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Os meios da
GRAÇA
Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua
em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. Fp 2.12-13
INTRODUÇÃO
A vida cristã é uma experiência maravilhosa. Começa através de uma obra
sobrenatural realizada pela imerecida graça de Deus no coração e na vida de uma
pessoa. O Espírito de Deus aplica a obra de Cristo, na cruz, aos muitos que estão
espiritualmente mortos. Ele os regenera, levando-os a arrependerem-se do pecado e a
exercitarem a fé no Senhor Jesus Cristo. Isto se chama salvação, que é uma obra
gloriosa da graça e do Espírito de Deus. Com frequência, os novos convertidos
indagam o que acontece após nascerem de novo e iniciarem a vida cristã. Uma vez que
Deus os salvou, Ele os deixa prosseguir motivados em seus próprios recursos e nas
obras de sua própria carne, para chegarem à presença dEle, no céu? O apóstolo Paulo
responde: “Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos
aperfeiçoando na carne?” (Gl 3.3). A vida cristã começa pela graça, pela atividade do
soberano Espírito de Deus, e deve ser continuada da mesma maneira. Isto não significa
que não existe qualquer atividade da parte do crente. Pelo contrário, a Palavra de Deus
afirma que os salvos foram criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de
antemão preparou para que andássemos nelas. (Ef 2.10);
Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós
tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. (Fp 2.12-13 nota: estes
versículos, que têm sido grosseiramente mal utilizados pelas seitas, não ensinam a
salvação pelas obras; antes, são dos muitos versículos que demonstram a completa
gratuidade da salvação). Além disso, os crentes são instruídos a crescerem na graça e
no conhecimento de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. (2 Pe 3.18). O que o
gracioso e amável Deus do céu concedeu aos crentes para ajudá-los a desenvolverem
sua salvação, fazerem as boas obras que Ele determinou e crescerem na graça?
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Deus ofereceu-lhes coisas específicas a fim de obterem esses resultados desejados;
ofereceu-lhes o que os teólogos chamam de meios da graça. A seguir, consideramos
esses meios de graça e de crescimento. Quando você utiliza os meios da graça, percebe
os resultados em sua própria vida: crescimento espiritual, maturidade, alegria,
santidade e semelhança a Cristo. Se estas qualidades estiverem sendo praticadas em
sua vida, haverá crescente comunhão com Deus. o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Você
será fortalecido e encorajado a andar com Cristo. Receberá a força e o poder espiritual
necessários para vencer a tentação, o pecado e Satanás. Obterá ajuda indescritível em
cada aspecto da vida cristã.
Disciplinas interiores
O autor divide as disciplinas espirituais em três categorias: interiores, exteriores e
comunitárias. Cada capítulo é dedicado a descrever cada uma das disciplinas
espirituais contidas nessas categorias. Nas disciplinas interiores, a primeira listada é a
disciplina da meditação, que é diferente da ideia de esvaziamento que estamos
acostumados. Foster chama a atenção para o caráter inquieto e barulhento que
estamos acostumados a conduzir nossas vidas e como a pressa está relacionada a isso.
A meditação cristã consiste em ser “a capacidade de ouvir a voz de Deus e obedecer à
sua Palavra” (p. 47). A segunda disciplina é a oração. O autor enfatiza que essa
disciplina é a principal, pois nos coloca em comunhão constante que o Pai.
Disciplinas exteriores
A primeira disciplina exterior listada é a simplicidade. Essa disciplina é uma realidade
interior que tem consequências exteriores. Ela é uma disciplina que nos liberta da
tirania do consumismo e da ostentação. Ela consiste em colocar o Reino de Deus em
primeiro lugar e termos nossas necessidades orientadas por essa direção. O espírito
dessa disciplina pode ser expresso na frase de Richard E. Byrd “Estou aprendendo
[…] que um homem consegue viver profundamente sem uma enormidade de coisas”
(p. 123). As atitudes internas que devemos ter para exercitar essa disciplina são:
“considerar dádiva de Deus tudo que possuímos”; “saber que é assunto de Deus, e não
nosso, cuidar do que temos”; “pôr os bens que temos à disposição de outros” (p. 131–
32).
