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Publicação quadrimestral n.

º 112 Setembro/Dezembro 2017


Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância
Preço 10¤ (IVA incluído) ISSN 2182-8369

ANOS

EDIÇÃO ESPECIAL
Publicação quadrimestral Equipa editorial: Ana Maria Azevedo, Joana Freitas-Luís,
n.º 112 Luís Ribeiro, Maria de Fátima Godinho, Maria Luísa Tavares,
Tiragem: 3000 exemplares Maria Manuela Rosa, Maria Margarida Costa, Susana Alberto.
Edição, Propriedade e Redação: Associação de Colaboradores: Helena Faria, Rosário Leote, Sofia Esteves.
Profissionais de Educação de Infância Revisão: António Simões do Paço Design gráfico: Metropolis Design
Bairro da Liberdade, Lote 9, Loja 14, Piso 0. www.metropolis.pt
1070-023 LISBOA Impressão: Sersilito – Empresa Gráfica, Lda Preço por número: 10¤
Tel. 21 382 76 19/20 Fax. 21 382 76 21 Assinaturas: 1 ano: 17,50¤ (iva incluído), estrangeiro (1 ano) 19¤
E-mail. apei@apei.pt N.º de registo: Direção-Geral da Comunicação Social 112028
Diretor: Luís Ribeiro Depósito legal: 12929/86 ISSN: 2182-8369
(Presidente da APEI) Os artigos assinados não exprimem necessariamente o ponto de vista da Direção.

1 Editorial . Luís Ribeiro 92 Artigo . Maria Filomena Gaspar


Arquitetos de soft skills?
3 Artigo. Conceição Moita Os educadores de infância do século XXI
Em júbilo
98 Artigo . Ana Sarmento Coelho
4 Artigo . Teresa Vasconcelos Brincar e pedagogia em educação de infância
Cadernos de Educação de Infância – 30 anos
de colaboração 104 Artigo . Sara Barros Araújo
Perspetivas pedagógicas para a educação em creche:
14 À conversa com… . Equipa de autoras das OCEPE princípios convergentes e implicações para a prática
A aprendizagem e a sua abordagem nas estratégias
implementadas devem promover uma aprendizagem 113 Artigo . Isabel Loureiro, Gisele Câmara, Ana Rita Goes
holística A importância das primeiras experiências na vida:
porque são uma oportunidade única
19 Artigo . Manuela Ferreira e Catarina Tomás



Educação de infância em tempos de transição
paradigmática: uma viagem por discursos políticos e
122 Artigo . Ana Rita Goes

práticas pedagógicas em Portugal Dormir bem para crescer melhor

34 Artigo . Isabel Lopes da Silva 128 Colaborar com a revista CEI . Rosário Leote e Helena Faria
Projectos de aprendizagem:
algumas perguntas frequentes 129 À descoberta . Rosário Leote de Carvalho
Impressão digital
43 Artigo . Maria do Céu Roldão
Formar para a excelência profissional – 130 Convergências . Sofia Esteves
pressupostos e roturas nos níveis iniciais da docência Errar é uma virtude

53 Artigo . Margarida Alves Martins 131 Contos para acordar . Helena Faria
Práticas educativas no jardim de infância e Labaredas da nossa infância
desenvolvimento da literacia. Macio escreve-se com um
8, com um M ou com um Y? 133 Nas bancas: Educação
Brinquedos no Intervalo. Publicidade Infantil na Televisão Portuguesa
59 Artigo . Cristina Mesquita Formação Inicial de Professores. A supervisão pedagógica no âmbito
A pedagogia holística em educação de infância do processo de Bolonha
Voltemos à escola
64 Práticas . Eunice Salvador, Lourdes Robalo, Dulce Matos


Projecto Amadeu de Sousa-Cardoso 134 Nas bancas: Infantil
Quero Um Abraço
71 Práticas . Marta Cabral Um Salto de Gafanhoto
Oferecer, ouvir e responder:
Vou Amar-te para Sempre
Explorações artísticas com crianças pequenas?
A Matilde está Careca
7 5 Práticas . Cláudia Peças, Fátima Aresta, Jéssica Carneiro O Monstro das Cores. Um livro pop-up
Uma casa para todos Programa de Prevenção Primária de Abuso Sexual para crianças
em Idade Pré-escolar - “Picos e Avelã à descoberta da floresta do tesouro!”
8 2 Artigo . Assunção Folque, Fátima Aresta e Isabel Melo
Construir a sustentabilidade a partir da infância



A APEI é apoiada pelo Ministério de Educação no âmbito do protocolo de afetação de recursos humanos
ENCONTROS 2017/2018
nosnalinha

18
9:30 Sessão de abertura
9:45 Desafiando visões e práticas
pedagógicas dominantes sobre
e com os bebés
Catarina Tomás, Escola Superior de
Educação de Lisboa e CICS.NOVA.UMinho
10:30 Debate

novembro 10:45 Coffee-break

11:10 Modelo Touchpoints e Educação de

2017
Infância - Reconheça o que traz para
a interação
Ana Teresa Brito, Fundação Brazelton
Gomes-Pedro
11:40 Debate
11:55 Na creche experimentar para todos
aprendermos
Fátima Aresta, Centro de Atividade Infantil,

MADEIRA
Évora
12:25 Debate

12:40 Almoço (Universidade da Madeira)


Universidade da Madeira 14:15 Pedagogia em creche: Contributos das
Sala do Senado interfaces entre formação e investigação
Sara Araújo, Escola Superior de Educação
Campus Universitário da Penteada do Porto
15:00 Debate
15:15 Baby Signs® nas Creches
Sabla D’Oliveira, Baby Signs® Portugal
15:45 Debate
16:00 A Magia do Som, concerto para
crianças e bebés
Paula Quaresma e Elisabete Quaresma,
Companhia B-ábá
16:20 Debate
16:35 Sessão de Encerramento

PREÇOS DE INSCRIÇÃO

ASSOCIADO 15€

NOVOS ASSOCIADOS
OU ASSOCIADOS QUE
CONVIDEM NOVOS
10€
ASSOCIADOS

NÃO ASSOCIADOS 25€

XV
PROFESSORES E
GRATUITO

A EDUCAÇÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA


ALUNOS DA UMA

Apoio:

nosnalinha
24
8:30 Abertura do Secretariado
9:30 Sessão de abertura
9:45 ?
Elly Singer, Universidade de Amesterdão
10:30 Debate

10:45 Coffee-break

março 11:10 Modelo Touchpoints e Educação de


Infância - Reconheça o que traz para
a interação

2018
Sabla D’Oliveira
11:40 Debate
11:55 Prática - MEM na creche: Primeiras
experiências numa comunidade de
aprendizagem
Liliana Videira e Sónia Felix - Centro Social
de Azurva

LISBOA
12:25 Debate

12:40 Almoço (livre)

Auditório da
14:15 ?
Ana Coelho - Escola Superior de Educação
de Coimbra

Escola Superior de 15:00 Debate


15:15 ?

Comunicação Social
?
15:45 Debate
16:00 ?
Gabriela Bento (Universidade de Aveiro)
16:20 Debate
16:35 Sessão de Encerramento

PREÇOS DE INSCRIÇÃO

ASSOCIADO 15€

ria
NOvOS ASSOCIADOS
Ou ASSOCIADOS que
CONvIDem NOvOS
10€
ASSOCIADOS

NãO ASSOCIADOS 25€

XIX A EduCAção nA primEirA infânCiA

Inscrições em www.apei.pt
1987-1996
1997-2006
2007-2017

Publicação Quadrimestral n.º 110 Janeiro/Abril 2017


Edição da APEI Associação de Profissionais de Educação de Infância
Preço 6.50¤ (iva incluído) ISSN 2182-8369
# 112
ESPECIAL 30 ANOS
: EDITORIAL
Luís Ribeiro . Presidente da APEI

É com imenso prazer (e muito orgulho!) que Portugal. Muitos outros investigadores e dância, é importante afirmar duma forma
escrevo este editorial para o número espe- práticas educativas de qualidade ficaram de assertiva que a qualidade na educação está
cial que comemora os 30 anos de edições fora, não porque se considerasse não serem intrinsecamente ligada à qualidade dos seus
ininterruptas dos Cadernos de Educação de dignos ou representativos do quanto con- profissionais e só profissionais altamente
Infância (CEI), um projeto único em Portu- tribuíram e contribuem para uma educação qualificados, como é o caso dos educadores
gal, uma visão arrojada que um conjunto de de infância de qualidade, mas apenas por- de infância, garantem uma educação de in-
educadoras, no já longínquo ano de 1987, que era manifestamente impossível acolher fância de qualidade.
decidiu pôr em prática, um projeto de exce- tantos contributos. Fica esta referência, o Em Portugal, o facto de os 0-3 anos terem
lência que o tempo só valorizou. Como diz profundo reconhecimento pelo que fizeram estado ausentes do sistema educativo per-
Conceição Moita no seu artigo, é de júbilo e a promessa de que os CEI, mais do que mitiu a proliferação de respostas muito di-
que falamos! estarem disponíveis, procurarão garantir que versificadas, muitas delas protagonizadas
Júbilo pelo facto de ser uma das revistas, tal- o brilhantismo da sua investigação e da sua por pessoas pouco qualificadas profissional-
vez a mais antiga sobre educação ainda em prática será traduzido em publicações. mente, como é o caso das amas e de outros
publicação; júbilo por ter conseguido man- Os últimos anos foram férteis em publica- cuidadores. E se, por um lado, é importante
ter, ao longo da sua existência, um elevado ções internacionais que vieram evidenciar aumentar as qualificações destes cuidado-
nível qualitativo, uma referência que só pode a importância da educação nos primeiros res, numa perspetiva de desenvolvimento
orgulhar quem nela se envolveu; e júbilo anos. As novas Orientações Curriculares para profissional e, por consequência, promover a
porque, passadas três décadas, os CEI ainda a Educação Pré-Escolar relançaram a discus- qualidade das respostas educativas, é tam-
se afirmam pela sua pluralidade, pela inova- são sobre a qualidade na educação pré-es- bém indispensável compreender que uma
ção, pela capacidade de não ficarem presos colar e colocaram na ordem do dia a impor- resposta de alta qualidade só pode ser pres-
ao pensamento dominante e irem acompa- tância da unidade da educação de infância, tada por educadores de infância, os únicos
nhando os diferentes olhares sobre a edu- acompanhando a realidade internacional e que têm qualificação profissional para traba-
cação de infância, que a todos enriquecem as recomendações já formuladas pela OCDE, lhar nesta faixa etária. Onde tudo se decide
e desenvolvem profissionalmente e que o pela União Europeia e pelo Conselho Nacio- é no trabalho direto com crianças e não na
artigo de Teresa Vasconcelos tão bem ilustra. nal de Educação. supervisão, e são as altas qualificações de
Para este número dos CEI foi convidado A importância da inclusão dos 0-3 anos no quem trabalha diretamente com as crianças
um conjunto alargado de investigadores e sistema educativo afigura-se uma medida que garantem uma educação de grande qua-
de práticos que pudessem trazer um olhar imprescindível na promoção da igualdade de lidade nos primeiros anos.
mais holístico sobre a educação de infância, oportunidades e na afirmação do princípio Em matéria de educação de infância, o traço
e a qualidade dos vinte artigos aqui publi- de que todas as crianças têm direito a uma qualitativamente mais distintivo de Portugal,
cados ilustra, de uma forma muito clara, educação de qualidade desde o momento que nos coloca na vanguarda internacional, é
a excelência da educação de infância em em que nascem. No entanto, passe a redun- o de todos os educadores de infância dete-

1 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: EDITORIAL

rem o grau de licenciado como formação ini- como uma verdadeira associação profissional pré-escolar, é partindo da discussão e do
cial (atualmente ao nível de mestrado), pelo de âmbito nacional e nestes últimos anos, confronto de ideias que a pedagogia (e o
que, ao pensarmos no alargamento da oferta conforme dei conta em editoriais anteriores, mundo) evolui. O conhecimento é evolutivo
nos três primeiros anos, em nenhuma circuns- conseguiu voltar a agregar um conjunto mui- e a inovação, por definição, surge sempre
tância ela deverá ser efetuada com recurso a to significativo de novos associados (desde por ruturas com os padrões anteriores. O
profissionais pouco qualificados, independen- setembro de 2016 até final de 2017 são quase que nos parece atualmente como o “estado
temente de essas ofertas serem ou não de mil), o que é muito sintomático do reconhe- da arte”, daqui a uns anos será olhado como
caráter institucional. cimento dos profissionais de educação de datado.
Se recordarmos a história, verificamos que, infância por esta associação. É nessa afirmação de pluralidade e inovação
nos anos 80 e 90 do século passado, quan- A estratégia que foi seguida em 2017 irá que discutir as aprendizagens e, por conse-
do se planearam respostas alternativas para manter-se em 2018, com um conjunto alar- quência, o desenvolvimento das crianças de
crianças dos 3 aos 6 anos, em localidades gado de iniciativas que irão abranger todo o 5 anos só pode ser algo importante e é por
onde não era possível criar jardins de infân- território nacional, com 5 encontros regio- essa razão que a apresentação pública (iné-
cia, através da educação pré-escolar itine- nais e, em total paridade, 5 Encontros Ser dita em Portugal) do mais recente estudo da
rante ou dos projetos de animação infantil e Bebé (reconhecimento da importância que OCDE “International Early Learning and Child
comunitária, não se encontrou a solução na a APEI dá à pedagogia nos primeiros anos), Well-being Study” irá ocorrer com uma con-
qualificação de pais ou auxiliares de ação edu- a preços verdadeiramente low-cost, criando ferência de Rowena Phair, sugestivamente
cativa, mas sim em modelos organizacionais e condições para que nenhum educador que intitulada “Early Learning Matters”, que abri-
pedagógicos protagonizados por educadores queira participar o deixe de fazer por razões rá o XV Encontro Nacional da APEI, a realizar
de infância, e esse é o caminho que deverá económicas. em Setúbal, nos dias 6 e 7 de julho, no Fó-
ser seguido no futuro. Recordemos, também, Pela primeira vez, o muito ambicioso plano rum Municipal Luísa Todi, com um programa
um passado que nos envergonha no primeiro de formação (um destacável desta edição recheado de grandes conferencistas (e de
ciclo do ensino básico, em que, durante déca- especial dos CEI) levará ações a todos os sugestivas conferências).
das a expansão da oferta foi garantida por re- distritos de Portugal, incluindo as regiões Por último, é de referir que, durante o mês
gentes escolares, sem qualquer qualificação. autónomas. Serão cerca de 200 ações em 18 de março, será publicado o primeiro número
As crianças nos primeiros anos de vida não distritos, uma mostra da vitalidade da asso- do novo projeto editorial internacional em
merecem “regentes escolares” e o caminho ciação e o reconhecimento de que todos os que a APEI está envolvida – Infância na Eu-
que terá de encontrar-se é o da excelência e educadores são importantes para a APEI. ropa Hoje – reunindo um conjunto alargado
não o da mediocridade ou da suficiência. 2018 será também o ano do XV Encontro Na- de artigos dos países envolvidos no projeto,
Foi neste sentido que a APEI, enquanto asso- cional, agora com uma periodicidade anual, que será remetido em conjunto com a edição
ciação profissional que defende que a quali- momento que se pretende relevante na vida de encerramento do anterior projeto Infância
dade do serviço educativo na infância deverá dos profissionais de educação de infância. na Europa, um número especial que compi-
ser garantido por educadores de infância, em Nestes encontros nacionais, tem-se procu- la os dez princípios propostos no manifesto
2016 lançou uma petição para inclusão dos rado trazer para a discussão e reflexão os “Para construir uma perspetiva de acolhi-
0-3 anos no sistema educativo, petição essa resultados da investigação e os projetos mento à infância”.
que já ultrapassou o número de assinaturas mais relevantes desenvolvidos nacional e Desejo a todos os leitores dos CEI, aos as-
exigido para que seja discutida na Assembleia internacionalmente, que constituam pontos sociados da APEI e a todos os profissionais
da República. É importante compreender que de partida para outros olhares sobre a edu- de educação de infância um excelente ano
esta é uma matéria sensível, que não será cação de infância, plurais, que rompam com de 2018.
possível a médio prazo reiniciar, pelo que o pensamento dominante que, tantas vezes,
qualquer imprudência ou voluntarismo pode é controlado por correntes ideológicas que,
deitar tudo a perder. A seu tempo, daremos em vez de “abrir janelas”, enclausuram.
conta dos trâmites que se irão seguir. Independentemente do que valorizamos na
A APEI, ao longo da sua já longa história (não educação de infância, das nossas convicções
falta já muito para comemorarmos 40 anos pessoais/profissionais e do nosso posiciona-
de existência!) tem procurado afirmar-se mento sobre as aprendizagens na educação

2 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Em júbilo
Conceição Moita . Educadora de infância, professora (aposentada) da Escola Superior de Educação de Lisboa

Agora que os Cadernos de Educação de In- Continuo a ler a revista assim que me che- fez grupo e quis lutar corajosamente para
fância fazem trinta anos, o meu sentimen- ga às mãos e julgo ser possível afirmar que constituir um corpo de pessoas formadas
to é de alegria e gratidão. E espanto. A ge- estes trinta anos da sua edição ilustram a para responder aos desafios de uma profis-
nerosidade com que múltiplas equipas têm história recente da educação pré-escolar no são exigente e que requer uma permanente
elaborado esta revista ao longo dos anos, nosso país, tecida pelas diversas políticas avaliação das suas práticas. Reconheço a
trabalhando de forma gratuita, emociona- públicas, pelos contributos da investigação APEI nesta dinâmica.
-me. E isto porque tendo sido uma ideia científica, pelo empenho de académicos E penso que os CEI são um polo desta von-
que despontou simultaneamente de modo dedicados, pelas práticas relevantes e um tade e que reflete e dá visibilidade a todas
tão leve e indeclinável, como um projeto pensamento reflexivo de muitos educado- as formas que vão dando corpo a este
(qualquer coisa que se atira para a frente), res de infância. projeto: planos de formação, sábados te-
foi ganhando raízes fortes na história da Penso que seria muito interessante que máticos, Encontros Nacionais e Regionais,
nossa Associação e afinal floresceu, graças alguém se aventurasse a “abrir” os Cader- Encontros Ser Bebé, grupos de autofor-
a uma multiplicidade de mãos cuidadoras. nos de Educação de Infância para “ler” de mação, relações internacionais, parcerias,
Júbilo é a palavra. modo sistemático aquilo que nós, seus lei- publicações, presença ativa nos fóruns de
tores habituais, ainda decisão e debate. Assim, vejo os Cadernos
não descortinamos, de Educação de Infância integrados numa
para encontrar um fio dinâmica mais vasta. É esse movimento
histórico, para tentar associativo que eu quero também saudar,
uma clarificação (a cla- congratulando-me com o gosto e alegria
rificação possível) do que vislumbro sempre naqueles que são
experienciado, dando parte desta tarefa e têm feito um caminho
nome ao que nos foi persistente de valorização da nossa classe
acontecendo durante profissional.
um tempo que ape- Mas em tempos de festejar o que já foi
sar de tudo ainda é feito, se continuarmos a olhar no mesmo
curto. horizonte, fica-nos na cabeça o muito que
Uma coisa é clara: se falta acontecer. Enquanto a qualidade ge-
nos tempos que cor- neralizada das práticas em educação de in-
rem se levantam no- fância não for um dado evidenciado pelos
vas problemáticas, estudos em que confiamos, não podemos
se usamos um novo baixar os braços. Enquanto a educação dos
léxico, se a educa- 0 aos 3 anos não for reconhecida em todas
ção de infância se as suas vertentes, não aliviaremos a mobi-
afirma como um lização. Qualquer dia… qualquer dia, os CEI
campo onde o pro- vão trazer-nos essas novas.
fissionalismo se Por enquanto, para além do júbilo, também
cruza com a pro- tenho saudades do futuro.
cura da qualidade,
se existe um reco-
nhecimento social
da importância
das aprendiza-
gens das crian-
ças pequenas é
porque houve
gente que se

3 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Cadernos de Educação de Infância – 30 anos de colaboração
Teresa Vasconcelos . Sócia da APEI, professora coordenadora principal (aposentada) da Escola Superior de Educação do
Instituto Politécnico de Lisboa.

Pedindo-me a APEI que colaborasse na cele-


bração dos 30 anos de publicação dos Cader-
nos de Educação de Infância (CEI), dispus-me
a fazer um percurso pelos inúmeros artigos
que para eles tenho escrito. Optei por fazer
uma viagem ao passado, mas simultanea-
mente elaborando, à luz dos tempos de hoje,
uma meta-análise do que então escrevi.
Comecei a colaborar desde o n.º 1 dos CEI
com alguma regularidade. Lembro-me até de
que escrevi para os CEI o primeiro artigo so-
bre a minha tese de doutoramento – “Tenho
que Ser Eu” (n.º 34) – porque senti que devia
à classe profissional esta divulgação do meu
trabalho sendo que depois, como é evidente,
a apresentei num número significativo de ar-
tigos em revistas de carácter científico.
Poderia fazer este trabalho por ordem cro-
nológica. Mas escolhi organizar os textos tão fácil cair em confortáveis não-respostas lidade e do respeito pelo outro. Afirmo ainda
por grandes áreas temáticas, apresentá-los, e num relativismo destrutivo? Reafirmo hoje que “os centros para a infância são locais de
compará-los e submetê-los a uma análise os compromissos sublinhados então: por práticas éticas”. Sublinho a necessidade de
crítica. uma educação não massificante que afirme “uma ética do cuidado” e da “solicitude” para
o valor da diferença, multi- e intercultural, a educação de infância. Finalmente, sublinho
1. Filosofia e ética profissional não-sexista, eivada de respeito pela Natu- a existência de “virtudes pedagógicas”: a co-
Dentro desta grande área, encontro textos reza (hoje diria ecológica), comprometendo- ragem, a sabedoria, a temperança, a gene-
diversos. Começo por um texto de 1987 inti- -se na paz e na não-violência, sublinhando o rosidade, o respeito. Hoje expandir-me-ia na
tulado “A minha filosofia de educação” (CEI sentido estético e da contemplação, enfim consideração destas virtudes pedagógicas:
n.º 3). Nele afirmo que é necessário “dar cor- numa educação democrática (hoje acrescen- sem respeito não há afirmação da liberdade
da ao relógio”. Nunca como hoje sinto essa taria transformadora). Com Emerson conti- e do direito. A coragem é necessária para
premência. Talvez porque numa sociedade nuo a afirmar que “cada criança é uma nova fazer face a uma corrente de individualismo
da “pós-verdade” se nos torne evidente a expressão do homem”. E insisto: “Há que selvagem, de corrupção e de não-verdade
necessidade de uma postura ética face aos dar corda ao relógio. Mesmo quando o mun- instalada. A denúncia será o resultado dessa
factos e às situações. Continuo a ver a mi- do parece louco, onde haja uma pessoa de coragem e está relacionada com uma edu-
nha filosofia de educação como um “sistema consciência e boa vontade, aí há esperança” cação transformadora. A sabedoria ensina-
particular de princípios” face aos “tempos (E. B. White). -me a encontrar estratégias eficazes para
líquidos” (Baumann) que são os que vive- Penso que o texto mais substancial nesta esta denúncia, fazendo-o escudada num
mos. Hoje, vejo esses princípios como muito área é o que escrevi para os CEI em resul- processo de grupo que traz maior força in-
poucos, sendo que o principal é o respeito. tado de um seminário preparatório da ela- terventiva e maior eficácia na denúncia. Sem
Reconheço a pergunta que me fiz então, boração da Carta de Princípios da APEI para generosidade não há ética. Porque a genero-
“Para onde quero ir como educadora?”, e uma Prática Eticamente Situada. Intitulei sidade é esse movimento do coração para o
passados tantos anos (30!) e tantas e tão esse meu trabalho “A Educação de Infância exterior que nos faz sermos solidários com
diversificadas experiências, continuo a fazer é uma Ocupação Ética” (n.º 68). Começo por outros, nomeadamente os mais pobres e
a mim própria esta pergunta: “Para onde refletir sobre o que representa afirmarmo- desprotegidos. O respeito, segundo Kant, é
quero ir?” Sublinho como educadora. Como -nos como profissionais “com quadros de a maior das virtudes, aquela que enquadra
me afirmo educadora nestes tempos fluidos referência para a prática”, praticando um sa- todas as outras. Insisto que o respeito deve
e assaz sombrios? Nestes tempos em que é ber especializado numa ética da responsabi- estar entranhado no nosso ser, cravado no

4 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


nosso coração, tornando-se parte intrínseca 2. Os meandros do currículo enquadra também nesta perspetiva. A me-
do nosso ser e agir. Torna-se óbvio que sem O primeiro artigo sobre currículo que pu- táfora do crescimento incidia sobre os cur-
respeito não há ética. bliquei nos CEI (nº 13) coincide com a fase rículos froebelianos elaborados a partir de
Quando no final dos anos 80 aconteceu o do movimento pedagógico em Portugal em uma visão rousseauniana. Nessa época cha-
triste incidente do afogamento da educa- que se introduziu a palavra currículo em to- mada pedagogia de situação, inseria-se cla-
dora Dídia Filomena Fernandes e de uma dos os níveis educativos. Anteriormente, no ramente nesta metáfora. A iniciativa era da
criança quase simultâneo a um incidente campo da educação de infância, falava-se criança e o educador apenas acompanhava a
numa escola infantil francesa em que a edu- em métodos: método Montessori, método iniciativa, garantindo que “a planta desabro-
cadora protege o seu grupo de crianças de Décroly, método João de Deus. No mun- chasse”. Finalmente a metáfora da viagem
um homem-bomba, escrevi, de um jacto, um do anglo-saxónico já existia a terminologia adequava-se, numa perspetiva deweyniana,
texto que intitulei “O Silêncio de Laurence e currículo. O artigo toma como ponto de a um continuum de experiências que, refle-
de Dídia”. Foi, para mim, um gesto ético e partida um trabalho na altura recente de H. tidas, levavam a experiências cada vez mais
de solidariedade profissional quando os jor- Kliebart (1975) sobre “Raízes Metafóricas ao elaboradas, sendo que a criança se modifi-
nais atacavam a “incúria” de uma educadora Projetar um Currículo”. Nele, Kliebart usava cava no decurso desta viagem. O educador
inexperiente e imprudente. Dídia afogou-se um conjunto de metáforas para explicar as garantia que o percurso fosse diversificado e
agarrada a uma das crianças para a proteger, raízes dos diferentes curricula. Tive então a de dificuldade acrescida para que a criança
após a descarga de uma barragem feita sem ousadia de propor a organização dos mode- passasse de um conhecimento sincrético a
qualquer aviso. Nesse momento o meu ges- los curriculares em Portugal em torno destas um conhecimento complexo. Nessa altura
to foi expressar solidariedade com a colega. metáforas. Inseri o modelo João de Deus e experimentava-se a pedagogia de projeto
O jornal Público publicou e, mais tarde, os a Pedagogia por Objetivos na metáfora da nos jardins de infância portugueses, nomea-
CEI reproduziram o texto (nº 27), a pedido. produção. Esta metáfora incidia no aluno damente da rede pública. Na rede da Segu-
Muitas colegas agradeceram o gesto. Ape- como material bruto, o currículo como meio rança Social, ao sul do Tejo, introduzia-se o
nas afirmei: “Podia ter sido qualquer uma de de produção com vista a um resultado num currículo de orientação cognitiva que, tendo
nós e a Dídia precisava de quem a defen- processo orientado para a eficiência e rigo- partido, nos Estados Unidos, de um mode-
desse.” rosa avaliação de objetivos atingidos. Creio lo claramente behaviorista, havia evoluído
ainda hoje que o modelo João de Deus se para uma perspetiva construtivista – e assim

5 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

fora implementado em Portugal por Cristina que se Procura – percursos curriculares na Finalmente, e a pedido da direção da APEI
Figueira – adequado também à metáfora da Educação de Infância (notícia no nº 98 e críti- para um número dedicado às novas Orien-
viagem. Nesta metáfora enquadrava-se ainda ca no nº 107), que se me ofereceu como uma tações Curriculares de 1996, escrevi um ar-
a conhecida pedagogia do Movimento da Es- oportunidade para refletir sobre a evolução tigo sobre “O Currículo no Cruzamento de
cola Moderna ou a pedagogia terapêutica da das orientações pedagógicas apresentadas Fronteiras (nº 108-109). Desenvolvi o con-
Casa da Praia, sob inspiração do mestre João pelo Ministério da Educação desde os anos ceito de fronteira introduzido na educação
dos Santos. 70. Elaborei com imenso gosto esta publi- pré-escolar na minha lição de agregação à
No nº 17-18, publicado no ano seguinte, “Pla- cação que se transformou num significativo Universidade de Lisboa2. Recontava a histó-
near: Visões de Futuro”, apresentava uma estímulo intelectual. ria e evolução do currículo, a influência dos
alternativa à planificação de carácter linear, Muito mais tarde publiquei um artigo sobre tempos democráticos e procurava deter-me
ainda feita na base de uma “pedagogia por o papel do educador/a como intelectual do no presente, nas suas contradições e com-
objetivos”. Apresentando uma alternativa à currículo. Intitulava-se “Das Orientações Cur- plexidade. Finalmente, num olhar prospetivo,
unidirecionalidade e baseada numa perspeti- riculares à Prática Pessoal: o Educador como desenvolvia o papel do conceito de fronteira
va sistémica, afirmava uma dinâmica dialética, gestor do currículo” (nº 55). As Orientações num tempo em que se sublinha a necessida-
com caráter circular e complexo, realimen- Curriculares para a Educação Pré-Escolar de de um currículo “aberto ao mundo”, que
tando o próprio sistema de planificação. A (OCEPE) haviam sido publicadas (1997) e tor- integre os movimentos sociais mais recentes
abordagem era problematizada, sendo que a nava-se necessário um alerta que incidisse na sociedade portuguesa – migrações, refu-
avaliação não era apenas feita no final, mas sobre a necessidade de apropriação de um giados, etc. Propunha, então, uma pedago-
durante as diferentes fases do percurso, de documento orientador no sentido da prática gia da desigualdade, conceito introduzido
um modo cumulativo, permitindo reacertos de cada educador/a que, necessariamente por Nóvoa em 20143.
no processo de modo a potenciar ao máximo baseada nas OCEPE, era produto de uma for- No entanto, relacionado com o conceito de
o percurso pedagógico. ma única de estar em pedagogia, específica a fronteira, introduziria hoje o conceito de
Ao analisar hoje as metáforas de Kleibart, e cada educador/a. Apelava-se aos níveis de de- hospitalidade4 tão querido à antropologia
baseada nesse texto sobre planificação, apre- cisão curricular (Roldão): central, institucional, cultural e simbólica e que define o movimen-
sentaria uma nova metáfora, a espiral, ter- grupal e individual, com base nos princípios to expectável quando acolhemos aqueles
minologia que foi introduzida por Bruner na da sequencialidade e “articularidade” consig- que vêm de fora, mas também aqueles que
pedagogia. Segundo Bruner, “o aprendiz deve nados na Lei de Bases do Sistema Educativo. são diferentes e com quem convivemos no
ter a oportunidade de ver o mesmo tópico Refletia-se na diversidade de papéis desem- dia-a-dia. Hospitalidade é diferente de acei-
mais do que uma vez, com diferentes níveis penhados pelo/a educador à luz da inspiração tação, ou mesmo de acolhimento. É receber
de profundidade e com diferentes formas de que continua a ser para mim a “prática educa- o outro como igual e, neste patamar iguali-
representação”. Aqui a complexidade é ainda tiva de Ana”1. Estes papéis diversificados eram tário, aprender com o outro.
maior do que na estrada (viagem), já que a apresentados e ilustrados com exemplos da
profundidade e as diferentes formas de re- prática educativa de Ana: um ambiente cuida- 3. Análise crítica de materiais pedagógicos
presentação não se compadecem com uma dosamente preparado; intencionalidade das Em estreita ligação com o currículo e depen-
“linearidade”, sendo que o resultado e o pon- atividades do quotidiano; construir um puzzle dente de uma das funções do educador/a
to de chegada são imprevisíveis e os níveis de em mudança; alimentar a vida do grupo – a que é a de selecionar os materiais pedagó-
complexidade são diferentes de acordo com Mesa Grande; registar como forma de alimen- gicos para a sua sala de jardim de infância
os conteúdos e as idades das crianças. Se tar a memória do grupo. Concluía com a uma ou de creche de uma forma intencional e
fosse hoje e tendo adquirido uma profunda reflexão sobre Ana enquanto gestora do currí- eivada de sentido crítico, divulguei um novo
experiência de realização e avaliação de proje- culo. Quando o releio ainda hoje me identifico material que havia conhecido nos Estados
tos em jardins de infância, colocaria esta mo- com este artigo e desejaria que um número Unidos nos anos 80. Tratava-se dos blocos-
dalidade pedagógica na metáfora da espiral, cada vez maior de educadores se identificasse -unidade (nº 9), feitos de um material único.
desde que o projeto tivesse um caráter mar- com os papéis que extraí da análise da prática Tratava-se de grandes blocos de madeira
cadamente crítico-sócio-construtivista. de Ana. 2 A Educação de Infância no Cruzamento de Fron-
Foi nessa linha que, muito mais tarde, a APEI teiras. Texto Editores, 2009.
me convidou a elaborar uma brochura, A Casa 1 Ao Redor da Mesa Grande: prática educativa de 3 Vasconcelos, Última Lição, 2014.
Ana. Porto Editora, 1997. 4 Encontro Nacional da APEI no Porto, julho de 2017.

6 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


de ácer ou ulmeiro – uma madeira dura e
pesada – que permitiam grandes constru-
ções sofisticadas e complexas, à altura das
crianças e que eram usados em jardins de
infância e escolas do 1º ciclo desde o tempo
do Progressive Movement de John Dewey.
O grande arquiteto Frank Lloyd Wright re-
fere-se ao uso destes blocos na sua infância
como propulsores da sua criatividade futura
enquanto arquiteto. Estes blocos inspiravam
enormes construções “invadindo” a sala de
atividades e que eram feitas ao longo dos
dias, correspondendo a uma interpretação
bem pessoal dos edifícios de Nova Iorque, as
suas pontes e vias de comunicação. Os edu-
cadores norte-americanos atribuíam valores
educacionais diversificados ao uso destes
blocos: sócio-emocionais, jogo dramático,
arte, ciências sociais, matemática e geome-
tria, desenvolvimento físico, intelectual e
da linguagem e, evidentemente, preparação verdadeira “invasão” de propaganda sobre feminizadas. Partindo do princípio de que o
para a leitura. Não se podem comparar aos materiais didáticos – num franchising de jardim de infância devia ser uma organização
pequenos blocos usados nos nossos jardins produtos para a infância – para o jardim de social participada e um locus de cidadania,
de infância. Nesse artigo apresentava um infância e para a creche sem quaisquer crité- apresentava um conjunto de propostas que
excelente gráfico demonstrando as várias rios de qualidade. Chamava a atenção para se prendiam com o objetivo de ajudar as
dimensões de aprendizagem ligadas à utili- critérios de qualidade e de estética, de ade- crianças a desconstruir as questões de géne-
zação dos blocos-unidade. Propus à Escola quação à multiculturalidade e às questões de ro no jogo e na brincadeira espontânea, mas
Superior de Educação de Lisboa a aquisição género. Continuo a acreditar na necessidade também na forma como os materiais eram
de alguns destes blocos para serem usados de fazer esta análise crítica. Os livros de fi- utilizados: porquê carpintarias e garagens
nas aulas dos nossos alunos. Mas o tamanho chas, os “compêndios” realizados de acordo para os rapazinhos e “casinhas” e cabeleirei-
deles e o seu custo não permitiram a compra com as OCEPE, a ênfase na leitura, escrita e ros para as meninas? Por que não introduzir
do número de blocos necessários a que as matemática retiram a dimensão globalizante dissonâncias cognitivas nestes estereótipos,
alunas fizessem as suas próprias experiên- do jardim de infância, desvalorizando a arte, transformando os “cantinhos” tradicionais
cias. Infelizmente nunca foram introduzidos a cidadania, a interdependência, e tornando em grandes “oficinas” proporcionadoras de
nos jardins de infância portugueses. Mas a o educador num consumidor de verdadeiros múltiplas experiências e utilizações? Os me-
elaboração deste artigo permitiu que as edu- “manuais”, retirando criatividade e autono- ninos podem ser atraídos por uma “área da
cadoras portuguesas fizessem uma análise mia à sua ação. casa” onde se possa de facto cozinhar – uma
crítica dos materiais que utilizavam. Mais tarde escrevi um breve artigo intitulado experiência química tão estimulante! – ou
Bastante mais tarde, e preocupada com a “Do discurso dos ‘Cantinhos’ ao discurso da as garagens e construções poderão tornar-
falta de qualidade dos brinquedos e publi- ‘Oficina´: um contributo para uma pedago- -se amplos espaços de exploração múltipla,
cações para a infância, escrevi um apelo nos gia da infância atenta às questões de géne- permitindo o desenvolvimento de músculos
CEI (nº 79) numa rubrica então existente: ro” (nº 92). Fiz uma reflexão crítica a partir amplos, atraindo não só rapazinhos como
“Diga de sua Justiça com Justiça”. Intitulava- da constatação da forma como os espaços meninas. Quando em Nova Iorque observei
-se: “Marketing na Educação de Infância: da estão organizados nas salas de jardim de in- a utilização dos blocos-unidade encontrei
necessidade de sermos (nós e as crianças) fância. Afirmava a necessidade de esses es- sempre meninos e meninas a colaborar em
consumidores esclarecidos”. Denunciava a paços serem mais neutros, com áreas menos projetos comuns, estimulantes e desafia-

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dores. Considero ainda que toda a sala de McMillan preocupava-se com a educação do Centro Infantil Helen Keller destinado a
jardim de infância deve estar organizada em das mães, introduzindo clubes de tricô onde crianças cegas e amblíopes. Apresentámos
áreas de trabalho ou oficinas e não “canti- se bebia uma chávena de chá e se conver- ainda, no nº 35, a grande pedagoga Maria
nhos” estereotipados e limitativos. O termo sava sobre questões de educação. Ainda Montessori, numa reflexão sobre a sua vida
oficina implica trabalho, exploração, concen- hoje existem as nursery schools, cujo nome e contributo para a pedagogia, nomeada-
tração e criatividade. A área da biblioteca é originário da nursery, a secção da casa das mente o método Montessori e os materiais
deve também ser rigorosamente escrutinada famílias abastadas destinada às crianças. Montessori ainda hoje utilizados em esco-
de modo a conter livros de grande qualidade Deste modo McMillan democratizou a nur- las de elite internacionais. Muito mais tarde
estética e literária sem apresentarem este- sery. Já com o apoio da pesquisa efetuada vim a encontrar na Tanzânia uma escolinha
reótipos ou atropelos culturais. O tempo das pelas alunas, surgiu um artigo sobre Irene Montessori destinada às crianças da tribo
“Anitas” pertence definitivamente ao passa- Lisboa enquanto pedagoga (nº 19). Irene Masai, com materiais feitos pela própria
do e não entendo como ainda se reeditam foi aluna daquela mesma escola onde elas educadora.
esses livros. Se hoje reescrevesse este mes- se estavam a formar e tal facto ajudou a Ousei colocar um grupo de alunas a estudar
mo artigo valorizaria de modo mais intencio- criar laços e empatia. A constatação de que Ana Isabel Pindella (nº 70), uma pedagoga
nal os aspetos multiculturais dos materiais: era uma aluna inteligente, cumpridora mas ainda viva que foi minha “mestra” de pe-
bonecas de diferentes raças, livros em que contestatária, mais as inspirou. Irene Lisboa dagogia na escola de formação onde tirei o
apareçam diferentes culturas e contextos de foi a criadora das primeiras escolas infan- meu curso. Chamámos-lhe “uma pedagoga
vida, jogos em que as profissões não apare- tis oficiais, introduzindo materiais e peda- à escuta do seu tempo”. As alunas deslo-
çam estereotipadas. gogias muito próprias, inseridas na cultura caram-se ao Norte, onde ela reside numa
portuguesa e potenciando as tradições lin- quinta (onde chegou a criar uma quinta pe-
4. Pedagogos como modelos inspiradores guísticas. Maria Amália Borges de Medeiros dagógica). Sei que para as minhas alunas foi
Desde que iniciei atividades de formação de (nº 32), fundadora do Movimento da Escola uma verdadeira inspiração entrevistar uma
educadores que me pareceu fundamental Ativa em Portugal, introduziu pela primeira mulher que formou gerações de educado-
que, nos primeiros anos de curso, os/as vez as técnicas Freinet entre nós na esco- ras e foi simultaneamente mãe de seis fi-
alunos fizessem um estudo aprofundado de la infantil criada no sótão de sua casa. Foi lhos. Contactaram um texto escrito por Ana
diferentes pedagogos, uns mais conhecidos ainda cofundadora (com João dos Santos) Isabel Pindella e que intitulou “Reflexões
outros menos, todos eles podendo apre-
sentar-se como modelos com que os jovens
se identificassem. Do estudo de alguns des-
ses pedagogos resultou um conjunto de ar-
tigos que publiquei nos CEI conjuntamente
com as respetivas autoras, proporcionando
aos alunos/as uma gratificante experiência
de escrever para divulgar para outros. Co-
mecei por apresentar individualmente uma
pedagoga inglesa, pouco conhecida entre
nós, Margaret McMillan (nº 29), criadora
do modelo das nursery schools inglesas,
destinadas às crianças mais desfavorecidas,
garantindo-lhes ar fresco e alimentação de
modo a colmatar o terrível flagelo que era
a tuberculose infantil nos inícios do século
XIX. McMillan era, simultaneamente, mi-
litante do Partido Trabalhista inglês e foi
essa militância que a interpelou nas suas
opções sociais e pedagógicas. A par disso,

8 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


de uma Avó”, textos eivados de profunda me faziam deslocar de Viana do Castelo educação no nosso país, tornando-se uma
sabedoria e de conhecimento pedagógico. até Lisboa, para aprender e fundamentar referência para as educadoras de infância.
Ana Isabel Pindella, mais tarde condecora- o uso da linguagem pelos mais pequenos. Foi o primeiro a reconhecer e a dar voz às
da por Jorge Sampaio, fundou, no colégio João dos Santos foi objeto de uma senti- educadoras, acreditando no seu trabalho e
dos Jesuítas em Santo Tirso, uma reconhe- da homenagem em 2013, homenagem essa aprendendo com elas, ao seu jeito simples
cida experiência pedagógica, adaptando os que deu origem a uma página da Internet e interventivo de tudo questionar. No nº 16
enormes dormitórios dos ex-alunos a salas dedicada a este grande pedagogo. Nessa dos CEI faço um relato de um dos primeiros
de atividade com verdadeiras áreas de tra- altura escrevi um texto que foi publicado encontros de investigação sobre educação
balho e de experimentação. pelos CEI (nº 99). Tecido à volta de um poe- de infância por ele organizado na Fundação
Bem mais tarde, por ocasião da sua mor- ma de Ana Luísa Amaral, referi os aspetos Gulbenkian.
te, escrevi sobre três figuras relevantes essenciais da pedagogia de João dos San- Todos estes pedagogos continuam a ser re-
da pedagogia da infância: Lucinda Atalaia, tos e como no saudoso Jornal de Educação levantes para o conhecimento da educação
João dos Santos e Joaquim Bairrão Ruivo. dos anos 70 aguardávamos ansiosamente de infância no nosso país e subscrevo tudo
Lucinda Atalaia (nº 86) foi fundadora da Es- a publicação dos seus artigos de reflexão o que escrevi sobre eles. Mas se fosse hoje
cola Infantil Pestalozzi e, simultaneamente, pedagógica, mais tarde compilados em “En- escreveria sobre uma “imensa” pedagoga,
dirigente da CEFEPE, uma cooperativa de saios sobre Educação I e II”. Bairrão Ruivo professora do 1º ciclo, que tem sido uma
formação. Especializada na linguagem in- (nº 83) não foi um pedagogo, mas um reco- inspiração para educadores de infância e
fantil, relembro as suas significativas ações nhecido psicólogo da infância que teve um professores do 1º ciclo de inúmeras gera-
de formação “Aprender... aprendendo”, que relevante impacto no desenvolvimento da ções: Manuela Castro Neves. A sua prática

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e os seus escritos são de uma acutilância das educadoras que a conheceram. inglesa. Não há qualquer referência ao con-
e de um rigor importantes. Mas o que nos 5. Desenvolvimentos, transições, terapias texto cultural de origem e à especificidade
interpela é a forma como ela escreve e fala e cidadanias daquela criança. Pelo menos salvaguardo a
dos seus alunos, sobretudo daqueles com Opei por dar este título a uma miscelânea importância do jogo e das interações na vida
maiores dificuldades de aprendizagem. Uma de textos assaz diferentes mas que incidiam daquela menina. Atualmente os sociólogos
verdadeira contadora de histórias, leva-nos sobre aspetos relevantes da educação de in- da infância questionariam os meus critérios.
a viajar pelos contextos de vida das crianças fância. No nº 11 dos CEI, recém-chegada dos E os contextos? E as questões de género?
que descreve, fala delas com uma imensa Estados Unidos, apresentei um “Retrato sob E as infâncias? O trabalho que realizei foi
ternura que não é lamechas mas integrando o ponto de vista do desenvolvimento de uma demasiadamente linear e projetivo e, apesar
a forma como as vê enquanto cidadãs de criança de 4 anos de idade”. Não me revejo das minhas críticas à formulação “estádios
corpo inteiro. Nos anos mais recentes intro- hoje nesse artigo. Querendo ir para além das de desenvolvimento” (nomeadamente os ge-
duzi os livros de Manuela Castro Neves nas teorias do desenvolvimento vigentes, apre- selianos), apenas consegui apresentar uma
minhas aulas de Pedagogia. O processo de sento aspetos algo estereotipados do que criança descontextualizada.
identificação dos meus alunos com ela era pode ser uma menina de 4 anos de idade. Ainda nos primeiros números dos CEI des-
grande. A Manuela vinha à escola de for- Apesar de a situar em Nova Iorque e com crevi uma experiência realizada nos Estados
mação conversar com os alunos depois de origem em Porto Rico, acabo por apresentar Unidos de “ludoterapia” com uma criança de
a terem estudado. Era um face a face que uma típica menina branca, de classe média, 5 anos. Intitulava-se “Juan e a ludoterapia:
veio a determinar grandemente o percurso movendo-se entre a língua espanhola e a uma aventura de domesticar os monstros”

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(nº 5). Sob a orientação de uma terapeuta de infância em torno de diferentes eixos: A minha conversa com o computador é inte-
familiar, apoiei uma criança, Willie, a fa- diálogo e negociação; responsabilização e ressante. Na realidade ainda não tinha usado
zer face à morte violenta da sua irmã mais compromisso; afirmação das diferenças e nenhum. Não recordo por que razão muito
nova, de apenas 1 ano e meio. Escuso-me de construção da democracia. Ainda hoje me mais tarde (nº 25) volto a escrever um arti-
descrever a violência daquela morte. Mas o encanta a leitura deste artigo. Os episódios go completamente diferente com o mesmo
pequenino Willie entrou num estado ansio- selecionados, os diálogos, o colorido das res- título. Deveria ter tido o cuidado de pôr um
so, de uma agitação incontrolável e agressi- postas das crianças ilustram como o micro- subtítulo – Páginas do meu bloco-notas II.
va, perdendo aquilo a que Winicott chama cosmos de uma sala de atividades pode ser Neste caso não me referi à universidade em
“a capacidade de brincar”. Utilizando muito um contexto relevante de aprendizagem da que fiz o mestrado, mas àquela onde fiz o
poucos materiais lúdicos, brincava com a cidadania. doutoramento, em Urbana-Champaign, Illi-
criança no seu quarto enquanto a terapeuta Finalmente abordo as questões da transi- nois, em pleno midwest americano. Neste
familiar conversava com os pais na sala e por ção jardim de infância-1º ciclo: “Transição artigo procuro divulgar algumas das ideias
quem fui supervisionada, claro. Passada uma jardim de infância – 1º ciclo: um campo de mais recentes sobre educação e psicologia
fase de agressão pessoal e de destruição possibilidades” (nº 81). Partindo ainda de um que andava então estudando. Ainda hoje
dos brinquedos e materiais, introduzi uma episódio da minha tese, este artigo foi escri- são relevantes e pouco conhecidas no nosso
pequena família de bonecos. Com a criança to em resultado de uma comunicação feita país. Simultaneamente estava a aprender a
“joguei” a morte da irmã, simbolizámos o num encontro da Associação de Professores realizar investigação qualitativa, concreta-
seu funeral numa caixa de sapatos, acolhi-o de Matemática. Aborda a questão das tran- mente etnografias em educação.
quando precisava de chorar nos meus bra- sições numa perspetiva ecológica e descreve Divulgo ainda, em dois artigos bem afasta-
ços. O Willie voltou a brincar de uma forma as competências básicas de aprendizagem dos no tempo (nº 20 e nº 32) a experiência
organizada e ainda hoje considero que fiz um nos primeiros anos, relevantes para a en- das escolas municipais de Reggio Emilia, com
trabalho relevante com esta criança, estrita- trada no 1º ciclo: capacidade de aprender a a qual havia estado em contacto nos Esta-
mente baseado na minha intuição pedagógi- aprender, competência social, autoconfiança dos Unidos. Foi uma verdadeira descoberta,
ca e na minha sensibilidade. e autoestima, capacidade de autocontrole e sobretudo em virtude da forte incidência
Escrevi ainda um artigo importante baseado de domínio pessoal, hábitos de trabalho in- nas artes (nomeadamente as artes plásti-
numa experiência vivida na sala da Ana da dividual e em equipa, capacidade de resiliên- cas, cada escola tendo o seu atelierista). O
Mesa Grande. O artigo intitulava-se “Eu dei cia. O artigo, baseado em inúmeros estudos papel do espaço no ambiente educativo era
um ‘estaladão’ à Ana: Vasco e os cordeiri- internacionais, convida a passar da simples decisivo, ou não nos encontrássemos no país
nhos” (nº 97). Num acesso de frustração, o transição à articulação, estabelecendo espa- dos grandes arquitetos e artistas plásticos.
Vasco agrediu a educadora Ana dando-lhe ços de diálogo entre crianças e entre educa- Aliás, as artes visuais e as obras de grandes
uma estalada. O artigo descreve o processo dores, experimentando o que é planear em pintores acompanhavam de perto as ativi-
de tomada de consciência da criança sobre conjunto ou elaborar projetos no coletivo. dades pedagógicas. Foi bonito ver o grande
aquilo que fez, a atitude da educadora e a pintor catalão Miró introduzido nas creches,
forma como a criança, mais tarde, se redimiu 6. Relatos de experiências internacionais bem ao alcance das crianças. Organizei de-
da agressão feita. Um episódio tocante. Ain- Sob este amplo chapéu descrevo algumas pois uma visita de estudo a Reggio Emilia
da hoje experimento um frisson ao lembrar- das minhas experiências noutros países, convidando figuras relevantes da educação
-me de como a Ana conduziu toda aquela nomeadamente no que toca às pedagogias de infância no nosso país, além de colegas
situação potenciando-a pedagogicamente. para a infância. São relatos coloridos, acom- da minha instituição de formação e educa-
Abordei o conceito de cidadania no jardim panhados de fotografias, incidindo sobre doras cooperantes, como é óbvio. Foi uma
de infância no contexto da sala da Ana. O aspetos diferenciados da minha experiência. experiência inolvidável, acompanhando o
artigo intitulava-se “Educação para a Cida- Logo no nº 1 dos CEI faço um relato da mi- que se faz dos 0 aos 3 anos e dos 3 aos 6.
dania num Jardim de Infância: ‘Tenho de nha experiência nos Estados Unidos, mais De regresso, organizámos uma exposição na
ser eu!’” (nº 34). Este artigo foi baseado na concretamente em Nova Iorque: “Retalhos nossa escola de formação dedicada a profes-
minha tese de doutoramento, como afirmei de um Patchwork Americano”. Acabava de sores e estudantes. Foi nesse contexto que,
atrás. Descrevo vários episódios de educação fazer um curso sobre computadores e ainda em 1994, escrevi o segundo artigo sobre
para a cidadania no contexto daquele jardim tropeçava na minha adaptação à Big Apple. esta experiência. Depois disso um bom nú-

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mero de educadores visitaram Reggio Emilia com o uniforme próprio para ir à escola – género. Penso, ainda hoje, que este estudo
e puderam usufruir desta experiência peda- lindas, lindas! Aconchegando-se no nosso foi muito importante para entendermos as
gógica presentemente reconhecida em todo colo com confiança e abandono. Elaborei um dinâmicas de desenvolvimento profissional
o mundo. documento estratégico e um documento pe- dos educadores do sexo masculino.
Descrevi também, de seguida, impressões de dagógico (que descrevo no artigo), usando a
uma deslocação ao Oriente profundo: “Pin- metáfora do TAI’s. O TAI’s indica faixas feitas 9. Expansão da educação pré-escolar
celadas sobre a Educação Pré-Escolar na Tai- em tear que adornam pessoas e ambientes. Em 1996 fui chamada pelo Governo para
lândia” (nº 29), em que fui tocada pelo uso Apresentei sugestões de atividades ligadas à assumir a Direção Geral da Educação Bási-
de práticas de ioga nos jardins de infância. A cultura local. Nunca mais pude voltar a Timor ca. O objetivo era cumprir um dos objetivos
serenidade e interioridade das crianças resul- Leste para analisar se a minha consultoria fundamentais do programa do Governo:
tava dessa prática. Na China (nº 31), por oca- teve algum impacto, mas confio que sim. o projeto de expansão e desenvolvimento
sião de um congresso internacional, visitei da educação pré-escolar. Fui entrevistada
um número significativo de jardins de infân- 7. Compromisso com os 0-3 anos longamente pela APEI (nº 39) no sentido
cia: a cultura do Oriente permanentemente Tive a oportunidade de divulgar a recomen- de clarificar o que andava a fazer e qual a
presente: danças sofisticadas com grande dação sobre os 0-3 anos que preparei por minha estratégia. Para esse trabalho contei
número de crianças, grande disciplina na solicitação da presidente do Conselho Nacio- com a dedicação e empenhamento de uma
motricidade ampla e fina resultando em so- nal de Educação de que então fazia parte (nº educadora notável, a Miquelina Saraiva Lobo
fisticados trabalhos manuais. Salas enormes 95), insistindo em “propostas para a criança (ex-presidente da APEI), que chefiou uma
com muitas crianças, enorme concentração futura”. Esta recomendação foi aprovada por equipa de educadoras dedicadas que deram
e autodisciplina. Realizavam-se sobretudo unanimidade. Anteriormente havia publicado o seu melhor pelo projeto. Mais tarde fomos
atividades de grande grupo e muitas ativi- um apelo para que se pensasse “na voz e na ambas condecoradas pelo Presidente da Re-
dades de carácter musical e de movimento. vez das crianças dos 0 aos 3 anos (nº 91). pública Jorge Sampaio.
Entendemos um pouco da cultura chinesa A APEI noticiou amplamente o que se an-
presente nestas instituições educativas tão 8. Educadores de infância dava a fazer: aspetos do Programa de Ex-
radicalmente diferentes das nossas. Visitei Para além de divulgar a organização do mes- pansão e Desenvolvimento da Educação
ainda a Índia e fiquei impressionada com trado em Educação de Infância na ESE de Pré-Escolar (nº 38), a promulgação da Lei-
a condição das crianças (nº 48): situações Lisboa (nº 34), um trabalho em que toda a -Quadro da Educação Pré-Escolar (nº 41).
de trabalho infantil, acesso à escolaridade equipa de professores se empenhou, apre- Mais tarde foi ainda divulgada a notícia do
apenas para algumas, crianças mais velhas sentei ainda um estudo bem interessante por exame temático da OCDE sobre “Educação
cuidando das mais novas, grande pobreza e mim orientado feito por uma ex-mestranda, e Cuidados às Crianças dos 0 aos 8 anos
fome que as levava a procurar alimento nos Andreia Oliveira, intitulado “Construção e de- (nº 50). Infelizmente não foi possível divul-
enormes montes de lixo. No entanto, a be- senvolvimento da identidade profissional do gar a apreciação que a OCDE fez do nosso
leza das crianças e os seus olhos escuros e educador de infância: Estudo (no masculino) trabalho. Mas nunca mais esquecerei que a
profundos era tocante. do percurso profissional de três educadores OCDE considerou o processo de criação das
Finalmente descrevo uma das experiên- de infância” (nº 101). Os dados emergentes Orientações Curriculares de 1997 uma prática
cias profissionais mais gratificantes da mi- dos três estudos de caso demonstram a exemplar, pelo facto de incluir uma negocia-
nha vida: ajudar a desenvolver o sistema aceitação pelas respetivas famílias da sua ção com os parceiros sociais e uma experiên-
de educação pré-escolar em Timor Leste escolha profissional (nomeadamente as cia de um ano no terreno antes de publicar
– “Ajudando a tecer um TAI‘S para a edu- mães), assim como o apoio incondicional das o documento definitivo. Bem mais tarde, na
cação de infância em Timor Leste” (nº 94). famílias das crianças. A aceitação por parte rubrica “Diga de Sua Justiça com Justiça”, es-
Faço uma breve caracterização do contexto: das colegas educadoras ajuda a consolidar crevi sobre o real abandono a que tinha sido
escolas com inúmeras crianças, mas longe o sentimento de pertença ao grupo profis- votada a expansão da educação pré-escolar”
de uma taxa de cobertura suficiente, salas sional. Os resultados demonstram ainda a (nº 68). Estava então em Praga analisando
pobremente equipadas, pessoal pouco pre- existência de uma preferência por parte dos o esforço deste país para desenvolver uma
parado, atividades de grande grupo: muitas diretores das instituições por educadores política educativa para os primeiros anos e
canções, danças, jogos. Todas as crianças do sexo masculino, uma clara vantagem de experimentei algum amargo de boca. Muito

12 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


mais tarde, e à distância, pude verificar que acréscimo. Escrevi ainda um depoimento por Spodek, e “Estádios de Desenvolvimento dos
valeram a pena o esforço, os dissabores, as ocasião da celebração dos 30 anos da APEI, Educadores de Infância” (nº 27), de Lilian Katz.
críticas, as mesquinhezes a que fui sujeita. usando como ponto de partida um poema da Usei frequentemente esses artigos na forma-
Ao analisar esta fase, excepto pela entrevista Sophia de Mello Breyner. Celebrar 30 anos da ção de educadores de infância.
que dei (nº 39), a minha colaboração nos CEI nossa Associação, a que muito devo, consti-
foi quase nula. Tal coincidiu com o tempo em tuiu para mim um imperativo. 13. Análise crítica dos meus livros
que fui diretora geral da Educação Básica. Os Cadernos divulgaram e fizeram uma aná-
Não me competia divulgar o que fazia. Foram 11. Entrevistas lise crítica de alguns dos meus livros: “Ao
tempos de alguma agitação, decorrente das Tive a honra de fazer um conjunto de en- Redor da Mesa Grande: Prática Educativa de
mudanças que estavam a acontecer. Prefe- trevistas para os Cadernos que foram muito Ana” (nº 45), “Tecendo Tempos e Andamen-
ria ficar nos bastidores. Depois disso veio o estimulantes: A primeira à Teté, a mulher tos na Educação de Infância (Última Lição)”
tempo do contraciclo e de “travessia do de- palhaço (nº 4), outra a Maria Emília Brede- (nº 102), “Trabalho por Projetos na Educação
serto” em que deliberadamente me silenciei, rode Santos, que adaptou às crianças portu- de Infância” (nº 95), “Onde pensas tu que
aguardando que a semente desse algum fru- guesas o conhecido programa televisivo Rua vais?: Investigação etnográfica e estudos de
to. Com muitos erros cometidos, creio que Sésamo (nº 13, em conjunto com Conceição caso” (nº 107). A APEI divulgou ainda a notí-
sim, que houve fruto emergente do grande Moita). Quando da sua visita a Portugal tive cia da minhas provas de agregação à Univer-
investimento que então fiz nas políticas para o ensejo de entrevistar três grandes inte- sidade de Lisboa (nº 86), que deram origem
a infância e no alargamento da educação lectuais da infância: David Fontana (nº 15), a dois livros: A Educação de Infância no Cru-
“pré-escolar” através da criação de uma rede Bernard Spodek (nº 28) e Lilian Katz (nº 27), zamento de Fronteiras e Prática Pedagógica
nacional. Em Dezembro de 2005, analisando todos eles referências para nós. Sustentada. Por essa atenção e delicadeza
os (não) desenvolvimentos da educação de por parte da Associação a que pertenço es-
infância, escrevi novo artigo intitulado “Para 12. Traduções tarei sempre agradecida.
uma Educação de Infância de Qualidade para Relacionados com o trabalho que ia desenvol- Em modo de conclusão afirmo mais uma
Todos – Porque demora tanto tempo a cons- vendo, traduzi dois documentos então alta- vez a fidelidade ao meu grupo profissional.
trução de Tecla?” (nº 76). Partindo de um mente divulgados internacionalmente e na al- Para ele fui escrevendo ao longo dos anos,
texto de Italo Calvino, “As Cidades Invisíveis”, tura constituindo o pensamento de ponta so- com preferência muito especial pelos CEI. Os
sublinhava alguns problemas e “desvios” do bre a educação de infância: ”Prática Adequada temas e as abordagens pedagógicas foram
“Programa de Expansão e Desenvolvimento em Termos do Desenvolvimento” (nºs 12 e 14). sendo diversificadas, mas constato a sua
da Educação Pré-Escolar”. Alertas impor- Hoje esses documentos estão ultrapassados: coerência interna. Senti-me sempre numa
tantes quanto às não-políticas para os 0-3 o sócio-construtivismo e a sociologia da in- postura atenta e crítica. Posso afirmar que
anos, à ausência de supervisão dos jardins fância vieram questionar uma abordagem tão sempre acreditei na nossa classe, que fui
de infância, aos efeitos perversos dos agru- dogmática. No entanto, tiveram algum signifi- uma educadora de infância empenhada e
pamentos de escolas, à não regulamentação cado nesse tempo. Traduzi ainda um texto so- interveniente, que sempre esperei o melhor
da Formação Inicial de Educadores. bre “Escrever para Publicar” (nº 15), divulgando de nós.
formas simples e muito concretas de ajudar as Será que a minha escrita foi útil às e aos edu-
10. Depoimentos educadores a divulgar a sua prática e a fazer cadores de infância? Não me compete a mim
Fiz um depoimento breve mas que repre- uma escrita profissional. Ao folhear os núme- julgar.
sentou o meu pensamento à altura sobre o ros mais recentes dos CEI constato a forma
papel do jardim de infância: “O jardim de in- muito mais profissional como os educadores
fância contribui para o sucesso escolar? Por- de infância relatam a sua prática. Claro que
quê e como?” (nº 6). Hoje, não sei se falaria não se deve a este artigo mas à possibilida-
nesses termos, face à escolarização na edu- de que os/as educadores/as tiveram de fazer
cação de infância. Prefiro dar ênfase a ou- pós-graduações. Traduzi com o maior interes-
tros aspectos mais importantes da educação se dois textos de grandes mestres, meus pro-
de infância e que se prendem com a vida da fessores: “Quais são as Origens do Currículo
mente. A “preparação para a escola” vem por em Educação Pré-Escolar?” (nº 28), de Bernard

13 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ÀCONVERSACOM…
A aprendizagem e a sua abordagem nas estratégias
implementadas devem promover uma aprendizagem holística
Entrevista à equipa de autoras das OCEPE . Isabel Lopes da Silva, Liliana Marques, Lourdes Mata, Manuela Rosa

1. A publicação das atuais Orientações Curriculares para a Edu-


cação Pré-Escolar (OCEPE) foi, claramente, um acontecimento de
relevância no âmbito da educação de infância. No entanto, embo-
ra a revisão do primeiro referencial de 1997 devesse ter ocorrido
três anos após a sua publicação, este processo só se iniciou em
final de 2013, concluindo-se apenas em 2016. Quais as razões
para esta dilação no tempo?

