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Edward Gordon Craig

Rumo a um Novo Teatro & Cena

Tradução e apresentação

Luiz Fernando Ramos


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Sumário

Nota de Edição – J. Guinsburg 000

Gordon Craig: Inventor da Cena Moderna – Luiz Fernando Ramos 000

Rumo a um Novo Teatro 000

Cena 000

Bibliografia 000
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Nota de Edição

Editar o conjunto dos trabalhos de Gordon Craig é para a editora Perspectiva não apenas
a oportunidade de proporcionar ao nosso leitor uma visão abrangente e textual do
pensamento estético-teatral de um dos mais significativos articuladores das novas
concepções que presidiram o fazer cênico desde o começo do século XX. Só esse fato
justificaria a escolha do editor, em ressarcimento de uma dívida que ele contraiu como
professor por quase três décadas de Estética, Teoria e Crítica Teatral na Escola de Arte
Dramática e no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, em função do currículo que
estabelecera e, sobretudo, da proposta que pretendia transmitir a seus alunos, futuros
professores, atores, encenadores e profissionais dos tablados brasileiros. É, pois, com
satisfação que ele começa a saldar, agora, esse débito, pela competente organização e
tradução que Luiz Fernando Ramos efetua dos ensaios e reflexões desse inovador e pela
penetrante interpretação que dá ao sentido dessa obra.

De parte da editora Perspectiva e de sua equipe, bem como de seu responsável e


de seu programa, vale ressaltar que Rumo a um Novo Teatro e Cena, que compõem este
primeiro volume e os escritos do mesmo autor que formarão os demais, somam-se à
estante de livros dos pioneiros, dos criadores históricos e dos intérpretes e críticos que
levam à frente na contemporaneidade o Novo Teatro. Nele, Gordon Craig ocupa o lugar
que lhe é devido, há muito tempo, como um clássico-moderno em nossa bibliografia
teatral, inspirador que foi e é de múltiplas derivações e fecundas aplicações cênicas e,
portanto, como instrumento incessantemente atuante no processo criativo e no debate
conceitual e crítico sobre a “ideia de teatro” no palco e nas plateias de seus
supermarionetes e de seus supermanipuladores.

J. Guinsburg
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Gordon Craig: Inventor da Cena Moderna

Um poeta que projetou as maravilhas de um teatro novo e encantou seus


contemporâneos com elas, seja encenando essas antevisões, seja gravando-as na
madeira e no metal e antecipando cenas só realizáveis no nosso tempo. Este é Edward
Gordon Craig (1978-1966), artista que encenou poucos e inesquecíveis espetáculos,
escreveu muito e desenhou mais ainda, mas cuja contribuição à história do teatro ainda
é subestimada, e cujo legado literário e pictórico está disperso, sobretudo no que diz
respeito ao entrelaçamento dessas duas dimensões ao longo de toda sua produção.

Nos últimos cinquenta anos, muitos estudos se produziram em torno de suas


criações cênicas, raras e impactantes, e a partir de seus livros teóricos, influentes e
precursores. Pelo menos duas gerações de pesquisadores reviraram seus arquivos, hoje
espalhados em diversas coleções pelo mundo todo e tornados itens valiosos no mercado
dos colecionadores. Diversas perspectivas se formularam na recepção desse vasto e,
algumas vezes, ainda intocado material. Entre os aspectos mais convergentes dessas
recepções está o reconhecimento de que, pelo menos em tese, enquanto projeto
formulado tanto racional como poeticamente, por meio de textos, espetáculos, desenhos
e gravuras, a obra de Craig configurou grandemente a cena moderna e antecipou alguns
aspectos da cena contemporânea.

No Brasil, esse artista seminal do teatro no século XX nunca foi propriamente


publicado. Seu principal livro On The Art of the Theatre (Sobre a Arte do Teatro), editado
originalmente em 1905 como The Art of the Theatre (A Arte do Teatro), e republicado em
seguida, em versões ampliadas e com o novo nome, em 1907 e 1911, foi traduzido à
época em diversas línguas e tornou-se um livro obrigatório para os artistas da primeira
metade do século passado. Na língua portuguesa, havia uma versão parcial de Redondo
Júnior, que foi revista e publicada com acréscimos em CD-ROM pela pesquisadora
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portuguesa Eugénia Vasques1. A tradução e publicação deste e de outros livros e textos


de Gordon Craig está nos planos da editora Perspectiva. Para iniciar essa série foram
selecionados dois livros menos conhecidos de Craig, Towards a New Theatre (Rumo a um
Novo Teatro) e Scene (Cena). Nunca publicados em português eles são, talvez, seus dois
textos mais importantes, por abordarem de perspectivas distintas o projeto Scene, sua
principal invenção, que mesmo ignorada à época em que ele a revelou, terminaria por
revolucionar a cenografia e a cena do século XX.

O projeto se estruturava por meio de screens, ou telas/biombos2. Ele foi


patenteado em 1910 em quatro países (Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos),
e continuou sendo desenvolvido por Craig até a década de 1920. No texto da patente,
descritivo e apoiado em desenhos técnicos, Craig apresenta e defende apaixonadamente

suas screens3: dispositivos de telas articuladas em abas que, sustentadas sobre rodas
almejavam dar à arquitetura cênica uma mobilidade e flutuação só habituais à música. O
dispositivo ensejava a construção de ambientes cênicos abstratos, já ambicionados pelos
poetas simbolistas, mas também pretendia servir à encenação de dramas convencionais,
substituindo a cenografia imóvel e pesada da cena realista pela leveza dessas telas
móveis, e gerando com isso, além de novas possibilidades representacionais para a arte
da cena, uma enorme economia potencial de materiais e de pessoal. Mesmo não tendo a
adesão do mercado à época, esse dispositivo, que foi testado por Craig em duas
circunstâncias em 1911 – na encenação de Hamlet pelo Teatro de Arte de Moscou, uma
conturbada parceria sua com Stanislávski, e em algumas encenações do Abbey Theatre
de Dublin, na Irlanda, pelo poeta e dramaturgo W. B. Yeats –, acabou sendo grandemente
assimilado pela cenografia do século XX. Com resultados distintos em cada uma dessas

1
Da Arte do Teatro, 5ª edição, Lisboa: Escola Superior de Teatro e Cinema, 2015.
2
Nos seus textos, Craig utilizou sempre e unicamente o termo screen, que em inglês pode significar, em português, tanto tela como biombo.
Em francês o termo é traduzido como paravent. A diferença estaria sempre relacionada ao contexto da frase, mas essa ambiguidade é
também decisiva para entender-se o projeto de Craig, como se pretende demonstrar aqui.
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Os folhetos impressos com o projeto encontram-se no arquivo Craig da Biblioteca Nacional da França, bem como os protótipos das screens,
cerca de uma centena de pequenas telas de papel cartão, que integravam o que Craig chamava de seus modelos. Cf. Luiz Fernando Ramos,
O Projeto Scene de Gordon Craig: Uma História Aberta à Revisão, Revista Brasileira dos Estudos da Presença, v. 4, n. 3, set.-dez. 2014.
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suas tentativas, mais bem-sucedida em Dublin do que em Moscou 4, Craig não abandonou
o projeto até 1922, quando escreveu Scene. Ali ele fez, propriamente, um balanço de tudo
que havia obtido e, mesmo reconhecendo que não alcançara realizar o que tinha
vislumbrado, ainda em 1907, como uma nova e revolucionária “cena cinética”, avançou
teoricamente situando sua invenção no contexto da história do teatro. Um esforço
preliminar nesse sentido tinha sido feito nove anos antes, em 1913, exatamente ao
escrever Towards a New Theatre em que já se referia objetivamente ao então recém-
criado projeto Scene.

De comum entre estas duas obras, que agora chegam ao leitor em língua
portuguesa, há, além do foco comum no projeto Scene, o fato dos dois livros combinarem
textos e gravuras. Eles são particularmente exemplares do hábito de Craig, que permeou
toda sua vida e obra, de misturar as habilidades de escritor e gravador. No caso de
Towards a New Scene, o jogo entre texto e gravura é mais direto, pois cada uma das 43
imagens merece um texto escrito em diálogo com a gravura ou desenho selecionado. Em
Scene são apresentadas as gravuras em metal de 1907, sementes inspiradoras do projeto
patenteado em 1910, que participam do livro de forma complementar. Revela-se nesses
dois textos programáticos a profunda influência que o Craig artista plástico, da gravura e
do desenho, teve sobre o Craig artista cênico e escritor.

Rumo a um Novo Teatro

Em 1913, quando escreveu Rumo a um Novo Teatro, Gordon Craig vivia um momento
crucial de sua carreira como artista cênico. Depois de encantar os contemporâneos com
suas primeiras, e de fato únicas, encenações completamente autorais em Londres, entre

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Depois de três anos de preparação, o espetáculo estreou no TAM, de Moscou, sem que o sistema das screens fosse plenamente utilizado
(c.f. L. Senelick, Gordon Craig’s Moscow Hamlet, Westport/London: Greenwood, 1982). Em Dublin, as screens foram utilizadas na montagem
de The Hour Glass, de W.B.Yeats, dirigida pelo próprio autor. Mesmo mais bem recebidas que em Moscou, também permaneceram
estáticas. Cf. K. Dorn, Players and Painted Stage: The Theatre of W.B.Yeats, Sussex/New Jersey: The Harvest Press/Barnes and Nobles, 1987.
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1900 e 19045, e ter se tornado mundialmente famoso com a publicação de seu primeiro
livro, A Arte do Teatro, ele estabeleceu-se em Florença em 1907. Ali numa antiga arena a
céu aberto, alugada da municipalidade, Craig passou, a partir de 1908, a publicar a
revista The Mask (mantida irregularmente até 1928) e a desenvolver o projeto de uma
escola, que acabou não vingando por conta sobretudo do início da Primeira Guerra
Mundial. Nos poucos meses entre 1913 e 1914 em que a escola funcionou na Arena
Goldoni, como era chamado o espaço, Craig alimentou a esperança de estar formando
artistas e técnicos que o acompanhariam na tarefa de criar o “teatro do futuro”. Como
poderá ser constatado a seguir, sua fixação com o futuro não esconde seu grande
interesse pelo passado, tal é a reverência com que trata os teatros da Antiguidade,
grande inspiração de seu ideário. Mas o que configuraria um paradoxo – a mirada no
futuro com as lentes do passado – não desinveste suas ideias de seu caráter original e
antecipatório, principalmente a de uma nova cena que desse ao teatro a condição de arte
autônoma, uma que fosse parelha à arquitetura e à música e distinta da literatura. Essa
aspiração já tinha sido conceptualmente exposta em Sobre a Arte do Teatro, mas agora,
no novo livro, tratava-se de fazer o rescaldo de uma década, incluindo-se aí suas
primeiras encenações, seu desdobramento teórico nos livros e artigos publicados, e,
mais importante, a reafirmação de seu projeto Scene, parcialmente realizado nas
montagens de Moscou e Dublin, quando atuou mais como cenógrafo do que como
encenador. Agora, pois, aquelas experiências desdobravam-se no laboratório ativo que a
sua escola efetivamente foi, desenvolvendo processos pedagógicos a partir do uso das
telas e do aperfeiçoamento técnico daquele projeto, em uma dinâmica experimental que
antecipava claramente os atuais processos colaborativos.

Outra especificidade do livro é que esse caminho percorrido é evocado a partir de


gravuras e desenhos realizados em diversos momentos. Assim cada texto, além de
comentar uma imagem criada e contextualizá-la em sua trajetória desde 1900,

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As encenações foram produzidas pela Purcell Operatic Society, uma iniciativa de Craig e de seu amigo, o músico e maestro Martim Shaw.
Eles encenaram juntos, em Londres: em 1900, Dido e Eneas, de Purcell, no Hampstead Conservatoire; em 1901, Dido e Eneas e Masque of
Love, a partir da ópera Diocleciano de Purcell, no Coronet Theatre; e em 1903, Masque of Love e Acis e Galatea, de Haendel, no Great
Queen Street Theatre. Em 1904, Craig encenou, com produção de sua mãe, a atriz Ellen Terry, Much Ado about Nothing, de Shakespeare, e
The Vikings at Helgeland, de Ibsen.
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materializa o diálogo do artista gráfico com o artista cênico e pensador da cena. Em


algum momento, ele refere-se a 32 desenhos, que são aqueles produzidos entre 1900 e
1910, mas o livro traz efetivamente 43 imagens, que chegam ao leitor brasileiro como
exemplos acabados do talento de Craig como gravador.

Craig é um escritor prolixo, dono de um estilo singular que combina um modo


indireto de abordar as questões com a busca continua da frase bem-humorada e
espirituosa. Se não tem o talento de Oscar Wilde para o chiste e a agudeza do ataque,
nunca deixa de jogar com as palavras e flertar com a ironia. Característica também de
sua prosa, principalmente quando ela se leva mais a sério, é um tom messiânico que
muitas vezes imprime às suas afirmações. Algumas vezes essa voz imperativa assume
um caráter oracular, e de fato prenuncia fatos e situações futuras com espantosa
clarividência. Em outros momentos chega a ter um viés de arrogância que, além de trair
o ressentimento por não ver reconhecida sua obra, beira o patético e não condiz com a
grandeza de suas realizações. Em verdade, de um modo geral, não só nesses dois livros
aqui traduzidos, mas em todos os seus textos, transparece no dialogo com o leitor um
movimento pendular entre uma modéstia excessiva, quando exagera no que não logrou
alcançar, e uma confiança absoluta de que só ele seria capaz de fazer emergir o “novo
teatro”. Nesse sentido, Rumo a um Novo Teatro, por referir-se aos primeiros dez anos de
sua produção, remete às “pequenas descobertas”, enquanto “as maiores e finalmente
grandes descobertas nos esperam”. Assim, quando se trata de pensar um “novo teatro”,
procura logo esclarecer que é o dele, que ainda esta por ser fundado, e não o de
eventuais “saqueadores”, sempre prontos a, como um espelho, copiar e conspurcar o que
nao foram capazes de genuinamente criar. Craig dirige-se a um leitor genérico mas,
muitas vezes, deixa implícito que está sendo lido por jovens artistas do mundo todo, a
quem aconselha, como um antídoto ao roubo, a evitarem o “perigo de revelar” seus
achados aos predadores. Outras vezes, quando reclama de nunca terem lhe oferecido em
sua terra natal as condições para criar seu próprio teatro, suas palavras ácidas
endereçam-se mais claramente aos leitores ingleses ou, pelo menos, ao status quo teatral
inglês.
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O livro começa com um prefácio muito significativo, onde Craig reconhece suas
dívidas com os artistas do passado, principalmente Leonardo Da Vinci, que assume como
sua grande inspiração e referência. O prefácio sintetiza os temas dos quais tratará de
forma fragmentária na dezena de comentários seguintes, quer seja os que se referem
diretamente a gravuras ou desenhos, quer aqueles que extrapolam para os tópicos de
interesse dominantes em Craig, sobretudo o próprio projeto Scene, que será abordado de
forma mais direta em Cena, só publicado em 1923. Assim, no prefácio de Rumo a um
Novo Teatro, se ele ressalta, contra aqueles que querem vê-lo apenas como um
cenógrafo, a importância da “ação” e da “voz” nos processos teatrais, para além dos
aspectos cênicos, não deixa de pontuar que dedicará boa parte de sua escritura ao
tratamento direto de questões de cenografia, arquitetura e espaço cênicos. Chega a
antecipar que pretende publicar um livro específico sobre isso, e mostra-se um crítico
rigoroso da cenografia que produziu nos anos pregressos, admitindo que seus desenhos
“não são bons como cenografia de palco” se comparados “aos mais nobres” da
Antiguidade, quando “eles construíam os teatros para seus dramas e não seus dramas
para seus teatros”. Nesse momento, principalmente quando o parâmetro de comparação
é o da Grécia antiga, onde o espaço cênico do teatro confundia-se com o espaço
arquitetônico, ele toca numa das questões mais intrigantes de sua obra teórica que é a da
iluminação, mais especificamente do contraste entre a luz artificial e a luz natural, do sol.
Tanto na adoração a Da Vinci, em quem percebe um captador do movimento da natureza,
particularmente das variações da luz solar, quanto no destaque ao teatro grego e sua
espacialidade dependente do sol para se revelar, Craig não cessa de propor um retorno a
essa possibilidade de iluminação, a ser resgatada no teatro novo que almeja criar. E não
se trata mesmo de um retorno ao teatro medieval, ou ao Globe Theatre de Shakespeare,
que teriam herdado parcialmente essa tradição de um teatro ao ar livre, mas de
compatibilizar seu projeto Scene com essa perspectiva da luz solar como principal fonte.
O que intriga nesses comentários é que todo o projeto, se não descarta apresentações ao
ar livre, pressupõe a luz elétrica ou artificial como um de seus elementos decisivos.
Como se verá, no livro posterior, Cena, esse tema retorna e se intensifica.
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Quanto aos desenhos e gravuras de Rumo a um Novo Teatro, ele os reconhece


como “meus esforços no estabelecimento de uma divisa que delimita uma fase da arte
teatral”, que já teria sido ultrapassada, ainda que não se sinta apto a descrever
plenamente o que de fato teria alcançado, o que só o fará concretamente em no livro de
1923. Mas a simples reunião dessa matéria visual gravada e desenhada permite-lhe
propor uma avaliação retrospectiva de sua obra frente aos teatros grego, medieval e
renascentista. Ao descrever as imagens apresentadas, quer se tratem de criações que não
partiram de nenhuma dramaturgia anterior e são apenas sugestões visuais para futuras
encenações, como quando justifica suas opções cenográficas na tradução de textos
canônicos de Ibsen ou Shakespeare, Craig está antecipando a potencialidade
dramatúrgica que as rubricas adquiririam crescentemente no século XX. Essa literatura
que produz um híbrido de narrativa, programa estético e prosa poética, é, pode-se dizer,
uma literatura da teatralidade, ou uma que tem a matéria cênica, espacial e arquitetônica
como seu tema central.

Cabe ainda mencionar como significativo, nesse livro de 1913, a retomada da


discussão sobre o papel do ator nesse novo teatro, que ele ao mesmo tempo engendra
conceitualmente e tenta vislumbrar com sua pena de artista gráfico. Naquele momento
já ficara para trás a polêmica criada por seu artigo “O Ator e o Ubermarionete”, de 1907,
quando propôs que os atores deveriam ser substituídos por superbonecos, ou, como já
pode ser aceito contemporaneamente, subsumidos em armaduras ou carcaças que os
deixassem imóveis e engrandecidos visualmente, para dialogarem melhor com as
screens e os volumes arquitetônicos que estas engendrassem 6. Craig não retorna ao
assunto, mas faz uma menção velada ao ubermarionete quando comenta em um texto
sobre a primeira cena do Hamlet de como, em dois momentos diferentes, desenhou a
personagem em situações singulares frente ao “lugar” em que se encontrava. Em ambas
exigiria-se um “boneco superior”, cuja face deveria “desaparecer”, não restando “nada a
não ser suas ações”, mas que ainda assim este deveria prevalecer sobre o espaço em
torno. Ele também profetiza que haverá um tempo em que os grandes atores “estarão

6
Cf. Patrick Le Boeuf, Gordon Craig’s Self-Contradictions, Revista Brasileira dos Estudos da Presença, v.4., n.3, set-dez 2014.
11

totalmente extintos”, que apresenta em chave distinta à do histórico artigo a supressão


dos atores de sua cena.

Finalmente, é notável um comentário, no trecho final do primeiro texto chamado


“Telas”, sobre a Poetica de Aristóteles, no qual, sem nenhum travo acadêmico, mas
antecipando muito que uma leitura mais contemporânea daquele texto canônico da
teoria do teatro propõe, ele minimiza a relevância do trecho em que o filósofo percebe o
espetáculo como o elemento menos relevante da tragédia grega. Sem aparato critico
mais consistente, apenas com a intuição artística, ele aponta o exagero de se ver ali uma
desqualificação definitiva por Aristóteles da dimensão espetacular no fenômeno teatral.

No último texto, o segundo chamado “Telas”, sem entrar na questão que será
central em Cena, como a resguardar-se de antecipar seus achados, ele já denota toda a
esperança de redenção do teatro que projetará ali. O posfácio também antecipa o livro
seguinte, mormente no ataque frontal ao realismo, que associa ao fim da beleza e aos
movimentos de revolução social que emergiam a sua volta. Essa posição, que pode ser
lida simplesmente como aristocrática e reacionária, admitindo-se que Craig, ao contrário
dos artistas das vanguardas históricas, cultivaria um classicismo que harmonizasse as
formas artísticas, não deixa de ser mais complexa e interessante do que parece à
primeira vista, quando se considera que o ataque ao realismo tem a ver com as
exigências que, ele supõe, aquela estética imporia ao teatro, tolhendo-lhe sua liberdade
de selecionar e mostrar o que bem entendesse, “livre da tutoria das outras artes” ou
determinando-lhe “como deveria mostrar” o que quer que pretendesse fazê-lo. É essa
liberdade nova do teatro, de que se sente o porta-voz, que lhe traz esperanças para o
futuro.

Cena

O contexto em que Gordon Craig escreveu Cena é completamente distinto do que vivia
quando escreveu e publicou Rumo a um Novo Teatro. Nos anos transcorridos entre os
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dois livros, Craig viu sua escola ser fechada para ter seu espaço utilizado pelo exército
italiano, atravessou a Primeira Guerra Mundial vivendo em diversos lugares da Itália e
enfrentando grandes dificuldades e estabeleceu-se, finalmente, em Rapallo, na costa do
mar Tirreno, com sua mulher, Elena Meo, e seus dois filhos Teddy e Edith, já no início da
década de 1920. Nesse período, Craig basicamente sobreviveu fazendo gravuras, já que
sua fama como editor e artista gráfico era consolidada, e depositou boa parte de sua
energia criativa em um novo projeto. Este, se não era completamente avesso a seus
objetivos no início da década de 1910, distanciava-se bastante deles. Desde 1916, em
plena guerra e servindo-se da profusão de materiais e informações que dispunha na
Itália sobre o teatro de bonecos – a tradição dos buratiini – começou a acalentar o
projeto de escrever um conjunto de peças curtas para bonecos pequenos, visando o
público infantil. Como todos os projetos de Craig, esse também era bem ambicioso. Nos
registros que restaram dos planos originais, o Drama for Fools (Drama Para os Bobos),
como o chamou, deveria integrar um total de 365 textos, a serem encenados um a cada
dia do ano. Mas, em vez da grandiosidade da cena sonhada ainda em 1907, Craig
pretendia na encenação dessa dramaturgia obter a graça singela do teatro de marionetes
mais comezinho. De qualquer modo, o projeto não se concretizou plenamente e aquelas
peças só vieram a ser encenadas, pela primeira vez, na década de 1980, na própria Itália,
quando uma pesquisadora as descobriu e ofereceu-as a uma companhia especializada 7.
Mesmo o desafio de escrever centenas de peças, justamente ele que nos vários prólogos
que fez para o projeto reconhecia sua própria inaptidão para o métier de dramaturgo, foi
só parcialmente cumprido. Sob o pseudônimo de Tom Fool, o autor autoproclamado do
Drama for Fools, Craig chegou a escrever 35 peças, a maioria delas interligadas como se
fossem uma serie com personagens fixas. Entre os protagonistas, destacam-se dois que
aparecem em quase todas elas: a Cokatrice (uma minhoca com a cabeça de uma ave
mitológica) e o Blind Boy (um menino de uma favela londrina que só é cego para as

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Uma cópia datilografada dos originais foi realizada, ainda nos anos 1970, pelo botânico e colecionador William A. Emboden, e encontra-se
disponível nos arquivos da Theatre and Performance Collection do Victoria & Albert Museum, em Londres. Em 1980, a pesquisadora
italiana Marina Maymone Siniscalchi recebeu do filho de Craig, Edward Craig, algumas peças que não constavam da coleção adquirida por
Emboden anos antes e, com a colaboração de Maria Signorelli e do grupo italiano Nova Opera dei Burattini, encenou-se em Roma, em maio
de 1980, o espetáculo Signori, La Marionetta, com uma colagem daqueles textos adquiridos por Siniscalchi.
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coisas feias). Ainda que tenha trabalhado sobre esses textos até os seus últimos dias de
lucidez, já nos primeiros anos da década de 1960, corrigindo-os e anotando-os, a maior
parte deles foi realmente feita nos dois últimos anos da primeira guerra mundial, até
1918. Naquele ano, entusiasmado com o que produzira até ali, Craig decidiu criar um
novo periódico em brochura, além do então já consagrado internacionalmente The Mask,
chamado The Marionette, que editaria por doze meses, publicando nele algumas
daquelas peças, além de textos e informações sobre as técnicas de teatro de bonecos de
diversas culturas e países. Recentemente o Instituto Internacional da Marionete publicou
um volume, editado por Didier Plassard, que reúne uma seleção dos prólogos e peças do
Drama for Fools em inglês e francês, acompanhados das dezenas de desenhos em cores
que o próprio Craig produziu sobre as personagens e algumas das cenas de suas peças 8.

Esse mergulho de Craig na tradição marionetista e seu afastamento dos temas


com que lidava ainda em 1913, antes da guerra e do abandono completo de seus planos
anteriores, principalmente do projeto Scene, é fundamental para compreender por que,
em 1922, ele decidiu empreender um novo livro, retomando o que ficara pelo caminho.
Restabelecido depois de tantos tropeços e vivendo os anos que em sua biografia são
apontados como os de maior conforto e harmonia com sua família mais constante (Craig
teve muitas mulheres e filhos, mas os dois filhos com Elena Meo são os que sempre
estiveram mais próximos dele, e isso até sua morte) 9 ele se sentiu motivado a retomar
seu projeto mais ambicioso, tentando de alguma forma fixá-lo para a posteridade. Ele
ainda trabalharia com as screens até 1926, pelo menos, e nunca deixaria de evocá-las nas
dezenas de entrevistas que deu nas décadas seguintes, mas escrever Scene era um meio
de assenhorar-se do que já havia obtido prática e teoricamente, e tornou o livro um vero
testamento às futuras gerações.

Cena, ao contrário do fragmentado Rumo a um Novo Teatro, é um texto íntegro


que desenvolve um argumento claro e se fecha em si mesmo. Claro que com seu estilo
8
Edward Gordon Craig, Le Théâtre des Fous/ The Drama for Fools, Edition bilíngue établie para Didier Plassard, Marion Chénetier-Alev, Marc
Duvillier, Montpellier: L’Entretemps, 2012.
9
Ver, à respeito, a melhor biografia sobre o artista, escrita pelo seu filho, Teddy, Edward Craig, Gordon Craig: The Story of his Life, New York:
Alfred A. Knopf, 1968.
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dado a desvios e derivas, circunvolui retoricamente em várias direções e abre-se com um


tortuoso raciocínio sobre a verdade e a mentira do que se diz, e sobre como é difícil se
fazer entender de fato. Mas há um argumento claro que logo prevalece: trata-se de
pensar o teatro como um “lugar”, ou um espaço, que tem de ser criado e, independente
dos lugares que venha a referenciar, quaisquer lugares enfim, seja “o lugar”, substantivo,
autônomo, como algo que fale por si. E eis por que, desde o princípio, ele se coloca as
dificuldades de apresentar esse lugar. Como diz, “o problema maior resta nos desenhos
[…] e estes devem falar por si, pois eu não deveria falar sobre eles”. Aqui, mais uma vez,
aparece a relação direta entre as gravuras e os desenhos e a cena sonhada, como se eles
bastassem para enunciá-la enquanto sugestão, mas não fossem suficientes para
concretizá-la. No caso, os dezenove desenhos que apresenta anexos são a série criada em
1907 e que ensejou, para o bem ou para o mal, todo o projeto Scene. Quando, em 1910,
ele o patenteou, teve que circunscrever-se objetivamente aos desenhos técnicos das
screens e oferecer um discurso pragmático sobre o seu funcionamento e utilidade aos
produtores da época, já que tratava-se de “vender” uma ideia, o que o afastou da prosa
que três anos antes descrevera a “cena cinética” – uma cena mutante cuja arquitetura
alcançava a mobilidade e a fluidez da música – sem ter que ater-se a limitações práticas e
permitindo-se apenas sugeri-la poeticamente. Há, pois, na raiz do projeto Scene uma
tensão entre duas estratégicas retóricas de que, nesse texto de 1922, Craig não pode se
furtar. O livro afinal é a oportunidade ajustar as contas com ela e, de fato, ele o fará, ainda
que persista até o fim uma ambiguidade que ele não será capaz de resolver e que, de
certo modo, vai continuar alimentando.

Do argumento inicial, a cena é um “lugar”, o texto logo encaminha seu


desdobramento histórico, a construção da narrativa que será a espinha dorsal do livro.
Desde a antiguidade sucederam-se quatro modelos de drama – (i) o clássico (grego e
romano); (ii) o medieval (cristão); (iii) o italiano ao ar livre (a Commedia dell’Arte); (iv) e
um que inicialmente não nomeia, mas que podemos reconhecer como o teatro em
espaço fechado, ou o teatro como se o conhecia ate a época em que Craig escrevia, que
tem sua origem na Renascença italiana e desdobra-se no drama moderno. De fato, já
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nesse primeiro prólogo de sua narrativa histórica principal, que será retomada a frente
de maneira mais clara, Craig abusa da prolixidade e faz digressões pouco úteis ao ponto
que pretende chegar, ou seja, de que a sua cena, ou o projeto Scene, mesmo em seu
desenvolvimento parcial, concretizado nas screens patenteadas e agora retomado, seria a
“quinta cena”. Na verdade, ele só entrará nesse assunto realmente no último terço do
livro, oferecendo, por enquanto, um plano de fundo em que parece querer valorizar os
antecedentes, como um narrador que exagerasse nos prolegômenos em busca de um
efeito mais sensacional quando sua trama se desatasse. Curiosamente, também, nessa
primeira parte, em que esboça o desenvolvimento histórico das quatro cenas, ele prefere
utilizar as expressões primeiro, segundo, terceiro e quarto “dramas”, terminologia que na
nossa perspectiva contemporânea, na qual o teatro se distanciou da literatura dramática,
poderá soar anacrônica. Mais tarde, quando retoma a periodização para enfim entrar no
tema da “quinta cena”, prefere nomear esses estágios como “cena”, ainda que, quando
volta a referir-se aos gregos, utilize “drama” e só mude a chave depois que define a skenê
grega como “o lugar mais distante dos espectadores […] plano de fundo de todo o lugar,
ou teatro”, e explique que na Grécia antiga, “o teatro inteiro era a cena”. Se essa
periodização que propõe coincide aparentemente com a da história do teatro canônica,
como se a formulou desde o romantismo, tem, não obstante, elementos novos. Implica,
primeiramente, numa percepção muito particular dos teatros antigo e medieval, a de que
a arquitetura e o espaço cênico neles coincidiam e constituíam por excelência esse
“lugar”. Desdobra-se, depois na narrativa bem-humorada sobre um duque renascentista
arquetípico, e sobre o seu projeto de acondicionar as manifestações dramáticas que
aconteciam nas ruas num espaço interior, e como dessa iniciativa decorreu a emergência
de uma cena em que cenografia e arquitetura deixavam de estar superpostas. A cena
passava a ser postiça, projeção artificial, graças ao dispositivo da perspectiva, de todos os
lugares reais que a imaginação dramática alcançasse representar. A arquitetura do teatro
passava a servir às maquinações do cenógrafo e a isso nem grandes reformadores, como
Wagner, se livraram de se submeter. É então que, numa linha de fuga expansiva surge “a
quinta cena”, por ele descoberta, e abre-se um atalho para o futuro. Nessa história do
16

teatro craiguiana, percebida de uma nova e idiossincrática mirada, exatamente a que ele
desenvolveu por 25 anos, desde o fim do século XIX, quando abandonou a carreira de
ator para começar a desenhar e gravar cenas, até o momento em que escreveu Cena, há a
ambição de resgatar para o teatro a unidade perdida entre a arquitetura e a cenografia.
Na sua “quinta cena” o teatro voltaria a ser “um lugar”, espaço integral em que a matéria
cênica em movimento se bastaria, despida das figurações dos telões pintados e dos
objetos realistas, enquanto um dispositivo de telas móveis, planas e sem cor, em
consonância com a luz, operaria como um múltiplo de infinitos lugares potenciais,
exatamente o que ele chamará de “mil cenas em uma”, numa nota de rodapé. Que Craig
formule e explicite uma de suas ideias mais originais dessa forma acanhada, também
chamada no texto de “cena menor”, diz muito da postura evasiva e tateante como
apresenta sua invenção, mas, talvez, revele mesmo que ele ainda não havia conseguido
superar as tensões e ambiguidades de todo o projeto. Cabe aqui, finalmente, tentar
deslindá-las para poder dimensionar a real contribuição de Craig ao teatro que o
sucedeu, mais de cem anos depois de ela ter sido formulada.

