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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Escola de Administração da UFBA


Núcleo de Pós-Graduação em Administração – NPGA.

CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM POLÍTICAS EGESTÃO DE SEGURANÇA


PÚBLICA – III CEGESP

LIMITES E POSSIBILIDADES DA INTEGRAÇÃO


SISTÊMICA ENTRE POLÍCIA CIVIL E POLÍCIA
MILITAR: UM OLHAR SOBRE A CENTRAL ÚNICA
DE TELECOMUNICAÇÕES DA BAHIA.

Misael de Sousa Santos


Márcio Amorim de Marcelo
Fábio Rodrigo de M. Oliveira

Programa de Estudos, Pesquisas & Formação Em Políticas & Gestão de Segurança Pública -
PROGESP

REDE NACIONAL DE ALTOS ESTUDOS EM SEGURANÇA PÚBLICA-


RENAESP/SENASP/MJ
LIMITES E POSSIBILIDADES DA INTEGRAÇÃO SISTÊMICA ENTRE
POLÍCIA CIVIL E POLÍCIA MILITAR: UM OLHAR SOBRE A CENTRAL
ÚNICA DE TELECOMUNICAÇÕES DA BAHIA.1

POSSIBILITIES AND LIMITS OF INTEGRATION SISTEMIC BETWEEN


POLICE AND CIVIL POLICE MILITARY: A LOOK ON A SINGLE
CENTRAL TELECOMMUNICATIONS OF BAHIA

Misael de Sousa Santos*


Márcio Amorim de Marcelo*
Fábio Rodrigo de Melo Oliveira*

Resumo:

Este artigo busca analisar, à luz do conceito de cultura organizacional, os limites e


possibilidades da integração sistêmica entre as Polícias Civil e Militar da Bahia tendo
como cenário de análise a Central Única de Telecomunicações. Tomando como
premissa a existência de culturas organizacionais “fortes”, bem como a existência
de “conflitos” inter-institucionais históricos e cotidianos, propomos uma
problematização considerando as resistências corporativas aos processos de
mudança que caracterizam as organizações policiais.

Palavras-chave: Cultura organizacional. Polícia. Integração sistêmica.

Abstract:

This paper analyzes, in light of the concept of organizational culture, the limits and
possibilities of systemic integration between Civil and Military Police of Bahia with the
scenario analysis of the Central Única Telecommunications. Taking as a premise the
existence of organizational cultures "strong" and the existence of "conflict" inter-
institutional historical and everyday, we propose a problem considering the
resistance to the corporate processes of change that characterize police
organizations

Keywords: Organizational culture. Police. Systemic integration.

1
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Administração da
Universidade Federal da Bahia (UFBA/RENAESP/PROGESP) como requisito parcial à obtenção do grau de
Especialista em Gestão e Políticas de Segurança Pública. Salvador/Bahia, 2009.
* Pós-graduandos do Curso de Especialização em Gestão e Políticas de Segurança Pública da Universidade
Federal da Bahia. Programa de Estudos, Pesquisas & Formação Em Políticas & Gestão de Segurança Pública
(PROGESP). Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP/SENASP/MJ).
misabia@yahoo.com.br, amorimdemarcelo@hotmail.com e capitaorodrigo96@gmail.com
1. Introdução

Enquanto operadores2 do sistema de segurança pública, a lógica que


informa o nosso ethos profissional é extremamente pragmática. Somos marcados
por uma cultura própria que possui um traço bastante característico: a valorização
da ação em detrimento da reflexão. Qual a origem disso? Ouçamos a argumentação
de MONET (2001, p. 111)3, a fim de entendermos melhor esta questão.

A cultura policial se marca, finalmente, por um conservadorismo


intelectual que, sob a capa do pragmatismo, privilegia o olhar
rasteiro, a tomada em consideração apenas dos elementos concretos
e o anti-intelectualismo. Tudo o que se apresenta sob a forma de
inovação, de experimentação ou de pesquisa suscita reações de
rejeição imediata. Pelo fato de ser redutora de incerteza, a
reprodução do “eterno passado” congela o universo policial em
práticas rotineiras e bloqueia sua capacidade de se adaptar à
mudança social. – grifo nosso.

Na condição de membros de organizações policiais, compartilhando o


mesmo universo simbólico, somos portadores de culturas organizacionais fortes e
desenvolvemos historicamente determinadas resistências corporativas. Sintetizando:
somos, institucionalmente, refratários às mudanças. Neste sentido, qualquer
tentativa que indique a possibilidade de transformação de nosso status quo
institucional é percebida com reservas: quase uma ameaça4. Apesar disto,
contrariamente ao que afirma MONET, ao longo do tempo fomos aprendendo a
conviver e a dialogar com as mudanças advindas dos processos sócio-políticos que
afetam diretamente as dinâmicas das organizações policiais (opinião pública,
mudanças de governo etc.). Afinal cumprimos ordens e temos que nos adaptar.
Contrariando esta lógica refratária, em 2003, a Secretaria de Segurança Pública da
Bahia (SSP/BA) criou a Central Única de Telecomunicações (CENTEL) e unificou –
em um mesmo espaço físico – as centrais de comunicação que existiam, até então,

2
Misael de Sousa Santos é sargento da Polícia Militar e trabalhou na Central de Operações do Corpo de
Bombeiros da Polícia Militar do Estado da Bahia (COBOM) de 1999 até 2003. Neste ano, com a criação da
CENTEL, passou a fazer parte do efetivo do Corpo de Bombeiros que trabalhava na CENTEL até 2004.
Atualmente trabalha no 3º Grupamento de Bombeiro Militar (3º GBM/Iguatemi). Márcio Amorim de Marcelo é
oficial – capitão – da Polícia Militar do Estado da Bahia e atualmente é Diretor da Penitenciária Lemos de
Brito. Fábio Rodrigo de Melo Oliveira também é capitão da PMBA; atualmente exerce a função de Assistente
Militar Adjunto do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, estando lotado no Batalhão de Guardas.
3
MONET, J. C. Monet. Polícia e sociedades na Europa. São Paulo: EDUSP, 2001.
4
Basta que pensemos no sentimento que causa a simples referência à palavra unificação nos meios policiais: um
misto de revolta e repúdio.
nas organizações policiais (Polícias Civil, Militar e Departamento de Polícia Técnica).
Membros destas instituições, marcadas por rivalidades históricas e disputas de
poder, passam a compartilhar informações e a conviver sob o mesmo modelo de
gestão administrativa a despeito de possuírem culturas organizacionais bastante
distintas.5
O conceito/categoria de integração sistêmica da Secretaria Nacional de
Segurança Pública (SENASP) é o elemento legitimador, norteador e o substrato
deste processo de implantação da CENTEL. O presente artigo insere-se neste
campo temático: busca analisar, à luz do conceito de cultura organizacional, os
limites e possibilidades da integração sistêmica entre as Polícias Civil e Militar, tendo
como pano de fundo a CENTEL. Tomando como premissa a existência de culturas
organizacionais “fortes”, bem como a existência de “conflitos” inter-institucionais
históricos e cotidianos, propomos uma problematização dos limites e possibilidades
desta integração sistêmica considerando as resistências corporativas aos processos
de mudança que caracterizam as organizações policiais. Para tanto, nossa pesquisa
foi construída em dois momentos e recorremos do ponto de vista teórico-
metodológico: i) à análise das práticas discursivas (FOUCAULT, 1972)6 de
segmentos profissionais ocupantes de posições estratégicas (delegados e oficiais) e
operacionais (praças e agentes) que desempenham suas funções na CENTEL e/ou
atuaram nas centrais independentes de comunicação existentes anteriormente; ii) à
análise do documentos (relatórios, propostas, planos etc) produzidos pela Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP), bem como pela Secretaria de Segurança
Pública da Bahia (SSP/BA), que se referem ao conceito/processo de integração
sistêmica entre organizações policiais;

