenvolvimento das crianças de 1 aos 3 anos mais sensíveis do desenvolvimento da criança e
a orientar-se, fundamentalmente, para o domí-
nio cognitivo e da linguagem.
A formação de pais e educadores para o es-
tabelecimento de interações afetivas com a
criança e de reforço da sua autoestima e au-
toconfiança ainda requer a mudança de pa-
radigma do modelo cognitivo para o modelo
integrado de cognição e emoção.
Se a universalidade das intervenções ajuda a
promover condições de igual acesso, não deixa,
muitas vezes, de aumentar o fosso entre os
que já se situam acima da média das condições
socioeconómicas e os que estão abaixo dela.
Para diminuir as desigualdades, há que intervir
desde o início, numa altura em que as marcas
ficam mais fortes e são determinantes para o
resto da vida. Naturalmente que uma família
onde existam dificuldades económicas difi-
cilmente poderá viver num ambiente calmo e
seguro que facilite as condições para a criança
crescer bem. Sem esquecer que estes proble-
mas afetam, de facto, essas condições e que é
fundamental resolvê-los, é também necessário
O que podemos observar no comportamento da O que podemos fazer, ou orientar os pais a fazerem, em relação ao
criança? comportamento da criança?
Dificuldades no sono (medo de adormecer ou ficar Garantir uma rotina consistente e tranquilizadora, que convida a criança a dormir
a dormir, pesadelos). (banho, história, luz baixa, abraços, miminhos e aconchego).
Responder imediatamente e acalmar a criança em caso de pesadelos.
Alterações na forma como come (perda de Garantir que as refeições são momentos agradáveis e tranquilos. Oferecer opções
apetite, recusa de comer, acumular ou esconder adequadas de alimentos para que a criança faça a sua escolha. Não se importar
alimentos). com a sujidade ou desarrumação normais que a criança pode fazer enquanto come.
Alterações relativas às micções e dejeções Reduzir o stress quando a criança vai à casa de banho, com recurso a livros, jogos
(obstipação, retenção de fezes, urinar na cama ou ou atividades que são apenas para aqueles momentos.
na roupa). Garantir que a criança tem uma alimentação saudável, com alimentos que
permitam uma boa digestão e trânsito intestinal (leite materno para lactentes,
frutas, vegetais e cereais para crianças pequenas e crianças mais velhas).
Regressões no comportamento (reaparecimento Tranquilizar a criança, mostrando que está presente e ela está segura.
de comportamentos comuns em idades mais Ficar por perto. Anunciar quando vai sair e quando volta.
precoces: urinar na cama, chuchar no dedo, Se a criança parece estar “colada” a si, segure-a por mais um pouco.
agarrar-se aos pais, medo de estranhos ou fala à Incentive o uso de objetos de conforto.
bebé). Certifique-se de que passam tempo juntos, que dá colo e partilham momentos
agradáveis.
Morder, dar pontapés, birras e agressões. Estabelecer limites claros, de forma firme mas carinhosa.
Ajudar com palavras que faltam para descrever as suas emoções: “Vejo que estás
com raiva. O que devemos fazer quando isso acontece?”
Redirecionar a criança para um local tranquilo onde possa acalmar-se e organizar os
sentimentos.
Ler livros infantis que ensinam a lidar com as emoções.
Não expressar emoções ou parecer triste Procurar necessidades emocionais não atendidas.
Oferecer um abraço e a sensação de segurança.
Estar fisicamente e emocionalmente disponível
(não ao telefone ou em frente à televisão!).
As crianças imitam os adultos. Mesmo os bebés podem espelhar a depressão dos
seus pais. Os pais podem necessitar de ajuda e devem solicitá-la para manterem
uma boa saúde emocional.
