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Le Nouvel Educateur

Documents n°218
Suplemento do número 21
de setembro 1990

Práticas pedagógicas na educação infantil


Setor "Maternelle" do ICEM
Práticas pedagógicas
na educação infantil

Le Nouvel Educateur - Documents n°218


Suplemento do número 21 de setembro 1990

Setor "Maternelle" do ICEM

Colaboraram com este dossiê

Jean Astier - Sylvie Becchino - Jacqueline Benais - Nicole Beme - Laurence Destrade - Solange
Durand -Émilie Faure - Paulette Germain - Jean Roucaute - Denise Roux - Florence
Sabathé - Annie Solas - Claire Vuillequez e a equipe da École maternelle des Béalières 38 -
Meylan.

Fotos : p. 5: P. Bensa - p. 23: Sylvie Becchino - p. 28 e 30: École des Béalières

Tradução: Ruth Joffily


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 4

UMA PEDAGOGIA CENTRADA NA CRIANÇA 5


À escuta de suas necessidades fundamentais 5
Ritmos biológicos 5
Necessidades afetivas 7

Respeito à necessidade de segurança 7


Aquela que não traía 7
Regras de vida na classe 9

A cooperação, a ajuda mútua 12


Preparamos a visita dos correspondentes 12
Correspondência com a Romênia 13

Uma educação para o sucesso 14


Ilustração de uma história para o J Magazine 14

Expressar-se livremente 15
Um canto sonoro na classe dos pequenos 15

Acesso à autonomia 16
Autonomia na educação infantil: um quadro para os ateliês 16

CONDIÇÕES PARA O SUCESSO 17


Responsabilidade individual do educador 17
na organização do espaço e do tempo
Construção de um mezanino 17

Motivação 18
O conto musical 19

Papel do professor 20
Confecção de um álbum 21

Tateamento experimental 22
No domínio científico: estudo dos deslocamentos 23
Através de exemplos da vida cotidiana: 31
O livro da vida 31
Correspondência 31
Um jornal diário 32

CONCLUSÃO 34
BIBLIOGRAFIA 36
INTRODUÇÃO

Que ser tentamos formar em nossas classes?


Um homem global, capaz de se adaptar num mundo em perpétua mudança. Capaz de
adquirir conhecimentos por si mesmo. Capaz de autonomia e de cooperação. Um ho-
mem que tolera e respeita os outros, que se estima, que se ama, que é capaz de esco-
lher, imaginar, criar, conceituar e de espírito crítico.
Partindo da ideia de que a criança é “sujeito e objeto de sua própria educação”, tenta-
mos, neste dossiê, colocar em evidência nosso papel de educadores: ser a garantia dessa
formação nos seguintes domínios:
 satisfação das necessidades fundamentais das crianças
 segurança afetiva e material
 aptidão para cooperar no seio de um grupo
 aprendizagens em situação de sucesso
 acesso à expressão livre e à comunicação.

Através de alguns exemplos concretos tirados de nossa pedagogia cotidiana e cuja lista
não é exaustiva, mostramos, na primeira parte do dossiê, o que fazemos para que o
desenvolvimento da personalidade de cada um se faça nas melhores condições, embora
saibamos que não somos os únicos a participar desse desenvolvimento necessariamente
global.

Na segunda parte, tentamos mostrar, sempre nos apoiando em nossas práticas cotidia-
nas e a elas acrescentando o esclarecimento da teorização, como conseguimos ajudar a
criança na estruturação de sua pessoa.

Se, como afirmam, “tudo acontece antes dos seis anos”, temos um papel especialmente
criativo a compartilhar com todos os parceiros educadores, em particular os pais, para
ajudar a criança a crescer.
5

UMA PEDAGOGIA CENTRADA NA CRIANÇA

À escuta das necessidades fundamentais


Ritmos biológicos
O restaurante escolar: uma experiência, pistas de trabalho
Ano escolar 1988/1989 (1): Uma escola infantil de duas classes, em um meio favorecido,
no subúrbio de Grenoble, que trabalha em paralelo com uma escola primária de três clas-
ses. Doze a quinze crianças da escola infantil agrupadas com crianças do primário frequen-
tam todos os dias o restaurante escolar. Sessenta crianças no total encontram-se num
local previsto inicialmente para trinta, no máximo. Quatro pessoas se encarregam do ser-
viço (uma ASEM (2) e três funcionários da prefeitura). Progressivamente foram organiza-
dos dois serviços, devido ao barulho e ao nervosismo subsequente.
Em abril de 1989, os professores alertam os pais sobre a fadiga acarretada pelo intervalo do
meio-dia, agravada pela falta de pessoal. Isso concerne a metade de nossos efetivos. Para
os pequenos, foi instalada uma sala de repouso, mas este de fato só começa às 13h30m,
para esperar todo mundo, inclusive os que almoçam em casa. Desejando melhorar a aco-
lhida para todos, em particular para os mais novos, organiza-se um grupo de trabalho cons-
tituído de pais, professores, funcionário municipais e representantes da prefeitura.
Decide-se, num primeiro momento, que as refeições serão servidas em dois locais dis-
tintos. Uma sala que serve de ateliê para o primário e que se situa nas dependências da
escola infantil (é a antiga sala de jogos, que foi dividida em dois, uma parte para o sono
e uma parte para o primário) servirá de refeitório para a escola infantil. Assim, os pe-
quenos passarão diretamente da escola para esse refeitório e, em seguida, dormirão às
12h30m na sala de jogos ao lado das antigas instalações. O segundo local de sono, já em
serviço, será ocupado às 13h30m pelas crianças que não tiverem dormido em casa. Isso
torna possível as chegadas escalonadas das crianças que preferem dormir em casa. As
crianças que não quiserem dormir, inclusive algumas do 1o ano, ficam aos cuidados da ASEM,
com atividades calmas, histórias, desenhos etc. A ASEM fica dispensada das atividades de arru-
mação, e uma outra pessoa cuida do sono das 12h30m.
Volta às aulas em 1989 (3), a doutora Delormas (4), especialista em saúde da criança da Associ-
ação Departamental da Educação Sanitária e Social de Isère (ADESSI), faz uma conferência à
noite (anunciada no boletim municipal), a partir dos trabalhos de Montagner (4), para sensibili-
zar os pais para os problemas dos ritmos biológicos. Considera-se então a necessidade de mu-
dança de horário para todos, com retomada às 14h30m, para permitir um verdadeiro tempo de
repouso. Faz-se uma sondagem e uma avaliação financeira. Coloca-se o problema da contrata-
ção de pessoal, em particular para o enquadramento das crianças do primário.

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(1) NT – Como o início das aulas na França é no mês de setembro, o ano escolar tem sempre a referência de dois anos calendário.
(2) NT - ASEM – Assistente da Escola Maternal. Funcionária contratada pela municipalidade para auxiliar cada professor de edu-
cação infantil. Os professores são funcionários ligados ao Ministério da Educação.
(3) NT – É a volta às aulas após o recesso do fim do ano calendário.
(4) NT – Como os autores não deram referências, acredito que por se tratar de nomes muito conhecidos na França, me aventurei
na rede, guiada pelos sobrenomes e o tema tratado. No final da bibliografia apresento algumas informações e os endereços.
6
Por falta de recursos financeiros, esse projeto não é posto em prática, mas permanece
em estudo. Paralelamente, nossa experiência de deitar as crianças imediatamente após
o almoço, como preconizava a doutora Delormas, não é bem-sucedido. Sala muito
grande? Muito clara? Voltamos à sesta das 13h30m no local inicial.
Para os pequenos, a separação dos locais de refeição em dois espaços distintos inega-
velmente foi um sucesso. Constatamos uma nítida melhora na atenção das crianças e
uma fadiga menor no período da tarde. A partir das 11h, propomos atividades calmas
(histórias, música, poesia) e uma retomada às 13h30m com atividades individuais re-
pousantes em ateliês, até as 14h45m, quando atividades mais tônicas são autorizadas
(psicomotricidade, na classe dos grandes (5).
Respeitar os ritmos biológicos das crianças (alternância repouso-movimento) só foi pos-
sível graças à participação de todos da escola e de dos que com ela têm parceria, pois
foi organizada uma estrutura não rígida que se adaptou principalmente à criança.
A organização de um grupo de reflexão que incluiu os pais (67% se manifestaram, 84%
das famílias são favoráveis à mudança) permitiu fazer compreender que não se deve
acordar uma criança, que há escolhas a fazer a seu favor.
Mesmo que, na prática, as dificuldades tenham permanecido, em particular o problema
do financiamento para o pessoal suplementar para cuidar do período até às 14h30m,
temos muita esperança de que esse projeto venha a ter sucesso.