Disciplinas comunitárias
A epígrafe de Agostinho que abre o capítulo que fala sobre a disciplina comunitária da
confissão diz “confessar as más obras é o primeiro passo para as boas obras” (p. 203).
Um aspecto que o autor destaca sobre essa disciplina é que ela também produz
crescimento. A Bíblia não apenas nos ordena a confessar nossos pecados a Deus, mas
uns aos outros (Tiago 5.16). Ele cita um trecho do livro Vivendo em comunhão, do
Bonhoeffer, que diz “nosso irmão […] foi-nos dado para nos ajudar. Ele ouve a
confissão de nossos pecados no lugar de Cristo.
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MEDITAÇÃO
Existe um ponto de partida, alguma disciplina que seja a largada dessa fantástica
caminhada? Cremos que sim, por que para executarmos todas as demais disciplinas,
precisamos antes de tudo conhecê-las, e para isso devemos aprender com as receitas
que o próprio Criador nos deixou para crescermos na piedade, ou seja, o começo é a
Escritura, pois nela o Pai nos ensina as demais disciplinas. Mas o que é meditar nas
Escrituras? Como se faz? Quais os benefícios? O marco zero A Bíblia é a nossa “única
regra de fé e prática4 ”, o que quer dizer que tudo que cremos e fazemos deve ser
regulado e orientado pelas Escrituras. Sendo assim, é ela o começo de tudo e sem a
orientação das Escrituras não poderemos desempenhar as demais disciplinas
satisfatoriamente, visto que a Palavras é que nos ensinam a orar, jejuar, servir, confessar
e etc. As Escrituras são o nosso marco zero, nosso ponto de partida e mais do que isso:
nosso ponto de referência, para que determinada disciplina não seja distorcida e assim
cause mais dano do que benefício. Exemplificando, as Escrituras nos ensinam a jejuar,
mas nos ensinam também que nosso jejum não deve ser motivo de orgulho espiritual,
ou ainda não devemos usar o jejum como forma de chantagear o Pai. A Bíblia é nosso
ponto de início e nosso ponto de referência. E o que a Bíblia nos diz sobre meditação?
As Escrituras nos dizem que devemos reaprender a viver quando somos redimidos em
Jesus (Ef 2.1-10), visto que fomos salvos para andarmos em boas obras e não para
continuarmos a viver a mesma vida de antes. Mas como reaprender a viver? A Bíblia é
o nosso manual para a nova vida. Ela nos mostra a vida, o ser humano e tudo mais a
partir da perspectiva do próprio Criador. Por isso, os autores bíblicos enfocam tão
encarecidamente que devemos moldar nossa vida não mais pelos padrões do sistema,
da natureza humana rebelde e do príncipe deste mundo, mas sim pela vontade do Pai
expressa na Palavra. O salmo 1 enfatiza tão perceptivelmente isso, nos mostrando que
feliz é o homem que não vive segundo os padrões do sistema, imitando o estilo de vida
de pessoas que não nasceram de novo em Cristo, mas que vive segundo a vontade
Deus, pois medita nas Escrituras (Salmo 1.1 e 2).
Meditação e leitura
Meditar nas Escrituras é ler as Escrituras? Segundo Dallas Willard, “Nós não só lemos,
ouvimos e inquirimos, mas também meditamos naquilo que está diante de nossos
olhos. Isso significa que nos retiramos em silêncio para, em atitude de oração e com
intensidade, nos concentrarmos no que estamos lendo, desta forma, o significado do
que lemos pode emergir e nos formar enquanto Deus trabalha no íntimo do nosso
coração, mente e alma5 ”. A Meditação nas Escrituras deve ser norteada por um desejo
profundo de ouvir o Senhor através da ação do Espírito Santo, um anelo por descobrir
a vontade do Pai a fim de podermos obedecer.
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Logo, Meditação é mais do leitura, mas é colocar sua vida em contato com a vontade
de Deus, ciente de que as implicações serão transformação de caráter e obediência
prática. Meditar é mais que folhear a Bíblia procurando textos bonitos e inspirativos, é
colocar-se diante do Pai para ouvir sua direção. Sem 4 Confissão de Fé de
Westminster, Capítulo 1 – Da Escritura Sagrada, Artigo 2. 5 Dallas Willard, O Espírito
das Disciplinas, p. 177. 5 disposição para relacionar-se com o Pai e para se submeter ao
senhorio de Cristo, a Meditação torna-se apenas um momento literário, hora de leitura
e não de transformação profunda no poder do Espírito.
