Você está na página 1de 14

Entre Apolos e Dionísios: conflitos e moralidades em favelas do Rio de

Janeiro

Fabiano Dias Monteiro


(Bolsista Pos-Doc da FAPERJ, UFRJ)

Jonas Pereira Araujo


(UERJ)

Lidiane F. Malanquini
(ESS/UFRJ)

Problematização inicial

A apresentação em tela tem como objetivo realizar uma reflexão acerca dos desafios
impostos à formação dos policiais militares do estado do Rio de Janeiro, a partir do
advento da instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Setores da academia, organismos internacionais, ativistas de direitos humanos e grupos


da sociedade civil organizada têm percebido, ainda no período pós-ditadura militar, a
atuação policial como uma forma de ação do Estado orientada por formas,
recorrentemente, autoritárias, repressivas e punitivas. Não raro, a questão da formação
policial emerge como uma componente, senão central, profundamente significativa no
perfil de nossas polícias (em particular a Polícia Militar). (Kant de Lima, 2003)

Com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), programa de ocupações


permanentes por parte da polícia militar em áreas “conflagradas” __ “dominadas pelo
tráfico” __, a performance policial e a formação dos agentes tornam-se (se é que em
algum momento, nas últimas décadas, deixaram de sê-lo) temas obrigatórios, havendo
inclusive um grande interesse da mídia nos mecanismos de solidariedade e aproximação
que floresciam __ou precisavam florescer __ na relação entre polícia e comunidade.

Algumas perguntas impõem-se diante deste cenário. Até que ponto a formação de
praças e oficiais os capacita para estes novos padrões de interação? Como a “cultura
policial” __partindo da premissa que exista “uma cultura policial”__ difundida e
reproduzida pelos centros de treinamento __partindo novamente da premissa que estes
espaços sejam núcleos de reprodução de formas de percepção da realidade __ está
relacionada com a atuação destes operadores? Por fim, resta perscrutar, assumindo uma
perspectiva geertziana, quais são os significados construídos pelos próprios policiais
acerca de sua formação e da adequação desta ao trabalho nas UPPs.

A Análise e seu objeto – Apresentação

O trabalho presente estrutura-se a partir da participação que seus autores tiveram (um
como coordenador, os outros como pesquisadores/monitores) na elaboração do Curso
de Saúde Preventiva e Assistência à População, a saber, uma experiência desenvolvida
pelo Comando de Polícia Pacificadora da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
em parceria com a ONG Viva Rio. Este curso estruturou-se a partir da percepção, por
parte do Comando de Polícia Pacificadora (CPP), de que a formação policial ministrada
aos recrutas poderia ser aprimorada, através de discussões que aprofundassem o tema da
relação entre polícia e comunidade, adequando-se, destarte, às exigências do tipo de
policiamento praticado nas UPPs.

Assim, o curso, que foi formatado com carga horária total de 24 horas, desenvolveu-se
entre os meses de novembro de 2010 e outubro de 2011, capacitando um total de 603
policiais (majoritariamente soldados), lotados em todas as 18 unidades de polícia
pacificadora, distribuídas pela Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Ocorrendo na sede da ONG Viva Rio, situada no bairro da Glória, Zona Sul do Rio, o
Curso de Saúde Preventiva e Assistência à População foi modelado para discutir temas
como a “qualidade de vida” nas comunidades recém-pacificadas e o papel da polícia na
construção de uma rede local de proteção social. As disciplinas, ministradas por
policiais instrutores e, principalmente, por pesquisadores da área de ciências sociais
(Sociologia, Antropologia, Psicologia, Relações Internacionais e Serviço Social), eram
as seguintes: Gestão do Espaço Urbano; Drogas e Redução de Danos; Primeiros
Socorros; Saúde Física e Emocional dos Policiais; Juventude e Sexualidade e Relações
de Gênero e Violência contra a Mulher.

Semanalmente, eram realizadas reuniões entre os técnicos e pesquisadores da ONG e os


policiais alunos, visando a elaboração de ajustes ou adequações no conteúdo
programático. Contudo, estes encontros, que perfizeram um número total de 33, no
período citado, terminaram por revelar-se como um espaço privilegiado para a discussão
sobre percepção dos policiais de UPP sobre o seu cotidiano profissional, sua formação
nas academias de polícia e sobre os desafios impostos pela lógica do policiamento de
proximidade.