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(5) NT – A Educação Infantil é dividida em 3 níveis: seção dos pequenos – 3 anos (PS), seção dos médios –
4 anos (MS), seção dos grandes – 5 anos (GS).
7

Necessidades afetivas
Rémi
Rémi veio para nossa escola no início de janeiro de 1990. Seu pai apresentou o pro-
blema: é divorciado, Rémi fica com ele uma semana por mês. O resto do tempo ele passa
com a mãe em Toulon, no Var.
Conversamos com as crianças, na roda da conversa. “
“É como o vovô e a vovó. A vovó mora em Mônaco e o vovô, na Suíça”, diz Emmanuelle.
“Eu também”, diz Damien. Vovó mora sozinha. O vovô mora em outro lugar...”
Benjamin só escuta, seus pais vão talvez se separar.
Rémi chegou. Integração fácil. Proponho uma correspondência com a professora de
Toulon. O que mais poderia fazer, a não ser trazer referenciais para essa criança que não
sabe onde mora? Aconselho o pai a dar a Rémi uma agenda pessoal na qual ele possa
marcar quando vai estar em Toulon e quando vai estar em Herbeys. Reconhecemos que
a situação dele é difícil. Mostramos para ele que o compreendemos.
A correspondência proposta não teve repercussão junto à professora de Toulon. Rémi
vai se adaptar, compreendendo que os adultos não têm a mesma maneira de trabalhar.

Respeito à necessidade de segurança


Aquela que não traía
“Eu era aquela que não traía.” Esta é a frase que mais me impressionou no livro de C.
Pochet (6). Eu, ao contrário, tinha a impressão de ser aquela que traía:
- ao contar para colegas que não têm a mesma ótica que eu os problemas ”psicológicos”
de algumas crianças... sob o pretexto de ajudá-las;
- ao contar para uma criança, diante de sua mãe, as dificuldades que esta teve num
momento preciso... tentando “arrumar” as coisas e... ultrapassando assim meu papel de
professora para substituir a mãe, e, com isso, tirando um espaço da liberdade da criança
que nunca havia me mostrado esse aspecto de sua personalidade.
Decidida a não continuar mais com esse tipo de traição, fico atenta.
Assim, numa quinta-feira, quando a mãe de Pierre chegou dizendo, na frente de todas
as crianças: “Parece que Pierre e Julien fizeram besteiras na escola”, pedi explicações,
farejando o perigo.
Ao pai de Julien, que, na terça-feira anterior me perguntara como seu filho se comporta,
tive o cuidado de dizer, diante dele, que o achava um pouco dispersivo (o Natal, tal-
vez....) e que eu lhe pedira para fazer um esforcinho.

__________________
(6) C.Pochet, F.Oury L'année dernière j'étais mort, signé Miloud, Matrice éditeur.
8
O que pode ter acontecido em casa para que Pierre, que nada tinha a ver com o caso,
fosse acusado com Julien de uma hipotética besteira? Mistério das comunicações
sucessivas...
Prendo-me ao fato. A hipotética besteira não havia perturbado a classe na terça-feira.
Portanto, não quero saber mais nada. Assunto encerrado.
Sejamos claros: de um lado, a escola, onde, “enquanto professora”, tenho direitos. De
outro lado, a casa, onde os pais, eles também, têm direitos. Então, com as crianças, de-
cidimos que o que acontece na escola não tem que ser obrigatoriamente contado em
casa, e vice-versa. E continuei a estabelecer estruturas de vida cooperativa e referenciais
para que as crianças se encontrem e espaços de liberdade para que elas, das quais me
encarrego e que já são tão enquadradas, vigiadas, amarradas nas normas sociais, pos-
sam respirar.
A dificuldade é descobrir o que devemos dizer aos pais que possa ajudar a criança na
vida escolar sem abafá-la.
9

fotos - https://www.icem-pedagogie-freinet.org/node/6516

Regras de vida na classe


As regras de vida na classe não são impostas. A criança não tem que sofrer a lei do
adulto, mas o adulto está ali, muito presente, para ajudar a criança a refletir sobre essas
leis. Elas nascem e se elaboram na vida cotidiana. A classe é a “sociedade” na qual a
criança toma consciência de seus direitos, de seus poderes e do respeito que deve ter
com os outros, com a vida.
Todos os dias, discutimos a respeito delas quando tratamos de:
- incidentes de relacionamento
- problemas afetivos
- gestão do trabalho
- gestão do material da classe
- nossos projetos.
Num primeiro momento, escrevemos as regras à medida que elas são descobertas. Num
segundo momento, classificamos por temas. As crianças se referem a elas durante todo
o dia. Os pais se interessam, gostam de conhecê-las, saber como nasceram. Eles obser-
vam o quanto suas crianças lhes dão importância e falam delas. Para alguns pais, acre-
dito que isso faz também evoluir seu modo de conceber a educação de seus filhos.

Nota da Tradutora – na leitura dos quadros a seguir, lembrar que o ano letivo na França começa em setembro.
No início de outubro, eu questiono: E eu acrescento: 10
Sobre o que podemos falar no Conselho?
- quando brigamos com os colegas. - o que vocês gostam Em novembro Em fevereiro:
- os que não fazem seu trabalho. - o que vocês não gostam Organizar - a festa
- quando fazemos muito barulho. - o que vocês querem fazer -- a visita dos Amigos Organizar o carnaval
- quando os outros não arrumam as coisas. - se você está triste Em dezembro: Em março:
- quando eles pegam todos os brinquedos. - se você não está contente Preparar o Natal Preparar a viagem de visita
aos Amigos
*Durante o ano, são as situações que criam a necessidade dos conselhos.
Fazemos os conselhos para tratar das situações da vida. Cada um comunica suas ideias: anotamos tudo – selecionamos – dividimos as tarefas
Escrevemos o plano da organização – marcamos no calendário
Após várias sessões, eles dizem o que gostam. É preciso dinheiro para comprar material – para pagar o ônibus –para ver um espetáculo
Mas não falam ainda do que não gostam : Procuramos ver como ganhar: fazer – fabricar - gerir
Estar feliz
Gosto de ler, de ir na biblioteca infeliz
Gosto de jogar dados, desenhar, cantar. Em dezembro e fim de janeiro:
Gosto de fazer música.
Gostar de fazer porque - É preciso pensar no plano de trabalho,
Gosto de ginástica. e poder dizer se tem liberdade nem todos trabalharam.
Gosto de ver tv. - Eles não arrumaram os jogos.
De brincar com os pequenos. de escolher - As canetinhas não estão arrumadas.
De dançar. de parar Plano de trabalho:
Poder exprimir: - Tentam pensar sozinhos.
Gosto quando os Amigos vêm. de respeitar o cansaço - Tentam concluir.
De piquenique. o que gosta - Se não concluem tudo, não é tão grave.
De andar de trem. o que não gosta Eu explico: no sábado, vamos marcar:
Quando recebemos cartas.
Quando preparamos a festa. Poder escolher Educar a autonomia - se souberam pensar sozinhos
organizar - se pensaram em fazer tudo
Quando fazemos aniversário. Assim podemos progredir
Poder gerir seu tempo gerir seu tempo
fazer projetos Depois, eu proponho:
gerir a caixa Vamos colocar nas regras de vida:
da cooperativa: - pensar na arrumação
Em janeiro aparece pela primeira vez: Eu não gosto de trabalhar, às vezes cansa! ganhar / gastar - pensar nas responsabilidades