O R AÇÃO
A oração é a disciplina que se segue imediatamente após a meditação. Isso por que as
Escrituras e a oração estão entre os principais meios através dos quais Jesus abençoa,
fortalece, ensina e conforta seus discípulos, ou seja, eles são meios de graça.12 Mas
afinal, o que é a oração? Como orar? Existem formas mais acertadas ou erradas de
orar? Vamos lidar primeiro com o conceito de oração. O que é orar? Hallesby diz que a
oração é “deixar Jesus entrar em nosso coração” e “abrir a porta, dando a Jesus acesso
às nossas necessidades, permitindo que Ele exercite seu poder para supri-las”.13
Eugene Peterson diz que “a oração é uma aventura ousada rumo à linguagem, que
coloca nossas palavras juntas com aquelas palavras cortantes, vivas, que penetram e
dividem alma e espírito, juntas e medulas e, impiedosamente, expõem cada
pensamento e propósito do coração”.
Relacionamento e comunicação
Costumamos pensar em oração como uma forma de obter benefícios do Criador, mas
as Escrituras enfocam algo primeiramente: relacionamento. Não existe
relacionamento entre duas pessoas que não se comunicam, e se dizemos que temos
um relacionamento com o Pai por meio de Jesus então entendemos que é no
momento de oração que esse relacionamento se torna evidente, real, palpável e
inegável. Orar é estar com o Criador, é comunicação e relacionamento.
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Como afirma César, “a prática da oração é a arte de entrar no Santo dos Santos e de se
colocar na presença do próprio Deus em espírito, por meio da fé, valendo-se do
sacrifício de Cristo, e falar com Deus com toda a liberdade por meio da Palavra audível
ou silenciosa”.16 A oração é o ambiente de comunicação em que Deus e o homem se
comunicam. Mas como pode o homem pecador se dirigir ao Deus Santo? Como é
possível que nós venhamos a ter essa comunicação com o Criador sendo pecadores?
O canal da oração
Jesus não apenas foi um homem cuja vida estava profundamente imersa na oração
como ensinou seus discípulos a orar. O ensino de Jesus não foi uma mera tabela do
que dizer no momento de oração mas o Senhor quis mostrar aos seus discípulos que a
oração passa necessariamente por algo muito mais essencial e profunda que é uma
atitude de oração. Vamos nos concentrar por agora no texto do Evangelho de Mateus,
no capítulo 6, versos 5 a 8, onde Jesus ensina sobre a motivação e o conteúdo da
oração. A motivação da oração Estamos no Sermão do Monte, um dos blocos de
ensino de Jesus mais famosos entre todos os Evangelhos. A partir do início do capítulo
6 Jesus começa a mostrar como os discípulos devem realizar suas práticas de justiça,
especialmente montando um contraste em relação à forma como os fariseus exercem
suas práticas de justiça.
A partir do verso 5 Jesus nos diz para não orarmos como os hipócritas, se referindo aos
fariseus. Os fariseus eram um tipo de partido religioso do tempo de Jesus muito
conhecidos de todo o povo. Eles eram muito admirados pelas pessoas em geral que
pensavam que esses homens eram super-homens da religião judaica, pois eram
grandes conhecedores das Escrituras e também se orgulhavam de serem observadores
rígidos dos mandamentos.
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Contudo, Jesus constantemente denuncia que os fariseus fazem todas estas coisas não
para agradarem ao Pai mas para serem glorificados pelos homens, e serem admirados
por eles. Jesus então ordena que o discípulo não ore em lugares públicos como esses
caras, e orienta que o discípulo entre em seu quarto e feche a porta para orar. O que
está em questão não é o lugar mas a motivação, que não deve ser de parecer mais
crente do que os outros, mas de ter relacionamento com o Pai, que nos vê em secreto.
O Senhor instrui que a motivação de orar seja pura, correta: ter relacionamento
qualitativo com o Pai. Muitas motivações distorcidas podem nos levar à oração:
barganha, medo, hábito religioso, culpa. Contudo, Jesus diz que um bom tempo de
oração deve começar com a motivação adequada.
