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Delari - Questões de Método - Cap Livro - C
Delari - Questões de Método - Cap Livro - C
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico,
eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, dos autores.
Todos os direitos reservados desta edição 2015 para Eduem,
Revisão textual e gramatical: Aparecida de Fátima Peres
Normalização textual e de referência: Adriana Curti Cantadori de Camargo
"Projeto gráflco/diagramação: Marcos Kazuyoshi Sassaba
-
Capa criação/arte final: Luciano Wjlian da Silva
Ficha catalográfica: Marinatva Aparecida Spol on Almeida (CRB 9-1094)
Fonte: Cambria
Sumário
Tiragem - versão impressa: 500 exemplares
........
194 p.
ISBN 978-85-762B-624-0
1. Materialismo histérico. 2. Psicologia histórico-cultural. 3. Psicologia educacional. I.Tuleski,
Silva Calvo, org. II. Chaves, Marta, org. III. Leite, Hilusc Alves, org. IV. Título.
Prefácio.... . . . 7
_ CDD 21.ed. 370.15
Apresentação . 13
(BIBI
x-cÿàSíimiiD PARTE II- CAMINHOS PARA AS APLICAÇÕES DO MÉTODO EM PESQUISA
Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá
Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário
87020-900 - Maringá-Paraná - Fone: (0xx44) 3011-4103 - Fax: (0xx44) 3011-1392 Capítulo IV - A educação de jovens e adultos sob os
www.eduem.uem.br - eduem@uem.br fundamentos do método materialista histórico-dialético: a
MATE IIIA L:S MO HISTÓRICO DIAL ÉTICO CC-MO P UXDAK Z:< TO 3A ?S ICOL.OC-1 A H ISTDSICC-CU ITU RA I.
MARX, Karl; ENGELS, F. A ideologia alemã. (Feuerback). São Paulo: Hucitec, 1993.
RICHARDSON, Roberto Jarry [Org.). Pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1985.
Considerações iniciais
SEVE, Lucien. Quais contradições? In: CLOT, Y. (Org.). Avec Vigotski. Paris: La
dispute, 2002. O subtítulo deste capítulo abrevia seus dois principais momentos
distintos e relacionados: o primeiro diz respeito à questão dos 'fins' almejados:
'a busca da verdade' como pertinente à potencialização de uma prática
transformadora; o segundo diz respeito à questão dos 'meios' para atingir tais
fins: 'os caminhos da cognição'. Na proposta metodológica histórico-cultural,
da qual trataremos, o nexo entre os meios do conhecimento científico e os
seus fins tem valor substancial, sendo postulada de modo indissociável.
Para explicitar os termos de tal relação, vale destacar que: (a) 'os fins
não justificam os meios', ou seja, não se pode admitir que, em nome de um
fim tido como significativo, relevante ou 'elevado', qualquer recurso seja válido
para atingi-lo; mas também (b) 'não há fins sem meios', ou seja, qualquer
finalidade que nos coloquemos como legítima, edificante, ou mesmo 'nobre',
esvazia-se de propósito caso não sejam criadas formas concretas para realizá-
la, ainda que não tão perfeitas quanto desejamos.
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MAI Em A LIS MO !1 !£ T S S. ICO OIALHTICO COMO IIN D.'i M I- MIO DA PSICOLOGIA III5TÓHI CO-Cl'l.TCRA L :: i: i 7 i. o 1 1 o u k s r fr h s :> i mítodo e v. v ; c r s k i
Essa é uma relação que exige grande compromisso ético, político humana de caminhar, aqui tomada como metonímia para a
própria ação
e epistemológico, que se constitui como intensa contradição no interior tia 'criação de caminhos', sempre se dá segundo determinados modos de fazê-
experiência humana. Por um lado, porque, como disse Thorndike e Vigotski são historicamente produzidos, em relação recíproca
lo os quais também
também assumiu: toda a consciência tende à ação, "[...] ao impulso motor"
com as propriedades, por vezes instáveis, do 'terreno' por percorrer. A que
[VIGOTSKI, 2003, p. 21S). Logo, criar finalidades ideais que não possam cada geração produzir novamente todo
se prestaria a experiência social de
existir senão em nossa imaginação, em nossas consciências, pode gerar o caminho historicamente já criado para dominar o fogo, inventar a roda ou
fantasmagorias, tornar nossos pensamentos diletantes ou neurotizados. distribuir eletricidade? É insuficiente estarmos em 'permanente movimento',
Defender algo inatingível, que não encontra meios para se realizar, pode ser cabe ainda questionar 'em que direção' e 'de que maneira' nos movemos -
irresponsável com quem está tomado pelo desejo de concretizá-lo e tende a questões centrais na discussão metodológica legada a nós por pesquisadores
dirigir sua ação para tal. Torna-se mais consequente concebermos finalidades como Vigotski.