As razões, provavelmente, foram diversas: políticas, sociais e con-


textuais. Contudo, parece-nos importante realçar que o processo
não esteve parado desde 1997. Por exemplo, foram realizados al-
guns estudos (2001 e 2006) procurando caraterizar a forma como as
OCEPE estavam a ser implementadas e integradas na prática dos/
as educadores/as de infância. Para além disso, a então DGIDC fez
um pedido de parecer em 2005, para integrar melhor as OCEPE num
currículo por competências, tal como estava, na altura, a ser pro-
posto para o ensino básico. Esse parecer, redigido por Isabel Lopes
da Silva, Lourdes Mata e Teresa Ouro, assinalava aspetos a acaute-
lar, dificuldades a considerar e condições para a implementação da
proposta, apresentando algumas sugestões quanto à sua reorga-
nização. Era também indicada a possibilidade de manter as OCEPE
e elaborar textos de apoio que facilitassem a sua concretização na
prática. Esta foi a solução adotada pelo Ministério da Educação e
que deu origem à publicação de diversas brochuras.
A decisão política de revisão das OCEPE veio então a ser tomada
no final de 2013, sendo que a equipa só em 2014 iniciou este traba-
lho. Considerámos indispensável que o processo fosse amplamente
participado, tendo esta participação contemplado duas fases. Uma
primeira, que envolveu educadores, formadores e investigadores, e
uma segunda, mais alargada, correspondendo a consulta pública.
Em cada uma destas fases foi necessário tratar a informação reco-
lhida, integrando sugestões e clarificando alguns aspetos. Assim, o
documento inicial foi reformulado duas vezes. Compreende-se, por
isso, facilmente que teria de ser um processo demorado.

2. O modelo de organização curricular das OCEPE, mantendo a


mesma estrutura de 1997, em muitos sentidos parece estar pró-
ximo da organização curricular do 1º ciclo (veja-se, por exemplo,
a Área de Conhecimento do Mundo e o Estudo do Meio). Que
finalidades estiveram por detrás desta organização?
As razões desta organização eram já justificadas nas OCEPE de
1997, sendo retomadas e mais explicitadas nas OCEPE de 2016. Em
primeiro lugar definem-se áreas de conteúdo como “âmbitos do
saber, com uma estrutura própria e com pertinência sociocultural,
que incluem diferentes tipos de aprendizagem, não apenas conhe-
cimentos, mas também atitudes, disposições e saberes-fazer. Deste

14 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


modo, a criança realiza aprendizagens com sentido, sendo capaz É essa identidade que as OCEPE de 2016 procuram refletir, não só
de as utilizar noutras situações da vida quotidiana, desenvolvendo dando maior relevo ao brincar como forma de a criança aprender,
atitudes positivas face às aprendizagens e criando disposições fa- como também às iniciativas da criança considerada como sujeito e
voráveis para continuar a aprender” (OCEPE: 31). agente do seu processo educativo.
Afirma-se também que “a distinção entre áreas de conteúdo cor- Também no capítulo sobre “Continuidade educativa e transições”
responde a uma chamada de atenção para aprendizagens a con- se esclarece que […] “apoiar a transição e assegurar a continuidade
templar, que devem ser vistas de formÅa articulada, dado que a não significa antecipar as metodologias e estratégias consideradas
construção do saber se processa de forma integrada,å e há inter- próprias da fase seguinte. […] Trata-se antes de proporcionar, em
-relações entre os diversos conteúdos, bem como aspetos formati- cada fase, as experiências e oportunidades de aprendizagem que
vos que lhes são comuns” (id.). permitam à criança desenvolver as suas potencialidades, fortalecer
Assim, as áreas de conteúdo não são “matérias” a ensinar, mas a sua autoestima, resiliência, autonomia e autocontrolo, criando
uma forma de organizar o currículo, que permite ao/à educador/a condições favoráveis para que tenha sucesso na etapa seguinte”
situar as aprendizagens que as crianças vão realizando. O facto de (OCEPE: 97).
as aprendizagens estarem assim organizadas não implica, nem deve
ter subjacente a ideia, que a sua abordagem educativa deva ser 4. Parece ser uma evidência, sustentada pela investigação,
segmentada disciplinarmente. que há uma pressão vertical, descendente, em que os ciclos an-
Esclarece-se finalmente que […] “a designação das áreas de conteú- teriores adotam progressivamente as práticas pedagógicas, as
do apresenta algumas semelhanças com as utilizadas noutros níveis modalidades, técnicas e instrumentos de planificação e avalia-
do sistema educativo. Esta designação, com o intuito de favorecer a ção dos ciclos subsequentes. Esta colonização da educação pré-
articulação da educação pré-escolar com o ensino básico e facilitar -escolar pelas práticas, muitas vezes inadequadas, do 1º ciclo
a comunicação entre educadores e professores, não significa que tem tido uma expressão crescente, em particular nos agrupa-
a educação pré-escolar se deva centrar numa preparação para o mentos de escolas, nomeadamente pela adoção de instrumen-
1º ciclo, mas sim num desenvolvimento de saberes e disposições tos e lógicas de avaliação classificativas. Como pensam que esta
que permitam à criança ter sucesso, não só na etapa seguinte, mas realidade possa vir a ser alterada e que medidas concretas já fo-
também na aprendizagem ao longo da vida” (ibid.). ram tomadas ou julgariam úteis serem implementadas?
Ao longo das OCEPE é recorrente a explicitação de que a apren-
dizagem e a sua abordagem nas estratégias implementadas devem A melhor forma de alterar esta realidade é proporcionar aos/às
promover uma aprendizagem holística. Uma abordagem deste tipo educadores/as formação contínua de qualidade, que lhes permita
não contempla enfoques disciplinares, nem mesmo interdisciplina- fundamentar as suas opções pedagógicas. Neste contexto, a DGE
res, mas sim abordagens globalizantes em que diferentes aprendi- disponibilizou aos Centros de Formação de Associações de Escolas
zagens se interligam. (CFAE), uma oficina de formação acreditada, sobre a gestão do cur-
rículo na educação pré-escolar, concebida pela equipa das OCEPE e
3. Para alguns investigadores e educadores, esta aproximação que está ser realizada em diversos locais do País e também nas ilhas
curricular ao 1º ciclo poderá acentuar o perigo de “escolariza- dos Açores e da Madeira. Com o objetivo de garantir a qualidade
ção” da educação pré-escolar. Concordam com esta análise? desta ação de formação, foi criada uma bolsa de formadores com
um perfil e formação específicos e que trabalha em estreita articu-
Não é uma organização por áreas de conteúdo que vai acentuar o lação com a equipa das OCEPE.
perigo de “escolarização”, mas sim a adoção de práticas “escolari- Também a formação inicial tem aqui um papel importante na divul-
zantes”. A educação de infância tem-se tradicionalmente demar- gação e apropriação da perspetiva curricular das OCEPE e na sua
cado de uma perspetiva de escolarização precoce. Essa perspetiva transposição para a prática.
está mesmo incluída na designação profissional dos educadores de
infância que, embora docentes, não são em Portugal, como noutros 5. A avaliação tem sido uma das áreas de maior centralidade
países, designados por “professores”. Importa que os/as educado- nas preocupações dos profissionais de educação de infância.
res/as tenham consciência desta identidade, tendo a APEI, enquan- Que tipo de avaliação se prevê que seja desenvolvida por estes
to associação de profissionais, um papel na consciencialização e profissionais nos contextos educativos, à luz das OCEPE? O que
reforço dessa identidade. é valorizado/enfatizado neste documento?

15 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ÀCONVERSACOM…

A perspetiva de avaliação é muito clara nas OCEPE. Em primeiro colaborativo e, de acordo com a vossa perceção do que ocorre na
lugar, é dado relevo à intencionalidade educativa e à reflexão do/a realidade, que comentários vos sugerem?
educador/a sobre essa intencionalidade, afirmando-se que “[…] as
Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar não constituem O/a educador/a é responsável pelo grupo com que cada ano trabalha,
um programa a cumprir, mas sim uma referência para construir e gerir cabendo-lhe a articulação com outros profissionais que intervenham
o currículo, que deverá ser adaptado ao contexto social, às caracte- no grupo, quer em tempo letivo, quer não letivo. As OCEPE con-
rísticas das crianças e das famílias e à evolução de cada criança e do sideram fundamental a existência de reuniões regulares da equipa
grupo” (OCEPE: 13). que trabalha com o mesmo grupo de crianças, incluindo auxiliar de
Em segundo lugar, a avaliação não surge como uma atividade des- ação educativa/assistente operacional, animadores da componente
ligada ou paralela do processo educativo, mas integrada no próprio de apoio à família, mencionando ainda os profissionais que inter-
processo. “Observar, registar, documentar, planear e avaliar consti- vêm em tempo letivo, tais como professor/a de educação especial
tuem etapas interligadas que se desenvolvem em ciclos sucessivos ou professor/a com especialidade numa determinada área. Considera
e interativos, integrados num ciclo anual. O conhecimento que vai que este trabalho colaborativo “[…] é indispensável para desenvolver
sendo elaborado ao longo destes ciclos envolve um processo de aná- uma ação articulada, que se integra na dinâmica global do grupo e no
lise e construção conjunta com a participação de todos os interve- trabalho que se está a realizar” (OCEPE: 29).
nientes (crianças, outros profissionais, pais/famílias), cabendo ao/à Assim, não se trata de profissionais que “venham dar uma aula”,
educador/a encontrar as formas de comunicação e estratégias que mas de um processo planeado em conjunto com o/a educador/a, de
promovam esse envolvimento e facilitem a articulação entre os diver- acordo com a “dinâmica global do grupo e o trabalho que se está
sos contextos de vida da criança” (OCEPE: 15). a realizar”, em que o/a educador/a não é apenas espectador, mas
Acrescenta-se ainda que “A avaliação na educação pré-escolar é rein- participante ativo e a que poderá dar continuidade, mesmo sem o
vestida na ação educativa, sendo uma avaliação para a aprendizagem professor externo estar presente. É, assim, um modo de enriquecer
e não da aprendizagem. É uma avaliação formativa por vezes também o currículo e não de o “espartilhar” em atividades de cariz disciplinar.
designada como ‘formadora’, pois refere-se a uma construção parti- Este trabalho conjunto pode ainda contribuir para o desenvolvimento
cipada de sentido que é, simultaneamente, uma estratégia de forma- profissional dos docentes envolvidos.
ção das crianças, do/a educador/a e, ainda, de outros intervenientes
no processo educativo” (OCEPE: 16). 8. As atuais OCEPE, ao contrário do que ocorreu em 1997,
Assim, o/a educador/a planeia e avalia a organização do ambiente explicitam um conjunto de aprendizagens (“aprendizagens a
educativo – suporte do desenvolvimento curricular – a sua interven- promover”), aparentemente mais orientadoras do trabalho dos
ção, o processo educativo e os progressos de cada criança. Aliás, esta educadores de infância com as suas crianças. De que forma é que
concepção e enfoque da avaliação está contemplada desde 2001, no podemos olhar para esta explicitação do currículo com o trabalho
perfil específico de desempenho profissional do educador de infância, que se encontra a ser realizado na educação escolar sobre a iden-
Anexo nº 1 do Decreto-lei nº 240, de 30 de Agosto. tificação das aprendizagens essenciais e o perfil do aluno para o
séc. XXI e, neste sentido, de que forma percecionam a articulação
6. Ainda relativamente à avaliação, fará sentido pensar numa curricular entre a educação pré-escolar e o 1º ciclo e as questões
brochura de apoio a este nível? da monodocência nestes dois níveis de educação/ensino?

À semelhança das brochuras que já foram publicadas como apoio às Uma análise das aprendizagens a promover propostas pelas OCEPE
OCEPE de 1997, na nossa opinião faz sentido que, também para este nas diferentes áreas permite compreender a sua correspondência
novo texto, sejam elaborados outros documentos complementares, não com o “Perfil dos alunos à saída da escolaridade obrigatória”. Pode,
só sobre planeamento e avaliação, mas também sobre outros aspetos. por isso, dizer-se que a educação pré-escolar proporciona as “fun-
dações” ou “alicerces” para o desenvolvimento desse perfil ao longo
7. Duma forma cada vez mais recorrente, assiste-se à partici- do percurso escolar dos alunos. Nesse sentido, as aprendizagens a
pação de docentes de outros níveis de ensino (2º e 3º ciclos, por promover são enunciadas de forma geral, ampla e abrangente e não
exemplo), especialistas numa área do saber, na dinâmica de ativi- como objetivos específicos a atingir, para significar que se trata de
dades educativas dentro da componente letiva do educador e/ou competências em construção a que deverá ser dada continuidade nos
crianças. Como olham para este tipo de trabalho potencialmente ciclos seguintes.

16 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


Esse perfil não assenta em disciplinas, mas em competências para que postas que vão ao encontro dos interesses das crianças. Por sua vez,
diversas áreas do saber deverão contribuir com a sua especificidade nas Atividades de Animação e Apoio à Família (AAAF), brincar é uma
na análise da realidade, mas sem segmentar saberes e sem esquecer forma de “tempo livre da criança”, um tempo solto, íntimo, menos
que só a sua inter-relação permite compreender a complexidade des- estruturado e mais aberto à informalidade.
sa realidade. É esta inter-relação que permite que cada criança/aluno As diferenças entre o tempo curricular e as AAAF decorrem das suas
se aproprie do conhecimento, lhe dê sentido e seja capaz de o utilizar. funções. A frequência da educação pré-escolar é um direito da crian-
Todo o sistema educativo terá de se organizar de acordo com este ça, o tempo a mais que as crianças permanecem no jardim de infância
perfil, seja ou não em regime de monodocência. decorre de uma necessidade das famílias. O tempo curricular cor-
responde à função educativa da educação pré-escolar, enquanto as
9. Na disseminação das novas OCEPE, foi previsto um modelo AAAF têm uma função social, que garante o direito ao trabalho dos
de formação contínua. Que características estão presentes nesse pais, nomeadamente das mães, sendo esta função social reconhecida
modelo? Na sua concepção foi previsto serem abrangidos outros como um contributo para a paridade de género.
públicos que não apenas os educadores? De que forma? Esta necessidade social não pode ser ignorada, cabendo a cada esta-
belecimento de educação pré-escolar, de acordo com os seus recur-
A disseminação das OCEPE teve como finalidade esclarecer os pro- sos e possibilidades, garantir condições para que esse tempo seja de
fissionais do desenvolvimento do processo e das modificações intro- qualidade. Cabe também a cada educador/a garantir a qualidade das
duzidas comparativamente com as OCEPE de 1997. Para isso, foram AAAF, isto é, que “planeie e supervisione a sua concretização, tendo
organizadas numerosas sessões de divulgação, tendo a APEI desem- em conta as finalidades que a distinguem da componente letiva, mas
penhado um papel relevante na organização e na possibilidade de assegurando uma coerência de princípios educativos entre estes dois
alargar essas sessões a todas as regiões do País, incluindo regiões tempos” (OCEPE, 23).
autónomas. Mas, para apoiar a implementação das OCEPE não está Após a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar, que reco-
previsto nenhum modelo de formação contínua. nhecia a função educativa e também social da educação pré-escolar,
No entanto, o debate que acompanhou estas sessões, bem como os foi publicada pelo Ministério da Educação uma brochura sobre “Or-
contributos recolhidos durante a elaboração das OCEPE, mostrou que ganização da componente de apoio à família” que dá ideias de como
os/as educadores/as reconheciam como dificuldade mais evidente a esta pode ser concretizada.
concretização da intencionalidade educativa apoiada no planeamento
e avaliação. Por isso, foi acreditada pela DGE uma oficina de forma- 11. Desde a saída da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar, em
ção com esta temática, que foi cedida aos CFAEs que a solicitaram. 1997, que a tutela pedagógica deste nível da educação nas dife-
Outras respostas de formação contínua dependerão das instituições rentes redes (pública, solidária e privada) é da responsabilidade
que a realizam e das necessidades expressas pelos educadores. À do Ministério da Educação. No entanto, a dupla tutela a que as
semelhança da APEI, outros centros de formação têm autonomia para IPSS com valência de creche estão sujeitas tem levado a alguma
propor as modalidades de formação que acharem mais adequadas. pressão do Instituto de Solidariedade Social para que, também na
educação pré-escolar, se adotem instrumentos pedagógicos da
10. As investigações mais recentes têm evidenciado a importân- creche muito contestados, como sejam os planos de desenvolvi-
cia do brincar na educação de infância, estando esta perspetiva já mento individual para todas as crianças. Como consideram que
devidamente explicitada nas OCEPE. No entanto, sabemos que a poderia ser melhorada esta intervenção?
“mancha” horária a que as crianças estão sujeitas, entre a com-
ponente curricular e a de apoio à família, “enclausuram-nas” no A tutela pedagógica da educação pré-escolar é do Ministério da Edu-
jardim de infância por longos períodos (9 horas ou mais). De que cação e cabe, portanto, a esse ministério tomar as medidas que ga-
modo olham para esta realidade e que formas identificam para rantam o exercício efetivo dessa tutela.
acautelar esta excessiva institucionalização das crianças?
12. Portugal é ainda um dos países da Europa com um sistema
O brincar assume uma grande importância no desenvolvimento e na bicéfalo relativamente à tutela pedagógica da educação de infân-
aprendizagem das crianças. Porém, em tempo curricular, o brincar cia, com a creche a ser tutelada pelo Ministério do Trabalho, Soli-
serve de orientação à intencionalidade do educador, que estimula e dariedade e Segurança Social e a educação pré-escolar a ser tute-
desafia esse brincar e que, de acordo com o que observa, faz pro- lada pelo Ministério da Educação. Diferentes instâncias nacionais

17 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ÀCONVERSACOM…

e internacionais (Conselho Nacional de Educação, União Europeia Para uma verdadeira apropriação tem de haver disponibilidade do/a
e OCDE) há vários anos que recomendam a unidade da educação próprio/a educador/a para uma reflexão aprofundada sobre as OCE-
de infância sem que tenha havido ainda qualquer alteração nesse PE e a sua prática, de modo a que vá construindo uma forma espe-
sentido em Portugal. A própria APEI iniciou uma petição para in- cífica (a sua forma) de implementar as OCEPE, tendo em conta as
clusão dos 0-3 anos no sistema educativo que, sem grande divul- suas concepções, os seus saberes, a forma de ver o seu papel e as
gação, conseguiu rapidamente cerca de 5000 assinaturas. Como caraterísticas do contexto e do grupo com que trabalha. Este não
pensam que se pode alterar este problema que afeta a unidade e pode, nem deve, ser um processo solitário, pois, para além de exigir
a qualidade da educação de infância e o direito à educação que reflexão pessoal, deve contemplar confrontação com outras ideias,
todas as crianças têm desde que nascem? debate de alternativas, troca de experiências, partilha de dificuldades,
conduzindo a um enriquecimento e crescimento profissional realiza-
Consideramos a importância da unidade da educação de infância, que dos em conjunto.
foi também objeto de uma recomendação do Conselho Nacional de
Educação, em 2011, de que foi relatora Teresa Vasconcelos. Nesse
sentido, os princípios e fundamentos das OCEPE abrangem toda a
educação de infância dos 0 aos 6 anos. Esperamos, pois, que a inicia-
tiva da APEI dê frutos e que a Lei de Bases seja alterada.

13. Que tipos de recomendação sugerem do ponto de vista de


orientações pedagógicas para os 0-3 anos?

As creches são um espaço de desenvolvimento e aprendizagem das


crianças, importando que as suas funções pedagógicas sejam reco-
nhecidas e reforçadas, através de um documento que apoie os/as
educadoras/as na sua ação educativa. Tal como referem as OCEPE,
“Considera-se que há uma unidade em toda a pedagogia para a in-
fância e que o trabalho profissional com crianças em idade de creche
e de jardim de infância tem fundamentos comuns devendo ser orien-
tado pelos mesmos princípios educativos” (OCEPE: 8).

14. Olhando para estas novas OCEPE de um ponto de vista pros-


petivo, o que pensam ser desejável que ocorra nos próximos anos
e que sugestões poderiam desde já formular?

As OCEPE são um documento que reúne não só a perspetiva curricu-


lar, o que aprender, como também a perspetiva pedagógica de como
o fazer, logo é um documento orientador da profissionalidade. Isso
justifica a necessidade de os/as educadores/as se aperceberem da
perspetiva subjacente às OCEPE, através de uma leitura global, e de
as irem regularmente consultando de modo a aprofundarem aspetos
mais específicos.
A implementação das OCEPE depende dos/as educadores/as, sendo
importante que as leiam, analisem e discutam com os pares e parti-
lhem essa análise de modo a fundamentar as suas práticas e opções
pedagógicas. Também é importante que apresentem as OCEPE e as
suas opções pedagógicas às famílias e aos colegas dos outros níveis
de ensino.

18 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Educação de infância em tempos de transição paradigmática:
uma viagem por discursos políticos e práticas pedagógicas em Portugal
Manuela Ferreira. Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e Centro de Investigação
e Intervenção Educativas (CIIE). Catarina Tomás. Instituto Politécnico de Lisboa – Escola Superior de Educação e Centro
Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.Nova.UMinho)
INTRODUÇÃO delas uma profusão de discursos públicos prestação de contas (accountability) e de
As ciências sociais e as ciências da educação competitivos, diferentes, opostos e/ou jus- uma precoce promoção do desenvolvimento
há muito que apontam os anos 80 como um tapostos, cuja ambiguidade se abre a inúme- de determinadas competências. Este último
tempo de transição pragmática na ordem ras interpretações acerca dos seus significa- discurso representa uma crescente orienta-
internacional (Santos, 1991, 2006; Ball, 2001; dos, mas sem que, necessariamente, sejam ção de mercado que constrói a ideia de crian-
Stoer, 2002). O campo da educação de in- cabalmente esclarecidos os sentidos implí- ça como consumidora e utente, mas também
fância não permaneceu imperturbável nes- citos para que remetem (Codd, 1988). Com como investimento económico indireto e a
te contexto, sendo possível identificar três efeito, discursos radicados na história e na longo prazo, ou seja, como um capital huma-
acontecimentos marcantes que, entre ou- tradição pedagógica da EI e/ou em prol dos no que, perspetivando-a como futura cidadã
tros, colocaram definitivamente a infância e direitos da criança aparecem hoje mesclados, e trabalhadora, se tornará rentável, contri-
as crianças na agenda política e educativa in- pulverizados ou reinterpretados através de buindo para a prosperidade nacional. Corres-
ternacional: a comemoração do Ano Interna- um outro discurso que tem vindo a impor-se ponde a esta ideia uma outra: a de JI como
cional da Criança em 1979 e, dez anos depois, na EI em nome das novas exigências coloca- espaço educativo cada vez mais pressiona-
a ratificação quase universal1 da Convenção das pela sociedade neoliberal, como é o caso do a orientar-se para a qualidade, aferível
dos Direitos das Crianças (ONU, 1989), que do discurso sobre a qualidade. Em termos com base na apresentação de resultados de
consagra os direitos de provisão, proteção esquemáticos, detetam-se assim duas orien- aprendizagens académicas ulteriores, a pon-
e participação; a emergência e constituição tações com forças de sentido contrário no to de alguns autores, inclusive, questionarem
da sociologia da infância, em ruptura com as campo da EI: nos dois primeiros casos, ainda se o JI não se está a transformar num 1º ciclo
perspetivas médico-psicológicas dominantes que atravessados por diferentes correntes, é do ensino básico (Bassok, Latham & Rorem,
na pesquisa, e a atual multiplicação de es- reivindicada uma concepção da criança como 2016; Garnier, 2016; Ferreira & Tomás, 2016).
tudos multidisciplinares que subscrevem as sujeito ativo e participativo, com direitos a Ora, estas transformações ocorridas no
premissas do paradigma das crianças como vez e voz nos contextos em que habita, como campo educativo da infância à escala trans-
atores sociais (James & Prout, 1990), os es- por exemplo o jardim de infância (JI), e uma nacional depressa se fizeram sentir nas mais
tudos sociais da infância (cf. Alanen, 2011)2; concepção de EI como uma rede de intensas variadas esferas da vida social à escala na-
o aumento do emprego das mulheres com relações inter- e intrageracionais em que a cional e local e Portugal não ficou alheio a
crianças pequenas e a institucionalização valorização do brincar assume particular re- este movimento. Com efeito, nos últimos 40
socioeducativa da pequena infância, entre- levância na exploração e conhecimento de si, anos assiste-se a uma viragem radical no já
tanto tornada norma nas sociedades ociden- do outro e do mundo material e simbólico, longo e lento processo de institucionalização
tais (Näsman; 1994; Sarmento, 2004, 2015; na construção de competências pessoais e da educação da pequena infância no nosso
Kjørholt & Qvortrup, 2012) e que se tem feito sociais e nas práticas de participação coleti- país, que nos últimos 20 anos se tem feito
acompanhar da curricularização de práticas va. No último caso, os discursos da excelên- acompanhar de políticas e práticas que têm
pedagógicas orientadas para uma crescente cia e da qualidade, tornados uma bandeira contribuído para a reconstrução, redefinição,
intensificação da escolarização das crian- pedagógica, ainda que descontextualizados formalização e refinamento dos objetivos e
ças, reduzindo as distâncias entre a escola das condições políticas e económicas em que conteúdos de aprendizagem em função de
e o aluno (Moss, 2014, 2015, 2016; Dahlberg foram produzidos, têm tido um papel chave determinadas finalidades socioeducativas,
& Moss, 2005; Cannella, Pérez & Lee, 2015; nos processos de alunização e escolarização requerendo pedagogias submissas da se-
Moss et al, 2016; Garnier, 2016; Ferreira & precoces que se têm feito sentir na EI. quencialidade educativa tendentes à esco-
Tomás, 2016). Esta coexistência de forças é motivo de larização precoce (cf. Garnier, 2016; Ferreira
Sob tais transições, as noções de criança, de tensão no atual panorama da EI, tanto em & Tomás, 2016). Tais mudanças, instaladas
infância e de educação da infância (EI) nas termos legislativos como ao nível das prá- de formas mais explícitas ou mais subtis no
sociedades contemporâneas tornaram-se ticas no JI. Como defendem Kjørholt e Se- quotidiano do JI parecem não deixar espa-
mais densas e complexas: coexiste em torno land (2012), há uma interação dinâmica entre ço para refletir criticamente sobre os efei-
os discursos das crianças como sujeitos tos e as consequências da naturalização de
1 A CDC é o tratado de direitos humanos internacionais
mais amplamente ratificado na história. Atualmente só competentes com direito de participação e tais mudanças nas vidas de profissionais de
os EUA não o ratificaram. os discursos neoliberais assentes na apologia educação, crianças e famílias, nem sobre a(s)
2 Também designados por estudos da criança ou estu- da flexibilidade, da escolha individual, da função(ões) da EI contemporânea.
dos da infância.

19 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Neste panorama e na interlocução entre ças” (Ferreira, 2004; Halldén, 2012; Kjørholt & çados e os patamares de produtividade dos/
sociologia da infância, sociologia da educa- Seland, 2012; Moss, 2014). as educadores/as. Essas classificações e a sua
ção e ciências da educação, este artigo visa A compreensão de tal fenómeno requer a ordenação, que rapidamente passaram a ser
compreender o rumo das recentes mudan- sua contextualização num conjunto de ideo- quantificadas a partir da utilização massifica-
ças políticas da EI no quadro internacional e logias, teorias e conceitos viajantes (cf. Bal, da de dispositivos e instrumentos de avaliação
nacional, sobretudo a partir dos anos 90, e 2002; Otterstad & Braathe, 2016), no sen- da qualidade do JI, refletem discursos e prá-
alguns dos seus efeitos ao nível das práticas tido de que tendo sido estes produzidos à ticas que viajam e se instalam ‘mundo fora´
pedagógicas. A reconstituição do trajeto que escala transnacional atravessaram fronteiras (e.g. A Escala de Avaliação do Ambiente em
vai desde a formulação de políticas à defini- nacionais, sendo acolhidos e gerando altera- Educação de Infância (ECERS-R); Harms, Cli-
ção de orientações curriculares até à reconfi- ções na educação nacional e local. No caso fford & Cryer, 1998)4.
guração de práticas pedagógicas assenta na europeu, Sahlberg (2010; 2011) identifica um A este propósito, convocamos a análise crítica
análise de documentos oficiais – legislação conjunto de tendências na educação que de- de Moss et al (2016) ao relatório International
e OCEPE (1997 e 2016) – produzidos pelo senham uma viragem – e uma viagem – dis- Early Learning Study da OCDE, uma avalia-
Ministério da Educação (ME) e de observa- cernível em torno das lógicas neoliberais, em ção transnacional em que é defendida a ideia
ções realizadas em JI, públicos e privados, que se salientam o estreitamento do currí- de que avaliar as crianças de 5 anos pode
entre 2013 e 2016, abrangendo uma hetero- culo para potenciar o “conhecimento válido” contribuir para melhorar o seu desempenho
geneidade de contextos socioeconómicos, (numeracia, literacia e ciência) e a pressão posterior nos testes PISA e que se baseia na
geográficos, culturais e organizacionais3. para a prestação de contas e a estandardi- aplicação de testes visando obter resultados
Na “viagem” analítica que assim propomos zação dos resultados através do estabele- em seis domínios [early learning outcomes]:
trata-se de identificar os principais marcos e cimento de rankings e de medidas quanti- autorregulação; linguagem oral/emergência
tendências que parecem estar a colonizar o tativas. Com efeito, uma das faces visíveis da literacia; matemática/numeracia; função
campo da EI nos últimos 20 anos – 1997- destas lógicas é a produção e divulgação de executiva; locus do controlo; competências
-2016 – e de percepcionar a sua apropriação relatórios produzidos por organismos trans- sociais5. Nesse posicionamento, os autores
local por via das mudanças nas práticas das/ nacionais (Eurydice, Banco Mundial, OCDE, criticam a visão uniforme, monocultural e limi-
os educadoras/es de infância, no papel das UNESCO, UNICEF, etc.) que têm potenciado tada do relatório chamando a atenção para a
crianças e na função do JI de modo a con- a comparação entre países relativamente à desconsideração da OCDE perante a existên-
tribuir para a desinstrumentalização da EI, EI, desde o acesso, à frequência, à qualidade, cia de um movimento internacional crescente,
interrogando os seus sentidos e a sua iden- ao montante do investimento, entre outros académico e social, que contesta esta visão
tidade. aspetos. Trata-se de um processo de globali- dominante da EI (e.g., currículo da Nova Ze-
zação hegemónica (Santos, 2001), uma mun- lândia Te Wharik); para a desconsideração das
1. TEORIAS E CONCEITOS VIAJANTES: divisão eurocêntrica que afirma uma validade diferenças entre países na comparação de re-
QUANDO A QUALIDADE, A EFICÁCIA E A universal de determinadas concepções de EI, sultados; e para a desconsideração da ampla
EXCELÊNCIA CHEGAM À EDUCAÇÃO DE do papel do/a educador/a e de crianças e, rede de relações socioculturais nas quais as
INFÂNCIA consequentemente, potencia “políticas para crianças circulam além do JI e mesmo dentro
Uma das facetas da mudança paradigmática a competitividade económica, ou seja, o dele (outros espaços para além da sala), na
acima referida tem vindo a assumir a forma crescente abandono ou marginalização (não visão muito limitada da noção de meio am-
de uma pressão exercida pelo discurso neoli- no que se refere à retórica) dos propósitos biente, restrita à sala de atividades.
beral sobre a educação e o sistema escolar e sociais da educação” (Ball, 2001, p. 100). Exis-
os seus métodos e destes sobre a EI, o que tem assim pressões que se exercem de fora 4 Veja-se http://ers.fpg.unc.edu/i-translations-ecers-
tem implicado alterações visíveis na autono- para dentro e de cima para baixo, oriundas -and-ecers-r. Vários autores (Moss et al, 2016) têm
vindo a assumir uma postura crítica face a esse instru-
mia relativa do JI, essa “espécie de grande das várias escalas internacionais, nacionais mento, defendendo que se a avaliação das dimensões
brinquedo educativo” (Chamboredon & Pré- e locais, para que a EI aumente o seu nível “qualidade estrutural” e “resultados” são passíveis de
vot, 1973) e “espaço social para e das crian- de qualidade focalizando-se na obtenção ser mensuráveis, o mesmo já não acontece no que se
refere à qualidade do “processo” (interações dentro
de resultados de aprendizagens úteis a uma dos contextos, relação com famílias, papel do brincar,
3 Partindo de um quadro deontológico e ético na inves- escolarização bem-sucedida, evidenciando etc.)”.
tigação com crianças não serão identificados/as os/as assim os graus de eficácia e eficiência alcan- 5 Para saber mais veja-se https://tinyurl.com/ydy6zmyz
educadores/as de infância, as crianças e os JI.

20 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


Outros efeitos das políticas neoliberais a cionalização da EI (Gomes, 1986; Ferreira, e desenvolvimento da educação pré-esco-
assinalar referem-se a transformações nos 1995; Cardona,1997; Vasconcelos, 2005; lar (EPE6) no decurso dos vários períodos
objetivos e finalidades da EI, tendentes a Vilarinho, 2000, 2013), mas será necessário identificados por Vilarinho (2001) – cria-
acentuar a pré-escolarização, bem como aguardar até ao período democrático para ção, normalização e expansão (1977/86);
num currículo e numa pedagogia que se então se registarem importantes mudanças retração (1986/95); revitalização (1995/97);
consubstanciam na intencionalidade de neste campo (cf. Folque et al, 2015), como segunda fase de expansão e normalização
produzir crianças como alunos pré-esco- acontece com aquelas que se adensam dos (1999/2005) – a que acresce, posteriormen-
lares. Estudos recentes dão conta desta anos 90 em diante, pela formalização cur- te, a consolidação do discurso da qualidade
transição paradigmática em diferentes ricular, pedagógica e simbólica, em que as e o debate sobre a conveniência da integra-
paragens, como na França (Garnier, 2016), OCEPE (1997, 2016) edificam marcos rele- ção das creches numa política de infância
nos EUA (Bassok, Latham & Rorem, 2016), vantes. (Folque et al, 2015). Terceiro, a descoberta
países nórdicos como a Noruega (Kjørholt & Assim sendo, a entrada de Portugal na Co- do campo da EPE como objeto de pesquisa
Seland, 2012; Otterstad & Braathe, 2016) e munidade Económica Europeia (CEE) em e como contexto de intervenção educativa,
a Suécia (Halldén, 2012) ou no Brasil (Losso 1986, a par do discurso da modernização e assistindo-se à introdução de medições e
& Marchi, 2011). Uma maior atenção dada desenvolvimento do país (Stoer, 1986; Teo- avaliações, de padrões e diretrizes para ‘boas
à sequencialidade educativa e à transição doro & Aníbal, 2008), convergentes com a práticas’ (Vasconcelos, 2015; Ferreira & To-
das crianças do JI para o 1º ciclo do ensino aprovação da Lei de Bases do Sistema Edu- más, 2016) com vista à regulação e controlo
básico (CEB) e do que isso acarreta para um cativo (LBSE) nesse mesmo ano, com a ex- dos resultados e/ou à despistagem e pre-
quotidiano do JI organizado em conformi- pansão da formação de profissionais da EI, venção bem-sucedida de problemas sociais
dade, sobretudo com o ensino formalizado com a paulatina extensão da rede nacional futuros. Quarto, a mercantilização7 da EI por
de determinados conteúdos curriculares, de JI e com os primeiros ecos de um dis- via dos discursos da liberdade individual e da
parecem ter-se disseminado como sendo curso apologista da qualidade na educação escolha parental (e.g., JI privados vs. JI pú-
as principais preocupações dos governos, (Bairrão, 1998; Afonso, 1998; Magalhães & blicos) e/ou dos da promoção da eficiência
das famílias, das direções das organizações Stoer, 2002) são coordenadas contextuais e/ou do empreendedorismo (e.g., a oferta
socioeducativas e dos/as educadores/as de significativas para compreender que a cons- de ações de formação para uma ´boa pa-
infância. Não será, pois, por mero acaso tituição da ideia de infância e de EI na so- rentalidade´ e de empreendedorismo para
que um dos tópicos que tem vindo a assu- ciedade portuguesa da transição dos anos bebés; a expansão do mercado editorial com
mir relevância seja centrado na análise des- de 1980 para a década de 90, bem como da a proliferação de manuais com exercícios
sas reformas de política educativa no cam- (re)institucionalização que se segue, decor- didáticos para crianças a partir dos 2 anos).
po da EI que apontam para os processos de rem sob fortes influências internacionais, Ora, é no período de revitalização a que se
reconfiguração do JI e os da escolarização como já referimos. aludiu que a publicação da Lei-Quadro da
precoce das crianças. Não obstante, é igualmente importante 6 A partir deste ponto utilizaremos a nomenclatura uti-
Pode então dizer-se que, embora nas últi- compreender esta transição paradigmá- lizada nos documento oficiais de educação pré-escolar
mas décadas se tenha assistido a um maior tica entrando em linha de conta com um (EPE). Não obstante, importa sublinhar que EI e EPE
não funcionam por correspondência nem são sinóni-
investimento nas políticas públicas para a outro conjunto de dimensões que, entre mos. Aliás, a defesa de uma ou outra aponta para ima-
educação da pequena infância, importa não outras, também ajudam a explicá-la à luz gens, concepções e posicionamentos socioeducativos
esquecer que estas têm sido induzidas por de algumas particularidades da sociedade bem distintos.
7 “A mercantilização significa não só a criação de merca-
uma visão neoliberal e que as consequentes portuguesa. Primeiro, a feminização da pro- dorias ab ovo – isto é, a criação de produtos e serviços
reformas estão longe de poderem ser ape- fissão – em 1980 era de 97,6% e em 2016 avaliados e transacionados de acordo com as regras de
nas “a ordem natural das coisas”. de 99,1% (Pordata, 2017) – que, associada mercado – como também a transformação em merca-
doria de produtos e serviços anteriormente criados e
ao baixo estatuto social atribuído à profis- distribuídos com base em regime alheio ao mercado.
2. AS OCEPE NO PROCESSO DE são de educador/a de infância e avoluma- Este aspeto significa, por exemplo, que instituições
INSTITUCIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO da pelo desconhecimento generalizado da sociais como a educação, os cuidados de saúde ou a
segurança social são convertidas em mercadorias da
DE INFÂNCIA EM PORTUGAL sociedade acerca do que é o JI e do que área dos serviços e tratadas como tal, frequentemente
Em Portugal, a viragem do século XIX para nele se faz reforçam a sua menorização. de acordo com forças concorrenciais e com os ditames
o século XX assinala a génese da institu- Segundo, o papel do Estado na definição tanto do mercado como dos interesses comerciais”
(Santos, 2003, p. 58).

21 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Educação Pré-Escolar (Lei n.º 5/97, de 10 de


fevereiro) toma lugar e, na sequência disso,
são aprovadas as primeiras Orientações Curri-
culares para a Educação Pré-Escolar (OCEPE)
(Despacho n.º 5220/97, de 4 de agosto). Es-
tas, tendo sido objeto de uma revisão recente
– Despacho n.º 9180/2016 - Diário da Repú-
blica n.º 137/2016, Série II de 2016-07-19 – ex-
pressam que algo está a mudar na sociedade,
havendo novas demandas que se colocam à
educação dos pequenos cidadãos e que algo
terá/deverá também começar, desde já, a mu-
dar no quotidiano do JI, em termos curricula-
res e pedagógicos.
Nesse sentido, e perante uma nova fase da
EPE, atentamos a medidas políticas marcantes
da sua trajetória recente (1997-2016), conforme
podemos observar na figura 1, concentrando a
análise na transformação das suas finalidades
no plano legislativo.
A análise das finalidades e dos objetivos pre-
sentes na legislação produzida entre 1997-
2016 permite destacar três grandes ten-
dências no processo de institucionalização
da EPE. A primeira, de natureza estrutural,
prende-se com a extensão e consolidação da
EPE numa única rede nacional de JI sob tu-
tela do ME (Lei Quadro da EPE – Lei nº 5/97,
de 10 de fevereiro), deixando para a história a
escassez e a dispersão (Lei nº5/77, de 1 de fe-
vereiro e Lei nº 542/79, de 31 de dezembro).
A segunda, de natureza socioeconómica e Figura 1 – Marcos no calendário legislativo português relativamente à EPE (1997-2016)
política, aponta para a permanência das fun-
ções compensatórias da EI para assegurar o
sucesso escolar e educativo, embora formu- esclarece suficientemente os sentidos implí- 2.1. OCEPE de 1997 e 2016:
ladas diferentemente – se em 1977/79 urgia citos desse desenvolvimento. entre ditos e não ditos
colmatar as gritantes assimetrias regionais, Neste panorama, de entre os documentos ofi- Chegadas a este ponto, particular interesse
agora a ênfase é colocada na preocupação ciais mencionados, as OCEPE (1997, 2016), en- nos merecem, portanto, as OCEPE. Um olhar
com a prevenção atempada do insucesso quanto textos mediadores entre as concepções a dentro pelas OCEPE de 1997 e de 2016
e abandono escolar, sendo mais explícita a de EPE centralmente definidas e as práticas possibilita compreender com maior profun-
tónica nas aprendizagens académicas (OCE- locais perspetivadas em consonância e como didade o processo de (re)institucionalização
PE, 2016). A terceira, de natureza sociope- as desejáveis, emergem como sendo aqueles da EPE e avançar no esclarecimento dos
dagógica e educativa, reitera a função da EI que mais conteúdos explícitos contêm, tanto sentidos das suas orientações.
na promoção do desenvolvimento global e ao nível dos pressupostos teórico-conceptuais Decorrendo de um argumento central, o de
harmonioso da criança, estando inscrita em como das metodologias, avaliação e resultados que os/as educadores/as de infância neces-
todos os documentos sem exceção, mas não esperados das aprendizagens (OCEPE, 2016). sitavam de referências comuns para as suas

22 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


Figura 2 – OCEPE 1997 e 2016 – Concepções de criança, educação de infância, currículo, pedagogia, educador/a de infância

OCEPE (1997) OCEPE (2016)

“Criança como sujeito e agente – Ao ser protagonista do seu processo de


“a criança desempenha um papel ativo na sua interação com desenvolvimento e aprendizagem, a criança é ouvida e participa nas decisões
o meio (…) desempenha um papel ativo na construção do seu que têm influência na sua vida e no seu mundo. Este sentimento de agência
desenvolvimento e aprendizagem, supõe encará-la como sujeito faz parte da construção da sua identidade e autoestima.” (p. 106).
Criança(s)

e não como objecto do processo educativo. Neste sentido,


acentua-se a importância de a educação pré-escolar partir “Este papel ativo da criança decorre também dos direitos de cidadania, que
do que as crianças sabem, da sua cultura e saberes próprios. lhe são reconhecidos pela Convenção dos Direitos da Criança (1989), a saber:
Respeitar e valorizar as características individuais da criança, a o direito de ser consultada e ouvida, de ter acesso à informação, à liberdade
sua diferença, constitui a base de novas aprendizagens ” (p. 19). de expressão e de opinião, de tomar decisões em seu benefício e de o seu
ponto de vista ser considerado (p. 9).

“há uma preocupação acrescida com a transição para o 1º ciclo, assumindo-


se claramente que uma EPE de qualidade é um preditor de sucesso na
escolaridade e na qualidade de vida dos jovens e dos adultos (João Costa, p. 4).

“Dada a importância das primeiras aprendizagens, é atribuído à EI um


papel relevante na promoção de uma maior igualdade de oportunidades
relativamente às condições de vida e aprendizagens futuras, sobretudo para
as crianças cuja cultura familiar está mais distante da cultura escolar” (p. 10.)
Educação de Infância

“Não se pretende que a educação pré-escolar se organize em


“no caso da EI, não se trata de adotar na creche, com as crianças mais velhas,
função de uma preparação para a escolaridade obrigatória, mas
práticas mais adequadas ao jardim de infância (tais como tempos longos em
que se perspective no sentido da educação ao longo da vida,
grande grupo), nem de começar a fazer no JI atividades consideradas como
devendo, contudo, a criança ter condições para abordar com
características do 1.º ciclo. Trata-se antes de proporcionar, em cada fase,
sucesso a etapa seguinte” (p. 17).1
as experiências e oportunidades de aprendizagem que permitam à criança
desenvolver as suas potencialidades, fortalecer a sua autoestima, resiliência,
autonomia e autocontrolo, criando condições favoráveis para que tenha
sucesso na etapa seguinte” (p. 97).

“Apesar de a legislação do sistema educativo (LBSE; Lei-Quadro da EPE) incluir


apenas a educação pré-escolar a partir dos 3 anos, não abrangendo a educação
em creche, considera-se, de acordo com a Recomendação do Conselho Nacional
de Educação, que esta é um direito da criança (…) são apresentados fundamentos
e princípios, que constituem uma base comum para o desenvolvimento da ação
pedagógica em creche e em jardim de infância“ (p. 5).2

“As OCEPE não constituem um programa a cumprir, mas sim uma referência
“As OCEPE constituem um conjunto de princípios para apoiar
para construir e gerir o currículo” (p. 13).
o educador nas decisões sobre a sua prática (…) Não são um
Currículo

programa (…). Diferenciam-se também de algumas concepções de


“Em educação de infância, o currículo refere-se ao conjunto das interações,
currículo, por serem mais gerais e abrangentes (…) por incluírem
experiências, atividades, rotinas e acontecimentos planeados e não planeados
a possibilidade de fundamentar diversas opções educativas, e,
que ocorrem num ambiente educativo inclusivo, organizado para promover o
portanto, vários currículos.” (p. 13).3
bem-estar, o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças” (p. 106).4

1. Faz-se referência às crianças dos 3 aos 6 anos e a palavra creche nunca aparece no documento.
2. Faz-se referência às crianças dos 0 aos 6 anos.
3. A palavra currículo aparece duas vezes em todo o documento.
4. A palavra currículo aparece 21 vezes em todo o documento.

23 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

“O tratamento das diferentes áreas de conteúdo baseia-se nos


fundamentos e princípios comuns a toda a pedagogia para a educação
de infância, pressupondo o desenvolvimento e a aprendizagem como
vertentes indissociáveis do processo educativo e uma construção articulada
do saber em que as diferentes áreas serão abordadas de forma integrada e
“as OCEPE acentuam a importância de uma pedagogia
globalizante” (p. 31).
estruturada, o que implica uma organização intencional e
sistemática do processo pedagógico (…) não significa introduzir
“Intencionalidade educativa – construir e gerir o currículo – A ação profissional
na educação pré-escolar certas práticas “tradicionais” sem
Pedagogia

do/a educador/a caracteriza-se por uma intencionalidade, que implica uma


sentido para as crianças ” (p. 18).
reflexão sobre as finalidades e sentidos das suas práticas pedagógicas e os
modos como organiza a sua ação. Esta reflexão assenta num ciclo interativo
“intencionalidade educativa – que decorre do processo reflexivo
– observar, planear, agir, avaliar – apoiado em diferentes formas de registo
de observação, planeamento, ação e avaliação desenvolvido pelo
e de documentação, que permitem ao/à educador/a tomar decisões sobre
educador, de forma a adequar a sua prática às necessidades da
a prática e adequá-la às características de cada criança, do grupo e do
criança.” (p.14).
contexto social em que trabalha. O desenvolvimento deste processo, com
a participação de diferentes intervenientes (crianças, outros profissionais,
pais/famílias), inclui formas de comunicação e estratégias que promovam
esse envolvimento e facilitem a articulação entre os diversos contextos de
vida da criança” (p. 5).
Educador/a de infancia

“As OCEPE baseiam-se nos objetivos globais pedagógicos definidos pela


referida Lei e destinam-se a apoiar a construção e gestão do currículo no
“o educador é o construtor, o gestor do currículo” (p. 7).
JI, da responsabilidade de cada educador/a, em colaboração com a equipa
educativa do estabelecimento educativo/agrupamento de escolas.” (p. 5).

práticas a fim de promoverem a melhoria pedagógicos e organizativos para o educa- como o centro da EPE; segundo uma con-
da qualidade da educação nesta etapa, e dor de infância na tomada de decisões sobre cepção de currículo integrado, contextuali-
sendo o resultado de um processo participa- a sua prática, isto é, na condução do proces- zado e no respeito pela individualização do
do de consulta que aconteceu entre 1996 e so educativo a desenvolver com as crianças” ser irrepetível que é cada criança nos pro-
1997, envolvendo vários profissionais ligados (Despacho n.º 5220/97, de 4 de agosto). cessos coletivos de educação que se rea-
à EPE – investigadores, formadores, técni- Estes princípios assentam na articulação lizam no JI.
cos do órgão central e local, sindicatos, etc. dos seguintes fundamentos: o desenvol- As OCEPE (1997) definiram ainda três gran-
– bem como representantes das famílias, a vimento e aprendizagem como vertentes des áreas de conteúdo8 a serem conside-
criação das OCEPE, em 1997, constituía: indissociáveis; o reconhecimento da crian- radas pelos/as educadores/as de infância
“um passo decisivo para a construção da ça como sujeito do processo educativo; a quando do planeamento da sua ação pe-
qualidade da rede nacional de educação pré- construção articulada do saber; a exigência dagógica e da avaliação das aprendizagens
-escolar, implicando a definição de referen- de resposta a todas as crianças (idem, p. das crianças, em que se destaca a área da
ciais comuns para a orientação do trabalho 14). Tais fundamentos apontam, à partida,
8 “Os âmbitos de saber, com uma estrutura própria e
educativo dos educadores de infância (…). As para um arranjo institucional que reitera o com pertinência sociocultural, que incluem diferentes
orientações curriculares constituem-se, as- princípio pedagógico e educativo da crian- tipos de aprendizagem, não apenas conhecimentos,
sim, como um conjunto de princípios gerais ça como sujeito ativo das aprendizagens e mas também atitudes, disposições e saberes-fazer”
(OCEPE, 1997, p. 47).

24 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


expressão e comunicação pelas ramifica- Neste sentido, o novo documento traz um 2, nas duas versões, defende-se o pressu-
ções que contempla e onde, pela primeira conjunto de alterações: (i) o reconhecimen- posto da criança como sujeito e agente do
vez surgem, explicitamente, referências à to da educação como um contínuo desde o processo educativo (1997, p. 19; 2016, pp. 9
“abordagem da escrita” e à “matemática”. nascimento e a importância de haver uma e 106), ressaltando a sua assunção explícita
Duas décadas depois, em 2016, são publica- unidade em toda a pedagogia para a infân- como o centro e o fundamento da EPE, mas
das as novas OCEPE. Tal decisão foi justifi- cia, com fundamentos e princípios comuns, é de realçar que nas OCEPE atuais são evo-
cada em função das mudanças sociais en- incluindo a educação em creche (crianças de cados os direitos da criança (p. 9); (iv) a alte-
tretanto ocorridas na organização familiar e 0 a 3 anos). Do ponto de vista político e sim- ração dos domínios existentes nas áreas de
na parentalidade, nas concepções de crian- bólico, esta explicitação é importante. Não conteúdo pela inclusão, em 2016, de dois do-
ça e de infância, no avanço e divulgação obstante, não deixa de se assinalar o modo mínios na área da expressão e comunicação:
das tecnologias, na organização e adminis- como as preocupações com a preparação o da educação física, que se autonomizou, e
tração escolares (e.g., a integração da EPE das crianças para a sua integração o 1º CEB – o da educação artística que mudou a nomen-
pública em agrupamentos de escola) e nos “continuidade educativa e transições” (idem, clatura dos seus subdomínios – artes visuais;
novos conhecimentos oriundos das ciências p. 97), são agora mais evidentes; (ii) a convo- jogo dramático/teatro; música; dança; (v) a
sociais e da educação. Mantendo os mes- cação de olhares e saberes multirreferencia- presença de um capítulo específico e deta-
mos princípios e fundamentos já presen- dos e uma atualização e clarificação concep- lhado sobre intencionalidade educativa –
tes nas OCEPE anteriores e continuando a tual e/ou referência explícita a noções-chave construir e gerir o currículo (idem, pp. 13-20);
assumir o/a educador/a de infância como como aprender a aprender, cuidar e cuidado (vi) a clarificação dos objetivos de desenvol-
construtor e gestor do currículo, o texto in- ético e brincar (p. 11) (secção 2.1.); (iii) o re- vimento e das aprendizagens a promover em
tegra agora contributos mais recentes dos conhecimento da criança como o sujeito e cada área, contemplando a “especificação
estudos da infância e dos seus direitos (cf. principal agente da sua aprendizagem, su- de diferentes componentes que integram
figura 2), ao mesmo tempo que torna mais blinhando o seu papel ativo e a importância o desenvolvimento da área, com indicação
explícitas e refinadas as áreas de conteúdo da sua participação, referenciando a CDC das aprendizagens globais a promover em
já definidas em 1997. (1989). Conforme se pode observar na figura cada uma”; a “apresentação de exemplos

25 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

de algumas situações que ilustram a evolução


do processo de aprendizagem”; ”exemplos de
estratégias que poderão ser utilizadas pelo/a
educador/a para promover essas aprendiza-
gens” (idem, p. 32).
Referenciadas ao contexto sociopolítico e ideo-
lógico a que se reporta a produção das OCEPE
(1997, 2016) e atentas ao argumento do con-
senso generalizado gerado em torno do seu
desígnio orientador nas tomadas de decisão
e nas ações dos/as educadores/as, considera-
mos que os excertos contidos na figura 2 estão
longe de traduzir um conjunto de informações,
concepções e valores incontroversos ou neu-
tros. Ao invés, entre afirmações e exemplifica-
ções, omissões ou formulações pautadas pela
vacuidade, subsistem diferentes significados e
contradições entre o dito e o não dito, entre
o que é expresso e o que fica subentendido,
tanto em termos formais como de substância, tões torna-se muito pertinente, no sentido de contraditória, ambígua e tensa, em que se
suscetíveis de gerar diferentes efeitos na sua se estar atento aos não ditos, ao que é ativa- justapõem os discursos acerca das crianças e
interpretação por diferentes leitores. mente produzido como não existente de modo dos seus direitos e os da pedagogia onde as
Com efeito, observam-se diferenças significa- a informar uma posição crítica face ao seu con- crianças assumem centralidade (Vasconcelos,
tivas entre as OCEPE (1997), que apresentam, teúdo, neste caso ao das OCEPE, e dos rumos 2015) com os discursos da intencionalização
de maneira muito discreta e velada, um sentido da EI. Duas questões se colocam. A primeira é educativa segundo a “especificação de objeti-
das questões pedagógicas e curriculares rumo a de saber se estaremos perante a valorização vos e conteúdos com vista a melhorar a quan-
a uma formalização com ênfase em aprendiza- de uma concepção de criança-aluno e de EPE tidade de conhecimento ‘real’ para tornar a
gens, e as atuais (OCEPE, 2016), em que a cap- crescentemente curricularizada e escolarizada componente educativa mais eficiente” (Gulløv,
tação de alguns desses sentidos se torna mais visando a preparação para a entrada no 1º CEB 2012, p. 100). Ora, qualquer esclarecimento das
acessível. Atente-se a determinadas discre- ou de uma concepção de criança cujo ofício de tensões e dos sentidos de que se revestirão as
pâncias: breve conceptualização de princípios brincar é assumido como experiência infantil OCEPE localmente implicará a sua interpreta-
e fundamentos surgidos pela primeira vez vs. do presente a respeitar, e de uma EPE que re- ção pelos/as educadores/as, de acordo com as
clarificação, detalhe e exemplos de processos conhece e potencia as culturas infantis criando suas próprias concepções de criança/infância,
e estratégias das aprendizagens (p. 32) (cf. ca- condições e oportunidades para o exercício da educativas, pedagógicas e curriculares, os mo-
pítulos da Intencionalidade Educativa, Áreas de participação ativa. A segunda é saber perante dos como as projetou, implementou e desen-
Conteúdo ou Continuidade Educativa e Transi- que concepção de educador/a estaremos: com volveu junto das crianças, e as especificidades
ções); identificação dos resultados das apren- autonomia conceptual, coconstrutor/a do cur- dos contextos e dos sujeitos.
dizagens esperadas vs. ilustração dos compor- rículo, contextualizado, flexível e não adulto-
tamentos que as evidenciarão bem como das cêntrico? Com uma missão técnica e executiva? 3. FACETAS DA ESCOLARIZAÇÃO NA EDU-
estratégias tidas como as adequadas; menção Com uma intencionalidade que ultrapassa os CAÇÃO DE INFÂNCIA
de que as indicações expressas são meramente objetivos das próprias OCEPE9? Dado que o JI se tornou a forma estatistica-
exemplificativas, “não constituindo listas de ve- Estamos pois perante uma nova fase da EI, mente habitual de as crianças dos 3 aos 6 anos
rificação, nem esgotam as aprendizagens a rea- estarem na nossa sociedade (Gimeno Sacris-
9 Dados as características do texto das OCEPE a que
lizar” (idem) vs. o seu grau de pormenorização. fizemos alusão, atente-se aos casos em que algumas tán, 2003/2005; Markström & Halldén, 2009;
Em processos de transição paradigmática como interpretações das/os educadores/as e outros/as pro- Kjørholt & Qvortrup, 2012), este constitui um
aquele que estamos a analisar, colocar ques- fissionais, indo além do seu espírito, consideram as observatório privilegiado para compreender os
orientações, prescrições.

26 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


modos como ali se (re)contextualizam os en- educadora e pelas crianças: árvores, um su- da de atenção velada, para a manutenção da
tendimentos e as formas práticas e simbólicas permercado, casas, etc., desenhados, pinta- ordem e da ”cidade que se tinha construído”:
de que se revestem as OCEPE relativamente às dos e recortados e/ou construídos com peças “’Já está em obras uma estrada assim tão
crianças pelos/as educadores/as. dos jogos e mais outros sinais de trânsito: nova?’, perguntou a educadora.” A pronta
Neste sentido, e estando cientes e conscien- proibido passar, obrigatório virar à esquerda, resposta de B. a tal reparo mostra que as
tes da diversidade que caracteriza as práticas obrigatório virar à direita. Pouco depois, al- crianças, apesar da aceitação das propostas
pedagógicas dos/as educadores/as de infân- gumas crianças começam a colocar peças de da educadora, não se subsumiram a elas nem
cia não podemos, no entanto, ignorar/ocul- madeira na “pista” simulando “construções” se conformaram à sua lógica, criando entre
tar outras que, não sendo necessariamente que, de repente, caíam. si, ao invés, versões da realidade alternativas
novas, apontam para uma crescente e – Já está em obras uma estrada assim tão às dos adultos. No fundo, podemos afirmar
assumida pré-escolarização das crianças. É nova? – perguntou a educadora. que apesar da intencionalização da educado-
no reconhecimento da enorme pressão a que – Estamos a brincar! – respondeu o B.” (JI ra, as crianças mantiveram a lógica do faz de
muitas estarão sujeitas e pelas preocupações público, 23 fev. 2015, crianças 5 anos) conta ao continuarem a brincar ao tema dos
socioeducativas que tal orientação suscita que, Neste excerto, a intervenção inicial da educa- carrinhos e não ao jogo dos sinais de trânsito
de seguida, nos centramos na análise de algu- dora traçando “ruas” parece decorrer da ob- ou da cidade, tal como apontava o desen-
mas facetas que assume a escolarização da servação prévia da brincadeira das crianças, volvimento da situação pela educadora. Na
EPE pela colonização dos saberes infantis por apresentando-se contextualizada e alinhada interpretação do que parece ser a partilha da
educadores/as preocupados em lecionar con- com o tema por elas definido informalmen- mesma realidade, estamos perante lógicas
teúdos formais académicos. te através das suas ações. O “cruzamento”, de sentido diferenciadas. Neste sentido, a
podendo ser interpretado como complexi- intervenção inicial da educadora como sen-
3.1. Brincar sim, mas com propósito ficação de um traçado linear, ou como um do “amiga das crianças” pode ser vista como
“Um grupo de rapazes brincava com carrinhos no acréscimo de dificuldade ao brincar em curso, uma estratégia pedagógica para otimizar a
chão. De vez em quando havia alguns “choques” depressa se converte numa espécie de lição aquisição de determinados conteúdos, que
entre as viaturas, mas o “trânsito” continuava a breve de educação rodoviária, a cargo da não deve ser confundida com uma pedago-
fluir sem grandes incidentes. A educadora apro- educadora, em que a transmissão de infor- gia e um currículo centrado na criança (cf.
ximou-se trazendo uma fita adesiva e começou mações sobre sinais de trânsito passou a ser Vasconcelos, 2015) até porque a orientação
a colar tiras no chão, definindo “ruas”/”estradas” o tópico a desenvolver. que imprime em prol das aprendizagens que
(…). As crianças que estavam envolvidas na brin- No desenvolvimento dos conteúdos que contarão no futuro escolar das crianças se
cadeira começaram a dar ideias: lhe estão associados, a internet surge como adianta ao reconhecimento dos seus interes-
– Educadora põe outra estrada aqui! – pediu V. fonte inesgotável de acesso a informações e ses e competências como atores sociais no
A educadora faz uma “rua” perpendicular à “rua” sinal de contemporaneidade, mas outras fa- presente.
principal e pergunta: cetas do seu uso como recurso pedagógico
– Meninos, o que está a faltar nesta pista? denotam a presença de práticas bem tradi- 3.2. Tornar úteis objetos/atividades
– Passadeiras para as pessoas passarem – diz cionais como a cópia à vista e a reprodução lúdicas
o B. de imagens fiéis à realidade, de modo a pro- “J. está sentado na biblioteca a brincar com
– E para os carros pararem? – perguntou a mover a aprendizagem de saberes úteis para marionetas de luva, com um livro numa mão
educadora. a vida “de verdade”. e, na outra, “o polícia”. Conta a história e M.,
– Placas! – responde o E. Expressando o lema “Brincar sim, mas com S. e L. aproximam-se, sentam-se no chão e
– Que placas? – volta a perguntar a educa- propósito”, o choque entre o princípio da in- ouvem atentamente o que J. vai dizendo. S.
dora, mas como as crianças não respondem, tencionalidade que parece animar a interven- levanta-se, coloca outra marioneta na mão e
a ela sugere o “Stop” e diz que podem ir ção da educadora e o princípio do prazer que junta-se a J. na representação.
pesquisar no computador (…). De seguida, parece animar a atividade lúdica das crianças – Anda, diz lá onde está? – grita J. para S.
pergunta quem ia desenhar/copiar o sinal de eclode quando estas passam a ressignificar – Hã? – diz S.
trânsito “Stop”. Uma das crianças propõe-se as “casas” como “casas que caem”. O seu J. começa a tirar das prateleiras os livros para
fazer o desenho e, aos poucos, a “pista” foi entendimento como sementes que lançam o o chão e diz à S:
ganhando outros elementos sugeridos pela caos na paisagem logo obriga a uma chama- – É assim que eles fazem [referindo-se à po-

27 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

lícia] quando vão procurar lá na minha casa.