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proporcionar aos pais e outros educadores o as condições do início da vida tem de passar BIBLIOGRAFIA
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mano. Embora as funções do sono não se o cronótipo pode levar o indivíduo a preferir centração do sono no período da noite, uma
encontrem totalmente esclarecidas, tem sido adormecer mais tarde e também a acordar diminuição do número de despertares notur-
salientado o seu papel para a reparação do or- mais tarde, mas o relógio social faz que acor- nos e uma redução da proporção de sono REM
ganismo, conservação de energia, maturação de com o despertador. Esta discrepância entre (Owens & Witmans, 2004).
do sistema nervoso, consolidação da memória o relógio biológico e o relógio social tem sido Entre os 6 e os 12 meses, a maioria dos bebés
e aprendizagem, funcionamento executivo e designada de jetlag social. Este fenómeno está consegue dormir seis horas ou mais durante a
regulação emocional (Dang-Vu et al., 2006). associado a alterações importantes na duração noite e acorda com menos frequência, embora
Durante a infância e adolescência, o sono é e qualidade do sono e a uma série de condições uma percentagem elevada acorde pelo menos
particularmente importante para apoiar o cres- negativas para a nossa saúde, como fumar, in- uma vez por noite e precise da ajuda do adulto
cimento e desenvolvimento acelerado que ca- gerir bebidas alcoólicas e com cafeína de forma para voltar a sossegar. Neste período, o bebé
racteriza estas etapas do ciclo de vida (Stein & excessiva ou mesmo sofrer alterações metabó- faz habitualmente mais do que uma sesta du-
Barnes, 2002). licas, cardiovasculares, cognitivas e emocionais rante o dia. A partir dos 12 meses, a maioria
À semelhança do que acontece com os outros (Roenneberg, Allebrandt, & Merrow, 2012; Wit- das crianças tende a dormir melhor, mas algu-
seres vivos, o organismo humano tem os seus tmann et al., 2006). mas começam a mostrar resistência à hora de
próprios ritmos biológicos, que permitem regu- deitar. Entre os 3 e os 5 anos, o sono noturno
lar funções essenciais, como o sono-vigília, a Como dormem os bebés e as crianças das crianças tende a estar estabilizado e pelo
temperatura, a digestão ou a produção hormo- pequenas? menos uma parte das crianças ainda precisa de
nal. Este funcionamento está organizado em Existem dois grandes tipos de sono, que alter- uma sesta de cerca de uma hora. A partir dos 5
torno de um ritmo circadiano, com um período nam entre si: o sono REM (de Rapid Eye Mo- anos, as crianças já não precisam de dormir du-
de cerca de 24 horas. Este relógio biológico, vements) e o sono não REM (NREM). Durante rante o dia. Quando a criança deixa de dormir a
embora seja determinado geneticamente, é o sono REM, o cérebro está ativo e ocorrem os sesta, pode ser necessário ainda assim manter
também sincronizado por fatores externos, sonhos. Durante o sono NREM, ocorre o sono na sua rotina um período de tempo sossegado
como a disponibilidade de luz solar, as horas profundo e todos os processos de restauração para que repouse um pouco, ou antecipar a
das refeições e a atividade física. O nosso reló- de energia e tecidos e de libertação de hormo- hora de deitar à noite.
gio biológico está particularmente sincronizado nas necessárias ao desenvolvimento e cresci-
com o dia e a noite. Desta forma, o organismo mento. Estes ciclos de sono sucedem-se 4 a 6
humano está programado para desempenhar vezes por noite, podendo ocorrer períodos de
determinadas funções quando existe luz solar despertar nas transições. A alternância entre
e outras quando escurece. Embora exista gran- estes dois tipos de sono é identificável logo
de variabilidade individual quanto aos períodos desde a vida fetal, mas os padrões de sono so-
em que os indivíduos preferem dormir e estar frem grandes alterações ao longo do ciclo de
em atividade (cronótipo), o organismo do ser vida (Owens & Witmans, 2004).