5
Além da crítica ao modelo dicotômico de nossas polícias (Civil e Militar), há, na literatura que analisa as
organizações policiais ou as relações entre elas, uma espécie de consenso sobre o “engessamento” produzido
pelas culturas organizacionais das corporações que compõem o sistema de segurança pública, dificultando ou
até mesmo inviabilizando a implantação de mudanças. “Outro sério problema reside na divisão da atividade de
polícia em duas corporações – Civil e Militar [...] As instituições duplicam esforços, atividades e recursos
(banco de dados, sistemas de comunicação etc.); freqüentemente disputam espaço e concorrem entre si pela
exibição de resultados. Suas culturas organizacionais são muito distintas e suas relações são em geral
marcadas pela desconfiança, quando não pela franca hostilidade. Em alguns estados, a recente criação de
academias integradas para as duas polícias tem sido um tentativa de superar as ‘esquizofrenia’ institucional,
mas a verdadeira integração esbarra no artigo 144 da Constituição, cuja mudança até hoje foi postergada sob
pressão de interesses corporativos de ambas as instituições” (p. 36), grifo nosso – LEMGRUBER, Julita;
MUSUMECI, Leonarda; CANO, Ignácio. Quem vigia os vigias? – Um estudo sobre o controle externo da
polícia no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2003.
6
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber: Lisboa, 1972.
Na primeira parte do artigo contextualizamos a criação da CENTEL a partir
do conceito de integração sistêmica entre organizações policiais proposto pela
SENASP. Na segunda parte, problematizamos, à luz do conceito de cultura
organizacional, a resistência corporativa das organizações policiais (militar e civil)
aos processos de mudança, especificamente a criação da CENTEL. Na terceira
parte apresentamos uma discussão da metodologia utilizada na pesquisa.

2. Integração sistêmica e a CENTEL.

2.1 – Localizando o conceito de integração sistêmica.

A maneira como as funções das polícias civis e militares estão descritas na


Constituição Federal Brasileira de 1988 (Art. 144, § 4 e § 5), não deixa margem para
dúvidas quanto ao papel a ser desempenhado por ambas organizações no âmbito
da segurança pública estadual: à civil caberia as atividades de polícia judiciária, à
militar as atividades de policiamento ostensivo. Só com muito esforço interpretativo -
fugindo do positivismo característico das análises desta natureza - poderíamos
argüir que o texto constitucional “sugere” em seu Art. 144, caput,7 mecanismos de
integração dos órgãos de segurança pública no processo de manutenção da ordem
pública. O texto constitucional, no limite, permitiria inferir uma complementaridade de
funções e não uma integração das atividades.
A despeito disso, com a implementação do Sistema Único de Segurança
Pública (SUSP), em 2003, pela Secretária Nacional de Segurança (SENASP), a
busca pela atividade integrada ou integração sistêmica das organizações policiais,
tornou-se um dos eixos estruturadores que nortearia as ações daquela secretaria a
partir de então. Duas premissas, estabelecidas pela SENASP, permitem identificar o
papel estratégico atribuído ao conceito de integração no conjunto das “[...] políticas
multidimensionais e plurissetoriais de segurança pública.”: 1ª – “Política de

7
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I -
polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias
militares e corpos de bombeiros militares.”. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 20 out. 2008.
segurança implica em articulação sistêmica das instituições” e 2ª – “Sem
gestão integrada não há política de segurança pública” 8.
A partir da análise destas duas premissas e de alguns documentos (projetos,
propostas, diagnósticos etc) produzidos pela SENASP, percebemos que o conceito
de integração (à semelhança do valor atribuído ao conceito de participação, onde
este “[...] não é uma palavra vazia, um slogan demagógico, uma retórica populista,
nem uma fórmula mágica”9) configura-se numa das condições necessárias para a
construção de um “gerenciamento racional” (SOARES, 2000, p.47)10 da segurança
pública em todo o país. Integração torna-se um dos pilares da política de segurança
pública no bojo do Sistema Único de Segurança Pública.

2.2 – A CENTEL à luz do conceito de integração sistêmica da SENASP

Dentro deste contexto, o conceito de integração sistêmica dos órgãos


policiais que compõem o sistema de segurança pública torna-se fundamental para a
viabilidade do “novo paradigma de segurança pública” construído/proposto pela
SENASP. Ele funciona como uma espécie de cimento sem o qual as propostas,
projetos e ações ficariam desarticulados. Importância semelhante também é
conferida ao conceito de gestão da informação e de conhecimento policiais. Estes
conceitos, no conjunto das análises sobre segurança pública que fazem parte do
Plano Nacional de Segurança Pública (2003), ocupam posições estratégicas. No
Relatório de Atividades da SENASP (2003-2006), este tratamento dispensado à
gestão da informação torna-se uma preocupação. Melhor: ganha o status de
prioridade. Vejamos.

[...] A SENASP compreendeu que a construção deste sistema


[integrado de gestão do conhecimento e de informações
policiais] constitui um dos pilares fundamentais para a
implementação e conseqüente institucionalização do SUSP
(Sistema Único de Segurança Pública)tal como evidencia o
Plano Nacional de Segurança Pública. Sem informações
qualificadas, seja ao nível nacional ou local, qualquer iniciativa
na área de segurança pública está fadada, como se observou
nos últimos 30 anos, à produção de resultados que não

8
Plano Nacional de Segurança Pública, p. 05. Disponível em:< www. mj.gov.br/SENASP/pnsp_.htm>.
Acesso em: 25 out. 2008
9
Ibid, p. 18.
10
SOARES, Luis Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública no Rio de
Janeiro: São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
ultrapassam seus efeitos imediatos, gerando irracionalidade da
aplicação dos recursos, [...] fragmentação das ações e
incapacidade de pró-ação frente aos desafios colocados
diariamente. 11