A educadora quando vê mais do que três
crianças na biblioteca interrompe-as, dizen-
do que ali só podem estar três de cada vez
e que aquilo não é espaço “de algazarra”. A
biblioteca é para ler livros, sem barulho – diz.
– São só três que podem ir e não cabem –
grita do fundo da sala H.
– Mas nós gostamos de brincar com os fan-
toches – responde-lhe M.
– Mas então venham para aqui. – Aponta
para a mesa. – Vamos falar então das profis-
sões que existem. Já sabem que há polícias
e que mais? – diz a educadora, e começam a
falar sobre profissões.”
(JI público, 3 de outubro de 2016, crianças de
5 a 6 anos)

De novo se assiste à transformação de uma


ação lúdica envolvendo quatro crianças
numa espécie de lição sobre as profissões
por parte da educadora. Trata-se agora de
compatibilizar a necessidade de manter uma
dada ordem na sala e no grupo com a abor- enquadramento das crianças pela intervenção – Vá, pega no lápis direitinho, tu fazes sozi-
dagem intencional de determinados conteú- da educadora subalterniza os interesses das nho porque tu consegues – diz a educadora.
dos, tornando assim proveitosos os espaços crianças e a dimensão lúdica da ação cole- Pega-lhe na mão e “guia-o”.
e os tempos ganhos à gandaiice e ociosidade tiva em que estavam envolvidas. Mais uma – Estás a ver como tu sabes fazer. Agora
interpretados como “algazarra”. Ensinar as vez, estamos presentes lógicas diferencia- continuas a pintar.
crianças acerca das profissões tendo os fan- das: enquanto a criança olha o fantoche e – Mas eu não quero. Estou farto – diz.
toches por perto mas não os usando torna- vê inúmeras possibilidades de o usar através – Agora é tempo para trabalhar – responde
-se assim um modo de dissociar o jogo de do brincar, a educadora parece olhar para o a educadora.”
manipulação de objetos com funções lúdicas fantoche vendo um conteúdo a trabalhar. (JI público, 27 de setembro de 2016, crianças
e aprendizagens informais de um trabalho Tornar funcional e útil o que as crianças dizem de 4 a 6 anos)
cognitivo sério, formalizado em torno de e fazem parece tornar-se numa espécie de Perante rotinas estabelecidas e o cumpri-
uma conversa temática, pedagógica, liderada “pragmática pedagógica”, atenuante de for- mento da atividade em curso sob direção
pela educadora em torno da conceptualiza- mas explícitas de escolarização. da educadora (desenhar), a criança mani-
ção do tema das profissões; de distinguir festa um outro interesse, brincar, que é
manipulação de pensamento aleatórios e 3.3. Trabalhar é fazer coisas sérias e imediatamente sancionado. Pintar, enquan-
lúdicos de concentração corporal e pensa- apresentar resultados to atividade que se integra no domínio da
mento estruturado em torno de conteúdos “As crianças encontram-se agrupadas em expressão plástica, revela-se aqui ao serviço
relativos ao conhecimento do mundo. pequenos grupos, distribuídos pelas mesas da fabricação de corpos dóceis, ajustados e
“Mas nós gostamos de brincar com os da sala. Estão a pintar umas folhas polico- produtivos (Foucault, 2009): a coordenação
fantoches”, expressão infantil de um gosto piadas com uma imagem de uma folha. A óculo-manual, a motricidade fina e a mestria
e de um protesto é assim anulada pela sua educadora insiste com C. para pintar bem. dos materiais e suas propriedades no respei-
conversão numa ação com porvir. Essa espé- C. olha para ela, baixa a cabeça e diz que to pelos limites dos contornos definidos, tal
cie de chamamento à ordem, ao controlo e ao quer ir brincar. como a mente, dispensada da criação e cria-

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tividade em prol de um exercício de repetição, aprendizagens – “brincar para aprender” 3.4. Apresentar resultados é evidenciar
convertem-se em mecanismos que sujeitam ou “a brincar também se aprende”, que competências adquiridas
as crianças às formas estereotipadas e as dis- atualmente ganha uma tónica, centra-se na “C. pede às crianças que se sentem à mesa
ciplinam. Por outro lado, a explicitação da di- aquisição de aprendizagens consideradas e façam o desenho relativamente à visita do
ferenciação entre trabalhar e brincar introduz úteis e eficazes. apicultor à sala no âmbito do projeto das
também um juízo que valoriza a pintura em Familiarizar as crianças com as práticas nor- abelhas. M. anda pela sala e senta-se no
detrimento do brincar, criando uma clivagem mativas da escola básica torna-se, assim, sofá que está na área da casa.
arbitrária entre atividades sérias e profanas, sinónimo de alunização (Correia & Matos, – Anda sentar-te e trabalhar, L. Nunca que-
que apresentam o brincar como uma ativi- 2001; Matos, 2011), ou seja, de uma socia- res fazer nada – diz-lhe a auxiliar.
dade remanescente, como recompensa pelo lização para o desempenho do papel de M. chama a S. para brincar com ele mas ela
cabal cumprimento do trabalho sério e/ou aluno (Perrenoud, 1995; Sirota, 1993). Ou- não responde. (…) Já na mesa, L. diz a C.
sanção pela sua não realização. Sério porque tras formas de diferenciação das atividades que o desenho já está e pergunta se pode
pode ser visto como útil e propedêutico à sérias e profanas e não menos incisivas dos ir brincar. C. olha para o desenho e volta a
aprendizagem dos comportamentos (estar processos de disciplinação foram observa- colocá-lo na mesa.
sentado à mesa), das materialidades escolares das quando o brincar assumiu o caráter de – Mas as abelhas são verdes? – pergunta C.
(papéis, canetas, tintas) e das formas escritu- admoestação ou mesmo de sanção. – Sim – responde L.
rais que configuram uma socialização para o Todas estas formas de diferenciação de ati- Gera-se uma discussão com as crianças que
modo escolar. vidades úteis e dispensáveis subentendem estão na mesa acerca das cores das abelhas.
Neste contexto, o brincar e a pedagogia uma antinomia entre trabalho e brincar em – Além de estar mal, são amarelas e pretas,
do brincar tendem a ser instrumentalizados que este último é remetido para as margens como a abelha Maia. Ainda faltam aqui coi-
sob a forma de atividades “lúdico-pedagó- do trabalho escolar e, por esse motivo, con- sas. Onde está o apicultor? O Sr. João, que
gicas” (Brougère, 1998, 2003) e submetidos siderado como social e culturalmente inútil esteve aqui há pouco?
a lógicas escolares como facilitadoras das do ponto educativo. – Não está, foi almoçar! – diz o L., e aponta

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para o desenho fazendo um gesto como que suas aprendizagens e dos seus progressos. A ludicidade, sendo por definição uma ati-
indicando a “saída da figura” com o dedo. Significa também que os cuidados com o vidade autotélica, autodeterminada e livre
(JI público, 16 de novembro de 2016, crianças resultado final destas produções são, por- (Sutton-Smith, 1997; Brougère, 1998, 2003),
de 4-6 anos) ventura, mais vigiados e controlados pela não pressupõe necessariamente nem a reali-
A solicitação de produções gráficas relativas educadora e que as apreciações suscitadas zação de produtos finais nem a sua divulga-
às atividades desenvolvidas, podendo ser durante o processo da sua concretização e ção, o que torna invisível, de alguma forma,
justificadas como registo de memórias sig- o resultado final se assumem como facetas quer o “trabalho das crianças”, se conceber-
nificativas que contam histórias do grupo e da avaliação na EI, entre outras. Tal como mos que o seu ofício é brincar (Chambore-
do indivíduo, pelo seu grau de recorrência, a situação acima mostra, a explicitação das don & Prevot, 1973), quer, por consequên-
vulgarização e visibilidade dentro e fora da regras, preceitos, conceitos e convenções cia, o das/os educadoras/es. Lidar com esta
sala e na instituição, pode ser igualmente sociais tende a ser objeto de forte regulação, invisibilidade torna-se mais agudo quando
entendida como uma forma de evidenciar e o mesmo acontecendo com as chamadas de vivemos num contexto como aquele que
legitimar quer o trabalho pedagógico desen- atenção para a conformidade das crianças à já referimos, em que os desempenhos das
volvido pelo/a educador/a com as crianças completude de uma dada realidade decor- crianças, mesmo as mais pequenas, come-
quer com uma suposta evidência do nível rente do preenchimento das ´falhas´ dete- çam a ser exigidos mesmo que implícita e
de desempenho que vai sendo atingido pe- tadas: “Ainda faltam aqui coisas. Onde está informalmente.
las mesmas. Isso significa que as produções o apicultor?”; e à correção dos erros: “Mas as
das crianças se assumem como “prova” das abelhas são verdes?”

30 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


CONSIDERAÇÕES FINAIS da criança, segundo estratégias de organiza- de (re)institucionalização da infância e da
Em Portugal tem vindo a assistir-se a um ção espácio-temporais e materiais uniformes, sua educação, com implicações nas práticas
processo de institucionalização da EI em em que os educadores tanto criam condições pedagógicas, nas inter-relações dos atores
que é possível dar conta de um movimento para que determinadas aprendizagens ocor- educativos, educadores/as e crianças, desde
em que, nos últimos 30 anos, o acúmulo de ram “espontaneamente” como para instruir logo pelas interpretações e opções que os
saberes e conteúdos disciplinares centra- conteúdos. educadores fazem, por exemplo, das OCEPE,
dos na transmissão didática, padronizada Estando cientes de que a realidade na EI dos discursos da qualidade e da excelência e
e uniformizadora, de tipo individualizado, é mais complexa e diversa, ali coexistindo pelos saberes, práticas e valores que convo-
tem em mira as aprendizagens formais e a práticas pedagógicas heterogéneas e até cam no contexto.
aquisição de competências escolares. Este de resistência ao modelo escolocêntrico Estas mudanças sugerem a pertinência de se
movimento, frequentemente justificado em (Correia & Matos, 2001), as mudanças so- proceder a um debate e aprofundamento em
nome da qualidade e da necessidade de in- ciais e de política educativa a que fizemos torno de várias questões que precisam de ser
tervir atempadamente para prevenir o aban- alusão parecem expressar uma nova forma cuidadosamente refletidas.
dono e o insucesso escolar, reflete já na EI
algumas facetas da recontextualização local
de políticas transnacionais e que, à partida,
eram mais visíveis nos níveis educativos mais
avançados (Torres, 2013). Trata-se da promo-
ção cada vez mais precoce da literacia, nu-
meracia, tecnologias, cientificismo e poliglo-
tismo, exercitados pelo uso intensivo de ma-
nuais de tipo escolar e/ou de propostas de
atividades “lúdico-pedagógicas” (Brougère,
1998, 2003; Rocha & Ferreira, 2010; Ferreira
& Tomás 2016) apostadas na transmissão de
conteúdos escolares.
As lógicas subjacentes a práticas pedagógicas
orientadas segundo os princípios “brincar sim,
mas com propósito”, “tornar úteis objetos/
atividades lúdicas”, “trabalhar é fazer coisas
sérias e apresentar resultados” e “apresen-
tar resultados é evidenciar competências
adquiridas” constituem manifestações de
algumas das tensões e ambiguidades que
mais frequentemente observámos no JI. Tais
tensões parecem dever-se à existência de um
quadro teórico e ideológico que aponta para
uma concepção de criança como atriz social,
produtora de cultura e sujeito de direitos, in-
cluindo o de brincar, como aparece plasma-
do nas OCEPE (2016), e práticas pedagógicas
que, parecendo atribuir centralidade ao que
as crianças dizem e fazem como estruturan-
te da intencionalidade pedagógica, denotam,
afinal, preocupações de tipo transmissivo em
função dos níveis de desenvolvimento teórico

31 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Uma delas refere-se à pedagogia da EI e da Finalmente, outra questão refere-se à fun- REFERÊNCIAS
Afonso, A. J. (1998). Políticas Educativas e Avaliação
sua especificidade ou não: entre os princí- ção do JI e do posicionamento dos/as edu- Educacional. Para uma Análise Sociológica da Reforma
pios de uma pedagogia contextualizada e cadores/as. Consideramos que o JI é um con- Educativa em Portugal (1985-1995). Braga: Universidade
praxiológica (Rocha, Lessa & Buss-Simão, texto de preparação para a entrada para o 1º do Minho/CEEP.
Alanen, L. (2011). Critical Childhood Studies? Childhood,
2016) que reconhece a centralidade da crian- CEB ou deve antes ser entendido como mais 18(2), 147–150.
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dinamizador/a de um currículo coconstruído suas capacidades no presente e num contex- ME.
com as crianças, no reconhecimento dos to coletivo de partilha? Consideramos que o Bal, M. (2002). Travelling concepts in the Humanities: A
seus saberes e experiências prévias bem educador deve ser um especialista nas didá- Rough Guide. Toronto: U. of Toronto P.
Ball, S. (2001). Diretrizes Políticas Globais e Relações
como das suas culturas infantis ou outras ticas e estar preocupado com os resultados Políticas Locais em Educação. Currículo sem Fronteiras,
pedagogias orientadas por objetivos pré- dos conteúdos aprendidos pelas crianças ou 1(2), 99-116.
-definidos e conteúdos pré-programados deve ser antes um especialista dos mundos Bassok, D., Latham, S. & Rorem, A. (2016). Is Kindergar-
ten the New First Grade? AERA Open, 1(4), pp. 1–31
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1998, 2003) e “amigas das crianças”, para sideramos que o conhecimento das crianças Brougère, G. (2003). Jogo e educação. Porto Alegre: Edi-
transmitir conteúdos e promover aprendi- é evidenciado pelo uso intensivo de fichas tora Artes Médicas.
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produções destas constituem duplas provas ção pedagógica (Rocha, Lessa & Buss-Simão, Correia J. A. & Matos M. (2001). ‘Da Crise da escola ao
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co desenvolvido e, por outro, do nível das senta no reconhecimento e valorização dos Afrontamento.
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será por acaso que as crianças brincam cada nação epistemológica que possibilita ampliar Early Childhood Education (Contesting Early Childhood).
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vez menos e por menos tempo no JI (Neto, e tornar mais complexa a análise da EI, ao Domingos, Ana Maria et al. (1986). A teoria de Bernstein
2000; Ferreira & Tomás, 2016) e quando o incluir no seu seio os múltiplos saberes como em sociologia da educação. Lisboa: Fundação Calouste
podem fazer entre elas, tal deverá respeitar um valor, a multirreferencialidade teórico-pe- Gulbenkian
Ferreira, M. & Tomás, C. (2017).  “Já podemos ir brin-
as regras dos adultos, decorrer com ordem dagógica e a reflexividade acerca das práticas. car?” – A  construção social da criança como aluno/a
e segurança e assumir uma inteligibilidade A imaginação democrática que reconhece o no jardim de infância.  In Cortesão, I. et al (Eds),  Tra-
imediatamente acessível aos seus olhos. valor educativo da vida coletiva em sociedade, vessias e Travessuras nos Estudos da Criança (pp. 445-
455). Porto: ESEPF. 
Brincar no JI é cada vez mais sinónimo ora que inclui a participação influente das crianças Ferreira, M. (1995). ‘Salvar os corpos, forjar a razão’. A
de sanção das transgressões (“se te portas na organização e nas decisões que afetam o construção médico-social e psico-pedagógica da infân-
mal, não vais brincar”), ora de recompensa quotidiano do JI com base numa ordem nego- cia em Portugal, 1880–1940. (Dissertação de Mestrado
publicada). Porto: Universidade do Porto.
(“quando acabares de fazer isso direitinho, já ciada entre adultos e crianças. Ferreira, M. (2004). A gente gosta é de brincar com os
podes ir brincar), ora de estratégia de ensino outros meninos!”. Relações sociais entre crianças num
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32 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


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33 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Projetos de aprendizagem: algumas perguntas frequentes
Isabel Lopes da Silva . Coordenadora da equipa de elaboração das OCEPE

Introdução Zoccatelli, 2013) ou incluem relatos da sua O CONCEITO DE PROJETO DE


Na comemoração dos 30 anos da publica- realização (Santos et al. 2014). APRENDIZAGEM
ção dos Cadernos de Educação de Infân- Valeria então a pena voltar a falar desta me- Será a “pedagogia de projeto” um modelo
cia (CEI), foi com muito prazer que aceitei todologia? pedagógico?
o convite para participar neste número. A decisão de o fazer deve-se à observação A designação de “pedagogia de projeto” não
Tendo-me sido dada liberdade de escolher constante do relatório acima citado, quando se encontra na literatura consultada e citada,
o tema a abordar, ocorreu-me uma das per- analisa o conjunto das respostas à mesma apesar de, por vezes, ser referida no discur-
guntas do questionário utilizado no estudo pergunta, em que se afirma “De realçar que so dos/as educadores/as como um modelo
de avaliação da implementação das Orien- 91,9% (n = 440) dos educadores assinalaram pedagógico. De facto, não pode ser assim
tações Curriculares para a Educação Pré-Es- em média 3 modelos (M = 2.98, DP = 1.37), va- considerada.
colar (OCEPE) de 1997, encomendado pela riando entre 1 e 7 modelos. É também possível Um modelo pedagógico consiste numa re-
DGE e realizado pela Universidade do Porto constatar que 12,8% referem seguir apenas 1 presentação estruturada e coerente das
e ISPA (Abreu Lima et al., 2014), estudo que modelo” (Abreu Lima et al., 2014: 37). características essenciais de uma prática
foi, aliás, uma das fontes que contribuiu Esta multiplicidade de influências levanta pedagógica, o que inclui nomeadamente em
para a elaboração das OCEPE de 2016. algumas interrogações: como é que a “pe- educação de infância: fundamentos teóri-
Tratava-se de uma pergunta que procura- dagogia de projeto” se articula e insere em cos e valores; características do contexto;
va saber quais os modelos pedagógicos ou diferentes modelos curriculares? Essa diver- conteúdos (finalidades, estrutura, âmbito
curriculares com maior influência na prática sidade de influências corresponderá a práti- e prioridades do currículo, progressão, roti-
dos/as educadores/as, que seriam situados cas semelhantes ou diferentes? Será que o nas); metodologias (organização do grupo
numa escala de 1 (nenhuma influência) a 5 desenvolvimento de projetos com crianças e das interações educador/criança, criança/
(muita influência), sendo a opção “peda- é entendido da mesma forma por todos/as criança), meios e materiais, estratégias mo-
gogia de projeto” assinalada em 4 e 5 pela os/as educadores/as? tivacionais e ainda processos de avaliação
maioria dos respondentes (80,9% n=364). Pareceu-me assim ser pertinente voltar (Evans, 1982).
Uma influência muito superior a qualquer à temática do projeto, até porque na bi- Ora, o trabalho numa sala de jardim de in-
outro modelo ou perspetiva pedagógica. bliografia publicada se podem encontrar fância não consiste só no desenvolvimento
Esta adesão tão significativa à “pedagogia diversas designações, tais como “traba- de projetos. As crianças não se desenvolvem
de projeto” pode ser interpretada como lho de projeto”, “metodologia de projeto” e aprendem apenas através de projetos, mas
decorrente da perspetiva globalizante que ou “abordagem de projeto”, sendo que de muitas outras experiências e ocasiões de
caracteriza as práticas pedagógicas na edu- as OCEPE, como acima referido, utilizam aprendizagem, que lhes são proporcionadas
cação de infância e que é também um dos a expressão “projetos de aprendizagem”. no dia-a-dia, entre as quais se encontram
fundamentos e princípios já mencionados Haverá características comuns a todas es- também projetos.
nas OCEPE de 1997 e mais desenvolvidos e tas designações? Por que é que as OCEPE O desenvolvimento de projetos com crianças
explicitados nas OCEPE de 2016: “Constru- empregam a expressão “projetos de apren- é, efetivamente, um tipo de metodologia
ção articulada do saber”, em que o texto dizagem”? com raízes numa tradição pedagógica que
sobre este fundamento e princípio se refere Para tentar esclarecer melhor o que se en- remonta a Kilpatrick e Dewey. Uma proposta
a “projetos de aprendizagem”. tende por este tipo de prática e por que que se demarca de um ensino orientado pelo
Mas a importância do projeto na educação as OCEPE a menciona como “projetos de professor, numa perspetiva de transmissão
de infância não data das OCEPE. Tem uma aprendizagem”, recorri à prática, hoje tão de conhecimentos atomizados, para adotar
longa tradição, que deu origem a uma vasta frequente, de abordar um determinado uma perspetiva globalizante de articulação
bibliografia, nomeadamente em português, conceito, proposta ou objeto através de de conteúdos e atividades, de modo a pro-
para que a APEI também contribuiu, atra- respostas a perguntas que se afiguram mover uma aprendizagem ativa e com senti-
vés de inúmeros artigos, que foram sendo como frequentes. Começarei por algumas do para as crianças.
publicados nos CEI, uns mais teóricos, ou- de ordem mais teórica, relacionadas com o Nalguns casos, o projeto é entendido como
tros mais centrados no relato de práticas, conceito de “projeto”, para depois abordar uma possível abordagem, que poderá caber
e ainda com duas obras que incidem no outras mais práticas relativas às diferentes em várias perspetivas curriculares (por exem-
desenvolvimento do projeto (Malavasi & maneiras de fazer. plo, Katz & Chard, 1997), noutros, a meto-

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dologia de projeto foi apropriada por diver- curiosidade e desejo de aprender da crian-
sos modelos e integrada na representação ça vão dando lugar a processos intencionais
fundamentada e estruturada da prática que de exploração e compreensão da realidade,
lhes é própria, como acontece, por exemplo, em que várias atividades se interligam com
no modelo do Movimento da Escola Moder- uma finalidade comum através de projetos
na ou no de Reggio Emilia que, também de de aprendizagem progressivamente mais
acordo com o estudo citado, e sobretudo o complexos. Estes, ao integrarem diferentes
primeiro, estão entre as influências assinala- áreas de desenvolvimento e aprendizagem e
das pelos/as educadores/as. São os funda- ao mobilizarem diferentes formas de saber,
mentos teóricos e valores adotados por cada promovem a construção de alicerces para
modelo, relativos nomeadamente à concep- uma aprendizagem ao longo da vida” (p. 11).
ção de criança e finalidades da educação, ao Estabelecendo uma continuidade entre
papel do/a educador/a, que se traduzem nas brincar e aprender, a noção de projeto de
diversas vertentes da prática de que faz par- aprendizagem, incluída no glossário em
te o desenvolvimento de projetos. anexo, menciona que “têm como ponto de
Se a prática do projeto tem diferenças de partida uma curiosidade ou interesse de uma
acordo com a perspetiva adotada e de mo- ou várias crianças que, com o apoio do/a
delo para modelo, há, no entanto, alguns educador/a preveem o que vão fazer e como,
princípios comuns, tais como considerar que realizam os processos e ações previstas, sin-
as crianças aprendem de forma global ou ho- tetizam o que aprenderam e comunicam a
lística, que importa partir dos seus interesses outros essas aprendizagens. São meios pri-
e que as crianças devem ter um papel ativo vilegiados de participação das crianças no
no desenvolvimento de todo o processo. planeamento e na avaliação e de articulação
de conteúdos” (p. 107).
O que são “projetos de aprendizagem”? Ter designado a metodologia de projeto por
As OCEPE reconhecem esta forma de apren- “projetos de aprendizagem” visava, por um
der holística das crianças no fundamento e lado, distinguir os projetos que se realizam
princípio “Construção articulada do saber”, com as crianças de outros projetos que embora sublinhando que se trata de “proces-
chamando a atenção de como o brincar é orientam os estabelecimentos educativos sos intencionais de exploração e compreen-
testemunho dessa maneira natural e es- e a ação do/a educador/a com o grupo de são da realidade, em que várias atividades
pontânea de as crianças aprenderem, que crianças, respetivamente o projeto educativo se interligam com uma finalidade”, isto é a
terá de ser apoiada na educação de infân- de estabelecimento e o projeto curricular de sua natureza globalizante, que “partem da
cia através de materiais diversificados que grupo. Sendo que há características comuns curiosidade ou interesse” das crianças e que
estimulam o seu interesse e curiosidade. É a qualquer projeto, nomeadamente a cons- são “meios privilegiados de participação das
na continuidade da importância atribuída trução progressiva, a participação dos inter- crianças no planeamento e avaliação”.
ao brincar e às iniciativas e explorações das venientes e o caráter globalizante, em que
crianças que surge a referência a projetos de diversas atividades contribuem para uma Desta concepção de projeto decorre uma
aprendizagem. finalidade comum, os projetos de aprendiza- outra questão:
“Observar e envolver-se no brincar das crian- gem realizados com as crianças têm contor- Qualquer processo globalizante
ças sem interferir nas suas iniciativas permi- nos e funções que os diferenciam dos outros de aprendizagem é um projeto de
te ao/à educador/a conhecer melhor os seus projetos (Lopes da Silva, 1998). aprendizagem?
interesses, encorajar e colocar desafios às Por outro lado, adotando as OCEPE uma Todos os projetos de aprendizagem são por
suas explorações e descobertas. Esta obser- perspetiva abrangente onde podem caber natureza processos globalizantes, proporcio-
vação possibilita-lhe ainda planear propostas vários modelos, procurou encontrar-se um nando um conjunto diversificado de opor-
que, partindo dos interesses das crianças, termo claro e que não estivesse conotado tunidades e experiências de aprendizagem
os alarguem e aprofundem. Deste modo, a com uma forma de abordagem ou modelo, e mobilizando diferentes conteúdos, que se

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organizam em torno de uma finalidade ou Outras vezes, é o/a educador/a a prever no De um lado estão os processos globalizantes de
questão central. Há, porém, propostas glo- seu projeto curricular de grupo vários “te- aprendizagem orientados pelo/a educador/a,
balizantes de aprendizagem por vezes desig- mas”, pensados para todo o grupo e, fre- que correspondem, de certo modo, ao que
nadas como “projetos”, mas que não corres- quentemente, para os diferentes períodos também foi designado por “centros de interes-
pondem a “projetos de aprendizagem” como do ano letivo, sem ter também em conta os se” ou “temas de vida” e que a literatura anglo-
são entendidos pelas OCEPE por outras interesses e curiosidades que vão sendo ma- -saxónica chama “unidades”. Neste tipo de
perspetivas ou modelos acima mencionados. nifestados, num determinado momento, por práticas, é o/a educador/a que lança o tema,
É o que acontece, nomeadamente, com pro- uma criança ou grupo de crianças. prevê as fases de desenvolvimento do proces-
postas previamente definidas, muitas vezes Sendo, em qualquer caso, propostas que so, prepara os materiais necessários, motivan-
também designadas por “temas”. não partem de interesses ou curiosidades do, mais ou menos artificialmente, o interesse
Umas vezes, trata-se de um “tema” único das crianças, são por vezes defendidas como das crianças, que até se podem envolver, umas
decidido pelo estabelecimento/agrupamento tratando-se de temáticas abrangentes, que mais, outras menos, na proposta, mas cuja
para todo o ano letivo e para ser desenvol- deixam margem ao/à educador/a para decidir participação reside essencialmente em realizar
vido por todos os grupos de crianças, dan- com crianças como poderão ser abordadas e as propostas do/a educador/a. Trata-se, assim,
do-se até o caso de ser identificado como desenvolvidas, isto é, que permitem a partici- de uma participação passiva.
concretização do projeto educativo. Ora, o pação das crianças. No outro extremo encontram-se projetos de
projeto educativo é um projeto de melhoria De facto, o termo “participação” encerra algu- aprendizagem em que as crianças participam,
da organização, que tendo consequências no ma ambiguidade, porque pode haver diversos não passiva, mas ativamente, na construção
desenvolvimento do currículo, não pode de- graus e níveis de participação. Para situar a par- do processo, que vai sendo negociado entre
terminar, à partida, os interesses das crian- ticipação das crianças importa situá-la numa li- o/a educador/a e as crianças, desde a escolha
ças e dos grupos. nha com dois extremos. do ponto de partida decorrente do seu interes-

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se e curiosidade, passando por todo o desen- que despertam tal interesse nas crianças, por um problema ou aspiração” (Niza, 1996: 149).
volvimento do processo, sendo as crianças en- exemplo, a estranheza face a um hamster Assim, a organização do ambiente educativo
volvidas nas diferentes fases de planeamento, que parecia morto, mas não estava (Vascon- pode também dar origem a um projeto (ver,
ação e avaliação (Helm & Katz, L., 2011). celos, 1998), que de certo modo se impõem por exemplo, “O que queremos melhorar na
Entre estes dois extremos, há a possibilidade como ponto de partida, havendo muitos nossa biblioteca?” in Vasconcelos et al, 2012),
de diversos níveis, sendo que quanto maior for projetos que se referem a uma “situação podendo também surgir a partir de ques-
a participação ativa e real das crianças, mais se desencadeadora” (Ver Vasconcelos et al., tões relacionadas com cidadania, como, por
aproximará da noção de “projeto de aprendi- 2012). Se é importante que o/a educador/a exemplo, a igualdade de género (ver exem-
zagem”. esteja atento/a e tire proveito de situações plos em Cardona et al. 2010).
Convém recordar que a participação das não previstas, com potencial para serem Se a questão de partida do projeto pode es-
crianças não se limita aos projetos de apren- aprofundadas pelas crianças, não se pode tar mais relacionada com qualquer área de
dizagem e que, estando os fundamentos limitar a esperar que aconteçam para iniciar conteúdo (ou domínio), a partir da qual são
e princípios das OCEPE intimamente arti- um projeto. Porém, para que haja participa- convocadas outras, o caráter globalizante
culados, esta participação remete para o ção das crianças, também não pode ser o/a do projeto não implica que seja necessário
“reconhecimento da criança como sujeito e educador/a a propor algo que, por alguma incluir conteúdos de todas as áreas, mas
agente do processo educativo”. Considerar a razão, considera interessante. apenas os que são relevantes para dar res-
criança com capacidade de construir o seu A observação e registo do/a educador/a per- posta e aprofundar o que se pretende saber
desenvolvimento e aprendizagem e com o mite detetar curiosidade e interesses signifi- ou fazer.
direito a ser ouvida nas questões que lhe di- cativos para as crianças. “Observar torna-se Na variedade de pontos de partida que
zem respeito e de a sua opinião ser tida em assim uma escuta ativa, que deve ser carac- surgem de uma manifestação do interes-
conta implica que as crianças participem em terizada por escutar atentamente e mostrar se das crianças ou de uma proposta do/a
toda a vida do jardim de infância e no pro- disponibilidade, dando espaço à criança” educador/a baseada na reflexão sobre o
cesso de desenvolvimento do currículo e não (Malavasi & Zoccatelli, 2013: 10). É através que observa e documenta, cabe de qualquer
apenas em projetos de aprendizagem. da reflexão sobre a observação que surgem modo ao/à educador/a ajudar as crianças a
Mas a participação das crianças não acon- “pistas projetuais” a partir das quais são expressar as suas opiniões sobre a questão.
tece espontaneamente, depende de como colocadas “hipóteses projetuais”, que serão Este levantamento do que as crianças já sa-
o/ educador/a estimula as suas iniciativas depois negociadas com as crianças (id. 51). bem, de modo a partir dos seus saberes, im-
e apoia o seu desenvolvimento e aprendi- Por isso, o desenvolvimento de projetos no plica que o/a educar/a estimule a expressão
zagem. Se este é um princípio geral referi- modelo de Reggio Emilia tem como 1ª fase livre das suas ideias e aceite todas as expli-
do nas OCEPE, como é que este estímulo a documentação e a sua análise (Martalock, cações, sem as orientar no sentido que lhe
e apoio se traduz na prática de projetos de 2012), sendo que esta recolha de documen- pareça mais conveniente ou retendo as que
aprendizagem? tação e a reflexão sobre ela acompanham mais se aproximem da resposta “correta”, de
todo o processo. acordo com conhecimentos aceites.
PRÁTICAS DE DESENVOLVIMENTO DE O interesse e curiosidade das crianças decor- A partilha dos saberes das crianças e das
PROJETOS DE APRENDIZAGEM re da sua interação com o mundo, podendo suas interpretações sobre a questão permi-
Como escolher o ponto de partida do comparar-se o aprofundamento desse inte- te definir melhor o que se pretende saber e/
projeto? resse e curiosidade a um processo de pesqui- ou fazer, isto é, a problematizar o interesse
Um projeto parte do interesse ou curiosida- sa. Há, por isso, alguma tendência a consi- ou curiosidade, para que se possa, depois,
de de uma ou várias crianças. Porém, entre derar as questões relacionadas com as ciên- debater em conjunto diferentes possibilida-
os inúmeros interesses e curiosidades das cias como pontos de partida privilegiados. des de saber e descobrir mais para se chegar
crianças, o/a educador/a tem um papel no Podem sê-lo, de facto, como demonstram onde se pretende.
apoio à escolha do que poderá ser mais relatos de vários projetos (ver por exemplo, O/a educador/a tem um papel nesta elabo-
importante aprofundar e desenvolver, de Oliveira-Formosinho & Costa, 2011; Santos & ração do pensamento das crianças, através
acordo com as suas intenções pedagógicas Gaspar, 2014). Porém, as possibilidades de do que foi designado como “partilha sus-
e com o que sabe das crianças. questões a abordar são inúmeras, dado que tentada de pensamento”, uma interação
Por vezes, há acontecimentos imprevistos um projeto pode partir da “identificação de em que educador/a e crianças se envolvem

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numa construção conjunta do pensamento, uma previsão que se vai precisando e refor- Mas um projeto pode ter também um pla-
de modo a que este se desenvolva e alargue mulando ao longo do processo. neamento mais flexível e progressivo, que vai
(Siraj, 2017). Esta forma de apoiar o pensa- Há, assim, projetos que se iniciam com emergindo do próprio desenvolvimento do
mento das crianças, que não estará apenas uma “chuva de ideias” em que crianças e processo, através de uma negociação perma-
presente no desenvolvimento de projetos, educador/a participam e que dará lugar a nente entre as ideias e iniciativas das crianças
tem nestes um papel essencial, não apenas uma representação em teia ou rede, em e as propostas do/a educador/a, baseadas
no momento de problematização do inte- que a questão de partida figura no cen- numa reflexão sobre o que observa e regista
resse e curiosidade, mas também na cons- tro, em torno da qual se situam os vários (Oliveira-Formosinho & Costa, 2011).
trução do pensamento que acompanha aspetos a aprofundar. Nas obras citadas Num projeto planeado com as crianças, o
todo o processo. (Katz e Chard, 1997 e Vasconcelos et al. papel de apoio do/a educador/a implica si-
2012) podem encontrar-se exemplos desta multaneamente um planeamento rigoroso e
Como planear um projeto? representação e da sua evolução, dado que flexível, em que este/a explicita as suas in-
Sendo o projeto um processo globalizante essa teia fica em aberto e pode ser modifi- tenções pedagógicas e prevê diferentes pos-
e complexo, o seu planeamento não pode cada e acrescentada ao longo do processo, sibilidades, que serão, ou não, concretizadas
ser feito de uma forma linear, mas antes de a partir das propostas das crianças e do/a de acordo com as propostas e iniciativas das
forma a prever várias possibilidades de de- educador/a ou dos contributos de outros crianças. Uma forma aberta de planear que se
senvolvimento e os modos de os articular, adultos que venham a ser envolvidos. distingue de um planeamento “fechado” em

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que são definidos objetivos de aprendizagem previstos com alguma antecedência, como projeto, por iniciativa da(s) criança(s) ou
precisos e em que o processo é orientado e por exemplo, a presença de um adulto ex- do/a educador/a, surja a proposta de con-
controlado pelo/a educador/a que, como, vi- terior à sala e que vem trabalhar com as sultar alguém que saiba mais sobre o assun-
mos, corresponde ao desenvolvimento de um crianças, ou uma saída do jardim de infân- to, pais ou familiares das crianças, docentes
tema e não de um projeto. cia para recolher informação necessária ao de outros níveis de ensino, investigadores,
projeto (observações, visitas, etc.). Uma etc. A previsão da sua presença e as per-
Quanto tempo dura um projeto? previsão que será também combinada com guntas a colocar a estes “especialistas” se-
Considerando que a resposta ao problema as crianças. rão também combinadas com as crianças.
ou aspiração que deu origem ao projeto De facto, as experiências de aprendizagem
tem alguma complexidade e não pode ser Quem participa no projeto? proporcionadas por um projeto são enri-
respondida imediatamente, o projeto impli- Pensa-se, por vezes, que o desenvolvimen- quecidas pela diversidade de interações
ca o desenvolvimento de um processo que to de um projeto tem de envolver todo o que pode proporcionar, não só dentro do
terá um tempo de duração mais ou menos grupo e que, partindo do interesse de uma grupo, mas também com outros grupos de
longo, mas que não é previsível à partida. criança ou de um pequeno grupo, para ini- crianças e com outros adultos. De entre es-
Esta flexibilidade de duração é consequên- ciar um projeto é necessário haver a ade- tes, importa não esquecer os/as auxiliares,
cia do planeamento aberto que caracteriza são de todo o grupo. Este projeto comum cuja contribuição pode ser muito relevante
o projeto, em que o tempo a dedicar-lhe na poderá dar lugar a um planeamento acor- para o projeto, sendo que a participação
rotina pedagógica terá de ser combinado dado com o grupo, em que se constituem dos pais e familiares em geral que, mesmo
com as crianças, sendo que o seu tempo pequenos grupos encarregados de tarefas não sendo “especialistas”, podem apoiar o
global de duração terá de se adequar ao diferentes, mas que contribuem para o pro- desenvolvimento do projeto.
grupo de crianças e à continuidade do seu jeto global. Evoca-se frequentemente como vantagem
interesse. A escuta atenta das crianças per- Sendo esta uma forma possível de orga- da metodologia de projeto que o interesse
mite ao/à educador/a perceber se conti- nização, nada impede que um pequeno das crianças “contagia” os pais, incentivan-
nuam envolvidas, ou se a sua curiosidade se grupo, ou mesmo só uma criança, esteja do a sua participação. Mas a participação
esgotou, se vale a pena continuar ou não. interessado e possa ser apoiado pelo/a dos pais/famílias não pode só estar depen-
Mas o tempo de duração de um projeto educador/a para desenvolver o seu projeto dente das crianças, o/a educador/a tem
está também relacionado com as oportu- e que haja, por conseguinte, projetos dife- também um papel nessa participação na
nidades anteriormente proporcionadas às rentes a desenvolver-se simultaneamente vida do jardim de infância e nos projetos
crianças e ao grupo de participar realmen- numa sala de jardim de infância. que se vão desenvolvendo, mantendo-os,
te em processos de planeamento, ação e A possibilidade de atender aos interesses neste caso, informados desde o início, pro-
avaliação. Sem esta participação na vida do e curiosidades próprias de uma criança ou curando saber as suas opiniões e sugestões
jardim de infância e na construção da sua de um pequeno grupo exige, no entanto, para, durante o processo, ir “encontrando
aprendizagem, as crianças terão dificulda- que o/a educador/a encontre não só mo- formas de obter o seu contributo para o
de de envolver-se em projetos mais longos, dos de gestão do grupo que lhe permitam que se está a realizar, garantindo que todas
que encadeiam uma variedade de formas ir dando apoio aos vários projetos, como as crianças vejam representados os contri-
e meios de desenvolvimento, ficando de- também que as crianças tenham autono- butos dos seus pais/famílias” (p. 28). Faz
pendentes da orientação do/a educador/a. mia suficiente para realizarem algumas das ainda parte desta participação, devolver aos
É porque a participação das crianças em atividades relacionadas com o projeto sem pais/famílias e a outros participantes exte-
projetos mais longos e complexos depende precisarem da presença do/a educador/a. riores ao grupo o que as crianças fizeram a
das experiências de participação que vão Seja qual for a organização do grupo, im- partir dos seus contributos.
tendo no dia a dia do grupo, que as OCE- porta que as aprendizagens que vão sendo
PE se referem a “projetos de aprendizagem realizadas sejam partilhadas com o grupo, O que é que as crianças aprendem num
progressivamente mais complexos”. o pode eventualmente levar a que outras projeto?
Importa, no entanto, salientar, que neste crianças que de início não estavam interes- Face à possibilidade de os projetos se cons-
tempo flexível pode, de acordo com o pla- sadas decidam também participar. truírem em torno de questões tão diversas,
neado, haver momentos que têm de ser Pode ainda acontecer que, no decurso do será que as oportunidades de aprendiza-

39 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

gem serão diferentes de um projeto para Ao participarem na construção da sua nessa avaliação de processo fazer quando
outro? Se a possibilidade de saber mais so- aprendizagem e ao partilharem-na com ou- necessário “pontos de situação” que per-
bre um assunto que lhes interessa é impor- tras crianças e adultos, as crianças tomam mitem relançá-lo e/ou reformulá-lo. No fi-
tante para as crianças independentemente consciência do que vão aprendendo e de nal do processo, isto é, quando o projeto
da questão aprofundada, todos os projetos como aprendem, o que o contribui para termina, haverá lugar a uma avaliação glo-
envolvem aprendizagens comuns. Por isso o desenvolvimento da metacognição, isto bal e final, realizada pelas crianças e pelo/a
se acentua na literatura sobre projeto que o é de pensar sobre o pensamento, o que, educador/a.
processo é tão ou mais importante do que além de contribuir para o conhecimento de Estes diferentes momentos de avaliação
o produto. si como aprendentes, favorece a utilização baseiam-se na documentação que vai sen-
Todo o projeto constitui um processo de das aprendizagens realizadas noutras si- do recolhida, compreendendo-se também a
pesquisa em que as crianças, com o apoio tuações e contextos. partir do que foi dito que o projeto é ge-
do/a educador/a, desenvolvem a curiosida- Mas, porque o projeto é planeado e ava- rador de inúmeros documentos (registos do
de e o desejo de aprender, ao explicitarem o liado em conjunto e este planeamento e que as crianças disseram, planos construídos
que sabem e o que querem saber, o que vão avaliação se realizam num processo que em comum e a sua reformulação, represen-
fazer e como. Sendo que para isso precisam engloba ciclos sucessivos de planeamento, tações que as crianças realizaram) e ainda
de recolher informação, observar, experi- ação e avaliação (o que se vai fazer, o que os registos de observação do/a educador/a,
mentar, debater e sistematizar o que vão já foi feito e já se aprendeu para decidir o as suas reflexões e interpretações, que dão
aprendendo, tendo ainda a possibilidade de que se vai fazer a seguir), o projeto possi- sentido à sua participação no processo e
comunicar essas aprendizagens a outros. bilita ainda que as crianças se apropriem aos desafios que coloca às crianças.
Neste processo participativo e interativo, melhor desse ciclo, essencial para serem A avaliação não é, assim, uma atividade ex-
envolvendo diversos participantes, as crian- capazes de autorregular a sua aprendiza- terior ou paralela ao projeto, mas faz parte
ças têm também oportunidade de tomar gem (Piscalho & Veiga Simão, 2014). integrante dele, importando, no entanto,
decisões individuais e coletivas, tornando- Em resumo, ao partir dos interesses e que o/a educador/a reflita previamente
-se mais autónomas, numa dinâmica em curiosidades das crianças e ao estimular sobre o que documentar e como organizar
que têm ocasião de apresentar e funda- a sua participação em todo o desenvol- essa documentação, até porque a partilha
mentar os seus pontos de vista, de escutar vimento do processo, os projetos contri- da documentação com as crianças e com
e compreender o ponto de vista dos outros, buem para a criação de atitudes favoráveis outros intervenientes facilita a sua partici-
de cooperar na realização de uma finalidade à aprendizagem (disposição para apren- pação.
comum, de aprender umas com as outras, der), para o desenvolvimento da metacog- Um registo importante, que surge frequen-
sendo que a cooperação entre crianças de nição e da autorregulação da aprendiza- temente nos relatos de projetos, incide nas
diferentes idades e capacidades amplia essa gem, condições essenciais para que cada opiniões das crianças sobre o que já sabem
aprendizagem entre pares e proporciona criança aprenda a aprender e competência ou como interpretam a questão a aprofun-
uma maior inclusão de todas as crianças no fundamental na aprendizagem ao longo da dar, com a identificação do que cada criança
grupo. vida. disse, por vezes acompanhada duma repre-
A realização deste processo exige inevita- sentação visual das suas ideias. Este registo
velmente que as crianças recorram a dife- Como avaliar um projeto? de avaliação inicial é devolvido e debatido
rentes formas de expressão e representa- Como se infere do que tem vindo a ser com as crianças para apoiar as decisões so-
ção do seu pensamento, em que utilizam dito, todo o desenvolvimento do projeto bre o plano, podendo ainda ser retomado no
múltiplas linguagens, desde a linguagem é acompanhado de uma avaliação, que final do projeto para que as crianças tomem
oral e escrita à representação matemática, começa por uma avaliação inicial do que consciência do que aprenderam.
passando por diversas linguagens artísticas. as crianças já sabem, que permite proble- Os diversos planos que se foram realizando
As formas de representação que o projeto matizar o ponto de partida e formular um são também documentos que necessitam
proporciona tornam-se um meio privilegia- primeiro plano, cuja realização é apoiada de ser partilhados, pois constituem um ins-
do de desenvolvimento e aprendizagem, por avaliação do processo, que regula a trumento coletivo de orientação da ação e
em que a construção de novos saberes tem evolução do projeto, fundamentando as uma referência da avaliação do processo.
sentido para as crianças. decisões que vão sendo tomadas. Cabe Pode, assim, ser útil ter um espaço da sala –

40 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


uma área – dedicada ao projeto ou projetos do projeto a outros é importante para a com as crianças é também útil para que ou-
que se estão a realizar, de modo a que todos aprendizagem das crianças, o relato de pro- tros profissionais e outros adultos, menos
tenham acesso ao percurso já feito e possam jetos feito pelos/as educadores/as, como se familiarizados com as práticas do jardim de
tomar decisões sobre a sua evolução. pode perceber ao ler os exemplos citados, é infância, se apercebam do que as crianças
O final do projeto dará lugar a uma avaliação uma inspiração para os/as colegas, não para são capazes de fazer e de aprender quando
global em que as crianças, com o apoio do/a os transpor exatamente nas suas práticas, são agentes da sua aprendizagem, o que os
educador/a, sistematizam e organizam o que pois os projetos dependem do contexto e levará a compreender e valorizar o trabalho
aprenderam, o que, se assim for entendido situação em que surgiram e se realizaram, que se realiza na educação pré-escolar.
pelo grupo, servirá para elaborar a comuni- mas como uma referência enriquecedora
cação dessas aprendizagens a partilhar com para desenvolverem as suas próprias prá- Considerações finais
outros grupos de crianças, pais, comunidade. ticas, de modo a explorar melhor todas as Ao longo do texto e sobretudo nas ques-
A análise de toda esta documentação permiti- potencialidades das aprendizagens propor- tões sobre a prática, procurei mostrar que
rá também ao/à educador/a situar os progres- cionadas por um projeto, em que não são só há diversas possibilidades de desenvolver
sos das crianças em diferentes áreas e domí- as crianças que aprendem, mas também o/a projetos de aprendizagem em que as crian-
nios de aprendizagem, incluindo os acima educador/a. ças participam ativamente em todo o pro-
enunciados como comuns a todos os projetos O relato oral ou escrito do/a educador/a so- cesso, com o apoio do/a educador/a.
Se a comunicação do processo e resultados bre projetos de aprendizagem que realizou A realização de projetos participados fun-

41 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

damenta-se, como também foi dito, numa Esta visão global da prática, quer o/a No 3: 3-11 https://southernearlychildhood.org/upload/
pdf/Dimensions_Vol40_3_Martalock.pd
imagem da criança como sujeito e agente educador/a tenha adotado um determina- Niza, S. (1996). O modelo curricular de educação pré-es-
do seu desenvolvimento e aprendizagem. do modelo, quer seja influenciado/a por colar do Movimento da Escola Moderna. In J. Oliveira-
Mas dentro desta imagem global podem vários, constitui a base em que assenta o -Formosinho (org.) Modelos Curriculares para a Educa-
ção de Infância. Porto. Porto Editora: 137-156.
caber imagens mais específicas. Assim, seu projeto curricular de grupo e o modo Oliveira-Formosinho, J., Costa, H. (2011). Porque é que a
por exemplo, considerar as crianças como como, em cada ano, o adequa ao grupo de Lua é redonda e bicuda? In J. Oliveira-Formosinho & R.
curiosas e capazes de pesquisar de forma crianças com que trabalha. A elaboração Gamboa (org.) O trabalho de projeto na pedagogia-em-
-participação. Porto. Porto Editora: 83-124
a apropriarem-se de conhecimentos exis- desse projeto e a autoavaliação da ação Piscalho, I., Veiga Simão, M. (2014). Promoção da autor-
tentes na nossa cultura, ou como capazes do/a educador/a no seu desenvolvimento regulação da aprendizagem das crianças: proposta de
de pensar e refletir em conjunto, a fim de são ocasiões particularmente propícias para instrumento de apoio à prática pedagógica. Nuances vol.
25, nº 3 pp.171-190 http://revista.fct.unesp.br/index.php/
construirem novos conhecimentos parti- fazer uma reflexão mais profunda sobre a Nuances/article/view/3163
lhados, não é exatamente o mesmo e dá sua imagem de criança e se esta se traduz Santos, M.L; Gaspar, M.F. & Santos, S. (2014). A Ciên-
origem a práticas que não são idênticas efetivamente nas práticas que desenvolve, cia na Educação Pré-Escolar. Lisboa. Fundação Fran-
cisco Manuel dos Santos/APEI. https://www.ffms.pt/
(Martalock, 2012). Aliás, como acrescenta a incluindo projetos de aprendizagem com as upload/docs/a-ciencia-na-educacao-preescolar_FwO-
autora, cada um de nós tem, provavelmen- crianças. 9Dz0X50qyerOZavgaHA.pdf
te, a sua imagem de criança. Siraj, I. (1997). Os profissionais de educação de infância
utilizam a escala SSTEW para melhorar a qualidade da
Será, por conseguinte, essencial que cada educação pré-escolar. Cadernos de Educação de Infân-
educador/a reflita e clarifique qual é a sua cia, nº 111: 3- 7
imagem de criança e como esta se traduz na REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Vasconcelos, M.T. (1998). Das perplexidades em torno
de um hamster ao processo de pesquisa: pedagogia do
sua prática profissional. E, porque há sem- Abreu Lima, I, Pinto, A. I., Grande, C., Cádima, J., Mata, projeto em educação pré-escolar em Portugal. In Qua-
pre alguma distância entre o que pensamos L., Pimentel, J., & Marinho, S. (2014). Caracterização dos lidade e projeto na educação pré-escolar. Lisboa: ME/
Contextos de Educação Pré-Escolar. Inquérito Extensivo. DEB/NEP: 127-158.
e o que fazemos, esta reflexão envolve um Relatório Final: UP/ ISPA/DGE http://www.dge.mec.pt/ Vasconcelos, T., Rocha, C., Loureiro, C., Castro, J., Menau,
questionamento permanente sobre a coe- estudo-de-avaliacao-das-orientacoes-curriculares-e-da- J. Sousa, O. & Alves, S. (2012) Trabalhar por projetos na
rência entre essa imagem de criança e a -qualidade-na-educacao-pre-escolar educação de infância: mapear aprendizagens, integrar
Cardona, M. J., Nogueira, C., Vieira, C., Uva, M. & Tavares, metodologias. Lisboa: Ministério da Educação, Direção
prática. T. (2010). Guião de Educação. Género e Cidadania. Pré- Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular. http.//
Neste sentido, e retomando a questão co- -Escolar Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade dge.mec.pt/sites/default/files/EInfancia/documentos/
locada na introdução, pode dizer-se que a de Género/ CIG, Presidência do Conselho de Ministros.
trabalho_por_projeto_r.pdf
Acessível em https://www.cig.gov.pt/wp-content/
adoção de um modelo pode facilitar que uploads/2015/10/398_15_Guiao_Pre_escolar.pdf
o/a educador/a situe a “sua” imagem de Evans, E. (1982). Curriculum models and early childhood
criança e a desenvolva numa prática coe- education. B. Spodeck (org.) Handbook of research in
early childhood education. New York: The Free Press:
rente e consistente, enquadrada pela es- 107-134.
trutura do modelo, uma prática em que o Helm, J. H., Katz, L. (2011). Young investigators: The Pro-
desenvolvimento de projetos se integra na ject Approach in the early years (2nd ed.). NY: Teachers
College Press. (O cap. 1 deste livro pode ser acedido em
visão global de prática que esse modelo re- ttps://www.naeyc.org/files/naeyc/file/Publications/
presenta. Young Investigators chapter 1.pd
No caso mais frequente, como é revelado Katz, L., Chard. S. (1997). A abordagem de projeto na
educação de infância. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
pela análise das respostas ao questionário benkian
inicialmente referido, de o/a educador/a se Lopes da Silva (1998). Projetos em educação pré-escolar e
inspirar em vários modelos, essa reflexão projeto educativo de estabelecimento. In Qualidade e pro-
jeto na educação pré-escolar. Lisboa: ME/DEB/NEP: 91-122
sobre a imagem de criança torna-se ainda Lopes da Silva, I, Marques, L., Mata, L., Rosa, M. (2016).
mais necessária para que essas diferentes Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar.
influências se possam integrar num todo Lisboa: Ministério da Educação/Direção Geral de Educa-
ção. http://www.dge.mec.pt/ocepe/
coerente, ou seja, num modelo que é cons- Malavasi, L., Zoccatelli, B. (2013). Documentar os proje-
truído pelo/a educador/a e dá sentido a tos nos serviços educativos. Lisboa: APEI
toda a sua prática e não apenas o desen- Martalock, P. (2012). What is a wheel? The image of the
child, traditional, project approach and Reggio Emilia
volvimento de projetos. perspectives. In Dimensions of Early Childhood Vol. 40,

42 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Formar para a excelência profissional –
pressupostos e roturas nos níveis iniciais da docência1
Maria do Céu Roldão. CEDH – Centro de Estudos para o Desenvolvimento Humano, Faculdade de Educação e Psicologia,
Universidade Católica Portuguesa

O assunto que me proponho abordar neste


texto – a excelência profissional e a forma-
ção para a qualidade nos níveis iniciais de
docência – constituiu para mim, na fase fi-
nal do meu percurso profissional, que iniciei
como professora de História, que fui durante
18 anos, uma ocasião de reconhecimento de
uma matriz de análise que é profundamen-
te “histórica” e profundamente virada para
o incorporar constante da experiência que
vou tendo num olhar retrospectivo. O olhar
em perspectiva evolutiva marcará assim em
parte esta reflexão. É minha convicção que
essa forma de olhar pode produzir acrésci-
mos de compreensão e de aprofundamento
que não são só próprios de quem está no fim
da carreira, porque a temporalidade constitui
a substância da nossa vida, e é face a esse
tempo que nós nos posicionamos sempre,
mais jovens, no meio da carreira, no fim da
carreira, do início ao fim da vida.
Começo então por me situar no que me leva
a ter escolhido este tema.
Na minha perspectiva, a qualidade tem a ver,
por um lado, com uma preocupação atual de Contribui grandemente para a análise que é popular esta afirmação, mas é essa consta-
melhoria dos desempenhos profissionais e, aqui trago o facto de ter estado durante tação e a reflexão que venho fazendo sobre
por outro lado, com a constatação de que muitos anos ligada de uma maneira muito ela que me desencadeou todo o processo
esta qualidade, esta excelência dos profissio- específica à formação de professores de 1º analítico que vou tentar sistematizar.
nais do ensino, qualquer que seja o nível ou ciclo da minha instituição e imersa realmen- Organizei então esta minha reflexão sobre
domínio da sua ação, é hoje uma temática te numa tentativa institucional de melhorar, esta questão: o paradoxo da qualidade real
central no discurso público, mas pode ser reforçar esta reclamada qualidade da for- que identificamos em pessoas, em atuações,
lida de maneiras muito diversas. O ponto de mação para alcançar uma outra qualidade: em determinados recantos, nichos, nas esco-
que parto é a assunção da necessidade de a do desempenho profissional. É assim um las com que trabalhamos, contraposto a uma
um reforço da qualidade e da excelência no misto do meu olhar histórico sobre as coi- também real falta de qualidade naquilo que
que se refere aos professores dos níveis ini- sas, reflexivo, passadista, permanentemente globalmente se faz neste nível do sistema.
ciais de docência. regressando ao presente, e de uma tentativa Irei organizar este texto em quatro blocos
de incorporar a minha experiência formativa que procurarei articular:
1. O presente texto retoma, com adaptações e devida- e os desafios e as questões que me suscita 1. O primeiro refere-se ao enquadramen-
mente autorizado pela Universidade de Aveiro, o tex- constantemente e das quais elegi como cen- to histórico da questão. Esta primeira
to que resultou de conferência proferida pela autora
naquela universidade e publicado inicialmente com a
tral a questão da qualidade. reflexão diz respeito à ambiguidade que
seguinte referência: Roldão, M. C.(2003), Formar para Preocupa-me verificar, com base em expe- marca a história do professor primá-
a excelência profissional - pressupostos e rupturas riência e investigação, que há nas escolas de rio, tal como a do educador de infân-
nos níveis iniciais da docência. In Isabel P., Martins e
Gabriela Portugal (org.) (2003). 1.º Simpósio Nacional
1º ciclo muitas pessoas de muita qualidade, cia. Parte da compreensão da situação
de Educação Básica (Pré-Escolar e 1º Ciclo) – Formação muito trabalho de muita qualidade, mas não atual tem de socorrer-se da percepção
de professores do 1.º Ciclo e Educadores de Infância. há, na minha perspetiva, uma qualidade de desse passado.
Questões do Presente e Perspectivas Futuras, Univer-
sidade de Aveiro. ISBN 972 789 097 0.
desempenho profissional satisfatória. E não 2. Num segundo momento, encaminharia

43 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

a minha reflexão para as relações entre te a estes profissionais com a própria ros níveis básicos, porque verdadeiras
os conceitos de qualidade e de excelên- noção de profissionalidade, outra das bases de toda a escolaridade.
cia na profissão docente, partindo das linhas com que me tenho preocupa-
leituras que sobre eles são mais corren- do no meu trabalho dos últimos anos. A qualidade do professor de 1º ciclo –
tes, nomeadamente no que diz respeito Qualidade de quê? Quem são estes pro- breve perspectiva histórica
ao 1º ciclo. Tentarei estabelecer algum fissionais? O que é que lhes é pedido O primeiro enquadramento que gostaria de
paralelo entre o 1º ciclo e os outros ci- para podermos ter uma noção clara das situar não diz respeito a algumas questões
clos, os níveis iniciais e os níveis subse- áreas de intervenção em que preten- quantitativas nem estatísticas – embora re-
quentes, na medida em que me pare- demos o alegado reforço da qualidade, levantes – nem aos aspectos mais conheci-
ce que a qualidade e a excelência são enquanto formadores destes profissio- dos da evolução da história do professor pri-
olhadas de maneiras muito diferentes nais e sendo também nós, os formado- mário e da sua evolução no sistema, campos
quando se fala de um professor do 1º res, profissionais deste ofício? de conhecimento que autores como António
ciclo ou de um educador de infância, ou 4. E terminaria com uma reflexão sobre Nóvoa trabalharam em grande profundida-
quando se fala de professores de níveis algumas implicações que julgo poderem de. Pretendo, sim, destacar que a evolução
mais avançados, posição que terei oca- inferir-se para as instituições de for- do professor de ensino primário e do edu-
sião de discutir e contestar. mação e para as práticas de formação cador de infância no sistema português, se
3. Um terceiro bloco diz respeito à relação de professores e educadores, para os a pensarmos desde o princípio do século XX
do conceito de qualidade relativamen- responsáveis de formação dos primei- até ao presente, se caracteriza por enormes

44 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


ambiguidades e por alguns paradoxos. Por que a centralidade do professor de 1º ciclo também como lugares de dominação política
um lado, temos que relacionar essa evolução assume alguma relevância por razões histó- ou de veiculação política, mesmo se contra
com a “sub-evolução”, para não dizer subde- ricas. a vontade de muitos. Penso que estes dois
senvolvimento, do sistema educativo portu- Arrastamos connosco, na história dos últi- factores, em articulação, tendem a persistir
guês no seu todo. Nós fomos, como sistema, mos dois séculos, uma cultura provinciana na nossa representação atual, no nosso in-
desde o final do século XIX, apesar do surto caracterizadora da história do País, e par- consciente, no imaginário social em que tam-
progressista da I República e atravessando a ticularmente nítida no que diz respeito à bém nos definimos, no modo como olhamos
grande imobilização nos quarenta anos do educação, que o nosso Eça de Queirós ca- o ensino primário e a sua qualidade. Para a
Estado Novo, um país que se atrasou e se racterizava bem quando falava de Portugal educação de infância, outros preconceitos
manteve atrasado em várias áreas do de- como um país de bacharéis, que subsiste na se somaram a esta representação, nomeada-
senvolvimento social e económico, face aos representação social do “doutor” como al- mente a longa assimilação dos educadores
movimentos europeus homólogos, aspeto guém que pode sobressair num país que é de infância a funções cuidadoras e/ou as-
muitíssimo evidente no campo da educação. genericamente muito pobre no âmbito cul- sistenciais, em detrimento da sua afirmação
É curioso assinalar que os nossos níveis de tural ou educativo. como agentes essenciais na dimensão edu-
cobertura de escolaridade dos primeiros ní- Esta imagem, que obviamente hoje não faz cativo-pedagógica dos mais jovens.
veis, o que hoje diríamos 1º ciclo, em finais muito sentido, subsiste nas nossas repre- Mas por outro lado, há, ou houve, no pla-
do século XIX, eram idênticos aos de outros sentações ainda com muita força. E tem a no histórico e social, uma sobrevalorização
países da Europa, como a Suécia, por exem- ver com a questão do professor primário na deste mesmo professor primário, justamente
plo, e no início do século XX, cerca de 20 medida em que o ensino de 1º ciclo sofre porque ele representava, nessa sociedade
anos depois, já estávamos a uma distância desde o início, na representação social, de analfabeta, a única fonte de saber, sobretu-
enorme desses mesmos países. Portanto, os um paradoxo que lhe dificulta a autonomia e do nas comunidades rurais, nas aldeias, na
outros sistemas, e as sociedades respectivas, o desenvolvimento: por um lado uma subva- sociedade ruralizada que era, na sua maioria,
tinham feito um processo de desenvolvimen- lorização e por outro uma sobrevalorização. a sociedade portuguesa na primeira metade
to que nós não acompanhámos. Este pro- A subvalorização da instrução primária na re- do século XX. E que, consequentemente, ti-
cesso é depois agravado com a paragem que presentação social tem a ver com o facto de nha algum poder e prestígio. O professor e
foi introduzida na evolução do sistema pelo ter sido introduzida por uma prática coerciva o pároco eram, nas pequenas comunidades,
Estado Novo. Penso que tem que se rela- do Estado, pela imposição da obrigatorieda- os símbolos do saber e do poder e, portanto,
cionar a história do professor primário, bem de num país que não se revia na educação tinham um ascendente que vinha disso.
como a do educador de infância, com esta como uma necessidade, precisamente pelo Criou-se assim uma situação algo paradoxal:
história do sistema português, que só volta seu atraso, pela sua ruralidade herdada de a sobrevalorização associada a uma sub-
a ter um impulso significativo de desenvol- uma história longa, pouco iluminada pela valorização relativamente à representação
vimento depois dos anos 60 do século XX. educação, uma história com variadíssimos social do professor primário. É óbvio que a
Esquecemo-nos, por vezes, em algumas aná- problemas que todos conhecemos. Por ou- alteração destas circunstâncias conjunturais,
lise comparativas precipitadas, que trans- tro lado, há outro momento histórico que se felizmente todas elas já do passado, condu-
portamos connosco este passado. Os pro- associa ao ensino primário para o subvalori- ziu a rupturas no processo de construção
blemas que temos hoje no campo educativo zar que é o facto de que as escolas do 1º ci- da identidade do professor. Disso nos dão
têm de ser relativizados em função desta clo funcionaram durante décadas – o Estado conta os alunos que muitas vezes se lamen-
história que nos atravessa como socieda- Novo – com um grande peso de doutrina- tam, ao discutir questões da profissão, de
de, nomeadamente em relação ao professor ção política forçosa, de que os professores que “o professor primeiro dantes era tão va-
primário – designação historicamente defi- não eram obviamente responsáveis, mas de lorizado, tão respeitado, e agora não temos
nidora do profissional de que aqui falamos. que eram involuntariamente um dos rostos. qualquer reconhecimento”. Esta percepção
A evolução da educação de infância e dos Num país de burocracia centralista, em que de como estas “desvalorizações” se passam
seus profissionais acompanha este processo as escolas dependem do Estado e o Estado e de onde vinham as supostas “valorizações”
em formatos idênticos, mas apresentando foi manipulador, autoritário e doutrinador é, do ponto de vista da formação, um dos
outras especificidades. Neste texto o foco é durante muito tempo, estes lugares de edu- pontos a desconstruir, ajudando os futuros
a génese das fases iniciais do sistema, pelo cação funcionaram, na representação social, profissionais a compreender porque é que

45 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

certos processos decorreram e evoluíram de


certa forma.
Uma outra linha dentro deste primeiro bloco
que designo de “histórico” é a questão do
alheamento entre a sociedade e a sua escola,
alheamento que caracteriza Portugal ou, dito
de outra forma, as consequências de uma
escola que a sociedade não considera sua.
Ou seja, justamente porque entre nós, histo-
ricamente, a escolarização foi produzida de
cima para baixo, tal como em França ou em
Espanha, países de administração de matriz
napoleónica, e isto também por razões his-
tóricas, ela apareceu às populações maiori-
tariamente iletradas como alguma coisa que
foi imposta e de que elas não sentiam ne-
cessidade, nem lhe viam utilidade nesse tem-
po. A escola surgiu assim, nestes contextos,
como alguma coisa que não é exatamente
pertença das sociedades, como uma coisa
que lhes é um pouco alheia ou exterior.
Esta é uma situação completamente diferen-
te da de outros países e sociedades, como rida, estimada, valorizada, na representação tudo com dois aspectos. Um deles, de que
os países nórdicos, a Inglaterra, os Estados social dominante. Corresponde a alguma coi- sabemos muito pouco, é a própria base neu-
Unidos, que na sua construção do processo sa obrigatória que tem de se fazer no plano rológica da aprendizagem. Alexandre Castro
de autonomia e independência tiveram pro- social, cuja necessidade se reconhece, mas Caldas, investigador prestigiado, com estu-
cessos de desenvolvimento em que a escola que é vista com uma grande ambiguidade de dos nas áreas ligadas às implicações neuro-
cresceu com a comunidade e como parte in- sentimentos. lógicas da literacia e do seu desenvolvimen-
tegrante dela, instituindo-se como um dos Por fim, ainda tentando situar historicamen- to, e da prática da iniciação à escrita, numa
fatores centrais da identidade nacional, e um te este profissional que nós formamos e que entrevista de há alguns anos sobre esses
fator amado, pertença da própria sociedade nós somos, gostaria de sublinhar o lugar es- estudos, afirmava que é politicamente um
que vê nela um dos seus motores de desen- sencial, apesar de todos estes paradoxos (e erro estratégico total, particularmente num
volvimento. também isto não é reconhecido socialmente sistema como o nosso, descurar as apren-
Obviamente, estamos perante histórias dife- e cabe às instituições de formação trabalhar dizagens iniciais, nos níveis da educação de
rentes que conduzem a processos diferen- nesse sentido), dos níveis básicos de esco- infância e do 1º ciclo. Essas aprendizagens
tes. Mas nós não podemos esquecer-nos laridade na educação dos cidadãos e no de- têm implicações fundamentais, segundo
disso. Entre nós há uma relação sociedade- senvolvimento da sociedade. Este parece o este investigador, do ponto de vista neu-
-escola que é de amor/ódio, com tendência mais comum dos lugares-comuns, mas julgo rológico, na construção do mapa neural de
a predominar o ódio, se olharmos, por exem- que não é tanto assim. É de facto essencial, cada indivíduo, porque se organizam e estru-
plo, para a pouca atenção que se dá à escola, básico, o lugar dos níveis iniciais na formação turam nessa fase mecanismos que ficam em
exceto quando é para se anunciar que foram do cidadão, hoje que precisamos que todos registos para sempre ou não ficam. Afirmava
fechadas a cadeado ou que alguma coisa os cidadãos sejam bem educados e bem for- também expressamente que a inconsciência
merece as queixas sociais contra ela. Não se mados, e quando sabemos que iremos pre- desse processo inicial de estruturação neu-
olha com apreço para o que lá se faz, tende cisar cada vez mais na sociedade do futuro. ral, que alegremente vamos carregando no
a predominar a desconfiança e a postura de- Tal reconhecimento da centralidade dos ní- sistema português, tem custos gravíssimos.
fensiva. A escola é respeitada mas não que- veis iniciais de educação prende-se sobre- Este é o olhar do lado científico.