O que você gosta de fazer? Não trabalhamos o tempo todo. Po-


Brincar – ler – dançar - fazer ginástica – demos continuar amanhã.
pintar
trabalhar no computador Refletimos juntos: como organizar o
1o de outubro 8 de outubro
trabalho?
Mas você pode fazer tudo isso.
Primeiro trabalhar e depois brincar, ou o - Nunca podemos brincar com os pneus, - São sempre os Grandes que jogam damas.
Eu quero fazer o tempo todo, quando eu quero.
são sempre os grandes. - Por que não podemos brincar com os jogos?
Pergunto a todos: o que é o trabalho? contrário.
Quando eu trabalho com você. Precisa pensar em terminar até sábado.
Quando temos que fazer o plano de trabalho. - A gente trabalha um pouco. Refletimos juntos sobre o compartilhar
É porque precisa arrumar as coisas. - Às vezes a gente trabalha. como devemos emprestar.
- A gente pode acabar amanhã. Os pneus: não se deve pegá-los sempre, nem ficar sempre com eles o tempo todo.
- Os pequenos não precisam acabar.
Os jogos: é preciso deixar todos jogarem. Os Grandes podem jogar com os pequenos.
11

Sentir-se responsável pela classe - sozinho e em equipe


12 de setembro: os legos – os carrinhos – os livros - os bichos
Tem muita desordem na classe de manhã: de pelúcia – o kit cozinha
Quem sabe arrumar suas coisas E na classe, o que precisamos
sozinho em casa? arrumar?
Eu! Eu! Eu!... Cada um conta o que sabe fa- Os livros – os jogos – a bricolagem – a cola –
zer sozinho: arrumar a cama – arrumar o as tesouras
quarto – ajudar a mãe na cozinha - lavar o Acrescento alguns trabalhos:
carro com o pai – arrumar as bonecas – ves- limpar as mesas – jogar no lixo os papéis
tir as bonecas– arrumar os brinquedos - usados – regar as plantas
1) Estabelecemos momen- 2) 27 de setembro: 3) Com frequência precisa-
tos para a arrumação mos voltar a falar, discutir.
- antes do recreio São sempre os mesmos
- no fim do dia que arrumam, os outros Por que devemos pen-
Em outubro, quase um mês vão brincar. Isso é justo? sar no nosso trabalho?
Não. Todo mundo deve arru- - para aprender
depois:
mar. - para ele não ficar sujo
Decidimos que no sábado de
Os que sabem fazem uma - porque senão vai ter desor-
manhã arrumamos a sala
equipe com os colegas. dem,
toda.
- para ele ficar bonito
Os que sabem ajudam os outros
Estabelecemos o quadro das - a mamãe diz que está bom
responsabilidades quando está limpo

Tornar-se AUTÔNOMO, aprender a escolher sozinho o que quer fazer.


9 de setembro Nos dias seguintes:
Quando vocês não estão trabalhando co- - Colocamos etiquetas nos “cantos” solicita-
migo , vocês podem escolher uma ocupação. dos para identificá-los.
O que vocês têm vontade de fazer? - Fizemos um painel com as atividade pro-
postas.
1 – ler 5 – massinha - Colocamos no mural.
2 – pintura 6 – jogos - Todos os dias um de nós o relê e nós o me-
3 – desenhar 7 – ir brincar com a morizamos
4 - recortar Joëlle e os pequenos

Respeitar os outros, saber ajudar, compartilhar


17 de setembro: Nesta semana houve confusões, disputas pelos pneus.
Temos o direito de machucar os colegas?
Não, porque dói. Vamos fazer um quadro do que não é para fazer.
Ele fica triste. Vamos chamar de As Regras de Vida.
Não gostam da gente quando a gente é mal- Não é para mostrar a língua. Nem puxar os
vado. cabelos. Nem morder. Não pode beliscar.
Não é bom, a mamãe diz que não é pra brigar. Não pode chutar. Não pode xingar.
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A cooperação, a ajuda mútua


Preparamos a visita de nossos correspondentes
Alguns dias antes das férias da primavera, nossos correspondentes anunciam a data de
sua visita: dezoito dias após a volta às aulas.
Desde o primeiro dia da volta às aulas, e durante vários dias, conversamos sobre esse
encontro. Procuramos a data no calendário e contamos os dias. Depois, cada um dá sua
ideia sobre o conteúdo do dia e eu faço a lista numa folha grande. Meu desejo é que as
crianças se encarreguem ao máximo dessa visita. Mas como fazer diante da diversidade
das propostas? O dia é curto: os correspondentes chegam por volta das 10h e saem por
volta das 16h30m.
No dia seguinte, proponho às crianças de colocarmos as propostas de atividades num
grande jogo de trilha com dados. Quando se cai numa casa, tem uma ficha descrevendo
a atividade a ser feita. A ideia agrada às crianças. Decidimos que o jogo vai ser na parte
da tarde.
Traçamos o programa do dia: café da manhã (doces e sucos) na chegada dos colegas;
visita à escola e, depois, visita à cidade (para ver nossas casas), antes de ir ao espaço
comunitário; as crianças arrumarão a mesa para o almoço; jogo da trilha; lanche antes
da saída dos correspondentes.
O almoço será totalmente realizado pelas crianças: salada de arroz, bolo de presunto,
sorvete de chocolate e gelados de três frutas. O jogo de trilha será pintado em papelão
pelas crianças. Cada criança, misturadas de todos os níveis, confecciona uma ou várias
fichas correspondendo a cada casa. Eu escrevo o nome da atividade (é preciso ficar bem
legível), as crianças escrevem o número correspondente e desenham a atividade.

Tudo isso ocasiona:


- um trabalho cooperativo, o tempo todo: para formar equipes diferentes para cada pro-
jeto, compartilhar as ideias, elaboração coletiva do programa do dia e do cardápio;
- uma expressão oral reconhecida, um trabalho verdadeiro;
- um trabalho de leitura: receitas, fichas de atividades;
- um trabalho de matemática: cálculo das quantidades dos ingredientes, fabricados em
massinha de modelar; numeração das atividades;
- uma abordagem da organização do tempo: referenciais no calendário, organização do
dia, repartição dos trabalhos a fazer durante os dezoito dias e durante a semana para a
preparação do almoço;
- um trabalho sobre o espaço com a localização da casa de cada um na cidade;
- expressão plástica: pintura do jogo, desenho das atividades na fichas.

Balanço: A preparação desse dia foi uma grande experiência para todos. As crianças fa-
laram e propuseram suas ideias. Cada um, do mais novo ao mais velho, participou se-
gundo suas possibilidades. Pedimos a ajuda das mães, tanto para a preparação quanto
para fornecer os ingredientes do almoço. O clube da Terceira Idade emprestou-nos sua
13
cozinha para fazermos os bolos. A participação das mães dos alunos parece-me neces-
sária não só pela ajuda que nos deram, mas também porque é uma oportunidade para
elas terem uma outra visão da escola e sobre o que se pode fazer nela. Esse olhar, elas
vão transmitir aos outros pais, e isso pode contribuir para a escola. O mesmo acontece
com a utilização da sala da Terceira Idade: os membros dessa associação muitas vezes são
avós dos alunos. As relações exteriores são muito importantes numa cidade pequena.
É difícil para crianças pequenas organizarem sozinhas um dia inteiro (dificuldades para
medir o tempo e avaliar as situações), e o papel do professor é importante com as cri-
anças da educação infantil. Mas dar a palavra a elas, permitir que exprimam suas ideias
e levá-las em conta, explicar-lhes por que uma determinada proposta não pode ser rea-
lizada, já não seria um passo para a democracia e o respeito à criança?

Correspondência com a Romênia


Início de dezembro de 1989: nossa cidade foi emparelhada com uma cidade romena
graças ao SOS Cidade romena. Isso apareceu no boletim municipal. Numa conversa da
manhã, falei da Romênia e de uma viagem que fiz em 1982. Mostrei o país no planisfério,
sempre exposto ao alcance das crianças, no corredor. Tenho o hábito de marcar nele
pontos de referência para que as crianças situem os países dos quais falamos e o que
pode estar vinculado a ele: a foto de uma colega que voltou para o Canadá, um ninho
que veio da Ilha Maurício, um cartão postal da Tunísia enviado por uma das crianças, etc.
O que poderíamos fazer por essa cidade romena? As crianças estão acostumadas com a
correspondência:
- podíamos escrever para eles,
- enviar desenhos,
- enviar brinquedos...
Como o Natal está próximo, preparamos cartões com papel alumínio e a imprensa.
Escrevemos no verso:

Feliz Natal, Feliz 1990, crianças da Romênia.