Por conta disto, um bom caminho investigativo para compreender qual o


nível de alinhamento dos entes federados ao discurso senaspiano é analisar as
estratégias e mecanismos construídos por estes para transformar os conceitos de
integração sistêmica e gestão do conhecimento/informações policiais em ações
concretas. Por isso, entendemos que a CENTEL é um lócus privilegiado de análise.
É inconcebível, considerando o novo paradigma de segurança pública
proposto pela SENASP e a relevância dada ao processo de integração das
organizações policiais, a construção de um gerenciamento racional da segurança
pública desconsiderando a interface que a CENTEL desempenha entre o cidadão e
as organizações policiais e entre as próprias organizações. Ela é o input do nosso
sistema de segurança pública. Portanto, entender seu funcionamento/dinâmica, o
fluxo/tratamento dos dados lá produzidos, bem como de que maneira estes
subsidiam as ações rotineiras ou os planejamentos estratégicos das organizações
que a compõem (Departamento de Polícia Técnica, Corpo de Bombeiros, Polícias
Civil e Militar), é fundamental no contexto do novo modelo de segurança pública12
proposto pela SENASP. Sendo assim, não conseguimos compreender porque a
CENTEL não tem despertado o interesse de nossos pesquisadores. Pelo que
sabemos, independentemente do campo de conhecimento, não há uma só pesquisa
acadêmica que tenha elegido como objeto de pesquisa a CENTEL.13
2.3 - O surgimento da CENTEL diante da legitimidade do modelo de
centrais independentes.
11
Relatório de Atividades da SENASP (2003-2006). p. 03, Disponível em: <www.
mj.gov.br/SENASP/relatorio_2006.htm> Acesso em: 28 out. 2008.
12
A análise desses elementos (fluxo e tratamento das informações, estatísticas etc.), por si só, não permitem
entender as razões pelas quais um determinado modelo de gestão foi construído e implementado. O que
pretendemos enfatizar é que a compreensão destes aspectos, no caso específico da CENTEL, pode esclarecer o
papel atribuído e a importância conferida, pelo Sistema de Segurança Pública do Estado da Bahia, à gestão do
conhecimento e à informação policial.
13
Nas discussões preliminares sobre a construção da pesquisa – apesar de reconhecermos o cuidado
epistemológico/metodológico que todo “pesquisador-nativo” deve ter ao eleger um objeto de pesquisa imerso
em uma realidade muito próxima/conhecida – entendíamos , pelas razões seguintes, que poderíamos contribuir
significativamente para o entendimento da problemática de pesquisa que pretendíamos analisar: i) Vivenciamos
tanto o modelo de centrais de comunicação independentes, quanto o processo de criação da CENTEL e isso
poderia permitir a construção de insights teórico-metodológicos; ii) - Somos operadores do sistema de segurança
pública que – apesar de pertencermos a uma instituição caracteristicamente refratária às mudanças – acreditam
na possibilidade de construção de políticas públicas de segurança baseadas no diálogo inter-institucional ,
capazes de ultrapassar as limitações impostas por uma cultura organizacional refratária às mudanças.
O adágio popular “cada macaco no seu galho” serve perfeitamente para
ilustrar – até 2003 – a lógica operacional e estratégica que subsidiava,
principalmente no âmbito das comunicações14, o funcionamento das organizações
policiais participantes do sistema de segurança pública no Estado da Bahia.15 O
cidadão tinha à sua disposição, dependendo da natureza da ocorrência policial ou
do seu entendimento, três opções para atender às suas necessidades de
acionamento das instituições policiais em casos de necessidade. Cabe ressaltar
que o diálogo institucional entre estas restringia-se ao âmbito das operações
conjuntas de “combate” à criminalidade, baseadas na matriz meramente reativa de
policiamento, tão criticada pela SENASP .
Naquele ano, a SSP/BA – contrariando o modelo amplamente difundido e
legitimado de que cada organização policial, por conta de suas especificidades e
atribuições legais, deveria ter uma central de comunicação independente – cria a
Central Única de Telecomunicação (CENTEL)16. Falamos em legitimação do
modelo de centrais independentes pelo fato de que vivenciamos seu funcionamento
e baseados nos depoimentos colhidos através das entrevistas realizadas durante a
pesquisa, este desenho institucional – na visão dos membros das organizações
policiais - atendia ao quanto proposto. O depoimento de um sargento que trabalhou
no Centro de Operações da Polícia Militar (COPOM) e hoje trabalha na CENTEL é
revelador:

[...] Quando “inventaram” a CENTEL disseram pra gente que era pra
melhorar o serviço. Não vi mudar quase nada! Computador por
computador no COPOM também tinha. [...] A única coisa que mudou
é que agora tem muito cacique de outras tribos mandando em pouco
índio.[...] Preferia “meu” COPOM!

14
É interessante notar que apesar da criação da CENTEL - numa tentativa de integrar os sistemas de
comunicação das organizações policiais - até hoje tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Civil utilizam códigos
fonéticos operacionais completamente diferentes. Uma verdadeira “babel” será instaurada caso um PM e um PC
necessitem estabelecer, via rádio, uma comunicação baseada em seus códigos operacionais.
15
Até aquele ano, a forma de acionamento dos órgãos policiais pela população era realizada através dos
telefones 190 (Polícia Militar), 193 (Corpo de Bombeiros) e 197 (Polícia Civil).
16
Algum tempo depois (março de 2004), a SSP/BA cria a Superintendência de Telecomunicações
(STELECOM). “Órgão com a missão de suprir todas as necessidades de Radiocomunicação, Telefonia e
Circuito Fechado de Câmeras da Secretaria de Segurança Pública e de todas as Corporações a ela
pertencentes, atuando em todo o estado da Bahia. Agrega a CENTEL, onde funciona o Centro de Operações
das Polícias e Bombeiros, com o atendimento ao cidadão através do 190, que utiliza a integração entre
tecnologias de rádio-comunicação e sistemas de informação.” Disponível em:
http://www.stelecom.ba.gov.br/stelecom/p_co.aspx. Acessada em 30 set. 2008.
Diante disso, somos instados a questionar: já que o modelo de centrais
independentes gozava de certa legitimidade nos meios policiais e atendia às
necessidades operacionais e estratégicas de cada uma das organizações policiais,
por que a SSP “decidiu” criar a CENTEL? Em busca desta resposta, analisemos o
“discurso institucional” da SSP/BA para compreendermos melhor o contexto sócio-
político no qual a CENTEL foi criada.

Atendendo a uma determinação da SENASP (Secretaria Nacional


de Segurança Pública) de integrar as ações policiais, a Secretaria da
Segurança Pública do Estado da Bahia reuniu, em um mesmo
espaço físico, as centrais de comunicação da Polícia Militar, Polícia
Civil, Corpo de Bombeiros e Polícia Técnica, unificando o
atendimento via 190, 193 e 197. Essa integração ocorreu em
Fevereiro de 2003 com a criação da CENTEL (Central Única de
Telecomunicações). 17 - grifo nosso.

Aceitar o argumento de que a CENTEL foi criada pela SSP/BA atendendo a


“uma determinação” da SENASP, implica aceitar que aquela secretaria estaria
subordinada a esta e isso não corresponde à realidade dos fatos. Além disso, a
própria SENASP deixa claro que o respeito à autonomia dos Estados - relativa à
gestão de suas políticas de segurança - é um componente fundamental na
institucionalização e implantação do SUSP. Senão vejamos,

É um sistema [Sistema Único de Segurança Pública] criado para


articular ações federais, estaduais e municipais na área de
segurança pública e da Justiça Criminal, hoje totalmente dispersas.
Essa articulação não vai ferir a autonomia dos estados ou da Polícia
Civil ou Militar. Não se trata de unificação, mas de integração prática.
O sistema é único, mas as instituições que farão parte dele são
diversas e autônomas, cada uma cumprindo suas responsabilidades.
18

Por conta disso, podemos afirmar que a criação da CENTEL não decorreu
da constatação - mediante estudos/pesquisas ou eventuais críticas institucionais - da
ineficácia ou do desgaste do modelo de centrais de comunicação independentes,
vigente até 2003. Até mesmo porque este modelo refletia uma matriz de
pensamento, amplamente “legitimada” no campo da segurança pública, no qual as
organizações policiais eram concebidas como independentes e não precisavam

17
Sítio institucional da Superintendência de Telecomunicações (STELECOM). Disponível em:
<http://www.stelecom.ba.gov.br/stelecom/p_co.aspx> Acesso em: 25 out. 2008
18
Sistema Único de Segurança Pública. Pág. 10. Disponível em: HTTP://www.
mj.gov.br/SENASP/home_susp.htm> Acesso em: 25 out. 2008
dialogar entre si para cumprirem suas responsabilidades legais: seriam auto-
suficientes.
Por que, então, a CENTEL foi criada? Para responder esta questão é
preciso entender a relação entre os Estados e a União no contexto do PNSP,
implantando em 2003. Segundo Soares (2007, p. 89)19, o PNSP poderia ser definido
como “ [...] um conjunto de propostas articuladas por tessitura sistêmica, visando à reforma
das polícias, do sistema penitenciário e a implantação integrada de políticas preventivas,
intersetoriais.”
Como instância indutora das políticas públicas na área de segurança
pública no âmbito da União, a SENASP – lastreada no PNSP – desenvolveu uma
série de mecanismos intergovernamentais com o objetivo de condicionar a
transferência de recursos federais apenas aos estados que estruturassem propostas
de segurança pública com base em seus programas e diretrizes. Um dos eixos
estruturantes desses programas e diretrizes é o conceito/categoria de
INTEGRAÇÃO SISTÊMICA DOS ORGANISMOS POLICIAIS. Assim, a criação da
CENTEL inseriu-se num conjunto de ações20 adotadas pela SSP/BA visando atender
às exigências – e não “determinação” – colocadas pela SENASP para aqueles
entes federados que pretendessem captar recursos provenientes do Fundo Nacional
de Segurança Pública (FNSP)21.

3 – Integração sistêmica e resistência corporativa.