humano está genericamente programado para O ciclo sono-vigília é regulado pela luz e pela
dormir durante a noite e estar desperto duran- escuridão e leva tempo a desenvolver-se. Por
te o dia (Wittmann, Dinich, Merrow, & Roen- essa razão, o recém-nascido tem frequen-
neberg, 2006). temente padrões de sono mais irregulares,
Para além do relógio biológico, é hoje reco- dormindo 10 a 19 horas por dia, por períodos
nhecido o papel do relógio social, que decorre relativamente curtos de tempo e sem distinção
dos horários do nosso quotidiano, como os do dia e da noite. Esta regulação pelo ciclo noi-
horários de trabalho ou escolares. Por vezes, te-dia começa a desenvolver-se cerca das seis
existe uma discrepância considerável entre o semanas de vida, e pelos três a seis meses de
nosso relógio interno e o nosso relógio social. vida a maioria dos bebés tem reunidas as con-
Por exemplo, o nosso relógio social pode impor dições necessárias para ter um ciclo de sono-
que acordemos antes do sol nascer e, portanto, -vigília regular. Durante os primeiros meses de
antes da hora a que acordaríamos naturalmen- vida, verifica-se assim uma redução progressiva
Adaptado de “Recommended amount of sleep for pediatric populations: a consensus statement of the American Academy of Sleep Medicine”, por S. Paruthi, L. Brooks,
C. D’Ambrosio, W. Hall, S. Kotagal, R. Lloyd, B. Malow, K. Maski, C. Nichols, S. Quan, C. Rosen, M. Troester, M. Wise, 2016, Journal of Clinical Sleep Medicine, 12(6), p. 785.
Durante estes primeiros anos de vida, observa- Adaptado de “Recommended amount of diferentes da vida desta. Por isso, é essencial
-se um aumento progressivo da duração dos sleep for pediatric populations: a consen- estar atento aos seus sinais de sono e respeitar
ciclos de sono, que duram 45 a 60 minutos nos sus statement of the American Academy of os seus ritmos. Embora haja uma grande varia-
lactentes e se prolongam até 90-100 minutos Sleep Medicine”, por S. Paruthi, L. Brooks, C. bilidade nas manifestações comportamentais
na idade escolar e no adulto. Adicionalmente, D’Ambrosio, W. Hall, S. Kotagal, R. Lloyd, B. de sonolência nas crianças, têm sido descritos
observa-se uma diminuição do tempo total Malow, K. Maski, C. Nichols, S. Quan, C. Rosen, comportamentos como bocejar, esfregar os
de sono diário e uma redução progressiva do M. Troester, M. Wise, 2016, Journal of Clinical olhos, chorar, procurar mais atenção e con-
sono diurno. Estes aspetos contribuem para a Sleep Medicine, 12(6), p. 785. forto, aborrecer-se facilmente, deitar a cabeça
consolidação do sono noturno. Contudo, aspe- Importa salientar novamente que cada criança numa mesa e também comportamentos carac-
tos como a ansiedade de separação, os medos é uma criança e que as necessidades de sono terísticos da desatenção, como a dificuldade
noturnos, o aumento da mobilidade e interesse não só variam ao longo do desenvolvimento, de se concentrar e seguir instruções (Fallone,
pelo mundo e o desenvolvimento de compe- como de criança para criança e em momentos Owens, & Deane, 2002).
tências cognitivas e de linguagem podem con-
tribuir para aumentar a dificuldade da criança
para sossegar, a resistência ao deitar e os des-
pertares noturnos (Owens & Witmans, 2004).
Para além de responder de forma consistente no bem-estar e qualidade de vida das famílias len, & Aljazireh, 2000; Mindell, 1999). Duran-
aos sinais de sono da criança, é essencial pres- (Meltzer & Mindell, 2007). A dimensão destes te a primeira infância e idade pré-escolar, os
tar atenção aos sinais de sonolência diurna ex- efeitos parece depender do número de horas problemas de sono são comuns e universais
cessiva, que apontam para que a criança está de sono perdidas e do caráter crónico da priva- e afetam 20 a 30% das crianças (Owens,
a dormir menos do que necessita. Nos casos ção de sono, assim como da suscetibilidade de 2008).