A cenografia renascentista, e todos os seus desdobramentos até os teatros realista


e naturalista, também ambicionava ter a potência de representar múltiplos lugares,
ainda que tivesse recursos limitados para fazê-lo, sendo o maior obstáculo a mobilidade
reduzida dos cenários, primeiro restrita às mudanças dos fundos pintados em telões e
depois, já no naturalismo, à necessidade de se interromper a narrativa com intervalos
para permitir as transições de ambientes, mesmo assim limitadas, já que após terem sido
feitas a cena permanecia estática, mero suporte aos dramas representados. Nessa
medida, na renovação proposta por Craig não se deveria tratar apenas da possibilidade
de representar-se muitos lugares reais na cena – “barraco de barro ou templo, Palácio de
Versailles ou a loja do senhor Harrod” – como o teatro realista, o “quarto teatro” na
periodização de Craig, o fez à farta. Se trataria, sim, de pensar o espaço cênico com uma
liberdade e autonomia que só encenadores da segunda metade do século XX, como
Robert Wilson, nos seus primeiros trabalhos, ou Romeu Castellucci, recentemente,
lograram realizar, transformando a caixa teatral não num suporte para reproduzir
17

ficções em que a matéria cênica e sua arquitetura são servis às narrativas pretendidas,
mas, sim, numa realidade nova, autônoma e que constitui visões e sensações inéditas,
nunca vistas. Numa cena radicalmente abstrata não haveria o reconhecimento de
referentes anteriores, ou de uma narrativa clara, e um dos pressupostos fundamentais
do drama, portanto, deixaria de operar. Essa foi a quimera que Mallarmé projetou no
século XIX e que muito influenciou Craig. Ocorre que, se nas gravuras em metal de 1907
ele projetava essa cena quase etérea e que pressupunha um espaço cênico liberto das
funções representacionais, pronto a expressar sentimentos e sensações abstratas como a
música, ou como uma arquitetura que adquirisse a plasticidade fluída da música, no
projeto que patenteou em 1910 suas pretensões artísticas se reduziam. Ali ele visava
convencer os produtores teatrais da época sobre um novo dispositivo, capaz de criar
uma “cena mutante”, com muito menos elementos e com muito mais velocidade nas
variações, buscando assim, literalmente, vender sua ideia. Isso implicava em não romper
com o teatro dramático e, ao contrário, provar que seu dispositivo poderia lidar com ele
de modo muito mais efetivo e econômico. Com uma única cena, “lugar”, reintegrando
cenografia e arquitetura, era possível contar qualquer história, ou encenar qualquer
“drama poético”, como ele preferia dizer.

Quando retoma o projeto no pós-guerra e decide escrever Cena, é essa


contradição que ele tem que enfrentar e o texto, como o leitor verificará, não é capaz de
resolvê-la. Persistirá uma oscilação entre mostrar a “quinta cena” como uma conquista
pragmática já obtida, e uma projeção futura ansiada, em que aquele sonho inicial
finalmente se realize. Ele próprio esclarece que os desenhos não podem ser explicados,
“assim como você não pediria a um músico para ‘explicar’ uma fuga que ele tivesse
composto”, mas que são, no seu conjunto uma única cena, a “obra mãe”. Ao mesmo
tempo, o fruto que ela gera, ou a “quinta cena” que está sendo apresentada no livro, ele
mesmo reconhece, significa “um passo atrás”, que foi o modo que encontrou de “levar o
trabalho um passo adiante”. Não faltam argumentos a ele para justificar esse recuo. Eles
convergem, principalmente, para o fato de, apesar de todas as suas realizações cênicas,
escritos e projetos ter-lhe faltado o apoio dos seus compatriotas ingleses. Se eles o
18

tivessem apoiado, “depois de eu ter mostrado o que podia fazer”, teria alcançado “a coisa
mesma e não sua mera aparência”. Fosse por isso, ou por suas próprias limitações, o que
cabe ressaltar quando se revê a sua obra em geral, e esse livro em particular, é que, a
despeito dessa tensão interna no seu discurso, hoje é possível dizer que o projeto Scene
significou, na forma acabada que alcançou em Cena, uma revolução objetiva na cena
moderna e, mesmo em seus aspectos irrealizados, inconteste, uma antecipação de muito
do que ocorreria na cena teatral da segunda metade do século XX.

Examinando primeiro o projeto Scene, em sua versão patenteada e depois


estendida no texto Cena, reconhece-se claramente suas reverberações nas práticas
cenográficas e cenotécnicas que foram tomando forma ainda na primeira metade do
século XX, e que se consolidaram nos últimos cinquenta anos, tornando-se rotineiras
mesmo no âmbito do teatro comercial. A ideia de uma cena simplificada, de “forma e
cor”, criada por meio da combinação de planos e volumes, telas neutras e luz, e com
grande mobilidade para transições em cena aberta, sem que fosse preciso “baixar a
cortina”, pode-se dizer prevaleceu e tornou-se uma prática generalizada.

Vale lembrar também a insistência de Craig em se diferenciar da cenografia


mecanizada, que remeteria à cenografia renascentista, ou de sua ojeriza à ideia da cena
como máquina, que também encontra eco em na tradição do teatro de pós-guerra, a
partir de Brecht, Beckett, Grotowski, Kantor e tantos outros. A metáfora da caneta
tinteiro como uma evolução técnica frente à escrita na base do pote de tinta, preferível
para Craig à máquina de escrever, traduz à perfeição essa repulsa que tinha de submeter-
se às tecnologias mecânicas. Como também é sintomática a imagem do teatro “como um
jardim”, onde “as coisas devem crescer (…) de acordo com as leis da natureza, ajudadas
pelas pequenas habilidades dos jardineiros”. E se o cultivo desse verdadeiro organismo
vivo em crescimento não dispensa a supervisão do “mestre do teatro como uma arte”, ou
que este ocupe o lugar de “primeiro nessa linha”, enquanto “mestre do espaço cênico”, o
que aponta para a datada emergência do diretor na cena moderna, suas sugestões aos
jovens artistas de que não devem descartar nada até que tenha sido “testado”, e de que
19

“não existe nada que possa ser rejeitado absolutamente”, parecem estar em direta
sintonia com o experimentalismo dos processos colaborativos de hoje.

Quanto ao projeto, diga-se, mais metafísico, daquela cena sonhada, mas não
materializada, sugerida pelas gravuras de 1907 e que, Craig admite no livro, ficou pelo
caminho, ele pode ser reconhecido nas montagens de encenadores de hoje que,
independente de terem ou não ali se referenciado, estabelecem cenas inaugurais em
cada encenação, no sentido de não serem representativas de nada anterior a elas, mas
espaços, ou lugares, que se bastam a si mesmos, autônomos de referentes pregressos e
singularmente genuínos. Provavelmente, uma das razões para artistas como Wilson ou
Castellucci obterem esses resultados é que têm um controle técnico sobre a iluminação
muito superior ao que Craig pudesse sequer sonhar. Não por acaso, no texto de Cena ele
deixou claro que as principais dificuldades que encontrava para avançar no projeto
residiam nas questões da luz, e de como ela jogaria com as screens ou com os volumes
por elas formados. Interessante também pontuar que não aparece resolvida ali a
questão, já ventilada na apresentação do anterior Rumo a um Novo Teatro, da hesitação
entre pensar a modulação e movimentação das screens com a luz elétrica, em cenas
internas à caixa cênica, e com a luz natural do sol para cenas externas. Permanece
incerto, por exemplo, como obter-se os efeitos de cor, fundamentais à sintaxe das screens
em ambientes fechados, nas situações ao ar livre, ainda que Craig diga restarem apenas,
“algumas pequenas dificuldades” para que ele alcançasse na prática, com seus “250
modelos”10, uma situação em que luz e cena desempenhem como “arco e o violino”, ou
“caneta e papel”.

Há um último aspecto interessante a ser discutido, que está praticamente ausente


do debate especializado em torno de Craig, mas parece bem relevante quando se trata de
pensar a cena contemporânea. Trata-se da movimentação das telas e dos volumes por
elas engendrados. Avesso à mecanização da cena, Craig sempre insistiu e valorizou que
as telas, sobre rodas e sustentadas em si mesmas, deveriam ser movidas por

10
O que Craig chamava de “modelos” eram maquetes da caixa cênica preenchidos pelas pequenas telas de papel-cartão já mencionadas,
que se encontram nos arquivos da BNF em Paris.
20

“operadores”. Estes ensaiariam, sob a batuta do encenador, os seus movimentos


contínuos, estabelecendo com elas uma relação de intimidade e com isso obtendo o
efeito de uma dança sutil e discreta, fluente como a música e tácita como a matéria
arquitetônica. O número de operadores de cada tela variaria conforme o seu tamanho e o
seu número de abas. Uma tela padrão, entre as centenas de modelos com que Craig
experimentou, teria 2 m de altura e quatro abas de 1 m de largura. Para uma dessas,
seriam necessários de quatro a seis operadores. Pois bem, não é irrelevante que nessa
cena nova de Craig os atores estejam ausentes, ou, quando presentes, imobilizados em
armaduras, e que os seres vivos, despidos de máscaras e com roupas neutras, sejam
operadores, atuando em sintonia fina com uma partitura de movimentos e de luzes. Um
dos traços do teatro dito performativo é exatamente uma atuação não dramática,
despida de caracterização e constituída por ações físicas de montagem e desmontagem
de um discurso cênico, em que atores e contrarregras se confundem como agentes nas
ações cênicas. Por certo, Craig nunca pensou nisso nos termos que a atualidade propõe,
mas quando imaginou sua cena habitada principalmente por operadores, talvez
estivesse realizando a mais radicalmente antecipatória de suas profecias.

Gordon Craig afirma em Cena que nunca foi um reformador. Ele o faz para se
diferenciar dos principais criadores teatrais de sua época, incluindo seu quase padrasto
e grande iniciador Henry Irving, o ator e produtor inglês que dominou a cena inglesa no
fim do século XIX11. A frase busca um efeito retórico, o de retratar-se como um inventor –
“artistas que têm instinto criativo nunca reformam as coisas, eles as criam”. No jogo
entre a falsa modéstia e o narcisismo excessivo em que oscila a narrativa sobre os seus
feitos, essa talvez seja a afirmação mais equilibrada. Não há como negar, independente
de muito o que propôs ter ficado só como promessa, dos seus defeitos como homem e de
suas posições políticas duvidosas, que se trata de um artista maior, que inventou novos
modos de pensar e de fazer o teatro.

11
Henry Irving contratou Ellen Terry quando ela ainda era mulher do arquiteto e cenógrafo Edward Godwin, pai de Craig. Depois da morte
de Godwin e durante todo o tempo em que foi a primeira atriz da companhia de Irving, Ellen Terry nunca assumiu a relação amorosa que,
de fato, teve com o ator. Para Craig, Irving foi um modelo de ator e sua companhia a escola teatral que o formou.
21

Rumo a um Novo Teatro

Quarenta Desenhos Cenográficos


Com Notas Críticas do Inventor
Edward Gordon Craig
22

FANTASMA: Eu sou o espírito de teu pai,

Danado a vagar na noite por um certo tempo

E durante o dia confinado a quedar no fogo,

Até que os pútridos crimes cometidos

Nos meus dias na natureza

Sejam queimados e purgados para sempre.

Mas isto estou proibido de contar

Os segredos da minha prisão domiciliar,

Poderia sim desfiar um conto, cujas palavras mais leves

Dragariam tua alma, congelariam teu sangue jovem,

E fariam teus olhos, como estrelas, partirem das esferas,

Tu enlaçado e impedido por cadeados de seguir

E cada fio teu de cabelo arrepiado na ponta

Como os aguilhões de um porco espinho encurralado

Mas esse registro da eternidade não se presta

A ouvidos de carne e sangue. Ouve, ouve, oh, ouve!

Se jamais conhecesses o amor de teu querido pai –

HAMLET: Oh, Deus!

FANTASMA: Vinga esse vil e bem tramado assassinato

William Shakespeare, Hamlet


23

Aos italianos

Com respeito, afeição e gratidão:

Por seus velhos e novos atores,

Sempre os melhores na Europa.

Os desenhos neste livro

São dedicados

Se não existir grande amor

No começo,

O céu ainda poderá diminui-lo

À base de maior conhecimento

William Shakespeare, Muito Barulho Por Nada12

Os olhos do poeta em frenesi arregalados

Olham do céu à terra, da terra ao céu,

E, como a imaginação materializa

As formas das coisas desconhecidas, o poeta

As transmuta em formas, e dá ao nada aéreo

Uma habitação terrena e um nome

William Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão

12
Na verdade, o irônico trecho citado se encontra em As Alegres Comadres de Windsor, Ato I, cena 1. (N. da E.)
24

Prefácio

Sobre a verdade e o erro.

A verdade sempre necessita ser repetida, porque o erro é incessantemente e


repetidamente pregado a nós, e não apenas por algumas vozes isoladas, mas pela
multidão. Nos jornais, enciclopédias, nas escolas e nas universidades, em todo lugar o
erro ocupa o primeiro lugar; é por conta de sua facilidade com a maioria, que esta se
encarrega de defendê-lo.

Goethe, Conversations with Eckermann (Gespräche mit Goethe), 1812-1832.

Uma Palavra de Reconhecimento

Quando um homem parte a reconhecer suas dívidas, ele está começando a sua biografia.
Eu penso que ninguém pode jamais pagar suas dívidas – e dificilmente encontrar tempo
para reconhecê-las todas. O mesmo vale para o artista, que está imerso em dívidas até o
pescoço, e isso mesmo sem dever nenhum centavo. Ele está em dívida, igualmente, a
pessoas e a coisas. Se nem todas as pessoas são seus mestres, quase todas as coisas o
são. Quantos mestres eu tive por um curto período? Quantos assistentes também? E
todos eles me ajudaram enormemente em meu trabalho. Há um mestre acima de todos,
sem falar na natureza, pois ela está sempre pronta a ajudar e sem esperar nenhum
reconhecimento, de quem eu gostaria de ter aprendido coisas mais cedo – Leonardo Da
Vinci. Todos os outros andam em trilhas mais fáceis, tomam atalhos e estão prontos a dar
sugestões muito espertas ou muito elegantes. Só ele me parece ser um grande mestre;
não porque pintou a Última Ceia e outras grandes obras, não porque ele erigiu grandes
estátuas e antecipou quase todas as maravilhas da vida moderna, mas porque ele parecia
saber mais coisas e sabê-las precisamente, e saber mais sobre a natureza humana e sabê-
lo com essa precisão e porque em todo o seu trabalho ele é mais calmo que outros
25

artistas modernos. É por essa razão que eu gostaria de o ter conhecido antes e estudado
a partir dele. Sendo assim, eu quero reconhecer minha dívida com, pelo menos, uma
centena de pessoas. Para começar, reconheço minhas dívidas para com os iluminadores
do Teatro Lyceum, e para com Rembrandt; Ruskin, William Blake e Fra Angelico; para
com Alexandre Dumas e Henry Irving; para com Yeats, Whistler, Pryde, Max Beerbohm,
Nicholson e Bearsdley; para com Tiepolo, Guardi, Crawhall, Hugo e Piranesi; para com
Vitrúvio, Whitman, Andreini, Ganassa e Martinelli; para com Gherardy, Delsarte, Otway e
Vecellio; para com meu menino Teddy; a Raphael e os Martinettis; a Nietzsche, Walter
Pater, E.K. Chambers, Skeat e a Roget; e por último, mas nem por isso com menos ênfase,
aos meus pai e mãe.

Mas alguns desses reconhecimentos se aplicam só a este livro. Quando você


estiver cansado deste livro eu tenho outras portas para abrir pelas quais só alguns
poucos desses que eu mencionei consentiriam passar comigo. Vocês não devem imaginar
que o trabalho apresentado aqui representa mais do que o meu trabalho como
encenador entre os anos 1900 e 1910.

“Assim o ruim começa e o pior (quem sabe) fica para trás.”

Nota. Eu quero reconhecer a gentileza dos atuais donos de vários desses desenhos por
autorizarem sua reprodução aqui e agradecer os senhores J.M. Dent & Sons, e em
particular o senhor Hugh Dent, pelo modo cordial com que colaboraram comigo na
produção deste livro.
26

Rumo a um Novo Teatro

Parece que ainda há muito a explicar sobre o teatro 13, e a arte do teatro, antes que o
mundo possa entendê-la corretamente.

O risco de se apontar em uma nova direção, mesmo em relação a um objeto


familiar é muito grande. É ainda maior quando o objeto é estranho a nós. Todo mundo
alardeia “Onde, onde?” e fica contente quando seus olhos miram o primeiro objeto que
por acaso se apresenta. A dificuldade que eles encontram é a de ver longe o suficiente, e,
então, daquela distância, ver em detalhe.

Se eu, por exemplo, aponto para uma grande montanha a uma grande distância de
nós, uma criança, sentada na grama, olhará para ver a grama crescida em frente ao seu
nariz, e o que ela ouve eu dizer sobre o longínquo se aplicará aos picos dessa grama. Uma
mulher defronte a mim, em vez de olhar na direção que eu aponto, vai olhar
provavelmente para eu apontando. Um homem provavelmente olhará tão longe quanto
ele puder. Há uma chance em mil que seu olhar seja apanhado por algo a cem jardas dali,
ou mesmo umas mil jardas distante, ou pode acontecer que um pássaro levantando voo
detrás dos galhos e flutuando atraia seus olhos e todo interesse na montanha se terá
perdido. Pode ser que ele tome um castelo numa colina pela montanha; ou podem haver
alguns que, olhando tão longe quanto possam e buscando no horizonte, cheguem
finalmente a negar que tal montanha de fato exista.

13
Teatro. De acordo com o professor Skeat, uma palavra francesa derivada do latim; a palavra latina origina-se no grego. Francês médio,
théâtre; Dicionário Cotgrave, ed. 1660. Derivada do latim theatrum, derivada do grego theatron, um lugar para ver apresentações, derivado
do grego theaomai, “eu vejo”. Compare thea, “uma visão”; veja [Walter] Prellwitz, Etymologisches Wörterbuch der griechischen Sprache.
Nota: nenhuma palavra sobre isto ser um lugar para ouvir 30.000 palavras balbuciadas em duas horas.
27

É para uma montanha que eu estou apontando – um lugar alto; esta montanha é o
teatro. Se fosse outra coisa, eu a chamaria de alguma outra coisa. Até agora não conheço
outro nome para isto. Deixe-se então que continue sendo Teatro, e por favor me
acreditem quando lhes digo que é uma MONTANHA. Não é uma colina, nem um grupo de
colinas, nem uma miragem de colinas – é a maior montanha que eu já vi. Ninguém foi
capaz ainda de escalar suas alturas, porque há algo evidentemente muito estranho sobre
essa montanha. Se fosse facilmente acessível, já teria sido escalada há muito tempo.
Agora, diga-se, não lhes parece que há algo muito estranho a respeito disso? As pessoas
vêm se perguntando sobre sua base por milhares de anos, e ninguém jamais chegou até o
pico, e há muitos que se recusam a acreditar que ela tenha mesmo um pico; mas como eu
vi o topo, eu quero desafiadoramente contradizer essa maioria. Eu vi o topo de uma
grande distância; o Fuji não está coroado de forma mais bela.

É na direção daquela montanha que eu me sinto atraído e, desde que comecei a


me mover naquela direção, percebo que cheguei um pouco mais perto dela do que eu
estava quando parti há vinte e cinco anos.

Em minha jornada, eu me deparei com algumas pessoas curiosas. Eu encontrei


algumas que passaram por mim retornando ao lugar de onde eu parti, e que, na
passagem, disseram que estavam indo na direção daquela montanha. Alguns eu
encontrei com as costas voltadas para ela, dizendo que tinham acabado de estar lá; “não
havia muita coisa para ver, no fim das contas”. Eles tinham um olhar desapontado em
suas faces. Havia outros que descreveram aquilo para mim dizendo, “Só tem seis mil e
cinquenta e dois e meio pés de altura; é um vulcão extinto e a classe média habita o topo.
O clima é muito seco; o comércio de carvão é muito ativo”. Estas pessoas estavam
olhando para a montanha errada. Outros que professam ter vindo de lá dizem que é
governada por senhoras – e o resto de suas histórias é muito ridícula para repetir.

Isso tudo agora é muito bom para usar como parágrafo na imprensa, mas não é a
verdade. Ninguém escalou aquelas alturas; nenhum dos relatos concernentes àquelas
28

alturas é correto. Todo mundo mente sobre isso, porque todo mundo está falando de
uma outra coisa.

Eu não minto sobre isto. Eu não lhe digo que descobri o lugar: eu digo a você que
estou me movendo em direção a ele. Eu não lhe digo que estou me movimentando na
direção de algum templo, pois isso seria uma mentira. Estou me movendo em direção a
um novo Teatro, e este livro é uma das minhas contribuições para um novo teatro. Tudo
que eu coloquei no livro agora resta por trás de mim. Eu o encontrei nos níveis mais
básicos, nem mesmo em terreno inclinado, e menos ainda nas alturas, e portanto não se
deve ficar muito excitado a respeito destas pequenas descobertas – pois agora as
maiores e finalmente grandes descobertas nos esperam.

Haverá muitos teatros antes que o Teatro venha, assim como há muitos platôs na
montanha. E por essa razão que eu chamo este livro “Em direção a um Novo Teatro” em
vez de “Em Direção ao Novo Teatro”. Se eu fosse falar do novo teatro, alguns de vocês
estariam certos de pensar que eu falava do novo teatro que está para ser aberto daqui a
três ou quatro anos, e como eu escrevo na língua inglesa, estariam certos de pensar que
eu me referia ao novo teatro inglês, e para dizerem a si mesmos, “O teatro inglês é o
teatro”. Uma das primeiras coisas que os ingleses têm de fazer é tirar de suas cabeças a
crença de que o teatro só existe na Inglaterra, e lembrar que existe um teatro na França,
um teatro na Alemanha, teatros na Rússia, Itália, Espanha, Hungria, Suécia, Noruega,
Dinamarca, e mesmo na Suíça e Finlândia, e assim não acreditarem que pensaram sobre
todos os teatros, pois há um teatro além do Cáucaso, um teatro no Leste e há um teatro
mesmo na América e na África.

Para qual deles é feita minha contribuição? Para nenhum deles, pois existe outro
novo teatro sendo fundado, e é para aquele teatro que eu ofereço os conteúdos desse
livro. Não é oferecido como se oferece comida; é dado puramente como uma advertência.
Não há uma única coisa nesse livro que possa jamais lhes ser de qualquer “uso” prático
senão como advertência, e para os seus próprios interesses, e, pelo interesse do Teatro
29

ideal, não se debrucem sobre esse livro na esperança de extrair dele algo 14 que possa
instantaneamente ser posto em uso prático na crença de que os traga mais próximos de
seu ideal – é mais provável que lhes traga £10.000 por ano se for bem trabalhado, mas
isso na minha opinião, seria grandemente impraticável – pois £10.000 dificilmente
valem mais que uma canção – e se deveria aprender como recusar somas tão pequenas
se há a pretensão de se ser sério sobre os grandes ideais conectados com a arte.

Como eu disse, o que está aqui é o que eu experimentei. Olhem para isso se
quiserem. Prestem a isso um tanto de reverência temendo isso – e, eu espero, apreciem-
no.

Há um tipo particular de tolo no teatro que amavelmente pergunta, “Porque eu


não deveria fazer uso de uma ideia que é uma boa ideia?” e há certamente alguém que
dirá, apontando para alguma das imagens no livro, “Já que é realmente uma boa ideia,
que objeção há se eu a roubar?” e eles podem mesmo ir mais longe – ainda que seja
muito improvável – para acrescentar, “Claro que eu vou reconhecer publicamente, no
programa e em outras partes, a fonte de onde retirei isso”. Este tipo particular de tolo
não percebe que agindo dessa forma ele está enfraquecendo a si próprio e ao teatro a
que ele supostamente estaria servindo com algum espírito. Eis porque eu lhe peço e a ele
que temam a influência do meu livro. Eu sugiro a ambos que se encontrarem neste livro
algumas ideias que, intuam, vocês poderiam aplicar com sucesso a suas novas
produções, sigam o conselho de Punch – “Desistam”. Se, por outro lado, vocês quiserem
desenvolver seus talentos como encenadores, não para lucro imediato, mas de modo a se
tornar trabalhadores melhores, então meu livro está ao seu serviço. Mas evitem uma
exibição pública – evitem o perigo de revelar aquilo que ainda não é vosso.

Uma ideia só tem valor por conta da vida que possa trazer à luz, e nada senão a
vibração original pode jamais dar a ela vida de novo. Mesmo assim, quando recriada, ela
reaparecerá um pouco diferente, e já não será portanto a mesma ideia; assim, quando

14
Faz lembrar de uma famosa e adorável pequena sátira sobre a arte da extração, de algum mestre desconhecido que diz o seguinte: “O
pequeno Jack Horner sentado num canto / Comendo uma torta de natal, / Ele enfia seu dedão e puxa fora uma ameixa / E diz ‘Que menino
bom sou eu.’ ”
30

um predador15 do moderno teatro Europeu apanha uma das minhas ideias e acredita
que a está colocando em prática, ele não faz nada parecido, pois existe uma grande
diferença entre um reflexo no espelho e a coisa refletida. A diferença é no fundo uma
questão de vida, e é, também, muito desprezível copiar uma ideia quando, com um
mínimo de atividade do corpo e da alma, você próprio pode gerar uma ideia e assim
acrescentar vida à vida – e se você não tem ideias não se envergonhe de admitir isso.

O que nós não queremos são essas ideias mortas, essas coisas copiadas, e todo
mundo deveria protestar contra a trapaça óbvia que é praticada a cada mês no teatro da
Inglaterra, a de fazer ideias pouco originais passarem por originais. Um das lacunas que
percebo no criticismo inglês é que mesmo os melhores críticos rendem-se
entusiasticamente diante de alguma ideia copiada, ignorantes do fato da existência da
original, ou, se conscientes dela, criticando a cópia nos mesmos termos que utilizariam
para o original16.

Finalmente, este livro representa meus esforços preliminares na divisa de uma


fase da arte teatral que eu ultrapassei. Como eu escrevi em meu livro Sobre a Arte do
Teatro, o artista do teatro do futuro vai criar suas obras-primas a partir da ação, cena, e
voz. Isto foi em 1905, e o futuro a que eu me referi ainda está diante de nós, e portanto
qualquer um, que possa se aprofundar no assunto mais plenamente do que eu o fiz,
ainda está livre para mudar aquilo e para mostrar o que possa ser criado a partir de algo
diferente… algo mais refinado, mais simples. Minha razão para mencionar isso aqui, é
chamar sua atenção, uma vez mais, para algo que alguns de vocês por vezes ignoram
quando falam do meu trabalho. Isto significa dizer que eu não estou preocupado apenas

15
Gordon Craig utiliza autolycus, palavra inexistente que, supõe-se remete a autolysis, substantivo que nomeia a destruição de células
causada pelas próprias enzimas e tem a forma autolytic como adjetivo.(N.da T.)
16
Parece-me uma pequena falta que poderia facilmente ser evitada se os críticos ingleses tivessem a oportunidade de estudar o que está
sendo feito nas outras cidades das Ilhas Britânicas e nas outras cidades do continente. O critico inglês deveria ser enviado pelos ricos jornais
ingleses a Paris, Berlim, Cracóvia e Budapeste. O público merece conhecer o que está sendo feito nesses e em outros lugares. Quem ouvira
falar de Strindberg, por exemplo, até que ele tivesse morrido – e se não fosse pelo sr. William Archer, que tão frequentemente ia à Noruega,
quem na Inglaterra teria ouvido falar de Ibsen? Assim, só tardiamente, fomos nós informados pelos jornais sobre o renascimento da arte da
improvisação sob [Sandor “Alexander”]Hevesi nos teatros da Itália e da Hungria? Alguém sabe alguma coisa sobre [Stanisław] Wyspiansky e
sua escola? Mas quem está lá que não sabe dos imitadores de terceira categoria dessas pessoas? A imprensa inglesa fica histérica com
imitadores de terceira mão, quando é a missão dos editores ver que nós estamos dando informações eloquentes sobre a origem dessas
imitações.
31

com o que é chamado a parte “Cênica” da arte. Eu gostaria de lembrá-los que eu


claramente defendi que ação e voz eram as outras duas partes que eu estava estudando.
Ação e voz não podem ser satisfatoriamente tratadas por meio de palavras escritas ou
diagramas, enquanto a cena até certo ponto pode assim ser tratada.

É, pois, a parte cênica que aparece neste livro; e como prelúdio para as próprias
imagens, eu tenho agora algo a dizer sobre cenografia de palco.