3.1 – Gênese da resistência corporativa: o olhar da cultura


organizacional

Diante da multiplicidade de organizações envolvidas no planejamento e


execução das políticas de segurança pública, a centralidade que o conceito de

19
SOARES, Luis Eduardo. A Política Nacional de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas. Revista
Estudos Avançados, n. 21 (61), p. 77-97, 2007.
20
A criação, em seguida, do Gabinete de Gestão Integrada de Segurança Pública da Bahia insere-se nessa
mesma lógica pragmática de alinhamento às diretrizes da SENASP.
21
O Fundo Nacional de Segurança Pública foi instituído pela Lei nº 10.201/2003. Seu objetivo principal à época
em que foi criado (art. 1º) era “[...] apoiar projetos na área de segurança pública e de prevenção à violência,
enquadrados nas diretrizes do Plano de Segurança Pública do Governo Federal”. A Lei nº 10.743/2003, que
alterou partes da Lei nº 10.201/2003, estabelece no Art. 4º, § 2º: “Na avaliação dos projetos [submetidos pelos
Estados] o Conselho Gestor [do Fundo Nacional de Segurança Pública] priorizará o ente federado que se
comprometer com os seguintes resultados: [...] II – desenvolvimento de ações integradas dos diversos órgãos de
segurança pública”
integração sistêmica ocupa, no conjunto de diretrizes da SENASP, é estratégica.
Ele aponta para a necessidade de aproximação entre instituições que, apesar de
terem dinâmicas distintas (práticas, rotinas, e culturas corporativas etc.), têm um
objetivo comum (a manutenção da ordem pública) e, por isso, precisam trabalhar
conjuntamente para atender melhor à sociedade, mediante a otimização de seus
recursos.
Nesse contexto, a integração sistêmica das organizações policiais torna-se
um truísmo. Integrar é preciso, necessário. Mas como integrar instituições tão
refratárias às mudanças e que “impede[m] a transparência das informações”? Como
essa integração se processa diante do “temor da unificação”22 vivido pela Polícia
Civil e pela Polícia Militar?
Como forma de reconhecer, ainda que implicitamente, a força que o
“fantasma da unificação” exerce sobre o imaginário coletivo das Polícias Civis e
Polícias Militares, a SENASP, ao mencionar o conceito de integração cerca-se de
todo um cuidado a aponto de alertar: “[...] não se trata de unificação, mas de
integração prática”.
Mesmo reconhecendo a integração como um instrumento estratégico para a
aproximação das polícias ou até mesmo como caminho para a reforma policial, a
SENASP admite a existência de uma resistência corporativa nas organizações
policiais que deve ser considerada no momento de realização de ações/iniciativas
conjuntas. Além desta advertência sobre a resistência corporativa, a SENASP
aponta outro problema crucial presente nas relações entre instituições policiais em
todo o país: a disputa de poder.

Há uma cultura corrente nas corporações policiais segundo a qual


informação é poder. Esse entendimento, ainda lastreado na velha
doutrina de segurança nacional, impede a transparência das
informações, pois qualquer servidor que as possua luta para não
compartilhá-la com outros (mesmo que não sejam importantes

22
Esse “temor” é real, justificável e atualíssimo. A criação de uma ou várias polícias estaduais únicas é uma
das propostas do PNSP: “[...] As mudanças mais profundas na segurança pública, que demarcarão o fim do
modelo de polícia criado nos períodos autoritários, exigem o estabelecimento de uma novo marco legal para o
setor de segurança pública. O Sistema Único de Segurança Pública deve ter como objetivo a criação paulatina
de uma ou várias polícias de ciclo completo” – pág. 52. Para uma análise do “modelo compartimentalizado” de
Polícia Civil e Polícia Militar, seu contexto histórico e das propostas encaminhadas ao Congresso Nacional
propondo a extinção das Polícias Militares e Civis e a criação de uma polícia única de caráter civil no âmbito dos
Estados, ver BICUDO, Hélio. A unificação das polícias no Brasil. Revista Estudos Avançados, n. 14 (40), p.
91-106. São Paulo: EDUSP, 2000.
estratégica e taticamente), com receio de perder seu suposto espaço
de poder.23

Qual a gênese dessa resistência corporativa presente nas organizações


policiais? Para compreender tal problemática é preciso considerar analiticamente
dois aspectos: 1º - A existência de um traço institucional presente em todas as
polícias: uma cultura comum. 2º - O papel desempenhado pelas culturas
organizacionais nas polícias, enquanto elementos de construção identitária e
institucional.
A análise de MONET (2006, p. 35)24, ainda que não se refira
especificamente à Polícia Civil e à Polícia Militar, ajuda-nos a entender melhor a
força desempenhada pela cultura organizacional nestas instituições. Segundo ele,
as instituições policiais se caracterizam por possuir

[...] uma cultura policial surpreendentemente comum, em que


pese à extraordinária diferença entre as estruturas policiais dos
diversos países. A natureza idêntica das funções, o fato de serem
titulares dos mesmos poderes de pressão, o peso da hierarquia e o
isolamento social dos policiais concorrem para que muitas
semelhanças sejam observadas e o corporativismo seja uma
realidade constante (proteção recíproca, defesa da instituição contra
ataques externos etc.) – grifo nosso.

A afirmação de que “há uma cultura policial surpreendentemente comum”


significa que as polícias são culturalmente iguais? Não é esta a questão. O que se
pretende enfatizar é a existência de um aspecto genérico, um ponto de intersecção,
uma convergência analítica entre instituições que – apesar de estarem espaço-
temporalmente distantes – guardam semelhanças simbólicas e, por isso, são
passíveis de serem compreendidas à luz de um conceito comum.

[...] Como instituições complexas, capazes de acumular experiências,


as estruturas policiais foram desenvolvendo uma cultura autônoma
sob a pressão das circunstâncias especiais e bastante difíceis.
Valores típicos passaram a ser compartilhados, oferecendo,
cada vez mais, resistências consideráveis às intenções
reformadoras – grifo nosso. 25

23
Sistema Único de Segurança Pública, p. 23. Disponível em: <www. mj.gov.br/SENASP/home_susp.htm >
Acesso em: 22 out. 2008.
24
MONET, J. C. Monet. Polícia e sociedades na Europa. São Paulo: EDUSP, 2001.
25
ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança no Século XXI: Rio de
Janeiro, Jorge Zahar. 2006, p. 19.
A despeito da existência desta “cultura policial” transversalizante e comum,
as organizações policiais são portadoras de um conjunto de práticas-saberes-
valores que confere sentido e legitimidade tanto às suas existências, quanto às de
seus membros, ou seja, possuem uma cultura organizacional própria, específica.
Neste sentido, o policial militar é policial, porém militar; o policial civil é policial,
contudo civil. Iguais, porem diferentes.
Essa cultura policial constrói subjetividades e dá sentido às vidas daqueles
que dela fazem parte. Assim, “ser policial é, sobretudo, uma razão de ser” (MUNIZ,
1999, pág. 02)26. O olhar desta autora - sobre aspectos diferenciadores da
identidade profissional do policial militar em contraste com outros servidores públicos
civis - ajuda-nos a entender mais apropriadamente essa questão.

A conduta militar do policial é exercida como uma espécie de


patrimônio incomensurável que se recebe [...] É anunciada como o
“grande diferencial” que permitia destacar o PM de outros
servidores públicos e demais atores do universo civil. [...]
consiste em um lugar privilegiado para encenar a aceitação e o
orgulho do pertencimento [...] São acionados como uma importante
referência simbólica. 27 - grifo nosso.

O que vem a ser este conceito de cultural organizacional e como ele pode
contribuir para que entendamos o papel da resistência corporativa das instituições
policiais diante da proposta de integração sistêmica da SENASP? Segundo FLEURY
(1987, p. 01)28, cultura organizacional

[...] é concebida como um conjunto de valores e pressupostos


básicos expressos em elementos simbólicos que em sua capacidade
de ordenar, atribuir significados, construir a identidade
organizacional, tanto agem como elemento de comunicação e
consenso como ocultam e instrumentalizam relações de dominação.

