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Janeiro
Lidiane F. Malanquini
(ESS/UFRJ)
Problematização inicial
A apresentação em tela tem como objetivo realizar uma reflexão acerca dos desafios
impostos à formação dos policiais militares do estado do Rio de Janeiro, a partir do
advento da instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Algumas perguntas impõem-se diante deste cenário. Até que ponto a formação de
praças e oficiais os capacita para estes novos padrões de interação? Como a “cultura
policial” __partindo da premissa que exista “uma cultura policial”__ difundida e
reproduzida pelos centros de treinamento __partindo novamente da premissa que estes
espaços sejam núcleos de reprodução de formas de percepção da realidade __ está
relacionada com a atuação destes operadores? Por fim, resta perscrutar, assumindo uma
perspectiva geertziana, quais são os significados construídos pelos próprios policiais
acerca de sua formação e da adequação desta ao trabalho nas UPPs.
O trabalho presente estrutura-se a partir da participação que seus autores tiveram (um
como coordenador, os outros como pesquisadores/monitores) na elaboração do Curso
de Saúde Preventiva e Assistência à População, a saber, uma experiência desenvolvida
pelo Comando de Polícia Pacificadora da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
em parceria com a ONG Viva Rio. Este curso estruturou-se a partir da percepção, por
parte do Comando de Polícia Pacificadora (CPP), de que a formação policial ministrada
aos recrutas poderia ser aprimorada, através de discussões que aprofundassem o tema da
relação entre polícia e comunidade, adequando-se, destarte, às exigências do tipo de
policiamento praticado nas UPPs.
Assim, o curso, que foi formatado com carga horária total de 24 horas, desenvolveu-se
entre os meses de novembro de 2010 e outubro de 2011, capacitando um total de 603
policiais (majoritariamente soldados), lotados em todas as 18 unidades de polícia
pacificadora, distribuídas pela Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Ocorrendo na sede da ONG Viva Rio, situada no bairro da Glória, Zona Sul do Rio, o
Curso de Saúde Preventiva e Assistência à População foi modelado para discutir temas
como a “qualidade de vida” nas comunidades recém-pacificadas e o papel da polícia na
construção de uma rede local de proteção social. As disciplinas, ministradas por
policiais instrutores e, principalmente, por pesquisadores da área de ciências sociais
(Sociologia, Antropologia, Psicologia, Relações Internacionais e Serviço Social), eram
as seguintes: Gestão do Espaço Urbano; Drogas e Redução de Danos; Primeiros
Socorros; Saúde Física e Emocional dos Policiais; Juventude e Sexualidade e Relações
de Gênero e Violência contra a Mulher.
Antes de avançar é necessário abrir, ainda que dentro dos limites desta apresentação,
duas frentes de reflexão cabais aos nossos argumentos.
Em primeiro lugar, é preciso frisar que, conforme esclarecem autores como Kant de
Lima (op.cit.), os centros de formação policial são apenas parcialmente capazes de
moldar representações e construir conhecimento junto aos agentes de segurança. Na
polícia, o saber adquirido nos centros formação __ principalmente quando se trata de
praças__ divide espaço __ou mesmo é eclipsado __ com os saberes adquiridos “na
prática”, no dia a dia das ruas, não raro, transmitidos por policiais mais antigos.
Além disso, a própria ideia de “cultura policial” merece ser problematizada. Conforme
apontam Poncioni e Bretas (1999), os estudos sobre polícia têm devotado particular
atenção à (im)possibilidade de se falar em uma “cultura policial”, diante da dificuldade
de se demarcar quais seriam os traços distintivos desta. Citando a contribuição de
Jerome Skolnick ao assunto, os autores reconhecem que o uso da autoridade e a
presença do perigo seriam traços marcantes da atividade policial, ainda que imputáveis
a outras profissões.