“Cultura policial” e Formação Policial: uma estrutura de significados

Antes de avançar é necessário abrir, ainda que dentro dos limites desta apresentação,
duas frentes de reflexão cabais aos nossos argumentos.

Em primeiro lugar, é preciso frisar que, conforme esclarecem autores como Kant de
Lima (op.cit.), os centros de formação policial são apenas parcialmente capazes de
moldar representações e construir conhecimento junto aos agentes de segurança. Na
polícia, o saber adquirido nos centros formação __ principalmente quando se trata de
praças__ divide espaço __ou mesmo é eclipsado __ com os saberes adquiridos “na
prática”, no dia a dia das ruas, não raro, transmitidos por policiais mais antigos.

Além disso, a própria ideia de “cultura policial” merece ser problematizada. Conforme
apontam Poncioni e Bretas (1999), os estudos sobre polícia têm devotado particular
atenção à (im)possibilidade de se falar em uma “cultura policial”, diante da dificuldade
de se demarcar quais seriam os traços distintivos desta. Citando a contribuição de
Jerome Skolnick ao assunto, os autores reconhecem que o uso da autoridade e a
presença do perigo seriam traços marcantes da atividade policial, ainda que imputáveis
a outras profissões.

Não sendo cabível aprofundar o debate neste trabalho, nos concentraremos na


contribuição de autores como Muniz (1999) e Castro (1990), que identificam na ação
das polícias militares a presença de um ethos guerreiro, sendo esta imagem amplamente
compartilhada pela sociedade __ o policial, por excelência, é produzido com vistas ao
enfrentamento do criminoso, que dentro desta lógica, metonimicamente, torna-se
inimigo.

Se debruçando mais detidamente sobre a relação entre a formação e atuação policial,


Paula Poncioni (2005) destaca, no estado do Rio de Janeiro, a prevalência do modelo de
“formação profissional policial tradicional”, pautada, sobretudo, pela ênfase na
burocracia de caráter militarista e numa interpretação legalista do mundo. Como
corolário deste modelo, teríamos “uma estratégia exclusivamente reativa da polícia, e
dirigida principalmente para o confronto, apontando deficiências na área da atividade
preventiva, com enfoque na negociação de conflitos e no relacionamento direto com o
cidadão (...)”. (Poncioni, 2005, p. 601)

Desta forma, é com a contribuição de Poncioni (Ibidem) que temos uma maior
aproximação entre formação e atuação. Aqui trataremos a formação policial e seus
postulados principais __ o cumprimento da lei e o enfrentamento do inimigo __ como
fonte de reprodução de uma estrutura de significados, de acordo com o emprego que
Marshall Sahlins faz do conceito no clássico Ilhas de História.

Esta estrutura remete a ideia de passado, ou, em termos mais claros, à noção de “coisas
como elas sempre foram”. Seria a própria constituição daquilo que desejamos aqui
definir, ainda que provisória e precariamente, como “cultura policial”.

O pressuposto, ainda em consonância a Poncioni, é que a formação policial sedimente e


reproduza formas pelas quais o policial militar percebe a sua função profissional e, no
limite, a si próprio. Têm-se, assim, a figura do legalista e do combatente.

A estratégia de ocupação permanente das favelas (UPPs) __rapidamente transformada


em capital político __ conduzida pelo Governo do Estado, através da Secretaria de
Estado de Segurança Pública, impõe aos policiais militares um maior investimento em
ações de outra ordem, como: mediação de conflitos, prevenção da violência, atuação em
rede, aproximação com a comunidade, etc.

O Curso de Saúde e Assistência, neste sentido, apresentar-se-ia, como mais um


“elemento de transmissão” nesta engrenagem de produção de uma nova formação-
atuação da polícia militar do Rio de Janeiro.

Assim, voltando à matriz analítica proposta por Sahlins (1985), as UPPs constituir-se-
iam em um “fato histórico” que, em certo sentido, desafia a estrutura de significados
construída pela (acerca da) corporação Polícia Militar. Não basta mais reagir ao crime.
É necessário preveni-lo e, principalmente, agregar os moradores da comunidade à
gestão dos assuntos de segurança.