exequíveis, mesmo que de modo parcial, gradativo e 'imperfeito' frente à meta Portanto os dois principais momentos deste capítulo podem ser
maior
sintetizados nas palavras emblemáticas desse psicólogo bielorrusso1.
Poroutrolado,há talexigência também porqueoestreitamentohistórico Referente à 'parte T, recordamos sua afirmação, em carta ao colega A. R. Luria,
das possibilidades de ação transformadora pode fixar um conformismo de só de que "[...] a questão primária é a questão do método; esta é para mim
fazermos o que no capitalismo já se faz, mas apenas em 'maior quantidade . a questão da verdade" (VYGOTSKY, 2007, p. 18, grifo nosso]. E, referente
limitando-nos a atender 'interesses individuais' de 'mais' pessoas - o que à parte II, destacamos uma formulação teórica que amplia e aprofunda a
alimentaria outras fantasmagorias: o deslumbramento de que 'a história primeira: "O método, isto é, o caminho seguido, se contempla como um meio de
chegou ao fim a que poderia chegar'; e o pensamento persecutório de que 'não cognição: mas o método vem determinado em todos os pontas pelo objetivo
haverá ciência crítica, pois estará sempre cooptada, fadada a reproduzir o que a que conduz. Por isso, a prática reestrutura toda a metodologia da ciência"
critica'. Essas noções podem reduzir nosso grau de exigência quanto aos fins (VYGOTSK1, 1927/1991, p. 357, grifo nosso).
almejados para que prontamente tenhamos em mãos os meios suficientes para Como veremos adiante, em uma orientação histórico-cultural, a
atingi-los. Torna-se mais consequente assumir que precisamos de finalidades verdade sobre a realidade humana só é objeto de busca da investigação
para além da simples manutenção da realidade atual - reconhecidamente científica na medida em que é vista como questão 'prática', como pertinente
njusta no campo político-econômico e hegemonicamente acrítica na arena à transformação daquela mesma realidade - e não uma verdade metafísica,
ipistêmico-metodológica. imutável, a-histórica como nos antigos pensadores idealistas como Parmênides
Assim, a própria produção de meios mais eficazes para dar conta de ou seu discípulo Platão. Pode-se dizer, assim, que os caminhos da cognição,
íos aproximarmos de tais finalidades, passa a ser, paradoxalmente, também ou o próprio método, colocam-se para a investigação científica como meios
ira 'fim' importante. Seguiremos a orientação de que a 'busca de conhecimento necessários para atingir um conhecimento crítico, um conhecimento mais
nais verdadeiro' sobre a realidade humana e sua transformação, como fim, verdadeiro sobre a realidade humana, que será justo aquele que permite
•olicita 'escolha' e 'produção' das melhores maneiras possíveis para alcançá- efetivamente transformá-la, não em qualquer direção, mas em uma que
o. Ao mesmo tempo, ela também necessita viabilizar condições efetivas para promova maior emancipação humana.