Desta forma, é com a contribuição de Poncioni (Ibidem) que temos uma maior
aproximação entre formação e atuação. Aqui trataremos a formação policial e seus
postulados principais __ o cumprimento da lei e o enfrentamento do inimigo __ como
fonte de reprodução de uma estrutura de significados, de acordo com o emprego que
Marshall Sahlins faz do conceito no clássico Ilhas de História.
Esta estrutura remete a ideia de passado, ou, em termos mais claros, à noção de “coisas
como elas sempre foram”. Seria a própria constituição daquilo que desejamos aqui
definir, ainda que provisória e precariamente, como “cultura policial”.
Assim, voltando à matriz analítica proposta por Sahlins (1985), as UPPs constituir-se-
iam em um “fato histórico” que, em certo sentido, desafia a estrutura de significados
construída pela (acerca da) corporação Polícia Militar. Não basta mais reagir ao crime.
É necessário preveni-lo e, principalmente, agregar os moradores da comunidade à
gestão dos assuntos de segurança.
Desde o ano de 2002, fora formada uma parceira entre a PMERJ e a ONG Viva Rio no
sentido de promover a capacitação de sargentos que atuariam como agentes
multiplicadores de temáticas como policiamento comunitário, aproximação entre polícia
e sociedade, prevenção à violência, atenção à juventude, ética policial entre outras.
Esta última característica pode ser tomada como síntese de um pensamento que perpassa
alguns comandantes e a opinião pública de maneira geral: lugar de polícia é na rua
patrulhando e prendendo bandido!1
Gozando de maior simpatia por parte dos policiais, as disciplinas de Primeiros Socorros
e Atendimento Emergencial e Saúde Física e Emocional dos Policiais merecem
destaque por alguns aspectos.
Em Saúde Física e Emocional dos Policiais foram comuns espaços reservados para a
reflexão sobre as condições de trabalho e de existência do policial. As discussões, via de
regra, extrapolavam a abordagem “técnica” do instrutor para ganhar o terreno da
revelação das angústias, ansiedades e temores que cortam a biografia de um profissional
de segurança pública que (no Rio de Janeiro e no Brasil), muitas vezes, reconhece suas
próprias condições de trabalho (escala, equipamentos, estrutura física do local de
trabalho, salário, etc.) como inadequadas e incompatíveis com as responsabilidades e
riscos de sua profissão.
Assim, o módulo de Saúde Física e Emocional revelou-se como mais um espaço onde
os policiais podiam “pensar-se”, sem, contudo, estabelecer relações entre as suas
condições de vida e trabalho e os seus mecanismos de integração com a comunidade.
Em primeiro lugar, é preciso observar que na percepção dos policiais que participaram
do curso, os temas “droga” e “juventude” encontram-se intimamente relacionados. Faz-
se mister frisar que a expectativa dos idealizadores do curso (entre eles estes que se
apresentam) é que a apresentação das práticas de redução de danos ajudassem a
extrapolar a dimensão estritamente criminal do consumo de psicoativos. A ideia era
pensar o consumo de drogas como um tema para além da segurança pública; uma
questão que passa pela educação, pela assistência e, finalmente, pela saúde. Contudo, o
posicionamento de um dos alunos sintetiza a maior parte das opiniões: “se vier defender
maconheiro, dá ruim!”.
Não apenas a questão das drogas foi encarada como “um problema de polícia” pelos
participantes do curso, como os usuários, chamados no jargão policial de gansos2, foram
2
Não foi possível encontrar uma origem do termo dentre os participantes. Alguns policiais, quando
interrogados sobre o assunto, informaram que tratava-se de uma alusão ao estado de fissura em que ficam
alguns usuários que circulam pelas favelas. Aqui o termo assume o status de categoria nativa.
observados como o principal objeto de intervenção ou atenção dos agentes de segurança
pública.