de sonolência excessiva, têm sido descritos cada criança a estes problemas. Alguns traba- Durante os primeiros anos de vida, a insó-
indicadores como irritabilidade, adormecer fre- lhos têm procurado identificar qual a duração nia comportamental constitui a perturbação
quentemente durante o dia, como em peque- do sono que coloca as crianças em maior ris- do sono mais comum, assumindo manifes-
nas deslocações de automóvel, ou dificuldade co para estas condições, mas a investigação é tações como dificuldades para adormecer,
em acordar. ainda escassa e pouco conclusiva. De qualquer resistência ao deitar e despertares noturnos
forma, algumas recomendações têm incluído o (Owens & Mindell, 2011). Aproximadamente
Quais as consequências de dormir menos do número de horas de sono que será prejudicial 20 a 30% das crianças de 1 a 3 anos e 10 a
que o necessário? para as crianças (Tabela 1, (Hirshkowitz et al., 15% das crianças de 4 a 5 anos apresentam
Dormir sistematicamente menos do que o nú- 2015). dificuldades significativas para adormecer e
mero de horas recomendado está associado Importa referir que dormir sistematicamente despertares noturnos (Sadeh, Mindell, Lue-
a problemas de atenção, comportamento e mais do que o necessário também pode estar dtke, & Wiegand, 2009).
aprendizagem (Gregory & Sadeh, 2012; Tou- associado a resultados de saúde indesejáveis, A insónia comportamental tende a estar
chette et al., 2007). Uma duração do sono como hipertensão, diabetes, obesidade e pro- associada à necessidade da criança de ga-
insuficiente também aumenta o risco de aci- blemas de saúde mental (Paruthi et al., 2016). rantir determinado tipo de condições para
dentes, lesões, hipertensão, obesidade, dia- adormecer (por exemplo, a presença dos
betes e depressão (Bell & Zimmerman, 2010; Quais os problemas de sono dos bebés e das pais) e/ou a manifestações de resistência e
Koulouglioti, Cole, & Kitzman, 2008; Touchette crianças pequenas? adiamento da hora de dormir, incluindo bir-
et al., 2008) Muitos destes problemas persis- As dificuldades relacionadas com o sono con- ras, protestos, levantar-se com frequência e
tem ao longo da vida da criança (Pollock, 1994) tam-se entre as preocupações mais frequentes pedidos repetidos de atividades e atenção.
e têm também sido associados a uma redução dos pais de crianças pequenas (Arndorfer, Al- Esta última forma de manifestação da insó-
A APEI nasceu pouco tempo depois de me ter tornado educadora de contente e orgulhosa pela minha contribuição.
infância e, talvez por essa razão, foi sempre uma espécie de teto de Existe outro aspeto em que estou grata aos CEI pela oportunidade de
abrigo pedagógico, uma espécie de cúmplice da viagem profissional escrita que me proporcionaram: deixar-me, através dos meus contos,
que se tem vindo a concretizar há mais de três décadas. falar sobre educação não formal em que as aprendizagens se proces-
Foi uma honra e um prazer quando me pediram para editar pequenos sam dentro de relações sociais e institucionais, mas sempre e acima
contos numa rubrica de continuidade: “Contos para acordar”. de tudo afetivas, de uma forma lúdica e simbólica, trazendo para o
Nunca percebi se as minhas narrativas acordavam alguém ou não. presente memórias de outras infâncias vividas e permitindo fazer um
Durante uns tempos desconfiei que esta rubrica era a parte da revista cruzamento intergeracional.
em que os leitores passam à frente, mas certa vez que estava em Por tudo isto, pela qualidade desta revista que se tem mantido ao
atividades de férias com um grupo de crianças, comecei a ler-lhes longo da sua existência, pelo esforço e trabalho continuado ao longo
um dos meus contos e, de repente, alguns dos meninos (crianças de anos, pelas suas características únicas e tão abrangentes, pelo
a partir dos 6 anos) conheciam aquela história e adiantavam-se à espaço de divulgação dos trabalhos de qualidade realizados no âm-
minha leitura partilhando os acontecimentos do enredo! Tinha sido bito da educação de infância neste país (e não só), pelas temáticas
a professora que lhes dera aquele texto. O meu coração explodia de tratadas e tão bem refletidas, agradeço aos CEI.