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Do ponto de vista político, já numerosos O conceito de “básico” em educação tem muito mais do que isso?
governantes e responsáveis têm salientado também outras leituras na história das Do meu ponto de vista, os “básicos” que
o quanto toda a qualidade do sistema de- tendências curriculares. Recorde-se o mo- gostaria de ver instituídos, aqueles elemen-
pende do reforço da qualidade nestes níveis vimento back to basics, na década de 80, tos que o sistema inicial de educação tem de
iniciais. E contudo a nossa representação, designação popularizada com a sigla três “r”, desenvolver nos primeiros anos, através do
um pouco queirosiana, do “país dos dou- significando em língua inglesa reading, wri- ler, escrever e contar – não sem eles, nem
tores” ainda nos leva a pensar, em termos ting and arithmetics – ler, escrever e contar ao lado deles, mas através deles – são três
de senso comum, que é mais importante ter –, que correspondeu a um movimento de outras linhas básicas de aquisição curricular,
um bom ensino superior (que também o é, reforço da função instrutiva da escola ape- que tentei designar por uma sigla também,
sem dúvida) e que os professores de 1º ciclo nas nestas dimensões ditas básicas. Foi esse mas não encontrei três iniciais idênticas. A
e os educadores de infância são responsá- movimento conotado com linhas extrema- minha sigla seria antes os PPI.
veis por atividades “menores”, que se fazem mente conservadoras e com olhares muito O primeiro P destes “básicos” que compe-
com mais ou menos facilidade, que qualquer limitativos relativamente à função da escola, tem à escola de 1º ciclo refere-se ao prazer,
pessoa pode fazer, com um pouco de cultura alvos de crítica severa em outros sectores o gosto de conhecer, aquilo que Teresa Vas-
e bom senso… Assim se argumentava aliás de opinião. Subscrevo essa linha crítica re- concelos chamava, noutra ocasião, a “paixão
no tempo do ministro Carneiro Pacheco, na lativa a tal movimento, não porque não me do conhecimento”. Também julgo que cer-
década de 40 do século XX, quando se redu- pareça importante ensinar e aprender a ler, tamente este prazer de conhecer, quando
ziu a escolaridade obrigatória para três anos escrever e contar, mas porque me parece se interioriza, fica neurologicamente organi-
e se desvalorizou drasticamente a formação muito importante considerar o que é que, no zado e em condições de se desenvolver ao
de professores. Trata-se de erros históricos aprender a ler, escrever e contar que à esco- longo de toda a vida. O prazer não significa o
e atrasos de conhecimento graves, que pen- la compete, se considera realmente básico. aspecto lúdico, nem a exterioridade atraente
so ser importante ter em conta quando se Ou “essencial”, se usarmos uma terminolo- (erradamente dita “motivadora” na lingua-
pretende desenvolver uma discussão sobre gia mais atual. Será apenas a funcionalidade gem corrente das escolas e professores);
a qualidade. técnica e mecanizada dessas operações ou significa, sim, o gosto genuíno que resulta

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do ato de conhecer, que se aprende com es- mos muitas vezes matar o gosto de conhe- de conceitos tão complexos como a quali-
forço e exatamente por isso dá prazer. Seria cer nas salas de aula, às vezes sem prejuízo dade e a excelência, mas apenas gostaria
o primeiro P da minha sigla. da boa vontade dos professores, mas por de deixar alguns apontamentos de análise,
O outro P diz respeito ao poder de com- força das rotinas da cultura escolar que se para refletir, sobretudo quando e se quere-
preender, com que a escola tem a função substituem à verdadeira procura da cultura mos formar para as proclamadas excelência
de apetrechar todos os alunos. O poder de e do conhecimento inteligente e analítico. O e qualidade.
compreender, de entender, de abrir janelas domínio dos instrumentos para alcançar este A primeira ideia que me parece importante
para a inteligência do mundo, é a ferramen- conhecimento e este prazer tem de ser me- clarificar é que a qualidade não é sinónimo
ta-base de todos nós e de cada criança, que diado por funcionalidades técnicas que são de excelência e que estes termos se usam
lhe irá ser necessária em tudo na vida. Este os outros básicos de que falávamos antes: muitas vezes a esmo, porque se tornaram
conceito tem um pouco a ver com o em- ler, escrever e contar, não apenas olhados próximos, num jargão “politicamente corre-
powerment – conceito muito trabalhado na dessa perspectiva técnico-memorista, mas to” em certas óticas atuais, sem que haja a
linha do movimento do school improvement, olhados na perspectiva que tentei associar preocupação de os clarificar com mais rigor.
nomeadamente no Reino Unido, e concep- a estes PPI (prazer, poder e instrumentos). Eu diria que a ideia de qualidade se situa
tualizado nos trabalhos de David Hopkins, sempre no plano da correspondência a cri-
entre outros. Penso que a aquisição deste Qualidade e excelência: o que são? Como térios de bom desempenho. Existe qualida-
poder se joga nos primeiros níveis, no 1º ciclo se relacionam? de quando alguma coisa, neste caso o de-
e na educação de infância, embora não seja Passando à segunda linha de análise que sempenho de um profissional, corresponde
exclusivo desses níveis. Mas sem essa “base” diz respeito aos conceitos de qualidade e a determinados critérios definidores desse
o percurso subsequente fica comprometido. excelência na profissão docente e particular- desempenho e corresponde com um nível
E por fim, o I que se refere ao terceiro dos mente na docência do 1º ciclo, de novo aqui elevado. A qualidade pode existir em contex-
“básicos” – o domínio dos instrumentos, que encontro vários planos de ambiguidade e de tos muito diferentes e com expressões muito
permitem acionar os dois elementos anterio- paradoxo, a vários níveis. Primeiro, gostaria diversas. No fundo, traduz uma relação entre
res: o poder e o prazer de conhecer, que se de sublinhar que não tenho qualquer preten- ação e princípios, marcada por critérios.
desenvolve ali ou morre para sempre. E ve- são de num texto breve fazer a abordagem A excelência reporta-se, e julgo não estar
a ser abusiva nesta análise, a situações de
excepcionalidade dentro de um dado quadro
de qualidade. A excelência refere-se a de-
sempenhos outstanding, a alguma coisa que
excede, transcende, se destaca de um con-
texto. Dentro de um padrão de qualidade,
a excelência destaca-se de duas maneiras:
pelo nível, numa óptica quantitativa, ou seja,
quem é excelente vai um pouco mais longe
do que os outros no nível do desempenho,
e pela natureza, a qualidade ou qualidades
dessa diferença que torna alguém excelente
face a um todo particular. A excelência exige
a qualidade e estrutura-se face a um padrão
de qualidade, mas não é a mesma coisa, e
parece-me importante ter isto em mente. A
definição de excelência requer uma base de
qualidade ou induz-se o equívoco de con-
fundir excelência com qualidade, como tan-
tas vezes se observa em diversos planos do
discurso sobre educação.

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Outra linha de equívoco, no que diz respeito
à qualidade, é o conceito muito instalado,
sobretudo na educação mas não só, de que
a qualidade, de uma forma quase deter-
minista – e isto tem a ver com a confusão
com excelência, de que acima falávamos –
é impossível em situações de generalização
ou extensão de um determinado processo,
neste caso educativo e escolar. A qualidade é
vista como associada a situações de excelên-
cia, que são por definição restritas. E portan-
to, sempre que temos uma situação, como a
generalização da escolaridade básica, auto-
maticamente se considera que a qualidade é
impossível. A isto chamo eu o falso pêndulo.
E julgo que é uma ideia de senso comum que
não nos temos esforçado suficientemente
por desconstruir.
De facto, num primeiro momento, um orga-
nismo, um sistema (e aqui as ciências “duras”
podem dar-nos uma ajuda) reage defensiva-
mente a uma realidade nova por abaixamento estabelece-se sempre por referência a essa nível quando se confrontam com situações
do seu nível. Mas é só num primeiro momen- qualidade. Onde é que ligo isto com a ques- de massificação e generalização. Delors as-
to. Depois retoma, se for um organismo sau- tão histórica? Criar nichos de excelência que sinala quanto isso é natural num primeiro
dável, o nível anterior, e prossegue um pouco caminhem para a formação de elites parece- momento, mas depois não pode manter-se
mais acima. Ou então decai definitivamente. -me um objetivo plenamente legítimo, e ne- sob pena de os sistemas se degradarem.
Julgo que assenta numa falsa concepção de cessário, em qualquer sociedade. Mas requer Um outro risco, para além da degradação
qualidade esta ideia de que é impossível a que a generalidade do nível que a escola do sistema, também sublinhado por Jacques
qualidade quando se alarga a quantidade. To- oferece se caracterize por um alto padrão de Delors, e a meu ver extremamente pertinen-
davia tornou-se quase um mito inquestiona- qualidade, em que a excelência se defina por te neste debate excelência/qualidade, é o
do. Contudo, alguns factos desmentem esta referência a esse nível alto e não por referên- desperdício dos talentos. Diz Jacques Delors,
ideia generalizada: há sistemas escolares alta- cia a um nível geral que seja medíocre. E essa com muita inteligência, que é completa-
mente produtivos e com altos níveis de qua- é a nossa confusão. A excelência é de facto mente inaceitável que se não dê na escola
lidade que abrangem a generalidade de uma restrita a pequenos grupos e impossível de a oportunidade de rentabilizar os talentos,
população. O sistema finlandês é um exemplo ser atingida pela generalidade da população; de fazer que a excelência se desenvolva no
disso, em que existem taxas de escolarização mas se a confundirmos com qualidade es- seu pleno potencial, pelas pessoas em si e
até ao 12º ano na ordem dos 90% e taxas de tamos a admitir uma pseudo-excelência que pela valorização, obviamente, da sociedade
sucesso efetivo, avaliado com instrumentos tem por referência padrões de qualidade glo- em que elas se encontram. Mas esta exce-
externos aferidos, fiáveis e regulares, que se bal baixos. E por isso se legitima a crença de lência tem de ser “medida”, se a expressão
situam no mesmo nível. Portanto, não é im- que é impossível generalizar a qualidade… O é possível, em relação a um padrão de quali-
possível. Mas parece confortável considerá-lo que me parece um sofisma. dade que tem de ser globalmente elevado, e
impossível… Recordo aqui uma afirmação muito conhe- não a falsa excelência medida por confronto
A excelência, diferente da qualidade, defi- cida de Jacques Delors no sempre evocado com um padrão de baixa qualidade onde a
nida por comportar situações excepcionais relatório “A Educação, um tesouro para o excelência é apenas aparente. Ou, como diz
que sobressaem numa situação em que a século XXI”, em que se refere justamente o adágio popular, em terra de cegos quem
qualidade seja a marca do desempenho, a esta tentação de os sistemas baixarem o tem um olho é rei.

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Qualidade de desempenho de professores a análise da profissionalidade referenciada à dro da sociologia das profissões, por muitos
– que desempenho? atividade docente e ao seu estatuto atual. aspetos, dos quais destacarei dois que me
Penso então poder passar à minha terceira Será o educador/professor um verdadeiro parece que têm de ser centrais na questão
linha de análise, centrando a questão da qua- profissional ou a sua história encaminha- da qualidade: a clareza acerca da natureza da
lidade especificamente no desempenho dos -o para um estatuto ambíguo, como muitos função e a associação de um saber específico
professores e na qualidade do educador de in- autores vêm sublinhando, mais próximo do ao exercício dessa função. A função do pro-
fância e do professor de 1º ciclo e da sua for- semiprofissional, alguém que está entre o fessor, e aqui entrarei numa área muito con-
mação, relacionando a qualidade com a pro- profissional e o funcionário, por força da troversa, tem sido historicamente associada a
fissionalidade. É impossível discutir situações estrutura e da história do sistema e da pro- um conjunto de ambiguidades. Por um lado,
de qualidade profissional, de qualidade de de- fissão, mas num momento de clivagem entre essa função do professor foi historicamente
sempenho profissional e consequentemente o reforço da profissionalidade que poderá vir muito colada a um saber que se detém e que,
qualidade da formação desses profissionais, a acontecer, se houver determinadas dinâ- porque se detém, se passa. “Quem sabe ensi-
sem uma clarificação muito sustentada do micas, ou o seu esbatimento completo, que na.” Esta conceptualização, que é talvez ainda
que é, como se define, um profissional. Julgo também pode acontecer e de que também há a mais comum na representação social, torna-
que nós não temos esta clarificação assumida muitos sinais. Linda Darling-Hammond, num -nos prisioneiros de um conceito de ensino
no nosso sistema nem na nossa representa- artigo publicado no Journal of Educational como sinónimo de passagem de um saber. É
ção social da profissão, nem no próprio inte- Change, faz uma projeção de vários cenários este o conceito que encontramos nos alunos
rior da classe profissional, do pré-escolar ao possíveis, a partir da análise de dados atuais, que nos chegam ao ensino superior, prova-
superior. A clarificação a que me refiro implica para a profissão docente nos anos futuros, e velmente porque desde o início o interiori-
integrar as contradições e ambiguidades que este problema – esbatimento versus reforço zaram dessa forma, através das experiências
a esta representação se associam no momen- de profissionalidade como duas possibilidades de ensino que tiveram. Isto tem na história a
to atual e compreendê-las. fortes – é muito bem clarificado nesse artigo. sua justificação, porque num tempo em que
A primeira questão que se coloca a mon- De novo, gostava de fazer uma breve incursão o saber era muito mais limitado do que é hoje,
tante da qualidade do desempenho é assim histórica. Um profissional define-se, no qua- e em sociedades em que a sua difusão era

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escassa, é evidente que constituía o exclusivo que marca a diferença desta atividade, a sua mesma natureza nos professores do 1º ciclo,
de alguns, e essa exclusividade do saber criou especificidade e necessidade social. É disso nos educadores de infância e nos professores
uma imagem de que só “ensina” quem detém que nós somos especialistas. do ensino superior (que, diga-se, em geral,
esse saber, e que ensinar esse saber significa É interessante notar que, mesmo em fases temos pouca formação pedagógica, com o
passá-lo. em que era incontestada a ideia do professor devido respeito). As diversas especificações,
Julgo que este conceito de ensinar é hoje ana- como alguém que passa saber, aquilo que nós indispensáveis, não residem nesta lógica de
crónico, por várias razões. Primeiro, a situação designávamos no senso comum por “bom” alternância – pedagógico ou científico –, mas
alterou-se, mas curiosamente verifica-se que professor (critérios implícitos de bom desem- na sólida construção de um saber científico-
há uma grande cegueira em relação à mu- penho) era aquele que passava o saber muito -profissional integrador de todos os saberes
dança na comunidade educacional. Falamos bem, ou seja, de maneira a que nós todos, que se mobilizam para a prática da ação de
de mudança com uma frequência invulgar, alunos, percebíamos. Há, mesmo na represen- ensinar enquanto fazer aprender alguma coisa
produzimos grandes quantidades de discurso tação mais clássica do professor que passa o a alguém.
e retórica sobre a mudança em abstrato, mas saber, uma distinção muito clara entre quem Esta parece-me uma questão central relati-
temos, enquanto classe, uma considerável in- passa saber sem conseguir que ele passe (seja vamente ao 1º ciclo, intimamente relacionada
sensibilidade e até incultura face às efetivas apropriado pelo outro) e quem passa conse- com a discussão da qualidade. A concepção
mudanças, históricas e sociais, objectivas, guindo que o outro o adquira. A especificida- expressa na metáfora do duplo funil, que
das quais somos atores e dentro das quais de da função de ensinar, do meu ponto de atrás explicitámos, leva a distorções de senti-
estamos a viver. Esta parece-me uma ques- vista, situa-se em fazer que o outro aprenda. do da prática profissional em todos os níveis
tão de fundo: “passar” conhecimento já não é E essa é a essência da profissionalidade, ou de ensino, mas tem particulares repercussões
hoje uma necessidade social do mesmo tipo, não há essência nenhuma, e é para este cam- na promoção e análise da qualidade do ensino
porque o conhecimento e a informação com po que convergem as questões seguintes da que se faz nos níveis iniciais da escolaridade.
que se constrói estão acessíveis a muitos e profissionalidade. Do meu ponto de vista, é essencial que o pro-
de muitas formas. Por outro lado, já não é Qual é então o saber específico definidor da fessor dos primeiros níveis, e retomo Castro
mais possível passar tudo quanto é preciso ou profissionalidade docente? Qual é o saber que Caldas, tenha um enorme e rigorosíssimo
é possível saber. Esta lógica faz hoje pouco nos define? E se isto é verdade, há um enorme saber científico. Incluo no saber científico o
sentido, do meu ponto de vista. equívoco nas lógicas que presidem à forma- saber sobre aquilo que é a sua especificidade
A função definidora do profissional professor ção, e isto é talvez o aspecto mais polémico: científica no campo curricular, o seu material
não é pois a passagem do saber, é a função quando e como se estruturam e reproduzem de trabalho, sobre os seus alunos e sobre o
de ensinar, e ensinar não é apenas, nem so- matrizes de formação qualitativamente muito modo de ensinar, constituindo-se como um
bretudo, “passar” um saber. Se ensinar for diferenciadas entre os educadores de infância todo em ação, e não como um somatório de
apenas definido como passar um saber, te- e os professores do 1º ciclo e os professores partes cujos pesos se adicionariam. Assim
mos de considerar a probabilidade da extin- do secundário ou do ensino superior? Trata-se como para nós, professores do ensino supe-
ção da função destes profissionais, porque se da metáfora bem conhecida do duplo funil: rior, é preciso um fortíssimo saber científico
esbateria a sua necessidade social. para o educador de infância e o professor do daquilo que ensinamos, do modo como en-
A função de ensinar, caracterizadora do pro- 1º ciclo, considera-se que é preciso mais co- sinamos e dos sujeitos do nosso ensino e da
fissional que somos, ou quereríamos ser, na nhecimento dito pedagógico e umas luzes de finalidade que ele tem.
minha perspectiva, consiste, diferentemente, conhecimento científico, não muito exigen- Não pretendo significar que não haja, dentro
em fazer que outros adquiram saber, apren- tes; à medida que se caminha para a especia- deste saber, modalidades; tem de haver e
dam alguma coisa. E é aí que nós, professores, lização do conhecimento, mais importante é bem adequadas aos níveis e áreas. Mas as es-
somos uma profissão indispensável, e talvez considerada a chamada dimensão científica e pecialidades decorrem deste saber “científico-
cada vez mais indispensável, porque não bas- menos a dimensão pedagógica. -profissional” global e desenvolvem-se dentro
ta pôr a informação disponível para que o ou- Designo os polos desta dicotomia como dele e não o contrário – a sua construção
tro aprenda, é preciso que haja alguém que o mito pedagogista e o mito cientificista. aditiva e exógena. Para os diferentes tipos
proceda à organização e estruturação de um Olhando a função de ensinar como a de sa- de professores – professores generalistas ou
conjunto de ações que levem o outro a apren- ber fazer que alguém aprenda, julgo que o professores especialistas, ou mistos –, o que
der. Isso é, a meu ver, o que define ensinar, o conhecimento necessário é, no essencial, da defendo é que o professor tenha uma forma-

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ção profissional assente neste saber propria- de saber muito bem, sabendo fazê-lo com au- sua própria ação, indispensável à qualidade do
mente profissional – saber ensinar no sentido tonomia de decisão e capacidade de análise desempenho.
de fazer aprender – e depois desenvolva as e melhoria. Uma outra recomendação tem a ver com o
nuances e as especializações da área, do cam- desenvolvimento da formação por imersão.
po, do nível, do ano, do contexto em que vai Formar profissionais de ensino – Assistimos a sinais de uma ruptura de pa-
exercer a profissão. implicações da concepção do profissional radigma nas nossas lógicas de trabalho nas
Não dizemos de um médico que trabalha para Para terminar, gostaria de listar para discus- universidades e nas instituições de formação:
crianças que ele tem de saber “menos” porque são algumas implicações que identifico possí- perspetivar a formação como requerendo
têm supostamente menos doenças e menos veis nesta conceptualização que ensaiei aqui, imersão no contexto de trabalho, transfor-
complexas do que as dos adultos… Ou que numa linha de reforço da qualidade da forma- mando gradualmente esses contextos de
numa dada especialidade se dispensa o saber ção dos docentes do 1º ciclo e educadores de trabalho, que têm já uma cultura própria mui-
médico global... Esta observação é uma ironia infância. to resistente que não é imune ao passado e
minha, mas é um pouco esta a caricatura da Uma primeira implicação residirá num reforço portanto tem as suas lógicas, rotinas e cultura
lógica que temos tido na profissão docente. da exigência e da qualidade científicas da for- instaladas. A formação inicial só será eficaz
Admite-se que, se a realidade que estamos a mação. Penso que os nossos alunos têm que se se transformar em formação em imersão,
trabalhar é mais inicial, então haveria menos saber muito mais e muito melhor, e em últi- feita com as escolas, que, por um lado, colo-
necessidade de saber científico. Parece-me ma instância somos nós os responsáveis por que os futuros professores em situação que
esta crença um contrassenso. Tenho dito mui- isso. Refiro-me a saber profissional no sentido alimente o seu percurso de formação inicial
tas vezes que não sou, e não fui, professora que tentei clarificar anteriormente. Sublinho, e, por outro, converta as escolas, os jardins
de 1º ciclo nem educadora, mas acho que, a este respeito, que partilho a concepção da de infância, os contextos de trabalho em que
se o quisesse ser, não saberia o suficiente. Ivor Goodson, quando fala da profissão do os nossos profissionais vão atuar em outras
Digo-o sem nenhuma blague, acho que sei professor como uma profissão intelectual. tantas unidades de formação que connosco,
alguma coisa da profissão, não se trata de Eu diria que o professor tem de ser um pro- ensino superior e investigadores, construam
falsa modéstia. Mas não sei o que é especí- fissional de cultura, e neste momento não o parcerias de formação/investigação, desen-
fico para ensinar bem coisas tão complexas é – nem os professores de 1º ciclo, nem os volvidas dentro da ação quotidiana da escola,
cientificamente (em todos os planos cientí- do 3º ciclo ou secundário. Não temos sido, a transformando-a em espaço real de formação
ficos, em que integro o pedagógico) como a meu ver, profissionais de cultura ou de conhe- profissional permanente.
apropriação dos códigos, a aquisição da leitu- cimento. Quando muito, somos especialistas
ra ou do cálculo, no plano do conhecimento numa área, o que não é a mesma coisa que
pedagógico que requerem. E surpreende-me ser profissional de conhecimento e de cultura.
que isto não seja sentido pelos meus colegas, Uma segunda implicação para a formação tem REFERÊNCIAS
nomeadamente os de 1º ciclo e educadores, a ver com a centragem na ação profissional, Darling-Hammond, L. (2000) Futures of teaching in
American Education. Journal of Educational Change, vol
e pelos seus formadores, em que me incluo. na ação de ensinar, como eixo organizador
1, nº 4, Dezembro, 353-373.
No limite, diria que formar um profissional de de toda a formação, ou seja, não conceber os Goodson, I. (1999). The educational researcher as a pub-
ensino de qualidade significa torná-lo deten- planos de formação como uma soma de par- lic intellectual. British Educational Reasearch Journal, 25,
tor de um saber muitíssimo rigoroso e que tes mas como um projeto organizado em tor- nº 3, 277-297.
seja ativo, um saber em uso, socorrendo-me no do desempenho profissional, que é aquilo Hopkins, D. (2000. Powerful learning, powerful teach-
ing, powerful schools. The Journal of Educational
da expressão muito usada de Philippe Perre- que lhe dá sentido.
Change,vol 1, nº 2, 135-154.
noud, um saber que se usa e não um saber Uma terceira implicação traduz-se em orientar Nóvoa, A. (1992). A reforma educativa portuguesa:
inerte. Significa ainda que esse saber profis- toda a formação para a capacidade de conhe- questões passadas e presentes sobre a formação de
sional, com cujos instrumentos a formação cer, de pensar sobre e de agir fundamenta- professores. In A. Nóvoa e T. Popkewitz (org.) Reformas
desejavelmente apetrecharia os formandos, damente. Se os nossos alunos saírem com Educativas e Formação de Professores. Lisboa: Educa.
Perrenoud, P. (2000). Novas Competências para Ensinar.
lhes deverá permitir exercer bem a sua função esta capacidade ou competência, no sentido
São Paulo: Artmed.
em termos profissionais – e a sua função é mais rigoroso, teremos certamente um ele-
ensinar, fazer que os seus alunos aprendam vado nível de qualidade que neste momento
aquilo que, por isso mesmo, eles também têm não temos. E ainda a capacidade de avaliar a

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Práticas educativas no jardim de infância e desenvolvimento da literacia.
Macio escreve-se com um 8, com um M ou com um Y?
Margarida Alves Martins. Centro de Investigação em Educação do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (CIE-ISPA)

As crianças têm um papel ativo na constru- dades alfabéticas do nosso sistema de es- žž Podemos ler ou escrever textos infor-
ção do seu conhecimento sobre a linguagem crita, ou seja, compreender que os grafemas mativos para conhecer ou transmitir
escrita, cuja aprendizagem começa muito an- codificam fonemas e conhecer as regras que explicações ou informações de caracter
tes do ensino formal. Com efeito, as crianças permitem passar de uns a outros. geral quando, por exemplo, lemos ou
não ficam à espera de ter seis anos e uma escrevemos uma notícia, uma carta, um
professora para começarem a refletir acer- Apropriação dos usos e funções da convite, um recado;
ca da linguagem escrita (Ferreiro, 1990). Ou, linguagem escrita žž Podemos ler ou escrever textos enume-
como refere Vygotsky (1935/1977, p. 39): “A As práticas educativas em torno da lingua- rativos para obter uma ou mais infor-
aprendizagem escolar nunca parte do zero. gem escrita desenvolvidas em contexto de mações precisas, memorizar, etiquetar
Toda a aprendizagem da criança na escola jardim de infância têm um papel determinan- e classificar informação quando, por
tem uma pré-história.” te na construção de um projeto pessoal de exemplo, elaboramos listas de material,
A qualidade dos contextos educativos em leitor/escritor (Chauveau & Rogovas-Chau- listas de compras, etiquetamos os livros
que as crianças se movem e, em particular, as veau, 1994), ou seja, no modo como as crian- da biblioteca, consultamos horários, le-
formas como os adultos se constituem como ças atribuem sentido à sua aprendizagem da mos ementas;
mediadores entre as crianças e a linguagem linguagem escrita. žž Podemos ler e escrever textos prescriti-
escrita determinam o desenvolvimento da Projeto pessoal de leitor/escritor: vos para seguir ou dar instruções quan-
sua literacia. Com efeito, o modo como as Eu quero aprender a ler para “ Ler histórias, do, por exemplo, lemos ou escrevemos
crianças abordam a linguagem escrita de- ler livros sobre os animais que vivem no mar, receitas, instruções para jogar um jogo,
pende da qualidade, da frequência e do valor ler sobre como se faz um jogo, ler o jornal para realizar um trabalho manual, uma
das atividades de leitura e de escrita que os da escola, ler as receitas que vêm nos li- experiência;
adultos desenvolvem com elas. Trata-se de vros.” žž Podemos ler e escrever textos literários
um processo socialmente determinado. Eu quero aprender a escrever para “Escrever por prazer e para diversão quando, por
“O que a criança pode fazer hoje com o auxí- os nomes de todos os meninos, escrever his- exemplo, lemos ou escrevemos contos,
lio dos adultos poderá fazê-lo amanhã por si tórias, fazer listas das coisas que são preci- narrativas, poesias, canções, adivinhas,
só” (Vygotsky, 1935/1977, p. 44). sas, escrever cartas.” banda desenhada;
As práticas educativas desenvolvidas em A elaboração deste projeto é inseparável da žž Podemos ler e escrever textos expositi-
contexto de jardim de infância desempe- relação que se foi estabelecendo, desde mui- vos para aprender ou transmitir novos
nham um papel essencial na forma como to cedo, com as várias práticas culturais em conhecimentos quando, por exemplo,
as crianças se poderão apropriar dos usos torno da leitura e da escrita e com os seus lemos livros para o estudo aprofunda-
e funções da linguagem escrita e no modo utilizadores. do de um determinado tema ou quando
como conseguirão entender as particula- É assim que no jardim de infância a lingua- escrevemos um texto para transmitir os
ridades do nosso sistema de escrita. Estes gem escrita deve ser usada em diversas si- resultados de um estudo que realizá-
aspetos desempenham um papel muito tuações funcionais, com várias finalidades e mos.
importante na forma como as crianças irão propósitos, o que pode desenvolver a cons- Um trabalho realizado por Santos e Alves
abordar a aprendizagem da leitura e da es- ciência das funções que a leitura e a escrita Martins (2011), em que foram analisadas as
crita, que pressupõe aquisições de natureza têm na vida quotidiana, permitindo também práticas de literacia de um grupo de edu-
cultural e de natureza cognitiva/linguística. a compreensão de que a diversos tipos de cadoras de infância e os projetos pessoais
De natureza cultural, na medida em que as suporte correspondem diferentes conteúdos de leitor/escritor dos seus alunos, mostrou
crianças, para aprenderem a ler e a escrever, de escrita (Goodman, 1990; 1995; Sulzby, que estes se relacionavam com a frequên-
têm de apropriar-se das práticas em torno 1985). Para tal, é fundamental que os edu- cia e a diversidade de práticas desenvolvidas
da linguagem escrita de uma dada cultura, cadores leiam e escrevam para as crianças e pelas educadoras e que os tipos de textos
ou seja, têm de apropriar-se dos usos sociais com as crianças diversos tipos de textos.A que as crianças referem querer ler e escre-
da linguagem. leitura e a escrita podem desempenhar di- ver correspondem aos tipos de textos mais
De natureza cognitiva/linguística, na medida versas funções (Alves Martins & Niza, 2014; frequentemente utilizados pelas suas educa-
em que as crianças, para aprenderem a ler e Teberosky, 1987; Teberosky & Colomer, 2003; doras. Estes resultados vão no sentido das
a escrever, têm de entender as particulari- Curto, Morillo & Teixidó, 2000): propostas de Curto, Morillo e Teixidó (2000),

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que referem que é fundamental que, desde deste processo, constroem hipóteses sobre vem as crianças procuram atender a fatores
muito cedo, os adultos e em particular os as propriedades da linguagem escrita e sobre como uma quantidade mínima de letras para
educadores tenham um papel de mediadores o que ela representa, hipóteses que podem cada palavra e uma combinatória diferente
das experiências das crianças com os diver- estar mais próximas ou mais afastadas do de letras para discriminar diferentes pala-
sos suportes de linguagem escrita, lendo e princípio alfabético. vras, nomeadamente as letras do seu nome.
escrevendo com elas textos significativos e Ferreiro (1988) e Ferreiro e Teberosky (1986) A figura 2 ilustra este tipo de escrita em que
reais que reenviem para as várias funções da foram as primeiras investigadoras a referir a Carolina usa as letras do seu nome para
linguagem escrita. que o conhecimento das crianças sobre a escrever, variando a posição das letras para
Ora, a forma como as crianças atribuem ou linguagem escrita se desenvolve ao longo de escrever palavras diferentes.
não sentido à aprendizagem da leitura e da um processo durante o qual as crianças pen-
escrita tem implicações nos seus resultados sam sobre a natureza da linguagem escrita
escolares. À entrada para o 1º ciclo, para al- e constroem hipóteses conceptuais sobre os
gumas crianças a linguagem escrita faz parte mecanismos de funcionamento do sistema
do seu universo afetivo e cognitivo: a apren- escrito, até entenderem o princípio alfabé-
dizagem da leitura e da escrita tem sentido; tico. As crianças passam, segundo estas au-
para outras crianças a linguagem escrita não toras, por diversas fases ou níveis evolutivos.
faz parte do seu universo afetivo e cognitivo: Numa fase inicial, denominada pré-silábica,
a aprendizagem da leitura e da escrita não as crianças quando escrevem não tentam
tem sentido. A probabilidade de sucesso fazer corresponder a linguagem escrita à
nestas aprendizagens não é a mesma para linguagem oral. Usam garatujas, misturadas
estes dois grupos de crianças. com letras, algarismos e desenhos, não pa-
Consideramos assim fundamental que os recendo haver uma clara separação entre Figura 2. Escrita de urso e hipopótamo
educadores desenvolvam com as crianças desenho e escrita, tal como é ilustrado na
atividades de leitura de textos diversifica- Por vezes, têm em consideração as proprie-
dos e significativos e promovam a escrita dades dos referentes na forma como escre-
de diferentes géneros e com uma variedade vem, utilizando, por exemplo, mais letras para
de objetivos e de audiências, envolvendo as palavras que reenviam para referentes gran-
crianças em tarefas e atividades de literacia des e menos letras para palavras que reen-
autênticas e significativas, criando uma cul- viam para referentes pequenos. Geralmente,
tura pedagógica que promova a motivação no decorrer destas produções, as crianças
para a leitura e para a escrita. não procedem a qualquer verbalização e a
leitura que fazem das palavras escritas é
Compreensão das particularidades do global. Apresenta-se na figura 3 a escrita de
sistema alfabético de escrita gato e gatinho. Quando se pergunta à Caro-
As práticas educativas em torno da lingua- lina porque escreveu gatinho com letras mais
gem escrita desenvolvidas em contexto de pequenas do que gato ela responde “Porque
jardim de infância têm também um papel o gatinho é pequeno e o gato é grande.”
determinante na forma como as crianças Numa fase posterior, as produções escritas
constroem os seus conhecimentos sobre as das crianças já são orientadas por critérios
particularidades do sistema alfabético de es- linguísticos; as crianças começam não só
crita. Através de interações com os outros Figura 1. Primeiras formas de escrita a ter a noção de que as palavras orais são
(pares e adultos), as crianças vão-se interro- constituídas por vários componentes sono-
gando sobre as relações entre os objetos e Progressivamente, começam a diferenciar ros, mas passam sobretudo a ter em conta
a escrita, entre o desenho e a escrita, sobre o desenho da escrita e a elaborar critérios que a cada um desses componentes corres-
os aspetos gráficos da escrita e sobre as que tornam uma série de letras passíveis de ponde uma letra específica, a qual representa
relações entre o oral e o escrito. Ao longo transmitir uma mensagem. Quando escre- cada um desses segmentos. Esta perceção

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Figura 5. Escrita silábico-alfabética de urso e
hipopótamo

Finalmente, todos os fonemas são repre-


Figura 3. Escrita de gato e gatinho sentados por letras adequadas ou que po-
deriam, noutros contextos, corresponder aos
estará, provavelmente, na base da desco- sons identificados no oral – fase alfabética.
berta de que sons idênticos são representa- A figura 6 ilustra este tipo de escrita.
dos pela mesma letra e sons diferentes são
representados por letras diferentes.
As tentativas de coordenar a linguagem es-
crita com a linguagem oral iniciam-se, fre-
quentemente, com a hipótese silábica com Figura 7. Escrita de gato, gatinho, cavalo, for-
base na qual as crianças escrevem uma letra miga, urso, elefante, águia e águias
por sílaba. Nestas produções, as crianças
procedem muitas vezes, antes de escrever, Figura 6. Escrita alfabética de urso e hipopótamo
a uma segmentação silábica do enunciado Como se pode ver na figura 7, o João Carlos
oral, e depois, representam cada sílaba por Alguns dos autores que estudaram este per- produz escritas alfabéticas para escrever as
uma letra, correspondendo muitas vezes ao curso evolutivo da escrita, nomeadamente palavras gato, águia e águias, escritas silá-
som mais saliente da sílaba oral – fase silá- na língua portuguesa, consideram, no entan- bico-alfabéticas nas palavras gatinho e for-
bica. A figura 4 ilustra este tipo de escrita. to, que não há uma sequência desenvolvi- miga e escritas silábicas nas palavras cavalo,
mental idêntica na forma como as crianças urso e elefante.
usam o código escrito (Alves Martins & Silva, À entrada para o 1º ciclo há crianças que ain-
2006; Vasconcelos Horta, 2012; Mata Pe- da não perceberam que a linguagem escrita
reira, Fijalkow & Alves Martins, 2011). Verifi- se relaciona com a linguagem oral enquanto
caram que nem sempre as crianças passam há outras para quem já é claro que as letras
por todas estas fases e, fundamentalmente, representam os sons da linguagem oral. Es-
que coexistem num mesmo momento escri- tas conceções sobre as relações da lingua-
tas que poderiam ser classificadas em fases gem escrita com a linguagem oral, à entrada
distintas. Uma criança, nas suas tentativas para a escolaridade obrigatória, influenciam
Figura 4. Escrita silábica de urso e hipopótamo de escrita, pode produzir escritas que seriam os desempenhos em leitura e em escrita no
enquadradas em diferentes fases, depen- final do 1º ano de escolaridade (Albuquerque
Subsequentemente, as crianças são já ca- dendo do contexto de produção, das carac- & Alves Martins, 2016; Ouellette, Sénéchal, &
pazes de representar todos os fonemas de terísticas das palavras ou frases a escrever, Haley, 2013).
algumas sílabas de cada palavra apesar de nomeadamente da sua dimensão e das letras O trabalho desenvolvido em contexto de
representarem só alguns dos fonemas de que as constituem. Apresenta-se na figura 7 jardim de infância pode ser determinante na
outras sílabas da mesma palavra – fase si- a escrita do João Carlos, que poderia ser en- forma como as crianças conceptualizam as
lábico-alfabética. A figura 5 ilustra este tipo quadrada em diferentes fases pois varia em relações entre linguagem oral e linguagem
de escrita. função das palavras a escrever. escrita.

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Numa investigação de Santos e Alves Martins com crianças de 5 anos que têm tido um letra é que eu vou pôr aqui: a Carlota acha que
(2011) em que foram analisadas as práticas de impacto muito positivo na forma como as é um P, o Hugo um H, a Teresa um T, a Inês
literacia de um grupo de educadoras de infân- crianças evoluem nas suas conceções sobre a um I. E agora?”
cia verificou-se que havia uma relação entre linguagem escrita (Alves Martins, Salvador & Carlota: “É um P, eu sei mesmo de verdade
a forma como as educadoras valorizavam e Albuquerque, 2014; Alves Martins, Salvador, que é um P.”
apoiavam as tentativas de escrita e de leitura Albuquerque & Fernandéz, 2017; Salvador, Al- Adulto: “Podes explicar aos outros meninos
das crianças, criando oportunidades para as buquerque & Alves Martins, 2013). como pensaste?”
crianças pensarem sobre a escrita individual- Nestes programas de natureza experimental, Carlota: “Porque olha, ouçam lá: pena, pe-na,
mente, a pares ou em pequenos grupos com a desenvolvidos ao longo de 10 sessões bisse- Pê, Pê, Pê, portanto é com o P.”
sua ajuda, e as formas como as crianças eram manais de cerca de 15 minutos cada, é propos- Adulto: “É? E o que é que vocês acham, que
capazes de escrever. Nas salas de jardim de to a grupos de quatro crianças que escrevam letra é que vocês acham?”
infância observadas em que a frequência des- algumas palavras. Para tal, devem pensar nas Teresa: “É mesmo o P.”
te tipo de práticas educativas era menor as letras a escrever, discutir e argumentar qual a Adulto: “E a Inês e o Hugo, o que é que
crianças de 5 anos chegavam ao final do ano melhor opção até chegar a um consenso, ditar acham?”
letivo produzindo escritas em que não havia ao adulto quais as letras a escrever. O adulto, Inês e Hugo: “Podes escrever o P.”
relação com a linguagem oral; por sua vez, as para além de escolher a ou as palavras a es- Este tipo de interações entre as crianças e
crianças das salas em que as educadoras mais crever, medeia as interações entre as crianças, de ajudas promovidas pelo adulto ligando
desenvolviam este tipo de práticas chegavam vai chamando a sua atenção para os sons das novas ideias, capacidades e competências, a
ao final do ano produzindo escritas em que palavras, leva as crianças a fazer descobertas ideias, capacidades e competências que as
havia relação com o oral, nomeadamente es- servindo-se das letras que conhecem, nomea- crianças possuíam anteriormente, permitem
critas silábico-alfabéticas e alfabéticas. damente as dos seus nomes, está atento para agir na sua zona de desenvolvimento proxi-
Se as crianças participarem em situações de que todas as crianças participem, explicitem mal (Vygotsky, 1935/1977) e contribuir para o
interação com outras crianças e adultos em o seu pensamento e deem explicações umas desenvolvimento das crianças.
torno da linguagem escrita, da linguagem oral às outras. Num segundo momento, leva as O impacto destes programas na evolução das
e das relações entre linguagem oral e lingua- crianças a confrontar a escrita produzida com conceções das crianças sobre linguagem es-
gem escrita, conseguem perceber a lógica das a escrita correta da palavra feita por outro crita no jardim de infância e na aprendizagem
unidades que são representadas pela escrita grupo de crianças e a pensar nas semelhanças da leitura e da escrita no 1º ano de escolarida-
e aproximar-se da compreensão do princípio e nas diferenças. de tem sido muito significativo (Albuquerque
alfabético (Adams, 1998; Teberosky & Colo- Apresenta-se seguidamente um pequeno ex- & Alves Martins, 2016), pelo que a sua adap-
mer, 2003). certo de uma 1ª sessão de um programa em tação para contextos de jardim de infância
As situações de leitura e de escrita em cola- que se pediu que fosse escrita a palavra Pena. parece ser uma via promissora a explorar.
boração são promotoras do desenvolvimento Adulto: “Como vamos fazer para escrever a Nestes contextos, podem ser criadas situa-
da literacia tal como foi demonstrado por di- palavra pena?” ções de interação entre as crianças sobre a
versos autores que chamaram a atenção para Carlota: “P, um P, um P.” escrita, a propósito de um trabalho que está a
a importância de se promoverem situações Adulto: “A Carlota acha que é um P primeiro. ser desenvolvido, tendo o educador um papel
de escrita e leitura partilhadas com colegas E o Hugo?” fundamental na gestão das interações entre
e adultos (Pontecorvo, 2005; Pontecorvo Hugo: “Acho que é um… Não sei.” as crianças e no tipo de ajudas que considera
& Fabretti , 2003), escrita simultânea de um Adulto: “Então pensa lá. Qual é que é a pala- adequadas ao grupo de crianças. Apresen-
mesmo texto (Mata, 1991; Teberosky, 1987), vra pe-na?” tam-se dois exemplos:
escrita de uma criança apoiada pelos pares Hugo: “H acho que é um H!” Numa sala de jardim de infância de crianças
(Teberosky, 1987) e escrita em pequeno grupo Adulto: “E tu, Teresa, que letra é que achas de 5 anos, num contexto de estudo sobre os
mediada pelo adulto (Ouellette et al. 2008; que é primeiro?” dinossauros.
Vegas, 2004). Teresa: “Um T.” Beatriz: “Olha, dinossauro tem quatro bocadi-
Referiremos a este propósito trabalhos de Adulto: “E a Inês, o que é que acha?” nhos di-no-ssau-ro.”
investigação sobre programas de escrita em Inês: “Um I.” Educadora: “Pois tem, Beatriz, tem quatro
pequeno grupo desenvolvidos em Portugal Adulto: “E agora pensem lá todos melhor que sílabas. E sabes mais alguma coisa sobre a

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Figura 8. Escrita de macio

palavra dinossauro?” No exemplo apresentado, a educadora apro-


Beatriz: “Sei que é grande.” veita a referência de uma criança ao número
Educadora: “Por que é que achas que é gran- de sílabas da palavra dinossauro para levar
de?” as crianças a refletir sobre as características
Beatriz: “Porque tem quatro bocadinhos, só formais da palavra. Nessa reflexão, apoia as
falta um para serem cinco, e cinco são muitos, tentativas das crianças para analisarem os
é uma mão cheia!” sons que ouvem e para procurarem as letras
Educadora: “E sabem mais alguma coisa sobre que lhes podem corresponder, servindo-se
a palavra dinossauro?” nomeadamente da análise dos nomes dos co-
Benedita: “Eu acho que começa com a letra legas da sala. Através de um questionamento
D.” adequado ao nível de desenvolvimento das
Jorge: “Como Diana o primeiro bocadinho é crianças daquele grupo, leva-as a pensar nas
igual, tem DI.” estratégias a utilizar quando se quer escrever
Inês e Martim: “David e Daniela também co- uma palavra, o que a Inês é capaz de verbalizar Manuel: “É um M e depois maci é um M e
meçam com D.” de uma forma muito clara. um I.”
Educadora: “Então e se eu vos pedisse para Numa outra sala de jardim de infância com Sara: “E depois um U ou um O porque lê-se da
escreverem dinossauro como é que faziam, o crianças de 4 e 5 anos, a propósito do estu- mesma maneira.”
que é que tinham de fazer para escrever?” do do algodão, a educadora sugeriu a quatro Apresenta-se na figura 8 a forma como cada
Martim: “Escrevíamos as letras, as letras são crianças que pensassem em conjunto em uma das crianças escreveu a palavra:
para escrever!” como escrever a palavra “macio”, uma das ca- Manuel: Olha a Maria Leonor pôs um 8.
Educadora: “Mas escrevemos umas letras racterísticas que tinham referido a propósito Maria Leonor: Não é um 8. Eu escrevi macio
quaisquer?” do algodão. e depois algodão e depois fiz um 8 para se
Martim: “Não, temos de pensar na letra e es- Manuel: “Macio começa pela letra M.” saber que o algodão é redondo.
crevemos.” Educadora: “Como é que sabes, Manuel?” Manuel: “Eu fiz um Y no fim porque gosto
Educadora: “Mas como é que sabemos qual Manuel: “Já sei há muito tempo.” dessa letra.”
é a letra?” Maria: “M é a letra do meu nome.” Este tipo de interações entre as crianças
Gabriel: “Temos de pensar qual é a primeira, a Maria Leonor: “A letra M é como? Como é que contribui para uma progressiva descoberta e
segunda, a terceira…” se escreve?” apropriação da linguagem escrita e, conse-
Inês: “Cada letra tem um som, eu digo e sigo Maria: “Eu sei! Posso ensinar-te como se es- quentemente, para uma boa aprendizagem da
o som e escrevo a letra do som.” creve.” leitura e da escrita no 1º ano de escolaridade.

57 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

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58 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
A pedagogia holística em educação de infância
Cristina Mesquita. Instituto Politécnico de Bragança

Contributos para a definição de um espaço ambíguo “de um entre três – as educação humanista e progressista. Foca-
pedagogia em educação de infância ações as teorias e as crenças – numa trian- liza-se no todo (wholeness) e evita excluir
O conceito de pedagogia em educação de gulação interativa constantemente renova- qualquer aspeto significativo da experiência
infância tem sido utilizado indistintamente da” que se sustenta “numa práxis, isto é, humana. O foco principal desta abordagem
como sinónimo de currículo, prática, ensino numa ação fecundada na teoria e susten- é a interconexão (interconnectedness) entre
ou aprendizagem (Siraj-Blatchford, Sylva, tada num sistema de crenças”. No entan- a experiência e a realidade. Afirma-se que
Muttock, Gilden & Bell, 2002). Num texto to, como esclarece a autora, “os saberes todas as realidades do universo se relacio-
que procura reconstruir o conceito de peda- pedagógicos criam-se na ambiguidade de nam entre si. Tudo o que existe se articula
gogia, Watkins e Mortimore (1999: 3) defi- um espaço que conhece fronteiras, mas num contexto de interconexão e significado
nem pedagogia como a “atividade conscien- não as delimita, porque a sua essência está e uma mudança ou acontecimento afetará
te de uma pessoa para facilitar a aprendiza- na integração” (2007c: 16). Nesta linha de cada um dos elementos que se relacionam.
gem de outra”. Esta ideia centra o conceito pensamento, a pedagogia não existe sem Isso significa que o conjunto é composto de
de pedagogia no valor da aprendizagem em a práxis e é nela que se vivifica e renova. padrões relacionais que não estão contidos
ligação com os diferentes elementos que Esta conceptualização assume as conexões nas partes e, por isso, um fenómeno não
intervêm no processo. Para Moss e Petrie entre o que se pensa sobre a educação, pode ser entendido isoladamente (Miller,
(2002) a pedagogia deve ser uma aborda- a forma como se educa e as perspetivas 2000). Assim, podemos sublinhar que esta
gem relacional e holística, uma vez que a teóricas onde se fundam as ações, relacio- perspetiva contraria as visões fragmenta-
ação do pedagogo se destina à criança nando a educação das crianças, a ação dos das, que marginalizam diversas formas de
como um todo – a criança com corpo, men- profissionais, as interações com a família e expressão da criança e as visões redutoras
te, emoções, criatividade, história e identi- a comunidade, os valores que sustentam as do saber e da aprendizagem, para se afir-
dade social. práticas e as conexões entre o mundo social mar num conceito de práxis enquanto in-
Outro importante contributo conceptual é e o mundo natural. tencionalidade prática para a mudança e
proposto por Paulo Freire (1996), que suge- Todas estas definições de pedagogia desta- num compromisso ético com a ação (Elliott,
re que a pedagogia é um meio de ler o mun- cam a totalidade da criança e a intercone- 2010).
do, dialogar, escutar e conscientizar. Esta xão entre as diferentes dimensões e atores Neste sentido, a visão holística em educa-
conceptualização apresenta uma mudança do processo educativo, do qual resulta o ção de infância incorpora diferentes instân-
na ênfase da pedagogia de sentido único carácter holístico da educação das crianças. cias que se interconectam entre si: a criança
para a pedagogia da interação, onde se par- como um todo, os profissionais, as famílias,
tilham maneiras de ver, ouvir, questionar e Princípios da pedagogia holística: a comunidades, as múltiplas dimensões da
dialogar (Freire, 1996). Este entendimento a globalidade, interconectividade, realidade e os processos de educar e apren-
sobre a pedagogia é sustentador de práti- inclusão e equilíbrio der.
cas democráticas, onde tanto os educado- O movimento da pedagogia holística consti- Nesta perspetiva caracteriza-se também
res como as crianças expressam opiniões e tui-se como uma resposta às pedagogias de por ser inclusiva em dois sentidos. Num
são escutados. Trata-se da pedagogia dos sentido único, mecanicistas, fragmentadas, primeiro sentido, a educação holística res-
relacionamentos, enfatizada por Loris Ma- que valorizam a dimensão cognitiva e racio- peita a diversidade cultural, celebrando as
laguzzi (2008), segundo a qual as crianças nal, adotando uma perspetiva do mundo diferenças entre as crianças e aceitando-as
são entendidas como ativamente envolvi- que visa a transformação das fundações da como pontos de partida para uma ação que
das na coconstrução do conhecimento, das educação. Neste sentido, uma perspetiva valoriza a todos e a cada um. Num segun-
identidades próprias e das dos outros (Da- holística da educação não pode ser definida do sentido é inclusiva, porque pensa em
hlberg, Moss & Pence, 2003). como um método ou uma técnica especí- estratégias que respondam à diversidade
Segundo Oliveira-Formosinho (2007c: 16), a fica. Deve, antes, ser entendida como um e apoiam todas as crianças de forma dife-
pedagogia organiza-se em torno dos sabe- paradigma, como um conjunto de princípios renciada no esforço de ser e de se tornar
res que se constroem na ação situada, em e pressupostos que podem ser utilizados de (Miller, 2000).
articulação com as conceções teóricas (teo- diversas formas (Miller, 1992). No esquema Inclui ainda a ideia de equilíbrio (balance)
rias e saberes) e com as crenças (crenças, 1 sintetiza-se a ideia de pedagogia holística. entre os diferentes aspetos que caracteri-
valores e princípios). A pedagogia é, assim, A pedagogia holística tem as suas raízes na zam as pessoas, intelectual, físico, espiri-

59 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Figura 1. Pedagogia holística em educação de infância entre esses polos em interação e os con-
textos envolventes (Oliveira-Formosinho,
2007b, p.15).

tual, emocional, social e estéti- há de comum a todas as crian- A interconectividade entre


co, bem como as relações ças enquanto seres hu- desenvolvimento, aprendizagem e
entre pessoas, o con- manos, estabelecendo currículo
texto individual, so- princípios gerais Compreende-se, por isso, que em educação
cial e ambiental, para a sua de infância o currículo interconecte o desen-
os diferentes educação e, volvimento e a aprendizagem da criança, en-
saberes e de acor- tendendo-a na sua individualidade e consi-
as dife- do com derando os seus interesses e necessidades, a
rentes eles, sua agência e a sua vontade de experimentar
formas deter- o mundo. Para isso, importa que os contex-
de co- mina tos se constituam como ambientes que es-
nheci- os pro- timulam as crianças a investir na construção
mento. cedi- de saberes e que lhes permitam explorar a
mentos realidade com todos os seus sentidos, repre-
A criança e práticas sentando-a através de múltiplas formas de
como um que per- expressão. O envolvimento da criança, reali-
todo e a ação mitam com- zado num ambiente habilitador assegurará a
dos profissionais preender e agir intencionalidade e a substantividade da sua
As abordagens holís- sobre as suas neces- aprendizagem (Bruner, 2000).
ticas focam-se na criança sidades individuais (Pon- A gestão do currículo em educação de infân-
como um todo, com corpo, te & Ax, 2010). cia enfatiza a multidimensionalidade da ação
mente, emoções, criatividade, his- A pedagogia ultrapassa, assim, dos educadores, que deve sustentar-se nos
tória e identidade social, assumindo todo o as questões metodológicas, para se afir- princípios conceptuais para delinear os con-
seu desenvolvimento (Silva, Marque, Mata, mar como um corpo de saberes teóricos, teúdos a aprender, os processos através dos
& Rosa, 2016). Sublinha-se, desta forma, práticos e éticos que permitem aos pro- quais as crianças aprendem, as práticas que
que a aprendizagem da criança se realiza fissionais tomar decisões informadas em desenvolvem para alcançar tais propósitos,
nas dimensões cognitivas, sociais, cultu- tempo útil, para agir com equilíbrio entre bem como a organização intencional do con-
rais, físicas e emocionais, interligadas e que o bem-estar individual e as exigências da texto onde a aprendizagem acontece.
atuam em conjunto, o que implica que se sociedade atual (Oslon, 2003). Uma peda- Diversas abordagens que assumem uma vi-
valorizem todas as suas formas de expres- gogia que considera os direitos da criança são holística (Hohman & Weikart, 2011; Ed-
são. A visão holística destaca ainda que a e a sua competência participativa (Mason, wards, Gandini & Forman, 2008; Formosinho
criança deve ser entendida como um dos 2005) e que utiliza a escuta, a observação e & Oliveira-Formosinho, 2008; Folque, 2008;
atores que fazem parte da sociedade e que a negociação como processos para garan- Niza, 2007) destacam que a aprendizagem
nela participam. tir a participação (Dahlberg & Moss, 2005; se deve realizar através de uma perspetiva
Decorre desta aceção que a natureza das Oliveira-Formosinho, 2007a; Formosinho integradora, que valoriza o brincar e realça
práticas profissionais (sobretudo os aspe- & Oliveira-Formosinho, 2008). Uma pe- o desenvolvimento de saberes sobre a vida
tos que envolvem a construção de intera- dagogia que responda à complexidade da e para a vida, que se descrevem de seguida:
ções positivas e de cuidado), as decisões sociedade e das comunidades, do conhe- (i) desenvolvimento físico e motor: através
curriculares e as questões em torno da cimento, das crianças e das suas famílias, da consciência e do domínio progressi-
aprendizagem das crianças é também ela com um processo interativo de diálogo e vo sobre o seu corpo, o prazer do mo-
holística. Nesta linha de pensamento, a pe- confronto entre crenças e saberes, entre vimento numa relação consigo própria,
dagogia situada na práxis considera o que saberes e práticas, entre práticas e crenças, com o espaço, com os outros e com os

60 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


objetos, mas também a consciencializa-
ção sobre a alimentação saudável e a
importância da atividade física;
(ii) desenvolvimento da linguagem: consi-
derando a escuta e a compreensão, o
desenvolvimento da linguagem oral e da
comunicação, a ampliação do vocabulá-
rio, a emergência da linguagem escrita,
através do contacto e uso da leitura e da
escrita em situações reais e funcionais
associadas ao quotidiano da criança;
(iii) desenvolvimento cognitivo: desenvol-
vendo vários conceitos que incluem os
números e as operações, relacionados
com a comparação, classificação, con-
servação do espaço e da quantidade,
correspondência termo a termo; con-
tagem oral e de objetos. Construção
progressiva do sentido de espaço, orga- te enunciadas, consideramos que estas Decorre desta linha conceptual que a crian-
nização de dados, organização sequen- áreas de desenvolvimento se sustentam ça aprende através da experiência que reali-
cial, pensamento crítico, observação e num conjunto de princípios que devem ser za sobre os objetos, com os outros e com a
verificação, raciocínio e a resolução de tidos em conta pelos educadores de infân- realidade, onde pode errar e voltar a tentar,
problemas, bem como o conhecimento cia na sua ação: (i) compreender o brincar repetir e recriar, imitar e identificar-se. O
sobre o mundo, nas dimensões, física, como base da aprendizagem; (ii) valorizar a educador deve, por isso, promover um am-
social e natural. experiência, enquanto processo através do biente onde a criança se sinta encorajada e
(iv) desenvolvimento pessoal, social e emo- qual se aprende; (iii) incluir as diferentes desafiada a escolher, explorar e experimen-
cional: que apela para a construção da formas de expressão (plástica, dança, mo- tar. Um clima onde a criança se sinta feliz
consciência de si, do autocontrole, da tora, dramática, musical); (iv) considerar os e em segurança, onde tenha oportunidades
iniciativa e da curiosidade, do envolvi- ritmos, os interesses e as necessidades das diversificadas para aprender. Um ambiente
mento e da persistência, da cooperação crianças; (v) integrar interações e aprendi- onde a sua voz seja escutada e que sinta
e da sensibilidade, das relações sociais zagens formais e informais; (vi) reconhecer que as suas ideias são consideradas e valo-
e interações positivas com o grupo, do as características do pensamento da crian- rizadas, sentindo-se pertença de um grupo
comportamento sociável, da expressão ça; (vii) valorizar a sua competência, nos cujos membros se apoiam e constroem co-
de sentimentos e da aceitação dos sen- modos de pensar e agir; (viii) usar diferen- nhecimento, colaborativamente. Como sa-
timentos dos outros; tes instrumentos da cultura como meio de lientam Oliveira-Formosinho e Formosinho
(v) desenvolvimento sensorial: através das aprendizagem; (xix) associar a educação ao (2011: 18), este tipo de ambientes “promo-
experiências visuais, auditivas e cinesté- cuidado; (x) integrar os saberes (literacia, vem a construção da aprendizagem intera-
sicas que conduzem ao desenvolvimento numeracia e conhecimento do mundo) nas tiva e contínua dispondo a criança tanto do
dos cinco sentidos; experiências de todos os dias; (xxi) conside- direito à participação como do direito ao
(vi) desenvolvimento da criatividade e do rar a participação da criança, negociando, apoio sensível, autonomizante e estimulan-
sentido estético: explorando diferentes dialogando, refletindo e descolonizando; te por parte da educadora”.
formas de arte, desenvolvendo disposi- (xxii) articular os saberes; (xiii) partir da ob- Neste sentido, uma abordagem holística
ções, expressões e apreciações sobre os servação e da escuta ativa para a planifica- considera a participação de todos enquanto
domínios da dança, do teatro, da música ção e; (xiv) desenvolver uma avaliação con- direito, apelando para a intencionalização
e da expressão plástica. tínua, formadora e autêntica que integre os de uma práxis pedagógica valorizadora da
Com inspiração nas abordagens anteriormen- processos e as realizações. agência da criança, mas também dos adul-

61 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

tos que com ela interagem. Os educadores


competentes serão aqueles que compreen-
dem a competência das crianças, porque as
veem como pessoas com direitos que devem
ser respeitadas, que constroem ambientes de
aprendizagem experienciais, interacionais e
colaborativos, que envolvem os pais, as famí-
lias e a comunidade no desenvolvimento de
uma educação democrática, inclusiva e respei-
tadora da diversidade (Formosinho & Oliveira-
-Formosinho, 2008).