O ganso, por seu turno, é observado como aquele oriundo de uma família
desestruturada, que se nega a participar dos projetos sociais quando estes lhes são
disponibilizados, declina dos compromissos impostos pelo mundo do trabalho e prefere
seguir a vida “pelo caminho errado”, assumindo os riscos do crime. Enquanto o soldado
é parcimônia, o ganso é hedonismo. Enquanto o soldado é apolíneo, o ganso é
dionisíaco.
A letra fria da lei, a pronta capacidade de reação __vige a máxima do “sempre alerta”__
e o uso recorrente da força são os elementos constitutivos do preparo para o
enfrentamento. Mas não podemos encerrar por aqui. Falta ainda um elemento central
nesta teia de significados que os policiais tecem sobre si mesmo: o inimigo. É dele que
trataremos nesta fase final da apresentação.
Evento e Estrutura, uma passagem pela obra de Marshall Sahlins: o Ganso como
Lono
Usando o caso da chegada do Capitão Cook às Ilhas Sandwich, abordado por Marshall
Sahlins em Ilhas de História, temos a apresentação de um modelo que permite integrar
presente e passado através da manipulação de signos, que podem ser usados para
conferir novos significados ao mundo (signos em ação) ou reforçar antigas formas de
definir a realidade (signos em posição).
Desta forma, um evento, carregado de toda sua dimensão pragmática está atrelado de
forma indissociável a uma estrutura de significados que lhe precede, relacionando-se
com esta de forma dialética.
A chegada dos policiais nas UPPs, apenas para recapitular a estratégia de ocupação, se
dá após um período de enfrentamento iminente, onde conta-se com a atuação de forças
especiais da polícia (Batalhão de Choque e Batalhão de Operações Especiais – Bope) ou
das forças armadas (Exército).
Desta forma, em tese, quando os policiais chegam para a atuação nestas áreas, os
traficantes armados não estão mais lá.
Permanece certo de que sua função primordial é o combate ao inimigo sendo que este,
agora, não se encontra mais no front!
Neste contexto, o ganso __assim como o Capitão Cook que é tomado como o Deus
Lono, pelos havaianos __ torna-se eficaz em remontar a estrutura de significados onde
policiais enfrentam traficantes, onde o inimigo está presente e precisa ser derrotado.
Diante da dimensão assumida pelas UPPs __seja no plano político, econômico ou social
__, não seria um exagero afirmar que tal programa se tornou central na agenda política
fluminense e de outros estados (o estado do Paraná, por exemplo, já adotou um
programa de segurança inspirado nas UPPs).
Neste contexto, os usuários de drogas __a partir do discurso sobre a expansão epidêmica
de drogas como o crack, que ganha cada vez maior visibilidade na mídia __ são
dissociados dos traficantes, tornam-se alvo de intervenção médica, precipuamente, e, no
lugar de “enfrentados”, passam a ser “tratados”, sob a égide da auto-regulação.
Conforme apontam autores como Robert Van Krieken (1996), o controle das
subjetividades passa por alterações significativas com o advento da modernidade.
Segundo o autor, explorando a contribuição de Nobert Elias em o Processo Civilizador
e Michel Foucault em sua História da Sexualidade, no mundo feudal o controle dos
indivíduos se dá de forma eminentemente coercitiva e, via de regra, efetivado pela
atuação de um agente externo bem definido (“o” soberano, “a” Igreja), na modernidade
tais regulações se dariam através de atores múltiplos, orientados para a promoção da
introjecção de determinadas normas de conduta e autocontrole.
Bibliografia:
BOURDIEU, Pierre. (1989), O poder simbólico. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil.
MACHADO, Luís A. (2010), Afinal, qual é das UPPs? In: Observatório das
Metrópoles. Disponível em http://web.observatoriodasmetropoles.net/.
MUNIZ, Jacqueline (1999) Ser Policial é, sobretudo, uma Razão de Ser: Cultura e
Cotidiano da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Ciência Politica.
IUPERJ.