O conteúdo da oração
Depois de falar sobre a motivação da oração, Jesus ensina sobre o que orar, qual o
conteúdo da oração. Jesus diz para não usarmos de vãs repetições, como os gentios,
que presumem que serão ouvidos por ficar tagarelando sempre as mesmas coisas.
Bem, afinal o que está em jogo aqui? Afinal, não podemos orar constantemente pelas
mesmas pessoas ou motivos? O que está em jogo aqui é o conteúdo da oração, que
não deve ser reduzido a um mero jogo de pedir e receber. Jesus diz para não orarmos
como os gentios, ou seja, pessoas que serviam aos ídolos indo aos templos para fazer
suas preces a essas falsas divindades. O que isso tem a ver? Bem, o lance é que essas
pessoas não iam até os templos para se relacionar com esses deuses, mas para buscar
favores nas mais diversas áreas da vida. Dependendo da necessidade, seria necessário
pedir a um deus responsável por aquela área. O que estava em questão não era
relacionamento, mas apenas o atendimento de uma necessidade.
Pedir, pedir e pedir para finalmente receber. Jesus nos alerta para que nossos
momentos de oração não sejam transformados em um balcão de pedidos e barganhas.
Se você parar para pensar é uma grande tentação entrarmos no momento de oração
para simplesmente agradecermos o que recebemos e pedirmos o que ainda
precisamos sem sermos necessariamente pessoais, sem falar de nós mesmos, sem abrir
nossos corações para conversar com o Pai. O Mestre nos aponta o caminho para não
reduzirmos o conteúdo da oração a uma tagarelice sem fim, nos assegurando que o Pai
sabe tudo que temos necessidade antes que venhamos a pedir. Jesus não está dizendo
para não pedirmos, já que, como bem observou Calvino, devemos orar pedindo ao Pai
como expressão de dependência e para obter maior confiança, mas não devemos fazer
do Pai um entregador de pizzas e nem da oração uma lâmpada mágica.
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JEJUM
Richard Foster, em seu livro Celebração da Disciplina, afirma que o jejum é uma das
disciplinas mais mal compreendidas, mal aplicadas e negligenciadas de nossa época17.
Para Foster, os motivos são por um lado a ligação histórica do jejum às práticas
ascéticas dos mosteiros e por outro lado a pregação nutricional de que ficar sem comer
é um atentado contra a saúde. De fato, o jejum é uma disciplina pouco ensinada nas
comunidades cristãs atualmente, e frequentemente é ligada ou a um fanatismo
indesejável ou é colocada de lado como coisa antiga e sem propósito.
Entretanto, o jejum é uma prática que tem grande visibilidade no Antigo Testamento,
sempre compreendida como uma disciplina de abstinência de importância e
profundidade, ligada ao lamento ou à humilhação do arrependimento (2Sm 12.16; Jn
3.5-8). A prática do jejum não fica restrita ao Antigo Testamento, mas o próprio Jesus
jejuou (Mt 4) e pressupôs em suas instruções aos discípulos que estes também
haveriam de praticar o jejum (Mt 6.16-18). Embora o jejum não seja enfatizado
longamente nos escritos do Novo Testamento, o próprio Jesus nos deu exemplo e
ensinamento a respeito desta disciplina, o que por si só nos deve levar a considerar esta
disciplina mais de perto.
Um apetite diferente
Evitando as ciladas
O jejum é uma disciplina que traz consigo tentações, como todas as demais, mas de
certa forma há uma cilada que é mais insinuante do que nas demais disciplinas: o
orgulho espiritual. O jejum, por ser uma disciplina que exige ao mesmo tempo
espontaneidade e rigor, pode vir a deteriorar num sentimento de superioridade
espiritual, justiça própria e até mesmo um toque de manipulação do próprio Deus.
Devemos manter em mente que o jejum deve produzir em nós um profunda
consciência de nossa necessidade do Senhor, uma postura humilhada e rendida. Para
tanto, devemos jejuar com os propósitos já citados em mente, e com uma motivação
pura em nossos corações, sobre o que conversaremos adiante.