II

Houve um tempo em que a cenografia de palco era arquitetura. Um pouco depois tornou-
se imitação de arquitetura; um pouco mais tarde imitação artificial de arquitetura. Então
perdeu a cabeça, enlouqueceu, e tem estado em um asilo de loucos desde então. Algum
dia, quando a minha escola puder se concretizar, nós vamos publicar um livro contando
os fatos históricos desse caso. Eu deverei garantir nele que se faça justiça ao meu
trabalho cênico – eu temo que muito pouco dele vai jamais salvar-se – mas aqui e agora
não é a hora nem o lugar para forçar demais a ponto de despedaçá-lo. Eu poderia fazer
isso provavelmente de forma mais plena do que qualquer um dos meus críticos o faria.
Minhas colocações se aplicam às imagens (com oito exceções), neste livro. Estes trinta e
dois desenhos representam labuta feita entre 1900 e 1910. Aquele trabalho é agora
parte do meu passado, e ainda que eu possa olhar retrospectivamente para ele com
interesse, eu não tenho grandes afecções sentimentais pelo meu trabalho de ontem só
porque é meu. Que ele não seja totalmente despido de sentido ou de gosto não altera, em
minha opinião, o fato de que não são bons como cenografia de palco. Não se comparam
com os cenários mais nobres, quando as condições do palco eram mais nobres. No
período mais nobre de que temos conhecimento, falava-se menos de “simplicidade”, e
32

menos de ilusão, e o pintor cênico era completamente desconhecido. Naqueles dias eles
construíam seus teatros para os seus dramas, não seus dramas para seus teatros. Eles
jogavam à luz do dia, e com o sol banhando os atores e a audiência por igual, e não se
permitiam os efeitos de luz17. Eles não gastavam um tempo enorme tentando encontrar
alguma cor falsa que pareceria verdadeira com a luz artificial. Nem eles pintariam seus
rostos com magenta e amarelo ocre de modo a parecer que tinham acabado de chegar do
campo.

Eles não se abstinham de fazer tais coisas só para serem mais naturais, mas para
assim serem mais verdadeiros. Agora, é muito difícil para o leitor comum entender o que
significa ser mais verdadeiro, e é realmente desnecessário para ele entender isso, tanto
quanto o artista cênico o entende. Eu nunca encontrei um deles na Inglaterra que
pudesse inteiramente compreender isso, ou se há um ou dois, eles nunca me
introduziram ao segredo de sua existência. Eu desejaria que o tivessem feito, pois esse
tipo de trabalho se torna muito solitário depois de um tempo; mas ser verdadeiro em
arte é não mentir para si próprio, e isto é muito difícil e muito caro. Mas não é perda de
tempo nem de vida; é um tipo de jogo em que você aposta numa certeza. Há a National
Gallery diante de mim enquanto eu escrevo para testemunhar a veracidade dessa
declaração, e existe Nelson também18. Arrisque sua vida pelas artes, sejam as da paz ou
da Guerra, e você não deixará de vencer. Mas não deve haver limitações; você não deve
achar que por ter falado de simplicidade e beleza por uma temporada, ou feito um
discurso no Club de espectadores em que se colocou contra o gosto de anteontem, que
você tenha arriscado qualquer coisa mais que o desprezo dos anjos; e eu digo isto
porque eu não quero que você pense que eu deveria discordar de qualquer critico sério
que me aconselhasse a reunir todos os meus desenhos e queimá-los por serem sem valor
diante das mais altas tradições da arte cênica. Pois estes desenhos, como eu já disse

17
Em Letchworth, no outono de 1912, eu fui afortunado ao ponto de estar presente em um espetáculo praticamente ao ar livre, em que as
luzes artificiais eram banidas. A Inglaterra é bem um país ideal para espetáculos à luz do dia e ao ar livre. No sul da Europa é
desconfortavelmente quente – aqui na Inglaterra é frio; e a chuva é sempre um legislador natural que previne um número exagerado de
festivais desnecessários. Festivais são para a primavera; um mês é suficiente.
18
Gordon Craig provavelmente escreve de algum lugar localizado próximo da Trafalgar Square de Londres, de onde se avistaria tanto a
National Gallery quanto a estátua do almirante Nelson no centro daquela praça. (N.da T.)
33

antes, e de fato muitas vezes, em um lugar ou outro, são meus esforços no


estabelecimento de uma divisa que delimita uma fase da arte teatral – uma fase pela qual
eu já passei. Compare-os com a cenografia dos gregos, que é, eu suponho, a mais antiga
cenografia sobre que conhecemos alguma coisa, e você verá o quanto a comparação lhes
é desfavorável. Compare-os com a segunda mais nobre cenografia para o Drama, a
cenografia dos cristãos, e eles parecerão um pouco melhores. Compare-os com o terceiro
período, quando os homens começaram a fazer arquitetura de imitação para teatros com
luz artificial – quer dizer, no século dezesseis – e eles parecerão verdadeiramente bons.
Eu penso que eles se sustentariam no palco por si próprios contra os desenhos de
Peruzzi, Serlio, Palladio, e os outros; eu penso que eles são muito melhores que a
cenografia rococó de Bibiena, e eu devo dizer que eles triunfam sobre a cenografia mais
atual. A questão sobre exatamente onde eles triunfam e onde são derrotados eu não
posso enfrentar agora e aqui, mas eu posso contar-lhe algo sobre os vários períodos de
cenografia de palco sem importuná-lo mais com muitos nomes ou datas.

Quando o drama entrou nos espaços fechados, ele morreu; e quando o drama
entrou nos espaços fechados, sua cenografia encerrou-se ali também. Você deve ter o sol
sobre si para viver. Claro que você pode dizer que “perseverar” é “viver”, mas é
praticamente ser um morto-vivo. O Drama era capaz de existir nos espaços exteriores, à
luz do sol, porque, em vez de ser um entretenimento noturno, era um festival raro. As
pessoas sempre falaram disso como sendo um festival religioso, mas talvez seja um
engano nos dias de hoje sublinhar isso, porque a palavra “religioso” para nós significa
uma coisa e nos velhos tempos significava outra coisa. Como melhor descrever o que era
nos velhos tempos? Provavelmente se você permanecesse na Piazza São Marcos – ou
mesmo em Trafalgar Square, para efeito dessa questão – em um dia ensolarado, e visse
uma revoada de centenas de pombos sobrevoando a praça, batendo suas asas,
regozijando-se em seu próprio modo de lidar com Deus, você chegaria à ideia mais
próxima de com o que um festival grego se parecia. E já percebeu alguma vez se as
pessoas que passam na praça nem notam esse acontecimento? Não; Você perceberá que
mesmo o homem mais desinteressante das ruas se quedará e assistirá o espetáculo. Este
34

mesmo espetáculo está sendo apresentado em frente da minha janela enquanto eu


escrevo. Umas cinquenta ou sessenta pessoas pararam para assisti-lo, e isso sem que
nem uma única propaganda tenha sido feita. Haverá muita gente que lhe dirá que o
drama grego atraía porque apresentava as paixões humanas, por conta de suas belas
moças dançando (tais pessoas sempre imaginam que belas garotas dançavam nos
dramas gregos), ou em razão de alguma sutil força intelectual que mantinha a audiência
em seu domínio, e assim por diante. Mas não era nada parecido. Era apenas que os
gregos capturaram muitos dos segredos da natureza dos pássaros, das árvores, das
nuvens, e não tinham medo de aplicar segredos tão simples em um uso religioso. E o
segredo mais secreto que eles buscavam era uma pequena parte do segredo do
movimento. Era o movimento do coro que movia os espectadores. Era o movimento do
sol sobre a arquitetura que movia a audiência.

Um crítico posterior, falando de um espetáculo apresentado em um teatro ao ar


livre na Itália, onde a arquitetura era o único cenário empregado, conta da emoção criada
pela passagem do sol durante o drama. Ele foi incapaz de descrevê-la exatamente, e
acredito, também, que muito poucas pessoas poderiam tê-lo feito, e, se o fizessem,
somente em um poema. Mas ele falou de como o tempo pareceu verdadeiramente estar
se movendo. O movimento era sentido, mas sentido por meio da visão 19.

Depois dos gregos veio o teatro cristão – o que significa dizer, a igreja cristã. O
tema de seu drama, se era não mais trágico do que aquele dos gregos, era talvez mais
sombrio. A arquitetura foi utilizada novamente como cenário, e podemos imaginar que
tipo de palco eles tinham olhando as fotografias e os desenhos dos coros e santuários de
todas as primeiras igrejas cristãs. Nós vemos palcos emergindo uns sobre os outros, as
janelas colocadas em certos ângulos para iluminá-los, as entradas de tal modo
arranjadas que movimentos de simples figuras ou grupos se tornavam significantes. Nós
vemos os assentos para os músicos, nós vemos os próprios lugares em que os atores
principais (pois nós podemos chamá-los atores) ficavam, em que direção eles olhavam, e
até o que eles faziam. Tudo isso está gravado. O drama que eles jogavam é conhecido
19
Lembre-se aqui a derivação da palavra “teatro”. Veja a nota na p. 1.
35

como a Missa20. A principal diferença entre este teatro e o teatro dos gregos é que
ocorria em um ambiente fechado, ainda que a luz do dia, e a luz do sol em particular,
fosse ainda empregada.

As pessoas revoavam para estes teatros religiosos como abelhas para uma
colmeia. Nenhuma das palavras faladas podia ser entendida por eles, pois tudo era em
latim, e ainda assim eles compareciam. Você arriscaria adivinhar porque eles iam lá? Não
lhes custava nada senão o que eles escolhiam oferecer. Talvez esta fosse a razão. De
qualquer modo, não nos deixemos preocupar com isto; vamos nos manter no cenário.

Contra o fundo arquitetural eram dispostas decorações de ouro e joias, sedas,


veludos, e outros materiais preciosos. Me pergunto se as pessoas teriam acolhido essas
coisas se tivessem sido feitas de papier-mâché e celofane? Divago se a mesma excitação e
reverência poderia ter sido despertada diante de uma cruz de papéis colados?

O que fez esse maravilhoso teatro fracassar depois de algumas centenas de anos?
Nada a não ser a exibição de pernas e braços em um circo. Aquilo era demais para as
pessoas. Elas não podiam resistir. É de compreender-se, mas não é compreensível a
natureza dos governantes, que eram tão loucos a ponto de exibir aquilo diante de uma
Europa não muito crescida. Da mesma forma pode-se apresentar Scherazade para uma
criança, ou deixar as crianças de uma nação longe de um drama tão belo como a Missa
para verem um tanto de meninos e meninas dançando nus em um circo. Pois as pessoas
na Europa naquele tempo eram tão inocentes quanto as nossas crianças o são. Você
poderá argumentar que já era o tempo delas crescerem; mas olhe como elas cresceram.
Você dirá que eu não estou sendo preciso, e que há tanta estupidez nas crianças quanto
há divindade nelas. Eu concordo, mas se existe uma quantidade igual de ambas – e eu
penso que isto é verdade – porque forçar uma posição encorajando à estupidez? Você
dirá que o teatro religioso tornou-se desinteressante, e que a outra coisa era um alívio.
Assim como ocorreu com a Europa, aquele “alívio”; o todo da deterioração moderna
parece estar baseado nesta palavra “alívio”. Nos velhos tempos, quando um lutador
20
“O rito central e mais importante da devoção cristã era a Missa, uma celebração essencialmente dramática de um dos momentos mais
críticos na vida do Fundador” – E.K Chambers, The Medieval Stage, v.ii, livro iii,p. 3.
36

campeão estava perdendo a luta, e só tinha o último fôlego, não havia esse papo de alívio.
Eu acredito que um dos métodos empregados era agarrar firme em uma estaca e enfiá-la
nele. Agora é tudo alívio. Contudo, vamos voltar ao cenário, se você me permite.

Depois que os teatros grego e cristão submergiram, o primeiro falso teatro veio à
existência. Os poetas escreveram elaborados e entediantes dramas, e o cenário usado
para eles era um tipo de fundo arquitetural imitativo. Palácios e mesmo ruas foram
estilizados ou pintados em panos, e por algum tempo a audiência se deixou enganar por
isso. Essas peças eram apresentadas em palácios reais, e já que as pessoas não podiam
conhecê-los de fato, eles pensaram que criariam um teatro próprio, e ao mesmo tempo
pretenderam colocar a aristocracia em xeque. Daí a grande Commedia dell’Arte emergiu.

Como pano de fundo eles se serviram das casas e palácios de uma rua, não
palácios pintados, não casas pintadas, mas as próprias casas em suas ruas. Arquitetura
de novo. Ar livre de novo. Sol novamente. E este teatro sobreviveu por trezentos anos.
Gerou Shakespeare e Molière, e o teatro de Shakespeare é mesmo o último teatro que
floresceu ao ar livre em espaço aberto.

Quantos muitos livros foram escritos sobre este teatro shakespeariano, como se
fosse uma ideia original, como se ele fosse o primeiro desse tipo, como se nunca antes o
teatro ao ar livre tivesse tido uma oportunidade de existir, como se fosse o belo ideal
daquele tipo de coisa. Na verdade, o teatro shakespeariano foi o último e mais pálido
suspiro do teatro ao ar livre. Nós devemos evitar qualquer coisa como um retorno ao
teatro shakespeariano, porque foi construído sobre os parcos restos de uma
magnificência anterior. Suponho que haja milhares de livros e artigos escritos sobre este
palco shakespeariano. Quantos livros existem sobre a Commedia dell’Arte e seu palco,
sobre o teatro cristão e seu palco, ou sobre o teatro grego e seu palco? Eu vi alguns, mas
nenhum deles chega próximo de ser adequado. Como um suporte para suas peças,
Shakespeare tinha um pequeno e gracioso canto de madeira de um palco construído
numa arena de ursos, mas suas peças, realmente, pertencem a um muito mais
magnificente teatro ao ar livre do que aquele. O pobre “O” de madeira que ele lamentou
37

tanto tornou-se hoje um muito pomposo “O”, e se queremos fazer justiça a Shakespeare
com suas próprias falas, devemos construir para ele um teatro muito diferente daquele
do Globe, e também muito diferente do que é o Drury Lane.

Depois que o teatro de Shakespeare passou, a luz do dia fechou-se para sempre.
Lâmpadas a óleo, lâmpadas de gás, lâmpadas elétricas, foram ligadas, e o cenário, em vez
de ser arquitetônico, tornou-se – cenário pictórico. Você não pode chamar isso pintura,
pois pintura é aquilo que concerne somente a duas dimensões, e se você perguntasse a
Leonardo da Vinci ou Cézanne, eu acho que eles concordariam comigo que cenário não é
pintura. Mesmo assim todos os dias ouvimos pessoas falando de cenário como se fosse
pintura, e mesmo pintores têm a audácia de entrar no teatro e colocar no palco o
resultado de seus estudos como pintores. Eles são todos descendentes de Bibiena, e eu
espero que eles se orgulhem dele. Nada os agrada mais do que o artifício do teatro
moderno, e eles “usam” o palco, ao mesmo tempo tendo um certo desprezo pelos seus
truques. Eu suponho que eles gostem disto tanto porque eles não sabem nada sobre a
beleza do teatro antigo. Eu posso admitir que isso é uma desculpa deles, mas não nos
aproxima de um palco mais nobre – não nos traz mais perto de uma cenografia nobre.
Mesmo muitas de minhas próprias cenas, das quais há quarenta neste livro, em minha
opinião, nos aproximam muito pouco dela.

Quando eu comecei a trabalhar, não havia escola para a arte do teatro, não havia
ninguém para me contar essas coisas que eu lhes contei; e é só agora, depois de muitos
anos trabalhando, que eu vi a direção para a qual estamos todos indo. E agora eu não
aponto de volta para os gregos, eu não aceno um retorno para a igreja católica, nem para
algum teatro nobre que já possuímos, nem lhes digo para reconstruí-los. Não me
preocupo nem um pouco com os restos do passado, mas só com o futuro; mas o que os
mais belos no passado nos ensinam é exatamente o mesmo que os mais belos no futuro,
e para alcançar esse velho novo ideal – talvez mesmo para superá-lo no tempo – eu rumo
em direção a um novo Teatro.
38

Sobre uma Decoração Cênica de Bibiena

Nosso sistema de decoração foi propriamente inventado para a ópera, para a qual é de fato melhor
adaptado. Ele tem alguns defeitos inevitáveis, outros que certamente podem ser evitados, mas que
raramente o são.

Entre os defeitos inevitáveis eu percebo a quebra das linhas nas cenas laterais de todos os pontos de
vista com exceção de um; a desproporção entre o tamanho do ator quando ele aparece no fundo e os
objetos diminuídos na perspectiva; a iluminação desfavorável debaixo e por trás; o contraste entre o que
está pintado e as luzes e sombras reais; a impossibilidade de estreitar o palco ao bel prazer, de modo que
o interior de um palácio e um casebre tenham a mesma extensão e largura etc.

Os erros que podem ser evitados são, desejo de simplicidade e de grandes e estáticas massas;
sobrecarregar o cenário com objetos supérfluos e dispersivos, seja pelo pintor ter desejado mostrar seu
talento com a perspectiva, ou por não saber como preencher o espaço de outra forma; uma arquitetura
cheia de maneirismo, geralmente toda desconectada, ou pior ainda, inconsistente com o que seja
possível, colorida de um modo disparatado que não parece com nenhuma espécie de pedra no mundo.

A maioria dos pintores de cena deve seus sucessos inteiramente à ignorância dos espectadores sobre a
arte do design; Eu tenho frequentemente visto um espaço todo enfeitado com uma decoração que leva o
olho treinado a virar-se com repulsa, e em cujo lugar uma parede toda verde teria sido infinitamente
melhor. Um gosto viciado pelo esplendor da decoração e magnificência das roupas tornou as produções
de teatro um negócio caro e complicado, em que frequentemente acontece dos principais requisitos,
boas peças e bons atores, serem considerados como assuntos secundários; mas este é um inconveniente
que é aqui desnecessário mencionar.

A.W. Schlegel
39

E o que Schlegel diz aqui se aplica muito bem a esta decoração cênica de Bibiena. O
desenho é um triunfo do artificial. Se a artificialidade é o que se quer no teatro, então
este é um desenho triunfante para o teatro. O artificial somente hesita e cicia, e isto
chega a ser charmoso quando ele está no seu lugar preciso. Ainda assim, o artificial não
está excluído do esquema da natureza. Mas é pouco inteligente para nós como artistas
exagerar algumas das bobagens da natureza, como o seria exagerar seus modos nobres,
omitindo todas as tolices. Se a natureza não se presta a ser olhada pelo artista como ela
é, então fora com olhos, ouvidos, e tudo o mais. Você olha para ela assim, e daí você
escreve uma história sobre ela, não omitindo nada, mas a elogiando de um modo mais
natural. Se você deixa de a admirar, seria melhor que você não tivesse nascido. Ela o gera,
e nisso ela o homenageia, e o mínimo que você pode fazer é retornar o cumprimento.
40

“Entra o Exército”

Eis uma rubrica, e eis um drama.

Eu algumas vezes morei em Trafalgar Square, onde toda sorte de coisas não
dramáticas acontecem durante o dia inteiro, mas quando eu escuto uma banda à
distância, e eu vejo as tropas se aproximando, eu sinto que, mesmo sendo apenas um
regimento de homens, é dramático. O que você pode dizer é, aquilo é teatral. Estranho
que tropas marchando tão bem perfiladas sejam chamadas de teatrais! O efeito é teatral?
Eu não penso que sim. Eu penso que o efeito é dramático. Que o exército possa ser o
exército do General Booth, e que eles estejam levando seu caixão para a cova, não me
parece que faça isto mais dramático, mas o fato de que é um corpo de homens de
uniforme e que esteja marchando em uníssono, isto me parece muito dramático. Se eles
estivessem todos divididos e disparatados, em que difeririam do ordinário? Com a
entrada do exército retornamos ao velho sentimento que havia na entrada do coro no
drama grego, ou a entrada do coro no drama medieval. A ideia do coro pode parecer fora
de moda para algumas pessoas. Certamente o espírito de harmonia e uniformidade não é
um espírito muito moderno, e, a não ser no exército, ou no âmbito da polícia, ou em um
jogo de criket, nós raramente percebemos sua presença. Mas, na arte, ele parece a mim
completamente esquecido, ainda que fosse a coisa essencial a ser recordada.

Bem – “Sai o exército”.


41

As Luzes de Londres

Este é um dos meus primeiros desenhos. Antes dele, quando eu produzi peças, eu
rabisquei desenhos precários com um lápis azul, e não os traduzi em nada pictórico. Se
eu tivesse tido um teatro em 1900, eu nunca teria sido forçado a fazer esses desenhos, e
teria preferido a isso ter tido a chance de trabalhar diretamente com o material que o
teatro oferece, e não com o material que é dado ao desenhista. As duas coisas são, é
claro, completamente distintas, e, se eu não tivesse nascido em um teatro, eu teria feito
fantasias que não poderiam, provavelmente, ter sido realizadas no palco. Como, contudo,
eu nasci, fui capaz, com minha experiência no teatro, de fazer desenhos que podem, com
grande chance, serem perfeitamente materializados.

Se você olhar cuidadosamente para eles verá sinais disso. Penso que muito
raramente verás as coisas aqui em perspectiva: avenidas levando Deus sabe até onde, e
que ninguém poderia percorrer. Eu lembro que quando a cortina descia e eu estava no
palco durante os entr’actes, eu frequentemente vagava até o que é chamado de “pano de
fundo” e enquanto a música soava na orquestra, e as pessoas eram chamadas para o
palco, olhava nostálgico para as montanhas pintadas lá, ou às tortuosas estradas que
levavam a elas e me via andando por elas. Estas eram divagações em que eu sempre me
entretinha. Como um jovem ator, e quando já vestido como o personagem que
interpretaria – de fato, quando já fora de mim – eu realmente acreditava que aqueles
panos de fundo eram reais. Eu lembro de um telão adorável em Olivia pintado por Hawes
Craven, e outro adorável pintado pelo mesmo artista para Ravenswood21. O primeiro era
uma paisagem inglesa – os morros de Yorkshire e um encantador céu vespertino;

21
Olivia, adaptação de W.G.Wills do conto “Vicar of Wakefield” foi uma encenação do Court Theatre, em Sloane Square, pequena casa
gerenciada por John Hare, que marcou a carreira de Ellen Terry em 1878, ano de nascimento de Craig. O telão a que se refere aqui,
provavelmente, é de uma montagem posterior da peça, no Lyceum. Ravenswood, é uma versão adaptada da novela de Walter Scott, The
Bride of Lammemoor, encenada no Lyceum em 1891, por Henry Irving. (N.da T. )
42

pequenas cabanas pontilhavam na distância; e eu recordo havia um grande casarão – eu


suponho que se pretendia fosse a mansão de Squire Thornhill.

Na cena de Ravenswood havia milhares de pequenas árvores crescendo em uma


colina coberta com gloriosas azuis; não eram apenas umas poucas gloriosas em
canteiros, a colina estava inteiramente coberta por elas.

Eu costumava permanecer quieto próximo desses panos de fundo, e eu lembro


que sempre os tocava. Eu punha meu dedo na casa de Squire Thornhill, ou no grande
carvalho à distância, ou, com meus dois dedos, eu subia por alguma alameda. De
qualquer modo, meu maior desejo era entrar na pintura, e sempre me lamentava que eu
não pudesse fazê-lo. Foi por essa razão, eu suponho, que ao a desenhar cenas por mim
mesmo evitei definir qualquer lugar em minhas pinturas que não pudesse realmente ser
percorrido por dentro pelos atores.

Agora se em um drama você tem a menção de uma escada que ninguém foi capaz
de jamais subir ou descer, e se o dramaturgo deseja mostrar que ninguém será capaz de
subir ou descer aquela escada, então há algum sentido em pintá-la em vez de construí-la.
Mas se passos devem ser mostrados em alguma cena – digamos em Júlio César – que não
apenas a fantasia como também o senso comum povoaria com muitas figuras, então
seria ridículo pintar aqueles degraus – eles deverão ser construídos; pois se você apenas
os pintar, e ninguém subir ou descer por eles, você sugerirá para o espectador que há
algo muito excêntrico acontecendo em Roma naquela tarde particular. Isto não é
verdade?22

Assim você verá essa regra prevalecendo ao longo dos meus desenhos. Não há um
ponto neles que em que não se poderia andar sobre ou viver dentro. Quando eu

22
Havia uma cena de jardim numa certa produção de Twelfth Night (Noite de Reis) que eu assisti certa vez que continha um longo lance de
degraus de grama verde, e não dava nenhum senso de ilusão ao espectador, pois ninguém subia mais do que seis ou dez dos cem degraus.
Assim todos eles desviavam agudamente para a direita ou esquerda – seis ou dez eram degraus verdadeiros, o resto todos pintados.
Champfleury, escrevendo sobre cenografia, diz: “Seja falso – mas falso do começo ao fim, e você será verdadeiro”. Como a maioria dos
paradoxos, há verdade nisso. Mas o que é melhor de lembrar é que nós precisamos sempre ser verdadeiros para com a Natureza – e
podemos sempre ser verdadeiros para com ela – quando nós a compreendemos. Degraus pintados, janelas, e outros detalhes como esses,
que tem de ser usados, ou poderiam ser usados, não são naturais e por isso não têm lugar. (N. da E.: Jules François Felix Fleury-Husson
[1821-1889], cujo nom de plume era Champfleury, foi um crítico e romancista francês, adepto e defensor do realismo.)
43

introduzi uma pirâmide, como no desenho para César e Cleópatra, na página XX, eu a pus
tão distante que na natureza ninguém veria as figuras sobre ela. É só em uma distância
como esta que nossa imaginação poderia povoá-la – e nosso olhar a percorre de cima
abaixo com facilidade.

Este primeiro desenho em meu livro foi feito para As Luzes de Londres. Eu deixei
de fora todas as luzes de Londres que outros pintores de telões teriam posto ali, e inclui a
única luz que eles sempre deixaram de fora. Ser natural hoje em dia é ser excêntrico.
44

O Masque de Londres 23

Este também é para uma peça cuja cena se passa em Londres. Em 1901, eu escrevi o
roteiro para um “Masque de Londres”, e esta era uma das cenas desenhadas para aquele
Masque. Há outra cena neste volume para este masque londrino, supostamente sendo as
Velhas Escadarias de Wapping (Old Stairs). No desenho original, a partir de que essa
reprodução foi feita, nem tudo é inteiramente cinza. Há três ou quatro pequenos pedaços
de um azul muito pálido percebidos por entre as nuvens de cinza, e estes previnem o
espectador de sentir-se desesperadamente miserável – estes e a igreja branca no meio
mantém o lugar trágico razoavelmente alegre.

As pequenas igrejas brancas que você vê sobre os telhados de Londres,


despontando do mar de cinza da maneira mais surpreendentemente virginal, como são
belas! À noite, também, elas se tornam ainda mais belas. Eu nunca entendi como
acontecia dos pintores de telões nunca terem nos oferecido a majestade e poesia de
Londres quando tinham de desenhar cenas para peças modernas. Eu suponho que os
dramaturgos não queriam nada majestático. A abordagem mais próxima que já vi de
uma boa interpretação de Londres no palco foi no Teatro Surrey, em um melodrama
carregado, chamado, eu penso, “Sua Segunda Vez na Terra”. Havia uma vista das ruas de
Londres à noite do alto de um telhado, e o pintor, quem quer que fosse, teve
evidentemente a ideia certa. Parecia haver pelo menos vinte mil luzes, dispostas em
grandes curvas, mas este é o único exemplo de uma grande cena de Londres que eu
posso recordar. Chega perto de sugerir a magnificente e bela coisa que Londres é. Oh, por
um escritor que possa emergir na nossa névoa e compor um grande poema dramático
que por si consiga expressar a glória do lugar em que vivemos! Eu estarei a seu serviço
no dia em que ele chegar.

23
Masque é uma forma teatral originária da corte inglesa, de grande aporte visual e amiúde operando a partir de alegorias. Esse formato
era uma das inspirações de Gordon Craig nos primeiros espetáculos que produziu na Purcell Operatic Society entre 1900 e 1902.(N.da T.)
45

Esses intérpretes de alma sebosa da capital da Inglaterra me deixam doente com


sua estreiteza de visão. As marionetes de poucos centímetros que eles criam, chamando-
as Senhoras isso e Senhor aquilo – o que eles têm a ver com Londres? Dickens tem,
infortunadamente, de ser dramatizado por um assistente amigável antes que seus
personagens possam ser postos no palco.
46

Henrique V – As Barracas

Essa cena representa as trincheiras que cercam o campo inglês. A tenda do rei é vista ao
fundo, e a cerca se estendendo pelo meio do palco é para os atores. Eles entram por trás,
escalando pela cerca e falando à medida que se empoleiram lá feito pardais em fios
telegráficos, mudando de posição assim como os pardais voam de um lado para outro. Eu
acho que atores seriam capazes de transformar essa cena em algo útil. Atores, em geral
podem ir fundo na pesquisa de ideias para uma cena e aproveitá-las. Se apenas os
trágicos pudessem fazer isso, tudo estaria bem. Os únicos homens que podem atuar em
tragédias como se pretendeu que atuassem estão agora nos music halls (teatros
musicais) ou nas variedades (Divertimentos).

Se o sr. G.P. Huntley não tivesse dedicado tanto tempo às formas mais leves de
tragédia, ele poderia agora estar aterrorizando o público inglês com as formas mais
pesadas de comédia. O único espetáculo sério que eu vi em Londres no ano passado era
um entretenimento leve pelo sr. G.P. Huntley em um music hall. Mesmo Grasso, o trágico
siciliano, que estava atuando naquela mesma noite, não era mais compenetrado.

Bem, eu suponho que teremos de contar com nossos comediantes para as


tragédias. O sr. Pelissier como cardeal Wolsey era certamente a mais terrificante figura,
em uma pequena paródia trágica que vi certa vez em Londres.
47

“A Chegada”

Isto não é para nenhuma peça em particular, mas é para o que eu acredito ser o
verdadeiro drama. O nome explica o drama. A primeira imagem nesse volume (“Entra o
Exército”) é uma indicação cênica; o mesmo para “A Chegada”, um tipo de rubrica. Nos
conta sobre algo que está sendo feito, e não sobre algo que está sendo dito, e o fato de
nós não sabermos quem está chegando e porque eles estão chegando, ou como eles se
mostrarão quando aparecerem, faz disso, no meu entendimento, dramático. “E”, vocês
dirão, “insatisfatório”. Isto depende. Isto depende se você está mais interessado no fim do
que no começo. Parece a mim que quanto mais se posterga o fim, mais excitante a vida
pode se tornar. Abrir as portas douradas e não encontrar nada senão estrelas refulgindo,
e ter que admitir para Bill que “não há nenhum céu,” parece a mim uma estúpida coisa a
antecipar. Garantido que se você não abrir as portas, você nunca saberá, e isto é o céu.
Maeterlink, claro, sustenta que saber o lugar em que se está dentro é encontrar o céu,
mas aquilo não conseguirá.