Fazemos uma bela carta para situar Herbeys e lhes perguntar como é Botez.
Foi então que os acontecimentos noticiados se acumularam. Nas conversas da manhã,
logo antes do Natal, falamos da Romênia. E tornamos a falar na volta dos feriados, em
janeiro. Chegou uma carta de Botez. É preciso responder! As crianças viram em suas
casas, durante as férias do Natal, a preparação de pacotes com víveres e medicamentos.
A Romênia não lhes é estranha.
Se elas vivem tão intensamente alguns acontecimentos, é porque tiveram provas tangí-
veis de que ela existe, que sua população está sofrendo, e que existem outras crianças,
como elas, nesse país longínquo... todavia, menos longínquo do que aquele para onde
Myrian voltou, o Canadá.
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Uma educação para o sucesso


Ilustração de uma história para J Magazine
A revista J Magazine, editada pelas PEMF (Cannes), tem algumas de suas histórias ilus-
tradas por crianças. Elas recebem o texto na classe.
Apresento abaixo o testemunho de uma classe habituada com essa prática.
Quando recebo uma ilustração para fazer, é um pouco como para a correspondência,
começamos logo o trabalho: apresentação da história para as crianças, pesquisas, téc-
nicas possíveis, etc.
As primeiras tentativas frequentemente são com hidrográfica. Às vezes fazemos pesquisas.
Por exemplo, na última vez, para a história da rã: “Eu não sei desenhar uma rã.”
Procuramos livros com figuras de rãs, a BTJ (7) sobre as rãs, por exemplo. Descrição:
olhos grandes, verde ou marrom, grandes patas traseiras, membranas nas patas, etc.
Após o primeiro traçado, passamos à escolha dos personagens, à decomposição e à cro-
nologia das diferentes páginas. Outras equipes intervêm, e começamos a pesquisar a
técnica a ser utilizada. Para a rã: tinta com água (por exemplo). Tudo isso leva uns quinze
dias para conseguir uma história apresentável. Isso me obriga a abrir diversos ateliês
que se tornam motivadores para as crianças.
Quando as ilustrações que não foram escolhidas pela editora voltam para nós, fazemos
um álbum para a classe e cada criança tem seu livrinho pessoal em sua pasta. Devemos
dizer que quando uma história é editada no J Magazine, é um prazer ver as crianças
descobrirem seus desenhos publicados. Elas ficam muito orgulhosas! E isso multiplica a
motivação para as próximas vezes!

____________________
(7) NT – Biblioteca de Trabalho (BT), revista documental, foi criada em 1932 por Freinet como alternativa
ao livro didático. Em 1965 foi lançada Biblioteca de Trabalho Júnior (BTJ), com linguagem mais accessível
às crianças do primário. São produzidas pelo ICEM e vendidas por assinatura.
15

Expressar-se livremente
Um canto sonoro numa classe de pequenos
O canto sonoro é um espaço da classe especialmente arrumado para dar a cada criança
a possibilidade de descobrir e de produzir sons livremente, sozinha ou em pequenos
grupos. Concebido como uma “casa dos sons”, ele é arrumado da seguinte maneira:
- móbiles sonoros, fixados no teto, em diferentes alturas, permitem que a criança pro-
duza sons estando em diversas posições (de pé, sentada, deitada). Há chocalhos, guizos,
tubos de metal, tubos de madeira...
- um móvel, sobre o qual estão colocados
um piano elétrico e um metalofone, permite
interpor diversos objetos sonoros (caixinhas
de música, apitos, tampinhas metálicas, sa-
quinhos ou potinhos com grãos, areia, pedri-
nhas, elementos naturais). As crianças gos-
tam de ter materiais sonoros variados, bem
como objetos que possam percutir com a
mão, com pedaços de madeira, etc. Cada um
pode se apropriar do canto sonoro em fun-
ção de seus desejos e de suas descobertas.
O canto sonoro tem por objetivos:
 enriquecer as percepções auditivas dos “pequenos”, permitindo-lhes fazer, durante
seus tateamento, discriminações cada vez mais delicadas, e levá-las “naturalmente”
do SOM à MÚSICA, da fase de descoberta ou de exploração à fase de expressão mu-
sical, de criação;
 permitir que a criança descubra e diferencie sons produzidos por diversas fontes sonoras;
 ajudar a criança a se localizar no mundo sonoro;
 desenvolver a criatividade e a expressão (verbal-musical) através do jogo livre, do
tateamento, do prazer.
As crianças podem ocupar esse canto durante as atividades em ateliês, de manhã, e após
o recreio, e à tarde depois do sono (o canto sonoro está instalado no dormitório).
Estabelecemos as seguintes regras de vida:
- quatro a cinco crianças no canto sonoro para evitar que elas se atrapalhem e que
produzam um volume sonoro que possa atrapalhar o resto da classe;
- não levar os “objetos sonoros” para outro lugar da classe, por um lado, para poder
sempre encontrá-los, e, por outro lado, para não perturbar os outros ateliês.
Esse ateliê está instalado num canto da sala um pouco afastado (dormitório) de modo a não
atrapalhar as atividades que precisam de calma (biblioteca, quebra-cabeças) ou concentra-
ção (fichas de grafismo, atenção visual, matemática) e para não prejudicar as gravações das
produções sonoras com o barulho proveniente das outras atividades da classe. Além disso,
ele está perto de uma tomada elétrica para ligar o piano elétrico e do gravador.
16

Acesso à autonomia
Autonomia na educação infantil: um quadro para os ateliês
Eu tinha muitos problemas com a inscrição das crianças nos ateliês até que tive a ideia
de fazer um quadro de dupla entrada.
É um quadro desenhado num painel, contendo, no início de cada linha, os nomes das
crianças, e no alto de cada coluna, em cartões móveis fixados com adesivo, os nomes
dos ateliês, com desenhos ilustrativos (que não reproduzimos no quadro abaixo).
Para facilitar a localização, cada linha é pintada com uma cor diferente.
Cada criança tem uma etiqueta plastificada com seu nome, que ela cola com o adesivo
na sua linha pessoal e na coluna do ateliê escolhido. Quando termina a atividade, ela
recoloca sua etiqueta no início da linha e faz um X com o marcador no quadro.
O painel é revestido de plástico adesivo transparente para poder apagar os X.
Este quadro apresenta várias vantagens:
1. podemos visualizar rapidamente a distribuição das crianças pelos ateliês e não perde-
mos tempo para saber quem escolheu o que;
2. o quadro não precisa ser refeito a cada vez que se muda de ateliê, basta apagar os X.
Em nossa classe, decidimos fazer uma convenção: quando uma criança não terminar o
trabalho num dia, ela faz um X vermelho no quadro. No dia seguinte ela deve se inscre-
ver de novo nesse ateliê. Tem prioridade sobre as outras crianças. Quando ela termina
o trabalho, apaga o X vermelho e marca o X preto.
Este sistema permite ver quem não terminou o trabalho e evita que os trabalhos come-
çados fiquem sem terminar.

Nota: No alto do quadro são feitos pequenos desenhos que ilustram os nomes dos ateliês.

...
pintura desenho gravador modelagem

Marie

X
Vincent

X
Barbara

X
Sylvain

...........
17

CONDIÇÕES PARA O SUCESSO

Responsabilidade individual do educador


na organização do espaço e do tempo
Embora tenhamos consciência das limitações do professor no atual sistema (falta de
verba, pressões de vários tipos), acreditamos que ele é suficientemente livre para ser o
responsável da organização de sua classe. Sem imputar a pobreza das escolas francesas
apenas aos educadores, pensamos que um esforço de imaginação e algumas ações po-
dem desencadear mudanças substanciais no seio da escola.
Embora não consideremos que a Educação é apenas um estado de espírito, acreditamos
que, com alguma imaginação, podemos melhorar as condições materiais desfavoráveis.
Em sua classe, o educador é responsável pelo material e pela organização do tempo e
do espaço. Além disso, ele determina, no início, com as regras que propõe para as cri-
anças, a maneira de trabalhar e de conviver nesse lugar. Ele é a garantia da evolução
dessa organização no período de frequência à classe.