A articulação dos saberes


e ação integradora
Uma outra reflexão em torno da perspetiva
holística centra-se na articulação dos sabe-
res. Referimos, como exemplo de abordagem
integradora dos conteúdos, a aprendizagem
baseada em projeto, presente no Movimento
da Escola Moderna ou na abordagem Reggio
Emilia. Em ambas as abordagens o sentido do
projeto envolve a integração de várias áreas
de conteúdo numa vivência experiencial si- esta metodologia permite à criança estabele- tre os atores e a realidade. Pressupõe a inclu-
tuada na exploração profunda de uma ideia, cer conexões com as aprendizagens anterio- são de todos os atores e aceita a diversidade
interesse ou assunto. Esta perspetiva ajuda res, motivando-a na procura de mais informa- cultural como um meio de potenciação da
as crianças a relacionar aprendizagens aca- ção, sobre os temas em estudo. cooperação e da valorização de todos. Nesta
démicas com as ideias sobre o mundo real. aceção, procura o equilíbrio entre os saberes
Estes projetos ajudam as crianças a estabe- Em síntese e os processos de aprendizagem, as crianças
lecer ligações entre diferentes conceitos e a Procuramos neste texto analisar os diferen- e os educadores, o individual e o grupal, as di-
desenvolver uma compreensão global sobre tes aspetos que caracterizam a pedagogia ferentes formas de expressão e comunicação
os fenómenos em estudo. Neste sentido, o holística. Um dos primeiros focos que salien- (Miller, 2007).
currículo é flexível e responsivo às necessi- tamos refere-se ao conceito de “totalidade” Entendemos, por isso, que o educador ho-
dades das crianças, considerando cada uma enquanto cerne do processo educacional. A lístico se deve assumir como um facilitador
delas na sua individualidade. A forma como se totalidade implica que se veja a criança como da aprendizagem, que gere o currículo atra-
desenvolvem os projetos valoriza a integração um todo, bem como a interconexão entre os vés das observações, reclamando autonomia
de todos, reconhecendo a diversidade social e diferentes saberes. Destacamos que a abor- para coconstruir ambientes de aprendizagem
cultural. Constitui-se como estratégia que en- dagem holística celebra e faz uso construtivo estimulantes e experiências de aprendizagem
coraja e apoia todas as formas de desenvol- das visões evolutivas, experienciais e alterna- integradoras que permitam à criança desen-
vimento que se explicitaram anteriormente, tivas da realidade e de múltiplas formas de volver-se como um todo.
estimulando a expressão da criança através conhecimento. Não são apenas os aspetos
de diferentes linguagens. Importa ainda sa- cognitivos do desenvolvimento da criança que
lientar que o projeto se configura como um precisam de ser valorizados, mas também os
organizador de ideias, um agregador de sabe- físicos, os sociais, os espirituais, os estéticos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
res, experiências e competências, bem como e os criativos. Bruner, J. (2000). Cultura da Educação. Lisboa: Edições 70.
Dahlberg, G., & Moss, P. (2005). Ethics and politics in ear-
um meio privilegiado de investigar a realidade Salientamos ainda que a abordagem holística ly childhood education. London & New York: Routledge.
natural e social. Sublinhamos, por último, que reclama a conectividade entre os saberes, en- Dahlberg, G., Moss, P. & Pence, A. (2003). Qualidade

62 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


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63 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS
Projecto Amadeo de Souza-Cardoso
Eunice Salvador . Encarregada de educação; Lourdes Robalo . Educadora. Dulce Matos . Professora do 1.º ciclo. EB
Manuel Beça Múrias, Agrupamento de Escolas de S. Julião da Barra, Oeiras

INTRODUÇÃO
Amadeo de Souza-Cardoso foi um pintor
português do século XX, reconhecido nos
meios de vanguarda da época, mas sem a
devida valorização no seu país de origem.
Foi reconhecido tardiamente, quando já a
história da arte se encontrava escrita, o
que torna crucial a importância de mostrar
e divulgar a sua obra.
O projeto teve a intenção de apresentar
o pintor português às nossas crianças e
mostrar-lhes como ele foi “um grande en-
tre os grandes”, tendo-o a sua morte pre-
coce, aos 30 anos, afastado dos livros de
arte internacionais. Não viveu o suficiente
para conseguirmos fazer a comparação,
mas poderia ter sido o “nosso Picasso”.
Amadeo tinha um espírito jovem, foi um
grande artista, numa altura frágil de um
país pequeno. Tinha uma personalidade
complexa, de grande instabilidade emocio-
nal, mas era fervoroso na sua manifesta-
ção artística.
Na exposição do Museu de Arte Contem-
porânea do Chiado, em 2016, o que vimos obras de Amadeo de Souza-Cardoso no de educação passou a dar vida ao tempo
seria o mesmo que foi visto em 1916? A Museu de Arte Contemporânea do Chiado. consagrado às expressões naquela turma.
maneira como observamos as coisas será a Assim, lancei a proposta de conhecermos Iniciámos deste modo o projeto em articu-
mesma de há 100 anos atrás? Por que ten- um pintor português, da primeira geração lação com o 3º B.
taram maltratar os quadros de Amadeo? de pintores modernistas portugueses. O Em primeiro lugar registei num quadro o
Que influências artísticas obtivemos para grupo achou a ideia interessante e inscre- que as crianças já sabiam, o que queriam
a arte de hoje? veram-se no quadro dos projetos. saber, onde iriam procurar e quem fazia o
Uma coisa é certa, o nome de Amadeo é Ao mesmo tempo que decorria este tra- quê. No final do projeto voltámos a este
sinónimo de artista. balho na sala 1 do JI, os alunos do 3.º B, quadro para registar o que aprenderam.
E os nossos pequenos grandes artistas após uma visita de estudo à exposição de Em segundo lugar veio a pesquisa. Depois
têm urgência de o conhecer. Amadeo de Souza-Cardoso no Museu de do registo, conversámos e procurámos na
Arte Contemporânea do Chiado, encon- biblioteca alguns livros relacionados com o
1. O PROJETO travam-se também a iniciar um projeto tema (foto 2). As crianças pesquisaram em
As crianças da sala 1 do JI já conheciam sobre o artista. Este trabalho foi dinami- casa em conjunto com os pais e trouxeram
dois pintores: Matisse, do expressionismo zado pela mãe de um aluno dessa turma, documentação, livros e alguns materiais
francês, e Rembrandt, do renascimento que é pintora e professora universitária. que viriam enriquecer o projeto.
holandês. Havia então uma exposição com Durante várias semanas, esta encarregada Na reunião de grande grupo, as crianças

O que já sabemos O que queremos saber Onde vamos procurar Quem faz o quê O que aprendemos

64 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


expuseram as suas ideias tendo estas sido aprofundado sobre o universo próprio do 2.2 Matemática
registadas. Com base nas propostas foi artista. Realizaram esculturas a partir de As crianças trabalharam e exploraram sensorial-
elaborada uma teia para organização do pinturas observadas, autorretratos inspira- mente diferentes materiais, objetos e formas.
trabalho de integração curricular. dos nos retratos feitos por Amadeo, traba- Através do olhar sobre as obras de arte, tive-
Começámos por observar obras e conhe- lharam a técnica de pochoir para assinarem ram acesso ao que é mais significativo na his-
cer a vida do pintor português. os seus trabalhos, tal como Souza-Cardo- tória da arte e a diferentes conceitos de beleza.
so, ampliaram pinturas, fomentando deste Ao trabalhar em grande formato, os alu-
2. DOMÍNIOS CURRICULARES modo o trabalho em grupo, com pinturas nos tiveram a possibilidade de experienciar
de grande formato. Realizaram maquetes diferentes materiais e tamanhos. A tela de
2.1 Educação Artística em 3D. Durante o decorrer do projeto, as tamanho grande permitiu o manuseamento
As crianças experimentaram e ficaram a crianças descobriram que cada um pode de pincéis com tamanhos e texturas diferen-
conhecer algumas técnicas e materiais. criar e produzir de modo diferente dos ou- tes, que proporcionaram diferentes gestos
Os alunos deram continuidade ao que tros, dentro da mesma proposta, segundo e modos de utilizar o seu próprio corpo, na
iniciaram quando da visita à exposição de o seu desejo e sensibilidade. realização dos trabalhos propostos.
Amadeo de Souza-Cardoso, um trabalho A interpretação de uma das obras (pintura)

65 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

66 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


de Amadeo levou os alunos a exercitarem veram oportunidade de esclarecer algumas
a sua concentração, memória e criativi- questões.
dade. Conseguiram reconhecer o espaço
aberto, o espaço fechado, os contornos, 3. A EXPOSIÇÃO
as dimensões, o sentido (vertical, hori- No final do ano letivo, as crianças da sala 1
zontal, diagonal), as figuras geométricas em conjunto com os alunos do 3.º B prepa-
e confrontaram-se com novas formas de raram uma exposição aberta à comunidade
produção. na biblioteca da escola, com a colaboração
da educadora que dinamiza aquele espaço.
2.3 Linguagem oral e abordagem à Importa referir que algumas mães, duas ar-
escrita quitetas, se envolveram e participaram na
As crianças foram trazendo materiais e montagem da exposição.
informação com a pesquisa realizada no Para além da mostra dos trabalhos indivi-
JI e em casa e com eles aprenderam no- duais, as crianças construíram em maquete
vas palavras: paleta, cavalete, tela, ateliê… em 3D, à escala reduzida, o ateliê de Ama-
Com a ajuda da família elaboraram alguns deo. Depois de o verem e analisarem numa
cartazes, maquetas que depois foram di- fotografia, avançaram para a sua reprodu-
vulgadas e discutidas na sala, para a partir ção cenográfica à escala real.
daí desenvolvermos algumas atividades.
As salas de atividades/aula são os locais 4. AVALIAÇÃO DO PROJETO AMADEO
privilegiados para a realização das ativida- DE SOUZA-CARDOSO
des de expressão artística. No entanto, as No final do projeto houve o momento da
visitas de estudo a exposições e o traba- avaliação do trabalho realizado, onde foi
lho no exterior são uma mais-valia para feito o balanço das aprendizagens adqui-
os alunos, dando-lhes a oportunidade de ridas.
enriquecer e alargar as suas experiências. L. S.— Foi giro mostrar aos outros meninos
As crianças da sala 1 do JI também fo- o que aprendemos.
ram ao Museu de Arte Contemporânea L. M. — Gostei que eles viessem à nossa sala.
do Chiado ver a exposição de Amadeo T. — Correu bem porque todos falaram alto.
de Souza-Cardoso. Antes do dia previsto A. — Eu gostei de fazer a comunicação
para a visita de estudo, fizemos uma reu- porque nenhum menino fez barulho nem
nião para aferir o que já tínhamos apren- interrompeu. Gostei de ver quadros a sério.
dido. T. — Gostei porque foi fácil.
Após a visita e depois de vários dias a ex- M. — Gostei da comunicação porque en-
plorar/experimentar diferentes técnicas saiamos muito, conseguimos fazer.
de expressão plástica, que foram articu- M. — Eu gostei que os outros viessem cá.
ladas com outros conteúdos da área das Gostei da comunicação porque foi gira.
Expressões e da Comunicação e ainda da J. — Gostei de fazer o cartaz, gostei de fa-
área do Conhecimento do Mundo, prepa- zer o desenho para a comunicação.
rámos uma comunicação para as outras V. — Gostei de fazer a comunicação. Gostei
duas salas do JI. Posteriormente as crian- também de ir ao Museu do Chiado.
ças da sala 1 e os alunos do 3.º B par- Fábio — Gostei de ouvir a comunicação.
tilharam conhecimentos que adquiriram F. — Eu gostei do museu.
com a realização dos seus projetos sobre R. — Gostei de ir ao Museu do Chiado.
Amadeo de Souza-Cardoso. As crianças L. — Gostei de conhecer o nome dos qua-
partilharam os seus conhecimentos e ti- dros.

67 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

C. — Gostei de pesquisar porque quase to- žž entender o espaço e estrutura de žž a ter iniciativa para fazerem as suas
dos pesquisaram e aprendemos muito. uma exposição de arte; próprias descobertas;
E. — Eu gostei porque quase todos os meni- žž conhecer ao vivo vários quadros de žž a expressar as suas opiniões;
nos fizeram o trabalho em equipa. um mesmo artista – a sua obra; žž a resolver problemas;
T. G. — Gostei de estar lá no Amadeo. žž perceber a linguagem plástica do pin- žž a persistir na execução das tarefas;
H.— Gostei de fazer a comunicação. tor; žž a colaborar com os outros;
V. — Gostei que todos falassem devagarinho. žž a partir da observação de uma foto- žž a desenvolver a criatividade;
S. — Foi difícil fazer os desenhos da comuni- grafia de Amadeo de Souza-Cardoso žž a ser curiosas e a gostarem de apren-
cação porque demorou um bocado de tem- no seu ateliê, perceber o espaço de der.
po. Foi bom porque aprendemos mais coisas trabalho – o ateliê. Ao mesmo tempo que a criança faz a ob-
do que nós pensávamos. A articulação do trabalho com alunos de servação e o registo que lhe permite ava-
diferentes idades promoveu a autonomia, liar, questiona e reflete sobre o que foi
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS o sentido de responsabilidade e a autoes- feito. Assim, torna-se possível melhorar
Pretendeu-se com a ida dos alunos do 3.º B tima das crianças. Os alunos mais velhos e adequar as nossas ações para atingir o
e das crianças da sala 1 do Jardim de Infân- sentiram-se responsáveis por tentar adqui- currículo. (não gosto muito) eu diria antes
cia da Escola Básica Manuel Beça Múrias em rir mais conhecimentos para os transmiti- “para o desenvolvimento holístico/integral
Oeiras ao Museu Nacional de Arte Contem- rem aos mais novos, ao mesmo tempo que da criança”.
porânea do Chiado: estes sentiram orgulho em partilhar o que
žž proporcionar-lhes novas experiências aprenderam e que, provavelmente, os cole-
e desenvolver a sua sensibilidade es- gas mais velhos não saberiam.
tética; O trabalho de projeto leva as crianças:

70 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS
Oferecer, ouvir e responder:
Explorações artísticas com crianças pequenas?
Marta Cabral . Adjunct Assistant Professor, Columbia University Teachers College

“A pedagogia, como a pintura, a escultura


ou a música, pode ser mágica no seu en-
genhoso manuseamento de vias interiores
para chegar a uma relação mutuamente
transformadora com acontecimentos ex-
ternos, egos, objetos e ideias"
(Elizabeth Ellsworth, 2005, p.7).

Muitas coisas tenho aprendido ao longo dos


meus 20 anos em educação. E uma das mais
importantes tem sido a ouvir, ponderar e
responder. Ouvir crianças, materiais, famí-
lias, colegas, comunidades; ponderar ideias
e leituras, sugestões, dúvidas e estratégias;
e responder o melhor que posso em cada
momento, com materiais, ideias, sugestões,
lugares ou, por vezes, atenção silenciosa.
Quando consigo fazer isto – ouvir, ponde-
rar e responder o melhor que posso – sin-
to que nesse dia fiz o meu trabalho. Pode
ter sido um dia difícil, fácil, complicado ou
prazenteiro; mas foi um dia em que fiz o
meu trabalho. Na verdade, o meu traba-
lho começa antes disso. Antes de ouvir e
responder, tenho que oferecer. Quando as
crianças chegam à escola, seja o primeiro dia
do ano ou da semana, há “coisas” e “espa-
ços” preparados para eles. Nas nossas salas
temos materiais, objetos, espaços, sinalética,
decorações, “cantinhos,” mobília, etc. Mas,
mais do que isso, temos “lugares” Lugares
que são físicos, sociais, emocionais; lugares
que carregam mensagens sobre o que é ou
não encorajado e permitido, as dinâmicas
desejadas. Nada do que oferecemos nas
nossas salas é inocente ou sem efeito; a in-
tencionalidade que pomos nessas escolhas é
fundamental. As nossas escolhas podem ter servem toda a escola, cheia de prateleiras samos e questionamos, é a disponibilidade
um grande impacto nas crianças com quem com materiais e com quatro cadeiras à volta para tentar, errar, descobrir, ficar frustrado
trabalhamos e é fundamental que sejam an- de uma mesa. Mas o lugar que é o estúdio é e contente e maravilhado com o que nos
coradas em noções de inclusividade (Recchia muito mais do que isso: estúdio acontece em rodeia.
& Lee, 2013) e diversidade em termos de ma- casa sala, no parque ou nos corredores. Pode O jardim de infância onde trabalho como
teriais, experiências, e possibilidades. ser na cozinha ou na galeria. Como “espaço artista em residência e coordenadora do
No meu caso, o lugar físico é um pequeno de estudo,” o estúdio é onde quer que nos programa de artes visuais é uma escola-la-
estúdio – uma sala minúscula e sem janelas, empenhemos em investigar o mundo e os boratório no campus do Columbia University
onde estão as máquinas de lavar e secar que materiais à nossa volta, é o modo como pen- Teachers College, a escola de educação desta

71 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

universidade, onde tenho uma dupla função: se demitam do seu papel de adultos respon- salas, em brincadeiras dirigidas por elas, sem
no jardim de infância e a dar aulas de mes- sáveis e capazes, estruturando os dias de intenção de introduzir materiais específicos;
trado e doutoramento no programa de Art forma cuidadosa e pensada. Pelo contrário, começo por conversar com os educadores
& Art Education, onde também supervisiono um currículo emergente exige educadores de cada sala para perceber os interesses de
estagiários em salas de arte em vários níveis atentos, responsivos e capazes de ouvir e cada criança e do grupo e deixar que essas
de ensino (desde o jardim de infância até ao mostrar empatia, com uma sabedoria imensa observações inspirem os primeiros materiais
12.o ano) em várias escolas públicas e priva- em termos de materiais, desenvolvimento e a oferecer. Esta atitude continua ao longo
das na cidade de Nova Iorque. O jardim de formas de relacionamento. do ano e os materiais que ofereço são ba-
infância serve famílias afiliadas com a univer- O programa de arte segue o mesmo currícu- seados em condições contextuais, seja inte-
sidade – alunos, funcionários ou professo- lo emergente: em vez de delinear um projeto resses específicos que os alunos expressam
res. Com apenas três salas (bebés, crianças que as crianças têm de seguir, é delas que ou em oportunidades que se apresentam.
dos 1 a 3 anos e dos 4 aos 5), é uma escola vêm as ideias a que respondo (Cabral, 2018). O trabalho que fazemos com materiais
pequena, com um máximo de 40 crianças Muitas vezes trabalho com as crianças em como polpa de papel ou vidro pode servir
dos 0 aos 5 anos. É uma escola baseada pequenos grupos nas salas ou no estúdio. como exemplo deste processo: nenhuma
no brincar com um currículo emergente. Isto Outras vezes trabalho com todo o grupo nas das crianças me pediu especificamente para
significa que a atividade mais importante e a salas. Que nas salas, quer no estúdio, o meu trabalhar com polpa de papel, um material
brincadeira livre: em todas as salas, a maior trabalho começa por oferecer. Apesar de a que não fazia parte dos seus repertórios de
parte do dia é passada em brincadeira lidera- variedade ser imensa, é importante começar conhecimento e com o qual nunca tinham
da pelas crianças na sala, no parque público por limitar a quantidade de materiais dispo- lidado. No entanto, eu ofereci-o. Aprovei-
onde as crianças brincam quase todos os níveis e ajudar as crianças a começarem a tando a visita de uma artista convidada para
dias ou noutros espaços do campus. Isto não conhecer cada material de um modo explo- trabalhar com papel com os meus alunos de
significa, no entanto, que as crianças sejam ratório. No início do ano letivo, começo por mestrado e doutoramento, preparei uma
deixadas ao deus-dará e que os educadores passar tempo a brincar com as crianças nas visita das crianças ao estúdio de escultura

72 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


da universidade, onde teve lugar o workshop gos de mesa, óculos e joalharia partidos e exploração que procuro oferecer às crianças.
para os adultos. Quando ofereci esta ex- muitas, muitas caixas de cartão. As crianças A preocupação com aprendizagens académi-
periência às crianças, foi como um aconte- e eu divertimo-nos a pesquisar e categorizar cas é natural e uma relação franca e aberta
cimento isolado para as crianças mais cres- os diversos objetos que aparecem na caixa com as famílias é fundamental para permitir
cidas (3-5 anos), sem intenção de o trans- das doações, e vários pais reportam que as conversas sobre a importância da brincadei-
formar numa exploração de longo prazo. No crianças se recusam a deitar fora o que an- ra livre, da exploração de materiais e a im-
entanto, quando as crianças demonstraram tes era lixo – agora são materiais para ex- portância de permitir escolhas às crianças e
um interesse prolongado por este material, plorar. “Era um garfo de plástico e agora é respeitar as suas decisões. Outra ocasião em
respondi criando oportunidades para o ex- um material artístico”, diz uma criança para que a participação das famílias é fundamen-
plorarmos continuamente no nosso estúdio, finalizar a conversa quando, em resposta à tal é na nossa exposição anual: uma vez por
e o que fora oferecido isoladamente numa sua pergunta sobre o que era o objeto que ano mostro o trabalho dos meus alunos for-
exploração durou um ano letivo e estendeu- segurava na mão, eu respondi: “É um mate- malmente, numa exposição localizada numa
-se a toda a escola. rial artístico.” galeria do campus universitário ou noutro lo-
A exploração do vidro surgiu como resposta Seja qual for o material ou a idade das crian- cal fora do jardim de infância. É uma ocasião
às perguntas insistentes de algumas crian- ças, a intenção será geralmente a explora- importante e mais uma oportunidade para
ças que queriam saber mais sobre o material ção: é importante que as crianças descu- envolver as famílias no planeamento e par-
depois de visitarem uma exposição onde o bram por si as propriedades e possibilidades ticipação em eventos comunitários.
meu trabalho em vidro estava em exibição. de cada material e que essa descoberta seja Mais do que somente para mostrar os tra-
Quando um menino, depois de muitas expli- livre de pressões para “fazer obras de arte”, balhos das crianças, esta exposição é mais
cações minhas, perguntou impaciente “Sim, seja isto desenhar, construir, pintar objetos uma ocasião de relacionamento, interação,
mas como se sente quando se trabalha com específicos ou fazer “coisas bonitas”. Ao tra- aprendizagem e conectividade (Cabral, 2014).
vidro?”, eu percebi que eram inúteis mais ex- zer tintas ou barro para as salas, não peço É preparada com cuidado e com o trabalho
plicações e propus uma visita ao estúdio de aos meus alunos para “fazer” nada com eles, e a colaboração de crianças e adultos, e ao
vidro onde trabalho e subsequentes explora- mas promovo a interação e a descoberta. À longo de três semanas oferece inúmeras
ções na escola. E lá se juntou mais um ma- medida que as crianças vão explorando tin- oportunidades de vivências comunitárias e
terial à lista dos disponíveis na nossa escola tas, barro, cola ou papel, por exemplo, vão brincadeiras artísticas. As crianças partici-
(Cabral, 2016b). percebendo as diferentes propriedades de pam de muitas formas, desde a escolha dos
O importante nestes materiais não é serem cada material e investigando as possibilida- trabalhos a apresentar, a visitas guiadas ou
sofisticados, invulgares, caros ou extraor- des que cada um oferece. Por exemplo, ao dinamização de atividades para visitantes
dinários. Pelo contrário, como tenho vindo manipular barro livremente, puxando, furan- (Cabral, 2015b). Neste contexto, as crianças
a argumentar em vários contactos, o im- do e esmagando, rolando, e de tantas outras são as especialistas: são os seus trabalhos, as
portante não são os materiais mas o que formas, uma criança pequena pode começar suas explorações, as suas ideias. A exposição
fazemos com eles. Sejam materiais digitais a perceber que o barro mantém a forma que é ocasião para partilhar com famílias e a co-
como realidade aumentada (RA) ou códigos se lhe dá, que a textura muda conforme es- munidade a variedade de explorações em que
QR (QR) ou objetos de todos os dias como teja mais seco ou molhado, ou que tem uma as crianças têm estado envolvidas.
rolhas, partes de puzzles ou bilhetes de me- plasticidade, cor, etc. diferentes da tinta com Cada artista tem trabalhos diferentes, com
tro, o importante é a forma como os explora- a qual interagiu noutras ocasiões (Burton, materiais diferentes, mas exibidos com a mes-
mos e como com eles exploramos e fazemos 2000). ma seriedade e formalidade. Ao participarem
sentido do mundo e de nós mesmos (Cabral Sendo uma escola pequena, tenho o privilé- na seleção dos trabalhos e na montagem da
2018, 2015a). Na verdade, a maior parte dos gio de conhecer todas as cerca de 35 famí- exposição e ao conversarem com outros ar-
materiais que uso no jardim de infância são lias com quem trabalho nesta instituição, e tistas e interagirem com as suas declarações
objetos reaproveitados: pedaços de madeira as conversas que tenho nos corredores, por de artistas, as crianças vão sentindo e cons-
que recolho de lojas de bricolage, pacotes correio eletrónico ou quando me visitam no truindo a exposição como sua. Esta participa-
de chá que corto para colagens, bilhetes de estúdio são importantes na relação de con- ção acontece ao longo de toda a exposição
metro, botões e afins, peças soltas, caixas fiança e abertura que mantemos e que me e especialmente durante a festa comunitária
de ovos, envelopes usados, pedaços de jo- permite mais abertura nas experiências de em que oferecemos atividades para famílias

73 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

escola, e no último quis estudar um programa pensar as nossas escolhas e as escolhas que
específico desenvolvido em algumas esco- oferecemos aos nossos alunos. Só assim,
las secundárias do país – porque “educação oferecendo aos nossos alunos a liberdade e
é educação e educação de infância tem que o apoio de que precisam para serem eles pró-
ser vista em contexto”. A Teresa Vasconcelos prios, podemos fazer o mesmo por nós mes-
recebeu-me quando se mudou para o ME e mas, já que, como nos lembra Maxine Gree-
lhe fui bater à porta do novo gabinete com ne, “só um(a) professor(a) em busca da sua
perguntas, e a investigação que fiz como par- própria liberdade é que pode despertar nos
te da sua equipa mostrou-me que pesquisar é jovens a vontade de procurarem a sua própria
fundamental na minha vida profissional e que liberdade” (Greene, 1988, p. 14).
questionar o mundo é componente essencial
da educação.
A minha orientadora de mestrado, Isabel Lo-
pes da Silva, fê-lo tratando-me como colega,
respeitando as minhas ideias, sempre com REFERÊNCIAS
rigor académico. Não que as minhas ideias Burton, J. M. (2000). The configuration of meaning:
seguramente inocentes e pouco sofisticadas learner-centered art education revisited. Studies in Art
Education, 41(4), 330–345.
e amigos. Sendo estas atividades baseadas fossem algo de novo para ela; mas, dando-me Cabral, M. (no prelo, 2018). Fighting the Mad King: play,
em materiais com os quais as crianças estão espaço para as discutir e pensar, ensinou-me art, and adventure in an early childhood art studio. In
familiarizadas, são elas quem orienta as visitas que mais do que “ensinar conceitos” o meu C. M. Schulte & C. M. Thompson (Eds.), Communities
– adultos e crianças – na exploração. trabalho é ajudar a descobri-los – às vezes of practice: Art, play, and aesthetics in early childhood.
Num contexto de aniversário e celebração da em conversa, às vezes com materiais, às vezes New York: Springer.
Cabral, M. (no prelo, 2018). Stories, stuff, and what we
APEI e dos profissionais de educação de in- apenas saindo do caminho e dando aos meus do with them. In J. Lampert & F. Duzzo (Ed.), Conversas
fância que são os seus associados e amigos, alunos espaço para o construir. O seu apoio Pictóricas. Florianópolis: Editora Udesc.
resta-me agradecer e reconhecer as educado- tem sido fundamental ao longo dos anos e Cabral, M. (2016a). Coisas partidas podem ser bonitas.
ras que, ao longo dos anos, me têm ajudado trabalhar com ela marcou definitivamente a Crianças pequenas exploram e brincam com a arte. Lis-
a fazer o meu caminho, andaimando (Vascon- minha vida profissional. boa: APEI Associaçāo dos Profissionais de Educaçāo de
Infância.
celos, 1997) as minhas descobertas e escolhas As minhas orientadoras de doutoramento, Cabral, M. (2016b). Art makes us happy. Young children
tal como eu tento fazer para as crianças e Olga Hubard e Susan Recchia, foram fun- explore materials and ideas. Brooklyn, NY: PaperStar.
adultos com quem trabalho. Por me ajudarem damentais na forma como guiaram a minha Cabral, M. (2015a). Story, not Gadget. Digital Media as
a construir as minhas ideias deixando-me ter investigação junto com a minha prática edu- Art Materials and Curatorial Tools in Early Childhood Art
as minhas próprias ideias, perseguir os meus cativa e o meu trabalho no estúdio. No jardim Education. International Journal for Infonomics (IJI),
8(4), 1084-1090.
interesses de forma guiada mas não contro- de infância que dirige e onde eu trabalho, a Cabral, M. (2015b). Artists, curators, and museum educa-
lada. Todas elas trabalharam no terreno, em Susan foi fundamental ao dar-me o espaço, tors: children as part of an artmaker’ community. Pre-
salas de jardim de infância e/ou universidades, apoio e desafios necessários para me ajudar a sented at the END International Conference on Educa-
e me ensinaram que práticas educativas de aprender o que um currículo emergente pode tion and New Developments, Porto, Portugal.
qualidade como as suas são independentes significar, e que play-based é muito mais do Cabral, M. (2014). “We are those artist people!” Connec-
tivity and Artistic Explorations in Early Childhood Educa-
de graus de ensino e reconhecíveis em qual- que “brincadeira livre em 30 dos 480 minutos tion. In E. Lanphar & P. Fitzsimmons (Eds.), Connectivity
quer circunstância. do dia de escola”. across Borders, Boundaries and Bodies: International
Na Escola Superior de Educação de Lisboa, as Estas vidas profissionais são vidas de edu- and Interdisciplinary perspectives (pp. 43–49). Oxford-
professoras Teresa Vasconcelos e Conceição cadoras como nós, independentemente do shire, UK: Inter-Disciplinary Press.
Moita fizeram-no ao mostrar-me diferentes contexto ou grau de ensino. São vidas profis- Ellsworth, E. A. (2005). Places of learning : media, archi-
tecture, pedagogy. New York: RoutledgeFalmer.
perspetivas em educação de infância, ao dizer sionais que ensinam e educam e cabem num Greene, M. (1988). The dialectic of freedom. New York:
“sim” quando no meu primeiro ano de bacha- artigo do mesmo modo que uma qualquer Teachers College Press.
relato quis explorar um modelo pedagógico teoria pedagógica lá tem lugar – porque, de Vasconcelos, T. (1997). Ao Redor da Mesa Grande. A
que não estava “na lista” dos estudados na um modo ou de outro, nos inspiram e fazem prática Educativa de Ana. Porto: Porto Editora.

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: PRÁTICAS
Uma casa para todos
Cláudia Peças, Fátima Aresta e Jéssica Carreiro

Introdução
No âmbito do Dia Mundial da Erradicação
da Pobreza, as crianças da sala 1 de jardim
de infância do Centro de Actividade Infantil
de Évora (CAIE), maioritariamente de 4 anos,
inquietaram-se ao descobrirem a carência de
materiais e alimentos em algumas famílias,
destacando-se a preocupação por nem todas
as pessoas terem a possibilidade de morar
numa casa. Em conversa de grande grupo
discutiram-se ideias para habitações de cons-
trução económica. A estagiária da Universida-
de de Évora (UE) recordou um muro em terra
(taipa) visto numa exposição de arte e o grupo
concordou que poderia ser um tipo de cons-
trução a utilizar para que pudesse haver “uma
casa para todos”. Surgiu assim o projeto que
iremos relatar e que visou investigar, planear
e experimentar formas de habitação susten-
táveis, tendo por base o recurso a matérias-
-primas naturais utilizando a técnica da taipa.
Para além da relevância pedagógica e das
aprendizagens que o trabalho de projeto uma
vez mais trouxe ao grupo, não podemos dei- grande implicação de todos os participantes, mais-valia para o desenvolvimento intelec-
xar de evidenciar a valorização e a mais-valia envolvendo trabalho de pesquisa no terreno, tual das crianças no sentido em que “poderá
do trabalho de equipa, desenvolvido neste tempos de planificação e intervenção com a criar ambientes propícios à iniciação do pen-
caso específico, entre a aluna estagiária do finalidade de responder aos problemas en- samento científico e à linguagem específica
mestrado em Educação Pré-escolar da UE, a contrados” (Leite, Malpique e Santos, citados [das diferentes áreas do conhecimento], mas
educadora e auxiliar da sala e a coordenadora por Vasconcelos et al., 2012, p. 10)2 que irá fa- também contribuir para o desenvolvimento
pedagógica do CAIE. Num clima de entreaju- vorecer o esclarecimento de dúvidas e curiosi- da linguagem, numa perspetiva de literacia
da e cooperação, tendo por base este projeto dades iniciais e/ou novas que surjam em todo linguística” (Ramos & Valente, 2011, p. 17)3, o
apresentámos uma candidatura ao Concurso o processo de trabalho. que as levará a estarem mais despertas para
“Ciência na Escola”1, posteriormente premiada A resolução de problemas é constante, uma “tarefas de observação e investigação de fac-
na fase de concurso de ideias com o Prémio vez que são percorridos diversos caminhos tos retirados da sua experiência do quotidia-
de Desenvolvimento. partindo das hipóteses lançadas, que levam no e do seu meio ambiente” (Katz & Chard,
a criança a refletir até se chegar a uma so- 2009, p. 3)4.
O trabalho por projetos lução final. No caso específico deste projeto É também determinante o papel que o edu-
O trabalho por projetos é visto como uma me- consideramos ainda fundamental o facto de cador assume em todo o processo desta
todologia que permite que as crianças desen- ajudar as crianças a encontrar um sentido metodologia. Como refere o Perfil Específico
volvam temáticas do seu interesse, centradas para o mundo que as rodeia, tendo por base do Desempenho Profissional do Educador de
num objetivo que elas mesmas pretendam a sustentabilidade. 3 Ramos, M. M. S. & Valente, A. C. (2011). Iniciação à
alcançar e aprofundar. Uma vez assumida A metodologia de trabalho por projeto é uma Ciência através da Metodologia de Trabalho de Pro-
em grupo, esta metodologia “pressupõe uma jecto – Um contexto privilegiado para o desenvolvi-
2 Vasconcelos, T., Rocha, C., Loureiro, C., Castro, J. d., mento da linguagem no pré-escolar. Da Investigação
1 14.ª edição do Concurso “Ciência na Escola” subor- Menau, J., Sousa, O., et al. (2012). Trabalho por Proje- às Práticas, I (2), 2-16.
dinado ao tema “Ciência e Tecnologia ao Serviço de tos na Educação de Infância: Mapear Aprendizagens 4 Katz. L & Chard S. (2009). A Abordagem por Projetos
um Mundo Melhor”, promovido pela Fundação Ilídio Integrar Metodologias. Lisboa: Ministério da Educa- na Educação de Infância.(2ª ed.). Lisboa: Fundação
Pinho. ção. Calouste Gulbenkian.

75 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

Infância (2001)5 é fundamental que “o edu- é dado às crianças para fazerem as suas pró- várias crianças descreveram, com entusiasmo
cador de infância mobilize o conhecimento prias escolhas de forma ponderada e para ex- e sensibilidade, situações que já tinham ob-
e as competências necessárias ao desenvol- perimentarem sentindo sempre que têm um servado e o que já sabiam acerca da pobreza.
vimento de um currículo integrado, no âm- papel preponderante e ativo ao longo de todo Grande parte do grupo demonstrou muito in-
bito da expressão e da comunicação e do o projeto. teresse pelo assunto, pois as perguntas que
conhecimento do mundo” e é neste sentido faziam eram muitas, dando origem a uma sé-
que consideramos que o diálogo ganha uma Definição do problema rie de atividades como pesquisas em livros e
importância significativa enquanto ferramen- Como já referimos, a situação que desenca- na internet, visitas a instituições que apoiam
ta de trabalho por incentivar as crianças a ex- deou o projeto foi a Comemoração do Dia da pessoas carenciadas e sobretudo originando
primir e expor as suas ideias, alavancando a Erradicação da Pobreza, em que em grande o projeto “Uma casa para todos”, no qual o
interação com o educador e com os colegas. grupo as crianças foram questionadas sobre grupo decidiu fazer a maquete de uma casa
Desta interação diária decorre que o currículo o que sabiam sobre a pobreza, o que originou sustentável.
seja trabalhado de forma transversal, pois um um diálogo interessante registado nas notas
assunto abordado em determinada conver- de campo da estagiária: Planeamento e lançamento do trabalho
sa, nas partilhas de vivências e curiosidades “É não ter comida” (Rita, 4:3). O projeto da construção de uma casa de ter-
que são suscitadas no diálogo, pode originar “Também é não ter roupa e andarem descal- ra surgiu, como referimos, pela curiosidade/
um maior interesse por aprender sobre um ças” (Margarida, 4:5). questionamento que algumas crianças de-
determinado assunto. Nesse interesse está “As pessoas pobres vão à rua nuas?” (Miguel, monstraram durante a visualização de ima-
subjacente a provocação através do questio- 4:6). gens reais em torno da pobreza no mundo,
namento, as possibilidades que existem para “O Luís (um mendigo de Évora) vive na rua” constatando que havia pessoas que viviam na
se estabelecer uma negociação, o espaço que (Maria Inês, 4:7) rua ou em condições precárias. O interesse
5 Diário da República (2001). Decreto-lei n.º 241/2001, (Nota de campo de dia 11 de Outubro de foi ainda mais visível durante a visita à Asso-
de 30 de Agosto: Perfil específico de desempenho 2016) ciação Pão e Paz, quando algumas crianças
profissional do educador de infância. Na sequência destes e outros comentários, interpelavam o ambiente do espaço questio-

76 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


nando-se acerca das muitas cadeiras e mesas do projeto: planear, formar pequenos grupos, escultor António Bolota, exibida no Fórum Eu-
existentes. Na sequência dessa observação, a distribuir tarefas, executar trabalho e, por fim, génio de Almeida, onde uma das obras era um
diretora da associação sentiu a necessidade divulgar/comunicar o trabalho feito. muro construído com terra através da técnica
de explicar que o espaço estava assim orga- de taipa, tornando-se uma das propostas ini-
nizado para receber as pessoas com menos Execução ciais para a construção da nossa casa.
possibilidades financeiras e ser possível ofere- Nesta fase do projeto o envolvimento das No sentido de aprofundar o conhecimento
cer-lhes uma refeição, sendo que algumas das crianças foi notório e desenvolveram-se as sobre a construção de casas, inicialmente rea-
pessoas que frequentam a associação não propostas planeadas e outras que foram lizámos um passeio pelas ruas de Évora para
têm casa e outras apenas levam uma refeição surgindo do constante processo de reflexão/ observar as casas. As crianças observaram e
para a sua casa. Tal situação desencadeou o avaliação inerente a todo o projeto. registaram como são constituídas as casas.
seguinte pensamento da Margarida (4:5) par- Quando o grupo estava na fase de pesquisa Destacou-se a curiosidade de visualizar de
tilhado pela sua mãe no dia seguinte: das imagens sobre a pobreza no mundo e ti- perto as casas mais degradadas, existindo o
“Mãe, os pobres que têm casa levam a comi- nha sido salientado o desejo de se construir interesse em tocar nas paredes e nos peque-
da para comer na sua casa e os que não têm uma casa, falámos da exposição Cume6, do nos grãos de areia que se faziam notar com o
comida comem lá naquela casa. Por que é que desgaste da tinta.
6 A exposição Cume, concebida especificamente para
os que têm casa não levam os outros pobres o Fórum, justapõe a escultura contemporânea com as No final do passeio sentámo-nos em frente
para a casa deles?” tradições locais. Uma obra que reflete sobre o saber ao Teatro Garcia de Resende e cada criança
(Nota de campo de 17 de Novembro de 2016) artesanal e sobre a perda das tradições, ao mesmo registou em desenho o que conseguiu vi-
tempo que incita a um processo de reflexão e trabalho
Em grande grupo relembrámos a visita à asso- comunitário em torno destas mesmas questões. Uma sualizar durante o passeio. Esta atividade
ciação. As crianças realçaram diversos aspe- escultura monumental que reinterpreta uma tradição permitiu-nos analisar a noção espacial das
tos que observaram com muito entusiasmo e secular e a transporta para os nossos dias, criando crianças e o que mais as marcou, o que nos
uma ponte entre o passado e o presente, entre o tra-
alguma sensibilização, levando-nos a avançar dicional e o contemporâneo, e mostrando esta cidade- ajudou a perceber quais as suas concepções e
com este novo projeto. Assim registámos -património como um lugar vivo e em transformação. aprendizagens sobre o tema.
numa tabela aquilo que seria o planeamento (http://www.fundacaoeugeniodealmeida.pt/forum/ Uma ideia prevaleceu: as casas podem ser fei-
antonio-bolota-cume/4210.htm em 24/08/2017)

77 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

tas de terra e esse é um material económico uma casa com telhado e chaminé. No entan- Aparafusar tábuas à base: foi o momento em
que pode ser utilizado em qualquer parte e to, houve uma criança que desenhou uma que a maquete começou a tomar forma e por
por qualquer pessoa. casa de terra, com algumas das etapas da isso suscitou interesse no grupo. Contámos as
Antes de iniciarmos a construção da ma- construção visualizadas no vídeo. Depois de tábuas, classificámo-las por tamanhos e for-
quete da “casa para todos” tivemos ainda a mais uma conversa em grupo foi reafirmada a mas, contámos os parafusos e tivemos que
oportunidade de realizar uma série de ativi- intenção do grupo de construir uma maquete trabalhar cooperativamente (uns seguravam
dades, resultantes de propostas emergentes com a técnica de taipa e decidimos partir para tábuas, outros parafusos, outros aparafu-
e que iriam contribuir para o conhecimento a sua construção. savam). Nesta atividade houve uma grande
das crianças. Por exemplo, a modelagem em Com a ajuda do Pai Tiago, serrámos algumas participação das crianças que geralmente são
terracota (representações tridimensionais de tábuas com uma serra manual, pois pareceu- menos participativas. Pensamos que tal se
casas, exploração que permitiu trabalhar con- -nos fundamental que as crianças pudessem deveu à utilização de um recurso tecnológico
ceitos como a “proporção”, “tridimensional”, observar como se processa o corte da ma- (aparafusadora elétrica).
“horizontal”, “vertical”. deira. Contudo, devido à rigidez das tábuas, Encher, calcar e alisar o solo: esta foi mais
Outra proposta relevante foi a exploração de tornou-se difícil serrá-las, o que nos levou a uma atividade muito participada e em que
medidas convencionais e não convencionais. recorrer ao uso da serra elétrica, no local de o grupo manifestou muito interesse. Houve
Exploraram alguns instrumentos de medida trabalho do Pai Tiago. então a necessidade de dividir o grupo por
com o objetivo de compreenderem que a Esta atividade, que surge após a exploração diferentes tarefas: enquanto dois aplicavam
construção de uma casa implica alguns proce- prévia dos instrumentos de medição, permi- terra nas tábuas, outros quatro calcavam e
dimentos de medição. tiu às crianças aprofundarem o seu conheci- alisavam o solo. Quando se desinteressavam
Assim, seria menos abstrato entender qual o mento sobre quais os instrumentos próprios (era um pouco cansativo calcar com o pau de
tamanho dos materiais a que iríamos recorrer. para medir, como a fita métrica, constatarem madeira ao fim de um tempo), outras crian-
No seguimento desta exploração realizámos diferentes tamanhos em materiais concretos ças aproximavam-se, distribuindo-se assim as
ainda uma visita à Casa da Balança, o museu (maior do que, igual, menor do que) e asso- tarefas. Quando estavam cansados de calcar
de metrologia de Évora. ciarem a tarefa de medição às profissões que entravam em negociação com os colegas para
Através do acesso à internet e utilizando o existem na área da construção (arquitetos, trocarem de tarefas. Preencheram três cama-
computador, visualizámos imagens de maque- engenheiros, pedreiros). das com terra em três dias diferentes. Duran-
tes como uma possibilidade de construirmos a Já tínhamos os materiais preparados, mas te este processo, os diálogos foram muito
casinha usando como suporte uma base de precisávamos da opinião e conselho de um ricos (diferenças entre terra e cal; composição
madeira. Esta atividade originou conversas especialista. Por que não António Bolota? Pes- do solo; o que é a taipa, entre outros).
sobre as profissões de arquiteto e engenhei- quisámos o contacto do arquiteto/escultor, Elaboração do telhado e do chão: quando da
ro civil, que constroem maquetes muito se- enviámos-lhe um convite e, confessamos que visita do escultor António Bolota esclarece-
melhantes à construção real. No seguimento inesperadamente, recebemos uma resposta mos que ainda não sabíamos bem que ma-
visualizámos um vídeo sobre a construção de afirmativa. A visita de António Bolota para terial iríamos utilizar para forrar o telhado e
uma casa de terra. Foram observadas etapas conversar com o grupo acerca do seu traba- ele sugeriu-nos que seria boa opção fazê-lo
semelhantes às da técnica de taipa, mos- lho, das suas obras – em particular o muro da em barro. A sua construção implicou quatro
trando como o homem, de uma forma mais exposição “Cume” feito com a técnica de taipa etapas: colar e pressionar as várias tiras de
primitiva, recolhia terra para a construção de – enriqueceu o projeto na medida em que nos madeira que iriam sustentar o telhado, alisar
habitações. Nesta fase introduzimos a pala- deu dicas essenciais para sabermos se estáva- com o rolo a pasta de terracota (barro), cobrir
vra “sustentável”, que passámos a referir para mos a caminhar na direção certa. Com a sua o papelão com terracota espalhando-a com as
acrescentar mais reportório lexical e fazer a ajuda, aprofundámos o conceito de uma casa mãos e, por fim, marcar as formas das telhas.
ponte de ligação ao tipo de casa que iríamos sustentável para que as crianças percebessem Durante a construção do telhado, fomos con-
construir: uma casa sustentável. melhor o seu significado e a sua relevância tactados telefonicamente por António Bolota
Uma vez já explorada a constituição e cons- nos dias de hoje e no futuro da humanidade. com interesse em saber como estava a decor-
trução de casas, as crianças, através do de- Depois desta importante visita foi tempo de rer a construção da casa e este sugeriu-nos
senho, realizaram o seu projeto de casa. No- construir a maquete tendo como referência a cobrir o chão do interior da casa com terra e
támos que representaram maioritariamente construção em taipa: calcá-lo também. Partilhou que antigamente

78 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


as pessoas enchiam o chão da casa com terra
e para calcá-la dançavam em cima, aliando o
trabalho à diversão. Como se tratava de uma
maquete, as crianças calcaram o chão com as
mãos, finalizando assim a construção da casa.

Divulgação
Em grande grupo decidimos que a nossa ma-
quete seria mostrada às crianças das outras
salas de jardim de infância e ficaria exposta
para que a comunidade em geral a pudesse
ver e perceber o que se pretendia com este
projeto. Tivemos ainda a oportunidade de
apresentar este projeto no Conselho Eco-es-
colas e escrever uma carta ao presidente da
Associação de Juntas de Freguesia do Centro
Histórico de Évora a divulgar o projeto e a
pedir a sua colaboração/parceria para cons-
truir esta casa na nossa horta do centro his-
tórico, para que toda a população pudesse
ter acesso a um exemplo de casa sustentável
e acessível a todos. Enquanto isso não acon- aprender: “(…) a curiosidade é fomentada e interdependência entre as pessoas e entre
tece a nossa maquete encontra-se exposta alargada na educação pré-escolar através de estas e o ambiente.  Assim, vão compreen-
na horta7, testando a resistência deste tipo oportunidades para aprofundar, relacionar e dendo a sua posição e papel no mundo e
de construção e estando disponível para a comunicar o que já conhece, bem como pelo como as suas ações podem provocar mu-
comunidade em geral. contacto com novas situações que suscitam danças neste. Uma abordagem, contextua-
a sua curiosidade e o interesse por explorar, lizada e desafiadora ao conhecimento do
questionar descobrir e compreender. A crian- mundo vai facilitar o desenvolvimento de
Relevância cientifico-pedagógica ça deve ser encorajada a construir as suas atitudes que promovem a responsabilidade
do projeto teorias e conhecimento acerca do mundo que partilhada e a  consciência ambiental  e de
Consideramos que, partindo do questiona- a rodeia.” sustentabilidade.”
mento sobre um problema social, foram abor- Ao explorarmos a temática da sustentabili- Durante as saídas realizadas e ao longo da
dados conteúdos relevantes do ponto de vista dade (económica, cultural/social e ambien- construção da maquete, foi sempre uma
científico-pedagógico. Para esta reflexão/ava- tal), este projeto tornou-se relevante ao nível questão central a influência do homem na
liação foi essencial basearmos a nossa análise da formação cívica, pois tem na sua génese paisagem de que forma as suas atitudes e
no documento que orienta a ação educativa valores como a educação para a igualdade, comportamentos influenciam o ambiente:
no pré-escolar, as Orientações Curriculares a solidariedade e a interdependência entre “Promovem-se assim valores, atitudes e com-
para a Educação Pré-Escolar8, nomeadamen- pessoas e estas e o meio ambiente: “A abor- portamentos face ao ambiente que condu-
te no que diz respeito à área do conhecimento dagem ao conhecimento do mundo implica zem ao exercício de uma cidadania consciente
do mundo. Assim, consideramos relevante: também o desenvolvimento de atitudes po- face aos efeitos da atividade humana sobre
A forma como estimulámos a curiosidade, o sitivas na relação com os outros, nos cuida- o património natural, cultural e paisagístico.”
interesse por explorar questionar descobrir e dos consigo próprio, e a criação de hábitos Diversificámos as fontes de informação e
de respeito pelo ambiente e pela cultura, pesquisa, facilitando o contacto com tecno-
7 A horta do CAIE situa-se num espaço cedido pela
autarquia no centro histórico de Évora. É um espaço evidenciando-se assim a sua inter-relação logias de informação e comunicação diversi-
visitado por outros jardins de infância e escolas bem com a área de formação pessoal e social. (...) ficadas (computador, vídeo, fotografia): “De
como pela comunidade em geral e turistas. Nestas suas explorações, vão percebendo a facto, hoje em dia, as crianças contactam
8 http://www.dge.mec.pt/ocepe/

79 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: PRÁTICAS

com instrumentos e técnicas complexos e


têm acesso, através dos media e das tec-
nologias digitais, a saberes sobre realidades
mais distantes, que também fazem parte do
seu mundo, e, de que, gradualmente, se vão
apercebendo e apropriando (…).”
Foram introduzidos alguns conceitos e intro-
duzido novo vocabulário, tendo em conta que
consideramos que o rigor tanto dos processos
como dos conceitos é basilar para a estrutu-
ração do pensamento científico: “Sendo a fi-
nalidade essencial da área do conhecimento
do mundo lançar as bases da estruturação do
pensamento científico, que será posterior-
mente mais aprofundado e alargado, importa
que haja sempre uma preocupação de rigor,
quer ao nível dos processos desenvolvidos,
quer dos conceitos apresentados, quaisquer
que sejam os aspetos abordados e o seu nível
de aprofundamento.”
Tivemos sempre a preocupação de lançar
as bases da estruturação do pensamento
científico, também através de uma atitude
de pesquisa, observação, experimentação
curiosidade em descobrir, numa perspetiva
crítica e partilha de conhecimento:
- Partimos dos interesses e curiosidades das
crianças, bem como dos seus conhecimen-
tos prévios: “A introdução à metodologia
própria das ciências parte dos interesses
das crianças e dos seus saberes, que o/a
educador/a alarga e contextualiza, fomen-
tando a curiosidade e o desejo de saber
mais. Interrogar-se sobre a realidade, defi-
nir o problema, para decidir o que se quer
saber e procurar a solução, constitui a base
da metodologia científica.”

- Potenciámos o diálogo e a discussão em


grupo de forma a saber o que sabiam as
crianças sobre a pobreza e sobre formas
de construção sustentável: “(…) a partir de
uma situação ou problema, as crianças te-
rão oportunidade de propor explicações, de
desenvolver conjeturas e de confrontar en-
tre si as suas “teorias” e perspetivas sobre

80 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


a realidade. A partir de uma melhor defini- cialização para as consequências das ações da nossa existência lutado com dificuldades
ção do problema, decide-se se é necessário humanas sobre o território.” estruturais ao nível das instalações e uma
verificar esses conhecimentos e/ou reco- situação financeira frágil. A emergência da
lher mais informações e como o fazer.” - Facultámos às crianças informação acerca educação para o desenvolvimento susten-
da paisagem utilizando diferentes recur- tável nas suas diferentes vertentes (cultural
- Registámos fotograficamente, por desenho sos. Por exemplo, no passeio pelas ruas da e social, ambiental e económica) foi-se tor-
e por escrito as várias fases do projeto, bem cidade utilizámos mapas da cidade. Para nando uma força motriz da ação educativa,
como a planificação que se ia fazendo com falarmos de diferentes tipos de habitação, sendo neste momento fundamental para o
as crianças sobre o trabalho a desenvolver. utilizámos fotografias em livros. Para visua- desenvolvimento curricular do CAIE. Por isso,
Realizámos medições, classificámos e seriá- lizarmos formas de construção sustentável projetos como este que acabámos de des-
mos: “A organização destes dados implica a visualizámos um vídeo. “A leitura da paisa- crever são evidências da nossa identidade
necessidade de usar formas de registo que gem pode ocorrer de forma direta através curricular9.
permitam classificá-los e ordená-los e, even- da observação do local onde vivem ou de A resolução de um problema identificado
tualmente, quantifica-los, através de dese- um que visitaram, ou de forma indireta a partir da comemoração de uma efeméri-
nhos, gráficos, medições, etc.” recorrendo a imagens, fotografias, vídeos, de (Dia Mundial da Erradicação da Pobreza)
mapas, etc.” contribuiu para a educação para o desenvol-
- A avaliação sistemática feita com as crian- vimento sustentável não só na sua dimensão
ças permitiu sistematizar informação e - O computador foi utilizado como um re- económica mas também, de forma muito
simultaneamente ajudou o educador a curso ao longo do desenvolvimento do vincada, para a sustentabilidade social e cul-
perceber que aprendizagens estava o gru- projeto, nomeadamente para pesquisas, tural, uma vez que as crianças pensaram e
po perto de realizar, podendo desta forma exploração de formas geométricas, para agiram tendo em conta a construção de um
planear a sua ação educativa: “A sistemati- registo escritos de algumas das fases, entre mundo melhor.
zação do conhecimento obtido pode tam- outras situações: “O acesso ao computa- Num trabalho de constante colaboração e
bém exigir a consulta de mais informação, dor no jardim-de-infância, ou noutro local cooperação entre crianças, adultos (equipa
de modo a enquadrá-lo e a precisar concei- da comunidade, é um meio privilegiado na educativa e convidados) foi possível educar
tos mais rigorosos e científicos que tiveram recolha de informação, na comunicação, para o desenvolvimento sustentável, valo-
como base a partilha e o questionamento na organização, no tratamento de dados, rizando simultaneamente a aprendizagem
das explicações das crianças.” etc. Assim, possibilita aprendizagens, não pela ação, o conhecimento científico e a for-
- Os passeios pelas ruas da cidade, a ida à só no âmbito do conhecimento do mundo, mação de cidadãos ativos e interventivos na
Casa da Balança, a visita do escultor/ar- como também nas linguagens artísticas, sociedade.
quiteto António Bolota, a visualização de na linguagem escrita, na matemática, etc.
vídeos e a pesquisa em livros e no com- (...) A compreensão dos meios tecnológi-
putador, permitiu às crianças conhecerem cos implica que a criança não seja apenas 9 Desde 2012, no âmbito de uma parceria com a Univer-
melhor o mundo que os rodeia: “O conhe- consumidora (consultar, ver filmes, etc.), sidade de Évora que integramos o Projeto “Construir
cimento das crianças sobre a paisagem mas também produtora (fotografar, regis- a Sustentabilidade a partir da Infância, projeto inte-
grado num projeto internacional Educação e Desen-
local, ou seja, o reconhecimento dos seus tar, etc.), alargando, deste modo, os seus volvimento Sustentável na Infância (EDSI). O projeto
elementos sociais, culturais e naturais e a conhecimentos e perspetivas sobre a rea- EDSI é coordenado por John Siraj-Blatchford e Ingrid
interação entre eles, contribui para melho- lidade.”  Pramling Samuelsson, da Universidade de Gotembur-
go e presidente da Organização Mundial de Educação
rar a ligação afetiva e pessoal com esta, Pré-escolar (OMEP), é coordenado em Portugal por
alicerçando a identidade local e o sentido Em jeito de conclusão Assunção Folque e tem a participação de diversos paí-
de pertença a um lugar. Esta atitude de No CAIE, há alguns anos que temos vindo ses parceiros: Brasil, Turquia, Suécia, Noruega, Reino
Unido, Coreia, Quénia, Austrália, China.
pertença positiva para com o lugar onde a tomar consciência da relevância que a
se vive é desenvolvida, em paralelo, com educação de infância pode e deve ter em
um maior sentido de responsabilidade para relação ao desenvolvimento sustentável. Tal
salvaguardar os valores locais (naturais, deve-se ao facto de sermos uma eco-escola,
sociais, históricos …) e com uma conscien- mas também ao facto de termos ao longo

81 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Construir a sustentabilidade a partir da infância
Maria Assunção Folque . Universidade de Évora. Fátima Aresta . Centro de Actividade Infantil de Évora. Isabel Melo .
Agrupamento de Escolas Manuel Ferreira Patrício.