Doravante, nos concentraremos na reação dos policiais participantes do Curso de Saúde


Preventiva e Assistência à População às disciplinas trabalhadas em sala aula,
perspectivando responder as perguntas iniciais desta apresentação.
Avaliações de um curso de capacitação: construção, desconstrução e reconstrução
da atuação policial

O Curso de Saúde Preventiva e Assistência à População constitui-se não apenas em


uma iniciativa da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) na capacitação de seus
agentes, como também apresenta-se como o desdobramento de iniciativas anteriores.

Desde o ano de 2002, fora formada uma parceira entre a PMERJ e a ONG Viva Rio no
sentido de promover a capacitação de sargentos que atuariam como agentes
multiplicadores de temáticas como policiamento comunitário, aproximação entre polícia
e sociedade, prevenção à violência, atenção à juventude, ética policial entre outras.

O Curso de Saúde e Assistência, neste sentido, apresentar-se-ia como um


desdobramento da primeira experiência, direcionado, especificamente, para os policiais
atuantes em UPPs. As dificuldades iniciais para a estruturação deste empreendimento
foram as mesmas enfrentadas pela experiência anterior. Dificuldades logísticas (custos
de reprodução do material didático, acesso dos policiais ao local das aulas, etc.)
somadas ao baixo empenho dos comandantes das unidades em disponibilizar seu efetivo
(sempre definido como aquém das necessidades) para atividades educacionais.

Esta última característica pode ser tomada como síntese de um pensamento que perpassa
alguns comandantes e a opinião pública de maneira geral: lugar de polícia é na rua
patrulhando e prendendo bandido!1

Apesar disso, vencidas as dificuldades iniciais, o curso desenvolveu-se no período de


um ano, contando com uma média de 18 alunos/turma, número que, pelo menos
aparentemente, coincide com os termos do acordo inicial, segundo o qual, cada UPP,
semanalmente, deveria enviar um policial para a capacitação. Concentremo-nos, então,
nas atividades de sala de aula.

Diante da reação dos agentes às disciplinas Introdução à Rede de Proteção Social e


Gestão do Espaço Urbano fica patente a grande resistência dos policiais militares em
cooperar em situações __algumas bastante recorrentes __que não tivessem uma
caracterização claramente criminal. As perturbações provocadas por excesso de álcool,
1
Esta percepção foi assumida por alguns alunos durante as aulas e profundamente rejeitada por um
sargento multiplicador do Curso de Aprimoramento da Prática Policial Cidadã, a saber, uma experiência
de parceria entre o Viva Rio e a PMERJ, anterior ao Curso de Saúde Preventiva. Isso nos sugere que, uma
vez socializados nas atividades educacionais da polícia, os agentes observam as formas alternativas, e não
menos importantes, de atuação, que não sejam o enfrentamento em si, de forma positiva.
as brigas de vizinho, as rixas parentais, assim como as “querelas de portão” terminam
subsumir no universo das “feijoadas”, a saber: código policial que denota os chamados
“crimes de bagatela”.

Por outro turno, os policiais demonstraram-se, muitas vezes, “sensíveis” às condições


sociais e econômicas dos moradores das favelas pacificadas. Reconheciam o lugar como
uma “área carente”, onde os serviços eram precários, a escolaridade baixa e os recursos
escassos. Entretanto, tal percepção, sistematicamente, desaguou na formulação dois
discursos: (1) o primeiro deles é o da denúncia, onde os alvos são os políticos corruptos,
o Estado inerte, as elites cínicas e omissas, etc.; (2) o segundo é o de culpabilização do
pobre pela própria pobreza. Neste sentido, é ressaltada a irresponsabilidade dos pais e
mães que não cuidam de seus filhos, a improdutividade dos jovens “que não querem
nada”, o fracasso dos bêbados das tendinhas. É interessante notar que em ambas as
situações o policial aparece como um agente externo, alheio aos fatos, aguardando um
acontecimento que seja, de fato, da sua alçada.

Gozando de maior simpatia por parte dos policiais, as disciplinas de Primeiros Socorros
e Atendimento Emergencial e Saúde Física e Emocional dos Policiais merecem
destaque por alguns aspectos.

Na disciplina Introdução a Primeiros Socorros e Atendimento Emergencial, em


princípio idealizada em função do alto número de atendimentos a moradores
acidentados nas UPPs (vítimas de desabamentos e quedas de laje, por ex.), foi possível
identificar uma grande preocupação dos alunos com o atendimento de colegas de
trabalho feridos durante possíveis enfrentamentos com bandidos.