[ue tal conhecimento se atinja e não se apresente para cada um de nós apenas Os modos de conhecer não são vistos como 'fim em si', pelo deleite
orno uma distante 'forma ideal' de ciência. Forma 'idealizada' que aos erros de de 'saber' sobre 'este ou aquele tema', por pura erudição, ou pelo poder
odas as outras se oponha, mas que, ao tentar viabilizar seu próprio caminho, retórico que porventura a alguém venham conferir, independentemente
iada mais apresente que a já desgastada memória dos versos: 'caminhante,
ão há caminho, caminho se faz ao caminhar. 1 A referência a essas duas passagens, de textos diferentes, em uma mesma linhaargumentativa
não é aleatória, nem original. Ambas encontram -se conio epígrafe do primeiro capítulo de
E certo que podemos abrir trilhas por lugares por onde ninguém obra de Nikolai Veresov [1999). Contudo aqui se situam em uma organização um cauto
inda andou, no próprio ato de avançamos e os desbravarmos. Porém a distinta, de minlia inteira responsabilidade.
44 dR
MATERIALISMO HISTÓRICO DIALBTJCO COMO FUNDAMENTO DA PSICOLOGIA H ISTO MCOCIILTUR AL CAPÍTULO 111 - QUESTÕES DE MÉTODO EM VIC0TSK1
de se reconhecer qual modo de conceber tais temas está mais próximo Além dos dois extremos, haverá ainda modos intermediários, cujas
de suas contradições reais. Além disso, um conhecimento 'crítico' restrito
à 'descrição' das coisas 'tais como são', ou 'tais como para nós hoje se
nuances qualitativas e quantitativas não nos cabe mapear aqui. Assim,
tomei*105 a tipificação que se segue como dispositivo heurístico provisório
apresentam' por fiel ou detalhada que seja, também não se constitui como
'fim em si'. Cabe inquirir se sua potência de transformação do real se efetiva
para o reconhecimento de modos de pensar efetivamente presentes em nosso
cotidiano, cujos efeitos podemos reconhecer em nossa própria experiência
como ampliação da possibilidade humana de compormos junto aos nossos
semelhantes uma sociedade distinta desta que hoje nos faz inimigos e social. Apresentaremos no Quadro 1um esquema comparativo que contém
algozes de nós mesmos. a estrutura lógica fundamental do antagonismo entre 'verdade absoluta' e
'verdade relativa', a qual será comentada mais detalhadamente em seguida.
A primeira parte do presente trabalho subdivide-se nos três seguintes o A tirania da verdade absoluta o A tirania da verdade relativa
=
tópicos: [1.1) Contrapondo dois conceitos subjetivistas de 'verdade'; (1.2) Em giy ÿ
[dogmatismo) (relativismo)
busca de um conceito crítico de verdade; (1.3) Dois princípios articulados
para a busca de criticidade. Uma forma antiga de não aceitarmos
Uma 'nova forma' de não precisarmos mudar
mudar de posição {um velho de posição [um 'novo' comodismo}
comodismo)
1.1. Contrapondo dois conceitos subjetivistas de 'verdade'
Verdadeiro é qualquer pensamento [ou
Verdadeiro é o que manda a tradição nenhum) - pertencente a alguém (ou a
Ao falarmos de 'busca da verdade', é preciso definir o que é buscado, - pertencente a mim. ninguém).
pois a palavra 'verdade' pode causar desconforto, por estar associada à
sua acepção eclesiástica (um problema de 'fé') ou moral (um problema de
Ambas têm um ponto em comum:
'virtude'). É ao problema epistemológico que nos voltamos ('verdadeiro'
tomam por verdadeiro algo estritamente subjetivo
oposto ao 'equivocado') e não ao moral ('verdadeiro' oposto ao 'mentiroso')
nerti ao religioso ('verdadeiro' oposto ao 'herético'). Há dois termos bastante
A verdade absoluta é algo que diz A verdade relativa é algo que diz respeito à
enfatizados nesse campo semântico, seja na academia, no 'senso comum' ou e respeito à mente do iluminado ou iniciado. mente de cada um (ou de ninguém).
em meios de comunicação de massa: (a) a noção conservadora, muito criticada,
de 'verdade absoluta'; (b) seu contraponto aparentemente 'progressista': a - Problema do obscurantismo reverso - Problema do obscurantismo assumido
(despótico) = não precisas saber, eu sei (agnóstico) = nunca saberemos, cada um já
concepção de 'verdade relativa'. por nós todos: obedeça-me. sabe por si. Logo imponha-se ou deixe estar
Os dois extremos podem conduzir a diferentes formas de pensamento [...].