Uma abordagem investigativa, baseada no conceito de cultura


organizacional, possibilita uma compreensão analítica das organizações para além

26
MUNIZ, Jaqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. Cultura e Cotidiano na Polícia Militar
do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Ciência Política. 1999. 286f. Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro (IUPERJ) – Rio de Janeiro.
27
Op. cit. p. 95.
28
FLEURY, Maria Tereza Leme. O desvendar a cultura de uma organização – uma discussão metodológica.
Cultura e poder nas organizações. p. 15-27, São Paulo: Atlas, 1996
das abordagens meramente estruturais (distribuição de funções, metas, objetivos,
organogramas etc.) tão comuns quando se analisam organizações. Neste sentido,

[...] abre caminho para uma discussão mais profunda, que é o peso
da dimensão simbólica nas organizações e nas diferentes formas de
gestão. Mais ainda, ajuda a desmistificar a idéia prevalecente de que
o mundo dos negócios e da administração é movido, exclusivamente,
por uma lógica pragmática. 29

A cultura organizacional, além de viabilizar a aquisição de uma identidade


institucional por parte dos atores sociais envolvidos, pode funcionar simbolicamente
como um anteparo para as mudanças. Neste sentido, a cultura organizacional – em
relação às mudanças – pode ser disfuncional.

A maior disfunção – conseqüência negativa – da cultura


organizacional é a de criar barreiras à mudança. Uma organização
de cultura forte produz membros com um conjunto de
comportamentos explícitos que funcionaram bem no passado.
Naturalmente, a expectativa é de que estes comportamentos também
serão eficientes no futuro. Paradoxalmente, uma cultura forte pode
produzir rigidez na organização, dificultando as necessárias
mudanças para as novas condições 30 – grifo no original.

Ao discutir a dinâmica de internalização da cultura organizacional pelos


sujeitos e sua contribuição na resistência à mudança nas estratégias de gestão,
FISCHER (1996, p. 68) enfatiza,

Portanto, não se pode tratar a resistência à mudança como questão


genérica, um empecilho a mais nos projetos de desenvolvimento
organizacional: porque se as premissas básicas da cultura
organizacional permanecem válidas, ou suficientemente
internalizadas, mesmo as propostas de indiscutível qualidade técnica
e de prioridade estratégica não se viabilizam. 31

Nesse sentido, é preciso investigar a natureza dos pressupostos básicos –


valores introjetados e legitimados – de uma dada cultura organizacional para
compreender seus mecanismos de resistência às mudanças. A cultura
29
BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. Cultura Admistrativa: uma nova perspectiva das relações entre
antropologia e administração. Revista de Administração de Empresas, v. 36, n. 4, p. 6-19, Out./Nov./Dez. São
Paulo, 1996
30
MAMEDE, Antonio Augusto do Canto. A influência da Cultura Organizacional nos Processos de
Mudança.. Disponível em: < www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/bds.nsf/pdf>. Acesso em: 20 out. 2008
31
FISCHER, M. Desvendando a cultura nas organizações. Cultura e poder nas organizações. p. 68-75, São
Paulo: Atlas, 1996.
organizacional revela-se, portanto, um dado estruturante e uma chave-explicativa
fundamental para entender os limites e possibilidades de um diálogo
interinstitucional, sobretudo entre as organizações policiais.

4 – Notas metodológicas

4.1 – O valor heurístico do conceito de cultura organizacional.

Qual o conceito estruturante que serviu como substrato e informou o olhar


investigativo sobre o objeto de pesquisa – INTEGRAÇÃO SISTÊMICA – que
construímos? O conceito de cultura organizacional. Entender isso ajuda a explicar
as razões pelas quais optamos pelo uso do método qualitativo em nossa pesquisa
em detrimento do método quantitativo.
É possível medir/quantificar a cultura organizacional? Vejamos o que diz
MAMEDE (2008, p. 05)32 quando problematiza os usos deste conceito nas
pesquisas organizacionais:

[...] cultura é um conceito multifacetado o qual é difícil ser medido.


Um problema adicional de medição é que pesquisadores usam
questionários de escolha forçada o que impõe categorias
predeterminadas ao invés de desenvolver teorias básicas com
dados de culturas e organizações específicas. – grifo nosso.

Diante dessa “impossibilidade” de quantificar a cultura organizacional e a


cultura policial comum das organizações que estamos pesquisando, duas perguntas
surgem: 1ª - O que analisar para compreender uma cultura organizacional?; 2ª –
Qual o instrumento metodológico mais indicado? Se focássemos a análise em
aspectos aparentes da organização (comportamentos, documentos, relatórios,
linguagem, distribuição de funções etc.), apenas a dimensão manifestada da cultura
(MAMEDE, op. cit. p. 04) seria captada e outros aspectos, capazes de esclarecer
melhor a relação entre cultura organizacional e formas de gestão, ficariam “ocultos”.

“[...] Embora o nível manifesto seja facilmente acessível, ele


somente proporciona um entendimento parcial de uma cultura

32
MAMEDE, Antonio Augusto do Canto. A influência da Cultura Organizacional nos Processos de
Mudança.. Disponível em: < www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/bds.nsf/pdf>. Acesso em: 20 out. 2008
particular. Ao se observar somente este nível não se consegue
entender claramente uma cultura. – grifo nosso.

Diante disso, uma opção metodológica foi: i) Compreender – através de


entrevistas semi-estruturadas - a função legitimadora que os valores
organizacionais33, inscritos nos discursos dos atores sociais, desempenham na
dinâmica institucional; ii) Analisar documentos (relatórios, projetos, projetos etc.)
produzidos pelas organizações.

O emprego da entrevista qualitativa para mapear e compreender o


mundo da vida dos respondentes é o ponto de entrada para o
cientista social que introduz, então, esquemas interpretativos para
compreender as narrativas dos atores em termos mais conceptuais e
abstratos, muitas vezes em relação a outras observações. A
entrevista qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o
desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores
sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada
das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos
comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos.
34
– grifo nosso.

4.2 – Seleção dos documentos e percurso da análise.

O conceito de integração sistêmica cumpre em nossa pesquisa um duplo


papel. É objeto e, simultaneamente, um das categorias de análise que orientam as
nossas sucessivas tentativas de aproximação da realidade social que propusemos
investigar: o processo de integração sistêmica entre a Polícia Civil e a Polícia Militar
da Bahia no âmbito da Central Única de Telecomunicações da Secretária de
Segurança Pública da Bahia (CENTEL). Neste sentido, é fundamental que
possamos mapeá-lo no conjunto de documentos produzidos pela Secretária
Nacional de Segurança Pública (SENASP) na tentativa de captar/explicitar quais são
os sentidos a ele atribuído por aquele órgão, considerando sua relevância no
conjunto de ações propostas no novo paradigma de segurança pública em

33
Segundo TAMAYO (1996, p. 181), valores organizacionais são “crenças organizadas hierarquicamente,
relativas a metas organizacionais desejáveis que orientam a vida da empresa e estão ao serviço de interesses
individuais, coletivos ou mistos”.
34
GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin e GASKELL, George (orgs.),
Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Um manual prático (pp. 64-89); tradução de Pedrinho
Guareschi. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
implantação no Brasil.35 Desta forma, os documentos36 aqui analisados (relatórios,
diagnósticos, termo de referência, etc.) são aqueles produzidos pela SENASP que,
textualmente ou através de inferências, aludam ao termo/conceito/categoria de
integração dos órgãos ou instituições policiais.
O nosso olhar sobre os documentos investigados, inicialmente, procurou
responder às seguintes questões: 1º) De que maneira o conceito/categoria de
integração sistêmica entre os organismos ou instituições policiais é apresentado?;
2º) Qual o grau de importância conferido ao conceito de integração sistêmica no
novo modelo de segurança pública proposto pela SENASP?
Diante da dificuldade de acesso às versões impressas dos documentos que
analisamos37, trabalhamos, inicialmente, com os seguintes documentos
disponibilizados no sítio38 institucional da SENASP na internet:

1. Plano Nacional de Segurança Pública (2003);


2. Modernização da Polícia Civil Brasileira: aspectos conceituais,
perspectivas e desafios (2005);
3. Perfil das Organizações de Segurança Pública – Perfil das
Organizações Estaduais e Municipais de Segurança Pública -
Relatório Descritivo (2006);
4. Relatório de Gestão da SENASP – Exercício 2006;

35
Como corolário dessa centralidade ocupada pelo conceito de integração no novo modelo de segurança pública
no Brasil, vejamos o que diz o Decreto de criação do Sistema Único de Segurança Pública, 2007, art. 5º: “A
segurança pública deverá ser prestada com observância das seguintes diretrizes: [...] III – Integração dos
órgãos e instituições de segurança pública.”
36
Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), documento é: “Qualquer suporte que
contenha informação registrada, formando uma unidade, que possa servir para consulta, estudo ou prova.
Inclui impressos, manuscritos, registros audiovisuais e sonoros, imagens, sem modificações, independentemente
do período decorrido desde a primeira publicação.” (ABNT, NBR 6023, 2000)
37
Esta dificuldade de acesso às versões impressas dos diversos documentos produzidos pela SENASP é
paradoxal na medida em que contrasta com um dos objetivos principais desta secretaria: a formação e a
valorização profissional dos trabalhadores em segurança pública. Vejamos o que diz o Relatório Final sobre o
Mapeamento dos Programas de Atenção à Saúde das Instituições Estaduais de Segurança Pública (2009): “[...] A
capacitação não constitui um fim em si mesmo, mas possibilita aos profissionais analisar criticamente as
propostas de serviços de Segurança Pública e de desenvolvimento de recursos humanos face às reais
necessidades da população, à criação de novas tecnologias e à participação dos treinados na construção de
modelos alternativos.”. Como é possível analisar criticamente e participar quando o acesso àquilo que é alvo da
análise é dificultado? Até onde sabemos a distribuição das versões impressas destes documentos são destinadas
às equipes dirigentes das organizações policiais e não são divulgadas/distribuídas aos demais trabalhadores da
área de segurança pública.
38
Todos os documentos analisados estão disponíveis, integralmente, no endereço eletrônico: www.senasp.gov.br
4.2.1 - Integração policial: o olhar do Plano Nacional de Segurança
Pública.

Dialogar com a realidade que pretende modificar. Esta característica é


condição necessária para o alcance das metas estabelecidas em qualquer plano
orientador de políticas públicas que pretenda modificar determinado contexto sócio-
político. Por isso o Plano Nacional de Segurança Pública, ao invés de negar os
traços histórico-institucionais de nossas organizações policiais (disputas de poder,
resistência colaborativa, insulamento institucional etc.), reconhece sua existência a
ponto de indicar que a modificação do modelo de segurança pública vigente em
nosso país passa, também, pela reestruturação destas corporações. Senão
vejamos.

Um dos maiores problemas estruturais das polícias estaduais é a


dificuldade de trabalharem integradamente. A dualidade histórica do
setor de segurança pública criou um distanciamento entre a polícia
Militar e a Polícia Civil. Conflitos de competência e duplicidade de
gerenciamento, de equipamentos e de ações de policiamento fazem
parte do cotidiano das polícias nos estados. Mesmo com as
limitações decorrentes da estrutura constitucional, é viável adotar
diversas iniciativas que possibilitem às polícias atuarem de forma
integrada, compartilhando determinadas rotinas, procedimentos e
estruturas, racionalizando a administração dos recursos humanos e
materiais, e otimizando a eficácia do aparato policial39 - p. 30

Mesmo sendo “um dos maiores problemas estruturais”, o trabalho integrado


entre as instituições policiais é escolhido pela SENASP como um eixo estratégico do
seu modelo de segurança. Podemos afirmar que essa dificuldade de trabalho
integrado é, além de um problema estrutural, um elemento central da identidade
profissional de nossas polícias. Diante disso, qual modelo de integração a SENASP
propõe, considerando o dinamismo imposto pela problemática da segurança
pública? A saída apontada seria a tessitura de uma

[...] integração progressiva [que] constitui uma modalidade de


reestruturação gradualista das organizações policiais estaduais,
que viabiliza a mudança institucional reduzindo traumas e evitando
interromper a continuidade operacional, que seria muito grave na
área da segurança pública. Parte-se da integração entre ambas as
polícias, de suas estruturas, rotinas e procedimentos para, de uma

39
Plano Nacional de Segurança Pública. Disponível em: <www.mj.gov.br/SENASP/pnsp.htm>. Acesso em 10
de maio de 2009.
forma paulatina e em médio prazo, criar-se uma ou mais
instituições de ciclo completo40 - p. 30.

Apesar de afirmar textualmente que a criação de “uma ou mais instituições


de ciclo completo” seria decorrente da política de integração dos órgãos policiais, a
SENASP – até onde a análise documental permite - coloca-se contrária à unificação
das polícias. O professor Luis Eduardo Soares41, em suas análises sobre a política
nacional de segurança pública, enfatiza

[...] o SUSP não implicaria a unificação das polícias, mas a geração


de meios que lhes propiciassem trabalhar cooperativamente,
segundo matriz integrada de gestão, sempre com transparência,
controle externo, avaliações e monitoramento corretivo. (p. 89).42

Como forma de diminuir as resistências corporativas existentes das


instituições policiais face os processos de mudança que tentava implementar e
tentando arregimentar colaboradores nos meios policiais para a implantação de sua
política de segurança pública, a SENASP não mediu esforços para evidenciar no
Plano Nacional de Segurança Pública que integração das organizações policiais não
significaria unificação futura.

Esse sistema de segurança pública unificado não se confunde


com a junção das funções institucionais, legais, das polícias.
Pressupõe isso sim, a unificação da formação, da requalificação, das
rotinas e das áreas de atuação das polícias civis e militares. A
formação unificada das polícias é fator imprescindível para a
integração coordenada, profissional e ética do trabalho preventivo e
investigativo, tendo sempre como destinatário o cidadão, a sua
defesa e a proteção de seus direitos. (p. 31).43 – grifo nosso.

Por estarem envolvidas com uma realidade dinâmica e complexa como a


segurança pública, as instituições policiais incorporaram em suas culturas

40
Ibid, p. 30.
41
Luis Eduardo Soares é antropólogo e cientista político. Foi Subsecretário (janeiro de 1999 à março de 2000) de
Segurança Pública do Rio de Janeiro durante o governo de Garotinho. Secretário Nacional de Segurança Pública
(janeiro à outubro de 2003). Atualmente é Secretário Municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de
Nova Iguaçu (RJ) e professor licenciado da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Foi um dos idealizadores do
Plano Nacional de Segurança Pública.
42
SOARES, Luis Eduardo. A Política Nacional de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas. Revista
Estudos Avançados, n. 21 (61), p. 77-97, 2007.
43
Plano Nacional de Segurança Pública. Disponível em: <www.mj.gov.br/SENASP/pnsp.htm>. Acesso em 10
de maio de 2009
organizacionais um traço muito particular: uma valorização excessiva da dimensão
pragmática em detrimento de aspectos críticos e reflexivos. Vejamos o que diz
MONET (p. 111)44, acerca dessa valorização.

A cultura policial se marca, finalmente, por um conservadorismo


intelectual que, sob a capa do pragmatismo, privilegia o olhar
rasteiro, a tomada em consideração apenas dos elementos concretos
e o anti-intelectualismo. Tudo o que se apresenta sob a forma de
inovação, de experimentação ou de pesquisa suscita reações de
rejeição imediata.