Construção de um mezanino
Faltava espaço na minha classe para tudo o que eu gostaria de fazer:
- 60m2 para trinta e cinco crianças de três anos;
- com janelas colocadas a 1,20m do chão, não havia visão para o exterior e também
não havia possibilidade de plantar alguma coisa à altura das crianças;
- o único ponto luminoso era a porta-janela reservada ao canto-biblioteca;
- não havia lugar para instalar um canto-fantoche permanente; os teatrinhos monta-
dos provisoriamente eram monopolizados pelos mais ousados, e os tímidos, que mais
precisavam deles, não tinham acesso livremente;
- Impossível instalar um canto-gravador: havia muito movimento de passagem.
A solução que imaginei era construir um pequeno mezanino, de 2m x 3m. Teríamos:
- mais espaço no chão;
- liberação do único espaço luminoso para poder instalar as plantas;
- colocação para o alto, e para a calma, da biblioteca e a possibilidade de arrumar no
mesmo local o canto-gravador;
- possibilidade de ter um palco de fantoches permanente e de fácil acesso, colocando
uma cortina entre os dois pilares do mezanino.
Mas colocava-se um grande problema material: como construir esse mezanino?
A prefeitura se opunha ao projeto. Ela tem a seu encargo 22 classes de educação infantil
e tem medo das fantasias pedagógicas dessas senhoras, principalmente quanto custam
10.000 francos (estimativa da prefeitura e podem se tornam contagiosas, ou requisitam
um trabalho importante dos raros empregados municipais capazes de realizá-lo.
18
Então, reuni os pais e lhes expus o meu projeto:
- planta de um mezanino de madeira inspirado na BTJ no 268;
- projeto de financiamento baseado na venda de calendários impressos pelas crianças
(serigrafia, papel marmoreado, etc.). Se cada família conseguisse vender dez calendários
a 10 francos cada um, teríamos os 3.000 francos necessários para comprar a madeira;
- apelo a pessoas de boa vontade e aos que têm alguma competência para trabalhar a
madeira e montar o mezanino.
Todos concordaram, e um pai propôs os serviços gratuitos de um colega marceneiro...
Surpreendente!
Hoje o mezanino está pronto. É bonito e sólido. Deu mais espaço para a sala e só custou
2.400 francos. Como arrecadei 3.500, o resto servirá para melhorar as prateleiras da
biblioteca, comprar um aquário suplementar (água do mar), fones para o canto de au-
dição, tecido para as cortinas, e mais o que for possível...
As crianças estão encantadas, tanto em cima quanto embaixo.
Descobrem uma nova dimensão: a altura, e têm sua cabana dentro da classe.
Em três dias as novas regras de vida já estavam assimiladas: tirar os sapatos (carpete)
para subir, colocar um colar especial para subir. São 6 colares que correspondem aos
lugares disponíveis.
As crianças e eu terminamos com a preparação de uma festinha (confecção de biscoitos
e doces) para todos os participantes do projeto:
- o pai construtor com seu amigo marceneiro,
- os pais, que venderam os calendários e ajudaram nos acabamentos (lixar a madeira,
colocar uma rede de proteção e o carpete),
- as crianças que fabricaram os calendários.

Motivação
A motivação é a mola humana. Ela condiciona uma aprendizagem ativa apoiada em si-
tuações verdadeiras. Ela é responsabilizadora e exige um esforço pessoal. Está ligada à
noção de prazer. Apoia-se num apetite natural para explorar o mundo circundante e o
conhecimento de si mesmo. Apoiando-nos nesse apetite, estamos seguros de não nos
enganarmos.
A motivação é o dinamismo natural que define a vida: todo ser vivo tende a manter-se
em atividade, o que requer que o pedagogo tenha uma confiança fundamental e positiva
na natureza da criança.
O professor deve levar em conta a globalidade fundamental da criança. Sem motivação, não
há tomada de consciência de si mesmo e a aprendizagem é ilusória, pois fica superficial.
Apresentamos a seguir um exemplo de trabalho verdadeiro graças à motivação: o conto
musical.
19
O conto musical
Na classe, sempre inventamos muitas histórias: choque dos acasos, binômios fantásti-
cos. Partimos de duas palavras tomadas ao acaso. Quanto mais afastadas uma da outra
forem as palavras, mais estimulantes elas serão (Gramática da Fantasia, Gianni RO-
DARI)(8). Assim, no mês de novembro (9), as crianças já estão bem acostumadas com
esse jogo. Um dia, Emmanuel traz um desenho feito em casa: ao fazer o contorno de
uma tesoura, inventou a silhueta de um elefante e de um violão. Foi o ponto de partida
para uma pesquisa (que ele próprio animará) sobre tudo o que se pode imaginar a partir
dessa tesoura: borboleta, pessoa, helicóptero, etc.
Foi também o ponto de partida de uma história a partir dessas duas palavras: elefante
e violão. Eis a trama:
“Um violonista perdido na floresta virgem ouve um elefante se aproximar. Assustado,
ele foge abandonando seu violão. O elefante o encontra, começa a tocar, e todos os
animais da floresta vêm ouvi-lo. Mas um papagaio invejoso pega o violão e leva-o pelo
céu até Paris, onde acaba indo parar com ele num zoológico.”
Apresentamos essa história para a classe de minha colega Maryse. Percebendo que a
história contém muitas pistas, decidimos propor às crianças um projeto: fazer um espe-
táculo para apresentar em junho.
Primeiro fizemos um álbum com a história. No canto de bricolagem, fizemos fantoches
dos personagens.
A história foi o suporte para inúmeras explorações em todos os domínios. As paradas do
papagaio na floresta, numa vila africana, num oásis da África do Norte, nos permitiram
conhecer esses países, seu clima, sua vegetação, seus habitantes e seu modo de vida.
As crianças trouxeram objetos, músicas, roupas africanas, máscaras, tambores, etc.
Ouvimos músicas, dançamos seus ritmos. Fabricamos instrumentos, inventamos ruídos,
cantilenas com onomatopeias, um totem e máscaras.
Consultamos livros e diapositivos...
Com a África do Norte, trabalhamos sobre as escritas diferentes: um aluno trouxe um
jornal árabe, trouxemos jornais chineses, russos, israelitas...
Recebemos de um cego uma carta em Braille e pesquisamos uma forma de lhe respon-
der: desenhos em relevo, uma tentativa de escrita em Braille, um dominó tátil.
Trabalhamos profundamente a aceitação das diversas etnias. Os pequenos árabes leva-
ram de uma quinzena a três semanas para trazerem com orgulho de suas casas fotos,
objetos, roupas e músicas.
As mães tunisianas, marroquinas, argelinas se juntaram para fazer um gigantesco cuscuz
para nós. E também dançamos e ouvimos músicas e cantos árabes.
Na pintura, depois de trabalharmos a floresta com suas gamas de verde, trabalhamos o
deserto, com suas cores quentes, ocre, amarelo...
_______________
(8) NT – Gianni RODARI, Gramática da Fantasia, Summus Editorial
(9) NT – Devemos nos lembrar que na França o ano letivo inicia-se em setembro.
20

Depois construímos cenários, máscaras, totens, árvores.


Sobrevoamos o mar, o azul e a França, vista do avião, a planta de Paris...
Organizamos bailados, gravamos o texto falado pelas crianças, seus ruídos, as músicas
que escolhemos com elas, as canções que inventamos juntos.
Diapositivos aumentados de suas pinturas serviram de cenário.
Esse trabalho estendeu-se de novembro a junho. As crianças se apropriaram do projeto,
enriqueceram-no, não se cansaram. Cada exploração era conectada ao eixo principal
que sustentou nosso ano e deu lugar a uma reportagem aprofundada em nosso jornal
trimestral.
O projeto nos permitiu trabalhar em todas as direções, motivar pesquisas diferentes de
forma global e coerente.
A criatividade se deu em todas as direções, não ficou limitada às disciplinas artísticas.
Criatividade para os alunos com interação constante real/imaginário em todos os domí-
nios. Criatividade para as professoras, para integrar as contribuições dos alunos, os en-
riquecimentos e aprofundamentos trazidos para um projeto de longo fôlego.
O conjunto todo resultou num produto coletivo, bem-sucedido, carregado de prazer
para cada um.