Motivação acertada
Em seu ensino sobre a vida do Reino, Jesus ensinou seus discípulos sobre o jejum. Para
compreendermos o ensino de Jesus como ele está registrado em Mateus 6.16-18
devemos antes visualizar algumas características desse texto. Primeiro, é importante
notar que Jesus tinha alertado os discípulos sobre a necessidade de terem uma justiça
maior do que a dos escribas e fariseus (Mt 5.20). As pessoas que ouviram Jesus isto
devem ter rido ou chorado a princípio, pois os escribas e fariseus eram conhecidos por
seu íntimo conhecimento dos mandamentos bem como de sua escrupulosa atenção
para com eles. Mas então Jesus começa a mostrar que o discípulo deve superar a
hipocrisia farisaica de obedecer os mandamentos apenas exteriormente. O discípulo
deve alinhar não apenas sua prática com a lei, mas essencial e primeiramente seu
coração. É esse o espírito das aplicações da lei que Jesus faz: que o seu coração esteja
alinhado com o Reino (Mt 5.21-48).
Logo após mostrar que o discípulo do Reino deve estar completamente rendido e
mergulhado no Reino até o mais profundo de seu coração, Jesus começa a falar sobre
as práticas de justiça, ou seja, disciplinas espirituais. Na introdução de seu ensino sobre
as práticas de justiça, Jesus mostra como a questão da motivação é essencial para todas
elas (Mt 6.1). Jesus previne que o discípulo oriente sua prática para a finalidade de
alcançar glória religiosa como os fariseus e escribas. A motivação acertada é o começo
do sucesso da disciplina espiritual.
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O contrário também é verdade. Ao ensinar sobre o jejum, Jesus ensina que não
devemos jejuar com o fim de nos mostrarmos mais espiritualizados para os que estão à
nossa volta (Mt 6.16). Lembre-se sempre: jejuar é render-se à justiça do Pai e não uma
forma de nos sentirmos melhores conosco mesmos. Como bem notou Foster, utilizar
boas coisas para nossos próprios fins é sinal de falsa religião19, e isso é aplicável em
especial ao jejum. A motivação de jejuar deve ser portanto de render-se ao Senhor,
confessar nossa necessidade dele acima de todas as outras.
SOLITUDE
A solitude era uma disciplina muito conhecida dos primeiros discípulos e amplamente
praticada pelo próprio Jesus. Ele iniciou sua jornada ministerial passando quarenta
dias sozinho no deserto (Mateus 4:1-11). Na ocasião da escolha dos doze apóstolos, o
Senhro passou a noite inteira sozinho em um monte deserto, em profunda oração
(Lucas 6:12). Logo depois do milagre da multiplicação de pães e peixes, Jesus mandou
que os discípulos partissem pelo mar, despediu as multidões e “subiu ao monte a fim
de orar sozinho...” (Mateus 14:23). Após curar um leproso, Jesus “se retirava para
lugares solitários, e orava” (Lucas 5:16). Finalmente, quando estava prestes a enfrentar
os sofrimentos da cruz, Jesus se recolheu em solitude e oração no jardim do
Getsêmani (Mateus 26:36-46). A solitude era o momento no qual Jesus mantinha a
perspectiva clara das coisas, e geralmente antes ou depois de fatos e eventos cruciais ao
longo dos Evangelhos, Jesus procurava estar só com o Pai. A solitude era a disciplina
através da qual Jesus mantinha-se conectado com a perspectiva do Pai acerca das
coisas, de maneira que nem os apelos das multidões para coroá-lo nem as acusações e
ameaças dos líderes religiosos pudessem demovê-lo de sua missão.
A disciplina da verdade
Muitas vezes nos perdemos em nossos meios sociais. Perdemos nossa identidade,
nossos referenciais, e lutamos para fugir de nós mesmos, de nossa dor e angústia em
meio a conversações vazias, relacionamentos superficiais e até certo ponto
pecaminosos. A solitude nos leva a um encontro conosco mesmos, com o Pai, com a
verdade. A solitude é estar consigo mesmo para se ouvir, se conhecer, se ver. Para
Calvino, quanto mais nos conhecemos mais conhecemos a Deus, e quanto mais
conhecemos a Deus mais compreendemos e conhecemos a nós mesmo num ciclo que
não pode ser desligado. Em suas próprias palavras: “E assim na consciência de nossa
ignorância, presunção, miséria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e
corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte, senão no Senhor, se situam a
verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo que é bom, a
pureza da justiça, e daí somos por nossos próprios males instigados à consideração das
excelências de Deus”.22 20WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas, p.159. 21
APUD FOSTER, Richard J. Celebração da Disciplina, p.80 22 CALVINO, João. 17 A
solitude nos dá esse ambiente necessário ao crescimento do conhecimento de nós
mesmos e do Pai, nos libertando da escravidão de atuarmos o tempo todo diante das
pessoas com as quais nos relacionamos. A solitude é a disciplina da verdade, é o
momento em que as máscaras não funcionam e somos confrontados com a realidade
de nós mesmos.