Eu sinto que os dramas não deveriam nunca contar nada a você. Eu não quero
dizer que você não deveria escutar nenhuma palavra falada, ainda que isso fosse uma
grande benção, mas as coisas feitas, as ambições despertadas, não deveriam nunca ser
concluídas – elas deveriam ser sempre um mistério; e mistérios deixam de existir no
momento em que as coisas acabam; o mistério morre quando você toca a alma das coisas
ou vê a alma bem clara. Então, que maluquice estamos dizendo quando falamos sobre o
mistério dessa peça ou daquela peça, quando essas peças não são nada misteriosas, mas
ao contrário inteiramente compreensíveis. Vocês gostariam que eu fosse um pouco mais
compreensível. Se eu quisesse ser, eu deveria dizer o que disse dez anos atrás, “deem-me
um teatro”, e então vocês seriam como o cego Gloucester, a “ver intuitivamente”.

Lear: Leia.
48

Gloucester: O quê, com essa circunstância de olhos?

Lear: Oh, ei, você está aqui comigo? Sem olhos em sua cabeça, nem nenhum dinheiro em
seu bolso? Seus olhos estão numa situação pesada, seu bolso em uma leve, e
ainda assim você vê como esse mundo caminha.

Gloucester: Eu o vejo intuitivamente.

Mas eu não quero mais um teatro. Nós não precisamos mais de teatros. Nós
precisamos antes nos tornarmos senhores da arte. Deixe-nos retornar, portanto, aos
nossos estudos com toda a seriedade que nos restou depois de centenas de anos de
“fingimento”.
49

Cinderela

O desenho da página anterior é de 1901. Este é de 1904. O que estaria eu fazendo entre
essas datas, que não existem desenhos de 1902-1903 para colocar neste livro?

Eu estava desenhando em um palco, óperas e peças e masques, e havia pois menos


necessidade de traduzir minhas intenções plenas no papel. Eu tenho uma caixa cheia de
esboços e diagramas desse período no papel, mas eles não são para esse livro. Eles
deverão ter um livro próprio. Esses desenhos foram para Dido e Eneas, Acis e Galatea,
The Masque of Love, Sword and Song, The Vikings24, Muito Barulho Por Nada, e ainda um
velho amigo escocês me disse outro dia, com seu belo sotaque picante: “Craig, você só
tem que mostrar a eles o que você pode fazer no palco de um teatro, e então você terá
todo apoio de que precisa. Comece em qualquer lugar pequeno e simples,” ele disse, “um
pequeno espaço em algum lugar, e você não quererá nenhum dinheiro para fazer isso,
todo mundo trabalhará para você por nada, e você prosseguirá por vários anos, e então
todo irão apoiá-lo.” Eu contei a ele que as pessoas que trabalharam comigo nas óperas
Dido e Eneas, Acis e Galatea, e The Masque of Love todas o fizeram por nada,
aproximadamente oitenta delas, e por oito meses em cada produção. Mas isso foi quando
eu tinha trinta anos, e antes de eu entender que pedir ajuda de graça é explorar os
milionários. Todos entregaram voluntariamente seu tempo e energia à tarefa. Claro que
se poderia ainda prosseguir pedindo às pessoas a colaborar assim, mas eu fiz uma
importante descoberta desde aqueles dias. As pessoas que eu peço para trabalharem
comigo devem ter duas qualidades em particular, que são muito raras. Primeiro,
obediência; segundo, lealdade entusiástica. Essas duas qualidades elas devem todas
possuir, ou alcançar e desenvolver. Agora, fazê-las atender às tarefas em que as engajo é
o único fim das minhas exigências; mas eu não vou de modo nenhum sentar e ver essas

24
Dido e Eneias, ópera de Henry Purcell; Acis e Galateia, opera de Georg Friedrich Händel; A Mascarada do Amor, também de Purcell; For
Sword or Song, peça-musical de Robert George Legge; e Hærmændene paa Helgeland (Os Guerreiros em Helgeland) de Henrik Ibsen.
50

pessoas, que vingaram onde outras falharam, passarem ao largo e não reparar nelas. Elas
iriam, não tenho dúvida, trabalhar para mim, como esse meu amigo sugeriu, até o
reinado vir, se eu tivesse que apelar a sua lealdade e obediência. Mas uma vez tendo
encontrado essas duas qualidades nelas, elas teriam tudo o mais; e pudesse eu encontrar
dois mil trabalhadores apenas com essas duas qualidades, o teatro teria tudo o mais, e
consequentemente a nação teria o teatro. Alguém realmente deve explicar um pouco o
que se quer dizer por lealdade entusiástica e obediência, pois essas duas coisas são
pouco entendidas hoje. Como explicar melhor em uma palavra? Eu penso que a ideia
toda pode ser resumida em uma palavra “família”. Se ouve de filhos e filhas sendo
obedientes a seus pais. Alguns dizem que a obediência é a força de uma nação. Sem
dúvida ela é natural, bonita e saudável. Duas coisas são necessárias – que o pai saiba
tudo sobre a casa e os filhos não finjam saber tudo até que chegasse a sua vez de atuar
como pai, e que as filhas aprendam a desprezar gatos.

Bem, então.
51

As Velhas Escadarias de Wapping

Quando eu desenhei isto, eu estava vivendo em um pequeno estúdio em algum lugar no


meio de Londres, e odiando mesmo ter que olhar alguém, a não ser quando eu tinha
dinheiro para ir de ônibus para Hampton Court 25. Nessa época eu estava escrevendo um
tipo estranho de mimodrama, planejando seu desenvolvimento, desenhando todas as
cenas, e os movimentos; e se chamava “Fome”. Era uma coisa assustadora. Me pediram
para produzi-la em Berlim, mas naquele tempo eu tinha escapado para uma boa e
encorajadora cidade, e achei que seria um pouco injusto. Eu penso naquele mimodrama
que eu tinha bolado junto com todas aquelas desgraçadamente preguiçosas ainda que
“respeitáveis” mulheres que levavam duas mil libras em seus pescoços e ostentavam
suas roupas e pareciam bem detestáveis. Eu acho que eu não entendia que elas não
fossem tão detestáveis o quanto pareciam, mas naquela época eu as odiava mesmo
assim, tão apaixonadamente que eu as difamava ao longo de todas as páginas. Elas eram
a razão porque uma família inteira foi levada à morte no palco bem diante de seus olhos
nessa coisa tragicômica chamada “Fome”. Havia um rei naquilo, uma criatura grande e
gorda que era empurrada numa cadeira de rodas semelhante a um imenso sapo; ele era
um tipo de rei do dinheiro, locupletado por muitos jantares no Savoy. Não um rei de
verdade, é claro– uma besta de rei –, e eu recordo que sua entrada, particularmente, me
agradava. Ele era empurrado sob rodas, coroado naquele trono de inválido que parecia
um mar de travesseiros; os que o empurravam eram os principais cavalheiros da corte.
Sua evolução, era feita da seguinte maneira: primeiro quatro passos, e então todos quase
desmaiavam de cansaço – um abano – um cheirar os sais durante a pausa, silêncio, e uma
pequenina, voz gritada das profundezas dos travesseiros chamando por alívio. Então
outro corajoso esforço – quatro passos adiante e uma outra pausa com a mesma toada
repetida. Até que enfim eles alcançavam o seu destino. Não penso que devesse ter

25
Palácio na margem Norte do rio Tâmisa na região de Richmond, residência real favorita do rei Jorge II. (N. da T.)
52

qualquer coisa mais a fazer com esse drama até que eu possa mostrar a outra metade da
verdade. A fome dos pobres era posta de forma correta, mas a fome dos ricos não foi bem
trabalhada. Eu ouso dizer que é tão trágica quanto.

Ao mesmo tempo eu estava preparando um segundo mimodrama que se


chamaria “Londres”, e a imagem que se vê é um dos desenhos que eu fiz. Eu nunca
terminei o drama, mas eu lembro que ele começava em algum lugar na Pérsia ou Arábia.
Num grande saguão, inundado de luz, de modo que não se pudesse ver em que terra se
estava, um filósofo e um poeta eram descobertos meditando (assim como se medita no
Oriente – de maneira nenhuma como um estar absorto), e o poeta era o poeta de Blake
que via através de seus olhos, e o filósofo via com eles. E poeta não acreditaria em todas
as coisas que o filósofo lhe estava contando de Londres, e era retirado da Arábia, do sol, e
pousava nas Velhas Escadarias de Wapping. Ali, lhe era mostrado que Londres é o lugar
para onde todas as almas mortas dos homens são trazidas e, em alguns casos
infortunados, dispostas, seja aquela do menino de jornal ou o do engraxate, a quem se
dava algo para comerciar, alguns jornais para vender, algumas botas para lustrar, depois
mandando-o de volta aos seus assuntos. E eu recordo que todas elas chegavam em
grandes balsas pelo Tâmisa marrom, e eram arremessadas para fora como sacos de
carvão e enviadas por aqueles degraus acima, seus nomes ou números sendo gritados
por alguns espíritos infernais que permaneciam ticando-as fora em um papel. Havia uma
outra cena, e então eu deixei isso.

Nesse desenho, contudo, as duas figuras, ou melhor a primeira, parecem estar


tirando o melhor do lugar. Eu não presumo de nenhum modo que de fato seja como as
Velhas Escadarias de Wapping de hoje, mas talvez vocês relevem isso.
53

Veneza Preservada

Um dos desenhos que eu fiz para a cena onde os conspiradores se encontram em uma
pequena rua de Veneza. Eu não proporia tal cena para nenhum teatro com exceção de
um com uma forma especial. – isto querendo dizer, com todos os assentos em um piso
inclinado. Que formidável é que se deva falar de tal teatro como sendo um especial, e
cada teatro do mundo não tenha todos os seus assentos em um piso como esse! A
Alemanha aprendeu isso com Richard Wagner e tem agora, suponho, pelo menos trinta
ou quarenta desses teatros, e todo ano aparece um novo. Do que é que eu estou falando?
Ora, pelo menos dez novos teatros estão sendo construídos lá todo ano. Se vê muita coisa
nos jornais sobre navios alemães que estão sendo construídos, como se alguém
derrotasse uma nação apenas com navios. Ora, você pode derrotá-los por meio do teatro
– Eu não me refiro a dizer coisas rudes sobre eles no palco, ou a nos lisonjearmos e à
nossa coragem e aos nossos barcos no palco, mas sim a construir teatros que estejam a
frente de seu tempo ou pelo menos atualizados.

Nós estamos construindo teatros já superados há sessenta ou setenta anos. E não é


pelos navios que nós vamos perder a batalha quando o dia vier, será pelos teatros e aquelas
outras instituições antiquadas.

Pior que isso. Nós não estamos nem mesmo construindo velhos teatros. Outro dia
eu estava numa cidade-jardim que é supostamente, e experimentalmente, bastante a
frente de seu tempo. Não havia ninguém que pudesse construir um teatro para os jovens
companheiros que ali estavam trabalhando para criar um teatro, e que já vinham
trabalhando para criar isso havia dois anos. Se essa tivesse sido uma cidade-jardim
alemã – e eu acredito que os alemães estão começando a construí-las, uma das primeiras
coisas que eles teriam estabelecido como necessária, como essencial à vida do lugar,
teria sido um teatro, desenhado por um dos mais visionários jovens arquitetos, e onde
54

uma peça diferente seria encenada todas as noites – peças clássicas tanto quanto
modernas – e em que, provavelmente, mil pessoas poderiam sentar-se e assistir os mais
avançados dos nossos escritores dramáticos, diretores de palco e pintores de cenas,
como os demais, e lhes teriam concedido a oportunidade plena de ir adiante. E a coisa
extraordinária é que ninguém na Inglaterra acreditará nisso quando um inglês trouxer
notícias da Alemanha sobre a grande atividade do teatro alemão.

Eu suponho que dificilmente algum de vocês tenha lido Veneza Preservada de


Otway, mas como podem imaginar, se passa em Veneza – uma Veneza construída por
Otway, que talvez conhecesse bem pouco a respeito da cidade, e se importasse ainda
menos com isso, mas que seguiu a moda de seu tempo, e empregou Veneza como um
pano de fundo para o seu drama de paixão. Hugo von Hoffmansthal de Viena adaptou
mais ou menos livremente a obra-prima de Otway para um diretor alemão, e a mim foi
pedido em 1904 para ir a Berlim e desenhar a cenografia e os figurinos para a tragédia e
supervisionar a produção. Eu fiz isso tão bem quanto pude sob aquelas condições, e
como um indicativo das circunstâncias, eu vou lhes dar um exemplo do que eu pretendia.
Eu mostrei esse desenho, um único para a última cena, ao diretor, que antes tinha sido
um crítico literário, e tinha estudado o teatro por alguns poucos anos, portanto não
como um artista, mas como um “literato”. Ele olhou o desenho com alguma suspeição. Ele
então olhou para mim com mais suspeição, e me perguntou onde era a porta. Eu disse,
“Mas não há porta.” Eu disse, “Há uma entrada e uma saída.” Ele disse, “Mas eu não vejo
maçaneta nem fechadura. Você não pode ter uma porta sem maçaneta.” E de novo eu
repeti “Não há porta. Há um caminho para entrar e um caminho para sair.” Isto chegou
perto de o enfurecer, mas ele se transformou e tornou-se bem calmo de novo e
agradecido quando eu o informei que tinha sido copiado exatamente, linha por linha de
um velho manuscrito italiano. Deixo a cargo do leitor adivinhar se eu tinha ou não
copiado isso. Percebam que o problema é, e sempre será, que certos homens de teatro
em postos elevados não têm imaginação. Eu não queria que esse simpático e idoso
cavalheiro imaginasse uma porta, mas queria que ele por meio de sua imaginação visse
que nenhuma porta era necessária, e eu só alcancei isso quando lhe assegurei que era a
55

réplica de um original. Agora, esse bom homem foi particularmente pouco sábio ao
tornar impossível para mim considerar qualquer segunda peça com ele por conta de seu
jeito pouco imaginativo de olhar as coisas, pois em três ou quatro anos ele praticamente
perdeu o controle sobre seus patronos, que deixaram seu teatro e foram para o teatro de
oposição, que era dirigido por um amigo meu, que teve a – como se deveria chamar isso?
– o nous de fazer uso de minhas velhas ideias (assim eles disseram), e assim encher seu
teatro até abarrotá-lo26.

Tem-se de dizer essas coisas agora e sempre e é mais fácil de fazê-lo quando não
se está mais em competição com qualquer administrador ou quaisquer empreendedores
teatrais.

26
O amigo a que Gordon Craig se refere é, provavelmente, Max Reinhardt, que será mencionado diretamente em outro texto à frente, como
alguém que ser serviu livremente de suas ideias sem pedir licença.(N.da T.)
56

Hamlet

Ato I – Cena 5

Como folha de rosto para esse livro, eu tenho outro desenho para essa mesma cena de
Hamlet. Um foi feito em 1904, o outro em 1907. Mostra a vocês o que eu realmente
penso do ator e dos seus poderes. No desenho de 1904, vocês veem que eu o coloquei em
um lugar em que ele pode predominar com dificuldade. Em 1907 eu o coloquei em um
lugar que exigiria um herói para dominá-lo.

Por que pôr o ator em um teatro de Guignol?

Todo mundo o chama de boneco, e, por Roscius, se ele calha de ser um, ele deverá
ser um boneco superior. Ele deverá ser tão pequeno quanto vocês quiserem, e o lugar
deverá se impor sobre a sua pequena cabeça, e ainda assim ele deverá dominá-lo. Sua
face deve desaparecer, e nada deverá restar senão suas ações, e ainda assim ele deverá
dominá-lo.

O movimento deverá ser extraído dele, e ele deverá ser colocado numa situação
tão desesperada que nada senão uma máscara deverá restar-lhe, e ainda assim ele
deverá predominar. Mas tudo isso deverá ser feito somente com enorme autossacrifício
pelo bem do teatro. “Mas porque sacrifício?” diz alguém. Bem, se puder ser feito de
qualquer outro modo, tanto melhor, mas nunca foi feito, e parece que nunca será. “Por
que”, vocês perguntarão. Bem, quando vocês tiverem respondido todas as questões que o
poeta propõe sobre as flores nos vãos do muro vocês serão muito mais sábios do que eu
jamais pude ser, e não haverá necessidade de perguntar-me. Se não houver mistérios na
vida então a vida não tem absolutamente nenhum valor; mas toda coisa mínima é um
grande mistério, e toda coisa mínima deveria ser tratada assim.
57

Portanto, devemos nos desenvolver e dominar o mundo e aquela coisa muito mais
difícil – nós mesmos. Então nós deveremos ser mesmo atores.
58

Electra

Eu nunca assisti Electra encenada, ainda que tivesse visto a peça feita em um teatro. Eu a
vi na Alemanha. Minha impressão foi que Electra era uma senhorinha realizando uma
pequena vingança com muito gosto. Essa impressão foi criada porque não havia beleza
no espetáculo e, sem a beleza, não há Verdade. “E o que é a verdade?”, pergunta Pilatos,
brincando. E Keats respondeu a ele de uma vez por todas. Beleza é a completa, e mesmo
um toque dela aqui e ali em um espetáculo, mostrando que o atuante percebeu a
completa, é suficiente para nos revelar que ele sente como um verdadeiro artista. Se você
for capaz de mostrar que você viu a completa completamente, então você criou uma
grande obra de arte. Tudo isso não é dito para provar qualquer coisa em favor ou contra
o desenho aqui, embora talvez haja nele o mais pálido vislumbre de algo que pode ser
chamado beleza. Meus olhos não conseguem mais encontrá-la aí, ainda que seja um dos
desenhos que guardo com mais gosto. Qual realmente é a melhor definição de beleza?
Não pode ser aquela que joga o espírito e a matéria fora da harmonia! Você não pode
tomar partido: as duas coisas devem ser fundidas, antes que a beleza possa sequer se
aproximar.
59

Júlio César

Ato II – Cena 2

Entra César, em sua túnica noturna

César: Nem céu nem terra estiveram em paz esta noite;

Calpúrnia gritou três vezes em seu sono,

“Socorro, eles mataram César!” Quem está aí?

Entra um servo

Servo: Meu senhor?

César: Vá pedir aos sacerdotes que apresentem um sacrifício,

E traga-me suas opiniões sobre o que sucederá.

Servo: Eu irei, meu senhor.

(Sai.)

Entra Capúrnia

Calpúrnia: O que pretendes, César? Pensas em andar por aí?

Você não deveria se mexer fora de casa hoje.

César: César vai em frente, as coisas que me ameaçam

Só me olham pelas costas, quando veem o rosto de César,

Elas desaparecem.
60

Calpúrnia: César, eu nunca me prendi às cerimônias,

Mas agora elas me aterrorizam. Há uma em que,

Além das coisas que nós escutamos e vemos,

Dá se conta das visões mais horríveis vistas pelo vigia.

Uma leoa pariu nas ruas,

E covas bocejaram, e expulsaram seus mortos;

Guerreiros ferozes flamejando lutam sobre as nuvens,

Em colunas e esquadrões na forma exata da guerra,

Que librina sangue sobre o Capitólio;

O ruído da batalha zune no ar,

Cavalos relincham, e homens morrendo urram,

E fantasmas ganem e berram pelas ruas.

Oh, César! Essas coisas são para além de toda norma,

E eu as temo.

César: O que pode ser evitado

Cujo fim é desejado pelos poderosos deuses?

Ainda assim, César deve seguir adiante; pois essas predições

São tanto para o mundo em geral como para César.

Calpúrnia: Quando mendigos morrem cometas não surgem no céu;

Os próprios céus flamejam a morte dos príncipes

César: Covardes morrem muitas vezes antes de suas mortes,


61

O valente não experimenta a morte senão uma única vez.

De todas as maravilhas que eu ainda tenho ouvido,

Parece a mim estranhíssimo que o homem devesse temer,

Vendo a tal morte, um fim necessário,

Pois ela virá quando tiver de vir.


62

A Princesa É Roubada

Este foi um incidente em um mimodrama a ser chamado “A Vida de uma Princesa”, e esta
é uma de suas primeiras aventuras. Eu suponho que a cena serviria igualmente bem para
qualquer outra peça que fosse romântica e, portanto, eu acho muito difícil dizer qualquer
coisa sobre isso a não ser que “Aqui está.”
63

Os Degraus I

Primeira atmosfera

Eu acho que foi Maeterlinck quem apontou a nós que o drama não é somente aquela
parte da vida que diz respeito aos bons e maus sentimentos dos indivíduos, e que existe
muito drama na vida sem a colaboração de assassinatos, ciúmes, e das outras paixões
primárias. Ele então nos encaminhou até uma fonte ou interior de um bosque, ou trouxe
um curso d’água sobre nós, fez de um galo um corvo, e nos mostrou quão dramáticas
essas coisas o são. Claro, Shakespeare nos revelou tudo isso alguns séculos antes, mas faz
muito bem e não há nenhum dolo em ter isso repetido. Ainda assim eu penso que ele
deveria nos ter contado que existem dois tipos de drama, e que eles são muito
estreitamente divididos. Estes dois eu os chamaria o Drama da Fala e o Drama do
Silêncio, e acho que suas árvores, suas fontes, seus córregos, e o resto estariam sob o
título de Drama do Silêncio – o que quer dizer, dramas onde as falas se tornam algo mixo
e inadequado. Muito bem, então, se nós levarmos essa ideia mais longe, descobriremos
que existem muitas outras coisas além das obras da natureza que pertenceriam ao
Drama do Silêncio, e uma nota muito grande nesse drama é desempenhada pelo mais
nobre dos trabalhos humanos, a Arquitetura. Existe alguma coisa muito humana e
pungente para mim numa grande cidade naquela hora da noite em que não há pessoas
passando nem sons. É extremamente triste até que você ande e chegue às seis da manhã.
Então é muito excitante. Entre todos os sonhos que o arquiteto deixou sobre a terra, eu
não conheço coisa mais adorável que seus voos de degraus levando acima e abaixo, e
partindo desse sentimento sobre a arquitetura na minha arte sempre pensei como
alguém poderia dar vida (não uma voz) a esses lugares, usando-os para um fim
dramático. Quando esse desejo vinha a mim eu estava continuamente desenhando
64

dramas em que o lugar era arquitetônico e se oferecia ao meu desejo. E assim eu comecei
com um drama chamado Os Degraus.

Este é o primeiro desenho, e há três outros. Em cada desenho, eu mostro o mesmo


lugar, mas as pessoas que estão abrigadas nele pertencem a cada uma de suas diferentes
atmosferas. No primeiro é luz e alegria, e três crianças estão brincando nele como se
você visse pássaros a fazê-lo nas costas de um grande hipopótamo esparramado e
adormecido em um rio africano. O que as crianças estão fazendo eu não posso contar-
lhes, ainda que o tenha escrito em algum lugar. É simplesmente técnico, e até ser visto
não tem nenhum valor. Mas se vocês puderem ouvir, na imaginação de seus ouvidos, os
sons de passos pequeninos que os coelhos fazem, e pudessem ouvir o farfalhar de
mínimas corolas de prata, vocês teriam um relance do que eu quero dizer, e seriam
capazes de desenhar para si próprios esses estranhos e rápidos pequenos movimentos.
Agora adiante para o próximo.
65

Os Degraus II

Segunda atmosfera

Você vê que os degraus não mudaram, mas eles estão, como eles estavam, indo dormir, e
bem no alto de um amplo e liso terraço nós vemos muitas meninas e meninos pulando
ao redor como vaga-lumes. E no primeiro plano, e na maior distância deles, eu fiz a terra
responder aos seus movimentos.

A terra é feita para dançar.


66

Os Degraus III

Terceira atmosfera

Alguma coisa um pouco mais velha apareceu sobre os degraus. É muito tarde da noite
por ali. O movimento começa com a passagem de uma única figura – um homem. Ele
começa a decifrar seu caminho pela trilha deixada sobre o chão. Ele falha em atingir o
centro. Outra figura aparece no alto da escada – uma mulher. Ele não se move mais, e ela
desce os degraus devagar para segui-lo. Não parece muito claro a mim se ela vai jamais
se juntar a ele, mas quando desenhava isso eu cheguei a esperar que ela o pudesse.
Juntos eles poderão uma vez mais arriscar-se a decifrar a trilha. Mas ainda que o homem
e a mulher me interessem até um certo ponto, são os degraus em que se movem que me
movem. Eu acredito que algum dia eu deva me aproximar dos segredos dessas coisas, e
possa contar a vocês que é muito excitante abordar tais mistérios. Se eles estivessem
mortos, quão maçantes eles seriam, mas eles estão vibrando com uma grande vida, mais
até do que aquela do homem – do que aquela da mulher.
67

Os Degraus IV

Quarta atmosfera

Os degraus dessa vez tem que sustentar mais peso. É noite plena e, só pra começar, eu
quero que você cubra com sua mão as marcas escavadas no chão e feche seus olhos para
as fontes curvas no alto da escada. Imagine também a figura que está recostada lá,
disposta do outro lado dos degraus – ou seja, na sombra. Ele está sobrecarregado com
algum sofrimento desnecessário, pois sofrimento é sempre desnecessário, e você o vê
movendo-se cá e acolá sobre essa via expressa do mundo. Logo ele passa para a posição
em que eu o tinha colocado. Quando ele chega ali, sua cabeça está afundada sobre seu
peito, e ele permanece imóvel.

Então as coisas começam a mover-se; no início sempre muito devagar e depois


com crescente rapidez. Acima dele você vê o pico de uma fonte emergindo como a lua
nascente quando está pesada no outono. Sobe, sobe cada vez mais, às vezes num grande
espasmo, mas amiúde regularmente. Então uma segunda fonte aparece. Juntas elas
vertem suas naturezas em silêncio. Quando esses jatos tiverem alcançado sua máxima
altura, o último movimento começa. Sobre o solo é delineado em luz quente as formas
escavadas de duas grandes janelas, e no centro de uma delas está a sombra de um
homem e de uma mulher. A figura nos degraus levanta sua cabeça. O drama está
concluído.
68

Estudo Para Movimento

Aqui nós vemos um homem batalhando em meio a uma tempestade de neve, os


movimentos de ambos, tempestade e homem parecendo verdadeiros. Agora eu especulo
o quanto seria melhor se nós não tivéssemos nenhuma tempestade visualizada, mas
apenas o homem, fazendo seus gestos simbólicos, que deveriam sugerir a nós um
homem lutando contra os elementos. De algum modo, eu suponho que assim teria sido
melhor. Contudo, ainda tenho algumas dúvidas, pois, seguindo aquela linha de
argumentação em sua sequência lógica, então, não estaria essa alternativa ainda mais
próxima da arte se não tivéssemos nenhum homem, mas apenas os movimentos de
algum material intangível, que sugeriria os movimentos que a alma do homem faz
batalhando contra a alma da natureza? Talvez teria sido ainda melhor não ter mesmo
nada. Se calhar de ser isso, então a arte, estando quase em seu último suspiro, hoje nos
parece mais próxima da perfeição do que se estivemos mesmo nos dias dos grandes
designers simbólicos da Índia27. Mas se o que temos é o homem real desempenhando
gestos reais, porque não ter a cena real transcorrendo pela sua pantomima real?

Eu não sei se alguém está realmente muito interessado nessas questões, mas
ninguém parece estar fazendo qualquer esforço em respondê-las, de um modo ou de
outro. Vamos então virar a página.

27
Opta-se por não traduzir designer nesse caso, pois parece impossível uma tradução que deixe mais claro o sentido proposto por Craig, do
que o uso do termo em inglês, hoje praticado no português vernáculo, o poderia deixar.(N. da T.)
69

César e Cleópatra

Ainda que eu realmente tenha desenhado essa e as duas cenas seguintes para mim
mesmo, seria mais precisamente dito que eu as desenhei para o professor Reinhardt.
Quantas cenas não desenhei tanto para mim como para o professor Reinhardt seria
difícil dizer, mas em 1905, ele me pediu pela quinta ou sexta vez para encenar uma peça
pra ele, e claro, no momento em que alguém pede a outrem para encenar uma peça essa
pessoa fica excitada. Meu filho me pede para encenar peças tanto agora como antes, e
isso realmente me excita, da mesma forma fiquei realmente excitado com a sugestão do
professor Reinhardt. Comecei a trabalhar, e em alguns dias tinha posto em cores oito ou
dez projetos para a encenação. Lembro de também ter feito um modelo para a Primeira
Cena. Um sujeito faz essas coisas quando é jovem, quer dizer, na segunda-feira ou na
terça – mas quando ele fica mais velho, na quarta, ele bobamente para de fazer essas
coisas. Por exemplo, alguém sugeriu outro dia em Londres que eu deveria produzir esta
e aquela peça. Dessa vez, em vez de correr afobado para o papel e lápis, e criar algo que
pudesse me interessar depois, eu disse a mim mesmo: “Essas pessoas não são sérias. A
coisa não acontecerá nunca.” E assim eu soneguei a mim mesmo alguns dias de excitação
e alguns bons desenhos. Elas não são sérias, essas pessoas que convidam um artista a
começar um trabalho e então se aterrorizam com seu próprio pedido, e é por tudo isso
que eu aconselho todos os jovens a serem duros. Os contratos são quase sempre sem
valor no mundo teatral e um convite para colaborar em um trabalho no teatro também
vale muito pouco, mas valiosa é a esperança que é injetada em você quando alguma
pessoa “importante” diz: “Você fará isso para mim, Herr Jones, ou señor Smith?” Claro
que instantaneamente você diz pra si mesmo com o coração disparado (pois o coração
dos artistas é sempre jovem e propriamente tolo): “Isto é maravilhoso; todos os meus
sonhos como um artista se realizarão. Nós devemos todos nós logo estar voando.” E você
se manda e começa a fazer dez desenhos. Isto é na segunda, quando você é jovem, e na
70

quarta você se torna mais cauteloso porque você se dá conta que o mundo é velho, e uma
metade dele um lugar realmente muito horroroso – mais horroroso até do que você
mesmo o é. Extraordinário!
71

César e Cleópatra

Ato I – Cena 1

Penso que dificilmente o sr. Bernard Shaw gostará desse desenho, mas essa é uma falha
dele. Ele deveria ter desenhado a cena para nós. Ele escreveu a peça, ele também
escreveu todas as rubricas, então por que ele se omitiu de desenhar a cena e os
figurinos? Se você se imiscui com as ferramentas de um comércio, é melhor dominá-las –
e para um dramaturgo acrescentar indicações cênicas a sua peça escrita e se omitir de
mostrar como aquelas indicações devem ser levadas a cabo, é muito mesquinho. Nos
dramas grego e elisabetano você não encontrará indicações cênicas.