Introdução suas necessidades”(ONU, 1987). Resultados de pesquisas demonstram que


O desenvolvimento sustentável está hoje na Neste artigo apresentamos o trabalho que intervenções precoces para crianças peque-
ordem do dia e reúne vastos consensos em está a ser desenvolvido desde 2012 e em nas são essenciais não apenas para o seu
torno de o tornar uma prioridade para a ação Portugal, no projeto Construir a Susten- próprio bem-estar, como também apresen-
humana do século XXI. Em janeiro de 2016, tabilidade a Partir da Infância, um projeto tam efeitos sustentáveis a longo prazo so-
as Nações Unidas acordaram em conjugar que nasceu no seio de um projeto da Or- bre o desenvolvimento de capital humano, a
esforços e trabalhar de forma concertada ganização Mundial da Educação Pré-Escolar coesão social e o sucesso económico (UNES-
com vista a alcançar, no ano de 2030, os de- (OMEP) e que a nível nacional, envolve a par- CO, 2016, p. 49).
zassete Objetivos de Desenvolvimento Sus- ceria entre a Universidade de Évora, o Centro Sendo ainda as crianças os cidadãos mais
tentável (ODS) e assim: reduzir as desigual- de Atividade Infantil de Évora (CAIE), A Esco- novos, são estes que durante mais tempo
dades, erradicar a extrema pobreza, acabar la Básica Manuel Ferreira Patrício (EBMFP) e poderão participar e influenciar o futuro.
com a fome, melhorar as provisões de saúde o Centro Infantil Irene Lisboa (CIIL). Assim são as crianças que melhor garantem
e educação, alcançar a igualdade de género, À educação cabe um papel inestimável na a sustentação no tempo de práticas susten-
proteger o meio ambiente e promover a paz, persecução dos ODS. Para criar um mundo táveis, num constante exercício de cidadania
a justiça e a prosperidade (figura 1). mais justo, pacífico e sustentável os indi- que se quer global.
Os sinais de urgência são muitos. Recente- víduos e as sociedades devem estar equi- Outra razão para direcionar a EDS para a
mente em Portugal fomos todos confronta- pados e capacitados pelo conhecimento, infância é porque sabemos que as crianças
dos pelos desequilíbrios sociais e ambientais, competências, atitudes e valores, bem como são dos grupos sociais mais afetados pelos
quando observámos os níveis de pobreza a ter uma maior consciência sobre como con- desequilíbrios sociais, económicos e am-
aumentar, a fome voltar a afetar as famílias duzir tal mudança (UNESCO, 2014). É com bientais. As crianças são, por exemplo, mais
mais vulneráveis, os serviços de saúde falha- esta consciência que a UNESCO publicou vulneráveis ​​ao impacto de condições nocivas
rem na garantia de bem-estar a todos e, com em 2016 o relatório “Repensar a Educação: e representam 66% das vítimas de doenças
os incêndios do verão de 2017, tornou-se rumo a um bem comum mundial?” no qual induzidas pelo meio ambiente (UNEP, 2014).
uma evidência a necessidade de olharmos redireciona a educação e identifica, logo no Intervir na infância torna-se assim prioritário.
para o nosso ambiente, para as alterações seu primeiro capítulo, o desenvolvimento O quarto dos ODS compromete-nos a traba-
climáticas e para as mudanças necessá- sustentável como uma preocupação central lhar para - Assegurar a educação inclusiva,
rias no ordenamento do nosso território. (UNESCO, 2016). equitativa e de qualidade e ainda promover
A consciência da nossa interdependência Por sua vez, a educação de infância (EI) tem oportunidades de aprendizagem ao longo da
requer que adotemos uma visão sistémica um papel central quer nos ODS quer no re- vida para todos, estabelecendo que até 2030
para abordar os nossos problemas comuns e latório da UNESCO. Tal tem diversas ordens todos os Estados membros devem:
que nos envolvamos na construção de uma de razão. A primeira é porque há evidência - Assegurar-se de que todas as rapari-
cidadania global para “satisfazer as necessi- de que investir (prestar atenção e agir) na gas e os rapazes tenham acesso a um de-
dades do presente sem comprometer a ca- infância é o maior garante de resultados so- senvolvimento, educação e educação de
pacidade das gerações futuras de atender às ciais e económicos: infância de qualidade para que estejam

Figura 1. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

82 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


prontos para o ensino básico e garantir que
todos os alunos adquiram os conhecimentos
e as capacidades necessárias para promover
o desenvolvimento sustentável, incluindo,
entre outros, através da educação para o de-
senvolvimento sustentável e estilos de vida
sustentáveis, direitos humanos, igualdade de
género, promoção de uma cultura de paz e
não violência, cidadania global e apreciação
da diversidade cultural e do contributo da
cultura para o desenvolvimento sustentável.
Por último, a educação de infância é cha-
mada a assumir um papel na construção da
sustentabilidade promovendo a participação
das crianças neste desígnio glocal. A concre-
tização dos ODS dependerá não apenas do
compromisso dos governos, mas também do
envolvimento dos cidadãos. As crianças e os
jovens são centrais neste apelo global de par-
ticipação e a escola é essencial para dar a co-
nhecer a nova agenda global, inspirar e incen-
tivar as pessoas a participarem no desenvolvi-
mento das comunidades. A participação das
crianças torna-se assim um valor inestimável Figura 2. Projetos da OMEP sobre EDS
para alcançar os ODS. Tudo isto constitui um
desafio para a educação de infância no senti-
do de repensar algumas das suas práticas ain- nentes. Estes projetos (figura 2) procuraram autorregulação de práticas de Educação para
da não alinhadas com a visão da criança como aumentar a consciencialização da Educação o Desenvolvimento Sustentável por parte
cidadã. Isto implica pensarmos na EI em como para o Desenvolvimento Sustentável dos dos profissionais de educação de infância
é que as crianças participam neste processo membros da OMEP, das crianças e da edu- — Education for Sustainable Development
e apoiá-las a “desenvolver um efetivo sentido cação de infância em geral. A OMEP baseia Ratting Scale (ERS-SDEC). Participaram neste
de participação numa comunidade habilitado- a sua intervenção na escuta das crianças – o projeto colegas de diversos países dos cinco
ra” (Bruner, 1996, p.109). que sentem, o que pensam e como com- continentes: Austrália, Chile, China, Etiópia,
Temos aqui um esboço de currículo para a preendem os fenómenos da vida, promo- Quénia, Portugal, África do Sul, Noruega,
EDS na infância, que continuarei a desenvol- vendo a sua participação na construção de Suécia, Turquia, Reino Unido, Coreia do Sul,
ver ao longo deste artigo. um mundo melhor, encorajando projetos em Estados Unidos. O trabalho desenvolvido
jardins de infância e escolas que implemen- por investigadores, profissionais e crianças
A Organização Mundial para a tam a EDS. de diferentes realidades sociais, culturais,
Educação Pré-escolar e a educação económicas e ambientais foi recentemente
para o desenvolvimento sustentável na O Projeto Education for Sustainable De- publicado no livro International Research on
educação de infância velopment Ratting Scale Education for Sustainable Development in
A Organização Mundial de Educação Pré- No início de 2012 recebemos um convite da Early Childhood (figura 3) (Siraj-Blatchford,
-Escolar (OMEP) tem, desde há uma década, OMEP para integrarmos um projeto sobre a Mogharreban & Park, 2016).
vindo a desenvolver um conjunto de projetos criação de materiais de EDS para professo- Observemos então a escala desenvolvida
de investigação e de intervenção na área da res. Este projeto teve como objetivo desen- no projeto. A Escala da OMEP — ERS-SDEC
EDS envolvendo países dos diferentes conti- volver um instrumento de investigação e de utiliza os mesmos procedimentos metodoló-

83 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

gicos da Early Childhood Environment Rating A escala está organizada em 3 domínios — O projeto situa-se no contexto da formação
Scale – Revised (ECERS-R) (Harms, Clifford sustentabilidade social e cultural, sustentabili- inicial de educadores de infância e profes-
and Cryer, 2005), ou em português, da Escala dade ambiental e sustentabilidade económica sores do 1º CEB na Universidade de Évora,
de Avaliação do Ambiente em Educação de – que incluem um conjunto de descritores or- numa estreita colaboração com as institui-
Infância. ganizados numa escala de qualidade entre os ções cooperantes da cidade. Assume-se
A escala ERS-SDEC pode ser utilizada por pro- valores 1 e 7 sendo 1 - inadequado, 3 - mínimo, assim como um projeto de desenvolvimento
fissionais de educação de Infância para avaliar 5 - bom e 7 - excelente. profissional de estudantes, educadores/as e
e regular a implementação de um curriculum Uma análise de conteúdo dos descritores re- professores/as desenvolvendo a dimensão
na área da educação para o desenvolvimento vela que estes incidem sobre diversas temáti- investigativa da profissionalidade docente
sustentável e, assim, ajudar os educadores e cas associadas a cada dimensão do DS: baseada em processos de análise, reflexão e
as equipas a identificarem áreas prioritárias • Sustentabilidade social e cultural — Inclu- intervenção apoiados por instrumentos vali-
de intervenção. Ao ser utilizada por educado- são e diversidade; estereótipos / igualdade dados e promovendo práticas de qualidade
res na sua prática, a escala apoia e facilita a de oportunidades; género, etnia, orienta- na área da EDS.
observação e o desenvolvimento curricular ao ção sexual, religião; condição humana (o Desde o início em 2012 que estabelecemos a
permitir a identificação de prioridades e obje- que temos em comum); direitos humanos; equipa em parceria com três instituições com
tivos, bem como a gestão de mudanças nas interdependência; experiência na área da EDS — o Centro de
práticas. Este instrumento pode ser utilizado • Sustentabilidade ambiental — ambiente; Atividade Infantil de Évora, o Centro Infantil
para ajudar as equipas em conjunto a refle- beleza natural; água de qualidade; saúde Irene Lisboa e a Escola Básica Manuel Ferrei-
tirem sobre as suas práticas e a desenvolve- (práticas); cuidar de plantas e de animais; ra Patrício - que se constituíram como fonte
rem, em colaboração, formas de melhorar a proteção ambiental; de inspiração pelo seu trabalho nesta área.
sua qualidade sustentadas em processos de • Sustentabilidade económica — consumo Estas instituições tinham já na altura uma
investigação. de água, eletricidade, papel; custos; pou- prática explícita de EDS quer por serem Eco-
Se a escala for utilizada para comparar de al- pança; reciclagem; compra e venda, custo- -escolas, quer por assumirem no seu projeto
gum modo instituições ou salas, é necessário -benefício; carências económicas; apoio a educativo a centralidade do DS.
garantir a confiabilidade entre avaliadores. É famílias com menos recursos. A primeira fase do projeto (2012-13) centrou-
importante que os utilizadores reconheçam a Os descritores de cada domínio permitem -se no desenvolvimento da escala ERS-
necessidade de uma validação externa e que ainda analisar diversos fatores da qualidade -EDSEC e contou com a participação de
as suas avaliações podem necessitar de se- como: a qualidade dos espaços (condições es- docentes da Universidade — Maria Assunção
rajustadas colaborativamente. Este processo truturais) e o acesso; as políticas institucionais Folque e Vítor Oliveira, estudantes dos mes-
pode ser feito através de: formação para a expressas no Projeto Educativo e em regula- trados em Educação Pré-escolar e Educação
compreensão do modo de utilização da escala mentos; as práticas pedagógicas (ex: saídas, Pré-escolar e Ensino do 1º CEB durante a
e dos seus objetivos; formação e treino que conversas, projetos, cuidar de…, reciclar); a Prática de Ensino Supervisionada (PES) —
garanta uma interpretação comum da escala qualidade e disponibilidade de materiais; as Rita Mirador, Inês Rocha, Ana Batista, Vera
e dos seus descritores e critérios de qualidade interações entre adultos e crianças e o envol- Sezões, Ana Jordão, e educadoras cooperan-
(definições e diferenças culturais); em muitos vimento das famílias e da comunidade1. tes — Fátima Aresta, Cláudia Peças, Concei-
casos, o recorrer a um ‘amigo crítico’ pode ção Canivete, Susana Reis, Isabel Melo, Ana
ser benéfico no sentido de apoiar e validar o O projeto Construir a Sustentabilidade a Nunes. Durante esse ano fez-se a análise da
processo. partir da infância. 1ª versão da ERS-SDEC, realizaram-se entre-
Mais do que avaliar para comparar, este ins- Em Évora, a participação no projeto da OMEP vistas com as educadoras e foram acordadas
trumento tem como objetivo fundamental o foi o ponto de partida para um projeto mais propostas de revisão da escala para propor
de provocar o questionamento e a tomada de vasto que teve continuidade para além da à equipa internacional. Duas estudantes dos
consciência acerca do desenvolvimento sus- construção da escala ERS-EDSEC e que deno- mestrados utilizaram a escala em projetos
tentável nas suas diversas vertentes (cultural minámos Construir a Sustentabilidade a partir de investigação-ação que deram origem a
e social, ambiental e económica) e do papel da infância. dois relatórios de estágio, um centrado na
que a educação de infância pode ter para o sustentabilidade social e cultural (Mirador,
seu desenvolvimento. 1 OMEP ERS-SDEC em português em http://eceresour- 2013) e outro na EDS de forma geral (Rocha,
cebank.org/index.php?hCode=SCALE_03_01

84 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


2013). A primeira fase do projeto em Portugal res em 2017 e concebeu-se uma oficina de senvolverem disposições de aprendizagem
é apresentada num capítulo do livro referido formação creditada pelo CCPFC denominada mas sobretudo de apoiar as crianças numa
na figura 3 (Folque & Oliveira, 2016). – Construir a Sustentabilidade a Partir da In- cidadania ativa. Referimos como sendo
Depois desta primeira fase o projeto prosse- fância – que irá ter a sua primeira edição a fundamentais: a resiliência (Folque, 2014),
guiu em Évora assumindo diversos desenvol- partir de janeiro de 2018. a agência relacional e participação ativa, o
vimentos: pensamento crítico e a participação crítica e
Por um lado, a continuação de processos de A construção de uma cidadania global – ainda o desenvolvimento moral e a respon-
investigação-ação no contexto dos estágios YES we care, YES we can! sabilidade (Folque, 2018) fundados na com-
finais dos mestrados (Fanica, 2015; Teixeira, De que aprendizagens na infância estamos a preensão da condição humana (Morin, 1999).
2015) estando neste momento três estudan- falar quando falamos da construção de uma A identificação destas disposições de partici-
tes a desenvolver trabalho nesta área. Estes cidadania global? Em 2015, no contexto de um pação é baseada numa revisão de literatura
processos, porque enraizados em escolas e curso internacional de Verão que teve lugar sobre cidadania e sustentabilidade (Deakin
jardins de infância, têm permitido uma cres- na Universidade de Évora denominado As En- Crick, 2005), mas também na reflexão que
cente sensibilização das instituições para a cruzilhadas do Desenvolvimento — O nosso tem sido levada a cabo no âmbito deste pro-
EDS, a mudança de práticas institucionais e mundo, a nossa dignidade, o nosso futuro jeto de investigação-ação.
até, num caso, o assumir por parte da Creche formulámos uma pergunta à Professora de As novas Orientações Curriculares para a
e Jardim de infância Mãe Galinha a adesão ao Relações Internacionais Sakiko Fukuda-Parr, Educação Pré-escolar (Silva, Marques, Mata
programa Eco Escolas. Ainda numa linha da conhecida pelo seu trabalho como coorde- & Rosa, 2016), que lamentavelmente não
investigação-ação, criaram-se também siner- nadora e principal autora de alguns relatórios assumem claramente a EDS com uma cen-
gias com um outro projeto da UE, em parceria da Nações Unidas para o Desenvolvimento. tralidade curricular, apresentam nas entreli-
com o Agrupamento de Escolas Manuel Fer- Perguntámos o que é que na sua perspetiva nhas uma perspetiva interessante em linha
reira Patrício, o projeto ID Natura, coordenado seriam as experiências / aprendizagens mais com a EDS e com os ODS. Desde logo nos
pela Professora Maria Ilhéu, do Departamento importantes para uma criança de 4 anos, seus princípios, nomeadamente a garan-
de Ecologia. visando construir sustentabilidade. Depois tia da aprendizagem de todas as crianças
A 11 de abril 2015 organizámos na Universidade de pensar durante um minuto sobre o que combatendo quaisquer desigualdades de
de Évora o Seminário Internacional “Construir considerou ser uma pergunta difícil, ela res- oportunidades e, também, em toda a ênfa-
a Sustentabilidade a Partir da Infância” (figura pondeu: “aprender a cooperar e a viver no se que é dada à participação da criança no
4) onde contámos com a participação do Pro- espaço público”. Esta sua reflexão remete- seu processo educativo. É interessante notar
fessor John Siraj-Blatchford da Universidade -nos para a criança cidadã que, desde cedo, que as OCEPE resgatam a palavra cuidado
de Plymouth com a conferência Education for participa na vida da cidade e por tal, não só como componente fundamental da pro-
Sustainable Development in Early Childhood: tem oportunidade de fazer parte de uma rede fissão docente; ao fazê-lo, no entanto, ela
is it Enough to think Globally and act Locally? social de apoio e de recursos, como também surge (re)significado colocado no campo de
Este seminário criou também a oportunidade se envolve na identificação de problemas e uma “Preocupação ética que procura fun-
de partilharmos com a comunidade académi- na sua resolução. Não será demais realçar damentação do “estar uns com os outros” e
ca e educativa o trabalho desenvolvido em também a necessidade de adotar práticas envolve: prestar atenção (para reconhecer as
Évora através de comunicações de educado- educativas e pedagógicas democráticas, onde necessidades dos outros); responsabilidade
ras das instituições parceiras (Aresta, 2015; a cooperação se torna o modo de agir privile- (assumir que o papel social que se desempe-
Canivete, 2015; Melo, 2015), de alunas dos giado, contradizendo algumas derivas de dis- nha e as escolhas que se fazem têm conse-
mestrados em Educação Pré-escolar (Teixeira, cursos para a educação e práticas quotidianas quências nos outros); competência (ser ca-
2015) e Educação Pré-escolar e Ensino do 1º que realçam a competição e o trabalho indivi- paz de adequar os cuidados às necessidades
CEB (Fanica, 2015) e ainda de professores des- dual como elemento estruturante do modo de dos outros); responsividade (compreender o
tes mestrados (Folque, 2015; Oliveira, 2015). aprender na escola. A ideia é que as crianças que é expresso pelos outros, encontrando
Com o objetivo de alargar a formação de edu- possam logo na infância ter oportunidades resposta ao que desejam e não ao que se
cadores/as e professores/as do 1º CEB a nível de aprender que lhes permitam participar na considera que deveriam pretender), (adapta-
local e nacional, desenvolvemos workshops construção dum mundo sustentável. do de Joan Tronto, 2005)” (p. 106).
nos encontros da APEI do Porto e dos Aço- Assim, trata-se de ajudar as crianças a de- Vemos com especial interesse que este cui-

85 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Figura 3.Publicação do projeto Education for Figura 4. Logo do Seminário Internacional realizado a 11 de abril de 2015 em Évora
Sustainable Development Ratting Scale (Siraj-
-Blatchford, Mogharreban & Park, 2016)

dado se constitui também como uma apren- mundo natural e de lidar com o risco; a obe- uma pertença a uma rede de relações que cui-
dizagem explícita nas OCEPE para as crianças sidade infantil; a conflitualidade baseada em dam e são cuidadas e que partilham recursos
“…cuidados com os mais novos, apoio dos preconceitos; a falta de tempo para conversar na busca de uma igualdade de acesso a bens
mais velhos” (p.28) e especificamente inter- sobre assuntos significativos, a dificuldade de comuns; a segunda ideia centra-se no empo-
ligando a área do conhecimento do mundo acesso a recursos básicos que deixam algu- deramento (empowerment) das crianças para
com a área de formação pessoal e social. mas crianças em situações de vulnerabilidade, a resolução de problemas, quer sejam de na-
“A abordagem ao Conhecimento do Mundo a degradação ambiental, etc.). Isto significa tureza pessoal ou social, ou ainda de natureza
implica também o desenvolvimento de atitu- que a ação educativa se exerce num contexto ambiental ou económica.
des positivas na relação com os outros, nos amplo que extravasa as paredes da sala e com
cuidados consigo próprio, e a criação de há- uma rede de sustentação para que as crianças A criança no espaço público e a utilização
bitos de respeito pelo ambiente e pela cultu- possam sentir e afirmar: partilhada de recursos
ra, evidenciando-se assim a sua inter-relação Sim, nós cuidamos! Sim, nós podemos! Yes Temos assistido a um afastamento das crian-
com a área de Formação Pessoal e Social.” we care! Yes we can! ças do espaço público por via de uma crescen-
(ME, 2016, p. 85). Daremos conta, seguidamente, de algumas te preocupação de adultos com a segurança
Por outro lado, queremos realçar o facto de as práticas desenvolvidas nas instituições em infantil. Além disso, à medida que os carros
OCEPE assumirem uma perspetiva sistémica e Évora e que exemplificam algumas das ideias ocuparam progressivamente o espaço público
ecológica que nos dias de hoje ganha novo centrais da EDS e que, apesar de não serem das cidades, as restrições à sua utilização pe-
significado. Assumindo claramente o trabalho novas, ganham renovados sentidos nos quo- los peões aumentaram, restringindo a fruição
com as famílias e a comunidade como central tidianos das instituições educativas por vezes dos equipamentos. Apesar de haver já uma
e a necessidade de se reconhecer as caracte- instalados em rotinas estéreis. A escolha des- consciência considerável desta questão em al-
rísticas do mundo atual e da qualidade de vida te conjunto de práticas não dá conta de todo guns países ou cidades, em Portugal este ain-
das crianças para assumir o/a educador/a o trabalho desenvolvido no projeto no senti- da é um problema que afeta a vida das crian-
como um/a profissional que responde aos do da EDSEI mas realça duas ideias chave: a ças e sua participação nos espaços públicos.
desafios presentes, como: a diminuição das primeira tem a ver com a presença da criança O Centro de Actividade Infantil de Évora –
oportunidades de brincar e de relação com o no espaço público como requisito básico de CAIE é uma IPSS situada num edifício de tra-

86 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


ça antiga no centro histórico de Évora e que na horta, as crianças constituem-se como A experiência partilhada do CAIE enquanto
desde a sua génese se deparou com alguns embaixadores do programa Eco-escolas parceira do projeto Construir a Sustenta-
problemas de gestão de recursos para a sua sensibilizando a comunidade envolvente. As bilidade a Partir da Infância, no seio da co-
sustentabilidade. As instalações são no 1º crianças, mesmo as mais pequenas, apren- munidade das instituições para a infância
andar, tendo apenas um quintal no rés-do- dem a andar nas ruas com segurança, a em Évora, ajudou diversas instituições a
-chão que é utilizado para recreio. No CAIE observar os desafios que se colocam para, reconsiderar a participação das crianças no
a mobilização de recursos no exterior da ins- por fim, chegarem ao local onde vão passar espaço público não como um problema mas
tituição é hoje, mais que uma necessidade, a manhã a preparar a terra, semear, plantar, como uma necessidade. Nestes cinco anos
uma opção de qualidade em educação. mondar, regar, colher… com a ajuda de espe- do projeto temos observado uma mudança
A escala ECERSEDS identifica como uma prá- cialistas nas coisas da terra; assim, aprendem considerável na atitude dos profissionais e
tica de nível Bom “As crianças usam regular- que cuidar de seres vivos é uma tarefa exi- na frequência com que as crianças desde
mente serviços exteriores às instalações da gente que requer tempo para se ver os re- a creche, ao jardim de infância, até ao 1º
escola (ex.: bibliotecas, hortas comunitárias, sultados e que requer uma responsabilização CEB se envolvem em saídas na comunida-
piscinas) e têm o apoio da comunidade nes- pelo cuidado continuado. de estabelecendo laços de conhecimento,
sas interações com o exterior” (item susten- Nos fins de semana as crianças levaram as aprendizagem e afeto entre as crianças e a
tabilidade social e cultural, ponto 5.4). famílias a visitar o espaço da horta e, a pou- comunidade, alargando as oportunidades
Utilização dos espaços verdes da cidade (fi- co e pouco, este espaço passou a ser utiliza- de aprendizagem para além das paredes da
gura 5) — Um exemplo de gestão de recursos do para comemorações, festas de aniversário sala, conhecendo os locais e monumentos
comunitários é a utilização de espaços ver- ou de despedida, ganhando vida e tornando- do meio envolvente, reforçando laços inter-
des externos à instituição, como é o caso do -se um espaço verdadeiramente público. geracionais e desenvolvendo assim o sentido
Jardim das Canas e do Jardim da Cartuxa. É Utilização da Biblioteca Pública — Na impos- de pertença à sua cidade, estabelecendo re-
lá que se organizam atividades que não se sibilidade de terem uma biblioteca de quali- lações positivas com o outro em sociedade
podem realizar nas limitadas instalações do dade dentro das suas instalações, a Bibliote- (Fanica, 2015).
CAIE. Para além do usufruto de espaços pú- ca Pública de Évora constitui-se como uma
blicos com condições específicas e diversas, excelente opção. As deslocações à biblioteca Aprender sobre a diversidade humana
as crianças do CAIE aprendem a conhecer a tornaram-se uma rotina e constituem, desde e aprender a resolver problemas em
cidade que é sua e pela qual se vão também essa altura, mais uma possibilidade de intera- conjunto
sentindo responsabilizadas. ção com o meio envolvente. O espaço da bi- Segundo Morin (2000, p.20), “O ensino deve
Horta no centro histórico — Quando o CAIE blioteca é um ambiente esteticamente muito levar a uma antropo-ética pela consciência
aderiu ao Programa Eco-escolas, a questão do impressionante e onde as regras de conduta de uma condição humana que é a de ser em
espaço exterior tornou-se para toda a equipa e funcionamento são bem marcadas – o si- simultâneo individuo, sociedade e espécie”.
uma prioridade e, em termos de auditoria am- lêncio, o cuidado com os livros, como pro- Nesta secção pretendemos partilhar como
biental, um dos aspetos que mais se eviden- curar livros neste mar de estantes, quantos podemos promover nas salas de EPE a
ciava pela negativa. Foi num conselho eco- livros podemos levar ... Para além de terem compreensão da condição humana, real-
-escolas em que esteve presente a Senhora que interagir com pessoas diferentes, esta çando não só a diversidade mas também o
vereadora da Educação que foram estudadas permanência constante na cidade, usufruin- que temos em comum. É com base nessa
eventuais soluções e tomadas decisões. do regularmente dos seus espaços públicos, compreensão que podemos ajudar as crian-
A autarquia cedeu dois espaços que são oferece às crianças múltiplas oportunidades ças a falarem de si próprias e dos seus pro-
hoje fundamentais na dinâmica de trabalho de interação com pessoas de várias idades blemas, dos problemas que encontram nas
pedagógico no CAIE: os Canteiros de ervas e ocupações bem como com múltiplos es- suas vidas em sociedade e de como aprender
aromáticas no Alto de S. Bento e a horta no paços onde o questionamento e o espanto a resolvê-los em conjunto. Os exemplos que
centro histórico de Évora, que se situa a 300 surgem.... Os meninos do CAIE conhecem o se seguem referem-se a reuniões de conse-
metros do CAIE. Semanalmente as diversas mapa da cidade e têm uma plena consciência lho e aos projetos de intervenção.
salas deslocam-se à horta para a cuidar e dos seus tesouros, o que lhes permite che- A escala ECERSEDS identifica como uma prá-
manter. Ao percorrerem as ruas de Évora garem a ser conselheiros dos turistas sobre tica de nível suficiente — “Os educadores e o
com os materiais necessários para o trabalho o que visitar na cidade. restante pessoal chamam a atenção para os

87 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

aspetos comuns da experiência humana, no-


meadamente as suas necessidades, valores e
desejos, comuns a todos os humanos” (Item
Sustentabilidade social e cultural, ponto 3.2).
Já a um nível de excelência identifica no
ponto 7.3 “Os direitos universais, inerentes a
toda a humanidade, são discutidos de forma
aberta e regular, dentro da sala de aula.”

Os conselhos
As reuniões de conselho são uma componen-
te fundamental da organização quotidiana do
modelo pedagógico do Movimento da Escola
Moderna2, modelo este que procura viver com
as crianças na escola uma cidadania democrá-
tica que nos acrescente em humanidade.
O dia no Jardim de Infância da EB Manuela
Ferreira Patrício começa com o acolhimento
das crianças em conselho e é aí que o grupo
partilha as suas vivências, os seus questiona-
mentos, os seus desejos, os seus modos de
ser e de fazer, as suas condições familiares e Figura 5. Utilização dos espaços verdes da cidade
o modo como veem o mundo em que vivem
(figura 6). O tempo de conselho é um tempo
para o diálogo sério e sensível, aberto a dife- de confrontarem os seus pontos de vista, Quando as crianças têm dificuldade em re-
rentes perspectivas. Aqui surgem oportunida- de identificarem as possíveis razões para solver os seus conflitos são encorajadas a
des para se conversar sobre os mais diversos tal acontecimento (“já não chove há muito escrever na coluna do Diário “Não gosta-
assuntos da vida que envolvem preconceitos tempo....”) a educadora desafiou as crianças mos” e a adiar até à “Reunião do Conselho
(ex: os rapazes e os bebés: atividades, roupas a pensarem-se enquanto agentes de mudan- da Sexta-feira” a discussão sobre o inciden-
e comportamentos de meninos e meninas; ci- ça: “O que podemos fazer?” Logo cada um, te. Na reunião e com o apoio do Diário, as
ganos e terroristas: bons ou maus?) hábitos com o seu modo de entender o mundo e de crianças falam sobre o que aconteceu, escla-
saudáveis (ex: alimentação), conhecimento do produzir significados, avançou com algumas recem o seu comportamento e, com o apoio
mundo (ex: países, práticas culturais; a vida no soluções: “Arranjar um protetor de água para do grupo e da educadora, tentam encontrar
campo; nasceram porcos — as necessidades ela (árvore) não arder”... formas de evitar novos conflitos.
dos animais pequenos; cemitérios e mortes; Falaram da importância das árvores nas nos- Identificam-se, discretamente, as fontes de
terrorismo; naufrágios; incêndios...). sas vidas e pintaram de seguida muitas ár- conflito, o quê, onde, e como aconteceu o
No passado dia 16 do mês de outubro a con- vores onde a beleza estética parecia querer que se registou, sem nenhum clima de poli-
versa da manhã foi, inevitavelmente, sobre contrabalançar as imagens do desastre a que ciamento judicial, mas como quem cuida de
os incêndios que assolaram o país e que to- todos assistiram na TV. Em cada uma das saber atenciosamente dos sobressaltos da
dos tinham visto pela televisão: pinturas escreveram-se frases de alerta para vida, dos que fraternalmente partilham um
“Está tudo a arder...”, disseram alguns. E ra- que todos se lembrem da sua responsabili- projeto de transformação acarinhado” (Niza,
pidamente a conversa alastrou. dade na preservação da Natureza. Agora que 2007, p.4).
Depois de partilharem o que tinham visto, se preparam para o Natal que se aproxima, Na preparação de uma comunicação para o
o presépio surge carregado de árvores mos- seminário internacional Construir a Susten-
2 Para saber mais sobre o Movimento da Escola Mo- trando o significado que estas adquiriram tabilidade a Partir da Infância (Melo, 2015)
derna portuguesa e o seu modelo pedagógico http:// nas suas vidas e nos seus imaginários. as crianças disseram à educadora que tipo
www.movimentoescolamoderna.pt/

88 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


de problemas discutiam nos conselhos de mudar as
6ª feira: “Bater; espenicar; puxar o cabelo;
socar; dar murros no coração; morder; des-
manchar os trabalhos dos outros...”. E como
é que estes problemas são resolvidos? O
grupo de crianças de Isabel Melo responde
assim à questão colocada:
Falamos cada um sobre os problemas (Inês,
5anos)
Escrevemos no combinámos e assinamos
(Pedro, 4 anos)
As professoras escrevem no Diário de Grupo
(Bianca, 5anos)
Assinamos o que escrevemos no Diário de
Grupo
Escrevemos cartas ao presidente da Câmara
(Martim,5anos)
(Melo, 2015)

Desde muito novas as crianças envolvem-se


em atitudes discriminatórias e em conflitos.
Estes podem ser excelentes oportunidades
para tomar consciência e discutir os senti-
mentos/emoções das pessoas, as suas moti-
vações, capacidades e direitos e também para Figura 6. Reunião de Conselho
ajudar as crianças a tomarem em considera-
ção a diferença, a desenvolverem o raciocínio
moral e a, progressivamente, irem regulando o esclarecer o que aconteceu é suficiente para condições atuais das suas vidas, sentindo-
seu comportamento em relação estreita com que o problema seja resolvido. -se seguras para arriscar.
a comunidade de que fazem parte. Para apoiar as crianças nesta aprendizagem O trabalho de projeto é um modo de
A principal ideia é que, juntos, possam pas- são necessários/as educadores/as capazes construir conhecimento particularmen-
sar a resolver os seus problemas, falar e ne- de compreender as crianças a partir de um te relevante para o reforço da cidadania
gociar formas que impeçam a ocorrência de conhecimento profundo da condição huma- global, uma vez que parte da identificação
problemas futuros, uma vez que as crianças na, capazes de falar com as crianças de pro- de problemas e mobiliza uma pequena co-
são apoiadas para regular progressivamente blemas complexos e aceitar as contradições munidade para a sua resolução conjunta.
o seu comportamento em relação à comu- do ser humano, educadores/as que com- Dentro dos diversos tipos de projeto, os
nidade a que pertencem. As regras sociais preendam e aceitem as dificuldades das projetos de intervenção são particular-
geralmente surgem dessas discussões e são crianças apostando nas suas capacidades mente mobilizadores de uma atenção ao
expostas na sala. Outras vezes as crianças de desenvolvimento e de aprendizagem mundo e da participação das crianças na
introduzem mudanças na organização da (Folque & Mello, 2015). construção de um mundo melhor.
sala (espaço ou materiais) que impedem que Também a Escala ERS-EDSEC valoriza este
o problema ocorra; as crianças assumem Projetos de intervenção modo de estar ao referir, por exemplo, no
frequentemente a responsabilidade de se Se queremos que as crianças se envolvam item da sustentabilidade ambiental (ponto
ajudarem a lembrar de algumas regras acor- de forma ativa e interventiva na sua vida, 5.3) — “As crianças participam frequente-
dadas e, em várias conversas, terem a opor- elas têm que acreditar que a transforma- mente em projetos e em atividades de gru-
tunidade de conversar umas com as outras e ção é possível e que elas têm o poder para po, para explorar, investigar e compreender

89 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

consciências e de carros não deviam passar na nossa rua”.


melhorias na sua No âmbito da Semana Europeia da Mobili-
qualidade de vida, dade, a equipa educativa do CAIE encorajou
na sua escola e na as crianças a desenvolverem diversas ações,
sua cidade. no sentido de promover a melhoria das suas
O primeiro exem- condições de mobilidade e acessibilidade e
plo, relatado no de aprofundar assuntos como a poluição e o
artigo de Isabel consumo excessivo de combustível. “A rua é
Melo “O nosso minha” foi uma ação desenvolvida em parceria
espaço exte- com a autarquia e com a Polícia de Segurança
rior: da ideia à Pública. Implicou o corte temporário da circu-
fruição” (Melo, lação automóvel na rua do estabelecimento e
2017),revela suscitou o interesse da comunidade e da co-
como a partir municação social (Godinho, 2016). As crianças
da identificação levaram bicicletas e triciclos para a rua e os
dos problemas mais pequenos foram nos seus carrinhos de
no espaço ex- bebé e todos, em conjunto com familiares e
terior as crian- profissionais, manifestaram-se, chamando
Figura 7. Notícia de primeira página do Projeto ças se envolveram num projeto para a sua a atenção para o problema da mobilidade e
“A Rua é Minha” requalificação. da utilização por todos do espaço público. A
“No nosso recreio há muito sol e poucas som- iniciativa foi publicada na primeira página do
bras. Quando caímos magoamo-nos à séria! jornal Diário do Sul “Crianças assinalaram dia
questões ambientais relacionadas com o seu Não temos areia para brincar com as nossas europeu sem carros” (figura 7). A notícia foi
quotidiano” e “As crianças são encorajadas a pás!” lida na sala de jardim de infância e as crian-
desenvolver um conjunto de ações, com vista Em reunião de grande grupo as crianças de- ças tiveram a oportunidade de revisitar o que
a comunicar os seus esforços (e os de outros) cidiram desenhar os novos espaços que que- tinham feito e discutir o sentido das suas
para resolver questões ambientais” (ponto riam no recreio, para colmatar os problemas ações falando sobre os potenciais impactos
7.2). identificados. Iniciou-se então um longo pro- ambientais e económicos para o futuro. Os
Em Évora muitos são os jardins de infância cesso de reformulação do mesmo, processo pais ficaram mais envolvidos e motivados para
que incorporam esta estratégia pedagógica este que implicou reiterados contactos com a colaborar na solução dos problemas de aces-
no seu quotidiano educativo. Na formação Câmara Municipal e, perante a inoperância da sibilidade do CAIE. Houve uma reunião com
inicial de educadores de infância e professo- mesma, contactos com a Junta de Freguesia a autarquia onde se fizeram “compromissos”
res do 1º CEB da UE as/os estudantes têm que, em despique com a Câmara, despoletou mais amplos! O município está a considerar al-
também que experimentar este tipo de traba- o processo. terar as regras de trânsito e definir áreas onde
lho nos contextos de estágio, pelo seu carác- Muitas vezes os organismos públicos não es- os carros têm que diminuir a velocidade e dar
ter formador de aprendizes cidadãos (Folque, tão habituados a levar as crianças a sério, e prioridade aos peões.
Leal-da-Costa e Artur, 2015). nesse sentido é preciso educar também esses
Chamo-vos a atenção para dois artigos da organismos e mostrar que enquanto cidadãos Do ponto de situação à projeção do
autoria de duas das educadoras que fazem os seus pontos de vista têm que ser levados futuro
parte do projeto Construir a Sustentabilidade em consideração. A questão que queremos ajudar a respon-
a partir da Infância desde o seu início e que Outro projeto de intervenção na comunidade der com este projeto é a de saber como
são interessantes exemplos desta prática de é relatado pela Fátima Aresta no artigo “A Rua concebemos a pedagogia da ECE que pro-
intervenção na polis. Trata-se de situações é Nossa” também publicado nos CEI (Aresta, mova os conhecimentos, as capacidades e
onde a resolução de problemas implicou a in- 2016). disposições das crianças pequenas para se
teração com diversos agentes da comunidade Aquando das saídas na cidade, algumas crian- envolverem com o mundo de forma cuida-
e onde as crianças foram mobilizadoras de ças costumavam fazer comentários como: “os dosa e responsável. Como podemos ajudar

90 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


as crianças pequenas a ter poderes e ter con- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Mirador, R. (2013). Prática de Ensino Supervisionada em
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91 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Arquitetos de soft skills?
Os educadores de infância do século XXI
Maria Filomena Ribeiro da Fonseca Gaspar. Professora associada da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade de Coimbra

Que competências são a força motriz de vão ter profissões que não existem hoje e Os investimentos em intervenções na pri-
bem-estar e de progresso nas sociedades que vão viver num mundo marcado pela meira infância são os que garantem o maior
do século XXI? tecnologia e em mudança constante, assu- retorno em termos de competências cog-
Para prosperar num mundo mediado pelas mem que as competências e as qualidades nitivas, sociais e emocionais e resultados
tecnologias, numa economia mediada pela de carácter têm de ser adquiridas e desen- positivos na idade adulta com a família a
inovação, é preciso possuir competências ro- volvidas por todas para que o bem-estar constituir-se, por isso, como o alvo privile-
bustas que vão além das de literacia, nume- individual, económico e social seja possível. giado de intervenção, mas com as escolas,
racia e científicas. É preciso ser igualmente Esta posição baseia-se em estudos como, os pares e a comunidade a tornarem-se
perito em competências sociais e emocio- por exemplo, o de David Deming (2015), da progressivamente mais relevantes, prin-
nais, não cognitivas, também designadas Universidade de Harvard, que mostram que cipalmente no que ao desenvolvimento
soft-skills (OECD, 2015, p. 34). Esta é tam- o desenvolvimento do mercado de trabalho das competências sociais e emocionais diz
bém a posição assumida e prosseguida pelo nos EUA, desde 1980, tem sido no sentido respeito (OECD, 2015 p. 38). É igualmente
World Economic Forum (WEF) com a inicia- de profissões que exigem competências so- importante compreender que “skills beget
tiva New Vision for Education que, em 2015, ciais elevadas. Também se baseia na opinião skills” (OECD, p. 39), ou seja, quanto mais
se concretizou na elaboração do relatório, de macroempregadores, como por exemplo desenvolvidas são as competências de uma
preparado em colaboração com The Boston o Google, de que os seus administradores criança, mais ela beneficia de intervenções,
Consultation Group, intitulado “New Vision mais eficazes são “bons coaches, têm um formais ou informais, que contribuem para
for Education: Unlocking the Potential of Te- interesse ativo na vida dos seus empregados o seu desenvolvimento, o que nos respon-
chnology” e no qual nos são apresentadas as e são competentes a ouvir e a partilhar in- sabiliza ainda mais por intervenções o mais
16 21st century skills: formação” (WEF, 2016, p. 6). O WEF (2016) precoces possíveis e explica o conhecido
- As seis literacias fundacionais que implicam considera ainda que, a estes benefícios da “efeito Mateus” (nome cunhado pelo so-
usar o conhecimento e não apenas adquiri- SEL para o mercado de trabalho, acrescem ciólogo Robert Merton) em que os “pobres
-lo: 1. Literacia; 2. Numeracia; 3. Literacia outros – académicos, sociais e emocionais –, ficam mais pobres e os ricos mais ricos”
científica; 4. Literacia tecnológica de infor- conforme evidenciado numa meta-análise de (Rigney, 2010). Ou o fenómeno de “cross-
mação e comunicação; 5. Literacia financei- 213 estudos que envolveram mais de 270 mil -productivity”, observado pela influência
ra; 6. Literacia cultural e cívica. alunos da pré-escola ao ensino secundário que competências sociais e emocionais têm
- As quatro competências para enfrentar (Durlak, Weissberg, Dymnicki, Taylor, & Sche- na formação das competências cognitivas
desafios complexos: 7. Pensamento crítico e llinger, 2011) e cujos resultados indicam que ao longo do tempo, mas não o contrário,
resolução de problemas; 8. Criatividade; 9. alunos que usufruíram de aprendizagens SEL o que explicaria que uma criança autorre-
Comunicação; 10. Colaboração. obtiveram resultados escolares superiores gulada e persistente tenha mais probabili-
- As seis qualidades de caráter para viver aos que não receberam, ao mesmo tempo dade de ter melhores resultados escolares
num mundo em mudança permanente: 11. que melhoraram os seus comportamentos quando comparada com outra com o mes-
Curiosidade; 12. Iniciativa; 13. Persistência; e atitudes, mostrando igualmente menos mo nível de competências cognitivas mas
14. Adaptabilidade; 15. Liderança; 16. Cons- stress emocional. com menor autorregulação e persistência
ciência cultural e social: capacidade para in- (Cunha & Heckman, 2008).
teragir com os outros de uma forma social, Qual a responsabilidade da educação Já na década de 60 existia uma consciên-
cultural e eticamente apropriada. pré-escolar no desenvolvimento das cia entre os investigadores de que investir
Em 2016 um novo relatório é elaborado por competências sociais e emocionais, na em intervenções na infância que enrique-
esse Fórum: “New Vision for Education: Fos- redução das desigualdades sociais e no cessem os contextos de vida das crianças
tering Social and Emotional Learning throu- aumento da produtividade? poderia fazer a diferença na promoção das
gh Technology” e com ele a posição de que As competências desenvolvem-se ao longo trajetórias de desenvolvimento de sucesso
as quatro competências e as seis qualidades do tempo, mas existem “períodos sensíveis” para crianças que viviam em contextos mar-
de carácter formam o cerne do que a SEL para o seu desenvolvimento, com os primei- cados pela adversidade social. No High Sco-
(social and emotional learning) tem de con- ros anos de vida a terem um “impacto for- pe Perry Preschool Program, 123 crianças
ter (WEF, 2016). Ao estimarem que 65% das tíssimo” por estabelecerem as fundações do afroamericanas de 3 anos, com baixo QI,
crianças que estão a entrar na escolaridade desenvolvimento futuro (OECD, 2015, p. 38). marcadas por forte desvantagem socioeco-

92 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


nómica, foram aleatoriamente distribuídas
por dois grupos, um dos quais foi objeto
de intervenção, com o Perry Curriculum, du-
rante dois anos, no fim dos quais todas as
crianças, dos dois grupos, entraram na mes-
ma escola (Schweinhart & Weikart, 1981).
Estas crianças foram seguidas até aos 40
anos de idade (com avaliações anuais dos
3 aos 15 anos e follow-ups aos 19, 27 e 40
anos). O currículo tinha uma forte influência
da teoria de Vygotsky e também alguma de
Piaget e Dewey. As competências do ciclo
planear-executar-avaliar eram estimuladas,
assim como as de autocontrolo e as sociais,
incluindo a cooperação com os outros e a
resolução de conflitos interpessoais. O pro-
grama foi implementado durante 2.30 horas
diárias por um educador com pelo menos
o grau de licenciatura. Durante a semana
havia igualmente uma visita domiciliária, de
1.30 h, com o objetivo de envolver as mães
no desenvolvimento sócio-emocional das venção nos resultados escolares. Os efeitos dos pais). A “qualidade da parentalidade”
crianças. positivos da intervenção na personalidade, é a variável mediadora e nem sempre está
Os resultados indicaram que, embora inicial- em ambos os géneros, embora mais acen- ligada ao rendimento da família ou à sua
mente tenha existido um impacto positivo tuados nas raparigas, tiveram impacto no educação, o que exige o desenvolvimento
da intervenção no QI, esse efeito perdeu- aumento dos resultados em testes de co- de medidas que nos permitam avaliar con-
-se com o tempo, não havendo diferenças nhecimentos escolares, através do aumen- textos familiares de risco (Heckman, 2008).
estatisticamente significativas entre os ra- to da aprendizagem. Estas análises realiza- Análises económicas indicam que por cada
pazes de ambos os grupos nesse indicador das pela equipa coordenada por Heckman dólar investido há um retorno 14% superior
e apenas uma diferença marginalmente sig- mostram que estes efeitos se mantiveram ao de investimentos no mercado financeiro,
nificativa entre as raparigas. Porém, novas mesmo depois de controlados os efeitos do que é de 7,4% nos EUA, e mostram como é
análises dos resultados, com métodos eco- tamanho reduzido da amostra (n = 123). que a sociedade como um todo pode bene-
nométricos, realizadas pela equipa liderada Os resultados acabados de descrever são ficiar destas intervenções, sendo o retorno
por Heckman (Heckman, Pinto & Savelyev, comprovados por outros de investigações ainda maior se também forem considerados
2013), mostraram que o programa criou mais recentes que mostram que as com- os retornos económicos em termos de saú-
efeitos positivos persistentes em compe- petências de “personalidade” explicam 30- de física e mental (Heckman, 2008).
tências de carácter, refletidos na redução 40% de resultados em testes de avaliação James Heckman, o responsável pela coor-
de problemas externalizantes (comporta- de conhecimentos, e não o QI (Heckman, denação das equipas que desenvolveram as
mentos agressivos, antissociais e de quebra Pinto & Savelyev, 2013), responsabilizando- análises acima referidas, é um especialista
de regras), o que resultou num aumento de -nos para a implementação de currículos em economia do desenvolvimento humano
vários resultados positivos a longo termo que promovam a competência social, a ca- e, através do Center for the Economics of
no trabalho (salários e emprego), na saúde e pacidade de planear e de organização, se Human Development, na Universidade de
uma redução nas atividades criminais. Tam- queremos reduzir a pobreza e as desigual- Chicago, tem liderado investigação multi-
bém se observaram aumentos na motivação dades sociais. A “desvantagem” não tem disciplinar cujos resultados demonstram
escolar, nas raparigas, que explicam, apenas de ser necessariamente económica (po- que a qualidade do desenvolvimento nos
para este género, efeitos positivos da inter- breza) ou educacional (nível de educação primeiros anos de vida influencia fortemen-

93 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

te o desenvolvimento social, económico e As Orientações Curriculares em Portugal em 2015 em risco de pobreza, os


da saúde dos indivíduos e das sociedades para a Educação Pré-Escolar e o apenas 47,2% de crianças dos 0 aos 3 anos
como um todo (cf. https://cehd.uchicago. desenvolvimento das soft-skills com acesso a respostas de creche, contras-
edu/?page_id=12), tendo por isso ganhado As Orientações Curriculares para a Educação tando com uma taxa de emprego de 75,7%
um Prémio Nobel. É sua a célebre “equação Pré-Escolar (OCEPE) em Portugal, revistas e (com uma média de 32,4 horas de trabalho
de Heckman”: INVESTIR (investir em recur- homologadas em 2016, reflectirão as reco- por semana) das mães de crianças com me-
sos educacionais e desenvolvimentais para mendações acima referidas no que ao desen- nos de 6 anos (a mais alta da União Euro-
famílias que enfrentam desvantagens para volvimento das competências e qualidades de peia e da zona euro), as quais trabalham em
garantir igualdade no acesso a desenvolvi- carácter diz respeito, ou seja, as designadas casa, em média, mais 16 horas por semana,
mento humano de sucesso) + DESENVOL- soft-skills, constituindo-se como uma ferra- comparativamente com os pais [indicadores
VER (intervir no desenvolvimento de com- menta central na construção de respostas de European Union Statistics on Income and
petências sociais e cognitivas desde o nas- qualidade promotoras do desenvolvimento Living Conditions (EU-SILC)]. Adicionalmente,
cimento aos 5 anos) + MANTER (garantir a nos primeiros anos de vida, influenciando o embora os resultados portugueses nos testes
sustentabilidade dos ganhos iniciais através desenvolvimento social, económico e da saú- PISA tenham melhorado, continuamos a ser o
de educação de qualidade até à idade adul- de dos indivíduos e da sociedade como um país da OCDE com maior taxa de retenção es-
ta) = GANHAR (ganhamos uma força de todo? colar, sendo que este é um indicador de risco
trabalho mais capaz, mais produtiva e com A resposta positiva a esta questão é fulcral se para insucesso e abandono escolares.
valor que paga o investimento). considerarmos indicadores como os 29,9% de E a resposta à questão com que iniciámos
crianças (idade inferior a 18 anos) que viviam este ponto é “sim”. Desde logo com o “cuidar

94 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


ético” que nas OCEPE (Silva, Marques, Mata, & crianças em oportunidades de “decisão em inspiração para a escolha dos caminhos que
Rosa, 2016) é pedido ao/à educador/a no seu comum, de regras coletivas indispensáveis à podemos querer trilhar para responder a
trabalho pedagógico, o qual envolve “a cria- vida social e à distribuição de tarefas necessá- essa questão. Este país aprovou um plano
ção de um ambiente securizante em que cada rias à organização do grupo”, constituindo-se para todo o sistema educativo para os anos
criança se sente bem e em que sabe que é es- como “experiências de vida democrática que 2016-2019 designado “Action Plan for Educa-
cutada e valorizada”, onde o “cuidar e educar permitem tomar consciência dos seus direitos tion 2016-2019” (cf. https://www.education.
estão intimamente relacionados”. Este “cuidar e deveres”. ie/en/Publications/Corporate-Reports/Stra-
ético” é a marca da “dimensão relacional” que Sim, também com a proposta das OCEPE de tegy-Statement/Department-of-Education-
“constitui a base do processo educativo” com “uma abordagem integrada e globalizante das -and-Skills-Strategy-Statement-2016-2019.
o grupo a proporcionar “o contexto imediato diferentes áreas de conteúdos”, na qual a área pdf), com várias ambições, entre as quais
de interação social e de socialização através de conteúdo de Formação Pessoal e Social é transformar o país num Global Innovation
da relação entre crianças, crianças e adultos considerada como “área transversal”, pois Leader e ter o melhor Education and Trai-
e entre adultos” e é uma das dimensões da embora “tendo conteúdos e intencionalidade ning System na Europa. Entre os cinco gran-
organização do “ambiente educativo da sala”, próprios, está presente em todo o trabalho des objetivos deste plano, desenvolvidos
a que se associa a organização do espaço e educativo realizado no jardim de infância” através de estratégias interministeriais, en-
do tempo. As dinâmicas de interação que se e “incide no desenvolvimento de atitudes, contram-se: a) o de melhorar as experiências
estabelecem constituem a base do desenvol- disposições e valores, que permitam às crian- de aprendizagem e de sucesso dos alunos,
vimento da área de conteúdo de “Formação ças continuar a aprender com sucesso e a incluindo o bem-estar e as competências
Pessoal e Social e da aprendizagem da vida de- tornarem-se cidadãos autónomos, conscien- sócio-emocionais; b) auxiliar os professores
mocrática, o que implica que o/a educador/a tes e solidários”. Encontramos aqui o cerne a melhorar continuamente, nomeadamente
crie situações diversificadas de conhecimento, das soft-skills, sendo essas aprendizagens através de formação contínua. No que se
atenção e respeito pelo outro, bem como de entendidas “como correspondendo a um pro- refere ao primeiro objetivo, uma das metas
desenvolvimento do sentido crítico e de to- cesso progressivo que, realizado ao longo da é “aumentar o número de alunos de 20 000
mada de decisões baseada na negociação”. É educação pré-escolar, terá continuidade ao em 130 escolas públicas para 104 000 em
neste grupo, e nas interações que aí aconte- longo da vida”. Nessas aprendizagens interli- 646 escolas, em 2019, com professores que
cem, que as crianças têm oportunidades para gadas são consideradas quatro componentes: terão formação no programa Anos Incríveis
o “desenvolvimento da autoestima e de um construção da identidade e da autoestima, para Educadores/Professores “Teacher Clas-
sentimento de pertença” que lhes permite independência e autonomia, consciência de si sroom Management Program” (AI-TCM) nas
“tomar consciência de si mesmas na relação como aprendente, convivência democrática e escolas primárias (que são frequentadas por
com outros”, ao mesmo tempo que lhes dá a cidadania. crianças a partir dos 4 anos, embora ape-
“oportunidade de confrontarem os seus pon- nas aos 6 anos seja obrigatório, as quais
tos de vista e de colaborarem na resolução Das Orientações Curriculares às práticas mudam para o ciclo seguinte aos 12 anos),
de problemas ou dificuldades colocadas por pedagógicas: a oportunidade do o que obriga à criação de condições para
uma tarefa comum, alarga as oportunidades Programa Anos Incríveis para educadores formação dos professores neste programa
educativas, ao favorecer uma aprendizagem de infância o se liga diretamente ao segundo objetivo.
cooperada em que a criança se desenvolve Como responder ao desafio de criar condi- De acordo com números atuais divulgados
e aprende, contribuindo para o desenvolvi- ções de formação que aumentem a proba- pelo Ministério da Educação (Department of
mento e para a aprendizagem das outras”. É bilidade de as práticas pedagógicas dos/as Education and Skylls), até outubro de 2017,
aí também que o/a educador/a vai facilitar “o educadores/as, especificamente no que diz no espaço de 8 anos, foram formados no
desenvolvimento da compreensão do que os respeito ao desenvolvimento das compe- programa AI-TCM 1100 professores em 150
outros pensam, sentem e desejam”, cabendo- tências sócio-emocionais, se alicerçarem nas escolas públicas e 3400 em 450 escolas não
-lhe, “em situações de conflito, apoiar a ex- OCEPE? A resposta a esta questão é comple- públicas (cf. https://www.education.ie/en/
plicitação e aceitação dos diferentes pontos xa e envolve vários níveis de formação e de Press-Events/Press-Releases/2017-Press-Re-
de vista, favorecendo a negociação e a reso- supervisão, auto e hétero, destes profissio- leases/PR2017-10-09.html). O objetivo é que
lução conjunta do problema”. A “regulação da nais da “pedagogia da infância”. nos próximos três anos todos os professores
vida em grupo” é feita com participação das O exemplo da Irlanda pode constituir uma tenham acesso à formação no programa (a

95 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

formação é oferecida pelo governo através


do Government’s Educational Psychological
Service (NEPS).
Por que fomos buscar o exemplo da Irlanda
e, especificamente, da disseminação de um
programa de formação de professores para
o desenvolvimento das competências sócio-
-emocionais das crianças: o AI-TCM? Porque
também em Portugal este programa pode
constituir uma das respostas para passar-
mos das “orientações curriculares” para uma
“prática pedagógica” de promoção do de-
senvolvimento sócio-emocional na educação
pré-escolar.
O programa Anos Incríveis para Educadores/
Professores (Teacher Classroom Manage-
ment – TCM; AI-TCM) faz parte da série de
programas Anos Incríveis (Incredible Years)
da autoria de Webster-Stratton (cf. www.
incredibleyears.com). Tem como alvo profis-
sionais de educação de crianças dos 3 aos 8
anos, incluindo os/as educadores/as de in-
fância, visando o desenvolvimento por estes
de competências positivas de gestão do gru-
po de crianças/sala e de promoção de com-
petências sociais, emocionais e académicas na formação (Webster-Stratton & Bywater, e também em mudanças no comportamento
nas crianças, de resolução de problemas e 2015). O programa AI-TCM tem demonstrado das crianças: um aumento do comporta-
de regulação de emoções negativas, de ami- ser eficaz, em estudos experimentais, não só mento sociável e uma redução de compor-
zade e de interação positiva com os pares na promoção de relações adulto-criança mais tamentos externalizantes (Vale, 2012). Num
(Webster-Stratton, no prelo). É também ob- positivas, mas também na promoção de com- outro estudo, efetuado entre 2009 e 2013,
jetivo do programa a redução de reputações petências sociais e de resolução de problemas o objetivo foi avaliar qual a mais-valia de, si-
negativas e de comportamentos agressivos e nas crianças, em diferentes países (Baker- multaneamente com a intervenção parental
oposicionistas das crianças. Simultaneamen- -Henningham, Scott, Jones, & Walker 2012; com o programa AI para pais de crianças em
te, são promovidas formas eficazes e ativas Hutchings, Martin-Forbes, Daley, & Williams, risco clínico por comportamento disruptivo,
de envolvimento dos pais no jardim de infân- 2013; Webster-Stratton & Taylor, 2001). se oferecer uma intervenção aos/às educa-
cia/escola, assim como a procura de coerência Fazemos parte das equipas que traduziram dores/as de infância dessas mesmas crianças
e consistência na aplicação das estratégias o programa e realizaram os vários estudos com o programa AI-TCM. Os resultados fo-
educativas nos dois contextos: jardim de in- de eficácia conduzidos até ao momento em ram encorajadores, ao mostrarem um impac-
fância e casa. A formação é organizada em 6 Portugal (Seabra-Santos, et al., 2016). Os re- to positivo do programa nas aptidões sociais
workshops mensais, ou com intervalos de três sultados do primeiro estudo, de tipo univer- no jardim de infância avaliadas pelos/as edu-
semanas, com a duração de um dia cada, a sal, realizado entre 2009 e 2010, confirma- cadores/as de infância (Seabra-Santos, et
grupos de 14 a 15 educadores/as e/ou profes- ram que a aplicação do programa a educa- al., 2016). Finalmente, em 2015, foi iniciado
sores/as do 1º ciclo, os quais são conduzidos dores de infância portugueses resulta numa um estudo aleatório com o programa, desta
por dinamizadores com formação no progra- mudança positiva nas suas práticas educati- vez com uma amostra de educadores/as de
ma e, entre os workshops, os profissionais são vas, tal como com os profissionais nos es- jardins de infância frequentados por crianças
estimulados a aplicar as estratégias praticadas tudos já citados conduzidos noutros países, de famílias carenciadas (28 a 100%

96 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


das crianças com subsídio – Escalão A ou B) BIBLIOGRAFIA (Dissertação de Doutoramento não publicada). Dis-
Baker-Henningham, H., Scott, S., Jones, K., & Walker, S. ponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/jspui/hand-
(Major et al, no prelo). Os resultados repli- le/10316/18273
(2012). Reducing child conduct problems and promoting
caram os obtidos com as amostras dos dois social skills in a middle-income country: Cluster ran- Webster-Stratton, C. (2017, no prelo). Como promover
estudos anteriores: um aumento de com- domised controlled trial. The British Journal of Psychia- as competências sociais e emocionais das crianças.
try, 201(2), 101-108. (Coord. Científica de M. Gaspar & M. Seabra-Santos).
portamentos positivos dos/as educadores/ Braga: Psiquilíbrios.
Deming, D. (2015). The growing importance of social
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to das aptidões sociais e uma redução dos Retrieved from http:// scholar.harvard.edu/ les/ddem- partnerships: Parents and teachers working together to
ing/ les/deming_socialskills_ august2015.pdf. 
 enhance outcomes for children through a multi-modal
comportamentos negativos das crianças. evidence based program. Journal of Children’s Services,
Durlak, J., Weissberg, R., Dymnicki, A., Taylor, R., &
Nestas diferentes investigações conduzidas Schellinger, K. (2011). The impact of enhancing students’ 10(3), 202-217. doi:10.1108/JCS-02-2015-0010
em Portugal observou-se ainda uma forte social and emotional learning: A meta‐analysis of Webster-Stratton, C., & Taylor, T. (2001). Nipping early
school‐based universal interventions. Child develop- risk factors in the bud: Preventing substance abuse, de-
adesão à formação pelos/as educadores/as linquency, and violence in adolescence through interven-
ment, 82(1), 405-432.
de infância e graus elevados de satisfação, Cunha, F., & Heckman, J. (2008). Formulating, identify- tions targeted at young children (0-8 years). Prevention
o que comprova o reconhecimento da uti- ing and estimating the technology of cognitive and Science, 2, 165–192. doi: 10.1023/A:1011510923900
noncognitive skill formation. J. Human Resources, 2(43), World Economic Forum (WEF) (2015). New vision for
lidade e aceitação do programa pelos edu- education: Unlocking the potential of technology. Re-
738-782.
cadores portugueses, reforçando a respetiva Heckman, J. (2008). The case for investing in disadvan- trieved from
transponibilidade para o contexto nacional. taged young children. CESifo DICE Report, ISSN 1613- http://www3.weforum.org/docs/WEFUSA_NewVision-
6373, 6(2), 3-8. forEducation_Report2015.pdf
O programa Anos Incríveis não é a respos- World Economic Forum (WEF) (2016). New vision for ed-
Heckman, J., Pinto, R., & Savelyev, P. (2013). Understand-
ta mágica para garantirmos a qualidade da ing the mechanisms through which an influential early ucation: Fostering social and emotional learning through
educação pré-escolar, especificamente na childhood program boosted adult outcomes. American technology. Retrieved from http://www3.weforum.org/
Economic Review, 103(6), 2052-2086. docs/WEF_New_Vision_for_Education.pdf
promoção do desenvolvimento das soft-
Hutchings, J., Martin-Forbes, P., Daley, D., & Williams, M.
-skills, cuja relevância para a saúde e sucesso (2013). A randomized controlled trial of the impact of a
dos indivíduos e das sociedades procurámos teacher classroom management program on the class-
mostrar neste texto. Mas pode ser, sem dú- room behavior of children with and without behavior
problems. Journal of school psychology, 51(5), 571-585.
vida, uma parte dessa resposta, com a chan- Major, S., Gaspar, M. F., Seabra-Santos, M. J., Azevedo,
cela das provas científicas que a apoiam. A., Homem, T., Pimentel, M. & Baptista, E. (no prelo).
Gostaríamos que o texto que apresentamos “Incredible Years Teacher Classroom Management
Program” na promoção da saúde mental: Que compor-
nesta publicação comemorativa dos 30 anos tamentos mudam nos educadores de infância e nas
da APEI constituísse um ponto de partida crianças? Atas do 3º Congresso da Ordem dos Psicólo-
para uma estratégia nacional que disponibili- gos Portugueses, Porto, 2016.
OECD (2015). Skills for social progress: The power of
ze aos educadores de infância, em diferentes social and emotional skills. Paris: OECD Skills Studies,
níveis de formação, a hipótese de utilizarem OECD Publishing. Retrieved from
o programa como mais uma ferramenta na http://dx.doi.org/10.1787/9789264226159-en
Rigney, D. (2010). The Matthew Effect: How advantage
sua missão nobre e insubstituível, marcada begets further advantage. NY: Columbia University
por um dos grandes valores que caracterizam Press.
a APEI, que hoje homenageamos: a perse- Schweinhart, L., & Weikart, D. (1981). Effects of the
Perry Preschool Program on youths through age 15.
verança. Parabéns à APEI e obrigada pelo Journal of the Division for Early Childhood, 4(1), 29-39.
contributo na missão conjunta que nos une: Seabra-Santos, M., Gaspar, M., Tatiana, H., Azevedo,
o bem-estar presente e futuro das nossas A., Silva, I., Vera, V. (2016). Promoção de competências
sociais e emocionais: Contributos dos programas Anos
crianças e por isso da nossa sociedade como Incríveis. In A. M. Pinto & R. Raimundo (org.). Avaliação e
um todo, neste século XXI repleto de desa- promoção de competências socio-emocionais em Portu-
fios mas também com muitas oportunidades gal. Vialonga: Coisas de Ler, 227-261.
Silva, I. (coord.), Marques, L., Mata, L., & Rosa, M. (2016).
para reduzirmos as desigualdades sociais e Orientações curriculares para a educação pré-escolar.
aumentarmos o sucesso, a saúde e o bem- Lisboa: Ministério da Educação/Direção-Geral da Edu-
-estar de todos os cidadãos. cação (DGE)
Vale, V. (2012). Tecer para não ter de remendar: O de-
senvolvimento sócio-emocional em idade pré-escolar e
o programa Anos Incríveis para Educadores de Infância

97 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Brincar e pedagogia em educação de infância
Ana Sarmento Coelho. Professora coordenadora na Escola Superior de Educação - Instituto Politécnico de Coimbra,
investigadora do CEIS20-GRUPOEDE-UC.