É necessário, assim, perceber a sutileza da relação dos alunos com os conteúdos


propostos. Mesmo diante de um saber que se apresenta como altamente
instrumentalizável no contato com a população, o enfoque do policial se redireciona na
possibilidade de auxílio a um colega de farda e não a um “civil”.

Em Saúde Física e Emocional dos Policiais foram comuns espaços reservados para a
reflexão sobre as condições de trabalho e de existência do policial. As discussões, via de
regra, extrapolavam a abordagem “técnica” do instrutor para ganhar o terreno da
revelação das angústias, ansiedades e temores que cortam a biografia de um profissional
de segurança pública que (no Rio de Janeiro e no Brasil), muitas vezes, reconhece suas
próprias condições de trabalho (escala, equipamentos, estrutura física do local de
trabalho, salário, etc.) como inadequadas e incompatíveis com as responsabilidades e
riscos de sua profissão.

Assim, o módulo de Saúde Física e Emocional revelou-se como mais um espaço onde
os policiais podiam “pensar-se”, sem, contudo, estabelecer relações entre as suas
condições de vida e trabalho e os seus mecanismos de integração com a comunidade.

Sendo a única disciplina que tratava de um tema eminentemente criminal Relações de


Gênero e Violência contra a Mulher, ainda que provocando debates menos
efervescentes em sala de aula e não logrando muita adesão dos alunos, foi, via de regra,
considerada como pertinente, tendo em vista o elevado número de atendimentos
realizados a mulheres vítimas de violência nas áreas pacificadas.

Contudo, foi perceptível a persistência, na fala dos policiais, de visões há muito


criticadas pelos movimentos sociais, sobretudo o movimento de mulheres. A percepção
da assimetria de gênero como algo “natural” na vida social, sendo justificada tanto por
uma interpretação particular do cristianismo, como pelo já superado determinismo
biológico, indicam que o tema precisa ser melhor trabalhado na formação policial de
forma a dar substância e sentido para o enfrentamento da violência contra a mulher pela
via criminal.

As disciplinas que mais acaloraram os debates em sala de aula e as reuniões de


avaliação foram Drogas e Redução de Danos e Juventude e Sexualidade.

Em primeiro lugar, é preciso observar que na percepção dos policiais que participaram
do curso, os temas “droga” e “juventude” encontram-se intimamente relacionados. Faz-
se mister frisar que a expectativa dos idealizadores do curso (entre eles estes que se
apresentam) é que a apresentação das práticas de redução de danos ajudassem a
extrapolar a dimensão estritamente criminal do consumo de psicoativos. A ideia era
pensar o consumo de drogas como um tema para além da segurança pública; uma
questão que passa pela educação, pela assistência e, finalmente, pela saúde. Contudo, o
posicionamento de um dos alunos sintetiza a maior parte das opiniões: “se vier defender
maconheiro, dá ruim!”.

Não apenas a questão das drogas foi encarada como “um problema de polícia” pelos
participantes do curso, como os usuários, chamados no jargão policial de gansos2, foram

2
Não foi possível encontrar uma origem do termo dentre os participantes. Alguns policiais, quando
interrogados sobre o assunto, informaram que tratava-se de uma alusão ao estado de fissura em que ficam
alguns usuários que circulam pelas favelas. Aqui o termo assume o status de categoria nativa.
observados como o principal objeto de intervenção ou atenção dos agentes de segurança
pública.

Dentro da conceituação dos policiais, o ganso corresponderia tanto ao usuário de


drogas, como ao pequeno traficante, podendo ser confundido, outrossim, com o
praticante de pequenos delitos, que, através destes, sustenta seu “vício”, via de regra,
utilizado como sinônimo de consumo. O relato de umas das instrutoras da disciplina
Drogas e Redução de Danos é elucidativo sobre o tema: “E tem relato também daqueles
que sempre pegam os mesmos gansos, que têm que brigar na delegacia para o delegado
fazer uma ocorrência e dois dias depois o ganso tá na rua, porque a quantidade de
cocaína que ele tinha era para consumo. Então o que eles falam, que é uma coisa
curiosa, é que eles não conseguem mais construir um perfil do usuário e nem do
traficante”.

Essa dificuldade de se estabelecer os limites distintivos entre


usuário/criminoso/traficante talvez mereça um olhar mais aproximado.