alegria: alguém me lia e alguém utilizava o que eu escrevia! E a revista
CEI tinha leitores para além das e dos educadores de infância con-
siderados seu público alvo. Fiquei tão contente que até pensei que
esta revista poderia ser um dos grandes instrumentos que constroem
paraísos pedagógicos neste país! A revista estava de parabéns e eu,
Corria o ano de 2005, lembro-me que estava no agora AlmadaForma iria ser sobre atividades experimentais e seria o mais detalhada possí-
(antigo Centro Proformar) quando recebi o telefonema da Alexandra vel do ponto de vista da exploração da mesma em jardim de infância.
Marques (na época presidente da APEI) para me fazer o convite para a Pouco tempo após esta colaboração nas edições da APEI dou tam-
colaboração permanente nos Cadernos de Educação de Infância numa bém início à colaboração enquanto formadora, processo esse que me
nova secção chamada “À Descoberta”. Aceitei, sem hesitar, escrever permitiu ter um outro olhar sobre o ensino das ciências. As reflexões
sobre o ensino das ciências no jardim de infância. Isso agradava-me e partilhas durantes estes processos formativos foram muito enri-
e permitia-me utilizar o trabalho realizado em diversos jardins de in- quecedores para o processo de escrita para os Cadernos de Educação
fância no âmbito de vários projetos Ciência Viva. Assim começou esta de Infância.
aventura de escrever artigos sobre ciência no jardim de infância, já lá Assim, todos os artigos escritos até hoje têm por base atividades que
vão 11 anos e 35 artigos! foram realizadas em várias salas de aula pelas crianças e cujo registo
Escrever o primeiro artigo não foi tarefa fácil. Deixaram-me “à solta” de reações, conclusões e ideias, das mesmas e das educadoras, fui
para organizar a nova secção da forma que achasse mais interessante registando ao longo dos anos para que um dia os pudesse partilhar
e útil para o leitor. Mas antes de tudo isto havia que escolher o ou na divulgação do ensino das ciências no jardim de infância. Embora
os conteúdos, e surgiram mais uma série de dúvidas: teórico ou ex- não seja a minha actividade profissional principal, o ensino das ciên-
perimental? Se experimental, uma experiência ou várias mais curtas, cias é a minha paixão e agradeço à APEI esta oportunidade de poder
ou apenas pequenos projetos de investigação onde tudo se incluiria? continuar a trabalhar e aprender nesta área.
Um sem-número de dúvidas e de ideias que havia de organizar. Após
alguns ensaios e recolha de opinião, surge a estrutura base da secção:
Todos temos características únicas que nos Uma impressão digital apresenta os seguintes
identificam. Uma dessas características são as pontos característicos:
impressões digitais. • linhas pretas;
A dermatoglifia é o estudo dos sulcos e das • linhas brancas;
saliências da superfície das palmas da mão, • minúcias
das plantas dos pés e dos dedos. Nesta ati- • delta Figura 3. Vários tipos de minúcias
vidade será dada importância à datiloscopia, • núcleo
que é o processo de identificação por meio De um modo geral, pode afirmar-se que as im-
das impressões digitais. pressões digitais podem ser divididas em três Nesta atividade pretende-se explorar as im-
A datiloscopia baseia-se em alguns princípios padrões principais, que são os ciclos (loops), pressões digitais e reconhecer que são dife-
fundamentais: o princípio da perenidade diz os arcos (arches) e as espirais (whorls). rentes para cada um.
que os desenhos datiloscópicos em cada ser Os laços ou alças, são linhas que entram e
humano já estão definitivamente formados a saem do mesmo lado da impressão digital, Materiais necessários
partir do sexto mês de gestação; o princípio invertendo assim o seu percurso a meio do Papel
da imutabilidade diz que este desenho não se dedo. Almofada de carimbo (ou qualquer produto
altera ao longo dos anos, salvo algumas alte- Os arcos são linhas que começam num lado que permita “tirar” as impressões digitais)
rações que podem ocorrer devido a agentes da impressão, sobem em forma de colina e Lupas
externos, como queimaduras, cortes ou doen- terminam no outro lado.