Me pediram para a encenar essa peça em Berlim, e a única coisa que eu podia
fazer era esquecer de ler as rubricas do autor, de modo que me assegurasse de alcançar o
significado da peça. E à medida que lia as palavras, me dava a vontade de omiti-las
também, pois a estrutura da cena me parecia excelente. Quando eu conseguir tirar as
palavras de minha cabeça eu olhei para ver o que tinha sobrado da Primeira Cena, e
descobri ser essa Primeira Cena uma grande ratoeira em que figuras corriam e
debandavam pra todos os lados como um monte de animais barulhentos, e uma única
figura real destacada em uma máscara tragicômica – Ftatateeta (sic). Portanto você não
verá em meu desenho nenhum outro indivíduo que possa reconhecer, e só a figura no
centro concentra a atenção.
72

César e Cleópatra

Ato I – Cena 3

Se você tiver lido a peça, você saberá que essa é a cena que culmina com César e
Cleópatra sentados lado a lado no trono, e ela se volta para ele e pede que ele aponte
para ela onde está César. Eu ponho as barras em volta de tudo para manter fora a turba e
os soldados, de modo que nós temos César e Cleópatra bem solitários na cena. E ainda há
atores que dizem que eu nunca penso nos atores e atrizes protagonistas. Eles seriam
mais precisos se dissessem que eu às vezes deixo meus olhos vagarem para longe do
centro do palco. O que os atores parecem esquecer é isso, que as peças não são feitas
inteiramente de atores e atrizes protagonistas, e que, ainda que você os tenha, como
nesse caso, no centro, e muito no centro, há outras vezes em que é essencial para o
drama que os atores e atrizes protagonistas devam estar em um canto ou debaixo de um
extintor de incêndio. Isto é o que atores “estrelas” não admitirão nunca. Chegarão os
tempos em que eles estarão absolutamente extintos, quando parecerão ridículos, e não
apenas ridículos, mas repulsivos e inspirando piedade; mas o ator ou atriz protagonista
sempre quer ser admirado e centralizar. Ele quer ser amado o tempo todo, do primeiro
ao último momento, mas ele falha em alcançar o seu propósito exatamente porque
esquece que amor não é uma coisa feita de um único sentimento, sendo necessariamente
feita de todos os sentimentos. Portanto, o ator protagonista não é realmente amado no
palco. Por exemplo, em Macbeth você nunca realmente detesta o homem, e ainda assim é
necessário detestar Macbeth antes que você possa entendê-lo plenamente. Você nunca
acha que ele é ridículo – tão ridículo a ponto de você sentir vergonha de estar ali sentado
no seu assento; e, no entanto, se o ator fosse sério, ainda que apenas em seu próprio
trabalho, deixando de lado o drama como um todo e prevenindo-se da verdade de que o
73

um ator não deve fazer apelos pessoais, se ele fosse assim sério, então ele certamente
faria como eu digo, e provocaria todos os sentimentos na plateia, tanto contra ele como a
favor dele. Ele os possui desde começo – ele não tem medo de vir a perdê-los. Muito bem,
então. Jogue com eles. Arrisque tudo com eles. Sim, você diz, e esvazia o teatro deles. De
jeito nenhum. Ao longo de todos os séculos passados o teatro nunca foi capaz de ser
esvaziado. A Igreja tentou esvaziar o teatro, o Estado tentou esvaziar o teatro, tudo foi
tentado, e tudo falhou. Por que, então, todo esse absurdo que as pessoas falam, a respeito
do perigo de dirigir um teatro de forma exitosa, e especialmente o perigo de ser um
artista no teatro? Giovanni Grasso esvaziou o teatro? Tomaso Salvini, Irving, Talma,
Andreini e Gherardi esvaziaram os teatros?

....................

Eu sinto muito que não falei sobre este desenho, mas você vê que no momento em
que eu penso a cena eu começo a pensar sobre o ator.
74

César e Cleópatra

Ato I – Cena 2

De maneira nenhuma se parece com a Esfinge, como você provavelmente sabe, mas não
é distinta da esfinge de Bernard Shaw. Como eu disse em outro livro, quando o diretor se
põe a trabalhar para desenhar uma cena, ele age como intérprete, seguindo a liderança
do poeta ou do dramaturgo; e esta imagem é um bom exemplo do que eu quero dizer. Eu
conheço alguma coisa das esculturas do Egito, e isto eu sei – que elas são leves no tom,
bem recortadas e tão delineadas na luz da lua como o são na luz do sol. Trata-se da mais
nobre de todas as artes. Essas criações são tão nobres que eu nunca as traria para um
palco como elas são. Como fantasmas nobres, eles deveriam ser invisíveis. Porém, aqui
havia o problema de colocar em cena uma Esfinge Socialista e eu o suprimi em menos de
trinta minutos. Em vez das linhas delineadas e precisas, virtuosas em cada uma delas, a
Esfinge Socialista deve ser manchada, incansável, ameaçadora. Ela dificilmente estaria
fora do seu palco tigre – alguém poderia quase escrever seu “palco palco-tigre.”

Esse pequeno gato, que parece tão grande e intimidador no Primeiro Ato da peça,
não estará fora de lugar rastejando para dentro e para fora das ranhuras desse monstro.
Eu só tenho um pedido a fazer. Se você chegar a ir ao Egito, leve esse desenho com você e
compare esse monstro com o deus nos pés das pirâmides. Então eu deverei ter
“satisfação garantida” – você nunca olhará para o meu desenho de novo – não, nem
pensará em “César e Cleópatra”.
75

Dido e Enéas

Este foi desenhado para a ópera, seis anos depois de eu já a ter uma vez encenado.
Refere-se à cena que precede a última das cenas, em que há um coro de marinheiros –
“Vamos embora, caros marinheiros.” Quando eu apresentei a ópera em 1900, com meu
amigo Martin Shaw, eu tinha apenas um pano de fundo azul-marinho que tornou-se
terrivelmente popular desde então. Luzes de cima, fixadas em uma “ponte” que
construímos – um proscenium cinza, tal como muitos dos teatros alemães têm usado
desde 1904 – um esquema de cor – muito pouco movimento. Esse mínimo movimento é
uma característica do temperamento inglês e, sendo incompreendido por outras nações,
é evitado por alemães, russos e franceses.
76

Desenho Para o Hall de Entrada de um Teatro

Um desses dias nós deveremos nos livrar da pátina dourada e do rococó, e das
conveniências inconvenientes dos prédios do teatro moderno. Devemos, porém, antes,
argumentar sobre isso um bom tanto e devemos ouvir um monte de absurdos sobre o
que o público quer, e como quer só coisas estúpidas, coisas baratas, e coisas
desconfortáveis, e isso prosseguirá por um expressivo número de anos, mas devemos
retornar para exatamente o que eu digo e o que muitos de nós sentem, e nós devemos ter
nossos belos teatros, apenas que serão muito mais belos do que qualquer um de nós
poderia imaginar. Mas é bem provável que esse desenho seja usado antes que se decida
por um mais belo. Aqui temos uma escada que leva do primeiro hall do teatro até um
foyer aberto, e depois disso pelas portas detrás para dentro do auditório. Desempenharia
igualmente bem para um teatro ao ar livre ou um teatro fechado, e eu espero que as
senhoras concordarão comigo que eu o fiz habitável para um bom número de pessoas
belamente vestidas, para serem vistas ao mesmo tempo. Eu posso imaginá-las subindo
essas escadas, primeiro mostrando o lado esquerdo do vestido, então mostrando o
traseiro, e depois o lado direito da roupa, finalmente poderiam girar, e poderíamos ver a
parte frontal, e de novo a traseira, a esquerda, e daí elas desapareceriam. E a medida que
subissem os degraus elas seriam colocadas contra algo que seria só um pouco menos
belo do que elas fossem, algumas estátuas douradas ou de mármore de algum mestre, e
essas pequenas estátuas de ouro ou mármore marcariam os diferentes estágios da sua
progressão enquanto subissem ou descessem, e finalmente, aquela que desejasse
parecer a mais bela de todas se voltaria, chegando ao topo da escada, onde duas figuram
formariam um arco, num desejado enquadramento da beleza. Senhoras, eu estou
completamente a vosso serviço. Se apenas aquelas pessoas com milhares de libras, que
não sabem o que fazer com elas, as pusessem a serviço da arte, nós teríamos o seu teatro
pronto para uso em menos de um ano, e nesse teatro, antes que vocês entrassem no
77

espetáculo, de onde talvez pudessem também extrair algum prazer – vocês seriam
capazes de ensinar muitíssimo aos idiotas e esnobes, e àqueles que vão ao teatro para
beber uísque e pisar nos dedos das pessoas, pois vocês teriam um espaço de recepção
em que poderiam mostrar, por sua graça, o que é ser a mais bela nação do mundo.
78

Um Estudo Pelo Movimento

Pode-se entender que as pessoas têm alguma coisa a ver com o movimento e que a lua
tem alguma coisa a ver com o movimento. O que os degraus têm a ver com o movimento,
a não ser enquanto receptáculo de moventes, não é tão claro para mim em um dia quanto
o é em um outro dia, e aqui me sinto inclinado a falar exatamente contra esses degraus. O
desenho tem, me parece, algum sentimento de movimento nele, mas quando eu chego a
pensar no modo como algumas escolas de dança podem provavelmente atochar um
grande lance de degraus duros no fundo de seus salões e fazer suas pobres meninas
correrem pra cima e pra baixo deles, posando como as terríveis coisas de que nós
queremos escapar, então eu amaldiçoo qualquer coisa tão material como degraus em
conexão com movimento, e me arrependo de já ter, alguma vez, feito qualquer registro
sugerindo uma conexão entre as duas coisas.
79

Cupido e Psique

Como posso eu falar sobre Cupido ou Psique? Só há um homem desde sempre que falou
bem na língua inglesa sobre esses dois e isto é o que ele disse, e foi o que ele disse que
fez este desenho:

Em uma certa cidade, viveram um rei e uma rainha que tinham três filhas que excediam de tão belas. A
beleza das duas mais velhas, embora agradável aos olhos, não ultrapassava ainda a medida da
admiração humana, enquanto tal era a graça amorosa da mais nova que a fala dos homens era pobre
demais para fazer jus àquele valor e não podia expressá-lo de modo nenhum. Muitos dos cidadãos e dos
estrangeiros que se reuniram para admirá-la, movidos pela fama daquela excelsa visão, confundidos
pela beleza inigualável, só conseguiam, ao vê-la, beijar as pontas dos dedos de suas mãos direitas, como
se na adoração da própria deusa Vênus. E logo um rumor atravessou todo o país de que ela, nascida do
azul profundo, contendo-se em sua divina dignidade, estava mesmo assim vivendo entre homens, ou
que, por uma inédita germinação das estrelas, agora não era o mar, mas a terra, que tinha feito emergir
uma nova Vênus, aquinhoada com a flor da virgindade.

Essa crença, como a fama da amorosa noiva, espalhou-se diariamente para muito longe até terras
distantes, a ponto de muita gente ter se reunido para mirar aquele glorioso modelo da época. Homens já
não singravam para Pafos, para Cnido ou Citera para presenciar a deusa Vênus, suas trilhas sagradas
eram negligenciadas, suas imagens permaneciam sem coroas, as cinzas frias eram deixadas para
desfigurar seus altares abandonados. Era a uma virgem que as preces dos homens eram oferecidas. 28

28
Gordon Craig cita aqui a tradução do ensaísta e crítico literário Walter Pater (1839-1894) para a história que se encontra em O Asno de
Ouro, de Lúcio Apuleio. (N. da E.)
80

Macbeth e Rosmersholm

Este desenho e o seguinte eu os comentarei juntos. Eles são para dois tipos bem opostos
de drama, Shakespeare e Ibsen. O primeiro é para a cena do sonambulismo em Macbeth e
o segundo para o quarto na Casa de Rosmer. O primeiro é para a alta tragédia clássica, e o
segundo para o drama moderno doméstico. Em cada caso, a catástrofe atinge toda uma
casa, as casas de Macbeth e Rosmer, e em cada caso o autor faz com que uma mulher seja
a criadora ativa da catástrofe. Mas pode alguém me explicar como acontece de a
grandeza de Ibsen, seu mistério e sua força, serem eclipsadas pelo mistério e força
maiores de Shakespeare? Julgado por comparação com qualquer autor moderno, Ibsen
me parece ser um gigante e, então, julgado ao lado de Shakespeare, onde é que ele
desaparece? Ele desaparece dentro de sua própria e particular pequena casa e
Shakespeare está ainda velejando livremente sobre as montanhas.

Qual é, então, a extraordinária diferença entre Shakespeare e Ibsen? Alguns


séculos não podem ser a explicação. Eu entendo que isso ocorre porque Shakespeare era
um artista e Ibsen não é – que Ibsen é um homem extraordinário, e que é um dos
homens mais extraordinários do século XIX, que ele está resolvendo problemas que
outras pessoas não podem ou não poderão resolver, que ele está propondo questões que
nenhuma outra pessoa jamais propôs, e que todo o tempo ele permanece
comparativamente alguém sem importância porque ele não é um artista. De certo modo,
Ibsen parece apavorado de ser uma pessoa comum, ordinária, o que nós chamamos de
simples. E sente-se isso quando se o compara a Shakespeare, uma coisa que as pessoas
dizem não deveríamos nunca fazer. Mas eu não estou tão certo disso; de fato, eu penso
que tal comparação é muito necessária e muito boa. A não ser que você fixe um padrão
para a literatura dramática e compare os dramas com esse padrão, o mundo estaria
aceitando a décima ordem em vez da primeira. E a primeira ordem não é Shakespeare,
mas Ésquilo. Ésquilo, porém, se recusa a entrar em um teatro fechado, com luz artificial,
81

e se recusa a ser inteiramente compreensível a qualquer um senão aos gregos – aqueles


gregos que estão mortos. Mas isso nós ingleses compreendemos muito bem: ocorre que
nosso padrão mais alto de drama é aquela arte que mistura o literário e o teatral, dada a
nós por Shakespeare como drama. Sentindo isso, suponho, eu nunca ousei ainda
desenhar uma cena para Ésquilo, ainda que eu tenha lido sua trilogia, os céus sabem
quantas vezes. Eles as encenam, hoje em dia, em teatros fechados, e se estrebucham e
gesticulam e mesmo se arriscam foneticamente a dizer suas falas em grego. Por que não
deixar o velho monumento em paz? Ele permanece lá desmoronando; melhor não tocá-
lo, melhor construir por fora, tomando-o como um padrão.
82

Um Palácio, um Casebre e uma Escadaria

Eu ouso dizer que, ao olhar para este e vários dos outros desenhos, vocês podem
imaginar que em sua forma original eles são cinza, mas não são. Por exemplo, este é um
desenho em azul, amarelo, branco, vermelho, e preto. Eu digo isso porque o cinza é bem
depressivo, e deprimir não é meu desejo.

Eu fui perguntado sobre como eu deveria desenhar uma cena contendo sugestões
sobre a moradia das classes altas e baixas, e também colocar na cena um nicho neutro
onde as duas classes sempre se encontram. Assim eu desenhei, de um lado, um palácio,
de que a única coisa palaciana a respeito era sua forma vertical e severa, e sua cor
dourada, e do outro lado um casebre, com suas pequenas janelas e sombras, e seu
gerânio na janela; e entre os dois vinha uma escadaria, como o nicho mágico onde o
mundo todo encontra-se praticamente em harmonia. Não é pensado para nenhuma
trama ou peça em particular, mas pode-se imaginar que talvez, algum dia, um escritor ou
mesmo um encenador vá planejar uma série de dramas lidando com essas duas classes,
em que as vejamos separadas e, então, continuamente unidas. Quem sabe possa fazê-la
com o devido cuidado eu mesmo, isso se alguém despreocupadamente e de forma
descuidada não aproveitar a ideia e, com um tapa nas costas, me disser jovialmente que
eu sou fácil de ser roubado.
83

Telas

O espetáculo possui, de fato, um apelo emocional por si próprio, mas de todas as partes, é a menos
artística, e a menos conectada com a arte da poesia. Pois o poder da tragédia, podemos estar certos, é
sentido mesmo sem representação e sem atores. Além disso, a produção de efeitos espetaculares
depende mais da arte do maquinista da cena do que do poeta.

Aristóteles, Poética, VI. 1.19.

Ao ler isso, deve-se recordar que Aristóteles é um homem que abre o seu discurso
afirmando que toda arte é Imitação. Isso, claro, é um exagero. É algo tão exagerado que
se poderia dizer que a arte não tem nada a ver com Imitação. Assim como ele exagerou
dessa maneira, do mesmo modo ele exagerou aqui, quando falou sobre o espetáculo. É
difícil dizer de Aristóteles que ele é um mau escritor, mas escritores que desejam ser
considerados grandes devem ser cuidadosos para encontrar a palavra certa 29. Aristóteles
aqui deseja falar sobre a cena em que a tragédia ou drama é representado. Porque, então,
ele usa a palavra “espetáculo”? Porque, então, ele também vai adiante e fala de efeitos
espetaculares? Pois isso nos dá a ideia de que ele está falando sobre algo de senso
comum e vulgar, quando sabemos que a cena pode ser bela, não apenas efetiva – bela. O
que remanesce da cena de Taormina é belo. Eu suponho que Aristóteles está falando de
alguma forma degenerada de espetáculo, mas por que ele escolhe um mau exemplo da
arte cênica quando ele quer a comparar com a bela arte poética? É possível que
Aristóteles tivesse sido injusto? Ele quase estraga tudo. Se ele tivesse falado de
espetáculo como um inimigo da arte da poesia, e da poesia como uma inimiga da arte do
espetáculo, ele teria feito melhor, mas colocar a arte da poesia em um posto elevado e
dizer que aquele camarada vulgar, o espetáculo, não tem nada a ver com uma
personalidade tão eminente é tanto ridículo como um mal julgamento.
29
Talvez seja aos tradutores de Aristóteles que se deva culpar.
84

O que tudo isso tem a ver com a imagem aqui colocada, eu não sei; mas, assim
como deixei todas as figuras fora da cena, e como nada está acontecendo lá, assim como
nenhuma palavra está sendo dita, suponho que estivesse pretendo, ao ter removido o
espetáculo ou a cena dos domínios da poesia, prevenir qualquer contaminação futura
para a arte da poesia.

Eu recordo. Assim como eu estava esquecendo. Inimigos vão sempre fazer você
esquecer os amigos por um momento.

Meu amigo W. B. Yeats diz que a cena não é de nenhum modo desconexa da arte
da poesia. O que resta fazer pelo pobre palco, quando Aristóteles ameaça e Yeats acena
favoravelmente? Houve jamais tal espetáculo como o que este pobre palco apresentou
por séculos? Na verdade, eu passei por Londres e não encontrei nenhuma mulher tão
pobre e tão rebaixada quanto ela está. E por essa razão eu pretendo fazer tudo que puder
para colocá-la acima de qualquer outra.
85

Macbeth

Ato I – Cena 6

Diante do castelo; oboés; criados de Macbeth esperando

Entram Duncan, Malcolm, Donalbain, Banquo, Lennox, Macduff, Ross, Angus e


Assistentes

Duncan: Esse castelo está em um sítio agradável;

O ar oferece-se leve e doce aos nossos sentidos finos.

Banquo: Essa convidada do verão,

A andorinha moradora de templos, o elege,

Por seu abrigo amado, já que o hálito dos céus

Cheira bem à madeira aqui: sem gárgula, friso,

Saliência, nem torrinha a favor, mas esse pássaro,

Que fez sua cama entranhada e ninho para as crias:

Onde elas principalmente comem e habitam, observei

Que o ar é delicado

Entra Lady Macbeth

Duncan: Vejam, vejam, nossa honorável anfitriã! –

O amor que nos segue, às vezes é nosso problema

Que ainda nos é grato como amor. Sobre isso lhes ensino,
86

Como lançar a Deus nosso perdão por não sanar vossa dor

E nos tornar mais agradecidos por vosso problema.

Lady Macbeth: Todo nosso serviço,

Em qualquer caso duas vezes feito, e então refeito em dobro,

Será coisa pobre e irrisória a sustentarmos

Contra aquelas honras profundas e amplas

Com que vossa majestade preenche nossa casa,

E pelas mais antigas, ou recentes honrarias

Lançadas, por tantas só nos resta servir como ermitões.

Duncan: Onde está o Barão de Cawdor?

Nós o perseguimos de perto, e tínhamos a missão de ser

Seus seguidores, mas ele cavalga bem,

E seu grande amor (afiado como suas esporas), catapultou-o

A sua casa antes de nós. Justa e nobre anfitriã,

Nós somos vossos hóspedes essa noite.

Lady Macbeth: Servos seus sempre

Tenha a nós próprios e ao que é nosso, em conta,

Para dispô-lo em favor do prazer de sua majestade,

Inclusive porque o que recolhes já é mesmo seu.

Duncan: Dê-me sua mão.

Conduza-me a meu anfitrião, nós o amamos intensamente,


87

E devemos reafirmar nossas Graças diante dele.

Tome a frente, anfitriã.

[Saem
88

Macbeth

Ato II – Cena I

Macbeth: Vá chamar sua senhora, quando minha bebida estiver pronta,

Ela vai tocar o sino. Vai-te para a cama

(Sai a criada)

É isso que vejo diante de mim uma adaga,

O cabo voltado para minha mão? Venha, deixe-me segurar-te.

Eu não te tenho, e ainda assim eu te vejo.

Tu não és, visão fatal, sensível

Sentir é como ver? Ou tu não és mais que

Uma adaga da mente, uma criação falsa,

Advinda do cérebro oprimido pela febre?

Eu te vejo ainda, na forma e palpável

Como esta que agora eu apanho.

Tu me arregimentas para o caminho que seguia;

E tal instrumento estava para usar.

Olhos meus são feitos de tolos pelos outros sentidos,

Ou valem mais que todo o resto; eu te vejo ainda;


89

E na tua lâmina e cabo odiosas gotas de sangue,

Que não estavam lá antes. – Não existe tal coisa:

É o negócio sangrento, que informa

Assim para os olhos meus. – Agora em metade do mundo

A natureza parece morta, e sonhos tenebrosos abusam

Da cortina do sono dormido; a feitiçaria celebra

Pálidas oferendas a Hécate; e o fenecido assassino,

Alertado por seu sentinela, o lobo,

Cujo uivo é sua vigilância, e com seu passo sorrateiro,

E os avanços arrebatados de Tarquínio, em direção ao alvo

Move-se como um fantasma. - Tu, firme e assentada terra,

Não ouça meus passos, nem o modo como andam, por medo

Que tuas próprias pedras mexeriquem sobre minha andança,

E roubem este horror presente do aqui e agora,

Que bem combina com ele. Enquanto eu ameaço, ele vive,

Palavras ao calor dos feitos muito frio à respiração trazem.

(um sino soa)

Eu vou e está decidido, o sino me convida.

Não o ouça, Duncan, pois é dobre funéreo,

Que te urge a ir para o céu, ou para o inferno.

[Sai.
90

Macbeth

Em sua Conversações Com Eckerman30, Goethe uma vez falou como segue:

Em geral a cenografia deverá ser um fundo de cor favorável aos figurinos que se movem diante
dele, como o cenário de Beuther, que sempre tende mais ou menos a uma cor pastel, e deixa os
materiais das roupas se destacarem em todo o seu frescor.

Se o pintor de cena é obrigado a buscar um tom indefinido e bem vívido, se é necessário que
pinte um espaço vermelho ou amarelo, ou uma tenda branca, ou um jardim verde, os atores deverão
nesse caso ter a precaução de evitarem essas cores em seus figurinos. Se um ator com um casaco
vermelho ou calças verdes atravessa um quarto vermelho, a parte superior de seu corpo desaparece, e
apenas se vê suas pernas; se ele anda com o mesmo figurino em um jardim verde, são suas pernas que
desaparecem – só a parte superior de seu corpo permanece. Eu vi um ator com um casaco branco e
calças muito escuras que assim tinha uma sua metade desaparecida quando se colocava em frente a uma
tenda branca ou contra um fundo escuro. E mesmo quando o pintor de cena representa um quarto
vermelho ou amarelo, ou grama, ele deverá sempre manter suas tintas esmaecidas e aéreas, a ponto que
os costumes possam harmonizar-se com elas e produzir seus efeitos.

Essa é uma lição, uma pequena aula de Goethe, e deveria ser apreendida
inteiramente, e deveria ser testada no palco e seu efeito percebido. Obviamente, vê-se
que é uma coisa sensata colocar um figurino branco contra um fundo escuro e um
figurino escuro contra um fundo luminoso. Isso faz a figura sobressair, mas o que você
deveria fazer quando quisesse que a figura se mesclasse na cena, senão sumisse na cena?
Macbeth, perambulando sem rumo em seu castelo durante a noite parece ser parte de
sua habitação; e eu lembro que quando [Henry] Irving encarnou o papel ele estava
vestido com um figurino quase da mesma cor das paredes. Ainda que Irving tenha agido
contrário ao conselho de Goethe, Irving estava certo. Na verdade, existem muitos
30
Gespräche mit Goethe (1836; segunda edição aumentada, 1848) é uma obra de Johann Peter Eckermann (1792-1854), na qual ele
relembra as conversas que teve com Goethe ao longo da última década de vida do grande escritor alemão de quem era secretário. Sua
tradução resumida para o inglês, por Margaret Fuller, em 1838, teve grande sucesso, o que levou a novas traduções, e muitas distorções, a
ponto de se inverter a ordem das coisas, alterando-se o para Conversations with Eckermann e atribuindo sua autoria a Goethe. (N. da E.)
91

mestres de quem você pode aprender, todos eles estando certos, e todos eles se
contradizendo entre si. Essa é uma lição para que não sejamos muito presunçosos, e a
melhor coisa a se fiar em tal caso é no próprio instinto, garantindo-se, ao mesmo tempo,
que você saiba tudo que pode ser sabido. O conhecimento não pode prejudicá-lo nem
tornar seu instinto menos afiado. O conhecimento é o vero alimento para o instinto.

Eu gostaria que tivesse mais do que migalhas para oferecer a você nessa mesa,
mas, no máximo, eu não posso achar uma cenografia muito melhor do que um pão seco.
92

Macbeth

Ato I – Cena I

Um espaço aberto. Trovões e relâmpagos

Entram três bruxas

Bruxa 1: Quando devemos nós três nos encontrar de novo

Com trovões, relâmpagos ou no dilúvio?

Bruxa 2: Quando o zum-zum-zum for terminado,

Quando a batalha tiver perdido e vencido.

Bruxa 3: Isto será antes do pôr do sol.

Bruxa 1: Em que lugar?

Bruxa 2: Lá no pântano.

Bruxa 3: Ali para encontrar com Macbeth.

Bruxa 1: Eu irei, Graymalkin.

Todas: Paddock chama; depressa! –

Belo é horror, e horror é belo

Sumidas no enevoado e fétido ar.

[Bruxas somem.
93

Macbeth

Ato I – Cena I

Ainda que este desenho e o precedente sejam para a mesma cena, e sejam praticamente
a mesma ideia, os dois diferem em algumas particularidades. Quando eu mostrei o
desenho para um ator-administrador que deverá permanecer não nomeado 31, ele o
olhou como se eu tivesse lhe mostrado um fantasma e me perguntou do que se tratava.
Eu contei a ele que era para a Primeira Cena, Primeiro Ato de “Macbeth,” e que três
bruxas estariam no sopé do pilar, e assim por diante. Eu não disse a ele que o pilar
vertical era para dar aos espectadores a mesma sensação na abertura da peça que
Beethoven oferece aos ouvintes na abertura de sua Sinfonia Eroica. Pois ele queria algo
mais objetivo e direto, e que logo se apresentasse. “Você se incomodaria de me contar”,
ele disse, “O que isto pretende representar?” Claro que uma pergunta tão cortês merece
uma resposta cortês, então eu repliquei que minha razão plena para colocar o pilar ali
era que deveria evocar a pedra em Scone em que os reis da Escócia eram coroados 32.
“Muito interessante”, ele respondeu. Agora se eu tivesse sido incapaz de fornecer-lhe
algum fato histórico para sustentar um desenho puramente imaginativo e fantástico,
feito para uma cena puramente imaginativa e fantástica, ele teria ficado insatisfeito.
Estou acostumando com esse tipo de coisa e por isso estou em geral sempre a postos
com uma réplica estúpida para uma pergunta estúpida. Mas um jovem de vinte e um
anos teria tido uma sorte bem mais difícil se esse homem celebrado tivesse implorado a
ele para dar rima e razão ao que nunca tinha tido a intenção de ter rima e razão. Para ser
bem justo com esse ator administrador, eu devo dizer que ele não é o único. Existe um
31
Para evitar mal entendido, já que eu deverei ser suspeito de sempre querer evocar um certo celebrado ator-administrador, é melhor
afirmar aqui que não estou aludindo a sir Herbert Beerbohm Tree.
32
A referida pedra situada na antiga localidade escocesa é chama de Stone of Destiny, a “pedra do destino”. (N.da E.)
94

grande número de pessoas como ele, e um deles eu cruzei em Berlim. Vocês podem ver o
que ele me perguntou na página XX, quando estava encenando “Veneza Preservada”
naquela cidade.
95

Macbeth

Quando eu exibi este desenho na Leicester Galleries, um jornal de teatro falou dele como
“um desenho dedicado – ironicamente eu presumo – a Alexandre Dumas père”, e eu
fiquei especulando por um ano inteiro como alguém podia ver ironia em minha
dedicatória. Esta cena, ainda que possa ser descoberto algum palco capaz de sustentá-la
– pois se você notar as proporções, verá que elas são imensas – é muito mais de uma
ilustração de livro. Novamente, em vez de ser para a alta tragédia, é para romance. Não é,
na minha visão, satisfatória para Shakespeare, e eu pensei que era exatamente a coisa
que Alexandre Dumas teria gostado. O sino está batendo e você ouve ele soar. Os
românticos do período de Dumas amavam tais coisas. A corneta de Hernani tem esse
exato toque diferencial, não tão shakespeariano quanto romântico. O bater à porta, isto é
shakespeariano.

Macbeth: De onde vem essa batida?

O que acontece comigo que qualquer ruído me apavora?

Que mãos são estas aqui! Ah! Elas arrancam meus olhos!

Poderá todo oceano do grande Netuno lavar esse sangue

Tirá-lo de minhas mãos? Não; mais provável minha mão

Aos muitos mares tornar encarnados,

Fazendo do verde – um único vermelho.

Entra de novo Lady Macbeth


96

Lady Macbeth: Minhas mãos estão da cor das tuas; mas me envergonho de

portar um coração tão branco. – (Batendo) Eu ouço uma batida na entrada Sul:

Vamos nos retirar para nosso quarto:

Um pouco de água nos limpará desse feito:

Quão fácil é isso, então! Sua firmeza

O deixou desatendido. – [Batendo] Escute! Mais batidas:

Vista seu camisolão, senão a ocasião nos flagrará,

Revelados como observadores: - não se perca

Tão amesquinhado em seus pensamentos.

Macbeth: A conhecer meu feito, foi melhor não me reconhecer.

[Batendo

Acorde Duncan com tuas batidas! Eu o faria se pudesse!