Como todas as disciplinas, a solitude possui suas ciladas e devemos estar atentos para
essa realidade enquanto nos envolvemos nas disciplinas espirituais. A solitude á uma
das disciplinas de abstenção do nosso cardápio de disciplinas, onde nos abstemos de
relacionamentos com outras pessoas por algum tempo para dizer ao Pai que o
principal relacionamento que temos é o Senhor. Por causa dessa abstinência a solitude
pode acabar tomando ares de solidão espiritualizada. A solidão é a condição em que
estamos desligados de relacionamentos relevantes e profundos devido ao abandono, à
fuga, ao medo de relacionamentos. A solidão é o resultado de uma vida de
egocentrismo, de vaidade. Segundo Foster, a “solidão é vazio interior. Solitude é
realização interior”. A solidão é em si mesma, enquanto a solitude é uma disciplina
realizada com o fim de estarmos com o Pai para podermos amar as pessoas que estão à
nossa volta mais e melhor quando a disciplina terminar. James Bryan Smith mostra
como podemos diferenciar a disciplina da armadilha da seguinte maneira: “Solitude é
passar um tempo separado das outras pessoas.
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CURSO DE DOUTRINAS
Geralmente experimentamos a solidão quando não há ninguém por perto, mas não é
desse tipo de solidão que estamos falando. A solitude é um tempo que passamos
intencionalmente conosco mesmos e com Deus. Então, Deus pode fazer algo
poderoso dentro de nós na área da identidade”.24 A solidão se caracteriza pela
insuficiência de interação e comunicação emocional e pela falta de aproximação
afetiva que é fruto da superficialidade das relações. A pós-modernidade, tão marcada
por grandes avanços científicos e tecnológicos e pela expansão dos meios de
comunicação tem gerado, paradoxalmente, uma crescente sensação de solidão. Essa
solidão é na verdade fruto de individualismo, de auto-proteção e de uma atitude
pecaminosa e auto-centrada em que o indivíduo se recusa a se envolver em
relacionamentos onde possa ser amado e por sua vez amar. A solitude nos liberta da
solidão, pois ao estarmos e sermos na presença do Pai, tirando nossas máscaras,
estaremos cada dia mais aptos para sermos nós mesmos com as pessoas à nossa volta e
nos conectarmos verdadeiramente com elas.
COMUNHÃO
A caminhada cristã nunca é uma peregrinação solitária, já que não devemos perder de
vista que o Senhor nunca chamou pessoas para junto de si: o Pai prepara, separa e
levanta sempre um povo. Dizendo isto quero significar a verdade de que ninguém foi
chamado para caminhar sozinho no Evangelho, mas somos chamados para caminhar
com uma comunidade que já existia antes de nós e continuará existindo após nossa
partida. A comunhão é uma disciplina construída sobre a verdade de que o Senhor
chamou para si um povo, uma nação santa (2Pedro 2.9). Essa verdade é tanto visível
no Antigo Testamento, personificada na própria nação de Israel, como no Novo
Testamento, quando Jesus deixa uma comunidade de discípulos que devem caminhar
sempre lado a lado (João 15.12-17).