ças de pele; o princípio da variabilidade afirma Os remoinhos ou espirais são linhas circulares Procedimento
que os desenhos das impressões digitais são que não entram nem saem de qualquer lado Pedir às crianças para observarem os dedos e
diferentes, tanto entre pessoas como entre os da impressão digital, formando várias imagens descreverem o que conseguem ver.
dedos do mesmo indivíduo, sendo que jamais circulares. Fornecer lupas e fazer o pedido anterior.
serão encontrados dois dedos com desenhos Passar a ponta do dedo na almofada de ca-
idênticos. rimbo e colocar a impressão digital no papel.
Assim, o estudo das impressões digitais tem
evoluído muito principalmente devido à ciên- Repetir para todos os dedos das mãos.
cia forense, embora a sua utilização já seja co- Questão: Será que as impressões digitais são
nhecida desde 2000 a.C., pois os babilónicos todas iguais?
usavam os padrões de impressões digitais em
barro para acompanhar documentos, a fim de Figura 2. Ciclos, arcos e espirais Observar e descrever as diferenças.
prevenir falsificações. Comparar as previsões com os resultados
Cerca de 70% dos padrões das impressões
digitais são ciclos, 25% são remoinhos e 5% Explicar o resultado
são arcos. Não termine aqui a atividade, os alunos de-
Também se podem classificar por minúcias vem fazer o registo das suas observações
que são características únicas conhecidas, da forma que achar mais conveniente (de-
nomeadamente descontinuidades locais, que senhos, textos, oralmente, etc.). Promova a
identificam pontos da impressão digital onde discussão sobre estes resultados ao longo
as cristas se bifurcam ou terminam. Formam do ano. Esta pequena experiência pode dar
a base de qualquer sistema que utilize as téc- origem a muitas outras.
nicas de comparação de impressões digitais
para propósitos de identificação e verificação.
Existem vários tipos de minúcias que podem
ser reduzidos a dois grandes tipos: termina-
ções e bifurcações.
Figura 1. Núcleo (core e delta)
Para comemorar os 30 anos dos CEI, de que pressão criativa inevitável da Natureza que recorri, cognitivos, emocionais ou vivenciais,
sou colaboradora desde 2005, com imenso procura constantemente evoluir? tudo isso é negligenciado porque o que inte-
gosto, decidi iniciar este artigo com uma pe- Infelizmente, observo à minha volta uma so- ressa é resolver um problema ou responder
quena provocação (pois, se assim não fosse, ciedade pouco aberta ao erro e muito forma- a determinada questão, segundo os critérios
para quem me conhece e acompanha, seria tada para reagir ao mesmo punindo-o. institucionalizados.
de estranhar): Observo crianças e jovens lutando todos os Urge desenvolver uma pedagogia positiva,
Conseguem imaginar um mundo onde todos dias para se encaixarem nas expectativas assente na individualidade e sensibilidade do
pensam da mesma forma, sentem da mesma criadas sobre aquilo que é esperado delas, educando.
forma e agem da mesma forma? por pais, professores, educadores e socieda- Que olhe para ele como um ser único e espe-
Decerto que não! de em geral. cial, com um potencial Ilimitado.