Papel do professor
O educador é antes de tudo o animador da classe cooperativa Freinet. As crianças são
os atores. O papel do professor consiste em acolher, estimular, valorizar e induzir as
crianças.
Acolher: é primordial que os trabalhos das crianças, frequentemente negligenciados e
considerados parasitas do “verdadeiro saber”, tenham o lugar que merecem. A ativi-
dade natural, no sentido de habitual, da criança é rica, porque ela se move pela vontade
do indivíduo. Ela exprime o que ele é, o que ele deseja. É reveladora de suas motivações
e de suas capacidades. É o substrato natural de quem quer trabalhar com a criança. Por
isso trabalhamos com as produções, as criações das crianças.
21
Estimular: quando o mecanismo de criação está emperrado, nosso papel consiste em
reativá-lo graças a pequenos artifícios estimuladores que são de duas ordens: o da pes-
quisa e o do narcisismo. Podemos estimular as crianças gratificando-as por suas iniciati-
vas, mas também fazendo-as pressentirem os campos de pesquisa excitantes que ainda
lhes são estranhos.
Valorizar: a valorização tem por função fundamental significar para a criança seu lugar
original e indispensável no grupo. É um instrumento de narcisação. Consiste em impelir
a criança a inserir-se no grupo. A valorização deve conduzir a criança a procedimentos
sempre mais firmes, tende a assegurá-la sobre suas capacidades para que ela ouse, por
ela mesma, a lançar-se na exploração ousada de terrenos desconhecidos.
Induzir: a criança não pode reinventar tudo. Para facilitar sua tarefa, o educador a ins-
tiga, a informa. Isso consiste numa sábia dosagem de “laisser faire” e de intervenção por
parte do educador, que deve intervir ou calar-se no momento oportuno.

Confecção de um álbum
Integração da classe dos pequenos e a dos grandes
À tarde, como os pequenos são menos numerosos (alguns dormem em casa ou na es-
cola), um grupo de grandes, em rodízio, vai trabalhar na classe de minha colega.
Ateliê proposto
Recorte e colagem de pedacinhos de papéis coloridos para preencher superfícies dos
desenhos feitos pelas crianças. Assim, ao cabo de duas ou três sessões, são representa-
dos cavalos, caracóis, casas, um trem, uma tenda e uma enorme aranha, conforme a
inspiração das crianças.
Proponho então:
- E se a gente inventasse uma história para saber o que acontece com todos esses animais?
Reunimos todas as crianças e os recortes-colagens.
- Era uma vez uma aranha grandona.
A história começa. Logo as ideias pipocam de todos os lados:
- A aranha mora num castelo. Ela assusta todo o mundo.
- É. Mas ela tem amigos: o porco, o caracol...
- E se a tenda fosse uma tenda de índio?
- Onde está o índio? E se ele chegasse de trem?
Logo a história se constrói oralmente com os diversos personagens já criados. Eu tomo
nota. Faltam acessórios.
- Quem faz o quê?
- Se o índio vem de trem, precisa fazer os trilhos do trem. Quem sabe fazer?
- E a aranha está numa teia. Quem pode fazer uma teia direitinho?
Ao sabor das competências e dos desejos, os papéis são distribuídos. As crianças que
não se sentem mais envolvidas resolveram fazer uma outra coisa que não requer minha
ajuda. Descobrem que vai ser preciso fazer os “heróis” da história várias vezes. Passo a
22

encomenda para minha colega retomar nos dias seguintes. Com os voluntários (cerca
de dez), montamos a história folha por folha. Meu papel consiste em escrever o melhor
possível, sob os personagens, a história ditada.
“Era uma vez uma aranha grandona que morava num castelo em cima de um morro
perto de uma cidadezinha.”
- Eu faço o morro com o mato.
- Eu faço as flores...
Cada página bem-acabada vai se juntar ao resto da história. Assim, tentamos fazer o
melhor possível nos detalhes, na beleza, na precisão, para que o texto, diante da ilustra-
ção, seja encontrado imediatamente.
Para expô-lo numa tira na sala de jogos, as crianças reunidas encontraram a ordem. O
texto foi relido muitas vezes. Mais tarde foi retirado e, com uma capa encadernada e
costurada pela servente, virou um belo álbum que foi emprestado aos correspondentes.
O importante para que o projeto “pegue”:
Desde o início as crianças devem saber que sua história vai virar um livro e, assim, vai
ser conhecida. Daí a necessidade de uma escrita rápida, uma paginação em papel bonito
o quanto antes. Os detalhes e os acabamentos vêm depois, para arrematar.
Um álbum que demora desmobiliza as crianças. Um álbum realizado em dois dias é uma
realidade que pode ser mostrada aos pais ou aos visitantes.

Tateamento experimental

Uma das ideias-chave da pedagogia Freinet é o tateamento experimental. O que é


isso?
A partir da ideia que a criança tem de um fenômeno (“imagem mental”), ela faz uma hi-
pótese operatória e imagina o resultado esperado de uma ação que pode empreender.
Realizada a ação, ela pode verificar se a hipótese era certa, se as imagens mentais eram
boas. E assim, passo a passo, ela ajusta de modo realista sua conduta ao seu ambiente.
O processo do tateamento experimenta é considerado aqui de forma muito global: pro-
cedimento experimental nas atividades científicas, mas também nos outros domínios
das atividades (artístico, comunicação, educação corporal, etc.).
A realização de um trabalho verdadeiro faz com que o fracasso seja reconhecido como
formador e não seja vivido como uma experiência traumatizante.
Os erros passados podem ser uma fonte de progressos futuros. Um fracasso leva
necessariamente, pelo menos, ao conhecimento do fracasso. Ele acarreta, portanto,
23
uma atitude diferente do sujeito confrontado de novo a uma situação que o conduziu
anteriormente a um fracasso. Ou seja, os fracassos são bens do sujeito, tanto quanto
seus sucessos. Ele os utiliza. Tudo consiste em atribuir ao fracasso um simples e sadio
valor experimental e não carregá-lo afetivamente.
Eis o que diz Bettelheim:
“A aprendizagem é difícil. Aprender nunca é fácil. Quando se apresenta a aprendizagem
como uma diversão, a criança que tem sucesso não tem a impressão de ter realizado
alguma coisa. Aquela que não consegue fica numa posição ruim, pois não conseguiu
fazer o que era fácil. Ela pensa: eu não presto para nada.”

O indivíduo não deve ser identificado, ou pior, identificar-se com seu fracasso, pois ele
se bloqueia. Cria-se ou confirma-se então uma defasagem clara entre a realidade e as
fantasias devidas ao fracasso. Isto é o trauma.

No domínio científico:
estudo de deslocamentos

Numa escola infantil do subúrbio de Grenoble, que funciona em equipe pedagógica, são
realizadas experiências de tecnologia com a ajuda do centro cultural científico e técnico
da cidade.
Os grupos eram constituídos de dez crianças acompanhadas por dois adultos. Apresen-
tamos a seguir as pesquisas sobre os deslocamentos que foram realizadas durante esses
encontros. Elas se situam no que, em pedagogia Freinet, chamamos de tateamento ex-
perimental.

Deslocamentos
Objetivos
Pede-se às dez crianças que descubram diversos modos de deslocar uma mala de cerca
de 40 kg de uma sala para outra.
Os adultos haviam imaginado diferentes soluções: utilização de cordas, alavancas e rol-
danas, depois, a utilização de dois rolos de papelão sob blocos de plástico para simular
o deslocamento da mala.

Material
Diante das crianças: a mala fechada.
Material previsto, mas não visível para as crianças, a ser fornecido a pedido delas:
- rolos (pequenos e grandes)
- cabos de vassoura
- cordas
- blocos de plástico.
Material não previsto, mas utilizado porque estava presente na sala: bancos
24
Desenvolvimento da sessão: como se pode deslocar a mala?
As crianças fazem várias propostas:
1. Carregá-la
- É pesada, precisa ter músculos. (Florian)
- Pegando nela eu sei que é muito pesada. (Brice)
Elas tentam:
- Dói a mão!
- Não aguento mais!
- Podemos tirar o que está dentro dela.
2. Puxá-la ou empurrá-la
- Temos que arrastá-la. (Philippe)
- Quando a gente puxa, a gente está na frente. (Martha)
- Quando a gente empurra, a gente está atrás. (Chloé)
3. Puxá-la e empurrá-la ao mesmo tempo
- Quando tem bastante gente puxando e empurrando, é melhor. (Philipe)
- É melhor quando tem uns que puxam e outros que empurram, vai mais depressa. (Mélissa)

Instintivamente a crianças foram todas na mesma direção para deslocar a mala.