intransigente: a 'tirania da verdade absoluta', ou 'dogmatismo', e a 'tirania
da verdade relativa', ou. 'relativismo'. É certo que, em situações efetivas de São duas formas de subjetivismo:
comunicação verbal, mediando diferentes relações sociais, tais formas de 0 Nos dois casos o discurso dito verdadeiro não necessita prestar contas ao real.
discurso não estarão claramente diferenciadas. Até por serem recursos 0 Nos dois casos o critério da objetividade é afastado.
retóricos que, como será explicado, pautados em princípios gnosiológicos o Nos dois casos o critério do poder prevalece = se duas posições forem radicalmente
opostas, só a força fará uma delas predominar
similares, poderão entrelaçar-se no curso de certos jogos de convencimento,
nos quais constantemente participamos ou estamos enredados. Fonte: Elaborado pelo Autor
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MATERIALISMO HISTÓRICO BIA3.I5TÍCO COMO FU N DAM li NTO BA RSICOLOCU IIISTÔRI CO
COI.TU RA I. CAPITULO III - QL-SSTÓÉS DL MÉTODO 2 M VICOTSKC
ainda dois pontos: [a] não estamos falando de práticas apenas estudo de questões teóricas e metateóricas gerais que subjazem a
mas de práticas coletivas; (b) dentre as práticas coletivas, não individuais? uma" investigação dos fenómenos psicológicos (WERTSCH, 1985a,
mencionamos
apenas os 'costumes', de 'convenções', de modos de agir repetidos p. 61, grifo do autor).
pela 'força do hábito', graças à comodidade que isso gera, mas sim de somentéi
de transformação da realidade em uma direção de maior
práticas! E é o que podemos perceber lendo o próprio
Vygotski (1927/1991),
emancipação do ser a 'psicologia geral' e desta
humano como género. jJwkío fote da 'metodologia da psicologia' comoconsiderações, é importante
Partindo dessas
gágn)o a 'dialética da psicologia'. psicologia de Vigotski
ÿHistacar que a questão do método tem duplo aspecto na
metodológicas
gerais em Vigotski. As subdivisões do segundo eixo são:
(2.2.1) 1916-1927: • conhecimento' (meio de cognição),
o melhor modo de conhecer a realidade
rumo à teoria histórico-cultural; (2.2.2) 1928-1931: teoria transformação. E o melhor
histórico-cultural; c é confrontando-nos com ela em seu processo de
(2.2.3) 1932-1934: desde a teoria histórico-cultural. Cada uma
dessas três ÿ
modo de saber sobre como se dá um processo de transformação é 'produzi-lo'
partes também apresentará contribuições de Vigotski quanto
ao método em coletivamente. Pode-se também afirmar, unindo as formulações 'a' e 'b', que
algumas de suas diferentes obras.
'Método é mediação2 entre teoria e prática'.
encontramos em algumas delas, ao menos quatro conceitos metodológicos' Bjag;'. Em primeiro lugar está a própria 'consciência', tão reivindicada como
('meta-teóricos') fundamentais para a teorização em psicologia. Conceitos que, IPIIibjet0 da psicologia pelas correntes idealistas e metafísicas que o próprio
tomados como objeto de problematização, podemos enumerar aqui na forma ipljgotóki combatia. Ocorre que ele a coloca como objeto de estudo sob algumas
de interrogações. São perguntas que, se não forem respondidas com devido I Ipf condições, por exemplo: (1) não se pode abrir mão da consciência, como
rigor, podem comprometer todo o processo de investigação científica em| glIlNaziam os coinportamentalistas, pois ela é o psiquismo propriamente humano,
psicologia histórico-cultural, tanto quanto para qualquer abordagem teórica j Ipli-je o estudo do que é propriamente humano não se pode deduzir do estudo de
consciente de suas necessidades metodológicas de base. São as seguintes: [a]
í Ste animais em laboratório; mas também é preciso (2) não tomar a consciência
Qual o 'objeto de análise' da psicologia? (b) Qual o 'princípio explicativo' para ; Pt?! como realidade que explica a si mesma, como faziam os mentalistas, pois
o objeto de análise da psicologia? (c) Qual a 'unidade de análise' que articula j depende ela própria de outra3 realidade material da qual ela é função, para
concretamente 'a' e 'b'? (d) Qual o 'modo de proceder à análise' que perpassa p/ que seja explicada (i.e. seu 'princípio explicativo' como veremos em seguida).