Em primeiro lugar, é preciso destacar como os policiais, ao longo do curso, procuraram


construir a imagem dos gansos através de contraste. Sendo em sua maioria jovens,
recém-admitidos na polícia, os soldados atuantes em UPPs definem a sua própria
juventude como uma etapa “perdida” de suas vidas, fato que se impõe pela distância da
família, pela responsabilidade do ofício assumido, pela rotina pesada de plantões e bicos
e pelo risco que significa ser policial.

O ganso, por seu turno, é observado como aquele oriundo de uma família
desestruturada, que se nega a participar dos projetos sociais quando estes lhes são
disponibilizados, declina dos compromissos impostos pelo mundo do trabalho e prefere
seguir a vida “pelo caminho errado”, assumindo os riscos do crime. Enquanto o soldado
é parcimônia, o ganso é hedonismo. Enquanto o soldado é apolíneo, o ganso é
dionisíaco.

Voltando à questão da formação policial, percebemos que os policiais que participaram


do curso de capacitação em questão, para além de avaliar os conhecimentos e
proficiências desenvolvidas, concentram-se no que deveria ser a “real” atuação policial.

Neste sentido, se autores como Poncioni (2005) retratam a persistência de uma


formação altamente legalista, reativa e militarista, os alunos do curso “fechavam o
circuito”, ratificando o enfrentamento do ganso como a atividade precípua da polícia
militar nas UPPs.

Desta forma, se procuramos não nos aprofundar na viabilidade teórico-metodológica da


afirmação em torno da existência de uma “cultura policial”, esta experiência de um ano
de contato com os alunos do Curso de Saúde Preventiva e Assistência à População nos
revelou que a preparação para o combate é uma orientação, ainda em tempos de UPP,
profundamente marcante na cosmologia policial.

A letra fria da lei, a pronta capacidade de reação __vige a máxima do “sempre alerta”__
e o uso recorrente da força são os elementos constitutivos do preparo para o
enfrentamento. Mas não podemos encerrar por aqui. Falta ainda um elemento central
nesta teia de significados que os policiais tecem sobre si mesmo: o inimigo. É dele que
trataremos nesta fase final da apresentação.

Evento e Estrutura, uma passagem pela obra de Marshall Sahlins: o Ganso como
Lono

Usando o caso da chegada do Capitão Cook às Ilhas Sandwich, abordado por Marshall
Sahlins em Ilhas de História, temos a apresentação de um modelo que permite integrar
presente e passado através da manipulação de signos, que podem ser usados para
conferir novos significados ao mundo (signos em ação) ou reforçar antigas formas de
definir a realidade (signos em posição).

Desta forma, um evento, carregado de toda sua dimensão pragmática está atrelado de
forma indissociável a uma estrutura de significados que lhe precede, relacionando-se
com esta de forma dialética.

Resgatemos o episódio, onde o comandante do navio inglês Resolution em rota


comercial (evento) chega à costa havaiana e é tomado pelos havaianos como uma
representação do Deus da fertilidade, Lono.

Neste contexto, reordenamentos sociais são provocados e Sahlins nos ensina:


“As formas culturais tradicionais abarcavam o evento extraordinário, e,
assim, recriavam as distinções dadas de status, com o efeito de reproduzir a
cultura da forma que estava constituída. Porém, como já frisamos, o mundo
não é obrigado a obedecer à lógica pela qual é concebido (...) no mundo ou
na ação __tecnicamente em atos de referência __ categorias culturais
adquirem novos valores funcionais. Os significados culturais,
sobrecarregados pelo mundo são assim alterados”. (Sahlins, 1999, p.
174)

A chegada dos policiais nas UPPs, apenas para recapitular a estratégia de ocupação, se
dá após um período de enfrentamento iminente, onde conta-se com a atuação de forças
especiais da polícia (Batalhão de Choque e Batalhão de Operações Especiais – Bope) ou
das forças armadas (Exército).

Desta forma, em tese, quando os policiais chegam para a atuação nestas áreas, os
traficantes armados não estão mais lá.

O policial, treinado com forte enfoque na repressão e partícipe do princípio,


amplamente difundido na sociedade brasileira, de “guerra contra o tráfico”, encontra-se,
nas UPPs, diante de um dilema.

Permanece certo de que sua função primordial é o combate ao inimigo sendo que este,
agora, não se encontra mais no front!