4. Utilizar cordas
- Vamos prender uma corda grande para puxar. (Ludovic)
As crianças percebem que é difícil dar um nó, e ele não prende bem. Elas têm a ideia de
dobrar a corda.
Observam que as cordas ficam esticadas quando puxam:
- As cordas estão esticadas com as cordas de uma raquete. (Julien)
Elas colocam as cordas nas duas alças da mala e puxam de cada lado:
25
- Ela vai pra frente e pra trás, é porque eles estão puxando dos dois lados. (Mathieu)
As crianças querem deslocar a mala na direção da porta, mas prendem as cordas na alça
oposta. Com seu erro, tomam consciência da direção do deslocamento.

- Precisa colocar as cordas do outro lado. (Mathieu)


Elas descobrem várias maneiras de puxar a mala.

Observam que a mala escorrega no piso:


- Vai arranhar o chão.
- No piso escorrega melhor que no carpete. (Corinne)

Puxando na diagonal, de um só lado, o deslocamento é diferente:


- O bom é que, com as cordas, a gente gira a mala. (Julien)

5. Utilizar uma alavanca


- A gente pode pôr uma coisa de ferro embaixo e tentar levantar. Se não for de ferro vai
quebrar. (Sébastien)
Utilizaram cabos de vassoura e. não quebraram!
Para que o cabo de vassoura seja mais fácil de fazer escorregar, Adrien senta-se em cima
da mala, pensando fazer um contrapeso.

6. Utilizar uma superfície plana e lisa para facilitar o deslocamento


- A gente pega um banco virado e põe a mala em cima. (Ludovic)

7. Utilizar rolos
Propostas das crianças
- A gente tem que pegar uma coisa redonda e pôr a mala em cima. (Sébastien)
- Uma bola não fica firme.
- Para fazer rolar, a gente pode pôr rolos embaixo. (Philippe)
- Mas tem uma hora que os rolos vão sair, responde Brice, que antecipa.
26
Tentativa: as crianças logo percebem que os rolos sob a mala devem ser colocados numa
direção bem precisa; confrontam-se com o problema previsto por Brice:
- Os rolos saem a toda hora. (Gaëlle)

Representações do deslocamento da mala

Novas propostas:
a) – Precisa colar os rolos debaixo da mala. (Brice)
- Mas se a gente cola, não vai rolar. (Mathieu, que mostra aos outros que não vai avançar)
b) – A gente pode pôr um pedaço de pau de lado para eles não rolarem. (Philippe propõe
na verdade um sistema de trilhos para canalizar o deslocamento.)
27
c) – Precisa pôr rodas de verdade. (Adrien)
d) – Tenho uma ideia, quando o rolo sair, a gente põe na frente. (Ludovic)
Elas tentam, a mala avança, mas é difícil fazê-la ficar na mesma direção, e não vai depressa.
e) – Num outro grupo, as crianças utilizam no início um rolo só. Percebem que colocando
um ou dois rolos, a mala balança e não pode rolar.
- Precisa pelo menos de três. (Thibaud)
Tentam com três rolos. Na verdade, vai melhor.
f) – A gente põe os rolos, empurra bem forte, zum, e recomeça. (Adrien)
Elas tentam: a mala se desloca, mas não mantém a direção.

Conclusão das crianças


Em todos os grupos, e contrariamente às previsões dos adultos, as crianças acharam que
puxar com as cordas era a solução mais eficaz.

Prolongamento
Numa segunda parte da sessão, as crianças, sozinhas ou em duplas, pegaram um bloco
de plástico e rolos. A instrução era de fazer o bloco de plástico avançar sem tocar o chão.

Esquematização
Após cada sessão, na classe, a professora pediu para as crianças representarem o que
haviam realizado.
Em seguida, cada uma comentou o seu esquema. Ela anotou textualmente, ao lado dos
desenhos, o que as crianças disseram.
Essa fase de verbalização obriga a criança a utilizar um vocabulário preciso, e permite
que a professora perceba o que a criança compreendeu da experiência.
Num outro momento, em pequenos grupos, observamos e criticamos uma série de es-
quemas relativos a uma mesma experiência. Algumas crianças que compreenderam a
experiência, mas foram desajeitadas em sua representação gráfica, logo descobrem, to-
davia, os erros de esquematização de seus colegas.
Às vezes também retomamos uma experiência, realizando-a partir de um esquema ine-
xato, para fazer com que as crianças tomem consciência da importância da precisão na
representação gráfica.
Ao analisar os esquemas, constatamos que alguns erros são recorrentes. Nesse caso,
tentamos, com exercícios mais sistemáticos de manipulação, fazer com que as crianças
compreendam melhor fenômenos simples (a tensão de uma corda, por exemplo).
Em seguida, para controlar a aquisição desses fenômenos, pedimos que façam uma nova
representação gráfica dos exercícios.
Os esquemas abaixo são exemplos dos erros encontrados com maior frequência.
28

o rolo está desenhado o rolo está desenhado


dentro da mala de cada lado da mala
Conclusão
Nessas sessões as crianças foram muito ativas e se divertiram bastante. Propuseram e
tentaram muitas soluções. Estavam motivadas diante de um problema real para resol-
ver. Utilizaram verdadeiramente sua energia.
Todavia, nosso objetivo não foi atingido: as crianças acham que puxar com uma corda é
o melhor. Na verdade, a mala não era bastante pesada para que os rodízios fossem in-
dispensáveis.
Observação: A mesma sessão foi proposta pela professora na classe dos pequenos.
As crianças descobriram as mesmas soluções, mas faziam confusão com as palavras pu-
xar e empurrar e confundiam força com velocidade: os pequenos de três anos corriam
com a corda ao lado ou na frente da mala, usando mais suas pernas do que seus braços.
“A aquisição de um verdadeiro pensamento científico deve apoiar-se num tateamento
manipulatório orientado por um problema a resolver que a criança se colocou ou com o
qual ela se confrontou. (...) Parece importante, então, conhecer as representações das
quais ela partiu, que podem ser um obstáculo, camuflar seu caminho e, finalmente, re-
tardar ou falsear o acesso ao espírito científico. (...) Um conhecimento muito mais pre-
ciso do que se passa na cabeça das crianças é indispensável para que o professor possa
orientar os progressos de cada uma.”
(Extraído do no 108 de Recherches pédagogiques)
31

Através de exemplos da vida cotidiana na classe


A escola frequentemente esquece o essencial: a vida. Ocupar-se apenas da instrução
consiste em ocultar grandes porções da vida do sujeito. Além disso, como instruir
quando se desconhece a cultura de base da criança?
O trabalho verdadeiro organiza-se em torno de situações reais, e, assim, permite-se que
a criança experimente concretamente.

O livro da vida

Num grande álbum, anotamos os acontecimentos que pontuam nossa vida escolar. To-
dos os dias, no momento do balanço do dia, exprimimos o que foi marcante. No início
do ano, sou eu que escrevo o que a classe diz, pedindo que as crianças ilustrem com
desenhos ou colagens aquilo que está escrito.
Pouco a pouco as próprias crianças escrevem os textos que eu preparo e que se tornam
o objeto do ateliê “Livro da Vida” do dia seguinte. Tentamos ao máximo ilustrar o texto
para que elas possam situar no espaço os acontecimentos de sua vida.
Este livro, que fica sobre duas mesinhas no corredor, pode ser lido com os pais (aos quais
eu o recomendo). Isso confirma que a escrita tem um significado e, de modo algum, é
um ato gratuito.