Decerto me responderiam que uma socieda- Observo os seus comportamentos, vivencio Porque na vida nada é previsível e nem sem-
de assim não evoluiria, que as pessoas es- os seus medos e frustrações. pre A + B = C.
tagnariam e agiriam como autênticos robôs. Relembro-vos que o medo associado à frus- E quando A + B = Z há que saber pensar
Ou, como diria o povo, “temos cinco dedos tração origina uma energia bloqueadora “fora da caixa”.
de uma mão e todos eles são diferentes”, e poderosíssima, que incapacita o acesso da “Errar é uma virtude.” Que o diga Alexander
há efetivamente uma razão para isso. criança ou jovem aos seus recursos internos, Fleming, que se não tivesse cometido o erro
Então, por que não aceitar a diferença? Por impedindo o fluir das suas reais capacidades. de se esquecer de placas com culturas de
que não aceitar o erro? Quantas vezes “recusam-se” inclusive a cum- microrganismos no seu laboratório ao ir de
A sugestão é: por que não aceitar o erro prir determinadas tarefas por medo de errar. férias, nunca se teria descoberto a penicilina
como uma estratégia válida na resolução de Tudo porque os currículos foram criados do e ele e os seus colegas nunca teriam ganho
problemas/tarefas? pré-escolar ao secundário para promover o Nobel da Medicina.
Por que não aceitar o erro como uma res- uma pedagogia assente nos resultados e não “E esta, hem?”, como diria Fernando Pessa se
posta natural, que faz parte do processo de no processo de aprendizagem. ainda estivesse entre nós.
evolução e aquisição de competências, sejam O “como lá cheguei”, seja o resultado final
elas emocionais, cognitivas ou relacionais? errado ou não, é pouco ou nada valorizado.
Por que não aceitar o erro como uma ex- O processo que utilizei, os recursos a que
Quando nós éramos pequenos, nas casas dias, nós, os pequenos, devorávamos com que só aconteceu uma vez, porque o medo
dos nossos avós, nas aldeias, ainda era cos- o olhar e com a paixão o fogo da lareira. da vergonha fazia-nos ficar vigilantes pelo
tume acender a lareira e, depois do jantar, Comíamos a sua cor, sentíamos o seu calor, sono dentro enquanto os olhos permane-
sentarmo-nos em banquinhos de madeira e embalávamo-nos na sua dança. Sentíamos ciam fechados e a inconsciência reinava. O
ali ficarmos com um dos avós, tios ou pais a simultaneamente um grande medo e uma que seria essa coisa? Por que é que a pre-
contar histórias do arco da velha. Não eram grande atração por aquele ente maravilho- sença do fogo acionava no corpo uma enor-
histórias de um arco, propriedade de uma so e perigoso. Sentávamo-nos mais perto me vontade de “verter águas”? Seria uma
velha, não. Arco da velha é uma expressão e tentávamos desenhar figuras no ar impri- necessidade de controlar as chamas que
que nós usávamos para designar as histórias mindo movimento à brasa da ponta de um nós, crianças, ainda não conhecíamos, mas
antigas e inverosímeis. Não tinham dragões pauzito que estivesse mais à mão na amál- já adivinhávamos como perigosas?
e outros monstros imaginários, mas tinham gama do borralho. Quando eu era criança, estes eram os mo-
bêbados, ladrões, velhos assustadores, me- “Não brinques com o lume! Com o fogo mentos em que me encontrava mais perto
ninos perdidos, animais, muitos animais, de não se brinca! Olha que vais fazer xixi na do fogo. A mãe, cuidadosa, lembrava sem-
quando em quando uma bruxa, sementeiras cama!”, eram coisas que os adultos nos pre aquela vez em que, quando criança, ati-
e colheitas, amores extraviados e secretos, diziam para nos afastar das brincadeiras rara uma castanha brava para a lareira e o
filhos mal nascidos, anões, doidos varridos perigosas. E, de facto, parecia que o fogo fogo lha devolvera, direita ao pescoço, feita
e outras tantas personagens de mistério e provocava qualquer coisa na bexiga que projétil incandescente. Mostrava a cicatriz
aflição, tão frequentes na vida real. chegou a transformar-se em dilúvio no e olhava para outro lado (pensávamos nós)
Enquanto ouvíamos aquelas narrativas tar- colchão de palha. Que eu me lembre, acho enquanto deitávamos pequenas migalhas
para a fogueira. Porque mexer nas brasas, o acalmar das vozes, com o lento apagar uma avó de papelão e colocámo-la na cama.