Reconhecendo a existência deste viés nestas instituições, a SENASP


propôs e contemplou – em seu modelo de integração - uma estratégia concreta
capaz de conciliar o gerenciamento racional das dinâmicas criminais com o traço
pragmático das instituições policiais, mantendo suas autonomias operacionais e
“forçando” um trabalho colaborativo: a criação das Áreas Integradas de
Segurança Pública (AISPs).

Para integrar a atuação operacional de ambas as polícias serão


criadas em todas as unidades da Federação as Áreas Integradas de
Segurança Pública (AISPs), dividindo o estado em circunscrições
territoriais, cada uma sob a responsabilidade do comandante do
batalhão local da Polícia Militar e dos delegados titulares das
delegacias distritais. [...]impõe o trabalho cooperativo cotidiano,
desde o momento inicial, de análise atenta da dinâmica criminal, até
o momento da avaliação comum do desempenho policial, passando
pela implementação operacional dos métodos de ação
consensualmente adotados.[...] A experiência cooperativa servirá
para derrubar tabus corporativistas e para demonstrar as virtudes da
integração entre as diversas etapas do ciclo policial. (p. 32)

Apesar da SENASP não apresentar tal formulação de maneira explícita no


corpo dos documentos analisados, há uma tentativa de associar o conceito/idéia de
integração ao conceito de modernização. No diagnóstico sobre a situação das
polícias civis brasileiras45 esta associação integração/modernização vai além e
incorpora, também, o conceito de racionalidade. Senão vejamos

44
MONET, J. C. Monet. Polícia e sociedades na Europa. São Paulo: EDUSP, 2001.
45
Modernização da Polícia Civil Brasileira. Aspectos conceituais, perspectivas e desafios. Disponível em
<www.mj.gov.br/SENASP>. Acesso em 05 de maio de 2009.
Sendo órgãos do Executivo, as polícias Civil e Militar devem
trabalhar de maneira alinhada e complementar, isto é, integradas.
Integração significa o posicionamento racional de cada
organização em sua esfera de competência constitucional, mas
de uma maneira sincronizada do ponto de vista técnico. Uma
série de medidas pode ser apontada como referência de um
processo de articulação eficaz: • utilização da mesma infra-estrutura
das redes de telecomunicação; • compatibilização das áreas de
atuação; • planejamento comum descentralizado; • implantação de
Centros Integrados de Atendimento e Despacho, com aplicativos
georeferenciados dos atendimentos e registros de boletins de
ocorrência em sistema comum; • política de ensino e pesquisa sob
matrizes curriculares comuns - p. 23 (grifo nosso)

Em outro documento da SENASP46 - de caráter mais abrangente e por isso


extremamente significativo para os objetivos que propomos - o conceito de
integração – diminuindo certo protagonismo a ele conferido no novo paradigma de
segurança - necessita da operacionalização de outro conceito para ser
implementado: GESTÃO DO CONHECIMENTO.

Neste contexto, a SENASP tem como uma de suas principais metas


valorizar a informação como principal ferramenta de ação das
organizações de segurança pública. Busca-se construir, pela primeira
vez no país, um sistema de informações capaz de municiar os
responsáveis pelo planejamento das políticas públicas de segurança,
em âmbito nacional e local, as próprias instituições policiais, órgãos
da administração pública e a sociedade civil com informações
necessárias para aprimorar a participação de cada um nos processos
de planejamento, execução e avaliação das ações de segurança
pública, e com isto, constituir os alicerces que, reforçando o princípio
republicano e federativo, garantam a integração prática dos órgãos
que atuam na área de segurança pública – p. 04.

Na contramão do modelo adotado por nossas instituições policiais, onde a


gestão do conhecimento e da informação não é compartilhada, a SENASP propõe
como mecanismo de aprimoramento das ações de segurança pública a integração
prática lastreada no planejamento conjunto.

Uma das principais ações desenvolvidas foi a criação do Sistema


Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal
(SINESPJC). Este sistema constitui uma base de dados alimentada
com estatísticas de segurança pública e justiça criminal de todo o
Brasil e seus princípios fundamentais de constituição são a criação

46
Perfil das Organizações de Segurança Pública – Perfil das Organizações Estaduais e Municipais de Segurança
Pública - Relatório Descritivo (2006). Disponível em <www.mj.gov.br/SENASP>. Acesso em 05 de maio de
2009.
de conhecimento que promova a integração das organizações de
segurança pública e o subsídio para a implantação da gestão como
principio de administração destas organizações – p. 04

4.3 – Práticas discursivas e cultura organizacional.

Qual a melhor estratégia investigativa para analisar os limites e


possibilidades da integração sistêmica entre a polícia civil e a polícia militar? O que
privilegiar em nossa análise? Sendo nossa abordagem qualitativa, optamos por
analisar as práticas discursivas dos segmentos profissionais ocupantes de posições
estratégicas (delegados e oficiais) e posições operacionais (praças e agentes) para
compreender os sentidos atribuídos por eles à experiência de integração vivenciada
no âmbito da CENTEL. Tal opção metodológica buscou responder à hipótese central
que orientou nossas análises durante a análise das entrevistas47: os segmentos
profissionais da Polícia Civil e da Polícia Militar (agentes/praças, delegados/oficiais)
que atuam na CENTEL, por conta de uma cultura organizacional resistente às
mudanças, preferem o modelo de centrais independentes de comunicação que
existia antes da criação da CENTEL.
Apesar da pesquisa não ser baseada no método foucaultiano, a análise - a
partir do conceito de prática discursiva – das falas dos atores sociais pertencentes
às organizações policiais foi metodologicamente relevante. Os policiais - por
pertencerem a instituições que exercem uma influência significativa na construção
de suas subjetividades – aliam suas falas e opiniões aos discursos institucionais.
Neste sentido, é possível entender a organização através de seus discursos. “[...]
aquele que enuncia um discurso traz, em si, uma instituição e manifesta, por si, uma

47
Foram realizadas 04 (quatro) entrevistas semi-estruturadas. Sendo 02 (duas) com policiais militares e 02
(duas) com policiais civis. As entrevistas objetivavam compreender os sentidos atribuídos pelos entrevistados à
experiência da integração – ou não – entre a Polícia Civil e Polícia Militar vivenciada por eles no âmbito da
CENTEL. Pelo caráter flexível deste modelo de entrevista – onde o surgimento de novos questionamentos faz
parte da dinâmica e redireciona o interesse do pesquisador para aspectos importantes e, até então, não explorados
– optamos por construir as questões de forma genérica, não-direcionada, para permitir o livre fluxo da narrativa.
As perguntas feitas aos entrevistados foram as seguintes: “Trabalhar na CENTEL contribuiu na mudança de sua
visão sobre a PM/CIVIL? Em sua opinião a CENTEL representou um avanço ou um retrocesso no sistema de
segurança pública? Por que a CENTEL foi criada? Existem dificuldades de convivência na CENTEL entre
policiais civis e militares? Se existem a que você atribui isso? O modelo de centrais independentes, em sua
opinião, atendia às necessidades das organizações e era mais eficiente que o modelo de central única existente
na CENTEL? O convívio diário entre policiais diferentes – dividindo o mesmo espaço, os mesmos
equipamentos, as mesmas condições de trabalho – favorece ou dificulta a integração entre as instituições? A
CENTEL é uma experiência que deu certo? Em sua opinião quem deve dirigir/comandar a CENTEL?”
ordem que lhe é anterior e na qual ele está imerso.”48 Selecionamos para as
entrevistas aqueles sujeitos que trabalham na CENTEL e tiveram experiência
laboral ou contato anterior com o modelo de centrais independentes.
Ouçamos o que diz um oficial da Polícia Militar que exerce a função de
coordenador na CENTEL ao responder à seguinte questão: “Existem dificuldades de
convivência na CENTEL entre policiais civis e militares?”

Em minha opinião quem sente maior dificuldade são os policiais civis.


Eles, além de ser minoria, não conseguem se adaptar em um
ambiente onde há muitos militares. Ficam deslocados. [...] É visível a
resistência que eles [os agentes] têm para acatar ordens simples que
nosso pessoal encara com naturalidade.