Correspondência entre uma classe de educação infantil


e um quinto ano da escola primária
Alunos de um quinto ano, de uma escola que recebe crianças de dezessete nacionalida-
des diferentes, em Grenoble, correspondem-se com crianças da classe dos pequenos de
uma escola de um meio favorecido, em Saint-Ismier. Elas trocam histórias, desenhos,
questionamentos. O exemplo abaixo mostra que os questionamentos “verdadeiros” ti-
veram repercussões tanto para os pequenos quanto para os grandes.
As crianças de ambas as classes enviam cartas coletivas. Os pequenos haviam visto uma
planta de uma mesquita. Como na classe não havia nenhuma criança muçulmana, elas
fizeram perguntas para seus amigos de Grenoble. As crianças argelinas responderam
prontamente a pergunta: o que é uma mesquita?
 Na mesquita, fazemos preces.
 Para fazer a prece, ajoelhamos sobre tapetes.
 Entramos descalços na mesquita.
 É um lugar sagrado, por isso, antes de entrar, lavamos o rosto e as mãos.
 A mesquita é a igreja dos muçulmanos.
 As mulheres não podem entrar ao mesmo tempo que os homens. Elas não ficam na
mesma sala.
 Muitas mesquitas são construídas no campo.
 O verdadeiro nome do padre é taleb.
32
 Os meninos podem entrar com seu pai e as meninas, com sua mãe.
O desejo de informar as crianças pequenas permitiu que, na classe do quinto anos, dois
alunos argelinos fossem valorizados. Eram eles que tinham os conhecimentos mais com-
pletos. Essa correspondência também acarretou um diálogo entre Hakin, um dos arge-
linos, e seu pai. Com isso, o adulto também foi valorizado.

Um jornal diário na educação infantil


No início, perguntas:
- Como abordar e praticar a escrita na escola infantil?
- Como melhorar a organização da classe?
- Como comunicar melhor com as
famílias?
E um instrumento: o livro da vida da
classe.
Transformar o livro da vida, memó-
ria da classe, em jornal diário, instru-
mento de comunicação com o exte-
rior (outras classes, famílias), pare-
ceu-me uma pista interessante que
propus às crianças.
Pouco a pouco foi se estabelecendo
uma organização (nosso jornal já
existe há três anos) que está repre-
sentada no esquema ao lado.

O trabalho requer uma gestão do tempo rigorosa (da qual me responsabilizo) para que
cada um possa levar a sua folha na saída:
Calendário – Cardápio: apresentação do trabalho antes de meio-dia.
Biblioteca: o livro é lido após o recreio da manhã; então, deve ser escolhido antes do
recreio.
Meteorologia – Ausentes/Presentes – Notícias: início da tarde.
Antes do recreio da tarde, a folha é apresentada a todo o grupo pelo responsável das
notícias para eventuais modificações antes de imprimir.

O jornal diário permite às crianças:


 Expressar-se.
 Comunicar seu trabalho aos outros:
- no grupo-classe
- às outras classes
- às famílias.
33

 Cooperar:
- trabalhando em equipe
- ajudando um colega
- explicando um procedimento
- respeitando as leis, em especial, o tempo.
 Criar: histórias, desenhos.
 Avaliar o trabalho de cada um:
- reconhecimento das competências
- “hoje, quero fazer sozinho”
- participação dos menores: desenhos.

Calendário Meteorologia Cardápio Biblioteca Notícias Imagem


F
Data escrita Etiquetas Folha Livros da Fatos Única
E
na lousa Palavras datilografada: biblioteca marcantes responsabili-
R Calendário Cardápios da
+ da vida da dade
R Calendário semana.
desenhos classe que não é
A redondo : Etiquetas diária.
M Dias da classificadas Fichário
E semana em três de imagens,
N Três envelopes: livros ou
envelopes: entrada,
T revistas
dias, números, prato principal,
A
meses sobremesa. de arte.
S
P R
A E Encontrar e Encontrar Encontrar e Escolher o livro Ditar Escolher
P S colocar e colocar para ler as notícias. a imagem
P as etiquetas. colocar as etiquetas para o grupo. Escolher que será
E O apresentada
L S Datilografar as etiquetas. e as recei- a que será ao grupo
Á a data Desenhar tas. datilografada para
D V a meteo. Datilografar. a partir do discussão.
E
O
I modelo e Justificar
S S ilustrar. a escolha.
34

CONCLUSÃO
A pedagogia Freinet tem a ambição de ajudar a criança a se tornar um cidadão. Ela tenta
sensibilizá-la, desde muito jovem, para os princípios democráticos. Tenta ensiná-la o
respeito, respeitando-a, dar-lhe responsabilidades institucionais e individuais, favorecer
a cooperação, em detrimento da competição. Leva ao questionamento da transgressão
das leis, antes de estabelecer uma sanção.
Célestin Freinet, com sua pedagogia e suas técnicas, teve o mérito de abrir o caminho,
antecipar, aplicar suas ideias. Mais do que nunca sua pedagogia é atual.
Pesquisadores cada vez mais numerosos confirmam suas ideias inovadoras. Ao respeitar
a globalidade da criança, ao acreditar que o saber-ser é prioritário sobre o saber-fazer,
ao afirmar claramente nosso ideal social e político (no sentido amplo da palavra), en-
contramo-nos no terreno pedagógico de Legrand (10) e de Claudie Ramond, no terreno
psicológico de F. Dolto e no terreno sociológico de Maslow (11).
Legrand dizia: “Ao elaborar uma comunidade educativa que requer a participação ativa,
livre e progressivamente responsável de todas as crianças, em todos os níveis da escola-
ridade (...) Ao considerar em primeiro lugar a criança no aluno, ao lhe dar a palavra, ao
lhe permitir existir com sua própria cultura, sua linguagem, seus costumes, suas aptidões
e seus desejos (...) Ao partilhar com ela, desde a educação infantil, o poder, poder de
gerir seu tempo, participando da elaboração do horário, gerir o espaço, associando-o à
organização material da classe (...)”.
O exemplo de F. Dolto e de sua Maison verte, com a importância que ela dava à emer-
gência da palavra, também nos confortam em nossas práticas.
Quanto a Maslow, inúmeras obras apresentam sua pirâmide, que comporta cinco níveis
de necessidades, das necessidades fisiológicas às necessidades de autorrealização. Se-
gundo ele, esses cinco tipos de necessidades se hierarquizam, isto é, só se manifestam
se as que precedem estiverem satisfeitas.

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(10) NT – Sendo citado assim com tanta familiaridade, creio tratar-se de Louis Legrand, professor de filo-
sofia, diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica (INRP), autor de muitas obras e de propostas
para reformas do ensino e da formação dos educadores. Indico a leitura de uma entrevista que concedeu
a Roger Ueberschlag, que também comenta duas de suas obras: Pour une politique démocratique de l’édu-
cation, PUF, 1977, e L’école unique: à quelles conditions, Scarabée CEMEA, Colin, 1981. https://www.icem-
pedagogie-freinet.org/node/24969
Legrand é o autor da obra sobre Freinet divulgada no site do MEC. Baixar em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=205188
(11) NT – Abraham Maslow, psicólogo norte-americano, um dos grandes nomes da Psicologia Humanista,
que nasce em oposição tanto ao behaviorismo quanto à psicanálise.
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Claudie Ramond, em seu livro Grandir, adapta essa pirâmide a finalidades pedagógicas.
Inspirando-nos em Maslow, tentamos estabelecer uma pirâmide que concerne mais es-
pecialmente crianças da educação infantil, em correspondência com o que se faz na
classe cooperativa (ver esquema abaixo).

Estamos conscientes de que este dossiê está longe de ser completo. Ele pretende ser
desencadeador de pesquisas. Afinal, não somos nós mesmos os praticantes-pesquisa-
dores no seio do Movimento Freinet?
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Bibliografia
 Françoise Dolto: La cause des enfants – Tout est langage – La difficulté de vivre ,
Livre de poche

 Claudie Ramond: Grandir, Education et analyse transactionnelle, La Méridienne,


Editeur Erès

 Catherine Pochet – Fernand Oury – Jean Oury: L’année dernière, j’étais mort,
signé Miloud, Editions Matrice

 Marilyn Ferguson: Les enfants du verseau, Editions Calmann-Lévy

 Revue Autrement: La maternelle, série Mutations, n°14, abril 30

 Nicole Bouyala e Bernadette Roussille: L’enfant dans la vie, une politique pour la
petite enfance, Documentation française

 Pierre Guérin: Importance des représentations mentales initiales dans un processus


d’apprentissage et expression libre, Nouvel Educateur, Document n°196, maio 1988,
PEMF, Cannes

 Madeleine Porquet: Un certain goût du bonheur, Editions Casterman

 Célestin Freinet par lui-même, documento sonoro e livreto de 48 páginas – PEMF


(Cannes)

 Pourquoi-Comment? La pédagogie Freinet: L’aménagement des cours d’école e


Comment démarrer en pédagogie Freinet? – PEMF, Cannes

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