A valorização do brincar na infância é, sem abordagens pedagógicas e do currículo, debate e necessita de ser clarificado, tendo
dúvida, uma das características definidoras constituindo um elemento central da evolu- em conta que o desenvolvimento pode ocor-
da profissionalidade dos/as educadores/as ção das ideias e das práticas em educação rer de diversos modos e que existem outros
de infância, que tendem a assumir o brincar de infância. A ideia de que a criança aprende fatores que com ele interagem.
como uma condição para o bem-estar emo- através do brincar e de que o brincar cons- No centro da discussão acerca do lugar do
cional da criança e também como uma forma titui uma experiência vital, através da qual a brincar na pedagogia para a infância está,
natural de ela aprender. Esta é uma dimen- criança desenvolve competências, nomeada- pois, a relação entre o brincar, o desenvol-
são central do pensamento e do discurso mente sociais e cognitivas e uma compreen- vimento e a aprendizagem, relação que ana-
dos educadores de infância, nomeadamente são do mundo, faz parte da narrativa pro- lisámos noutra publicação (Coelho & Vale,
dos portugueses, e também um aspeto do- fissional do campo da educação de infância. 2017) de forma mais extensa. Essa relação
minante das pedagogias ocidentais. Alguns Todavia, a visão ocidental do brincar tem tem sido, para Pramling Samuelsson e Pra-
autores referem-se a um ethos do brincar sido também descrita como uma idealiza- mling (2013), marcada por duas grandes tra-
que impregnou as pedagogias e as próprias ção romântica (Pramling Samuelson & She- dições dentro do quadro das tendências pe-
políticas para a infância (Kernan, 2007), o ridan, 2010; Ferreira, 2004, entre outros) e dagógicas que dominaram na Europa. De um
qual foi influenciado por pedagogos e re- alguns consideram o ethos do brincar ex- lado, a tradição que se funda sobretudo nos
formadores como Froebel ou Decroly, que cessivo e pouco sustentado, argumentando pedagogos reformadores e nas suas ideias
conferiram estatuto educacional ao brincar, que o seu valor desenvolvimental não está acerca do desenvolvimento global da criança,
e posteriormente pelas ideias progressistas demonstrado (Smith & Pellegrini, 2013). Estes na ideia da criança ativa e do brincar como
de autores como Dewey. autores, embora reconheçam que o brincar é um meio através do qual a criança aprende.
Na verdade, o brincar tem sido assumido necessário às crianças pequenas, argumen- Esta é ainda hoje a perspetiva dominante nos
como o ofício da criança (Chamboredon & tam que o seu papel exato no desenvolvi- países escandinavos, onde o brincar é visto
Prévôt, 1982) e como dimensão central das mento e na aprendizagem está ainda em como o meio através do qual as crianças co-
nhecem e dão sentido ao mundo, se sentem
em controlo, expressam as suas perspetivas,
analisam as experiências e resolvem proble-
mas. De outro lado, o movimento das infant
schools, com origem na Grã-Bretanha, mais
focado na aprendizagem de conteúdos, sen-
do neste caso o brincar encarado sobretudo
como uma forma de relaxar entre atividades
ou lições. Nos países em que domina o mo-
delo de pré-escolarização ou prontidão para
a escola, o brincar tende a ser associado à
necessidade de se identificarem as suas fi-
nalidades ou funções específicas em termos
de aprendizagem e de desenvolvimento,
frequentemente articuladas sob a forma de
conteúdos académicos específicos.
Porém, para além dessas tradições, identifi-
ca-se na atualidade a generalização do que
Whitebread, Basilio, Kuvalja e Verma (2012,
p. 5) designam como “tensões dentro da are-
na educacional”, que têm vindo a tornar-se
transversais a todo o campo da educação de
infância, ligadas nomeadamente com aspe-
tos da vida contemporânea como a aversão

98 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


ao risco, o distanciamento em relação à Na-
tureza e a ênfase na escolarização precoce
condensada na ideia de que mais cedo é me-
lhor. Esta ideia tem sido ligada com a pres-
são curricular “para baixo” e com a dissemi-
nação de discursos e modelos de educação
de infância que sustentam projetos educati-
vos entendidos como tecnologias para a re-
gulação social e para o sucesso económico,
cujo foco é a preparação para competir e ter
sucesso para fazer face às exigências de uma
economia global crescentemente competiti-
va (Dahlberg & Moss, 2005). Esta tendência,
que se tem acentuado nas últimas décadas,
tem afetado o estatuto do brincar e a sua
relação com a aprendizagem na educação
de infância. A pressão no sentido da intro-
dução precoce de conteúdos e formatos
académicos tem sido descrita a nível inter-
nacional como diminuindo não apenas as
oportunidades para as crianças brincarem,
mas mais genericamente as oportunidades
para tomarem iniciativas e conduzirem os
seus próprios projetos de aprendizagem,
explorarem a realidade, serem envolvidas em
experiências de índole artística e, generica-
mente, serem reconhecidas na sua agência
e competência. Embora a investigação sobre
os efeitos dos currículos tenha demonstrado frequentemente reduzido às pausas entre (Kernan, 2007). Por outras palavras, ainda
que abordagens demasiado focadas em ha- atividades educacionais ou entendido como que a ideia de aprender através do brincar
bilitações académicas aumentam a probabili- recompensa pelo sucesso nessas atividades. tenha raízes históricas e esteja bem estabe-
dade de a criança experienciar precocemente Neste contexto, não é de estranhar que a lecida em educação de infância e haja um
o insucesso, sobretudo em grupos com bai- relação do brincar com a aprendizagem no consenso acerca do valor e dos benefícios
xo estatuto socioeconómico, promovendo campo da educação de infância seja fre- do brincar, constatam-se simultaneamente
na criança perceções negativas acerca das quentemente assinalada na literatura como dificuldades inerentes e generalizadas, tanto
suas competências e de si como aprendiz, ambígua. Correspondendo muitas vezes a conceptuais como práticas, já que frequen-
a introdução precoce de habilitações acadé- uma retórica desfasada da realidade expe- temente essas ideias não se projetam nas
micas tem vindo a ganhar terreno. As mu- riencial das crianças, essa ambiguidade é ora práticas pedagógicas, podendo dizer-se que,
danças e pressões dentro dos sistemas de descrita como uma utopia nostálgica, sobre no momento atual, o brincar tem um esta-
educação de infância visando o controlo do a qual muitas vezes os adultos não têm uma tuto instável, ambíguo e precário em muitos
modo como o currículo é desenvolvido e dos ideia clara (Pramling Samuelsson & Fleer, contextos de educação de infância (Rogers,
resultados a obter, com exigência progres- 2010), ora como um paradoxo, já que embora 2011).
sivamente maior para preparar as crianças o brincar seja afirmado como o modo como Sue Rogers (2011), num interessante artigo
para mundos académicos e profissionais as crianças aprendem, se observa que ele é com o título sugestivo “Brincar e Pedago-
competitivos e as próprias expectativas arredado em favor do “trabalho” ou usado gia: um conflito de interesses?”, interroga-se
dos pais tendem a fazer que o brincar seja como recompensa por um “bom” trabalho acerca da pedagogia do brincar, tão disse-

99 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


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minada na literatura e no campo da educa- iniciativa da criança e a aprendizagem como de ter em conta os objetivos definidos pelos
ção de infância e do modo como as práti- resultado das iniciativas do adulto), as auto- adultos para o brincar e, ao mesmo tempo,
cas pedagógicas moldam as experiências de ras afirmam que as crianças não separam o permitir que as crianças se envolvam em ati-
brincar das crianças pequenas em contextos brincar e o aprender na sua ação, embora o vidades lúdicas verdadeiramente significativas
de educação de infância. Apesar da vasta possam fazer no seu discurso, distinção que e intrinsecamente motivadas. Isto é pedago-
literatura sobre o assunto, afirma a autora, tende a ser mediada pela cultura escolar pre- gicamente desafiador se queremos evitar a
a resposta é difícil e a ligação entre brincar valecente. Esta reconceptualização permite dicotomia brincar/trabalhar, que persiste em
e pedagogia é problemática por diversas também avançar sobre a ideia meramente educação de infância, ou o risco de “pedago-
razões. Primeiro, porque tradicionalmente o utilitária e instrumental do brincar para efei- gizar” o brincar ao ponto de perdermos de vis-
brincar tem sido posto em oposição ao tra- tos de aprendizagem e de desenvolvimento – ta as qualidades de afeto positivo e motivação
balho, em geral mais valorizado, divisão que o aprender através do brincar que predomina intrínseca que lhe são inerentes.
tende a impedir uma integração do brincar em educação de infância –, em direção a um Num sentido idêntico, Pramling Samuelsson e
na prática pedagógica. Em segundo lugar, entendimento de que brincar e aprender são Pramling (2013) referem-se a abordagens em
porque a teorização do “brincar como traba- processos contínuos, sendo, pois, sobretudo que brincar e aprender são integrados numa
lho” pode obscurecer os modos através dos interessante indagar as disposições e proces- pedagogia investigativa, que enfatiza a co-
quais o brincar se torna uma técnica de con- sos comuns ao brincar e à aprendizagem. municação e a interação e uma conceção do
trolo social e um meio de transmitir crenças e Também para Rogers (2011) uma possível al- conhecimento como processo de construção
assunções acerca da natureza e do propósito ternativa para recontextualizar o brincar nos de significados, considerando essas aborda-
da infância, como assinalado pelos sociólo- modelos pedagógicos consiste em repensar gens úteis na reconceptualização da relação
gos da infância. Por último, afirma a autora, a nossa compreensão da pedagogia a par- entre brincar, aprendizagem e pedagogia. Tais
porque a pedagogização do brincar observa- tir e na relação com as suas características abordagens observam-se em educadores que
da em muitos países tem-se tornado, cada e benefícios. Tomadas separadamente, as encaram o conhecimento em termos dos sig-
vez mais, um instrumento para a aprendiza- palavras “brincar” e “pedagogia” têm signi- nificados que as crianças criam, consideram o
gem de competências futuras, enfatizando ficados distintos no discurso educacional, modo como elas dão sentido ao mundo à sua
o realismo social mais do que as qualidades já que a primeira tende a ser compreendida volta, tomam as suas perspetivas em conside-
transformativas, miméticas e prazerosas do como espontânea, dirigida pela criança e in- ração e ampliam-nas, já que na origem tan-
brincar. trinsecamente motivada, enquanto a segunda to do brincar como da aprendizagem está a
Estas e outras ambiguidades têm levado a se associa habitualmente ao papel do adulto criação de significados (Pramling Samuelsson
que, nos últimos anos, se considere necessá- na oferta de um ambiente e estratégias que & Johansson, 2009). Estas abordagens impli-
rio rever as ideias assumidas como verdades apoiem os processos de ensino e de aprendi- cam também que o adulto esteja atento aos
em relação à posição central que o brincar zagem. Rogers (2011) sugere uma abordagem objetos de aprendizagem em que a criança
assume na vida das crianças em contextos alternativa, propondo que o brincar seja visto se detém quando brinca, num processo que
de educação de infância, nomeadamente a partir de dentro, propondo nomeadamente Ridgway, Quinones e Li (2015) definiram como
através da reconceptualização da dicoto- que os adultos indaguem e reflitam acerca reciprocidade conceptual e que descreveram
mia brincar/trabalhar e brincar/aprender. das perspetivas das crianças sobre o brincar como a situação em que o adulto traz para o
Pramling Samuelsson e Carlsson (2008) e o seu valor. Tal permitirá que o conteúdo, brincar da criança conhecimento de conteú-
introduzem a este respeito o conceito de natureza e dinâmica do brincar suporte a pe- do, pois, como afirmam Pramling Samuelsson
playing-learning child, que corresponde à dagogia, de uma forma relacional e recíproca. e Carlsson (2008), todo o brincar tem um con-
ideia de criança que não separa o brincar Assim, vendo a pedagogia do brincar como teúdo e quanto maior a aproximação entre
do aprender, se relaciona com o mundo de emergente, coconstruída e relacional, a auto- esse conteúdo e os resultados de aprendiza-
um modo lúdico, criando ideias, fantasiando, ra sugere que o brincar da criança influencie gem visados pelos educadores, mais integrada
ao mesmo tempo que explora a realidade e a pedagogia, em vez de, como é o caso em será a prática. A construção de conhecimento
constrói significados. Reconhecendo que em muitas salas de educação de infância e em de conteúdo deve, contudo, valorizar a pers-
geral a distinção entre o brincar e a aprendi- certas abordagens pedagógicas, a pedagogia petiva da criança, criando oportunidades de
zagem (ou o “trabalho”) radica em quem tem influenciar o brincar das crianças. Segundo intenções partilhadas, em que o adulto inte-
a iniciativa (o brincar como uma atividade da Rogers, estamos perante o duplo propósito rage desafiando e “andaimando” o brincar e

100 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


a aprendizagem, mas mantendo a dimensão dade” (p. 28). Compreender o direito a brincar de decisão. Olhando para estes cinco níveis,
comunicacional e criativa e a agência da crian- como direito de participação implica, pois, afirma Pramling Samuelsson (2010), podemos
ça, sem intrusão nem comprometimento das conhecer as suas perspetivas e dar-lhes voz, questionar-nos acerca de como é que eles se
qualidades e da intensidade do brincar, ou do através do respeito pelas suas iniciativas, pro- relacionam com a vida diária das crianças e
que Bruce (2006) descreveu como o fluxo livre duções e significados, incluindo o seu brincar. como os e as educadoras deixam as crianças
do brincar. Pramling Samuelsson (2010) relaciona também participar, nomeadamente nas decisões que
Por outro lado, entendemos que o direito a o brincar e a aprendizagem das crianças com dizem respeito à sua atividade lúdica, num
brincar como direito à infância se relaciona a participação e apresenta o modelo de Har- processo que contribui para dar-lhes voz e
também com os direitos de participação que ry Shier (2001 in op. cit), descrito através de influência e também para tornar o seu brin-
são assegurados às crianças em contextos de níveis progressivamente crescentes de parti- car visível. Utilizando este modelo num estu-
educação de infância. Júlia Oliveira Formosi- cipação e de envolvimento das crianças nos do realizado em seis jardins de infância com
nho (2007) afirma que as pedagogias partici- processos de decisão: 1) as crianças são es- crianças de cinco anos, a autora verificou ter
pativas tornam necessária a escuta entendida cutadas; 2) as crianças são encorajadas a ex- sido em relação ao brincar que as crianças
como um processo que procura conhecimen- pressar as suas perspetivas; 3) as perspetivas evidenciaram níveis maiores de iniciativa, in-
to sobre as crianças, “seus interesses, moti- das crianças são tomadas em consideração; 4) fluência e poder.
vações, relações, saberes, intenções, mundo as crianças estão envolvidas nos processos de Julgamos que estes dados reforçam a ideia
de vida, realizada no contexto da comunidade tomada de decisão; 5) as crianças partilham da centralidade do brincar na educação de
educativa procurando uma ética de reciproci- o poder e a responsabilidade pelas tomadas infância e a importância de os adultos apro-

101 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


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fundarem pedagogias participativas que, ço familiar, através da deslocação do brincar à luz da pedagogia de fronteira que Teresa
sendo diversas, coloquem a comunicação, a para os quartos das crianças, onde prolife- Vasconcelos (2009) propõe para a educação
interação e o cuidado ético no centro, e des- ram tecnologias que os transformam literal- de infância, num processo de redefinição
se modo intencionalizem o brincar da criança mente em ambientes lúdicos virtuais (Ker- que faça justiça ao potencial comunicador e
na sua potencialidade comunicativa, relacio- nan, 2007), sem sensorialidade, interação e expressivo, mas também transformador, cul-
nal, cognitiva e sociocultural. Essa forma de sentido autêntico de comunidade, mas que tural, heurístico e fenomenológico do brincar
encarar o processo de intencionalização edu- os adultos tendem a valorizar como seguros das crianças. Encarando o brincar como um
cativa do brincar parece-nos também poder e uma alternativa a vivência mais autênticas, ato expressivo e espontâneo da criança, fun-
contribuir para diminuir a sua marginalização nomeadamente no espaço exterior. damental ao conhecimento de si e do mun-
e segregação. Este último aspeto é especial- Como fizemos notar em publicação anterior do, Cunha e Gonçalves (2015) afirmam: “A
mente importante, pois sabemos que nas (Coelho & Vale, 2017), diminuir o fosso entre infância é uma espécie de ponto de partida
sociedades ocidentais o brincar das crianças o que significa a criança estar a brincar ou a que sai do lugar para outros lugares dentro
tem sido progressivamente marginalizado e aprender (e estar a brincar ou a trabalhar) e de si. Nela, têm-se pensamentos e fazem-se
segregado, por exemplo em áreas específicas pensar nas oportunidades que são (ou não) perguntas que não são do campo da racio-
das salas de educação de infância, recreios e dadas para que o brincar inspire a pedago- nalidade, mas do campo fenomenológico –
parques temáticos (Baumer, 2013), segrega- gia e se expanda em projetos partilhados de ou seja, do campo que abre o pensamento”
ção que se observa dentro do próprio espa- aprendizagem, pode igualmente ser pensado (p. 69). Para os autores, este brincar, que
é encarado como expressão, mas também
como realização (exploram, aliás, a dimensão
estética do brincar e as suas afinidades com
a obra de arte), contrapõe-se ao “brincar di-
dático”, denotador de “uma conceção hege-
mónica do brincar na literatura científica” (p.
23), que estreita a temática do brincar e do
brinquedo a um olhar “uniforme”, “obedien-
te”, “que espera resultados”.
Avançar sobre a mera retórica e uma incon-
sequente idealização do brincar, refletindo
sobre as suas finalidades e o estatuto que
lhe é conferido em contextos de educação
de infância, obriga, pois, a centrar a discus-
são nos significados e não nos resultados
e a pensar as dimensões comunicacionais,
interativas e também culturais que lhe são
inerentes. Implica que, reconhecendo o
brincar como um fenómeno universal, tam-
bém se reconheça e respeite que é um fe-
nómeno multifacetado, sob influência de
diferentes atitudes relativas à natureza da
infância e ao valor do brincar. Implica ainda
que essa reflexão considere a natureza poli-
cêntrica dos centros para a infância, já que
como Teresa Vasconcelos (2009) sugere, “o
discurso da criança como centro (child cen-
tered curriculum and education), típico do
universo norte-americano com pretensões

102 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


de exportação para todo o mundo” (p. 54), Esta reflexão terá, contudo, que ser rea- res para a Educação-Pré-escolar. Lisboa: Ministério da
Educação/Direção Geral da Educação.
deve ser questionado em favor de uma edu- lizada com o envolvimento ativo dos e das Oliveira-Formosinho. J. (2007). Pedagogia(s) da infân-
cação de infância policêntrica, que assume educadoras na discussão das condições em cia: Reconstruindo uma práxis de participação. In J. Oli-
que no centro estão de facto as interações que vivem a profissão, incluindo os constran- veira-Formosinho, T. M. Kishimoto, M. A. Pinazza (orgs).
Pedagogia(s) da Infância: Dialogando com o passado,
ou a natureza interativa de todas as relações, gimentos que os afetam, mas também das Construindo o futuro (pp. 13-36). Porto Alegre: Artmed.
atividades (incluindo o brincar) e contextos suas crenças e conceções educativas e das Pramling Samuelsson, I. & Fleer, M. (eds) (2010). Play
e a sua interdependência. Esta perspetiva é práticas concretas. O facto de as e os edu- and learning in early childhood settings: International
perspectives. New York: Springer.
importante nomeadamente para contrariar a cadores portugueses disporem, no momento Pramling Samuelsson, I. & Pramling, N. (2013). Play and
individualização do pensamento pedagógico atual, de orientações curriculares (ME, 2016) learning. Encyclopedia on Early Childhood Develop-
que parece decorrer da ideia da criança como que valorizam explicitamente o brincar na ment [online]. Available at http:www.child-encyclope-
dia.com/documents/Pramling-SamuelssonANGxp1.pdf.
centro, e que Lohmander e Pramling Samuel- sua relação com a aprendizagem e com a pe- Acedido em 20.07.2015.
sson (2015) também assinalaram ao consta- dagogia é seguramente uma vantagem. Con- Pramling Samuelsson, I. (2010) Participation and lear-
tarem que a grande preocupação das edu- tudo, cabe a cada educador/a, na análise da ning in the early childhood education context. Euro-
pean Early Childhood Education Research Journal,
cadoras que participaram no seu estudo era sua prática concreta e numa reflexão dese- 18(2), 121-124.
“terem tempo para apoiar individualmente javelmente ampliada com os seus pares, es- Pramling Samuelsson, I., Carlsson, M. (2008). The
cada criança”, levando os autores a afirmar clarecer e aprofundar como entende, reflete playing learning child: Towards a pedagogy of early
childhood. Scandinavian Journal of Educational Re-
que a pedagogia pré-escolar parece estar a nas suas práticas e passa para as crianças as search, 52(6), 623-641.
tornar-se individualizada e que a compreen- suas próprias representações e categoriza- Pramling Samuelsson, I., Johansson, E. (2009). Why
são do pré-escolar como uma arena coletiva ções relativas ao brincar. do children involve teachers in their play and learning?
European Early Childhood Education Research Journal,
para a aprendizagem da criança parece estar 17(1), 77-94.
a ser perdida. Pramling Samuelsson, I., Sheridan, S. (2010). Play and
A reflexão acerca do brincar e do seu lu- learning in Swedish early childhood education. In I. Pra-
mling-Samuelsson & M. Fleer (eds) Play and learning
gar nas práticas pedagógicas parece-nos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS in early childhood settings, International perspectives
também urgente à luz das transformações Baumer, S. (2013). Play pedagogy and playworlds. In PK (pp.135-154). Dordrecht: Springer.
Smith, topic ed. Encyclopedia on Early Childhood Deve-
e dos constrangimentos que têm vindo a Ridway, A., Quiñones, G., & Li, L. (2015). Early childhood
lopment [online]. Available at http:www.child-encyclo- pedagogical play. Singapore: Springer.
acentuar-se nas realidades concretas da pedia.com/documents/BaumerANGxp1.pdf. Acedido Rogers, S. (2011). Rethinking play and pedagogy in early
educação de infância no nosso país. Esses em 20.07.2015 childhood education. New York, Routledge.
Bruce, T. (2006). O brincar, o universo e tudo! In J. R.
constrangimentos, nomeadamente o foco, a Smith, K., Pellegrini (2013). Learning through play. In
Moyles (org.), A excelência do brincar (pp. 217-227). Por- PK Smith, topic ed. Encyclopedia on Early Childhood
que aludimos atrás, nos resultados e numa to Alegre: Artmed. Development [online]. Available at http:www.child-en-
definição estreita de sucesso educativo, con- Chamboredon, J. C., Prévot, J. (1982). O Ofício de cyclopedia.com/documents/Smith-PellegriniANGxp2.
Criança. In R. Grácio; S. Stoer & S. Miranda (orgs.).
diciona com demasiada frequência o brincar pdf. Acedido em 20.07.2015.
Sociologia da Educação II. Antologia – A Construção Vasconcelos, T. (2009). A educação de infância no cru-
à tipologia dos espaços organizados para Social das Práticas Educativas (pp. 51-77). Lisboa: Li- zamento de fronteiras. Lisboa: Texto.
as crianças (menos frequentemente pelas vros Horizonte. Whitebread, D., Basilio, M., Kuvalja, M. & Verma, M.
Coelho, A., Vale, V. (2017). Reflexões em torno do brin-
ou com a participação das crianças), como (2012). The importance of play: a report on the value
car em contextos de educação de infância. Revista Ob- of children’s play with a series of policy recommen-
também à tipologia dos “tempos”/rotinas. servatório, 3 (6), 316-333. dations. Brussels, Belgium: Toys Industries for Europe.
Nestas categorizações retoma-se, em geral, Cunha; A., Gonçalves, S. (2015). A criança e o brincar
como arte: Analogias e sentidos. Lisboa: Whitebooks.
a separação entre o brincar improdutivo (ain-
Dahlberg, G. & Moss, P. (2005). Ethics and politics in
da que “livre” e reconhecido como essencial early childhood education. New York: RoutledgeFalmer.
à saúde e bem-estar da criança) e o trabalho Ferreira, M. (2004). “A gente gosta é de brincar com os
outros meninos!”, Relações sociais entre crianças num
ou a atividade, estes últimos associados à
jardim-de-infância. Porto: Afrontamento.
aprendizagem. Em simultâneo, há ainda que Kernan, M. (2007). Play as a Context for Early Learning
refletir acerca do risco de desvitalizar o brin- and Development, Research paper. Dublin: National
Council for Curriculum and Assessment. Available at
car das suas qualidades, ao confiná-lo não
www.ncca.ie/earlylearning. Acedido em 18.02.2011.
apenas a espaços e a tempos determinados, Lohmander, M. K, Pramling Samuelson, I. (2015). Play
mas também eventualmente a modos que and learning in early childhood education in Sweden.
Psychology in Russia: State of Art, 8(2), 18-26, 2015.
lhe retiram agência e potencial criador.
Ministério da Educação (2016). Orientações Curricula-

103 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
Perspetivas pedagógicas para a educação em creche:
princípios convergentes e implicações para a prática
Sara Barros Araújo. Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto

Os 30 anos da revista Cadernos de Educação Alargámos também o número de abordagens centradas na dependência e no défice, que
de Infância representam três décadas de con- que serviram de sustentáculo à presente aná- regularmente condicionam a sua assunção
tributos incontornáveis para a educação de lise. Assim, às quatro abordagens que enfor- enquanto participante naquilo que lhe diz
infância, através da disseminação de artigos maram a nossa primeira análise – a perspetiva respeito. Nestas propostas, a criança não é
destinados à comunidade profissional, onde a educativa da pedagogia em participação, a caracterizada com referência à sua falta de
atenção privilegiada às práticas não inibe um abordagem HighScope, a perspetiva de Reg- competência nem excluída em decorrência
foco na(s) teoria(s), na investigação ou nas gio Emilia, a proposta de Elinor Goldschmied da variável idade. Antes representam pro-
políticas. – acrescentamos a proposta de Emmi Pikler postas que contrariam uma tendência notó-
Perante o convite da APEI para contribuir para e das suas colaboradoras do Instituto Lóczy. ria para a invisibilidade dos bebés e crianças
o número que celebra estes 30 anos, optei por O estudo destas perspetivas faz emergir uma mais pequenas (Gobbato & Barbosa, 2017) e
centrar-me na pedagogia em creche, não só primeira evidência significativa: a de que fo- para o silenciamento e discriminação deste
pela evidente necessidade de refletirmos in- ram geradas a partir de uma atenção particular segmento social (Rosemberg, 2011).
dividual e coletivamente sobre as experiências aos primeiros três anos de vida, concentran- No âmbito da pedagogia em participação é
nestes contextos educativos para crianças do-se nas particularidades das crianças mais reconhecida a agência e competência par-
nos primeiros três anos de vida, mas também novas e em contextos relacionais e materiais ticipativa de bebés e crianças pequenas. O
por ter sido, na última década, um dos focos pedagogicamente sensíveis e responsivos às seu direito à escuta e à participação associa-
prioritários de motivação e preocupação no suas motivações, necessidades e direitos. São, -se ao reconhecimento da sua competência
âmbito da minha atividade profissional. Mais ainda, propostas que beneficiaram de uma para explorar, descobrir, comunicar, criar e
especificamente, retomo neste artigo um tra- construção paulatina ao longo de algumas construir significados (Oliveira-Formosinho
balho de análise comparativa entre diferentes décadas, ciclicamente refletidas na interface & Araújo, 2013). A inclusão das diversidades
perspetivas pedagógicas, com vista à identifi- entre a prática e a teoria, o que reforça o seu é assumida como respeito e responsividade
cação de convergências ao nível dos princípios reconhecimento enquanto sustentáculos rele- a todas as suas manifestações, não apenas
que as norteiam. A primeira análise tentativa vantes da pedagogia em creche. aquelas que mais recorrentemente são evo-
destes princípios foi apresentada em 2009, no Nos próximos pontos, serão apresentados cadas (cultura, etnia, língua, religião, género
âmbito de encontros Ser Bebé, uma relevante seis princípios identificados, procurando es- ou existência de necessidades educativas es-
iniciativa da APEI que dava então os seus pri- clarecer os modos como a sua presença se peciais), mas também aquelas que emergem
meiros passos. Oito anos volvidos, a análise concretiza nas perspetivas pedagógicas anali- de outras diferenças individuais, incluindo
de novos referentes teóricos, o diálogo com sadas. Com este exercício analítico não se pre- a etária (ibidem). Uma imagem de criança
profissionais do terreno e da academia e, so- tende anular a identidade de cada uma destas que encontra semelhanças naquela que en-
bretudo, o envolvimento em processos for- perspetivas; pretende-se antes reconhecer a contramos na proposta de Reggio Emilia e
mativos e investigativos, traduziram-se numa riqueza identitária que as caracteriza do ponto declarada de forma inequívoca pelo grande
revisão dessa análise e respetivos resultados. de vista valorativo, teórico e pragmático, sem mentor da experiência reggiana, Loris Mala-
Consideramos que esta oportunidade de en- deixar de constatar as suas similitudes, certa- guzzi. O pedagogo adianta uma imagem de
cetar um processo revisitador e revisionista mente reveladoras da significância pedagógi- criança com direitos, curiosa, produtora de
não deixa de constituir uma condição essen- ca que estas aproximações representam nos cultura, competente na experimentação do
cial à construção de conhecimento, por defi- quotidianos das creches. A par de princípios mundo e na comunicação dos seus pensa-
nição marcado pela incompletude, incerteza norteadores, procurar-se-á dar atenção a uma mentos, emoções e dos significados que
e necessária abertura epistemológica (Morin, componente mais manifesta destas aborda- constrói (Malaguzzi, 1994). Esta concepção
2008). Deste processo de revisão emergiu, gens, corporizada em implicações para a prá- encontra-se claramente patenteada em Uma
por um lado, a constatação de que os prin- tica, coerentes com os princípios advogados. Carta dos Três Direitos, que “atribui às crian-
cípios anteriormente apurados mantém-se ças potencialidades naturais de extraordiná-
centralmente definidores da pedagogia em 1. Imagem de criança ativa e competente ria riqueza, força, criatividade, as quais não
creche e, por outro lado, a necessidade de As perspetivas analisadas comungam de um podem ser desconhecidas e desiludidas sem
alargamento dessa constelação de princípios, primeiro princípio seminal: o reconhecimen- provocar sofrimentos ou empobrecimentos
em muito derivada da experiência empírica to da competência da criança nos primeiros na maioria das vezes irreversíveis” (Malagu-
que anteriormente referi. três anos de vida, rejeitando-se imagens zzi, 1993, p. 2).

104 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


Por seu turno, na abordagem HighScope, porcionadas experiências fecundas ao nível no diálogo, influenciando com pleno direito
a criança é um aprendiz sensoriomotor e do desenvolvimento e bem-estar. Este re- as situações em que se encontra envolvida
ativo que aprende através da utilização do conhecimento surge refletido no próprio tí- (Tardos, 2012). Anna Tardos (2012) refere,
seu corpo para investigar o que a rodeia e tulo original da obra de referência da auto- a este propósito, que a partir do momen-
através da interação com os outros (Kru- ra, escrita em parceria com Sonia Jackson, to em que o adulto aceita e compreende
se, 2005). Esta concepção surge plasmada People under three: young children in day o significado da necessidade e atitude da
nas proposições que a abordagem propõe, care (1994, 2004). Também na concepção criança de atuar de forma autónoma, esta
construídas na intersecção da teoria e da de Pikler-Lóczy, a criança é reconhecida não poderá continuar a ser considerada um
prática: (i) as crianças aprendem com todo como pessoa acompanhada e apoiada, um ser submetido.
o seu corpo e com todos os seus sentidos; sujeito participativo e colaborador ativo,
(ii) aprendem porque querem aprender; (iii) e não um objeto manipulado ou dirigido 2. A centralidade da interação adulto-
comunicam aquilo que sabem; e, (iv) apren- (Falk, 2012). De facto, nesta perspetiva, -criança
dem no contexto de relações de confiança é de grande centralidade a forma como a As relações e interações na creche têm
(Post & Hohmann, 2003; Post, Hohmann & criança nos primeiros anos de vida é con- granjeado uma atenção privilegiada nas
Epstein, 2011). siderada pelo adulto, sendo que ela deixa abordagens analisadas. Estas assumem
A proposta de Elinor Goldschmied reco- de ser simplesmente o objeto das atenções unanimemente a importância do papel do
nhece as crianças com menos de três anos e afeto daquele para ser considerada uma adulto enquanto aconchego, referência e
enquanto pessoas a quem devem ser pro- companheira na relação e uma interlocutora mediador.

105 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Constituindo uma das dimensões vitais da Em creche, a proposta reggiana adianta as expressos sob a forma de interações quoti-
pedagogia, na concepção da pedagogia em ideias de um/a educador/a de referência e dianas próximas, o que radica numa aborda-
participação as interações são instituintes de vinculação partilhada (Malaguzzi, 1998). gem em que um/a educador/a específico/a
da identidade de bebés e crianças peque- Este conceito (e prática) encontra as suas se centra de uma forma mais atenta, sis-
nas (Oliveira-Formosinho & Araújo, 2013). bases na evidência de que, desde muito temática e prolongada nas necessidades de
O respeito pelos direitos e competência da cedo, as crianças possuem uma predispo- um grupo específico e restrito de crianças.
criança materializa-se, na intervenção do/a sição para formar laços significativos com Finalmente, também a proposta de Emmi
educador/a, na (co)construção de ambien- adultos para além dos pais, sem colocar em Pikler defende o valor daquilo que Kálló
tes e situações interativas que efetivem a causa as responsabilidades e prerrogativas (2016) designa as relações pessoais está-
criação de múltiplas zonas de desenvolvi- destes (ibidem). De facto, e após anos de veis da criança, considerado um dos quatro
mento próximo e de diferenciação pedagó- reflexão acerca do papel do adulto em cre- princípios básicos do cuidado com bebés
gica (Oliveira-Formosinho, 2007). che, a comunidade reggiana aceitou a res- em espaços coletivos e uma condição basi-
Neste apartado, a abordagem HighScope ponsabilidade emocional da formação de lar para que a criança se sinta rodeada por
enfatiza a centralidade das relações de con- laços significativos com os bebés e crianças um meio abrangente e compreensível (Falk,
fiança entre a criança e o adulto, caracteri- pequenas, embora qualitativamente dife- 2012, p. 29). Rejeitando qualquer ideia de
zadas pelo respeito, cuidado, positividade, rentes da mãe (Mantovani, 2001). No âmbi- tratamento mecânico ou despersonalizado
reciprocidade, consistência e continuidade to desta reflexão, o papel do/a educador/a dos bebés e crianças mais novas, esta pro-
(Kruse, 2005; Post & Hohmann, 2003). É passou de uma atenção exclusiva à criança posta enfatiza a relevância do vínculo entre
reconhecida a importância dos processos para uma atenção à criança e aos pais, mu- crianças e adultos, da sintonização mútua
de vinculação que, ao propiciarem à criança dança tornada possível por duas caracterís- e dos momentos compartilhados. Através
uma base de segurança e conforto, promo- ticas centrais desta experiência italiana: o de observações diretas, Pikler reconheceu
vem a exploração e o desenvolvimento da elevado grau de continuidade e a participa- a importância das mãos da educadora, isto
curiosidade, coragem, iniciativa, empatia, ção e envolvimento familiares sistemáticos. é, das formas de pegar, segurar, mover as
sentido de si própria e o sentimento de per- A centralidade da interação adulto-criança extremidades ou todo o corpo do bebé, de
tença a uma comunidade social amigável também surge espelhada na proposta de modo a que, desde muito cedo, e a partir
(Post, Hohmann & Epstein, 2011). Em termos Goldschmied e colaboradores através da deste vínculo, este esteja aberto à relação,
práticos, são adiantadas quatro estratégias abordagem da pessoa-chave (key-person, ao contexto e aos acontecimentos com ele
básicas para a construção e manutenção de no original) (Elfer, Goldschmied & Selleck, relacionados (Kálló, 2016). Nesta medida, é
relações de apoio e respeito: (i) fomento 2003, 2012; Goldschmied & Jackson, 1994; reconhecido o papel da educadora de re-
da continuidade ao nível dos processos; (ii) 2004). Esta abordagem é definida como um ferência ou privilegiada, que é a primeira
criação de um clima de confiança; (iii) for- modo de trabalhar nas creches em que o responsável pelo bem-estar de um peque-
mação de parcerias com a criança; e, (iv) foco e a organização se centram na promo- no grupo de crianças e pela criação de uma
apoio contínuo das intenções das crianças, ção e apoio a vinculações estreitas entre relação estável, continuada, autêntica e
através do conhecimento, respeito e aber- crianças específicas e adultos específicos calorosa dentro da instituição (Falk, 2012).
tura aos seus interesses e ideias. (Elfer, Goldschmied & Selleck, 2003, 2012). A qualidade desta relação é muito signifi-
A relevância da interação adulto-criança en- Goldschmied e Jackson (1994) argumentam cativa, por exemplo, no apoio à atividade
quadra-se, na perspetiva de Reggio Emilia, que o estabelecimento de relações privile- autónoma da criança, um dos elementos
numa concepção mais ampla de educação giadas entre um adulto e uma criança exige essenciais do pensamento de Pikler. Este
enquanto relação (Malaguzzi, 1998, p. 13). condições propícias, nomeadamente a con- apoio é efetivado, entre outras estratégias,
Na ótica de Malaguzzi (1998), a relação é tinuidade e constância ao nível das intera- através da criação de um vínculo profundo
concebida como a dimensão conectora pri- ções, assim como um rácio adulto/ crian- e estável com a criança, da compreensão do
mária de todo o sistema. O autor refere a ças que permita ao primeiro uma atenção valor afetivo do sentimento de competência
ideia de pedagogia da relação, defenden- privilegiada a cada criança, sobretudo ao da criança, da riqueza linguística durante os
do a inextricável ligação entre as relações nível da comunicação. As autoras salientam intercâmbios (gestos, palavras, olhares), da
e a aprendizagem, processos coincidentes que esta apenas reconhecerá a atenção e assunção do papel de parceiro de jogo da
no âmbito do processo ativo de educação. o apoio como significativos se estes forem criança mas sem que o adulto se outorgue

106 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


o papel principal no jogo, e do respeito pelo como espaços ideográficos, onde há lugar Neste horizonte, esta perspetiva educativa
ritmo da criança, que nunca se vê forçada a para objetos familiares/objetos de conforto; valoriza uma abordagem multissensorial à
adotar uma postura que ultrapasse as suas (v) mantenham a permeabilidade entre o in- aprendizagem e a criação de uma gramática
possibilidades (Szőke, 2016; Tardos, 2012). terior e o exterior; e, vi) valorizem a Natureza sensorial rica e ampla, atenta à multiformi-
e a cultura (Araújo, 2014). dade da exploração e da comunicação das
3. Contexto espaciomaterial seguro, A pedagogia em participação propõe espaços crianças mais novas (Oliveira-Formosinho &
confortável e pedagogicamente denso plurais, desde os espaços das salas e centros, Araújo, 2011).
As abordagens pedagógicas analisadas aos espaços na Natureza e na comunidade, No programa HighScope, a existência de
subscrevem a necessidade de contextos passando pelas ligações entre os centros e os um ambiente físico centrado na criança
que: (i) demonstrem preocupação e res- contextos familiares (Oliveira-Formosinho & constitui um dos princípios orientadores. A
ponsividade face à saúde e segurança da Araújo, 2013). Também os materiais pedagó- organização deste ambiente deverá propor-
criança; (ii) sejam organizados e flexíveis; (iii) gicos devem ser cuidadosamente escolhidos, cionar conforto e bem-estar, oferecendo si-
respeitem a abordagem sensoriomotora das de forma a serem responsivos a diferentes multaneamente amplas oportunidades para
crianças, criando múltiplas oportunidades de identidades e a uma pluralidade de experiên- a aprendizagem ativa. Neste sentido, três
exploração e descoberta; (iv) se configurem cias que as crianças possam viver (ibidem). aspetos deverão ser tidos em conta perma-

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nentemente: a ordem e flexibilidade do am- estimula a investigação; e, (iv) comunica com zagem ativa (Kruse, 2005; Post & Hohmann,
biente, o conforto e segurança de crianças e recurso a uma multiplicidade de linguagens 2003). Em termos práticos, o primeiro prin-
adultos, e o apoio à abordagem sensoriomo- (Rinaldi, 2001). cípio associa-se a um conjunto de estraté-
tora das crianças no que concerne à aprendi- Já no entendimento de Goldschmied e Ja- gias: (i) a organização do dia em torno de
zagem (Kruse, 2005; Post & Hohmann, 2003; ckson (1994, 2004), é central que o ambien- acontecimentos diários regulares e rotinas
Post, Hohmann & Epstein, 2011). te suscite interesse e prazer nas crianças e de cuidados; (ii) a adesão a um horário diá-
O espaço educativo dos contextos de aten- adultos, incorporando elementos relativos rio de forma consistente; (iii) a acomodação
dimento a bebés e crianças pequenas de àqueles que ali vivem (ex.: criações das dos ritmos e temperamentos naturais e sin-
Reggio Emilia, tal como aquele para crianças crianças) e constituindo um importante ins- gulares das crianças; e (iv) o proporcionar
mais velhas, é objeto de grande centralidade, trumento de iniciação à tradição cultural. As de transições suaves entre experiências em
sendo mesmo considerado o terceiro educa- autoras indicam a atratividade e a organiza- que a criança se envolve (Post & Hohmann,
dor (Gandini, 1998). Carlina Rinaldi (2001), um ção como dois elementos críticos, bem como 2003). Por seu turno, a organização do ho-
dos nomes mais identificados internacional- a necessidade de as salas de atividades para rário e das rotinas diárias tendo presente a
mente com as experiências de Reggio Emilia, crianças mais pequenas combinarem de for- noção de aprendizagem ativa pressupõe a
aponta dois princípios básicos que norteiam ma equilibrada a amplitude e a intimidade. valorização da necessidade das crianças de
as experiências pedagógicas para crianças Finalmente, a perspetiva de Pikler também exploração sensoriomotora em cada acon-
dos 0 aos 6 anos em Reggio Emilia: a ima- reconhece a importância de um ambiente tecimento e rotina, a partilha do controlo
gem da criança e a qualidade do ambiente seguro, promotor de bem-estar, acolhedor, dos acontecimentos do dia com as crianças,
educacional e de cuidados. Relativamente ao contínuo e estável (Falk, 2012; Szoke, 2016). possibilitando-lhes escolhas, o estar alerta
segundo princípio, reconhece-se, em primei- Estas condições são ingredientes que con- relativamente às comunicações das crianças
ro lugar, que os contextos de atendimento correm para assegurar a segurança afetiva ao longo do dia, o trabalho em equipa no
são concebidos não apenas como serviços de que a criança necessita para estar aberta sentido de proporcionar apoio contínuo a
sociais, mas também como lugares de edu- ao conhecimento do mundo exterior (Falk, cada criança ao longo do dia e a observação
cação, referindo-se a uma educação que 2012). Em termos práticos, estas premissas das ações e comunicações das crianças utili-
foca a criança em relação com a família, o/a reclamam, segundo Szoke (2016), a concep- zando, enquanto lentes, os indicadores-cha-
educador/a, as outras crianças e o contexto ção cuidadosa de espaços seguros e livres, ve do desenvolvimento (Post & Hohmann,
sociocultural mais lato (Rinaldi, 2001). De fac- bem como a escolha e disposição criteriosa 2003; Post, Hohmann & Epstein, 2011).
to, os centros para atendimento a bebés e de brinquedos e objetos de jogo para que Na proposta de Reggio Emilia também são
crianças pequenas são concebidos como sis- a criança possa exercitar a sua competência discerníveis diferentes momentos do dia,
temas relacionais em que crianças e adultos no movimento livre e na atividade autónoma, iniciados ou finalizados de acordo, primor-
se iniciam formalmente numa organização centrais a esta proposta. dialmente com os interesses e desejos das
que é, ela própria, uma forma de cultura, no crianças (Strozzi, 2001, op. cit. Thornton &
âmbito da qual podem criar cultura (a cultura 4. Regularidade e flexibilidade na organi- Brunton, 2009). Mais concretamente, desta-
das crianças, a cultura da infância, a cultura zação do tempo cam-se o momento de chegada (concebido
do próprio centro de atendimento). Estamos A perspetiva HighScope é aquela que, entre enquanto tempo de estabelecimento de li-
perante um sistema complexo, em que três as analisadas, se debruça mais detalhada- gações entre o contexto familiar e a creche),
sujeitos centrais, as crianças, os educadores mente sobre a organização do tempo em o período da manhã (destinado ao envolvi-
e as famílias, se cruzam relacionalmente, creche. Esta organização das atividades diá- mento das crianças, em pequenos grupos,
constituindo um sistema interconectado e rias surge centrada na criança e compreende em diferentes atividades), o tempo de re-
mutuamente influenciador. Carlina Rinardi um horário e rotinas concebidas de forma a feição, a preparação para o sono, o período
(2001) esclarece, em termos pragmáticos, promover sentimentos de segurança, conti- destinado ao sono e o tempo de jogo tran-
quatro aspetos centrais caracterizadores do nuidade e controlo. Para prosseguirem esta quilo (que paraleliza o tempo de refeição e
espaço pedagógico reggiano: (i) apresenta intenção, os horários e rotinas diárias são de reunião de discussão, reflexão e planifica-
um ambiente caloroso e favorecedor de sen- coerentes com dois princípios básicos: são ção dos educadores), o lanche, a preparação
timentos de bem-estar; (ii) apresenta uma previsíveis, embora flexíveis, e incorporam para a partida (em que, em reunião conjunta,
natureza flexível e aberta a mudanças; (iii) permanentemente o conceito de aprendi- se fala acerca do dia e se contam histórias)

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e o tempo de partida (concebido como mo-
mento de partilha de informações e expe-
riências com os pais, através de fotografias,
notas ou descrições breves da comunicação
verbal e não verbal das crianças) (Thornton &
Brunton, 2009).
No âmbito da pedagogia em participação é
preconizada uma divisão entre tempos de
cuidados e tempos pedagógicos, embora
ambos sejam considerados tempos educati-
vos (Oliveira-Formosinho & Andrade, 2011). O
dia e a semana são organizados de acordo
com uma rotina respeitadora dos ritmos, do
bem-estar e possibilidades de aprendizagem
das crianças, consagrando a sua participação
em todos os momentos. Para que os tempos
pedagógicos representem oportunidades
efetivas para aprendizagens múltiplas, de-
vem ser criticamente refletidos, no sentido
de integrar uma polifonia de ritmos e formas
de organização do grupo, diferentes propó-
sitos, múltiplas experiências, a cognição e a
emoção, linguagens plurais e diferentes cul-
turas (ibidem).
Finalmente, na abordagem pikleriana, o en-
cadeamento dos acontecimentos quotidia-
nos, a par da estabilidade do contexto social
e material, são condições para garantir a
segurança afetiva e assegurar continuidade
à criança (Falk, 2012). Szoke adianta algumas a criança tome consciência do que está a de abertura, confiança e partilha; (ii) a ação
características centrais deste encadeamento acontecer, se sinta segura e tranquila e esta- referida a objetivos comuns e coerentes,
temporal: (i) é adaptado às necessidades das beleça relações com a materialidade envolvi- mas caracterizada, simultaneamente, pelo
crianças; (ii) é respeitador de uma determina- da, de modo a que possa ir, gradativamente, reconhecimento de diferentes papéis; (iii) o
da ordem dos acontecimentos e da repetição conseguindo realizar por si própria. incentivo à participação efetiva, que poderá
regular que facilitam a vida do grupo e se- assumir diferentes formas: desde a partici-
curizam cada criança; (iii) integra transições 5. A construção de parcerias pação no jogo da criança até à participação
fluidas entre diferentes situações (2016). com as famílias em processos de tomada de decisão no
Enfatizando uma relação intrínseca entre As propostas pedagógicas analisadas en- âmbito de uma gestão comunitária (Araújo,
educação e cuidados, a perspetiva pikleriana fatizam a necessidade de fomentar uma 2014).
debruça-se sobre segmentos temporais que continuidade mesossistémica entre aqueles Dentre as perspetivas analisadas, Reggio Emi-
são particularmente críticos na vivência quo- que se constituem, nos primeiros três anos lia tem sido aquela que, historicamente, mais
tidiana de crianças e adultos: os tempos de de vida, como os contextos com maior im- tem privilegiado a participação das famílias
cuidados, também designados “atividades de pacto no seu bem-estar e aprendizagem: a e comunidades na vida dos centros de edu-
atenção pessoal”. No decurso destas, é im- família e a creche. Reconhecem, mais especi- cação de infância. No já referido documento
portante a consciência, por parte do adulto, ficamente, três condições para a construção Uma Carta dos Três Direitos, Malaguzzi (1993)
de que as suas ações contribuem para que destas parcerias: (i) a promoção de relações começa por sublinhar os direitos dos pais de

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participarem ativamente nas experiências de os centros de atendimento e o ambiente ao acompanhamento da criança em contex-
crescimento dos seus filhos, no âmbito daqui- familiar, assegurando a máxima continui- to familiar e escrito livros dirigidos aos pais.
lo que designou o entrosamento cooperativo dade e coerência entre os mesmos (Elfer, Em contexto de atendimento coletivo, uma
entre os contextos de educação de infância Goldschmied & Selleck, 2003). Goldschmied das tarefas centrais é a apoiar a compreen-
e os pais. Uma tradução para a prática deste (2002) salienta que a construção de relações são, por parte dos pais, da importância do
princípio é o processo de inserção, um con- de confiança recíproca tem uma tradução movimento e jogo autónomos, não dirigidos,
ceito italiano que designa o processo de aco- relevante na experiência dos adultos, mas da criança, assim como a experimentação de
lhimento da criança numa nova comunidade, sobretudo no bem-estar e tranquilidade da uma atitude observadora que os possa aju-
em que os pais são participantes ativos nos criança. A experiência de Pikler-Lóczy é igual- dar a reconhecer as competências dos seus
processos de planificação e experimentação mente valorizadora da relação com os pais, filhos (Libertiny, 2016).
deste momento de transição, numa parceria tendo Pikler dedicado muito do seu trabalho
centrada numa progressiva abertura ao outro,
no reconhecimento de emoções e na partilha
(Bove, 2001).
A construção de uma relação aberta e de
confiança com as famílias, e particularmente
com os pais, é também apanágio da pers-
petiva da pedagogia em participação. Esta
construção inicia-se com o acolhimento
atento das crianças e pais nos centros e
concretiza-se, a partir daí, sob diferentes for-
mas, desde a participação em rotinas diárias
e em atividades e projetos, ou na presença
de objetos familiares e fotografias das famí-
lias. A documentação pedagógica é, nesta
perspetiva, um formato privilegiado de diá-
logo contínuo com as famílias, contribuindo
para a emergência de bem-estar e sentido
de pertença das famílias, bem como para o
seu envolvimento contínuo nas jornadas de
aprendizagem das crianças (Azevedo, 2009;
Oliveira-Formosinho & Araújo, 2011).
A construção de parcerias com os pais é
também valorizada pela abordagem HighS-
cope, que avança quatro linhas de orienta-
ção: (i) o reconhecimento da separação de
papéis inerentes ao/à educador/a e aos pais;
(ii) a prática de uma comunicação aberta; (iii)
o foco no potencial dos pais; e (iv) a utili-
zação de uma abordagem de resolução de
problemas face a situações de conflito (Post,
Hohmann & Epstein, 2011). Por seu turno, as
relações profissionais com os pais são cons-
tituintes da proposta de Elinor Goldschmied,
que confere atenção à criação de pontes e
ao fomento de fluxos informativos entre

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6. Um foco privilegiado dos múltiplos formatos de comunicação da e nas relações entre todos eles; (ii) direta; (iii)
nos processos de observação criança, desde a linguagem oral aos gestos, participante; (iv) ocorre em situação natural,
As perspetivas analisadas comungam da expressões faciais e outros sinais associados privilegiando situações quotidianas; (v) é
importância conferida aos processos ob- à curiosidade, interesse, bem-estar ou des- alvo de registo/descrição concreta e rigoro-
servacionais, mas apresentam variações na conforto (ex.: choro) (Gandini, 2001). Neste sa; (vi) distingue o nível descritivo dos níveis
forma como os concretizam. No caso da entendimento, a documentação (através de interpretativo e explicativo.
abordagem HighScope, a observação diária fotografias, vídeos, observações escritas) Finalmente, a proposta de Goldschmied tam-
da criança constitui um dos princípios cur- abre caminho, em creche, a um olhar atento bém reconhece esta posição de relevo confe-
riculares orientadores. As observações ri- para a forma como os bebés e crianças mais rida à observação, atribuindo à pessoa-chave
gorosas e sistemáticas de bebés e crianças novas entram em relação consigo próprias, as tarefas centrais de observação, registo e
nas suas interações com pessoas e materiais com os outros e com o ambiente através de avaliação contínua das crianças, tarefas que,
constituem uma base inalienável da avalia- trocas verbais, gestos, olhares, expressões pela reduzida dimensão do grupo recomen-
ção autêntica apologizada pelo HighScope ou ações (Giudici et. al., 2001, op. cit. Thorn- dada nesta proposta, tornariam viável uma
(Post, Hohmann & Epstein, 2011). Os instru- ton & Brunton, 2009). observação detalhada, que possibilitaria um
mentos que o programa propõe para a mo- A observação surge, no âmbito da pedago- conhecimento informado, pormenorizado e
nitorização contínua da qualidade do pro- gia em participação, como um dos processos rigoroso do grupo e de cada criança (Elfer,
grama e do desenvolvimento das crianças (o centrais desta, a par da escuta e da nego- Goldschmied & Selleck, 2003, 2012).
Infant-Toddler Program Quality Assessment ciação (Oliveira-Formosinho, 2007). É um
e o Infant-Toddler Child Observation Record, processo de natureza contextual e contínua, Comentários finais
respetivamente) são de base observacional, reflexiva e crítica, imprescindível para equa- O foco escolhido para este número celebra-
beneficiando da recolha de evidências a par- cionar a intencionalidade educativa e con- tivo dos 30 anos dos Cadernos de Educação
tir de fontes diversas. No caso específico da cretizar a diferenciação pedagógica (ibidem). de Infância advém da constatação reiterada
observação da criança, o HighScope propôs Neste apartado, é de referir, muito particu- de que as perspetivas pedagógicas para a
mais recentemente os indicadores chave do larmente, a experimentação de instrumentos creche constituem um sustentáculo relevan-
desenvolvimento (ICD), que proporcionam pedagógicos de observação, de forma crítica, te para refletir e melhorar as práticas nestes
um quadro compósito daquilo que as crian- dialogada e situada, com um foco nos con- contextos. De facto, considerando a minha
ças mais novas fazem e do conhecimento e textos, nos processos e nas aprendizagens experiência formativa e investigativa, é pos-
competências que emergem a partir das suas das crianças mais novas. Estes e outros for- sível reconhecê-las enquanto apoio de cen-
ações (Post, Hohmann, & Epstein, 2011, p. matos observacionais são utilizados no âm- tral relevo aos processos de experimentação
32). Os ICD baseiam-se nas categorias usa- bito de processos de documentação peda- e reflexão e aos necessários movimentos
das nas experiências-chave, o seu precursor gógica que, também nos contextos de cre- recursivos entre a teoria e a prática, impres-
enquanto quadro de referência, e, relativa- che, se têm revelado uma prática fortemente cindíveis à aprendizagem profissional. Tal
mente à observação de bebés e crianças sustentadora do quotidiano profissional. como refere Hoyuelos (2015), convocando
mais novas, estão organizados em seis áreas A observação é considerada uma ferramenta uma conhecida metáfora de Morin, trabalhar
(Post, Hohmann & Epstein, 2011): (i) Aborda- essencial na proposta pikleriana. Anna Tar- nos quotidianos da educação de infância é
gens à aprendizagem; (ii) Desenvolvimento dos (2016) afirma que a atitude observadora entrar num oceano de incertezas pontuado
social e emocional; (iii) Desenvolvimento fí- da cuidadora reflete curiosidade consciente por alguns arquipélagos de certeza. Cremos,
sico e saúde; (iv) Comunicação, linguagem e pela criança, e não espontaneidade instinti- partilhando deste entendimento, que as
literacia; (v) Desenvolvimento cognitivo; e (vi) va. A autora refere que a observação ajuda a perspetivas brevemente abordadas neste ar-
Artes criativas. cuidadora a aprender a conhecer as manifes- tigo poderão constituir, de certa forma, um
Em Reggio Emilia, a observação está in- tações mais subtis do bebé, a descodificar e arquipélago de certeza (ou de segurança) em
trinsecamente associada aos processos de compreender as suas reações e gestos e a meio ao oceano de incerteza que constitui
documentação pedagógica que esta pers- sintonizar-se com ele. Mózes (2016) sinaliza a educação em geral e a educação em cre-
petiva preconiza. Particularmente relevante algumas das características centrais da ob- che em particular. Naturalmente que, tendo
para os contextos de creche é a sua visão servação pikleriana: (i) centra-se nos bebés e sido geradas em diferentes pontos do glo-
ampla de escuta e observação, valorizadoras crianças pequenas, nas suas cuidadoras, pais bo, é crucial reconhecer a sua sensibilidade

111 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


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112 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO
A importância das primeiras experiências na vida:
porque são uma oportunidade única
Isabel Loureiro. Médica de Saúde Pública, professora catedrática em Saúde Pública / Promoção da Saúde, Centro
de Investigação em Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa | Escola Nacional de Saúde Pública. Gisele Câmara.
Nutricionista, mestre em Saúde Pública, investigadora, Universidade Nova de Lisboa | Escola Nacional de Saúde Pública.
Ana Rita Goes. Psicóloga, professora auxiliar em Promoção da Saúde, Universidade Nova de Lisboa | Escola Nacional de
Saúde Pública

Construir um futuro promissor a partir sado por adversidades pelas quais passam informações transmitidas por práticas ligadas
dos primeiros tempos de vida algumas crianças. com os estilos de vida da mãe e até das avós.
A importância das primeiras aprendizagens Por exemplo, a alimentação da mãe durante
é cada vez mais reconhecida. Se é verda- Por que é tão importante investir na a gravidez e a amamentação influenciam o
de que o desenvolvimento das capacidades relação com a criança desde o início? metabolismo, a pressão arterial e o desenvol-
sociais, cognitivas e emocionais ocorre ao As primeiras experiências de vida são determi- vimento cognitivo da criança2,3, para além de
longo do tempo, a ciência também tem nantes para o desenvolvimento e percurso ao influenciarem as suas preferências alimenta-
demonstrado que este é fortemente de- longo dos anos vindouros, havendo mesmo res através dos sabores que lhe chegam dos
pendente das experiências, mais ou menos um registo biológico das mesmas. alimentos ingeridos pela mãe, quer através do
estruturantes, que tiveram lugar desde os Na aventura do desenvolvimento do ser líquido amniótico, quer do leite materno4–7.
primeiros momentos de vida. humano, ainda mesmo in utero, existem À ciência que estuda a influência do ambiente
Parece clara a relevância de se investir des- múltiplas oportunidades para a aquisição de na expressão dos genes, mesmo sem os alterar,
de cedo na criança, garantindo, nos diversos competências e preferências. Até mesmo os dá-se o nome de epigenética. A epigénese é
contextos em que vive, a atenção, o afeto, genes, ainda que não se alterando, podem um dos vários mecanismos através dos quais o
a estimulação adequada, a alimentação, o ser “educados” em relação à forma como rea- sistema genético humano se adapta continua-
sono e todos os cuidados que irão estrutu- gem ao ambiente. Muitas das alterações que mente às condições ambientais 8. Condições e
rar a base do seu desenvolvimento e fazer ocorrem neste sentido podem ser devidas a experiências no início da vida podem determi-
toda a diferença no seu futuro. A capacita-
ção dos pais constitui-se como uma inter- Figura 1. Períodos sensíveis nos primeiros tempos do desenvolvimento do cérebro
venção fundamental na melhoria dos seus
níveis de literacia e na criação de ambientes
familiares saudáveis. A qualidade da relação
entre os pais e a criança é essencial para o
seu desenvolvimento a longo prazo. Mas as
crianças pequenas também podem benefi-
ciar significativamente de relacionamentos
com outros cuidadores, dentro e fora da fa-
mília, sem que isso interfira com a força do
seu relacionamento primário com os pais.
Assim, vários cuidadores podem promover
o desenvolvimento social e emocional das
crianças pequenas1.
Neste artigo abordamos o importante papel
que pode ser desempenhado pelos profis-
sionais e instituições de educação e cuida-
dos na infância no sentido de promover um
bom e promissor início de vida e de mitigar Fonte: Adaptado de Council of Early Child Development 18
o impacto no desenvolvimento infantil cau-

113 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

nar a forma de expressão dos genes,9 o que nalmente na escola e criar relacionamentos gência (QI) e desenvolvimento cognitivo aos
corresponde à possibilidade de podermos in- bem-sucedidos ao longo da vida 8,19. De 4 anos e meio; melhor desempenho acadé-
tervir no nosso “destino genético”.10 facto, há muito que é conhecida a impor- mico aos 7; um mais alto QI e autoestima
Quando um ser humano nasce, o seu sistema tância da relação afetiva desde o nascimen- e menores problemas comportamentais e
nervoso central ainda não está completo.10 O to20. Uma vinculação segura entre a criança emocionais aos 12 anos.22
cérebro desenvolve-se a um ritmo acelerado e o seu cuidador (mãe, pai, outro adulto) é A responsividade é frequentemente en-
até aos 3 anos, sendo as ligações (sinapses) determinante para a sua saúde mental e irá tendida em três etapas: (1) Observação:
entre as suas células (neurónios) a grande ter reflexos ao nível da autoestima, controlo o cuidador observa os sinais da criança,
“construção”. A forma como essas ligações emocional, competências sociais e compor- como expressões faciais, comportamentos,
se fazem está muito dependente das expe- tamentos, mesmo durante a adolescência e movimentos e vocalizações. (2) Interpre-
riências pelas quais as crianças passam nos idade adulta.21 tação: o cuidador interpreta estes sinais,
primeiros tempos. Apesar do sistema nervoso Um artigo de revisão sobre a influência que por exemplo percebendo que uma criança
central manter alguma plasticidade, os primei- o tipo de relação com a criança tem sobre o irritada está cansada e precisa descansar,
ros registos são os que constituirão os alicer- seu desenvolvimento, publicado pela Orga- ou mostra sinais de doença. (3) Ação: o
ces para as aprendizagens posteriores.12 nização Mundial de Saúde, conclui que uma cuidador atua de forma rápida, adequada
A arquitetura do cérebro vai sendo montada relação afetiva e responsiva entre o cuidador e consistente para atender as necessidades
e reestruturada em função das experiências e a criança determina fortemente a saúde da criança23.
tidas durante os chamados períodos críticos e e o desenvolvimento desta, assegurando a
sensíveis. Estes períodos têm particular inte- sua saúde física, neurofisiológica e psicoló- Stress na criança pequena
resse para os educadores porque representam gica22. São referidos neste mesmo artigo As perturbações nas experiências das
alturas em que certas capacidades cognitivas resultados de estudos que mostram que a crianças, seja por negligência, altos níveis
e emocionais são realmente formadas – ou responsividade nos cuidados da criança está de stress, violência ou abuso, podem cau-
“deformadas” – pelas vivências da criança.13 associada a: aquisição de competências so- sar padrões irreversíveis do seu desenvol-
Podemos falar dos períodos sensíveis para di- ciais e menos problemas de comportamento vimento. Por exemplo, na comparação dos
ferentes funções como a visão (do nascimen- aos três anos; um maior quociente de inteli- cérebros de crianças de três anos que foram
to até aos 2 anos), da audição (dos 6 meses
até 1 ano), do controlo emocional (do nasci- Figura 2. O impacto negativo da negligência no cérebro em desenvolvimento
mento aos 3 anos) e das aptidões motoras (ao
longo de toda a infância)14. Também a apren-
dizagem da linguagem tem o seu período mais
sensível (do nascimento aos 6 anos)15–17.
No gráfico apresentado na figura 1 é possível
observar de forma clara os períodos sensíveis
para o desenvolvimento de algumas funções
no cérebro das crianças.