A fala deste oficial evidencia o estereótipo que os policiais militares


constroem sobre o policial civil: aversão ao cumprimento de ordens. No âmbito da
polícia militar é amplamente difundida – quase um consenso - a idéia de que na
polícia civil não existe hierarquia e disciplina. Há uma dificuldade de entendimento,
por parte dos policiais militares, em aceitar que o universo institucional-simbólico da
Polícia Civil é diverso daquele existente na Polícia Militar. São lógicas distintas de
funcionamento e que por isso guardam particularidades difíceis de serem
percebidas/aceitas por sujeitos que não compartilham dos mesmos valores
institucionais.

Aqui na CENTEL há dois pesos e duas medidas. Quando nós


chegamos atrasados temos que responder as comunicações de
atraso. Quando o pessoal da civil chega atrasado ninguém diz nada.
A gente não trabalha na mesma função [atendente de call-center]?
Então? O tratamento tinha que ser o mesmo! E não é! – soldado.

Ao questionarmos um dos entrevistados (agente civil) sobre esse possível


tratamento diferenciado apontado acima, ouvimos a seguinte afirmação:

É claro que o tratamento tem ser diferente. Não sou militar! Sou civil!
Quando chego atrasado é porque tenho razão pra chegar. Nunca
respondi por atraso quando trabalhava em delegacia. Vou responder
aqui na CENTEL? Não pedi pra vir pra cá. Se não me quiserem aqui
podem me mandar pra uma delegacia.

48
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: 2007. p. 99.
Durante o período em que trabalhamos na CENTEL era comum os agentes
civis afirmarem que estavam lá não por vontade própria e sim por imposição. Que a
CENTEL era uma “geladeira”49 pra eles. O local “natural” de trabalho, na concepção
dos agentes, é a delegacia e não um local como a CENTEL. Por isso, eles afirmam:

Não fiz ACADEPOL50 pra ficar atendendo telefone e ficar falando com
a população. Meu serviço é prender bandido! Fazer investigação. [...]
O que é que eu produzo aqui? Nada! [...] São quase 20 anos de
polícia pra ficar aqui ouvindo desaforo de cidadão pelo telefone.

5. Considerações preliminares

5.2 – CENTEL: integração possível diante das culturas organizacionais


policiais?

Como salientamos acima, a Polícia Civil e a Polícia Militar são instituições


que possuem uma cultura organizacional muito forte. Portanto, desenvolveram ao
longo de suas histórias, conjuntos de práticas, procedimentos e valores institucionais
que funcionaram “[...] bem o suficiente para serem considerados válidos e ensinados
a novos membros como forma correta de perceber, pensar e sentir” (FLEURY, 1996,
pág. 20)51.
Para além do discurso de integração das ações policiais apresentado pela
SSP/BA - lastreado no conceito de integração sistêmica da SENASP - o que
significou, na prática, a criação da CENTEL? Em nosso entendimento e a partir dos
achados da pesquisa, significou a convergência de instituições marcadas por
rivalidades históricas e culturas organizacionais resistentes às mudanças (Polícia
Militar e Polícia Civil) para um “mesmo espaço físico”. Aspectos como estes
(resistência às mudanças, rivalidade histórica, cultura organizacional forte),
precisariam ser considerados e reconhecidos como fatores condicionantes no
planejamento dos mecanismos ou estratégias de integração entre organizações
49
“Geladeira” é o termo utilizado no jargão policial pra designar as unidades administrativas onde os policiais
estão isentos de envolvimento nas atividades de policiamento. As transferências para estes locais, geralmente,
ocorrem contra a vontade dos policiais e, por isso, são percebidas como castigo ou uma medida pra “tirar de
circulação” policiais considerados mais atuantes.
50
Academia da Polícia Civil da Bahia. Unidade de Ensino da Polícia Civil da Bahia responsável pela formação e
qualificação de agentes, delegados, escrivães e peritos-médicos.
51
FLEURY, Maria Tereza Leme. O desvendar a cultura de uma organização – uma discussão metodológica.
Cultura e poder nas organizações. p. 15-27, São Paulo: Atlas, 1996.
policiais, principalmente na implantação de um órgão tão importante para o sistema
de segurança pública baiano como a CENTEL. SCHEIN (1986, apud MAMEDE, p.
09), analisando a importância da cultura organizacional nos processos de mudança,
aponta que

[...] o planejamento de mudanças deve ser mediado pela cultura


organizacional, ou seja, quanto mais importante a ação da mudança
for para a estratégia, maior deve ser sua compatibilidade com a
cultura da organização.52

Para BARBOSA (1996, p. 07), além de “[...] designar um novo campo de


interesse no interior da administração”,

[...] a cultura de uma empresa é uma variável importante, podendo


funcionar como um complicador ou um aliado na implementação e
adoção de novas políticas administrativas, relacionando-se também
ao seu desempenho econômico. 53

A questão de fundo que levantamos, refere-se ao poder que a cultura


organizacional tem para influenciar no êxito ou no fracasso das decisões
gerenciais/estratégicas das instituições. Por isso deve ser considerada como uma,
dentre tantas outras, variáveis que interferem no sucesso das organizações,
independentemente de suas características (pública, privada, civil, militar etc.).
Compartilhemos, então, com PETTIGREW (1996, 145)54 o seu questionamento: “A
cultura das organizações é administrável?”

5.3 - O caráter genérico do conceito de integração

O conceito de integração sistêmica, no contexto do novo paradigma de


segurança pública proposto pela SENASP, não pode ser compreendido como mero
elemento de retórica que visa quebrar o tabu das resistências corporativas das
instituições policiais. Não se trata de um conceito ingênuo, mero acessório
argumentativo. Na medida em que a implementação de ações de integração entre

52
MAMEDE, Antonio Augusto do Canto. A influência da Cultura Organizacional nos Processos de
Mudança.. Disponível em: < www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/bds.nsf/pdf>. Acesso em: 20 out. 2008
53
BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. Cultura Admistrativa: uma nova perspectiva das relações entre
antropologia e administração. Revista de Administração de Empresas, v. 36, n. 4, p. 6-19, Out./Nov./Dez. São
Paulo, 1996.
54
PETTIGREW, Andrew M. A cultura das organizações é administrável? Cultura e poder nas organizações. p.
145-153, São Paulo: Atlas, 1996.
os diversos órgãos policiais dos entes federados é uma das condições necessárias
para a transferência de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública, o
conceito de integração torna-se uma ferramenta poderosa de convencimento
ideológico num contexto social marcado pela politização da segurança pública.
Apesar desta importância atribuída à integração entre as instituições policiais, não
encontramos uma sistematização sobre este conceito/categoria nos documentos
que analisamos. O caráter conferido é extremamente generalizante.
O Relatório de Gestão da SENASP (2006)55, ao enfatizar as dificuldades
políticas enfrentadas na implantação das ações e programas no campo da
segurança pública em todo o país, é revelador.

Infelizmente, mudanças estruturantes relacionadas, por exemplo, à


reorganização institucional, à articulação sistêmica das organizações,
ao fortalecimento da perspectiva preventiva e à valorização da
informação como principal ferramenta de ação, caminharam em ritmo
lento e encontram-se a espera de um contexto político mais propício
para serem executadas.

O que vem a ser este “contexto político mais propício” para a implantação
das mudanças necessárias no campo da segurança pública em nosso país? O
Relatório da SENASP silencia sobre isso. Essa assertiva corrobora com a idéia
amplamente difundida na literatura que analisa a relação entre políticas públicas na
área de segurança pública: NO BRASIL SEGURANÇA PÚBLICA É UMA QUESTÃO
DE GOVERNO E NÃO DE ESTADO.

REFERÊNCIAS

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Empresas, v. 36, n. 4, p. 6-19, Out./Nov./Dez. São Paulo, 1996.

55
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