Neste contexto, o ganso __assim como o Capitão Cook que é tomado como o Deus
Lono, pelos havaianos __ torna-se eficaz em remontar a estrutura de significados onde
policiais enfrentam traficantes, onde o inimigo está presente e precisa ser derrotado.

Se enquanto evento (ação, mundo, atualidade, cotidiano) os jovens usuários de drogas


são percebidos pelo poder público como objeto de atenção das redes de proteção social
__ envolvendo a intervenção de médicos, psiquiatras, animadores culturais, assistentes
sociais e familiares__ segundo a estrutura de significados produzida e reproduzida pela
formação policial tradicional ele se resignifica, enquanto ganso, como alvo de
enfrentamento.

O Ganso, juventude e controle: entre Apolos e Dionísios


Antes do encerramento desta apresentação é necessário ressaltar um nível de conflito
ainda não explicitado. Trata-se da relação entre os policiais e seus comandantes de
unidade.

Diante da dimensão assumida pelas UPPs __seja no plano político, econômico ou social
__, não seria um exagero afirmar que tal programa se tornou central na agenda política
fluminense e de outros estados (o estado do Paraná, por exemplo, já adotou um
programa de segurança inspirado nas UPPs).

Desta forma, os comandantes das unidades, em consonância ao discurso governamental,


têm preconizado iniciativas de integração entre polícia e sociedade e uma atuação que
conjugue prevenção e reação, aumentando a sensação de segurança local e
sedimentando a noção de “pacificação”.

Neste contexto, os usuários de drogas __a partir do discurso sobre a expansão epidêmica
de drogas como o crack, que ganha cada vez maior visibilidade na mídia __ são
dissociados dos traficantes, tornam-se alvo de intervenção médica, precipuamente, e, no
lugar de “enfrentados”, passam a ser “tratados”, sob a égide da auto-regulação.
Conforme apontam autores como Robert Van Krieken (1996), o controle das
subjetividades passa por alterações significativas com o advento da modernidade.
Segundo o autor, explorando a contribuição de Nobert Elias em o Processo Civilizador
e Michel Foucault em sua História da Sexualidade, no mundo feudal o controle dos
indivíduos se dá de forma eminentemente coercitiva e, via de regra, efetivado pela
atuação de um agente externo bem definido (“o” soberano, “a” Igreja), na modernidade
tais regulações se dariam através de atores múltiplos, orientados para a promoção da
introjecção de determinadas normas de conduta e autocontrole.

O ganso, neste contexto, pode ir de bandido a doente, saindo da esfera de intervenção da


polícia e tornando-se objeto de interferência de outros campos do poder público como a
Saúde, a Educação e a Assistência.
Contudo, ainda assim, foi possível perceber na fala dos policiais uma cisão bem
definida entre as suas experiências de vida, como jovens e dos jovens moradores da
comunidade.
Em primeiro lugar é preciso sublinhar que na visão dos policiais participantes deste
curso a condição de traficante e de usuário, quando trata-se do jovem favelado, é
praticamente a mesma. Apresenta-se recorrentemente uma condição intermediária, a de
“envolvido” que une traficantes e usuários num mesmo “signo”, radicalmente separado
da imagem de policial.
Em segundo lugar é cabível lembrar o posicionamento recorrentemente crítico dos
policiais ao estilo de vida dos moradores, muitas vezes observado como irresponsável e
imprevidente. Haveria culpados para a “alienação” dos moradores. Por um lado, os
governantes são lembrados como os responsáveis pela pobreza, baixa escolaridade e
falta de espírito empreendedor dos moradores das áreas pacificadas. Por outro turno, os
próprios moradores aparecem como tendo parcela significativa de culpa. A falta de
dedicação ao cumprimento das obrigações financeiras, a inclinação à festa e à bebida
apareceram na fala dos policiais como condicionantes que impedem (ou pelo menos
atrasam) o “desenvolvimento” social e econômico da favela.
Em resumo, podemos afirmar que a percepção dos policiais em relação aos moradores
das UPPs __ou de certos segmentos da comunidade, como os jovens, os usuários de
drogas, etc.__ pode ser um fator de peso para a estratégia das UPPs, que busca se
solidificar como política de segurança __referendada pelo Governo do Estado e pela
mídia __, mas que é refém de uma convivência “harmoniosa” (ou pelo menos
respeitosa) entre moradores e policiais.
Até que ponto a construção e reprodução de estigmas por parte dos policiais em relação
aos moradores __e vice versa__ pode pesar no sucesso ou fracasso das UPPs é algo a
ser refletido pelo governo, poderes locais, moradores e setores da academia interessados
na segurança pública.
Por enquanto, o que pode ser afirmado a partir da reflexão em tela é que, para além do
entusiasmo governamental diante das UPPs, há uma tensão provocada pela visão que
parte da tropa tem do que seja “efetivamente” o trabalho policial e a integração com a
comunidade, observada como elemento motriz da pacificação.