participar no fogo, era uma tentação. do clarão, sinais do controlo da situação. Mas quando os sarracenos chegaram e pe-
Uma certa noite, fomos acordados pelos Quando os adultos voltaram, cheiravam a garam na avó, descobriram que ela era fal-
vizinhos: o fundo do quintal estava em cha- fumo, estavam sujos e cansados, com sede sa, olharam para debaixo da cama e desco-
mas! Os adultos acorreram, foram chama- e com tosse. Tinham as caras secas e sérias briram lá a avó verdadeira. Portanto (na mi-
dos os bombeiros, a vizinhança juntou-se. e os ombros arqueados. nha inconsciência de sonho) os sarracenos
Dentro da casa, sentíamos o cheiro e, pela No dia seguinte fomos ver a zona ardida. levaram a avó verdadeira, apesar de termos
janela, víamos o clarão na noite. De longe, Coisa pouca. Pouco mais que o canavial tentado dar-lhes luta, só que eles tinham
parecia-nos o fim do mundo, o inferno, o à beira da estrada. Alguém que passara e uns uniformes azuis e uns sabres doirados
apocalipse! Ouviam-se as vozes dos adul- atirara o resto de um cigarro aceso para o e brilhantes e tinham força, muita força. Le-
tos gritando ordens e sentenças, vislum- chão. varam consigo a avó até ao poço quadrado
bravam-se as correrias com baldes e com Durante uns tempos, o medo e os pesade- que existia no fundo da quinta. Quando lá
ramos verdes, ouvia-se o crepitar do fogo, los persistiram. chegaram, acenderam muitos cigarros e in-
sentia-se a proximidade do calor doentio! Lembro-me de um certo pesadelo, tal e qual cendiaram as canas que ladeavam o poço.
Os corações desritmavam-se desenfreados como o sonhei, com a mesma realidade per- Depois desceram pelo poço dentro, por
e a adrenalina percorria o corpo puxando-o versa com que o encarei na manhã seguinte, entre as labaredas, por umas escadas inter-
para perto da janela e da porta e, ao mesmo desfeita em lágrimas: no meu pesadelo, os nas que aí existiam (acho que só existiam
tempo, para o resguardo da casa que nos sarracenos (que eu não sabia quem eram, no meu sonho, nunca tirei este pormenor a
protegia. A tia rezava, a avó acompanhava mas faziam parte das histórias da História limpo). Acordei nesse momento num pranto
com umas ladainhas impercetíveis, os cães que a mãe contava) tinham vindo buscar a de fazer tremer o mundo: tínhamos ficado
ladravam desenfreados e os bombeiros tar- avó. Como entretanto nos tínhamos aper- sem a avó! Não servira para nada o trabalho
davam. Havia uma agitação no ar que só cebido da sua proximidade pelo caminho de fazer uma avó falsa, de papelão! Qual
serenou com a chegada das sirenes, com das traseiras da casa, à pressa, construímos não foi o meu espanto quando, ao passar
pela porta sempre aberta do quarto dela,
ela ali estava, sentada na sua mesinha, com
o seu xailinho roxo cruzado sobre o peito, o
seu cabelinho branco muito penteado num
totó cheio de ganchos, a ler o seu eterno
livro: A Morgadinha dos Canaviais.
As conversas sobre o fogo e os incêndios
vinham bastas vezes à baila e o pai teimava
em dizer que o fogo não é mau. Ele achava
que todos os elementos da Natureza não
são bons nem são maus: existem e são
necessários. Ponto. Ele dizia que era pre-
ciso estudá-los, aprender a conhecê-los e
respeitá-los. Usá-los com controlo. Com
domínio e cuidado.
Mas, na nossa teimosia de crianças curio-
sas, o discurso do pai não conseguia acal-
mar os ânimos. Então, certa tarde, juntou-
-nos à sua volta e, pacientemente, ensinou-
-nos a acender um fósforo, a acender uma
fogueira e a apagá-la.
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