[Saem
97

Hamlet

Esta é a Segunda Cena, Primeiro Ato de Hamlet, como foi produzida por mim, com a
assistência do sr. Stanislávski, no inverno de 1911, no Teatro de Arte de Moscou 33. Você
vê o palco dividido por uma barreira. De um lado está Hamlet, sentado, caído, como se
estivesse em um sonho, do outro lado você vê o seu sonho. Você o vê como que por meio
da imaginação de Hamlet. Aquilo que está atrás dele é como ouro derretido. É a corte do
Rei e da Rainha da Dinamarca. É a grotesca caricatura de um tipo vil de realeza. O rei fala
como se ele fosse um autômato; suas mandíbulas mordem as palavras, ele as grunhe
para fora ferozmente. Se você for ler as palavras na peça, você verá que elas são pura
caricatura, e deveriam ser tratadas como tal. Não é uma coisa real – é uma visão. A
barreira que divide Hamlet da corte é o que você verá, mas para ele ela parece ser como
a mortalha sobre o túmulo de suas esperanças, entre as quais jaz o corpo de seu pai -
assassinado.

Rei: Ainda que a morte de nosso querido irmão em Hamlet

Na memória esteja verde, e que isto nos constranja

A manter nossos corações na dor, e nosso inteiro reino

A comprometer-se em um ápice de pesares;

Ainda que até aqui a discrição lutou com a natureza

E que nós, com mais sábio sofrimento, pensamos nele,

Junto às nossas próprias recordações

Daí que nossa uma vez irmã, agora nossa rainha


33
Algumas vezes chamado de “o Teatro da Gaivota”.
98

A imperial viúva, sócia desse estado beligerante,

Tenhamos nós, como foi com uma alegria derrotada –

Com um auspicioso e gotejante olho,

Com mirto no funeral, e com exéquias no casamento,

Em igual escala mensurando deleite e dolo –

Tomado para esposa, nem temos por isso barrado

Sua melhor sabedoria, que livremente se foi

Com esse assunto estendido. Por tudo, nossa gratidão.

Agora segue, que você sabe, o jovem Fortinbras,

Sustentando uma frágil suposição de nosso valor,

Ou pensando que pela morte de nosso querido irmão

Nosso estado estaria desunido e fora do esquadro,

Coligado com este sonho de sua vantagem -

Ele não hesitou em nos infestar com mensagens,

Fazendo lembrar a rendição daquelas terras

Perdidas por seu pai, com todos os liames da lei,

Para nosso mais valente irmão. Demais para ele.


99

Hamlet

Alguns anos atrás foi feita a tentativa de empregar cortinas em lugar de cenário para o
drama elisabetano. A ideia era boa – mas quando se chegou à questão seguinte de como
empregar cortinas em lugar de cenários, os idealizadores desistiram; isso quer dizer, eles
se debateram com “a sustentação de panos pendurados”, com o resultado de que os
críticos vieram para cima e lhes “arrancaram os narizes”.

As ideias dos artistas dependem de, e sempre aparecem simultaneamente com,


um totalmente detalhado método de consecução. As ideias do pensador não são tão
inspiradas. A inspiração do artista pode falhar, ou pode murchar como a lua – mas
enquanto vive é um inteiramente completo e perfeito poder. É por essa razão que eu
atribuo essa ideia de usar cortinas aos pensadores, e não aos artistas.

Quando eu comecei a observar detidamente a ideia, eu vi quase infinitas


possibilidades nela, e por algum tempo eu a desenvolvi até que começou a crescer e se
tornar um estudo sério. Eu devo retornar a ele algum dia em minha escola e ver o quanto
pode ou não constituir tudo que eu quero.

Esse desenho mostra cortinas de várias proporções e de grandes formatos. Talvez


você não perceba isso de maneira muito clara. Mesmo assim, meu método para lidar com
cortinas está tão bem definido no meu cérebro como a pintura de um retrato o está na
mente de um pintor. Assim, se você pedir a um pintor para mostrar a você em um esboço
o que ele pretende fazer, ele vai fazer algumas marcas aqui, um traço de cor ali, e o
esquema está completo. “Não para mim”, você diz. Mas o esquema não é para você – a
pintura acabada é.

Bem, vocês deverão ter o trabalho finalizado quando eu tiver arrastado meus
materiais das milhões de mãos que se agarram a eles como tentáculos. Vocês deverão ter
100

o trabalho finalizado quando eu tiver forçado os tolos, que entravam cada um de nós
artistas, a perceber que eles se enganam ao rir diante do que eles não teriam nem
mesmo o direito de louvar – de tentar e compreender mal o que eles não tem o poder
nem mesmo de esquecer.

Nós e vocês – nós os artistas, vocês os homens e mulheres que trabalham –, nós
fomos e estamos ainda sendo fraudados pelo mais amaldiçoado monstro que, sempre,
por fim encontra seu caminho até o zoo. Seu pai é a preguiça, sua mãe a soberba e ele
controla Londres, Paris, Berlim e Nova York. Não tem sentidos, nem força, nem sangue,
nem cérebro, ainda que tenha um monte de dinheiro – e com esse dinheiro finja força e
sentido e muitas mulheres e homens acalentem suas pretensões.

Eu coloco a mulher antes, pois as mulheres poderiam, mas não o farão, definir o
destino dessa minhoca.

Haverá uma única mulher na terra que, lendo isso, terá a coragem de se libertar
da tirania do todo-poderoso e poderoso fraco poder do Dolar? Haverá uma mulher em
toda a espécie feminina que possa e que porá seu poder no controle desse bizarro
monstro de décima categoria?

“O ouro do Reno, era uma coisa de verdade – não fábula.” Assim disse uma mulher
uma vez para mim. Assim sentem-se muitas mulheres hoje. Deixem que elas se lembrem
que há outras coisas de verdade – e a mais verdadeira é que o mundo conta com elas
como servidoras da causa da Beleza mais do que da causa dos votos; e assim elas tem em
seu poder a capacidade para fazê-lo, destruindo a Feiura delinquente que é criada
somente pelo mal direcionado poder do dinheiro34.

Assim poderão dar nova vida ao mundo inteiro – para o mundo inteiro.

34
Das Rheingold, o “Ouro do Reno” é uma lenda nórdica do ciclo da Canção dos Nibelungos, segundo a qual havia um tesouro no fundo do
rio, guardo por três náiades, as filhas do Reno, que daria aquele que o possuísse e com ele forjasse um anel o domínio do mundo, bastando
para isso renunciar ao amor. A lenda serviu de base para a primeira das quatro operas de O Anel dos Nibelungos de Wagner. Já a “causa dos
votos” é referência às sufragistas. (N. da E.)
101

Telas

Revelando sua disposição para o último ato de Hamlet

O fim do livro e o começo de um novo capítulo de Cenografia. Eu espero ver o dia em que
o teatro se tornará novamente teatro. No momento finge ser teatro e, portanto, qualquer
fingidor é bem-vindo dentro da cidadela de cartolina e só o fingimento é considerado
genuíno. A conspiração toda é contra a arte, contra a verdade e a favor do fingimento.

Emoções são fingidas, macaqueadas, não transformadas pela mágica do artista


em formatos e padrões firmes e belos – em poemas. Emoções são tomadas como são,
refletidas em um espelho que é mantido no nível mais baixo – pois os braços estão
cansados – e a esse reflexo chamamos arte. Esse reflexo é o mero fingimento da arte, e
pior – é um fingimento e uma paródia da vida.

A vida tornou-se sob o tipo moderno de tirania uma coisa muito pequena,
facilmente fingida – vestida e desvestida como um par de tênis.

E o teatro está registrando hoje para as futuras gerações, e para nossos netos e
bisnetos, os fatos de nossas enfermidades – que nossa imaginação é estéril e nossas
emoções domesticadas; que nossas mãos são ineptas e nossas vozes, roucas.

Alguns consideram hoje que sua missão seja confortar nossa era, nos
assegurando que tudo isso é como deveria ser, e que se a Imaginação e as Emoções de
uma época são fracas, a arte dessa época deve fielmente narrar os fatos para eras
futuras. Um estranho ponto de vista. Como se qualquer olho pudesse encontrar tempo
para agarrar-se como um Narciso no precipício da destruição – cortejando a si próprio e
suas nulidades; exultando no frívolo reflexo de uma realidade ainda mais frívola.
102

A Imaginação e as Emoções não existem para a imitação barata – elas existem


para a criação. Quando a Imaginação e as Emoções podem, por meio da arte, criar a
época, como poderiam rebaixar-se a imitá-la? A arte é inútil depois dos acontecimentos:
ela deve antecipá-los. Quando nós elegemos um rei, penso que o fazemos com alguma
arte. Quando celebramos sua coroação, estou certo que não usamos a arte de nenhum
modo. Quando registramos a coroação, nossos jornalistas têm de encarar o tranco. Eles
são enviados ao fronte para fabricar por meio de emoções falsas e nenhuma Imaginação,
um registro verdadeiro de um evento que é tanto infantil como inadequado. Se a
Imaginação fosse enviada ao fronte, criaria antes de tudo uma cerimônia de coroação
que inspiraria inclusive o próprio Rei, e nossos registros depois do evento inspirariam o
povo.

Quando construímos uma cidade, a arte não é incluída nela. Depois que a cidade
está lá, alguns registros, fotográficos e caligráficos, são feitos dela. Esses registros não
servem senão como motivo de chacota e como advertência a eras futuras, recordando a
loucura de errar tanto no começo e sofrer dores infinitas quando já é muito tarde:
recordando como, pelo medo, nos omitimos de encarar os fatos sobre as nações, cidades,
populações, sobre nossas próprias vidas, porque parece tão custoso – nenhuma outra
razão –, e como somos forçados no fim a pagar um preço mil vezes maior pelo que
poderíamos ter tido se tivéssemos apenas confiado em nossa Imaginação e em nossas
Emoções.

Que os homens do teatro realizarão isso se nenhum dos outros o fizer é minha
esperança – e deixe-os lembrar disso: que sua arte, a arte do teatro, é talvez a única arte
que ainda faz parte de nossas vidas e está não apenas profundamente enraizada no
coração do povo – seu imaginativo, seu universal coração é o coração do povo.

“Popular” é uma palavra que perdeu seu significado – e hoje implica em


vulgaridade e nisso apenas. Mas estamos certos, não estamos?, que o verdadeiro sentido
da palavra “popular” implica em um Ideal.
103

Nós estamos certos disso. De outra forma, não teríamos desistido do jogo da vida,
séculos atrás?

O Ideal, o popular Ideal do teatro, deveria ser recriar a Vida em um verdadeiro


espaço cênico, que poderia inspirar as pessoas a um novo esforço. A pregação nunca fez
isso e nunca o fará. Só pela Imaginação e por meio dos homens de Imaginação pode tal
iniciativa ser despertada nas pessoas.

As pessoas sabem… não é necessário mentir pra elas; há menos razão ainda para
gastar-se milhões em dinheiro mentindo para nós mesmos. Existem os jornais, grandes e
poderosos, mentindo diariamente para eles mesmos. Eles dizem a si próprios que são
poderosos e que estão governando as pessoas.

Eles estão sendo enganados pelas pessoas – deixem que saibam disso. Se as
pessoas não gostam da tirania de nenhum tipo, como então elas poderiam ser enganadas
a ponto de gostarem dessa nova tirania barata?

Só há um poder que comanda hoje, assim como sempre comandou no passado. É


o Poder Imaginativo. É isso que eu chamo de Realeza. O Poder Imaginativo sustenta tanto
o Rei como o Povo, o Rico e o Pobre, no mesmo abraço – pois esses são suas crianças.
Sustenta-os e os olha sem preferências – mas preconceituoso sempre em favor da Beleza.
Ele pune – perdoa; para ser exato, ele sempre perdoa – enquanto pune. É o único Poder
bom. Todo homem tem uma parcela dele – uma parcela igual – e algumas famílias o
retiveram como algo mais precioso que o ouro e outras o venderam por uma sociedade
numa mina. As famílias para quem ele é precioso ainda predominam e são mantidas
juntas pelos laços mais fortes e duradouros que a natureza jamais fez ou fará. Longa vida
a esse Rei dos Reis.
104

Posfácio

A popularização da feiura, a sustentação de falso testemunho contra a beleza – essas são


as conquistas do teatro realístico. Eu desejo que estes meus desenhos se postem como
minha proteção contra o teatro realístico e sua tendência anarquista

O teatro realista moderno, esquecido de todas as leis da arte, se apresenta para


refletir os tempos. Ele reflete uma pequena partícula dos tempos, puxa para trás uma
cortina e expõe à nossa vista uma agitada caricatura do Homem e de sua Vida, uma
figura grosseira em sua atitude e repulsiva de se olhar.

Isto não é verdade nem para a vida nem para a arte. Nunca foi o propósito da arte
refletir e tornar mais feia a feiura das coisas, mas transformar e fazer o já belo ainda
mais belo e, seguindo essa disposição, a arte nos protege com sua doce influência dos
sofrimentos escuros de nossa fraqueza.

O teatro realista moderno ajuda a despertar nas pessoas aquela inquietação que é
inimiga de todas as coisas.

A tarefa do teatro (tanto como Arte quanto como Instituição) é despertar mais
calma e mais sabedoria na humanidade pela inspiração exalando de sua beleza.

Realismo Fotográfico e Fonográfico ofende as mentes das pessoas. Eles entucham


nas pessoas uma representação grotesca e inadequada da vida externa e visível – com a
essência divina – o espírito – a beleza da vida, deixada de fora.

É desimportante para que assunto o artista se volta – seu prazer é iluminar tudo
que ele toca de modo que possa luzir brilhantemente. Um olhar momentâneo para as
obras dos Mestres vai reforçar a verdade de tal declaração.
105

Mas esse teatro realista moderno não liga para os Mestres, mesmo que esteja
ciente da existência de suas obras.

O realismo contém as sementes da revolta e, contudo, por mais que o coração do


homem possa se inclinar com piedade em direção daqueles cujo destino parece seguir
incessantemente, o artista não deve nunca emprestar sua arte, com seu terrível poder de
atração, à destruição do justo equilíbrio que é o objetivo da humanidade criar e
preservar. Pois não existe veneno mais rápido do que aquele que se alimenta na mente –
essa falsa testemunha a que o realismo – esse traidor para a Imaginação –essa idolatria
da feiura a que o teatro realista nos compele.

A coisa apareceu primeiro em Paris, mas só depois de 1789! Por um tempo


floresceu, mas ao passo que excitou a turba revoltou o inteligente.

Então passou à Rússia, à Alemanha, à Portugal e outros inquietos lugares.

Nem na Inglaterra nem na América, tampouco ainda na Irlanda arriscou-se –


nessas terras o teatro frequentemente vinga com suas vulgaridades sem a ajuda do
realismo.

Ousado e perigoso – é uma Revolta contra as próprias Leis da Arte do Teatro.

Ousado, porque é uma ameaça contra a vida bem-ordenada do Cidadão. Cada


sussurro de Revolta encontra um eco no Teatro do Realismo – as expressões sombrias, os
movimentos arrastados – a estranha atmosfera de balbucios – todas estas coisas se
juntam para formar uma impressão sinistra.

Alas! Tudo isso é falso e desmerecedor do teatro, tanto como uma instituição do
reino quanto como uma Arte.

Com a liberdade do teatro – livre para selecionar o que deve mostrar – livre da
tutoria de outras artes no que diz respeito a como deveria mostrar – vem uma nova
esperança.

Somente pela liberdade pode sua saúde ser restaurada.


106

Cena35

35
London: Humphrey Milford / Oxford University Press, 1923.
107

Cena

A Arte não emprega seus materiais para disfarçar pensamentos,

mas para expressá-los.

(I) Com as palavras tendo já perdido um tanto de seu significado – seis diferentes
palavras frequentemente significando a mesma coisa –, é apenas natural que esse mundo
tenha vindo a aceitar como verdade o dito que se propagou por volta do século XVIII e
que Voltaire poliu na forma “ils n’emploient les paroles que pour déguiser leurs
pensées’”36.

O mundo não podia ajudar com isso – a fala foi sempre uma pequena coisa tão
graciosa e tão fácil – e mesmo bebês a usam direto para mentir… e uma palavra é
acreditada.

Mas nem bebês nem homens sábios podem mentir tão facilmente ou
graciosamente com gestos – O pequeno animal pode ter há muito tempo dominado isso
sutilmente… a natureza é sempre um gozo e uma surpresa… mas o homem ainda não.

Para o homem, as mais fáceis e primeiras palavras vêm para se mentir com elas –
De modo que agora, no século XX, quase todo discurso é uma mentira. – Eu não iria tão
longe a ponto de, rindo, admitir que discursos desse tipo eram uma arte. Eu deveria, ao
contrário, chamar isso de uma confusão.

Antes somente uma coisa natural – tornou-se uma arte; mas quando excedeu seu
termo natural de vida, tendo ela própria se dito rouca – preta na face – a prata natural da
fala espraiada e nós chegamos ao chumbo dominante por debaixo, e dentro dele…
mentiras.

36
Em francês no original, “eles não utilizam as palavras senão para disfarçar seus pensamentos”. (N.da T.)
108

***

Assim que, agora, quando tudo sobre o que eu desejo dizer algo a respeito remete
àquelas coisas que nós pomos no palco de um teatro, para sustentar-se como o Lugar37
em que se supõe que um Drama esteja acontecendo, me vejo apanhado pela ausência da
palavra certa para descrever isto, a ponto de que alguém pudesse vir a entender,
sobretudo, o que eu não quereria dizer.

Se eu uso uma de várias palavras, três de vocês me tomarão como significando


uma certa coisa; e três de vocês, outra; e três mais… mas eu cresço bem esperançoso -
certamente nove não lerão este livro.

Por enquanto, graças, pode ser verdade que nós escrevemos e falamos palavras
meramente para disfarçar nossos pensamentos – nós ainda as lemos precisamente pela
outra razão, que é a de aprender com as coisas que nós não vimos, de ouvir coisas que
nós não ouvimos, daqueles que as ouviram e as viram.

Eis porque nós lemos, a não ser que sejamos pequenos homens engraçados,
escaldados muito cedo – chorando precocemente; velhos homens pequeninos –
desejando ser senhores de seus arredores – de si próprios – da lida – da natureza –
incapazes de ser qualquer dessas coisas, mas, oh, quão persuadidos (pois aquele ar
envelhecido diz isso tão claramente quanto um estridente apito de trem, “nós estamos
atravessando um túnel”) …persuadidos de que toda a vida não é senão cinzas… o
homem, uma mula ou um suíno; a mulher, um gato ou uma galinha; e a primeira lei
dominante da natureza humana, o desejo de comer.

Mas seis homens e mulheres, digamos três de cada, lerão o que eu estou agora
escrevendo e ouvirão algo que não está disfarçado. Assim, para esses seis eu tentarei.

37
“Um lugar bom” disse um querido velho amigo a mim quando olhava o modelo de cena que eu deverei descrever mais tarde – e eu
sempre pensei que essa era a melhor palavra para usar – muito melhor que cena – é um lugar se parece real – é uma cena se parece falsa.
109

Mas, então, eles devem estar contentes – é apenas um pequeno problema sobre o qual
devemos falar – o problema maior resta nos Desenhos… e estes devem falar por si, pois
eu não deverei falar sobre eles.

***

(2) O Lugar em que se supõe que um Drama esteja acontecendo diante dos seus olhos
deve ser Atenas 100 a.C., ou uma rua em Atenas 400 a.C., Roma 100 d.C. ou um quarto em
Roma 456 d.C.; pode ser Roma hoje, 1922.

Ou pode ser a cabine de um barco no mar – no porto – um canal em Veneza – um


bosque em Yorkshire – ; ou pode ser o escritório de um editor – ou uma igreja em Oxford
– uma casa nas colinas ao longo do Yang-Tsé-Kiang, uma floresta de ciprestes em Pisa –
algum quarto na Rue de Bagnolet em 1752… ou milhares de milhares de diferentes
lugares!

Pode ser qualquer lugar conhecido por vocês ou por mim ou de que se ouviu
falar: pode ser mesmo um daqueles lugares da terra – como, por exemplo, no Fausto de
Goethe, - no Manfred de Byron, em A Tempestade de Shakespeare. Pode ser uma favela –
um palácio – ou Céu e Inferno, - ainda que aqui, claro, nós devemos ser bem cuidadosos
para não ofender os céticos.

E nós demos um nome a esse lugar – e aqui começa o problema: pois parece que
um nome não era suficiente, e portanto nós demos a ele diversos nomes – e a confusão
depôs uma outra coroa no túmulo da ordem. A confusão está sempre depondo essas
coroas – que espectro… com gestos irônicos e sorriso… quase como a morte ela própria.

Nós chamamos a esse Lugar, Cena – Cenário – Decoração – Decorações.

Todas essas palavras parecem a mim, e talvez para você – discutíveis.


110

Essa confusão emerge porque pessoas diferentes têm diferentes noções do que
seja Drama e quereriam uma mudança.

Nós temos que olhar para essas mudanças por um momento: isso deve ser
rapidamente dito já que é um argumento para uma velha peça.

O Argumento

Primeiro Drama. Clássico (Grego ou Romano). O Pagão.

Um lugar – um tempo – uma ação

(unidade de lugar, tempo e ação – não de cena, tempo e ação.)

Ar livre: teatros vastos: O mesmo Drama é para o povo e para poucos. É sagrado e
profano – Tragédia ou Comédia – Drama não “confortável”.

Dança – Canção – Fala – Máscaras – Arquitetura combinam nesse drama.


Grandemente planejado – deliberado.

A linguagem usada é aquela que pode ser compreendida por todos no teatro.

Ela ultrapassa todo o mundo conhecido.

Segundo Drama. O Medieval. O Cristão.

Unidade de lugar, tempo e ação desaparece.

Esse Drama é geralmente apresentado em igrejas.


111

Sagrado e profano vindo a se misturar.

Ainda Drama não “confortável”.

Os mesmos elementos – Dança – Canção – Fala – Máscaras e Arquitetura


combinam-se neste drama. Grandemente planejado – deliberado.

A linguagem utilizada é aquela que não pode ser compreendida pelas massas
deseducadas, que turbilhonam no espaço construído.

Ele domina a Europa.

Terceiro Drama. Italiano. A Commedia dell’Arte. Acreditando em todas as coisas.

As unidades de lugar, tempo e ação retornam e são revalorizadas.

Esse Drama é desempenhado nas ruas.

É profano – Comédia Grotesca.

Ainda, Drama não “confortável”.

Os mesmos elementos comparecem para fazê-lo – apenas que todos eles são
dimensionados espontaneamente – nada deliberado – pouco planejado – improvisação.

O uso da linguagem das pessoas comuns.

Se espalha como fogo pela Europa.

Quarto Drama ___________________________? Sem crença nenhuma.

O Terceiro Drama se torna fixo – assentando-se – tornando-se confortável.


112

Os mesmos elementos como antes, exceto a Arquitetura – cenas pintadas em vez


dela.

Interiores.

Luz artificial pela primeira vez.

(3) E com a mudança do Drama veio a mudança da cena. A mudança no Drama veio por
causa do clima.

O Drama vai para os espaços internos na estação fria – e tão impaciente era o
homem de estar sempre se entretendo mesmo na estação errada que não podia esperar
pela chegada da estação quente. O erro não era um erro artístico – era ligado a um mal
governo.

Drama, eles dizem – e isso é facilmente tornado crível –, emerge de alguns saltos e risos
durante os meses brilhantes do ano sulista.

É tornado crível porque há certo sentido em um êxtase em tal tempo, ao ar livre, e


um desejo de se fazer algo, cantar e dançar algo, diante dos Deuses a quem à época eles
atribuíam todas essas aquecidas formas de benção, corações alegres – amigos queridos –
vitória sobre os inimigos – a água!… a água!… o sol e o céu e as noites cálidas… o vinho!…
o milho… e abundância.

Nunca ocorreu a esses homens livres, nossos pais, de sentarem-se egoisticamente


escrevendo suas memórias para explicar a um público que o milho, o vinho, a água e
tudo mais eram meramente o resultado de suas próprias antevisões particulares e
energia – para eles era um deus ou dois que tinham feito isso tudo – Rezar, então, e rir
diante dos Deuses.
113

(Agora pensem por um momento em Strindberg – em Becque – em Shaw ou em


qualquer outro moderno! Será que eles são ou não são um avanço frente ao homem mais
antigo? )

Eles esperam das pessoas: discutindo com elas – dando tapinhas nas costas –
dramaturgos confraternizando, mas nossos pais fundadores conduzem as pessoas.

Assim, então, a cena desses primeiros Dramas era encenada ao ar livre –

Feita daquela matéria firme que sozinha é capaz de competir vitoriosamente com
o sol, o vento, a chuva, e contra o tempo… a Pedra.

O teatro inteiro era feito de pedra – o teatro inteiro era a cena.

Uma parte dele abrigava espectadores; a outra, atores; mas tudo isso era Cena – o
Lugar para o Drama38.

A divisão entre ator e espectador não era para ser forçada – era para ser
observada mutuamente – silenciosamente.

Não havia cortina: – O lugar chamado skene (cena) era o lugar mais distante dos
espectadores – e esse era o pano de fundo de todo o Lugar ou Teatro.

Os atores não escorregavam para dentro e para fora ao longo dessa parede, como
se eles fossem achatados e em seus próprios e inimitáveis vasos; eles não vinham como
um rato branco em um quarto silencioso, sem ser visto, sem ser ouvido; eles vinham e
iam diretamente aos espectadores – ao centro mais íntimo deles – próximos deles –
cantando – saltando – planando – constatando as três dimensões do lugar.

Sua skene era então antes que tudo Cena, e (eu penso) pela última vez na História
do Mundo.

38
“Uma cidade grega dificilmente seria tão pequena ou longínqua a ponto de não ter seu próprio teatro e festival dramático”. Cf. Roy Caston
Flickinger, The Greek Theater and its Drama, Chicago: The University of Chicago Press, 1918.
114

– sem cenário – sem decoração. Pedra, branca – vermelha – amarela – marrom –


preta – azul – verde… quem sabe qual cor 39; pois a cor não poderia ter sido esquecida
pelos gregos: mas não era a cor trazida pra dentro pelo braseiro, – trazida pra dentro por
algum pintor de estúdio desempregado, pois os pintores gregos eram sempre
empregados na Grécia, sempre em seu lugar… fora do Teatro.

Sua cena era então uma coisa genuína. Um trabalho de arquitetura. Inalterável exceto
por peças triviais aqui e ali, exceto pela mudança duradoura que passava de manhã a
manhã pela sua face, como o sol e a lua passavam.

Seu drama era triunfante… sem contorções atravessava triunfantemente.

(4) A cena seguinte que aparece na Europa é também uma cena arquitetônica – pois o
drama seguinte era também um drama religioso, sendo jovens no coração àquele tempo,
nós europeus tínhamos aquele velho entusiasmo para fazer as coisas propriamente.

Essa velha noção de fazer as coisas propriamente parece ter sempre nos
dominado até o ponto de que nós tivéssemos alguém ou algo fora de nós mesmos por
quem fazer isso.

Um deus – essa era uma realidade pela qual nós poderíamos perder a
autoconsciência – atirando nossos egoísmos para fora de nós, e nós estaríamos em forma
para fazer algo que valesse a pena.

Este estar em forma parece a mim ser o único estado em que a grande arte pode
realmente ser alcançada por um homem ou por uma nação. Muito se fala hoje sobre arte

39
Você já viu as paredes da Catedral de São Marcos em Veneza? Sessenta passos distante delas, elas aparecem como se suspensas com
sedas suaves dependuradas e com design elaborado.

Perto delas se vê que são blocos lisos de pedra – mas que pedras – quão selecionadas – quão bem cortadas – quão ajustadas.

O milagre é o estilo, não a pedra.

Mais ainda, e eu não duvido, mais maravilho era o jeito dos gregos de quem Veneza aprendeu tudo.
115

comunal! Muito boa e muito possível – mas não enquanto vocês comunistas
permanecerem autoconscientes – a estarem em maior amor consigo mesmos do que eu
estou. Mas vocês sabem que… Eu não preciso rezar.

Essa segunda cena arquitetônica que apareceu na Europa foi a Igreja.

Era não apenas uma plataforma elevada –- uma cena – no fim de uma igreja: era
toda a igreja.

Essa igreja era Teatro e Palco. Lugar para espectadores e para atores, e ambos
espectadores e atores unidos como devotos – alegres – excitados – transbordando de
gratidão por algo fora deles mesmos.

Por que ir à igreja – por que ir para testemunhar um Drama, fosse ele trágico ou
alegre, se não fosse para você ir rapidamente, como crianças correndo para beijar?

Eu não vou mais à igreja nem ao teatro, onde tais excitações estão ausentes.

E, ainda, eu vou às igrejas e aos teatros.

Nesse teatro-igreja que nós europeus fizemos com propósitos de gratidão tudo
era bem esplêndido – bem custoso, joias, prata, e ouro… um banquete disso: música …
um mar disso; problemático mais ainda triunfante. O latim é falado… ninguém entende
exceto alguns poucos. Tudo era genuíno – ainda genuíno – incandescendo com a
realidade. Tudo está ainda bem com o Drama e a Cena.40

(5) A Terceira Cena que apareceu na Europa era genuína também.

40
Eu não vou mencionar os teatros e cenas desnecessários dessa época que eram concebidos em desespero – um desespero desnecessário
que brotava de alguma obstinação fatal, de alguma revolta. Esses palcos de moralidades e “mistérios” ocorriam fora das igrejas – e fora de
lugar. O trabalho feito neles, um tipo de trabalho infantil – a fala vulgar uivada ou balbuciada quando o belo latim cantado ou tinha sido
recitado ou tinha sido rejeitado por alguns revolucionários em uma igreja não perfeita, mas uma Igreja muito mais perfeita do que eles
jamais encontrariam de novo… um muito mais perfeito palco, cena – e Drama.

Mr. E. K. Chambers, cujo primeiro capítulo em seu segundo volume de The Medieval Stage nunca deixou de mexer comigo, por
mais rasa que fosse a história, nos conta claramente como que esse alegre drama solene aparecia – palco e cena –. Desde 1903, quando seu
livro surgiu pela primeira vez na Inglaterra, eu tenho lhe devido um débito de gratidão que eu lhe pago de volta retornando continuamente,
pelo menos três ou quatro vezes ao dia, ao seu livro e o lendo. É o melhor trabalho em inglês sobre esse tema que existe hoje.
116

Era a parede lisa de uma rua, ou a parede de um porão, – o salão de uma


prefeitura, uma fachada lateral ou o muro de um palácio.

Tudo ainda está bem conosco. Não é ainda revolução – é um começo. Nós
renunciamos um pouco – mas vislumbramos outras oportunidades que se abriram a nós.