Bibliografia:

BOTELHO, André. (2008), O batismo da instrução: atraso e modernidade em Manoel


Bomfim. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

BOURDIEU, Pierre. (1989), O poder simbólico. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil.

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE DROGAS: RESOLUÇÃO


Nº3/GSIPR/CH/CONAD, DE 27 DE OUTUBRO DE 2005.
BRETAS, Marcos Luiz, PONCIONI, Paula (1999), A Cultura Policial e o Policial Civil
Carioca, in PANDOLFI, Dulce, et all, Cidadania, Justiça e Violência, Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas.

CASTRO, Celso. (1990), O Espírito Militar. Rio de Janeiro, Ed. Zahar.

KANT DE LIMA, Roberto. (2003), “Direitos Civis, Estado de Direito e “Cultura


Policial”: a formação policial em questão”. In: Revista Brasileira de Ciências
Criminais, nº 41. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, jan-mar, p. 241-256.

MACHADO, Luís A. (2010), Afinal, qual é das UPPs? In: Observatório das
Metrópoles. Disponível em http://web.observatoriodasmetropoles.net/.

MONTEIRO, Fabiano D. (2010), “Integração Institucional e Segurança Pública: Passos


para Construção de um diálogo entre Polícia e Sociedade no Rio de Janeiro.” In: Polícia
e Sociedade PRÁTICA E SABERES NO CAMPO DA INTEGRAÇÃO DA
SEGURANÇA PÚBLICA. Série Práticas e Saberes Policiais. Org. CORREA, Roberta,
LEITE, Natasha, CARVALHO, Anie, ARAUJO, Jonas. Rio de Janeiro, Imagem e
Texto.

MUNIZ, Jacqueline (1999) Ser Policial é, sobretudo, uma Razão de Ser: Cultura e
Cotidiano da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Ciência Politica.
IUPERJ.

_______________. & PROENÇA JR., Domício. (2007), “Da Accountability seletiva à


plena responsabilidade policial.” In: Polícia, Estado e Sociedade: Práticas e Saberes
Latinos. Americanos. Org: CARUSO, Haydée, MUNIZ, Jacqueline, CARBALLO
BLANCO, Antônio C. Ed. Publit/Viva Rio.

NOVAES, Regina. (2007), “Juventude e sociedade: jogos de espelhos”. In:


SOCIOLOGIA ESPECIAL: CIÊNCIA & VIDA. Juventude brasileira, Ano I, n. 2. São
Paulo: Editora Escala: p. 6- 15.

PONCIONI, Paula. (2005). O Modelo policial profissional e a formação profissional do


futuro policial nas academias do estado do Rio de Janeiro. Sociedade e Estado, Brasília,
v. 20, n. 3 p. 585- 610, set./dez. 2005.

SAHLINS, Marshall (1999). Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

______. Cosmologias do capitalismo: o setor Transpacífico do "sistema mundial". In:


REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 16. Anais..., 1988a. p. 47-106.

SOARES, Bárbara, LENGRUBER, Julita, MUSUMECI, Leonarda, RAMOS, Silvia.


Unidades de Polícia Pacificadora: o que os policiais pensam. Pesquisa CESEC/UCAM.
Disponível em http://www.ucamcesec.com.br/category/estatisticas/dados-destaque/

VAN KRIEKEN, R. A Organização da Alma: Elias e Foucault sobre a disciplina e o eu.


Plural; Sociologia, USP, São Paulo, 3, 153:180, 1996.
ZALUAR, Alba. (2003), “Gangues, Galeras e Quadrilhas: globalização, juventude e
violência”. In: VIANNA, Hermano (org), Galeras Cariocas: territórios de conflito e
encontros culturais, Rio de Janeiro, Ed. UFRJ.

Você também pode gostar