Vinculação e responsividade
O desenvolvimento emocional, muito relacio-
nado com a vinculação, é um aspeto crítico
do desenvolvimento da arquitetura global
do cérebro, com enormes consequências no
futuro1. Os fundamentos das competências
sociais, por exemplo, que são estruturados
nos primeiros cinco anos, estão ligados ao
bem-estar emocional e afetam as capacida-
des de uma criança para se adaptar funcio- Fonte: Perry e Pollard, 199724

114 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


acompanhadas com afeto e estimulação Especialistas de diferentes áreas têm de- Em última instância, promove o desenvolvi-
das suas funções sensoriais quando dos fendido que a melhor forma de ajudar mento cognitivo e emocional.22
primeiros tempos de vida com o de outras uma criança a crescer bem é estabelecer Vários programas para pais, crianças e edu-
negligenciadas observaram-se claras dife- precocemente relações responsivas, que cadores, como o Incredible Years e o Tri-
renças, sendo que o cérebro das crianças interpretam e respondem adequadamente ple P, têm-se centrado nesta abordagem e
negligenciadas era menor do que a média às suas solicitações, numa interação que verificado que crianças filhas de pais com
na mesma idade (figura 2), apresentando fortalece a sua capacidade de autorregu- estilo parental autoritativo revelam níveis
também um desenvolvimento anormal das lação, a sua autoconfiança e autoestima. de autoestima, responsabilidade social, bom
suas estruturas, como a estrutura límbica e Este é o tipo de relação que se deve promo- desempenho, saúde mental e relações bem-
cortical.14,24 ver também nos ambientes de educação e -sucedidas mais altos.14
Segundo especialistas, a ativação excessiva cuidados na infância, sendo o educador ou Uma das dimensões que tem sido estudada
e/ou prolongada dos sistemas de resposta outro cuidador institucional um orientador para compreender a importância da relação
ao stress na criança pode interromper o do percurso da criança, capaz de responder entre educadores e o desenvolvimento in-
desenvolvimento do cérebro e de outros adequadamente aos seus sinais. Saber ouvir fantil é a alimentação. A forma como se lida
órgãos, aumentando o risco de comprome- e observar, ser capaz de identificar as ca- com uma criança durante o momento das re-
timento cognitivo e doenças relacionadas racterísticas, os interesses, potencialidades feições traduz em muito o estilo de relação.
com o stress, incluindo doenças cardíacas, e dificuldades da criança e procurar dar-lhes Por exemplo, oferecer a refeição quando se
diabetes, abuso de substâncias e depres- respostas adequadas são competências que percebe que a criança está com fome ou não
são, mesmo durante a vida adulta. No en- o adulto deverá aperfeiçoar para ser um fa- insistir com a comida quando se percebe que
tanto, os mesmos especialistas referem que cilitador do seu desenvolvimento. a criança já está saciada ajuda-a a reconhecer
as relações positivas e responsivas com os Também nos primeiros passos da educação os seus sinais naturais – neste caso, respei-
cuidadores, intervindo o mais cedo possível, das crianças, nos princípios da “educação tando a fome e a saciedade, agindo com res-
podem prevenir ou reverter os efeitos pre- relacional”, segundo a designação de João postas adequadas e contribuindo assim para
judiciais do stress tóxico.25 dos Santos, podem considerar-se várias a sua autoconfiança, autorregulação e ganho
formas de abordagem pelos educadores26. de peso saudável.
O apoio à criança como protagonista Estas diferentes formas de abordagem, que Os comportamentos dos adultos que não res-
do seu destino: o estilo autoritativo no âmbito da relação entre pais e filhos são peitam o ritmo, as necessidades e a vontade
dos cuidadores/educadores e a designadas por estilos parentais, refletem da criança podem perturbar a sua capacidade
autorregulação da criança um tipo de relação educativa – atitudes de autorregulação e de autoconfiança.
A criança nasce já com um conjunto de e comportamentos – estabelecida entre A autorregulação define-se como a capacidade
competências que vale a pena considerar e adultos e crianças que conjuga diferentes para regular reações e funcionamento autóno-
garantir que não as perde. São exemplos a níveis de afeto e controlo (estabelecimento mo num contexto pessoal e social, incluindo
sua capacidade inata para descobrir a mama de regras e limites)27. Uma relação respon- comportamentos, emoções e atividades cogni-
da mãe, saber parar de comer quando está siva e empática do adulto com a criança, tivas. A autorregulação influencia, por exemplo,
saciada, dormir quando tem sono. É de no- percebendo e reagindo aos seus sinais com o comportamento alimentar, promovendo uma
tar que desde muito cedo a criança reage afeto, mas também com disciplina e limites, ingestão adequada de alimentos e evitando
a estímulos externos como, por exemplo, designa-se por autoritativa. O estilo auto- uma ingestão excessiva de calorias. Desta for-
sorrir ainda durante o primeiro mês de vida. ritativo é um dos quatro estilos parentais ma, pode contribuir para prevenir a obesidade
Maria Montessori baseou a sua abordagem definidos segundo os níveis de afeto e exi- e a panóplia de doenças crónicas a ela associa-
pedagógica na confiança e respeito que gência no cumprimento de regras, confor- das, como a diabetes e a hipertensão.
tinha pelas capacidades inatas da criança. me pode ser observado na figura 3. É importante preparar a criança para apreciar
Confiava no seu potencial e olhava para o Segundo a literatura científica, um adulto comportamentos que promovam o seu
papel do educador como catalisador das responsivo à criança promove a sua autor- desenvolvimento e a sua saúde, como os
suas energias internas e facilitador das suas regulação, a sua capacidade de controlo relacionados com a alimentação, o sono, a
aprendizagens, deixando-a orientar a busca emocional 28 e a sua capacidade cognitiva, atividade física, a socialização. Todas estas
das mesmas. 26 de execução e de gestão da frustração.29 dimensões podem ser abordadas desde

115 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Figura 3. Estilos parentais conforme os níveis de afeto e exigência no cumprimento de regras Ao consultarmos a literatura, podemos
elencar algumas características de uma re-
lação promotora do desenvolvimento sau-
dável da criança: 32,33
žž Respeito pelos interesses e necessidades
da criança, tendo atenção ao que ela diz
e aos seus sinais e respondendo de forma
adequada e consistente (responsividade);
žž Expectativas realistas, adequadas às ca-
racterísticas e às fases de desenvolvimen-
to da criança;
žž Empatia, colocando-se no lugar da crian-
ça, valorizando os seus sentimentos e
procurando ajudá-la a compreender as
situações e a regular as suas próprias
emoções;
žž Atenção positiva, que valoriza a opinião,
Fonte: Adaptado de Spurrier, N.J.; Magarey, A.; Wong, C., 2006 os questionamentos e as ideias da criança
e reforça as boas atitudes e comporta-
mentos;
muito cedo e quanto mais significativa for volvimento dos bebés (figura 4) e das crian- žž Regras claras e explicadas, sem frustrar a
a experiência, mais fortemente ela será ças até aos 3 anos de idade (figura 5).14 busca de autonomia por parte da criança;
relembrada e quanto mais integrada na Escusado será dizer que a maneira como as žž Disciplina que orienta sem reprimir,
vida familiar, maior força terá e maior será atividades são vivenciadas pelo adulto e pela aproveitando os erros como oportunida-
a sua sustentabilidade. O PapaBem (www. criança é fundamental para o alcance dos des de aprendizagem;
papabem.pt) é um exemplo de programa efeitos positivos pretendidos. O estilo auto- žž Prazer partilhado.
que contempla estas várias dimensões, va- ritativo do adulto na relação com a criança,
lorizando o estilo autoritativo de relação do firme mas responsivo, acolhedor e carinhoso, Sinais de stress nos bebés
adulto com a criança para a promoção de um reflete-se em diferentes gestos, como pode e crianças pequenas
crescimento saudável e prevenção da obesi- ser observado no quadro 1. As crianças podem estar expostas ao stress devi-
dade infantil.31 As escolhas orientadas, exemplificadas na do a um único acontecimento, a vários aconteci-
coluna central do quadro 1, refletem um es- mentos ao longo de um período ou a circunstân-
Da teoria à prática: apoiar o desenvolvi- tilo autoritativo do adulto na relação com a cias difíceis existentes no ambiente ao seu redor.
mento das crianças no dia-a-dia criança. O adulto orienta selecionando alter- São exemplos: perda de emprego por parte dos
Agora que já falámos acerca da importância nativas adequadas ao bem-estar, idade e fase pais ou familiares próximos; falta de tempo dos
das experiências vividas pelas crianças nos do desenvolvimento da criança e também pais; divórcio ou perda de um ente querido; hos-
seus primeiros anos para um desenvolvi- viáveis para ambos, considerando eventuais pitalização de um familiar; abuso ou negligência;
mento saudável, resta levarmos os nossos limitações que o adulto possa ter – de tempo, violência doméstica; desastres naturais, entre
conhecimentos à prática, promovendo um dinheiro, etc. Permitir que a criança faça pe- tantas outras situações 34.
início de vida estruturante e um futuro pro- quenas escolhas, com oferta de alternativas Acontecimentos ou ambientes geradores de
missor para os nossos pequeninos. adequadas, reduz a frustração e aumenta a tensão podem afetar os bebés e as crianças
Kim Roberts, especialista em parentalidade, segurança e a autoconfiança da criança, po- mesmo depois de a situação já ter melhorado
suporte familiar e desenvolvimento infan- dendo ser a base para a tomada de decisões e o ambiente e as pessoas à volta estarem re-
til, diretora do Programa HENRY (Health, responsáveis no futuro. À medida que a crian- compostos.
Exercise, Nutrition for the Really Young), dá ça cresce e amadurece, será possível aumen- Considerando que o stress tóxico tem impacto
exemplo de 9 formas de promover o desen- tar o seu leque de opções. no presente, afetando o bem-estar da criança,

116 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


Figura 4. Formas de promover o desenvolvimento do bebé uma parceria entre o profissional e os familia-
res, atendendo às características particulares
de cada um destes, conforme o modelo des-
crito por Hilton Davies e Crispin Day do Centre
for Parent and Child Support do King’s College,
em Londres. Uma boa comunicação interativa
constitui a base do trabalho de apoio aos pais.
Nela se inclui a atitude do educador ou de ou-
tro técnico para estabelecer empatia com os
familiares, ajudar a manter o foco nas soluções
e promover o reconhecimento, reforçando o
que está a ser bem feito 35.
No apoio aos familiares, assim como na forma-
ção dos profissionais, a valorização das boas
práticas, o diagnóstico dos problemas e a bus-
ca de soluções, numa reflexão partilhada entre
profissionais e familiares e tendo em conta os
sinais da criança, envolvendo-a de acordo com
a sua capacidade de participação, promove a
confiança e as competências de todos. 36,37
Respeito, autenticidade e empatia são carac-
terísticas que acompanham uma relação posi-
tiva entre adultos e entre adultos e crianças.
Segundo um dos programas fundamentados
neste modelo – o HENRY32 do Reino Unido –,
Fonte: Adaptado de Roberts, 200914 as principais características de um bom forma-
dor, para além dos conhecimentos que deve ter
sobre o desenvolvimento infantil e seus deter-
mas também pode representar riscos para o te o seu percurso habitual 34. No entanto, é minantes, são:
seu desenvolvimento, é essencial ser capaz de: fundamental que o médico que acompanha žž Atitudes: respeito, autenticidade, empa-
žž reconhecer alguns sinais das crianças a criança, seja um médico de família ou um tia, entusiasmo e força pessoal; crença de
quando expostas ao stress tóxico; pediatra, esteja ciente destas situações para, que todos podem mudar; respeito pelas
žž identificar os fatores de stress e afastar após uma avaliação pormenorizada, orientar as diferentes culturas e grupos étnicos; in-
ou proteger as crianças deles; necessidades de cuidados, incluindo o eventual teresse genuíno num estilo de relaciona-
žž saber agir ou orientar os pais relativa- recurso a um apoio mais especializado, nomea- mento e de vida ​promotor de bem-estar
mente aos cuidados que garantam o damente com a ajuda de um psicólogo. e da construção de ambientes saudáveis.
apoio adequado, capaz de minimizar os žž Competências: ser capaz de trabalhar em
efeitos nocivos do stress. Trabalho em parceria com as famílias parceria com os pais usando uma abor-
O quadro 2 oferece-nos um conjunto de su- Além de trabalharem diretamente com as dagem que se baseia na valorização e
gestões neste sentido. crianças, os educadores têm também um recurso aos seus pontos fortes e focada
É muito importante considerar que, apesar de contacto privilegiado com os pais de crianças na resolução de problemas; ser capaz de
responderem de diferentes formas, todas as pequenas e serão agentes de mudança funda- refletir sobre os seus próprios comporta-
crianças podem passar por situações difíceis mentais para os ajudar a melhorar o ambiente mentos para fundamentar a prática; ser
nas suas vidas. Com o apoio adequado dos em casa. capaz de construir um relacionamento
pais e outros adultos que as amam, costumam O trabalho que possa ser desenvolvido com as positivo com os pais através de diálogo
progredir muito bem e recuperar rapidamen- famílias deve passar pelo estabelecimento de e empatia; ser capaz de determinar quan-

117 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Figura 5. Formas de promover o desenvolvimento das crianças de 1 aos 3 anos mais sensíveis do desenvolvimento da criança e
a orientar-se, fundamentalmente, para o domí-
nio cognitivo e da linguagem.
A formação de pais e educadores para o es-
tabelecimento de interações afetivas com a
criança e de reforço da sua autoestima e au-
toconfiança ainda requer a mudança de pa-
radigma do modelo cognitivo para o modelo
integrado de cognição e emoção.
Se a universalidade das intervenções ajuda a
promover condições de igual acesso, não deixa,
muitas vezes, de aumentar o fosso entre os
que já se situam acima da média das condições
socioeconómicas e os que estão abaixo dela.
Para diminuir as desigualdades, há que intervir
desde o início, numa altura em que as marcas
ficam mais fortes e são determinantes para o
resto da vida. Naturalmente que uma família
onde existam dificuldades económicas difi-
cilmente poderá viver num ambiente calmo e
seguro que facilite as condições para a criança
crescer bem. Sem esquecer que estes proble-
mas afetam, de facto, essas condições e que é
fundamental resolvê-los, é também necessário

Fonte: Adaptado de Roberts, 200914


QUADRO 1.
ATITUDE RELATIVAMENTE ÀS OPÇÕES CONCEDIDAS À CRIANÇA
SEGUNDO O ESTILO PARENTAL
do abordar as circunstâncias especiais de
uma família e quando envolver outros Sem opções Opções orientadas Demasiadas opções
profissionais. (autoritário) (autoritativo) (indulgente)
Estes critérios constituem uma boa referência
Tens tiras de cenoura e
para o trabalho de envolvimento e capacitação Aqui estão as cenouras para O que queres para o
maçã para o lanche. Queres
dos pais para melhor ajudarem os seus filhos a o teu lanche. Come-as. lanche?
os dois ou apenas um?
crescer de forma alegre, autónoma, construtiva
e saudável. Preferes estas meias
Vais usar estas meias hoje. às riscas ou estas com O que queres usar hoje?
Qual o papel do poder político? bonecos?
Apesar de as provas científicas mostrarem a
Está quase na hora de
importância das primeiras experiências para o É hora de ir para cama. Vou ir para a cama. Queres Queres ir para a cama
desenvolvimento cognitivo, emocional e social, ler-te esta história. escolher a história ou agora?
demonstradas através da investigação em vá- queres que eu escolha?
rias áreas do saber, incluindo estudos com ima-
gens de ressonância magnética funcional nas Estamos de saída. Vamos a Vamos ao parque. Queres ir O que queres fazer esta
neurociências, as intervenções e as políticas pé para o parque. a pé ou levas o teu triciclo? tarde?
na infância continuam a descurar os períodos Fonte: Hunt and Rudolf, 2008 32

118 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


QUADRO 2.
SINAIS DE STRESS E TRAUMA NAS CRIANÇAS PEQUENAS E O QUE PODEMOS FAZER

O que podemos observar no comportamento da O que podemos fazer, ou orientar os pais a fazerem, em relação ao
criança? comportamento da criança?

Dificuldades no sono (medo de adormecer ou ficar Garantir uma rotina consistente e tranquilizadora, que convida a criança a dormir
a dormir, pesadelos). (banho, história, luz baixa, abraços, miminhos e aconchego).
Responder imediatamente e acalmar a criança em caso de pesadelos.

Alterações na forma como come (perda de Garantir que as refeições são momentos agradáveis e tranquilos. Oferecer opções
apetite, recusa de comer, acumular ou esconder adequadas de alimentos para que a criança faça a sua escolha. Não se importar
alimentos). com a sujidade ou desarrumação normais que a criança pode fazer enquanto come.

Alterações relativas às micções e dejeções Reduzir o stress quando a criança vai à casa de banho, com recurso a livros, jogos
(obstipação, retenção de fezes, urinar na cama ou ou atividades que são apenas para aqueles momentos.
na roupa). Garantir que a criança tem uma alimentação saudável, com alimentos que
permitam uma boa digestão e trânsito intestinal (leite materno para lactentes,
frutas, vegetais e cereais para crianças pequenas e crianças mais velhas).

Regressões no comportamento (reaparecimento Tranquilizar a criança, mostrando que está presente e ela está segura.
de comportamentos comuns em idades mais Ficar por perto. Anunciar quando vai sair e quando volta.
precoces: urinar na cama, chuchar no dedo, Se a criança parece estar “colada” a si, segure-a por mais um pouco.
agarrar-se aos pais, medo de estranhos ou fala à Incentive o uso de objetos de conforto.
bebé). Certifique-se de que passam tempo juntos, que dá colo e partilham momentos
agradáveis.

Morder, dar pontapés, birras e agressões. Estabelecer limites claros, de forma firme mas carinhosa.
Ajudar com palavras que faltam para descrever as suas emoções: “Vejo que estás
com raiva. O que devemos fazer quando isso acontece?”
Redirecionar a criança para um local tranquilo onde possa acalmar-se e organizar os
sentimentos.
Ler livros infantis que ensinam a lidar com as emoções.

Não expressar emoções ou parecer triste Procurar necessidades emocionais não atendidas.
Oferecer um abraço e a sensação de segurança.
Estar fisicamente e emocionalmente disponível
(não ao telefone ou em frente à televisão!).
As crianças imitam os adultos. Mesmo os bebés podem espelhar a depressão dos
seus pais. Os pais podem necessitar de ajuda e devem solicitá-la para manterem
uma boa saúde emocional.

Problemas de aprendizagem, como dificuldade de Reduzir distrações.


concentração, frustração, dificuldade de mudar Dar o exemplo de como se acalmar quando se sente frustrado.
de atividades.

Fonte: FSU Center for Prevention and Early Intervention Policy, 2015

119 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

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121 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Dormir bem para crescer melhor


Ana Rita Goes . Equipa Papa Bem

O sono é uma necessidade básica do ser hu- te com o efeito da luz do sol. Noutros casos, do tempo total de sono diário, uma maior con-
mano. Embora as funções do sono não se o cronótipo pode levar o indivíduo a preferir centração do sono no período da noite, uma
encontrem totalmente esclarecidas, tem sido adormecer mais tarde e também a acordar diminuição do número de despertares notur-
salientado o seu papel para a reparação do or- mais tarde, mas o relógio social faz que acor- nos e uma redução da proporção de sono REM
ganismo, conservação de energia, maturação de com o despertador. Esta discrepância entre (Owens & Witmans, 2004).
do sistema nervoso, consolidação da memória o relógio biológico e o relógio social tem sido Entre os 6 e os 12 meses, a maioria dos bebés
e aprendizagem, funcionamento executivo e designada de jetlag social. Este fenómeno está consegue dormir seis horas ou mais durante a
regulação emocional (Dang-Vu et al., 2006). associado a alterações importantes na duração noite e acorda com menos frequência, embora
Durante a infância e adolescência, o sono é e qualidade do sono e a uma série de condições uma percentagem elevada acorde pelo menos
particularmente importante para apoiar o cres- negativas para a nossa saúde, como fumar, in- uma vez por noite e precise da ajuda do adulto
cimento e desenvolvimento acelerado que ca- gerir bebidas alcoólicas e com cafeína de forma para voltar a sossegar. Neste período, o bebé
racteriza estas etapas do ciclo de vida (Stein & excessiva ou mesmo sofrer alterações metabó- faz habitualmente mais do que uma sesta du-
Barnes, 2002). licas, cardiovasculares, cognitivas e emocionais rante o dia. A partir dos 12 meses, a maioria
À semelhança do que acontece com os outros (Roenneberg, Allebrandt, & Merrow, 2012; Wit- das crianças tende a dormir melhor, mas algu-
seres vivos, o organismo humano tem os seus tmann et al., 2006). mas começam a mostrar resistência à hora de
próprios ritmos biológicos, que permitem regu- deitar. Entre os 3 e os 5 anos, o sono noturno
lar funções essenciais, como o sono-vigília, a Como dormem os bebés e as crianças das crianças tende a estar estabilizado e pelo
temperatura, a digestão ou a produção hormo- pequenas? menos uma parte das crianças ainda precisa de
nal. Este funcionamento está organizado em Existem dois grandes tipos de sono, que alter- uma sesta de cerca de uma hora. A partir dos 5
torno de um ritmo circadiano, com um período nam entre si: o sono REM (de Rapid Eye Mo- anos, as crianças já não precisam de dormir du-
de cerca de 24 horas. Este relógio biológico, vements) e o sono não REM (NREM). Durante rante o dia. Quando a criança deixa de dormir a
embora seja determinado geneticamente, é o sono REM, o cérebro está ativo e ocorrem os sesta, pode ser necessário ainda assim manter
também sincronizado por fatores externos, sonhos. Durante o sono NREM, ocorre o sono na sua rotina um período de tempo sossegado
como a disponibilidade de luz solar, as horas profundo e todos os processos de restauração para que repouse um pouco, ou antecipar a
das refeições e a atividade física. O nosso reló- de energia e tecidos e de libertação de hormo- hora de deitar à noite.
gio biológico está particularmente sincronizado nas necessárias ao desenvolvimento e cresci-
com o dia e a noite. Desta forma, o organismo mento. Estes ciclos de sono sucedem-se 4 a 6
humano está programado para desempenhar vezes por noite, podendo ocorrer períodos de
determinadas funções quando existe luz solar despertar nas transições. A alternância entre
e outras quando escurece. Embora exista gran- estes dois tipos de sono é identificável logo
de variabilidade individual quanto aos períodos desde a vida fetal, mas os padrões de sono so-
em que os indivíduos preferem dormir e estar frem grandes alterações ao longo do ciclo de
em atividade (cronótipo), o organismo do ser vida (Owens & Witmans, 2004).
humano está genericamente programado para O ciclo sono-vigília é regulado pela luz e pela
dormir durante a noite e estar desperto duran- escuridão e leva tempo a desenvolver-se. Por
te o dia (Wittmann, Dinich, Merrow, & Roen- essa razão, o recém-nascido tem frequen-
neberg, 2006). temente padrões de sono mais irregulares,
Para além do relógio biológico, é hoje reco- dormindo 10 a 19 horas por dia, por períodos
nhecido o papel do relógio social, que decorre relativamente curtos de tempo e sem distinção
dos horários do nosso quotidiano, como os do dia e da noite. Esta regulação pelo ciclo noi-
horários de trabalho ou escolares. Por vezes, te-dia começa a desenvolver-se cerca das seis
existe uma discrepância considerável entre o semanas de vida, e pelos três a seis meses de
nosso relógio interno e o nosso relógio social. vida a maioria dos bebés tem reunidas as con-
Por exemplo, o nosso relógio social pode impor dições necessárias para ter um ciclo de sono-
que acordemos antes do sol nascer e, portanto, -vigília regular. Durante os primeiros meses de
antes da hora a que acordaríamos naturalmen- vida, verifica-se assim uma redução progressiva

122 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


TABELA 1. NÚMERO DE HORAS DE SONO RECOMENDADO NOS PRIMEIROS ANOS DE VIDA
Idade Nº de horas de sono diárias recomendadas Nº de horas de sono prejudicial
0-3 meses 14-17 <11
4-12 meses 12-16 <10
1-2 anos 11-14 <9-10
3-5 anos 10-13 <9-10

Adaptado de “Recommended amount of sleep for pediatric populations: a consensus statement of the American Academy of Sleep Medicine”, por S. Paruthi, L. Brooks,
C. D’Ambrosio, W. Hall, S. Kotagal, R. Lloyd, B. Malow, K. Maski, C. Nichols, S. Quan, C. Rosen, M. Troester, M. Wise, 2016, Journal of Clinical Sleep Medicine, 12(6), p. 785.

Durante estes primeiros anos de vida, observa- Adaptado de “Recommended amount of diferentes da vida desta. Por isso, é essencial
-se um aumento progressivo da duração dos sleep for pediatric populations: a consen- estar atento aos seus sinais de sono e respeitar
ciclos de sono, que duram 45 a 60 minutos nos sus statement of the American Academy of os seus ritmos. Embora haja uma grande varia-
lactentes e se prolongam até 90-100 minutos Sleep Medicine”, por S. Paruthi, L. Brooks, C. bilidade nas manifestações comportamentais
na idade escolar e no adulto. Adicionalmente, D’Ambrosio, W. Hall, S. Kotagal, R. Lloyd, B. de sonolência nas crianças, têm sido descritos
observa-se uma diminuição do tempo total Malow, K. Maski, C. Nichols, S. Quan, C. Rosen, comportamentos como bocejar, esfregar os
de sono diário e uma redução progressiva do M. Troester, M. Wise, 2016, Journal of Clinical olhos, chorar, procurar mais atenção e con-
sono diurno. Estes aspetos contribuem para a Sleep Medicine, 12(6), p. 785. forto, aborrecer-se facilmente, deitar a cabeça
consolidação do sono noturno. Contudo, aspe- Importa salientar novamente que cada criança numa mesa e também comportamentos carac-
tos como a ansiedade de separação, os medos é uma criança e que as necessidades de sono terísticos da desatenção, como a dificuldade
noturnos, o aumento da mobilidade e interesse não só variam ao longo do desenvolvimento, de se concentrar e seguir instruções (Fallone,
pelo mundo e o desenvolvimento de compe- como de criança para criança e em momentos Owens, & Deane, 2002).
tências cognitivas e de linguagem podem con-
tribuir para aumentar a dificuldade da criança
para sossegar, a resistência ao deitar e os des-
pertares noturnos (Owens & Witmans, 2004).

De quanto sono precisam os bebés e as


crianças pequenas?
As necessidades de sono variam bastante ao
longo do ciclo de vida. Adicionalmente, existe
alguma variabilidade individual inerente a estas
necessidades. Mas em geral é possível estabe-
lecer limites mínimos e máximos de sono diário
(tabela 1). As recomendações mais recentes
não incluem o número de horas diário para os
bebés com menos de 4 meses por se consi-
derar que existe um intervalo normativo muito
variável e por não existirem provas suficientes
acerca da associação entre duração do sono
e efeitos na saúde e bem-estar nestas idades
(Paruthi et al., 2016).

123 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

Para além de responder de forma consistente no bem-estar e qualidade de vida das famílias len, & Aljazireh, 2000; Mindell, 1999). Duran-
aos sinais de sono da criança, é essencial pres- (Meltzer & Mindell, 2007). A dimensão destes te a primeira infância e idade pré-escolar, os
tar atenção aos sinais de sonolência diurna ex- efeitos parece depender do número de horas problemas de sono são comuns e universais
cessiva, que apontam para que a criança está de sono perdidas e do caráter crónico da priva- e afetam 20 a 30% das crianças (Owens,
a dormir menos do que necessita. Nos casos ção de sono, assim como da suscetibilidade de 2008).
de sonolência excessiva, têm sido descritos cada criança a estes problemas. Alguns traba- Durante os primeiros anos de vida, a insó-
indicadores como irritabilidade, adormecer fre- lhos têm procurado identificar qual a duração nia comportamental constitui a perturbação
quentemente durante o dia, como em peque- do sono que coloca as crianças em maior ris- do sono mais comum, assumindo manifes-
nas deslocações de automóvel, ou dificuldade co para estas condições, mas a investigação é tações como dificuldades para adormecer,
em acordar. ainda escassa e pouco conclusiva. De qualquer resistência ao deitar e despertares noturnos
forma, algumas recomendações têm incluído o (Owens & Mindell, 2011). Aproximadamente
Quais as consequências de dormir menos do número de horas de sono que será prejudicial 20 a 30% das crianças de 1 a 3 anos e 10 a
que o necessário? para as crianças (Tabela 1, (Hirshkowitz et al., 15% das crianças de 4 a 5 anos apresentam
Dormir sistematicamente menos do que o nú- 2015). dificuldades significativas para adormecer e
mero de horas recomendado está associado Importa referir que dormir sistematicamente despertares noturnos (Sadeh, Mindell, Lue-
a problemas de atenção, comportamento e mais do que o necessário também pode estar dtke, & Wiegand, 2009).
aprendizagem (Gregory & Sadeh, 2012; Tou- associado a resultados de saúde indesejáveis, A insónia comportamental tende a estar
chette et al., 2007). Uma duração do sono como hipertensão, diabetes, obesidade e pro- associada à necessidade da criança de ga-
insuficiente também aumenta o risco de aci- blemas de saúde mental (Paruthi et al., 2016). rantir determinado tipo de condições para
dentes, lesões, hipertensão, obesidade, dia- adormecer (por exemplo, a presença dos
betes e depressão (Bell & Zimmerman, 2010; Quais os problemas de sono dos bebés e das pais) e/ou a manifestações de resistência e
Koulouglioti, Cole, & Kitzman, 2008; Touchette crianças pequenas? adiamento da hora de dormir, incluindo bir-
et al., 2008) Muitos destes problemas persis- As dificuldades relacionadas com o sono con- ras, protestos, levantar-se com frequência e
tem ao longo da vida da criança (Pollock, 1994) tam-se entre as preocupações mais frequentes pedidos repetidos de atividades e atenção.
e têm também sido associados a uma redução dos pais de crianças pequenas (Arndorfer, Al- Esta última forma de manifestação da insó-

124 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


nia comportamental é inerente a dificulda- mostrado uma tendência de redução das
des dos próprios pais em manter regras e perturbações do sono com a idade. Contu-
rotinas consistentes à hora de deitar (Ame- do, a prevalência de problemas identificados
rican Academy of Sleep Medicine, 2005). é ainda assim elevada (Silva, 2014; Silva et
Durante os primeiros anos de vida, podem al., 2013). Importa salientar que os pais por-
também ocorrer pesadelos e terrores notur- tugueses parecem apresentar uma tolerân-
nos. No caso dos pesadelos, a criança tem cia considerável às dificuldades de sono da
um sonho mau, acorda completamente e criança. Na verdade, embora os sintomas e
pode ter medo, chorar e demorar a voltar a comportamentos-problema descritos con-
adormecer. Nestas situações, é importante duzam à identificação de uma percentagem
explicar à criança que foi um sonho mau e elevada de crianças com problemas de sono,
confortá-la, tentando ajudá-la a sossegar quando questionados acerca da presença de
novamente. No caso dos terrores noturnos, um problema de sono, apenas uma pequena
a criança chora, grita, transpira, mas não percentagem de pais reporta a sua existência
acorda e não parece reagir às tentativas de (Goes, 2013; Silva et al., 2014). Este aspeto
conforto dos adultos, não se recordando sugere um baixo reconhecimento destes
do que se passou no dia seguinte. Estes problemas, que poderá ter um impacto ne-
episódios podem ser muito exuberantes e gativo na procura de ajuda.
assustadores para os pais, mas não são pe-
rigosos para a criança. O mais importante Como ajudar a criança a dormir bem?
será evitar acordar a criança e garantir que Embora o sono seja um processo determi-
não se magoa. nado e regulado biologicamente, envolve
também uma componente comportamental
Como dormem as crianças pequenas modulada por características da criança e
portuguesas? pelo ambiente. Desta forma, as rotinas, inte-
A maioria dos trabalhos acerca do sono de rações e ambiente que rodeiam o sono têm
crianças portuguesas tem descrito o sono de um papel fundamental para a qualidade do bém reduzir o nível de interação com o bebé,
crianças de idade escolar e adolescentes. Os sono da criança. A utilização de rotinas de para que comece a perceber que é hora de
estudos portugueses que avaliaram o sono deitar consistentes e a promoção da autono- dormir e não de brincar ou conversar.
de crianças do nascimento aos 24 meses mia da criança para adormecer têm sido as- Para o bebé e a criança dormirem bem, é
verificaram que a maioria das crianças pre- sociadas a uma duração e qualidade do sono essencial terem uma rotina estruturada e
cisava da presença dos pais para adormecer mais adequadas (Mindell, Sadeh, Kohyama, aprenderem a adormecer sozinhos. O pri-
e que a duração do sono era inferior aos va- & How, 2010; Morrell & Cortina-borja, 2002). meiro passo é estabelecer uma hora de dei-
lores de referência de estudos internacionais Para ajudar o recém-nascido a desenvolver tar consistente. Para isto, é necessário con-
(Silva, 2014). um ciclo de sono-vigília regular, é importante siderar dois aspetos: o número de horas que
No caso das crianças dos 2 aos 5 anos de que o ambiente do bebé reflita a diferença a criança precisa de dormir e a hora a que
idade, os trabalhos têm mostrado que uma entre o dia e a noite. Por isso, durante o dia é habitualmente tem de acordar. Para deter-
proporção importante das crianças não ador- importante manter a iluminação natural e os minar o número de horas de sono, devemos
mece de forma independente na sua cama, ruídos normais. Adicionalmente, é essencial considerar as recomendações (tabela 1), mas
precisando do conforto de um adulto ou da seguir os ritmos do bebé, porque, ao contrá- também estar atentos aos sinais de sono da
companhia da televisão, e que uma percenta- rio do que os adultos possam pensar, manter criança. Depois de estabelecido o número de
gem elevada de crianças tem uma duração do o bebé mais tempo acordado durante o dia horas de sono, devemos subtraí-lo à hora
sono inferior aos valores de referência (Goes, não fará que durma melhor à noite. À noite, habitual de acordar da criança. Desta forma,
2013; Mendonça, 2014; Silva et al., 2013). o ambiente deve ser calmo e favorável ao será encontrada a hora de deitar desejável.
À semelhança do que tem sido descrito nou- sono, mantendo apenas uma luz de presença Quando existe um grande desfasamento
tros países, os estudos portugueses têm e reduzindo os ruídos. Os pais devem tam- entre esta hora e a hora a que a criança ha-

125 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

ça precisa por dia. As sestas não permitem


compensar totalmente os malefícios de uma
duração do sono insuficiente durante a noi-
te, mas podem ajudar a minimizá-los. Por
outro lado, mesmo para as crianças que dor-
mem o número de horas adequado durante a
noite, as sestas ajudam a evitar que a criança
fique demasiado cansada, prevenindo assim
variações do humor e dificuldades para ador-
mecer à noite.
O número e duração das sestas deve ser
definido em função dos sinais de sonolên-
cia da criança. A partir daí, a sesta deve ser
integrada na rotina estruturada da criança,
tornando-se em mais um dos momentos
previsíveis do dia. À hora da sesta, deve ser
disponibilizado à criança um ambiente favo-
rável ao sono e esta deve ser encorajada a
adormecer sozinha.
Muitas vezes, os adultos receiam que a ses-
ta interfira negativamente com o sono no-
turno e tentam reduzir a duração do sono
diurno. Contudo, se isto fizer que a criança
bitualmente adormece, é recomendada uma Finalmente, é necessário encorajar a criança fique excessivamente cansada, será mais
aproximação gradual à hora desejável. a adormecer sozinha. Para isso, é essencial provável que a eliminação da sesta acabe
O segundo passo é criar condições propícias que a criança seja colocada na cama ain- por ter um impacto negativo no sono da
ao sono, com medidas simples de higiene do da acordada, embora sonolenta, e que os noite, fazendo que a criança tenha mais di-
sono como manter rotinas diárias consisten- adultos reduzam a atenção e conforto que ficuldade em sossegar e acorde mais vezes
tes e fazer atividade física durante o dia, evi- dão à criança para adormecer. Neste sen- durante a noite. A eliminação dos períodos
tar alimentos muito ricos em proteínas e be- tido, os pais podem reduzir a resposta às de sesta durante o dia deve por isso seguir
bidas com cafeína próximo da hora de dormir, solicitações de atenção da criança, não indo os sinais da criança e pode implicar alguns
evitar brincadeiras muito ativas próximo da imediatamente junto dela quando protesta ajustamentos aos horários de adormecer e
hora de dormir e disponibilizar um ambiente ou chama e ficando pouco tempo, ou po- acordar.
físico adequado: quarto sossegado, escure- dem ir reduzindo gradualmente o contacto
cido, com uma temperatura agradável e sem físico e a proximidade da criança até que a Qual o papel dos cuidados para a
televisão. Adicionalmente, é muito importan- sua presença já não seja necessária para que infância em relação ao sono da criança?
te utilizar uma rotina de deitar, que ajuda a a criança seja capaz de adormecer. Muitas Assumindo que os cuidados para a infância
criança a acalmar-se e a preparar-se para o crianças beneficiam da utilização de um ob- constituem um contexto de desenvolvimen-
sono. A rotina de deitar envolve a realização jeto de conforto, como uma fralda de pano to primário para uma proporção importante
de um conjunto de atividades pela mesma or- ou um boneco. dos bebés e crianças pequenas, o seu con-
dem e sensivelmente à mesma hora todas as tributo para alcançar uma boa quantidade e
noites, incluindo atividades relacionadas com Qual o papel da sesta no bem-estar qualidade do sono é indiscutível. Este con-
os cuidados e higiene, como tomar banho e da criança? tributo poderá ser exercido de forma direta
vestir o pijama, e atividades de prazer calmas, Durante os primeiros anos de vida, as ses- e/ou indireta.
como contar uma história ou cantar uma can- tas durante o dia contribuem para alcançar De forma direta, a rotina estruturada dispo-
ção de embalar. o número de horas de sono de que a crian- nibilizada ao bebé e à criança no contexto

126 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


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ríodo igualmente fundamental para o bem- e a encontrar formas de apoiar a criança a Owens, J., & Mindell, J. A. (2011). Pediatric insomnia. Pe-
diatric Clinics of North America, 58(3), 555–69. http://doi.
-estar da criança, como uma oportunidade dormir melhor.
org/10.1016/j.pcl.2011.03.011
para promover bons hábitos de sono. Owens, J., & Witmans, M. (2004). Sleep problems. Current
Se é verdade que nestes contextos se pode Problems in Pediatric and Adolescent Health Care, 34(4),
154-79. http://doi.org/10.1016/j.cppeds.2003.10.003
tornar mais difícil responder às necessida-
Paruthi, S., Brooks, L. J., Ambrosio, C. D., Hall, W. A., Kota-
des individuais de sono de cada criança, REFERÊNCIAS gal, S., Lloyd, R. M., … Troester, M. M. (2016). Recommended
também é verdade que isso é completa- American Academy of Sleep Medicine. (2005). International Amount of Sleep for Pediatric Populations : A Consensus
classification of sleep disorders: diagnostic and coding ma- Statement of the American Academy of Sleep Medicine.
mente essencial. Por isso, aspetos como a nual (2nd ed.). Chicago, Illinois: American Academy of Sleep Journal of Clinical Sleep Medicine, 12(6), 785-786.
necessidade de dormir a sesta devem ser Medicine. http://doi.org/0965722023 Pollock, J. I. (1994). Night-waking at five years of age: pre-
decididos com base nos sinais da criança Arndorfer, R., Allen, K., & Aljazireh, L. (2000). Behavioral heal- dictors and prognosis. Journal of Child Psychology and
th needs in pediatric medicine and the acceptability of beha- Psychiatry and Allied Disciplines1, 35(4), 699-708. http://doi.
e não apenas com base na idade ou sala vioral solutions: Implications for behavioral psychologists. org/10.1111/j.1469-7610.1994.tb01215.x
frequentada pela criança. Da mesma forma, Behavior Therapy, 30(1), 137-148. http://doi.org/10.1016/ Roenneberg, T., Allebrandt, K. V, & Merrow, M. (2012). Social
no bebé mais pequeno, o número de sestas S0005-7894(99)80050-1 Jetlag and Obesity. Current Biology, 22, 939-943. http://doi.
Bell, J., & Zimmerman, F. J. (2010). Shortened nighttime sleep org/10.1016/j.cub.2012.03.038
durante o dia deve ser resultado desta ava- duration in early life and subsequent childhood obesity. Ar- Sadeh, A., Mindell, J. a, Luedtke, K., & Wiegand, B. (2009).
liação individual. Nos dias de hoje, o relógio chives of Pediatrics & Adolescent Medicine, 164(9), 840-5. Sleep and sleep ecology in the first 3 years: a web-based
social imposto às famílias parece interfe- http://doi.org/10.1001/archpediatrics.2010.143 study. Journal of Sleep Research, 18(1), 60-73. http://doi.
Dang-Vu, T .T., Desseilles, M., Peigneux, P., e Maquet, P. org/10.1111/j.1365-2869.2008.00699.x
rir cada vez mais com o número de horas (2006). A role for sleep in brain plasticity. Pediatric Rehabili- Silva, F. G., Silva, C. R., Braga, L. B., Neto, A. S., Criança, C.,
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com consequências negativas abrangentes, Fallone, G., Owens, J., & Deane, J. (2002). Sleepiness in dos dois aos dez anos : estudo populacional. Acta Pediátrica
children and adolescents: clinical implications. Sleep Me- Portuguesa, 44(5), 196-202.
que podem inclusivamente ser sentidas no dicine Reviews, 6(4), 287-306. http://doi.org/10.1053/ Stein, A., & Barnes, J. (2002). Feeding and sleep disorders. In
quotidiano dos cuidados para a infância. smrv.2001.0192 M. Rutter & E. Taylor (Eds.), Child and adolescent psychiatry
Por isso, é muito importante estar atento à Gregory, A. M., & Sadeh, A. (2012). Sleep, emotional and (4th ed., pp. 754-775). Oxford, UK: Blackwell Publishing Ltd.
behavioral difficulties in children and adolescents. Sleep Touchette, E., Petit, D., Séguin, J. R., Boivin, M., Tremblay,
possibilidade de a criança precisar verdadei- Medicine Reviews, 16(2), 129-36. http://doi.org/10.1016/j. R. E., & Montplaisir, J. Y. (2007). Associations between sleep
ramente de dormir durante o dia. Contudo, smrv.2011.03.007 duration patterns and behavioral/cognitive functioning at
é muito importante evitar que os períodos Hirshkowitz, M., Whiton, K., Albert, S. M., Alessi, C., Bru- school entry. Sleep, 30(9), 1213-9. Retrieved from http://
ni, O., Doncarlos, L., … Hillard, P. J. A. (2015). National Sleep www.pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=197841
de sesta durante o dia interfiram negativa- Foundation’s sleep time duration recommendations : metho- 3&tool=pmcentrez&rendertype=abstract
mente com o sono da noite, pelo que deve- dology and results summary. Sleep Health, 1(1), 40-43. http:// Touchette, E., Petit, D., Tremblay, R. E., Boivin, M., Falissard,
mos estar atentos a estes efeitos. doi.org/10.1016/j.sleh.2014.12.010 B., Genolini, C., & Montplaisir, J. Y. (2008). Associations be-
Koulouglioti, C., Cole, R., & Kitzman, H. (2008). Inadequate tween sleep duration patterns and overweight/obesity at
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que acontece nos cuidados para a infância Health Nursing, 25(2), 106-14. http://doi.org/10.1111/j.1525- pubmedcentral.nih.gov/articlerender.fcgi?artid=2579979&to
constitui também uma oportunidade para a 1446.2008.00687.x ol=pmcentrez&rendertype=abstract
Meltzer, L. J., & Mindell, J. a. (2007). Relationship between Wittmann, M., Dinich, J., Merrow, M., & Roenneberg, T.
criança aprender a adormecer sozinha. Em- child sleep disturbances and maternal sleep, mood, and (2006). Social Jetlag : Misalignment of Biological and Social
bora, em boa verdade, a criança adormeça parenting stress: a pilot study. Journal of Family Psycholo- Time. Chronobiology International, 23(1&2), 497-509. http://
sempre com companhia, é muito impor- gy : JFP : Journal of the Division of Family Psychology of doi.org/10.1080/07420520500545979
the American Psychological Association (Division 43), 21(1),
tante disponibilizar um ambiente favorável 67–73. http://doi.org/10.1037/0893-3200.21.1.67
ao sono (i.e., escurecido, com temperatura Mindell, J. (1999). Empirically supported treatments in pedia-
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children. Journal of Pediatric Psychology, 24(6), 465-81.
quantidade de conforto direto dado à crian- http://doi.org/10.1093/jpepsy/24.6.465

127 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: COLABORARCOM AREVISTACEI

Helena Faria . Contadora de histórias

A APEI nasceu pouco tempo depois de me ter tornado educadora de contente e orgulhosa pela minha contribuição.
infância e, talvez por essa razão, foi sempre uma espécie de teto de Existe outro aspeto em que estou grata aos CEI pela oportunidade de
abrigo pedagógico, uma espécie de cúmplice da viagem profissional escrita que me proporcionaram: deixar-me, através dos meus contos,
que se tem vindo a concretizar há mais de três décadas. falar sobre educação não formal em que as aprendizagens se proces-
Foi uma honra e um prazer quando me pediram para editar pequenos sam dentro de relações sociais e institucionais, mas sempre e acima
contos numa rubrica de continuidade: “Contos para acordar”. de tudo afetivas, de uma forma lúdica e simbólica, trazendo para o
Nunca percebi se as minhas narrativas acordavam alguém ou não. presente memórias de outras infâncias vividas e permitindo fazer um
Durante uns tempos desconfiei que esta rubrica era a parte da revista cruzamento intergeracional.
em que os leitores passam à frente, mas certa vez que estava em Por tudo isto, pela qualidade desta revista que se tem mantido ao
atividades de férias com um grupo de crianças, comecei a ler-lhes longo da sua existência, pelo esforço e trabalho continuado ao longo
um dos meus contos e, de repente, alguns dos meninos (crianças de anos, pelas suas características únicas e tão abrangentes, pelo
a partir dos 6 anos) conheciam aquela história e adiantavam-se à espaço de divulgação dos trabalhos de qualidade realizados no âm-
minha leitura partilhando os acontecimentos do enredo! Tinha sido bito da educação de infância neste país (e não só), pelas temáticas
a professora que lhes dera aquele texto. O meu coração explodia de tratadas e tão bem refletidas, agradeço aos CEI.
alegria: alguém me lia e alguém utilizava o que eu escrevia! E a revista
CEI tinha leitores para além das e dos educadores de infância con-
siderados seu público alvo. Fiquei tão contente que até pensei que
esta revista poderia ser um dos grandes instrumentos que constroem
paraísos pedagógicos neste país! A revista estava de parabéns e eu,

Rosário Leote . Licenciada em Química

Corria o ano de 2005, lembro-me que estava no agora AlmadaForma iria ser sobre atividades experimentais e seria o mais detalhada possí-
(antigo Centro Proformar) quando recebi o telefonema da Alexandra vel do ponto de vista da exploração da mesma em jardim de infância.
Marques (na época presidente da APEI) para me fazer o convite para a Pouco tempo após esta colaboração nas edições da APEI dou tam-
colaboração permanente nos Cadernos de Educação de Infância numa bém início à colaboração enquanto formadora, processo esse que me
nova secção chamada “À Descoberta”. Aceitei, sem hesitar, escrever permitiu ter um outro olhar sobre o ensino das ciências. As reflexões
sobre o ensino das ciências no jardim de infância. Isso agradava-me e partilhas durantes estes processos formativos foram muito enri-
e permitia-me utilizar o trabalho realizado em diversos jardins de in- quecedores para o processo de escrita para os Cadernos de Educação
fância no âmbito de vários projetos Ciência Viva. Assim começou esta de Infância.
aventura de escrever artigos sobre ciência no jardim de infância, já lá Assim, todos os artigos escritos até hoje têm por base atividades que
vão 11 anos e 35 artigos! foram realizadas em várias salas de aula pelas crianças e cujo registo
Escrever o primeiro artigo não foi tarefa fácil. Deixaram-me “à solta” de reações, conclusões e ideias, das mesmas e das educadoras, fui
para organizar a nova secção da forma que achasse mais interessante registando ao longo dos anos para que um dia os pudesse partilhar
e útil para o leitor. Mas antes de tudo isto havia que escolher o ou na divulgação do ensino das ciências no jardim de infância. Embora
os conteúdos, e surgiram mais uma série de dúvidas: teórico ou ex- não seja a minha actividade profissional principal, o ensino das ciên-
perimental? Se experimental, uma experiência ou várias mais curtas, cias é a minha paixão e agradeço à APEI esta oportunidade de poder
ou apenas pequenos projetos de investigação onde tudo se incluiria? continuar a trabalhar e aprender nesta área.
Um sem-número de dúvidas e de ideias que havia de organizar. Após
alguns ensaios e recolha de opinião, surge a estrutura base da secção:

128 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ÀDESCOBERTA
Impressão digital
Rosário Leote . Licenciada em Química

Todos temos características únicas que nos Uma impressão digital apresenta os seguintes
identificam. Uma dessas características são as pontos característicos:
impressões digitais. • linhas pretas;
A dermatoglifia é o estudo dos sulcos e das • linhas brancas;
saliências da superfície das palmas da mão, • minúcias
das plantas dos pés e dos dedos. Nesta ati- • delta Figura 3. Vários tipos de minúcias
vidade será dada importância à datiloscopia, • núcleo
que é o processo de identificação por meio De um modo geral, pode afirmar-se que as im-
das impressões digitais. pressões digitais podem ser divididas em três Nesta atividade pretende-se explorar as im-
A datiloscopia baseia-se em alguns princípios padrões principais, que são os ciclos (loops), pressões digitais e reconhecer que são dife-
fundamentais: o princípio da perenidade diz os arcos (arches) e as espirais (whorls). rentes para cada um.
que os desenhos datiloscópicos em cada ser Os laços ou alças, são linhas que entram e
humano já estão definitivamente formados a saem do mesmo lado da impressão digital, Materiais necessários
partir do sexto mês de gestação; o princípio invertendo assim o seu percurso a meio do Papel
da imutabilidade diz que este desenho não se dedo. Almofada de carimbo (ou qualquer produto
altera ao longo dos anos, salvo algumas alte- Os arcos são linhas que começam num lado que permita “tirar” as impressões digitais)
rações que podem ocorrer devido a agentes da impressão, sobem em forma de colina e Lupas
externos, como queimaduras, cortes ou doen- terminam no outro lado.
ças de pele; o princípio da variabilidade afirma Os remoinhos ou espirais são linhas circulares Procedimento
que os desenhos das impressões digitais são que não entram nem saem de qualquer lado Pedir às crianças para observarem os dedos e
diferentes, tanto entre pessoas como entre os da impressão digital, formando várias imagens descreverem o que conseguem ver.
dedos do mesmo indivíduo, sendo que jamais circulares. Fornecer lupas e fazer o pedido anterior.
serão encontrados dois dedos com desenhos Passar a ponta do dedo na almofada de ca-
idênticos. rimbo e colocar a impressão digital no papel.
Assim, o estudo das impressões digitais tem
evoluído muito principalmente devido à ciên- Repetir para todos os dedos das mãos.
cia forense, embora a sua utilização já seja co- Questão: Será que as impressões digitais são
nhecida desde 2000 a.C., pois os babilónicos todas iguais?
usavam os padrões de impressões digitais em
barro para acompanhar documentos, a fim de Figura 2. Ciclos, arcos e espirais Observar e descrever as diferenças.
prevenir falsificações. Comparar as previsões com os resultados
Cerca de 70% dos padrões das impressões
digitais são ciclos, 25% são remoinhos e 5% Explicar o resultado
são arcos. Não termine aqui a atividade, os alunos de-
Também se podem classificar por minúcias vem fazer o registo das suas observações
que são características únicas conhecidas, da forma que achar mais conveniente (de-
nomeadamente descontinuidades locais, que senhos, textos, oralmente, etc.). Promova a
identificam pontos da impressão digital onde discussão sobre estes resultados ao longo
as cristas se bifurcam ou terminam. Formam do ano. Esta pequena experiência pode dar
a base de qualquer sistema que utilize as téc- origem a muitas outras.
nicas de comparação de impressões digitais
para propósitos de identificação e verificação.
Existem vários tipos de minúcias que podem
ser reduzidos a dois grandes tipos: termina-
ções e bifurcações.
Figura 1. Núcleo (core e delta)

129 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: CONVERGÊNCIAS
Errar é uma virtude
Sofia Esteves . Mãe, psicóloga e formadora

Para comemorar os 30 anos dos CEI, de que pressão criativa inevitável da Natureza que recorri, cognitivos, emocionais ou vivenciais,
sou colaboradora desde 2005, com imenso procura constantemente evoluir? tudo isso é negligenciado porque o que inte-
gosto, decidi iniciar este artigo com uma pe- Infelizmente, observo à minha volta uma so- ressa é resolver um problema ou responder
quena provocação (pois, se assim não fosse, ciedade pouco aberta ao erro e muito forma- a determinada questão, segundo os critérios
para quem me conhece e acompanha, seria tada para reagir ao mesmo punindo-o. institucionalizados.
de estranhar): Observo crianças e jovens lutando todos os Urge desenvolver uma pedagogia positiva,
Conseguem imaginar um mundo onde todos dias para se encaixarem nas expectativas assente na individualidade e sensibilidade do
pensam da mesma forma, sentem da mesma criadas sobre aquilo que é esperado delas, educando.
forma e agem da mesma forma? por pais, professores, educadores e socieda- Que olhe para ele como um ser único e espe-
Decerto que não! de em geral. cial, com um potencial Ilimitado.
Decerto me responderiam que uma socieda- Observo os seus comportamentos, vivencio Porque na vida nada é previsível e nem sem-
de assim não evoluiria, que as pessoas es- os seus medos e frustrações. pre A + B = C.
tagnariam e agiriam como autênticos robôs. Relembro-vos que o medo associado à frus- E quando A + B = Z há que saber pensar
Ou, como diria o povo, “temos cinco dedos tração origina uma energia bloqueadora “fora da caixa”.
de uma mão e todos eles são diferentes”, e poderosíssima, que incapacita o acesso da “Errar é uma virtude.” Que o diga Alexander
há efetivamente uma razão para isso. criança ou jovem aos seus recursos internos, Fleming, que se não tivesse cometido o erro
Então, por que não aceitar a diferença? Por impedindo o fluir das suas reais capacidades. de se esquecer de placas com culturas de
que não aceitar o erro? Quantas vezes “recusam-se” inclusive a cum- microrganismos no seu laboratório ao ir de
A sugestão é: por que não aceitar o erro prir determinadas tarefas por medo de errar. férias, nunca se teria descoberto a penicilina
como uma estratégia válida na resolução de Tudo porque os currículos foram criados do e ele e os seus colegas nunca teriam ganho
problemas/tarefas? pré-escolar ao secundário para promover o Nobel da Medicina.
Por que não aceitar o erro como uma res- uma pedagogia assente nos resultados e não “E esta, hem?”, como diria Fernando Pessa se
posta natural, que faz parte do processo de no processo de aprendizagem. ainda estivesse entre nós.
evolução e aquisição de competências, sejam O “como lá cheguei”, seja o resultado final
elas emocionais, cognitivas ou relacionais? errado ou não, é pouco ou nada valorizado.
Por que não aceitar o erro como uma ex- O processo que utilizei, os recursos a que

130 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: CONTOSPARAACORDAR
Labaredas da nossa infância
Helena Faria . Contadora de histórias

Quando nós éramos pequenos, nas casas dias, nós, os pequenos, devorávamos com que só aconteceu uma vez, porque o medo
dos nossos avós, nas aldeias, ainda era cos- o olhar e com a paixão o fogo da lareira. da vergonha fazia-nos ficar vigilantes pelo
tume acender a lareira e, depois do jantar, Comíamos a sua cor, sentíamos o seu calor, sono dentro enquanto os olhos permane-
sentarmo-nos em banquinhos de madeira e embalávamo-nos na sua dança. Sentíamos ciam fechados e a inconsciência reinava. O
ali ficarmos com um dos avós, tios ou pais a simultaneamente um grande medo e uma que seria essa coisa? Por que é que a pre-
contar histórias do arco da velha. Não eram grande atração por aquele ente maravilho- sença do fogo acionava no corpo uma enor-
histórias de um arco, propriedade de uma so e perigoso. Sentávamo-nos mais perto me vontade de “verter águas”? Seria uma
velha, não. Arco da velha é uma expressão e tentávamos desenhar figuras no ar impri- necessidade de controlar as chamas que
que nós usávamos para designar as histórias mindo movimento à brasa da ponta de um nós, crianças, ainda não conhecíamos, mas
antigas e inverosímeis. Não tinham dragões pauzito que estivesse mais à mão na amál- já adivinhávamos como perigosas?
e outros monstros imaginários, mas tinham gama do borralho. Quando eu era criança, estes eram os mo-
bêbados, ladrões, velhos assustadores, me- “Não brinques com o lume! Com o fogo mentos em que me encontrava mais perto
ninos perdidos, animais, muitos animais, de não se brinca! Olha que vais fazer xixi na do fogo. A mãe, cuidadosa, lembrava sem-
quando em quando uma bruxa, sementeiras cama!”, eram coisas que os adultos nos pre aquela vez em que, quando criança, ati-
e colheitas, amores extraviados e secretos, diziam para nos afastar das brincadeiras rara uma castanha brava para a lareira e o
filhos mal nascidos, anões, doidos varridos perigosas. E, de facto, parecia que o fogo fogo lha devolvera, direita ao pescoço, feita
e outras tantas personagens de mistério e provocava qualquer coisa na bexiga que projétil incandescente. Mostrava a cicatriz
aflição, tão frequentes na vida real. chegou a transformar-se em dilúvio no e olhava para outro lado (pensávamos nós)
Enquanto ouvíamos aquelas narrativas tar- colchão de palha. Que eu me lembre, acho enquanto deitávamos pequenas migalhas

131 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: ARTIGO

para a fogueira. Porque mexer nas brasas, o acalmar das vozes, com o lento apagar uma avó de papelão e colocámo-la na cama.
participar no fogo, era uma tentação. do clarão, sinais do controlo da situação. Mas quando os sarracenos chegaram e pe-
Uma certa noite, fomos acordados pelos Quando os adultos voltaram, cheiravam a garam na avó, descobriram que ela era fal-
vizinhos: o fundo do quintal estava em cha- fumo, estavam sujos e cansados, com sede sa, olharam para debaixo da cama e desco-
mas! Os adultos acorreram, foram chama- e com tosse. Tinham as caras secas e sérias briram lá a avó verdadeira. Portanto (na mi-
dos os bombeiros, a vizinhança juntou-se. e os ombros arqueados. nha inconsciência de sonho) os sarracenos
Dentro da casa, sentíamos o cheiro e, pela No dia seguinte fomos ver a zona ardida. levaram a avó verdadeira, apesar de termos
janela, víamos o clarão na noite. De longe, Coisa pouca. Pouco mais que o canavial tentado dar-lhes luta, só que eles tinham
parecia-nos o fim do mundo, o inferno, o à beira da estrada. Alguém que passara e uns uniformes azuis e uns sabres doirados
apocalipse! Ouviam-se as vozes dos adul- atirara o resto de um cigarro aceso para o e brilhantes e tinham força, muita força. Le-
tos gritando ordens e sentenças, vislum- chão. varam consigo a avó até ao poço quadrado
bravam-se as correrias com baldes e com Durante uns tempos, o medo e os pesade- que existia no fundo da quinta. Quando lá
ramos verdes, ouvia-se o crepitar do fogo, los persistiram. chegaram, acenderam muitos cigarros e in-
sentia-se a proximidade do calor doentio! Lembro-me de um certo pesadelo, tal e qual cendiaram as canas que ladeavam o poço.
Os corações desritmavam-se desenfreados como o sonhei, com a mesma realidade per- Depois desceram pelo poço dentro, por
e a adrenalina percorria o corpo puxando-o versa com que o encarei na manhã seguinte, entre as labaredas, por umas escadas inter-
para perto da janela e da porta e, ao mesmo desfeita em lágrimas: no meu pesadelo, os nas que aí existiam (acho que só existiam
tempo, para o resguardo da casa que nos sarracenos (que eu não sabia quem eram, no meu sonho, nunca tirei este pormenor a
protegia. A tia rezava, a avó acompanhava mas faziam parte das histórias da História limpo). Acordei nesse momento num pranto
com umas ladainhas impercetíveis, os cães que a mãe contava) tinham vindo buscar a de fazer tremer o mundo: tínhamos ficado
ladravam desenfreados e os bombeiros tar- avó. Como entretanto nos tínhamos aper- sem a avó! Não servira para nada o trabalho
davam. Havia uma agitação no ar que só cebido da sua proximidade pelo caminho de fazer uma avó falsa, de papelão! Qual
serenou com a chegada das sirenes, com das traseiras da casa, à pressa, construímos não foi o meu espanto quando, ao passar
pela porta sempre aberta do quarto dela,
ela ali estava, sentada na sua mesinha, com
o seu xailinho roxo cruzado sobre o peito, o
seu cabelinho branco muito penteado num
totó cheio de ganchos, a ler o seu eterno
livro: A Morgadinha dos Canaviais.
As conversas sobre o fogo e os incêndios
vinham bastas vezes à baila e o pai teimava
em dizer que o fogo não é mau. Ele achava
que todos os elementos da Natureza não
são bons nem são maus: existem e são
necessários. Ponto. Ele dizia que era pre-
ciso estudá-los, aprender a conhecê-los e
respeitá-los. Usá-los com controlo. Com
domínio e cuidado.
Mas, na nossa teimosia de crianças curio-
sas, o discurso do pai não conseguia acal-
mar os ânimos. Então, certa tarde, juntou-
-nos à sua volta e, pacientemente, ensinou-
-nos a acender um fósforo, a acender uma
fogueira e a apagá-la.

132 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: NASBANCAS:EDUCAÇÂO
Luísa Magalhães, Brinquedos no Intervalo. Publicidade Infantil na Televisão Portuguesa Editorial Novembro, 2017
Maria do Céu Roldão e Elza Mesquita, Formação Inicial de Professores. A supervisão pedagógica no âmbito do processo de Bolonha
Edições Sílabo,2017
Paulo M. Morais ,Voltemos à Escola Edições Contraponto, 2017

O livro de Elza Mesquita e Maria do Céu


Roldão tem por objeto os modelos de su-
pervisão, enquadrando-os no processo de
formação inicial de professores e trazendo
ao leitor a perspetiva dos estudantes sobre
a prática pedagógica supervisionada. Trata-
-se de uma obra importante porque retoma
a ideia de modelo, aqui também tomado
como cenário que enquadra a ação peda-
gógica e a ação supervisiva, e porque, va-
lorizando a voz dos "futuros professores",
faz emergir racionalidades que atravessam
distintos modelos e os atualizam no cam-
po da docência. Neste estudo, sobreleva-se
ainda a utilização de um conjunto de com-
portamentos interpessoais observáveis que
corporizam um determinado perfil de super-
visão e são agrupados em três dimensões:
uma dimensão "didática", uma dimensão
'experiencial' e uma dimensão "democráti-
ca".
Com a obra agora publicada dispõe o lei- Há uma escola pública portuguesa - a Escola
tor motivado pela temática da comunica- da Ponte - que ensina diferente há 40 anos
ção em geral e pela interação dinâmica das e é conhecida e estudada em todo o mundo.
Crianças com a televisão, em particular, de Como funciona? Quais as diferenças no mé-
uma ampla e sólida introdução ao seu es- todo de ensino? Há estudos sobre os resulta-
tudo teórico e metodológico, a par de um dos? Quem são os professores? Como atuam
exemplar caso de análise empírica de spots no espaço de aula? Aliás, porque é que são
televisivos de publicidade a brinquedos. espaços e não salas de aula? E porque é que
E de novo cabe sublinhar quanto este tra- são orientadores educativos em vez de pro-
balho original e pessoal faz parte do pro- fessores? E os alunos fazem o que querem?
cesso coletivo de construção do conheci- E como resolvem os conflitos? E, já agora,
mento no domínio da comunicação. É na aprende-se o quê na Escola da Ponte?
relação com trabalhos congéneres que o O romancista e ex-jornalista Paulo M. Morais
precederam, ou acompanharam e continua- protagonizou uma longa imersão na escola
ram que o mesmo esforço criativo ganha mais democrática do País e relata de forma
sentido e corpo. Faz sentido recordar com magistral as certezas e as dúvidas em torno
P. Watslawick que o domínio da comuni- de uma escola única.
cação, embora de antiga presença, é uma
"ciência na sua infância".

133 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


: NASBANCAS:INFANTIL
Simona Ciraolo Quero Um Abraço Orfeu Negro, 2017
Margarida Fonseca Santos; Ilustração: Carla Nazareth Um Salto de Gafanhoto Clube do Autor, 2017
Owen Hart; Ilustração: Sean Julian Vou Amar-te para Sempre Minutos de Leitura, 2017

Às vezes não vos apetece mesmo um abraço


apertado? Ao Filipe, o pequeno cacto, é isto
que lhe apetece todos os dias. Mas a ilustre Um gafanhoto verde muito pequeno des-
família Cacto não gosta nada de abracinhos cobre a caixa mágica de que lhe falava o seu
e despreza qualquer tipo de manifestação avô: uma caixa capaz de transportar gafa- O Ursinho vai partir com a mãe para conhe-
de afeto. Apesar do caso espinhoso, o Filipe nhotos de um sítio para outro. E as desco- cer o mundo.
não desiste. Um dia, decide partir em busca bertas não acabam aqui! Afinal, nem todos Através das várias estações do ano, os dois
de carinho e amizade. E, quem sabe, do seu os gafanhotos são verdes... Como podem as percorrem terras distantes lindas e encon-
merecido abraço... famílias rejeitar os gafanhotos apenas por tram novos animais.
serem de outras cores?! Há tanto por descobrir!
Uma história ternurenta, que irá derreter até Esta história fala de gafanhotos, de sítios "Um dia terás uma grande aventura só tua",
os corações mais empedernidos! distantes e de como a amizade é muito mais diz a Mamã Ursa ao filhote.
importante do que qualquer aparência. Mas será o seu amor capaz de o alcançar
quando estiver longe?
Um livro sobre autonomia e a inquebrável
ligação entre pais e filhos.

134 Cadernos de Educação de Infância n.º 112 Set/Dez 2017


Francisco Gojara da Silva A Matilde está Careca Prime Books, 2017
Anna Llenas O Monstro das Cores. Um livro pop-up Nuvem de Letras, 2017
Joana Alexandre, Rute Agulhas, Catarina Lopes Programa de Prevenção Primária de Abuso Sexual para crianças em idade pré-escolar -
“Picos e Avelã à descoberta da floresta do tesouro!” Ideias com História , 2017

As emoções explicadas às crianças através


das cores.
Divertidamente, a personagem principal é um “Picos e Avelã à descoberta da floresta do
monstro que muda de cor consoante o que tesouro!”, consiste num programa de pre-
está a sentir. Ele não percebe porque muda venção primária do abuso sexual que englo-
O projeto "Hospital dos Pequeninos" é uma de cor e a sua amiga, a menina, explica-lhe ba um livro didático para crianças dos 3 aos
muito bem-sucedida iniciativa anual levada a o que significa estar triste, estar alegre, ter 6 anos e um conjunto de materiais de apoio.
cabo pela Associação de Estudantes da Fa- medo, estar calmo e sentir raiva. Através de uma história, são abordados seis
culdade de Medicina de Lisboa (Hospital de temas que a literatura refere como essen-
Santa Maria) que tem como objetivo des- ciais para a prevenção desta problemática:
complexar e tornar amigável a relação das “O meu corpo”, “Bons toques, maus to-
crianças com os hospitais. É neste âmbito ques”, “Emoções”, “Segredos bons, segredos
que surge este segundo livro, no caso de- maus”, “Dizer sim, dizer não”, “Pedir ajuda”.
dicado ao cancro infantil, relatando através A história envolve diversas personagens ani-
da história da pequena Matilde uma vivência mais que habitam uma floresta, existindo
que se pretende desdramatizada, mas acima duas mascotes que acompanham as crianças
de tudo pedagogicamente solidária e afetuo- ao longo desta e de 21 atividades (3 ativida-
sa. Um livro, como diz Nuno Lobo Antunes, des por tema e 3 atividades finais): a Picos,
"de coração aberto, por onde espreita o amor um ouriço, e o Avelã, um esquilo. Este pro-
que ajuda a vencer a pior das doenças". grama deve ser dinamizado por um adulto e
as atividades estão formuladas para grupos
de crianças num contexto educativo (formal
ou informal), podendo ser adaptadas para
outros contextos de vida das crianças. A sua
construção deriva de uma tese de mestrado
na qual participaram 25 educadoras de in-
fância que ajudaram a pensar os materiais
propostos. O programa inclui também um
“Manual de Orientação” para o adulto di-
namizador e um conjunto de propostas de
envolvimento parental.

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Na janela da sua casa, o caracol aguarda por algo
enquanto vão passando vários amigos.
Admirados perguntam-lhe o que está a fazer.
Em solidadriedade todos eles ficam à espera.
À espera do quê?
Esta é uma história com suspense
escrita por Rosa Montez e ilustrada
por Sofia Ambrósio.

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