Os tons difíceis – movimentos – aspectos que tinham forçado uma entrada em


nosso Drama, tornaram-se, no último desenvolvimento de nosso Drama, uma pressão
sobre nossos nervos. Nós estávamos crescentemente suscetíveis e preocupados também.
Nós não esquecemos as triunfantes Tollite portas’41. Porém, nós tremíamos porque…
ousamos dizer isso… a face sangrenta e o corpo rasgado do Filho era demais –- um
excesso dessas faces e corpos eram trazidos à nossa visão – todos os corpos rasgados,
todas as bocas de esgares – todo sofrimento e dor – todo – e o incenso nos sufocava, …a
chama estava descendo em nossa direção.

Nós sairemos pra fora – nós procuramos a porta – nós saímos – nós nos vemos
fora – ar fresco – “Graças a Deus”.

E por algum tempo fazemos tudo, completamente, sem a velha peça trágica: não
se preocupe com isso: deixe-a ser esquecida: …era tudo muito terrível para lembrar… ela
foi feita de modo a ser terrível de assistir. Nada mais – a coisa mesma, antes tão severa e
nobre e tratada tão severamente nos impactava – mas a banalidade contaminou o modo
de fazê-la… adeus.

E agora sentado ao sol em nossa porta vemos pelo caminho contra o muro cinza
amarelado três estranhas figuras – sombreamos nossos olhos forçando a vista contra
elas. Não se parecem elas ao invés com....... não, esta foi só uma suspeita terrível, para ser
esquecida... vamos entrar.

No dia seguinte o mesmo – e gargalhadas também, e pessoas assistindo também –


e rindo. Eu saio – Eu me aproximo. As mesmas três estranhas figuras saltando e
gesticulando… não realmente, de modo nenhum, como aquelas imagens com faces
41
Canção pré-natalina entoada nas igrejas em latim. Tollite portas (“Abram seus portões”, referindo-se tanto aos portais terrenos como aos
do reino dos céus). (N.da T.)
117

torcidas e joelhos quebrados – e agora que eu estou mais próximo ainda eu vejo quão
absurda minha noção era… elas estão rindo o tempo todo. A miséria e a agonia não
riem: ...somente os vitoriosos riem – até que eu dormisse eu ainda parecia ver a imagem
de um mártir atormentado.

Esses são os novos atores, – nós os novos, quase aterrorizados, extasiados espectadores
– nosso teatro as ruas – nossos assentos... nossos próprios calcanhares ou uma pedra.

Nascia a Commedia dell’Arte.

(6) A Quarta Cena.

“Parece que precisamos fazer alguma coisa”, gritou o Duque percebendo uma
tarde a sua principal praça abarrotada com todos os seus servos, seus amigos, sua
família, “e nada onde se pudesse colocar o traseiro” – e todos assistindo cinco grande
atores desempenhando em uma plataforma vazia… “nós realmente precisamos fazer
alguma coisa”; e ele forneceu os assentos no dia seguinte. E logo surgiu a quarta cena em
um palco ajeitado com um telhado sobre ele e toda sorte de maquinaria e toda proteção
possível destinada a Donna Bianca della Bella.

E custou ao Duque todo seu tempo livre… e alguns milhões de ducados… o que disso:
deve ser bem-feito, ele disse, ou deixado para lá. Muito altivo!

Esse quarto espaço cênico com sua cena era o reconhecimento feito pela
aristocracia da existência de grandes atores – e era um presente para as pessoas.

Uma cena mais magnificente seria inconcebível. Não nobre como a cena grega,
não proibitiva como a cena da igreja se tornou, não tragicômica como a cena de rua dos
comediante grotescos em andrajos: – era uma positiva, uma improvisação deliberada,
118

brilhante e cheia de erros. Todos os arquitetos, pintores, poetas e engenheiros foram


chamados pelo Duque, de todas as partes da Itália, a participarem – e se morassem na
França como Henrique IV, então de fora da Itália. Se como Felipe, na Espanha, então na
Espanha.

Não demorou, depois que o primeiro Duque agiu como um Duque, para que seis
ou sete outros aderissem; – então um Cardeal, um Rei ou dois, – então um Imperador. Foi
se espalhando, essa ideia de fazer coisas como um Duque, como um Rei, até que todas as
cortes possuíssem um, dois, ou algumas vezes quatro teatros. Como em Parma em 1680
quando o Duque Farnese tinha dois teatros em seu palácio, dois em seu jardim, e dois na
cidade, e entre 20 e 25 de maio havia espetáculos em quatro destes 42.

Por mais duvidoso que pareça, se essa quarta cena era mesmo tão altiva, você só
precisa visitar Parma para satisfazer-se. Está quase tudo lá como era. Você só tem que
mirar os trabalhos de Serlio, Palladio, Arnaldi, Sirigatti e de seus seguidores, para
encontrar as partes faltantes.

A Itália nos deu o terceiro e o quarto Espaços Cênicos e suas Cenas.

Não mais a ideia de Durabilidade era priorizada pelos seus inventores. A


exigência era por Mudança, e a mudança foi fornecida.

__ Mudança de lugar, e consequentemente mudança de cena. Mudança de tempo


também…

Traga o mar aos nossos palcos… o mundo… as estrelas e os ventos…

Agora mude – rápido – o mundo ínfero…

Agora – a morada dos Deuses ...

Agora o palácio de Xuxiemes, Imperador de Troia…


42
De 20 a 25 de Maio, o duque Ranuccio II apresentou quatro óperas na escala mais luxuosa experimentada naquela época. Uma, Il favore
degli dei, foi apresentada a noite no palco do Teatro Farnese no palácio. Este teatro abrigava 4.500 espectadores e existe ainda hoje. A
segunda ópera foi apresentada de dia em um palco construído sobre uma grande reservatório de água chamado “la Grande Peschiera”. Os
espectadores sentavam em um tearo especialmente construído – dez mil estiveram presentes – e La gloria d’amore foi apresentada. As
outras duas óperas eram L’età dell’oro e L’idea di tutte le perfezioni – essas apresentadas no Teatrino Farnese. Esse pequeno teatro abrigava
dois mil espectadores.
119

Agora a nascente do rio Tibre…

E não mais tudo parecia acontecer em um dia, ou quatro horas. Transcorrer em


seis dias ou mais; – deixe um ano de lapso entre as cenas –- (Shakespeare).

Essa quarta cena era em geral construída em madeira. Algumas vezes as paredes
externas dos prédios seriam de pedras sólidas ou tijolos, mas dentro tudo era
frequentemente de madeira – de telas – de materiais destrutíveis. Mas tão tenaz pode ser
uma velha virtude que os homens daqueles dias não puderam evitar de fazer suas frágeis
coisas muito mais fortes e duráveis que as nossas melhores tentativas jamais
conseguiram.

Claro que o Espaço Cênico e a Cena Shakespeariana são únicos – não relacionados
a esse quarto espaço cênico ou a sua cena. A casa de espetáculos elisabetana era o
trabalho de um construtor que era muito prático – muito detalhista. Não houve tempo
nem oportunidade para arquitetos ingleses se voltarem ao problema de desenhar um
teatro como na Itália, e assim Shakespeare, chegando com toda sua intempestividade,
não encontrou um Teatro real tal como nós teríamos gostado de preparar para ele, se ele
simplesmente nos tivesse dado uma breve notícia.

Se um arquiteto inglês tivesse voltado sua atenção a esse trabalho durante a vida
de Shakespeare, ou logo depois de sua morte, nós provavelmente teríamos agora alguns
edifícios tão nobres como aqueles construídos na Itália por Palladio, Alliotti, e
Sacamozzi, e um prédio que teria sido um guia agora para nós, sobre como Shakespeare
gostaria de ver suas pecas encenadas43. Pois havia John Thynne e havia John Shute, vivos
– qualquer um deles era capaz, se poderia imaginar, de conceber ou levar a cabo a
construção de um teatro – ou, se esses falhassem, Robert Adams ou John Smithson: Inigo
Jone também. Nós tínhamos os arquitetos, mas entregamos o trabalho a construtores
que nos fizeram uma excelente, mas não inesquecível, construção em madeira, algo como

43
É curioso imaginar o que Craig diria da vitoriosa reconstrução do Globe Theatre de Londres, que desde 1995 vem revivendo as pecas de
Shakespeare em um espaço que reproduz exatamente as condições espaciais e arquitetônicas daquele teatro elisabetano. À sua época era
impensável tal reconstrução, mas, talvez, ele teria preferido, em havendo essa alternativa, que lhe tivessem oferecido, em Londres, um
espaço e as condições para ele desenvolver o seu projeto Scene. (N. da T.)
120

um pátio interno ou uma arena de ursos – de modo nenhum inadequada, mas também
de modo nenhum à altura de peculiaridade de um drama único, de que nós tínhamos
acabado de tomar posse.

“Uma autoridade pública abrigada de forma mesquinha pode ser


mesquinhamente estimada”, disse nossa soberana mais tarde, quando falando sobre o
tema da arquitetura e de suas relações com a vida cívica, e o drama de Shakespeare veio
a ser menos ainda que mesquinhamente estimado hoje, pelo – público.

Sem dúvida, a simples bela mente do scholar pode encontrar no barraco de lama
do homem primitivo uma habitação melhor para o homem de pensamentos nobres do
que é um palácio construído com os mais preciosos materiais por um Bramante ou um
Palladio.

Possivelmente esses palácios da Itália, e os templos hindus, o Parthenon e o


Teatro de Dionísio, não são simples o suficiente para as grandes mentes.

De fato, seria uma delícia encontrar algum mestre inglês concebendo um ainda
mais simples, e mais nobre, edifício para o drama shakespeariano.

Em Durham, Lincoln e Canterbury nossos arquitetos criaram altares para nossos


livros sagrados – mas para nossos livros humanos nenhuma casa digna foi criada.

Exatamente que tipo de casa esse livro pede aqueles que o leem deveriam ser
capazes de decidir – mas ler Lear e A Tempestade e ainda se envergonhar disso é uma
pena.

Talvez, se nós ouvíssemos mais isso, deveríamos encontrar as medidas certas,


conceber a proporção adequada e criar uma forma que, para sempre, pudesse desafiar
comparativamente as mais nobres.

Eu não sei – eu só posso dizer que não é possível falar da insignificância do


espaço cênico e da cena feita no século XVI para nosso grande inglês, e eu devo ser
desculpado se meu amor fiel e reverencial pelo nosso drama inglês trai um preconceito
121

meu em seu favor ao ponto de demandar para ele o melhor teatro da Europa – e me
recusando a aceitar algo provisório.

E dentro dessa quarta cena do século XVI a Perspectiva entrou em cena. A


perspectiva tinha sido descoberta tardiamente na Itália 44 por Ucello, por volta de 1450,
ou pelo seu mestre ou pelo mestre do seu mestre. Descoberta ou não nesta data tinha
agora, em 1500-1550, se tornado um truque muito usado e apreciado no palco… novo
para muitos, pois só percebido por eles agora, pela primeira vez.

Fazedores de cena serviram-se da Perspectiva na medida em que ela se prestou a


que tivessem um bom jogo, e utilizaram-na a torto e a direito, e mantiveram esse jogo até
quase ontem.

Agora, o que a fez tão popular? – o que nos preveniu a todos dos apupos?

–Foi o sereníssimo duque.

Em todos os teatros construídos naqueles dias havia sempre um lugar (e apenas


um) de onde todas as perspectivas cênicas pareciam razoáveis – perfeitas.

Não era um lugar fixo… mas era um único.

Tendo encontrado este lugar, o arquiteto (que era também cenógrafo) assim
construiu seu auditório, assim organizou seus camarotes, seus balcões, assentos, de
modo a deixar um espaço livre em torno daquele lugar. Nele, ele colocou um praticável,
não importando onde fosse; este praticável, ele o avançou, ou o moveu para trás – até
que tivesse encontrado o ponto perfeito de onde se ver as perspectivas.

Uma vez encontrado, ele, onde fosse, fixou o praticável no chão: colocou lá uma
cadeira para o Duque, …para o homem que tinha tornado possível todos esses
esplêndidos festivais…

Cenário perspectivado, portanto, tem a ver inteiramente com um entendimento


próprio e prazeroso da Autoridade.
44
Vasari defende isso, ainda que eu tenha visto bastante de uma estranha perspectiva teatral em Pompeia: e, quando em Pompeia, eu
pensei que estivesse, levemente, começando a ver como um teatro romano e seu espaço cênico e cena poderiam ter se parecido.
122

Em nenhum outro lugar do teatro foi possível obter uma visão perfeitamente
justa:– o momento que alguém se movesse de lá à direita, ou à esquerda, ou para frente e
para trás, o efeito começava a ser meio estranho: – movesse-se mais ainda, ao Norte, Sul,
Leste ou Oeste, e tornar-se-ia finalmente ridículo.

Mas tal era o poder da ideia de realeza – e o poder pessoal do governante – e a


inata cortesia de seus súditos, que, se alguns recaíssem a pensar maldosamente, como
um todo, o resto da cidade já tinha se convencido de que tudo era como tinha de ser.

Eu dei a volta completa: “O Duque nunca viu isso como nós o vemos – ele alcança uma
visão perfeita” – e explicações sobre como isso poderia ser eram dadas pelos artistas ao
povo, de mestres a servos; até brinquedos foram apresentados para provar esse ponto…
“Segure o brinquedo assim e você terá a visão que o Duke alcança.” Ah, ele alcança aquela
vista? Eles indagavam. Sim ele o faz! Então tudo está bem.

Eles sabiam que ele não reclamaria: aquilo era suficiente. Eles sabiam também
que suas distintas visões não eram a sua visão; que, vista dos seus assentos, toda
arquitetura entortava – pilares – arcos – degraus – tudo tomava o caminho errado; mas
eles concordavam que, garantido que o Duque estivesse agraciado, eles perceberiam
nada, diriam nada. Assim o italiano, tão esperto – indiferente – grande.

Uma batata – ou um metrônomo (e eu conheço homens dos dois tipos)–, podem


vir a pensar que isso é tolo mais do que grande: estes devem continuar argumentando
sobre isso afora com a raça humana, pois minha noção de felicidade não é a de uma
batata ou de uma máquina. Eu me deleito ao ver outros deleitarem-se, garantido que eu
nutra afeto pelos outros. A não ser que o Duque esteja realmente se deleitando nesse seu
teatro que nós fizemos, eu e meus amigos não estaremos felizes. Você, batata, e você,
máquina, – vocês são: meno male!

E por alguns séculos todo mundo esteve contente.


123

E, de fato, se arquitetos e duques permanecessem o que eram, então talvez a cena


de perspectiva não teria se tornado o que ela se tornou vinte anos atrás.

Porém, lá pelo ano 1789, alguns problemas em Paris começaram a afetar o olhar
dos europeus – e agora a boa cenografia da perspectiva, aquela quarta cena, já
praticamente não existe.

Eu ouço que o povo está se tornando mais forte ano a ano. Eu nunca soube
exatamente o que isso significa – não tendo notado muita fraqueza naqueles povos na
Grécia, Itália, Egito, Roma, França, nos velhos dias.

Ainda assim, se eles estão se tornando mais fortes ano a ano, acho difícil resistir à
noção de que eles devam ao mesmo tempo tornarem-se mais doces – e então eles
estarão certos de recordar que o último teatro – com sua cena – era um presente para
eles do Duque – e que eles em sua recém-conquistada força irão certamente achar a
graça para presentear toda a aristocracia com o próximo teatro.

Pois, falando em geral, existiram apenas quatro teatros – quatro cenas – quatro
Dramas – na Europa.
124

O primeiro era o melhor de todos, mas o último era tão bom quanto… e os dois no
meio imensos45.

(7) Eu lhes dou quatro pequenos desenhos (Figuras 1,2,3,4) que lhes revelarão esses
quatro estágios, lado a lado.

Variações inumeráveis em torno desses quatro temas existem em nossas Coleções


Públicas e Privadas de Livros, Impressos, e Desenhos, e o estudante poderá, se tiver
paciência, com tempo, ver alguns deles.

Meu propósito não é entrar fundo nesse problema aqui, como faria um
Historiador – Eu não tenho essa habilidade. Meu propósito é manter sua atenção nesses
quatro desenhos, de modo que você possa ver o problema como um homem de palco o
vê – um homem de palco de nenhuma escola estreita em particular, mas um a homem de
palco comum que veio a aprender, depois de trinta anos de prática e estudo do espaço
cênico, que cada cena tem seu lugar, e que cada cena, cada uma, em seu lugar é admirável
– mas fora de seu lugar é meramente um nada.

45
Foi nesse teatro do duque, e para essa quarta cena, que a maquinaria começou a ser empregada: não pela primeira vez, pois alguma
maquinaria era usada no teatro grego e alguma na Igreja. Mas essas máquinas parecem ter sido introduzidas e depois retiradas; elas não
eram permanentes… ainda que no século XVI e XVII as máquinas tenham se tornado fixas.

Maquinaria fixada, que impedia a mobilidade da cena, pode ser uma maldição para o Drama. Era usada no século XVIII para
facilitar as coisas – para fazer as mudanças cênicas mais fáceis. Mas só conseguiu torná-las mais difíceis. Influenciou tanto nosso trabalho de
palco que por volta de 1800 nós já não mudávamos nada… tudo se tornou repetição. Wagner, que é suposto ter reformado tudo isso, agiu
como todos os reformadores… ele aceitou a coisa como ela era e fez algumas melhorias.

A maquinaria ainda controlava a cena.

Alexandre Hevesi pontificou que o maquinista é o inimigo do Teatro – ele e o realista. Nós deveríamos conseguir perceber a
verdade disso. Existem outros e melhores campos para o maquinista. A arte deveria excluir o mecanismo.

O design que eu lhes dei da Primeira Cena é o melhor que eu pude conseguir – Como o melhor? --- porque mostra as paredes do
espaço cênico de pedra – arquitetural.

Claro que entre os espaços cênicos grego e romano – que são duas partes da Primeira Cena – havia diferenças, mas elas eram
diferenças principalmente de elaboração. As essências eram as mesmas – o ponto --, de que esse teatro era todo de pedra – era
arquitetural – a cena era uma peça com duas outras partes – orchestra e arena.

Falando dessa “cena”, Robustino Gironi diz em seu Saggio intorno al teatro dei Greci – “A cena dos gregos era perfeitamente
similar àquela dos romanos”. Pode ter sido ou não perfettamente símile.

Ninguém pode jurar sobre isso – nem mesmo o grande alemão Dörpfeld – pois nenhum ser parece ter se confrontado com a
apresentação de uma cena grega pura. Contudo eu lhes dou esse retrato da cena clássica par excellence.
125

Guarde isso em mente, pois é certamente verdade.

O espaço cênico tem frequentemente ofendido; mas, depois de investigação


descobri que não tem ofendido mais que a pintura, escultura, música, arquitetura, e
cartas. Toda arte, e cada parte da arte, quando fora de lugar ofende. Cada amostra deve
estar em seu devido lugar, aparecer na hora certa, ter razão para nem aparecer, e tudo
está bem...

{Figuras 1,2,3,e 4, distribuídas em duas páginas, duas em cada página}

E deveria ser o prazer de todos os trabalhadores na Arte Dramática o de garantir isso,


que nada esteja fora de lugar… e ninguém fora de lugar.

Deveria ser o prazer e a missão de todos eles a de colocarem o Drama em ordem


novamente, e o Mestre do Drama em seu lugar – no comando de tudo.

(8) E quem é o Mestre, e quais suas obrigações?

Ele é o melhor homem.

Agora o melhor homem no Drama deve ser o melhor homem nos Teatros e no
jogo com as coisas teatrais.

Em um período ele é Molière, o ator-escritor. Em outro tempo, Sófocles,


dançarino-ator-escritor. Num terceiro tempo, Andreini, somente ator. Em um quarto
tempo, Shakespeare, ator-escritor. Em cada período você vê o melhor homem como ator.
Dizem que Molière não era um bom ator; – o que querem dizer eu não sei: que
Shakespeare, atuando só em papéis menores: …talvez. Ambos estavam em um teatro –
cada um em apenas um teatro: não pulavam de uma companhia para outra; deram ao
tempo e a natureza uma oportunidade de se desenvolver – crescerem como plantas –
florescidas – fruto consumado…

Todos esses homens pensavam em termos do espaço cênico – teatro ao vivo-


trazendo homem, montanhas, paixões, sol, luz, sonhos, fantasmas, para dentro do teatro:
126

não apenas por meio das palavras – por qualquer meio que pudessem conjurar – e até o
fim dos tempos isso será assim e deve ser assim.

E se ocorresse, algum dia, de um que tinha o talento de ator calhasse de ser


arquiteto (como o eram Albegarti, em 1480, e Ariosti, em 1530), ele poderia combinar
seus dois talentos para criar Drama, e ao seu próprio modo – sim, mesmo quebrando
pequenas tradições. É permitido.

Se ele fosse ator ou pintor e escritor, ele também poderia servir-se desses três
talentos para criar Drama… e um quarto se ele o possuísse. Mas ninguém que não seja
primariamente ator pode sequer almejar a criar Drama.

Isso é o que quero dizer quando digo do Mestre do Drama ser um homem do
Teatro.

Um outro pode escrever peças – estas podem ser sempre excelentes, como She
Stoops to Conquer é excelente ou como On ne badine pas avec l’amour; mas elas não têm o
toque genuíno do dramaturgo de boa cepa46.

Eu nunca sustentaria que um pintor ou escritor possa ser um verdadeiro


dramaturgo – utilizando-se de seus poderes sobre os Desenhos e sobre as Palavras – e
somente estes. Nunca sustentei isso. Eu sempre fui mal interpretado, como se
sustentasse essas visões.

Eu cheguei a escutar um grande dramaturgo dizendo publicamente que eu sou


um pintor,… e que minhas cenas são tudo em que estou pensando 47.

Eu produzi cenas – isso por ver uma necessidade, – e possuir um talento, para
criar o Lugar ou Cena em que o Drama tem que se mover.

46
Exceções nunca deixarão de provar a regra e pois temos em Goldoni, em Rossini e em alguns outros, homens que nos trouxeram pecas
cênicas que pareciam feitas por atores. (N. da E.: She Stoops to Conquer; Or, The Mistakes Of A Night (Ela se Inclina Para Conquistar ou Os
Equívocos de uma Noite), comédia de costumes de Oliver Goldsmith; On ne badine pas avec l’amour (Não se Brinca Com o Amor), de Alfred
de Musset.)
47
Craig refere-se aqui a Bernard Shaw, que era amigo de sua mãe, Ellen Terry, tratava-o como “Teddy” e costumava referir-se a ele como
“um cenógrafo”. Há uma série de artigos e comentários cruzados entre ambos os autores. (N.da T.)
127

Mas eu fui ator – e eu sou basicamente isso: Eu sou capaz de escrever um pouco.
Eu não considero tempo perdido o que é gasto na busca de se qualificar como um mestre
(ainda que talvez apenas um pequeno mestre) do teatro – e assim, talvez, do Drama. Já é
suficiente como desculpa pelas minhas limitações.

(9) E aqui vamos continuar para ver quais são as tarefas de um Mestre do Drama e do
Teatro.

Eles devem, hoje, reconhecer que o teatro como lugar de trabalho – seu palco,
cena, atores, e outros assistentes – é um assunto, para dizer o mínimo, não manejável,
desarrumado e pouco prático, e (eu penso) para ser acionável deve-se primeiro
simplificá-lo, e então reelaborá-lo, ambas as coisas com o máximo cuidado.

Para simplificar uma coisa desse tipo é necessário tempo. Não pode ser feito em
um mês – nem em dez meses; talvez nem em dez anos.

E para simplificá-lo você deve primeiro vir a conhecê-lo tão bem que quando
eliminar algo não rejeite uma parte essencial da máquina.

Simplificar o palco foi o trabalho a que eu me devotei pelos últimos vinte e cinco
anos.

Eu acho que eu fiz o que me foi dado fazer48.

O quanto ainda restaria tempo para eu fazer a mais o que eu tive em mente, isso
carece de ser conferido.

48
Simplificar o palco: por isto eu não me refiro a maquinaria cênica, ou cenografia, ou iluminação cênica. Eu me refiro a todo o negócio do
espaço cênico, de seus atores e cenas até seus próprios programas e sua guarda de pertences do público. Isso é o “espaço cênico”: nada
menos do que isso o é. Nenhuma parte me concerne menos do que outra. Cada uma em seu tempo deve ser colocada em seu devido lugar
para que a máquina funcione de novo.

E quando eu tiver levantado minha cena – mesmo levando alguns anos para fazê-lo –, eu ainda terei que trazê-la para os meus
atores e meus atores deverão aprender como usá-la. – Feita para eles, merecerá a deferência e simpatia à altura da parte deles. Eles não
podem simplesmente “deixar-se perder” nela… não mais do que eles poderiam deixar-se perder para falar um verso como se fosse prosa.
Pois descuidar de qualquer das partes dessa máquina é arruinar a máquina. Nem uma única roldana deve estar fora de lugar… nenhum
parafuso faltando… nenhum pino perdido. E para ver que o todo está em ordem e se mantém em ordem antes do trabalho começar e em
todos os momentos enquanto estiver sendo feito, o mestre dessa embarcação dramática deve ser seu único e absoluto comandante. Isso
ainda será compreendido. No momento eu vejo que não é compreendido.
128

Agora, o que eu simplifiquei não foi, meramente, relativo a pedaços de cenário, e


efeitos de luz, velhos figurinos e música incidental.

Eu simplifiquei as possibilidades do Drama.

Nenhuma cena com que eu operei foi operada por sua própria causa. Eu pensei
somente no movimento do Drama… dos atores… dos momentos dramáticos, … aqueles
longos, lentos movimentos e aqueles “fulgores de relâmpagos” (Coledrige) 49.

Eu vi, à medida que progredia, que as coisas podem, e consequentemente


deveriam, desempenhar suas partes assim como as pessoas: que elas combinam com o
ator e reclamam ao ator que as use, como as cadeiras nas peças de Molière o confirmam.
Elas não são meramente três ou quatro cadeiras mortas que ele colocou no centro do
palco. Ainda que escritores nos indiquem para olharmos o vazio de seu palco – apenas
três cadeiras, eles dizem. Estão loucos, estes homens? Não percebem como Molière fez
essas cadeiras atuarem – como elas estão vivas, e trabalhando em combinação com os
atores?

As cadeiras e mesas nas peças modernas, que a grande atriz italiana 50 reivindica
estarem mortas, – podem haver seis ou mais, ou dezesseis mais, ou seis menos; tudo é
como era… cena morta…uma maldição para atores e para o atuar.

Um dito lugar “real” é o que apresentamos no palco nos dias de hoje,… real e,
ainda, bem morto – sem expressão – incapaz de atuar.

As cadeiras, mesas e adereços de todo tipo de Molière eram poucas e poucos; ele
tinha aprendido da Itália que eles deveriam ser poucos para serem ouvidos – e cada um
deles falar no momento certo.

Os adereços de Shakespeare podiam falar também – mesmo com Cromwell e seus


puritanos tendo arrancado suas línguas e quase desumanizado todo drama
shakespeariano para nós.
49
“Flashes of lightning”. (N.da T.)
50
Eleonora Duse. (N.da T.)
129

A tradição, uma vez perdida, nunca mais recuperou de fato sua força original.

Assim então, criar um espaço cênico simplificado é a primeira tarefa de um


mestre do Drama.

Não rejeitando a eletricidade por conta de seus defeitos: não retornando às velas
de banha: não retornando às máscaras: pelo rechaço de nada, pelo retornar a nada – mas
por esse processo…

Revisando todas as coisas teatrais já conhecidas, ou uma vez reconhecidas como


utilizáveis no espaço cênico,… testando-as reservadamente, e rejeitando aquelas que
pareçam ocas e inúteis, e guardando todas aquelas que passem no teste.

Que teste? – O teste quanto a elas serem ou não capazes de expressão. Isto e um
pouco mais. Nós precisamos nos perguntar –

Será que uma vela de cera nos serve para expressar um sol nascente? – Se sim,
então use-a. Não serve? – então rejeite-a. Mas o teste é antes – não descarte nada até que
você o tenha testado. Será que uma máscara nos serve para expressar tal ou qual
emoção? Se sim, use-a; se não, fora com ela. Será que o canto serve para algum
propósito? – se sim, que propósito? – tem algum valor? – então retenha o canto: se
nenhum, fora com ele. Será que esse ou aquele sistema de gestos serve? – preserve-o –
ou livre-se dele. Podem os atores serem ensinados? – até que ponto? Qual forma de
espaço cênico é a certa para essa ou aquela peça – qual a mais próxima da melhor, qual a
menos boa? Escolha a melhor. Não existe? Então construa uma. Quaisquer que sejam as
respostas, submeta-se a elas. Estas e centenas de outras noções – esperanças – medos –
têm todas de serem testadas para simplificar-se aquela máquina conhecida como
130

Teatro51. Isto se provará muito caro, você pode presumir. Presumir não é certificar-se, o
fato é mais certo – e os fatos nos mostram que evitar testar tudo é o método mais caro de
todos.

Mas agora considerem. – Suponham que uma máscara pudesse ser boa aqui – má
ali. Boa em uma peça de Shaw – má em uma peça de Sófocles – sensacional em uma nova
forma de peça – e apenas boa em Ibsen.

Eu lhes peço para supor isso.

Bem, então, nós teremos tanto que rejeitar como aceitar a Máscara; – e essa
descoberta nos leva a ver que não existe nada que nós possamos rejeitar absolutamente.
Nós devemos aceitar tudo, mas não aceitar completamente. Isso também nos leva a
realizar que não é a aceitação integral ou a rejeição integral o que nós devemos ir atrás,
mas de ordenação – desenvolvimento – crescimento. Eu repito, nosso teatro é como um
crescimento.

Nós só temos que colocar nossos palcos uma vez mais em ordem, para consertar
todas as partes de seis quebra-cabeças juntos, que de algum modo foram misturados
confusamente em uma caixa, e nós podemos então dizer que estamos prontos para servir
o público.
51
Mas o que eu exijo e o que a Arte exige e o que as pessoas de uma nação que pagam pelo teatro têm o direito de exigir é que o mestre do
palco seja a única voz a impor autoridade… e essas decisões, tais como o que deveria ser, não deveriam ser vocalizadas por qualquer
número de sentinelas do palco, mas somente pelo mestre do palco… sim, nem mesmo pela amante.

Eu os desafio a criar uma obra de arte no teatro quando ninguém, além de uma única mente, e única voz, domine.

“Você vai provocar os socialistas e comunistas com essa fala.”Disse um amigo. Mas eu conheço os socialistas e comunistas tão
bem como meu amigo. Eu tenho concluído (e, sem dúvida, vocês o têm) que todos artistas que são comunistas ou socialistas são oponentes
ferozes de uma divisão de autoridade. Para eles, mais do que para qualquer outro, deve haver apenas um chefe.— Na verdade, eu comecei
a pensar que esses senhores que são supostamente tão desordeiros têm realmente uma ideia de ordem tão boa quanto Pedro da Rússia
uma vez a teve… melhor eu não diria.