Espiritualidade comunitária
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C U R S O D E D O U T R I N AS
As Escrituras enfatizam a disciplina da comunhão como parte essencial da construção
da espiritualidade, de tal maneira que podemos até mesmo dizer que a comunhão é
essência da fé cristã. Mas por que a comunhão é tão essencial? Por que a comunhão é
uma conseqüência da salvação em Cristo. Ao longo de todo o capítulo 15 do
Evangelho de João Jesus mostra três áreas de relacionamentos do discípulo: a relação
com Cristo (versos 1- 11), a relação com o outro discípulo (versos 12-17) e finalmente
a relação da comunidade com o mundo (versos 18-27). Jesus aponta para a relação
comunitária como um desdobramento do fato de que os discípulos estão em Jesus
como galhos enxertados em uma árvore. Por que eles estão em Jesus e Jesus está em
seus discípulos, eles agora são membros uns dos outros, unidos por meio de Jesus em
uma comunidade de discípulos. Na seção central do texto, onde Jesus enfoca a
comunhão, o Senhor enfatiza o mandamento do amor. O amor é o caminho para se
exercer a prática da disciplina da comunhão, para através da comunhão edificar uma
espiritualidade comunitária, marcada por relacionamentos profundos e curadores.
Entretanto, nosso grande desafio é adentrarmos profundamente o sentido da palavra
“amor” aqui no texto, já que somos desafiados a nos amarmos uns aos outros não a
partir dos nossos padrões de amor, mas a partir dos padrões do próprio Jesus. “Que
vocês se amem como eu amei vocês!” João 15.12. Geralmente nossos discursos a
respeito do amor são bastante dilatados, mas quando somos realmente desafiados a
amar na prática não temos muita idéia do que isso significa. Contudo, as Escrituras nos
declaram como funciona esse amor, e o que fazer para traduzir na comunhão nosso
amor por Jesus e pelos outros discípulos.
CONFISSÃO
A vida cristã pode se deteriorar muito facilmente em atuação religiosa e a comunhão
se tornar um grande baile de máscaras. Isso acontece por que muitas vezes estamos em
estágios básicos do discipulado, mas somos levados a atuar como discípulos maduros
por pressão de nossa comunidade ou de nós mesmos. Ao invés de investirmos em
nossa maturação espiritual, gastamos tempo e energia aprendendo a atuar mais e
melhor para que venham a pensar que somos aquilo que aparentamos ser. Foster
afirma que os efeitos dessa atuação são desastrosos para nosso crescimento espiritual.
“Vivemos a comunidade dos crentes como uma comunhão de santos antes de vê-la
como uma comunhão de pecadores. Chegamos a sentir que todos os outros
progrediram tanto em santidade que nos encontramos isolados e sozinhos em nosso
pecado. Não suportaríamos revelar nossas falhas e deficiências aos outros.
Imaginamos que somos os únicos que não puseram os pés na estrada do céu. Portanto,
escondemo-nos uns dos outros e vivemos em mentiras veladas e em hipocrisia”.35
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CURSO DE DOUTRINAS
A confissão é uma disciplina que possui dois ambientes: a confissão individual, feita ao
Pai em oração, e a confissão comunitária, que acontece dentro do ambiente da
comunhão. Vamos enfatizar aqui a segunda perspectiva, já que a primeira já foi tratada
na disciplina da oração. Segundo Willard, “confissão é uma disciplina que funciona
dentro da comunhão. Nela, permitimos que pessoas confiáveis conheçam nossas
fraquezas mais profundas e nossas falhas. Isso nutre nossa fé na provisão de Deus para
nossas necessidades por meio do seu povo, nosso senso de ser amado e nossa
humildade diante de nossos irmãos. Assim permitimos que alguns amigos em Cristo
saibam quem somos na verdade, não retendo nada importante, mas procurando
manter a máxima transparência. Deixamos de carregar o peso de esconder e fingir, que
normalmente absorve uma quantidade espantosa de energia, e engajamo-nos
mutuamente nas profundezas da alma”.36 A confissão, portanto, é o ambiente em que
nos engajamos na prática de retirar as máscaras, parar de atuar e falar a realidade a
respeito de quem somos e como estamos com pessoas com as quais temos uma
profunda comunhão, pessoas que não vão nos destruir com sua crítica, mas que vão
nos exortar em amor e orar conosco. A confissão é o intervalo do baile de máscaras.
Crescimento real
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CURSO DE DOUTRINAS
Referências bibliográficas
BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão , 2010.
FOSTER, Richar J. Celebração da Disciplina 2. ed. São Paulo: Editora Vida , 2007.
GRUDEM , Wayne. Teologia Sistemática - Atual e Exaustiva. 2. ed. São Paulo: Editora Vida Nova , 2010.
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