'a', 'b' e 'c ? 'Ç& i*:5
Além da 'consciência', poderemos encontrar como objeto da psicologia,
r
A seguir, delinearemos algumas possíveis respostas para tais questões, : £K)em Vigotski, as chamadas 'funções psíquicas superiores', as quais são por
na perspectiva da psicologia histórico-cultural de Vigotski. definição: conscientes e não inconscientes; sociais e não biológicas; mediadas
|hv e não imediatas; voluntárias e não involuntárias (WERTSCH, 1985b). Contudo,
a] Qual o 'objeto de análise' da psicologia? p? >; já que a consciência só pode ser compreendida como totalidade, não se pode
5///- dizer exatamente que ela seja apenas a soma das funções psíquicas como suas
A questão 'a', formulada com o termo 'objeto de análise', que é £;ÿ
partes. As relações estruturais e dinâmicas entre consciência (como processo
apresentado pelo próprio Vigotski no livro em coautoria com Luria, 0
/ / geral) e as funções psíquicas superiores (como processos particulares)
são
Instrumento e o Signo (VYGOTSKY; LURIA, 1930/1999, p. 15), também pode U complexas e demandam discussão mais detalhada que não podemos fazer
\
ser referida, em palavras mais habituais para nós, como 'objeto de estudo'. aqui. Mas basta lembrar que o próprio Vigotski assume que funções como
Pese-se, contudo, que, para Vigotski, a tarefa da 'análise' é fundamental, como consciência, mas seus
>v-/ o 'pensamento' ou a 'atenção' não são unidades da
veremos logo em seguida - sobretudo como 'análise dinâmica' ou 'dinâmico- ÿ|v: elementos (VYGOTSKI, 1994). Ser 'elemento', como veremos, significa ser uma
causal', mas não excluindo a 'análise estrutural', subordinada à primeira. p parte que não contém todas as contradições essenciais do conjunto.
Portanto essa pergunta diz respeito à definição metodológica sobre 'o que
Outro tema muito importante que pode aparecer como objeto da
a psicologia estuda?'. Definição sem a qual qualquer estudo científico
nesse psicologia, em Vigotski, é a 'personalidade'; não se pode dizer que ela seja o
campo torna-se inviável. Apesar de sua importância, esta não era uma tarefa
mesmo que consciência, posto que, na personalidade humana, há modos de ser,
fácil nos tempos de Vigotski, e permanece difícil ainda nos nossos.
socialmente constituídos, dos quais temos consciência e outros dos quais não
Pela tradição cartesiana que está na base do surgimento da psicologia, temos consciência, em dado momento de nosso desenvolvimento histórico. A
oscila-se entre o mentalismo metafísico e o naturalismo mecanicista. Ora se personalidade também pode ser considerada uma forma de síntese superior
define que o objeto de estudo da psicologia são processos mentais abstratos, de funções superiores (VYGOTSKI, 1931/2000). Por fim, pode-se ainda colocar
uma "psique" incorpórea, definida de modo metafísico; ora se define que o próprio 'homem', o 'ser humano', a 'pessoa'4, como objeto da psicologia.
só podemos estudar o comportamento observável do homem tal como os
movimentos de uma máquina, passíveis de quantificação e de mensuração, Digo 'outra' realidade material porque, evidentemente, na concepção materialista dialética
sob a inspiração das ciências naturais, desde o modelo da física moderna. É de Vigotski, a própria consciência também é matéria, ainda que um modo da matéria
qualitativamente distinto daquele que se subordina unicamente às leis físicas elementares.