Minha própria ideia de ordem não é tão mixa como a do tsar ou dos comunistas. Minha ideia é a antiga, não minha própria. Se
você tem cem homens trabalhando para você, ou se você tem mil, mantenha-os empenhados o tempo todo. Dê-lhes tempo para
descobrirem qual o serviço que cada um pode fazer melhor. Dê a ele esse serviço. É esse que ele vai apreciar. Os homens e mulheres
trabalhando hoje nos teatros não estão todos eles fazendo o que eles gostam. Eles amam o teatro, isso nós podemos conceder – mas nem
todos eles amam seu trabalho específico. Quando tiver um teatro, eu pretendo descobrir o que mais um ator pode fazer bem e se ele pode
fazer isso melhor do que ele pode atuar, e se ele gosta de fazer isso ele deve ser liberado de atuar e posto para fazer aquilo que ele aprecia.
Assim, ele será capaz de fazer um grande nome enquanto antes (como ator) ele só poderia falhar. De pessoas preguiçosas eu não vou falar
– ou me preocupar com elas –, nem com mixarias. Eles podem acordar em um mês ou ir-se. Quando tiver um teatro, eu não pretendo
entrar nele armado de um plano feito pela máquina sobre como tudo deve ser feito. Pois, como eu digo, eu não sou tsar nem comunista. O
teatro é como um jardim – as coisas devem crescer nele de acordo com as leis da natureza ajudadas pelas pequenas habilidades dos
jardineiros.
131

Agora, se você tem qualquer noção de organização você saberá que isso não é
para ser feito apressadamente (exceto por um Reformador) – ou terminado no papel
com penas e tintas, ainda que se possa começar dessa forma. Eu comecei assim por vinte
e cinco anos. O que eu comecei só pode ser completado em escolas sob a minha direção,
devotadas ao exame desse vasto material, e por homens devotados aos diversos ramos
da arte dramática de todas as terras e familiares a eles.

Não pode ser começado por um homem e ser apanhado e levado adiante por outro
sem perder praticamente todo seu valor. Não pode ser feito desse modo. O desenvolvimento
de uma ideia ou de um plano, para ser valioso, deve ser completado com a supervisão de
seu criador. Isto parece não ter ainda sido suficientemente compreendido nos dias que
correm.

O Mestre do Teatro e Drama, tendo simplificado seu plano, tem agora que decidir
qual caminho deve tomar para entregar seus bens às pessoas.

Há dois meios. O velho caminho e o novo caminho.

O velho caminho (ainda espero que seja o de mais juventude) é colocar todas as
suas descobertas a serviço de algum condutor52 – ou condutores (“patrão” era o velho e
respeitoso título).

Este homem ou esses homens providenciarão que essas descobertas alcancem as


pessoas a ponto de ser um benefício a elas. Esses homens existiram – mas não com muita
frequência. Mais frequentemente eles constrangem o mestre do Teatro e impõem sobre
ele seus egoísmos pesados e desimportantes. Isto é fatal porque pode custar muito.
Então existe um novo caminho. É o puro business.

E, ainda que me desculpando tenho que admitir isso, parece a mim ser o melhor.

Os negócios não precisam explorar a arte; – não têm direitos sobre ela – para
mudá-la; não é função dos homens de negócios mudar a arte; é a do artista. Se ele

52
‘Signor Mussolini fez uma visita a madame Eleonora Duse e discutiu com ela os melhores meios de fazer o teatro italiano representar a
vida espiritual da nação. Cf. Daily Journal, 4 dez. 1922.
132

colocar suas posições claramente de começo, e se ele recusar-se a aceitar condições que
são ruins para as artes, os homens de negócios sensíveis compreenderão e concordarão.

Mas se eles não concordarem, ele, mesmo assim, não precisa rebaixar sua arte,
pois pode ser um homem de negócios depois que tiver completado sua obra de arte.

Assim, então, o Mestre do Teatro como uma Arte tem sua próxima tarefa clara
diante dele.

Será levar isso para as pessoas desamparadas – E há meios de fazer isso, que só se
mostrarão a nós depois que tenhamos estabelecido nosso nome, nosso direito ao
reconhecimento como o primeiro em nossa linha.

Ser o primeiro nessa linha para sustentar os bens é ser o mestre do Palco.

(10) “Até aqui nossa investigação sobre o progresso da cena nos revelou que houve
quatro períodos distintos…

Isto nos traz a um Quinto período.

E que período.

É um período de internacionalismo – todo tipo de cena está “no mercado”.

Nós devemos aceitar isso – e simplificar como eu disse.

Inútil seria percorrer os oito ou nove mil teatros que existem hoje, chamando
administradores para reformá-los.

Eu nunca fui um reformador… mas alguns administradores o são. Eles já fizeram o


bastante para reformar suas casas. Outros são celebrados apenas por instituírem
reformas. Stanislávski – Reinhardt – Rouché – Copeau – Barker – Gessner – Antoine –
Scandiani e homens antes deles; ...Irving, o duque de Meiningen, Barnay, Talma, e uma
dúzia mais. Todos foram reformadores.
133

Mas isto é tudo no que diz respeito aos seus créditos pessoais como
administradores: não poderá nunca ser tomado em favor dos artistas. É uma questão de
propósito e revela uma capacidade de fazer a limpeza.

Artistas que tem o instinto criativo nunca reformam as coisas,... eles as criam.

Reformas para eles parecem uma perda de tempo. Porque gastar dez horas
desentranhando cordões embaraçados quando em cinco minutos o artista pode fazer um
novo novelo.

E agora com a vossa permissão eu irei para a quinta cena – a cena que eu criei 53.

Essa cena de que irei falar, não é a cena mostrada nos dezenove desenhos
reproduzidos neste livro. Mas emerge desses desenhos.

Como esse livro não deve ser lançado numa edição popular – e como chegará
somente àqueles que já conhecem meus outros livros e tiveram tempo de estudá-los – Eu
não tentarei explicar esses desenhos, assim como você não pediria a um músico para
“explicar” uma fuga que ele tivesse composto. – Eu os fiz em 1907, enquanto escrevia
meu livro Sobre a Arte do Teatro, aquele livro que contém os ensaios “O Ator e o Über-
marionette” e “O Artista do Teatro do Futuro”.

Esse tanto eu posso acrescentar. Esses desenhos são todos um cena, não vinte
cenas: uma cena. Não cenas de palcos com telões e madeira e artificialmente iluminados
por luzes de ribalta e suportes e refletores. Elas são iluminadas pelo sol. Elas são reais,
não mecânicas.

Se tivesse sido assumido como vantajoso me apoiar depois de 1900 e 1904,


quando eu produzi meus primeiros trabalhos londrinos para o palco – administrando,
desenhando, e ensaiando cinco produções completas para Londres, eu deveria a essa
altura apresentar a vocês essa cena, revelada aqui só em imagens, de fato materializada.
Eu lamento muito que seja capaz de entregar tão pouco quando eu quis tanto dar-lhes
53
Eu fiz essa cena (foi chamada “As Mil Cenas em uma Cena”) para meu próprio palco.

Eu não sou, graças, um vendedor de cenários para outras pessoas: Eu vejo que não sou.
134

tão mais, …tudo. Não é culpa de ninguém senão minha e vossa. Minha por não ter
nascido russo ou espanhol, vossa por terem sido ensinados a renegar vossos artistas.
Vocês não podem ajudar nisso – todas as coisas são imutáveis e estão certas como elas
estão, e em todo lugar na Europa e na América esse ensinamento de desprezar bens
feitos em casa é imposto à espécie humana. Alguém mais poderá explicar por quê. Os
italianos foram certa vez ensinados a não apoiar seus Marconis; nós na Inglaterra fomos
os primeiros a apoiá-lo. Darwin trouxe ao homem inglês uma descoberta muito simples
– que ele meramente fez progredir como uma teoria; instantaneamente se aprende a
fazê-la em pedaços com unhas e dentes. Wagner vem com suas mãos cheias de coisas
belas e é rejeitado pela Alemanha. Nietzsche na Alemanha abre a boca profética;
imediatamente endereçam-lhe um punho para ser enfiado pela sua goela. Rejeitar Byron
e aceitar Woodsworth – Southey, era muito custoso para a nação. Em números redondos
custa quase uma coroa. Perseguir Voltaire e paparicar Beaumarchais custa mais do que
um franco – mais que oitenta milhões – custa a vida do Ancien Régime. Rejeitar no
atacado o genuíno e aceitar o falso sem nenhuma consideração, como é feito nos dias de
hoje, não é recomendável.

O erro é ir aos extremos, mesmo quando se tratar do genuíno – pois então a carga
acaba recaindo à Nação e as pessoas é que perdem. Algum caminho pelo meio teria sido
melhor.

Pois então eu lhes teria dado a coisa mesma, não sua mera aparência, se tivesse
sido empregado depois de eu ter mostrado o que podia fazer.

Mas mesmo a despeito de toda essa indiferença eu fui capaz de levar o trabalho
um passo adiante, no sentido de realizá-lo dando com ele um passo atrás.

Nesse trajeto. Essas gravuras em metal, podemos chamá-las obras mãe de que
uma outra emergiu. Essa outra é menor – pretende fazer menos – pede menos – e de
135

algum modo se assemelha a seus pais. Foi um subproduto dos vinte desenhos no fim
deste livro54.

Essa cena menor, “As Mil Cenas em uma Cena”, Eu usei uma vez em um teatro em
Moscou para uma encenação de Hamlet55, e foi usado por W.B. Yeats, para quem eu me
orgulhei de oferecê-la, em algumas encenações do seu Abbey Theatre.

No entanto, apesar de ter sido usada ao todo, suponho, em umas quinhentas


apresentações, nunca foi utilizada como eu pretendi que fosse, exceto em dois grandes
palcos modelos que eu construí em Florença.

Nesses palcos eu permiti que existissem e se comportaram bem. Em Moscou e


Dublin não lhes foi permitido serem elas mesmas, e eu não posso admitir que
desempenharam bem.

Pois esta cena tem uma vida própria… Não é uma vida que, de qualquer modo, vá
contra a vida do Drama. Eu a fiz para servir o Drama, e o faz; serve o Drama poético
plenamente; e talvez eu perceba mais tarde que pode se fazer ainda mais útil.

Eu a chamo a quinta Cena, pois atende aos requisitos impostos pelo espírito
moderno – o espírito da mudança incessante: os cenários que nós viemos usando para as

54
Gordon Craig refere-se um pouco antes e um pouco depois a dezenove gravuras em metal, número que, de fato, integra o volume
original, de 1923. (N.da T.)
55
Shakespeare e a maioria do drama poético a ser encenado tem a suprema necessidade de uma cena de natureza especial… uma cena
com uma face móvel.

Se uma pesquisa cuidadosa for feita, se perceberá que Shakespeare não teve ainda uma cena especialmente criada para suas
peças.

Eu tentei suprir com uma – uma cena para o drama poético, tratasse ele do que tratasse.

Foi frequentemente dito, e será dito de novo, que Shakespeare cria suas próprias cenas na medida em que avança, usando
palavras para conjurá-las diante da nossa imaginação.

Mas, então, ele também usa palavras para conjurar diante de nós todas as pessoas – seus figurinos. Vamos nos recusar a
visualizar tudo?

Devemos guardar Shakespeare para lê-lo silenciosamente em nossos quartos? Se é verdade, então que ele não é mais para o
palco, está tudo bem. Mas se ele é apresentado por atores, e não apenas por palavras, vestidos em verdadeiros figurinos que indicam
algum período – então nos deixem propor uma cena em torno disso que deva sugerir algum lugar – Ou tudo são palavras, ou deixe tudo ser
visualizado.

Essa é claramente a conclusão lógica de toda a questão.


136

peças por séculos eram apenas os velhos cenários estáticos feitos para serem trocados.
Isto é uma coisa bem diferente de uma cena que tem uma natureza mutante.

Esta cena também tem o que eu chamo um rosto. Esse rosto expressa. – Seu
formato recebe a luz, e à medida que a luz muda sua posição e faz-se algumas outras
mudanças, e considerando que a própria cena altera sua posição – os dois atuando em
concerto como em um dueto, revelando a ambos como em uma dança – até o ponto de
expressar todas as emoções que eu quero que expresse. Sempre consciente de que como
um pano de fundo ao drama, ou à atuação, só pode desempenhar seu ofício com
discrição (e eu espero ser artista o suficiente para saber como fazer isso), enquanto
agora e novamente pode avançar e atuar de algum modo em um papel mais
proeminente.

Esse tanto, não mais.

Espero que não seja nem de menos nem demais.

(11) Não é necessário baixar a cortina durante a peça para que esta avance da cena um
para a cena dois e para a três até atingir a décima sexta.

A cena se sustenta por si mesma – e tem um único tom. Toda a cor utilizada é
produzida pela luz, e eu uso um bom tanto de cores agora e novamente – tais cores como
nenhuma paleta jamais pode produzir. Acredito que possa dizer que eu não vi cor tão
rica usada em qualquer cena ou qualquer palco senão neste…

E proponho esses poucos fatos porque os dezenove desenhos em branco e preto


da cena mãe nesse livro podem desencaminhar você na suposição de que eu começo e
termino com branco, cinza, e preto.

Esta pois é a quinta cena – uma cena de forma e cor sem nenhuma pintura sequer
– sem nenhum desenho nela – cena simplificada, com a mobilidade acrescentada a ela.
137

Agora uma palavra sobre essa palavra “simplificada”: … deixe-me explicar o que
quero dizer com isso.

O mundo já usou canetas de bambu – então canetas de pena – e depois canetas de


aço. Estas eram molhadas em potes de tinta: muitas vezes um homem molharia sua pena
ali antes que pudesse escrever uma página de sua carta.

Alguém então inventou a caneta tinteiro. Um homem pode escrever toda a sua
carta sem molhar sua pena nenhuma vez em qualquer pote.

O mundo então inventou a máquina de escrever.

Eu compararia minha cena à caneta tinteiro e não às máquinas de escrever.

Não é um pedaço de mecanismo; é um dispositivo simples, formatado como telas


– angular – liso.

Por que é formatado assim? Por que telas ou paredes lisas e chatas?

Eu vou contar-lhe. Você deve supor que eu estou fazendo na sua frente
rapidamente o que me tomou anos para fazer vagarosamente. Suponha a mim, então,
buscando encontrar a forma essencial de habitação do homem, de modo, depois, a fazer
a habitação cênica para o homem da cena.

Eu fiz rapidamente 250 modelos de suas várias habitações por toda aterra. Eu fiz
duas como usadas por ele em 5000 a.C. , três em 2000 a.C., cinco em 500 a.C., dez em 100
a.C., vinte em 100 d.C., trinta em 100O d.C., sessenta em 1500 d.C., cinquenta em 1700
d.C., e setenta em 1900 d.C.

Eu as pus de pé e alinhadas: – eu as estudei.

Eu pretendo rejeitar cada pedaço de cada habitação que eu não encontre em


todas as outras.

Por quê?
138

De modo a fazer uma cena.

Por quê?

Porque este fazer de cenas é algo como uma arte e não uma fábrica de brinquedo.
Eu não quero o lixo da babá no meu teatro.

Eu não quero gastar anualmente milhares de libras no costumeiro bric-à-brac do


teatro moderno.

Porque é um desperdício de dinheiro – madeira – panos esticados, e eu não quero


desperdiçar os poderes e a paciência de espectador dos espectadores e os poderes de
artista do artista. O artista fala para os espectadores por meio da cena, ele não existe
para dispor-lhes uma grande casa de bonecas.

Tendo rejeitado nos duzentos e cinquenta modelos qualquer peça que não
pudesse ser encontrada em todas as outras peças, eu conclui que me restavam as partes
essenciais que formam a habitação do homem. As paredes permanecem:

O chão.

O teto… nada mais.

E como eles são formatados?

Haverá pilares neles, próximo deles? – As partes se estendem – o telhado, por


exemplo? – alguma cornija – algum rodapé? Haverá portas, janelas, calçadas e assim por
diante? Não. Porque eu não achei tais coisas em todos os modelos. Eu descobri que as
únicas coisas em todas as habitações humanas eram – chão plano, paredes planas—
telhado plano.

O telhado liso é a única parte da habitação humana que pode às vezes variar.
139

Pois agora você vê como se dá de minhas telas, minha cena, serem compostas como são
de paredes planas e lisas. Eu queria reduzir a cena aos seus essenciais e eu descobri que
ela se reduzia a si própria. Eu não fiz mais de fazer o que foi ordenado.

Eu então acrescentei-lhe mobilidade.

Por quê?

Primeiro porque ela parecia pedir isso. Em segundo porque ela continuou a pedir
isso. Pedia isso em nome do ator. Essa mobilidade permite a ele se mover em uma cena
diferentemente formatada a cada noite pelo tempo que desejar. Suponha que ele não se
sente em casa nesse formato, ele pode mudá-lo e novamente mudá-lo. É como uma
centena de pares de luvas – ele pode logo encontrar o par que lhe serve e agrada.

Sendo um dispositivo e não uma real habitação, parecia pedir que eu deveria fazê-
lo de modo a que pudesse parecer ora um interior e ora o exterior de qualquer habitação
já conhecida no mundo – barraco de barro ou templo, – palácio de Versalhes ou a loja do
senhor Harrod.

E ele poderia ser esses quatro lugares?

Pode parecer como cada um dos quatro… pode parecer como quatrocentos
outros. Tem mesmo uma clara semelhança com quatrocentos diferentes lugares.

Eu não quero dizer que eu deveria sempre mostrar-lhe o papel de parede que
existe no escritório do sr. Harrod… ou sempre os dourados do palácio de Versalhes – ou
sempre o mármore no templo ou a lama no barraco… Mas eu darei a você a forma dos
quatro lugares, a luz pertencente a cada um deles – e três ou quatro detalhes: aqui uma
porta acrescentada – ali uma grelha e aqui de novo uma alcova que, quando você as vê,
deveria de algum modo trazer-lhe à mente a convicção de que vê o que era minha
intenção fazê-lo ver.

E você pergunta: imagine que eu não veja o que você intencionava me fazer ver?
140

Haverá trinta ou oitenta que não veem como outros cinquenta que veem: --
quanto a isso não posso ajudar... calha que sempre foi assim.

Algumas pessoas que iam ver Irving como Mathias em The Bells, ou Coquelin
como M. Jourdain, viam Mathias e M. Jourdain. Um número menor de pessoas não via
nada parecido com isso; – elas apenas viram M. Coquelin e Irving. Mas se, como todo
bom frequentador de teatro, você vai ao teatro para ver o que nós queremos mostrar-lhe,
você verá isso, se nós formos realmente bons trabalhadores do teatro.

O que o dispositivo faz? Você pergunta.

Como ele atua?

Ele faz isso: ele se vira em parte ou totalmente para receber a luz56.

Eu sintetizaria todo o problema com essas palavras.

– Então é tudo um problema da luz?

Não vamos nos apressar com nosso “tudo um problema de”; – Eu temo que não
possa dizer que se seja tudo um problema de uma coisa qualquer.

Não se chega à Simplicidade e à Elaboração por nenhum processo mais rápido do


que aquele de simplificação e elaboração que um atleta perfeito, ou um nadador perfeito
necessita para ultrapassar os outros… e com o corredor e nadador não é tudo um
problema disso ou daquilo… é um problema de atender a uma centena de coisas todo o
tempo.

Vamos em frente. Ao criar uma cena para um Drama que valha ser ouvido e valha ser
visto, não podemos nunca esquecer o que os espectadores demandam.

56
Isso não tem nenhuma relação com a pintura -- o que é pintado nos cenários antigos, eu pinto com a luz: não é usado nenhum tipo de
pintura.
141

Uma das primeiras de suas exigências é que eles sejam capazes de ver e ouvir os
atores a medida que desempenham diante de nós, especialmente seu rosto (ou máscara)
– e suas mãos e pessoa.

Por isso qualquer teoria que tente estabelecer os usos da luz em relação à cena
sem definir o uso da luz para a atuação é sem valor57.

Aqui pois estão alguns fatos gerais que são úteis de se lembrar.

1. Você pode ver um rosto – uma mão – um vaso – uma estátua melhor quando ela
tem como fundo uma superfície plana, lisa e sem cor do que quando tem como
fundo algo em que um padrão colorido ou algum outro objeto está pintado ou
esculpido.

2. A sombra de uma coisa (rosto, mão ou estátua) é visível para os olhos sem
dificuldade ou distração e é visível ao mesmo tempo que o é a coisa mesma.

3. Quando o rosto, mão, ou estátua são removidas, uma tela plana torna-se uma
coisa aborrecida de se olhar – os olhos se cansam.

4. O olho não pode olhar para dois objetos ao mesmo tempo. Quando nós ouvimos
um falante, seja em um quarto, ou em um Hall ou em um teatro, nós só olhamos
para uma coisa – seu rosto.

5. Em um teatro, nossos olhos seguem o falante; consequentemente quando dois


estão falando é comum e é melhor para estes dois que estejam o mais próximos
um do outro que lhes seja possível.

6. É essencial que eles estejam em sintonia em seu trabalho. Qualquer divisão nisso
e nós deveremos imediatamente sentir a divisão e não ver nenhum dos atores –
nossos pensamentos irão se deter sobre o cenário.

57
Sendo o ator e a cena apenas um, eles devem ser mantidos enquanto um diante de nós, ou estaremos olhando para duas coisas e assim
perdendo o valor de ambas. Seu valor está em serem um. Sendo um, a Peça, o Ator, a Cena têm que ser mantidos diante de nós e vistos e
ouvidos como um – ou ficaremos olhando para um e para o outro e perderemos o conjunto.
142

7. A tela contra que um ator é melhor visto é uma branca – pois pode ser sombreada
até qualquer tom de cinza, escurecida pela sombra; colorida por qualquer cor, e
isto sem mudar a cor do rosto do ator, de suas mãos ou figura.

8. Não há mesmo necessidade que o rosto de qualquer ator seja posto à sombra e
sua expressão perdida até que perca qualquer distinção expressiva… então, de
fato, o melhor seria obliterá-lo.

9. Nunca houve nenhuma necessidade de um cenário que assumisse uma aguardada


proeminência senão no dia em que o ator perdeu seu poder de expressão, seu
poder de agir, e até que ele começou a exigir o uso correto da cena e luz.

10. O uso da luz para o ator é aquele que o ajudará e o apoiará se este lhe mostrar
consideração. Pois a luz pode ser usada de muitas maneiras dramáticas – cabe ao
ator conhecer pelo menos cinquenta ou oitenta dessas maneiras. No momento,
ele reconhece em torno de seis.

11. O uso da luz para o ator só deve ser estudado pelo ator se ele observar o modo
com que a luz joga sua participação sutil na vida real. Se ele observar ele vai logo
realizar que a luz cênica pode ser a melhor amiga de seu trabalho. Como um apoio
à sua observação, o tratado de Leonardo da Vinci sobre a luz pode ajudar um ator
suficientemente avançado em seus estudos.

***

Tendo estabelecido alguns dos usos da luz para o ator, eu posso agora partir para
estabelecer a relação da luz com essa cena.

A cena se volta para receber o jogo da luz.


143

Essas duas, cena e luz, são, como eu disse, como dois dançarinos ou dois cantores
que estão em perfeita sintonia.

A cena supre as formas mais simples, feita de ângulos retos em paredes lisas, e a
luz corre para dentro e para fora e por toda extensão delas.

A cena não é meramente posta (ainda que, importante frisar, se sustente em seus
próprios pés) sobre o palco sem pensar-se em como será arranjada e alguma luz
projetada sobre, sem considerações sobre que luz – à medida que jorra – e o que esta luz
afinal poderá fazer.

No arranjo da cena, e no virar-se para receber a luz, e no arranjo e


direcionamento da luz restam algumas pequenas dificuldades.

Novamente, a relação da luz com esta cena é semelhante àquela do arco com o
violino, ou da caneta com o papel.

Pois a luz viaja sobre a cena – não fica para sempre em um lugar fixo, ...viajando
ela produz música. Durante todo o percurso do Drama a luz ou roça de leve ou corta,
inunda ou goteja, não é nunca realmente parada ainda que com frequência suficiente seu
movimento não deva ser detectado até que um ato tenha chegado ao fim, quando, se
tivéssemos qualquer poder de observação restante (e o Drama nos deveria curar de
qualquer desejo furtivo de observar), constatemos que nossa luz mudou completamente.

Cena e luz então se movem.

Eu posso ter qualquer número de peças em minha cena e eu posso ter qualquer
número de lâmpadas.

Por enquanto nós falaremos de uma cena com cinco peças – cinco telas e com dez
lâmpadas.

Tendo ensaiado com um pequeno conjunto delas em meu espaço cênico modelo,
em meu quarto, eu venho ao meu teatro e às minhas telas e lâmpadas maiores. Eu coloco
minhas telas em sua posição inicial. Agora eu testo cada tela de acordo com sua rotina
144

prescrita – o que quer dizer, meus oito ou dez manipuladores de telas praticarão com
cada uma delas para ver se são flexíveis e se cada um deles está bem ajustado. Isso feito,
eu próprio vou para minha mesa de luz e testo cada conexão, cada lâmpada – a força da
luz – a suavidade de cada polia, roda, andamento, e assim vai...

Quando estou certo de que minhas telas e minhas lâmpadas estão realmente
prontas, eu começo o ensaio.

O texto é lido no compasso em que será enunciado, e em cada deixa apontada


uma única ou duas abas de minha tela se move – ao mesmo tempo uma das minhas
lâmpadas começará a jogar sua luz com uma determinada força e de uma posição dada e
numa direção dada.

A cada deixa outra aba ou outras abas se movem – avançam – retrocedem –


dobram-se ou desdobram-se – imperceptivelmente, ou talvez algumas vezes
marcadamente, enquanto simultaneamente outras lâmpadas começarão a funcionar,
mover-se em suas posições, alterar suas intensidades, mudar suas direções 58.

Minhas telas podem mover-se de e para qualquer ponto no palco e nada obstrui
sua passagem.

Minha luz pode passar de e para qualquer posição no ar ou no espaço cênico e


assim jogar-se sobre qualquer ponto que eu necessite.

58
Esta arte eu posso ensiná-lo, mas não com pressa, pois me tomou anos para chegar a ela.

Requer que você aprenda a natureza dessa cena… o modo como ela pode ou não se transformar – suas possibilidades – suas
limitações. Requer que você aprenda a melhor posição para a luz, seja ela solar ou elétrica; os melhores meios de jogar essa luz sobre a
cena, colorindo-a, controlando-a. Eu não conheço ninguém que já tenha aprendido isso, ainda que alguns finjam ter esse conhecimento.

Isto é o que eu posso ensinar, pois é o que eu venho experimentando diariamente, até para ensinar a mim mesmo.

Eu não posso dar-lhes teorias sobre a cena, pois eu conheço tão pouco sobre isso teoricamente quanto o palhaço na peça
conhecia sobre a cobra que ele trouce para Cleópatra. Sobre mulheres ele teorizava, sobre as minhocas ele se retraía; tudo que ele disse era
principalmente advertência: -- “Perceba você,” ele diz, “a minhoca não é confiável a não ser para preservar pessoas sábias”; mesmo assim
ele prossegue como eu prossigo, dizendo, “eu desejo que você se divirta com a minhoca.”
145

Como essas duas simples tarefas são realizadas, eu lhe mostrarei com diagramas
que tornam isso bem claro, um ano depois de eu lhe ter mostrado seus desempenhos em
várias peças59.

Eu sinto muito que não possa mostrá-las a você aqui e agora… mas se eu o fizesse
minha iluminação e seu mecanismo simples seria rapidamente apanhado por algum
sempre alerta produtor de teatro ou algum de seus assistentes, que lhe colocaria a coisa
diante de si de uma maneira que eu acho poderia satisfazer os espectadores mais
pedestres60, a quem Shakespeare alude, mas que estou certo que não o satisfaria.

Portanto esse é um daqueles dispositivos que eu deveria guardar para você até
que nós sejamos autorizados a ter um teatro – e você possa vir a ele como espectador, e
eu para trabalhar nele ‘ a seu serviço’ como um artista.

É suficiente acrescentar que eu posso iluminar o rosto, mãos e pessoas de


qualquer ator dado, esteja ele em qualquer parte do espaço cênico, e sem iluminar a
cena, e eu posso pintar com luz qualquer parte da cena sem obliterar o ator por um
momento.

E eu não poderia dizer isso oito anos atrás.

Eu estou capacitado a dizer isso agora porque descobri como fazê-lo no curso dos
últimos quatro anos.

A questão seguinte, sobre o quanto é desejável e necessário sempre iluminar o


ator a qualquer momento da peça com a mesma quantidade de luz é uma que eu hoje
acredito pode ter que ser considerada com o ator… ninguém é mais razoável que ele
quando o teatro é aberto e levado na boa.

59
Depois que essa pequena cena de telas como seu pequeno método de iluminação for adotado, eu avançarei para o desenvolvimento
dessa cena maior mostrada a você nas vinte gravuras em metal. Esta é uma realização muito mais difícil – mas pedir para vê-la posta em
prática enquanto a versão menor de algo como a mesma coisa permanece por ser concretizada no teatro inglês – e em um teatro meu – é,
eu penso, olhar um pouco à frente demais.
60
Gordon Craig usa aqui a intraduzível expressão groundlings para referir-se ao público que ficava no chão do teatro elisabetano. (N.da T.)
146

Um pouco mais deve ser dito e terei terminado.

Eu posso colorir minhas telas ou a forma do ator em grande parte no mesmo grau
e com a mesma força e qualidade que um pintor utiliza em suas pinturas. Eu emprego
apenas luz… ele emprega suas tintas.

Eu estou limitado pelos meus meios tanto quanto ele o está pelos seus, e ambos
temos que obedecer nossos materiais e ferramentas particulares. – Ele não pode fazer
nada além de preencher uma superfície plana com cores – Eu não posso mais do que
projetar minha luz sobre minhas telas e figuras.

Mas enquanto ele tinha seus materiais e ferramentas já descobertos e um método


bem consolidado que lhe foi ensinado, eu tive que encontrar meus materiais e
ferramentas, e eu fui obrigado a inventar um método para usá-los.

Consequentemente, se eu ainda não alcancei um método tão perfeito de usar


essas coisas como ele o fez, e se eu não puder alcançá-lo antes que eu seja obrigado a
desistir do trabalho, outros para quem eu deixarei meus planos e experimentos devem
continuar depois que eu tiver terminado e descobrir melhores modos, se eles o puderem.

É por essa séria razão, tanto para preservar como para não perder as descobertas
que eu fiz, que eu anseio enormemente que possa ter uma oficina e assistentes
suficientes que possam levar adiante esse trabalho depois da minha morte. A nenhum
outro confiarei o que eu espero não estar sendo muito presunçoso em considerar de
valor.

Esta página permanece como um testemunho de que eu anunciei minha


necessidade dessas coisas, e de que me foram dados os meios de preservar minhas
descobertas para aqueles que vêm depois de mim.

Ou pode servir como um testemunho para exatamente o contrário

Gordon Craig, 1922


147

Bibliografia

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