possível, com base em estudos anteriores (DELARI JÚNIOR, 2000, 2011), Fundamental, neste sentido, é o princípio da "[...] unidade psicoftsica" (RUBÍNSHTEIN,
listar
diferentes opções de Vigotski (e/ou deduzíveis), a partir de seus trabalhos, 1946/1967, p. 34], O qual também se pode encontrar, em outras palavras, em Vygotski
quanto a qual poderia ser o objeto da psicologia. Opções (1926/1991, p 150]: "j.„] a psique não aparece isolada do mundo ou dos processos do
diferentes quanto ao organismo nem por um milésimo de segundo".
seu grau de abrangência, mas não necessariamente excludentes. Do russo 'uenoBett' (tchelovek), que pode ser traduzido desses três modos em português.
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MATERIALISMO HISTÓRICO DlALÉTICO COMO FUKDAMEKTO DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL CAPITU LD 111 - QUESTÕES DE MÉTODO ÍM VIGOTSKI
Ao falarmos de 'consciência' e de 'personalidade' dentro da IPT de modo mais abreviado. Pois não temos encontrado, na
tradição 5
metodológica marxista da psicologia histórico-cultural, é preciso enfatizar PPpode ser formulada
histórico-cultural, mais do que um 'princípio explicativo'geral para
esses termos não indicam 'entes' ou 'seres' com vida própria sua
que "psicologia assim, não temos concebido que haja mais
- existência | 0bjeto de análise da psicologia. E,
só se realiza com uma ação do próprio ser humano com relação ao material da qual o objeto da psicologia
exemplo: o que é a 'consciência'? Não, não é algo 'ontologizado'; a
mundo. Por ÿ
Situações específicas mais breves, no interior de cada período, obra de Marx, quando toma a
quais alguns comentaristas contemporâneos de Vigotski
as ggpÍ938, p. 71) [vínculo mais evidente), até a mesmo como
denominaram Kffÿercadoria e, portanto, a natureza do valor unidade para sua
'microgenéticas', são também de importância vital na medida em que [vínculo mais nuançado). Contudo é possível
cada um de nós necessita comprometer-se com as consequências de
nelas pç lítica da economia política
nossas PÍr exemplificar os dois principais conceitos que assumem o lugar de tal
decisões e de nossos atos diante do outro, com o outro, ou mesmo contra da 'unidade de análise'.
ele. V* categoria meta-teórica em Vigotski, ou seja, o lugar
como 'unidade pensamento-
Passaremos, no próximo subitem, à noção de unidade de análise como I São. dês o 'significado' [ou generalização)
•
metodológicos específicos que, ao longo da história do trabalho criativo não 'de qualquer modo', mas de tal modo que algo que está presente
Vigotski, foram destacando-se, nem sempre articulados explicitamente,
de iteitores
seja passível de ser vislumbrado.
e, pjjela
às vezes, sucedendo-se em aprimoramento de contribuições anteriores. Se,
porém, na proposta de Vigotski e no marxismo em geral, é necessário proceder ? ;i
1925 - 'Método objetivo- analítico' como aporte metodológico
do geral para o particular e do mais avançado para o mais elementar, isso
não Aquele gérmen de busca por objetividade destacado no subitem
significa que o detalhamento das particularidades do método em Vigotski
seja
anterior, anos mais tarde, na tese de doutorado de Vigotski para
o Instituto
menos trabalhoso ou necessário.
já mais maduro em termos
Também elas tiveram desenvolvimento histórico, o qual só podemos de Psicologia de Moscou, irá aparecer de modo
metodológicos. Na Psicologia da Arte (VIGOTSKI, 1925/1999), abordam-se
resgatar brevemente aqui, em pelo menos três grandes momentos, para
três géneros literários: (a) a fábula - 11títulos de
Krilov; (b) o conto Hálito -
fins de exposição: [2.2.1] 1916-1927: Rumo à teoria histórico-cultural; A análise aqui é mais
(2.2.2) 1928-1931: Teoria histórico-cultural; (2.2.3) Desde a Leve de Bunin; (3) a tragédia - Hamlet de Shakespeare.
monografia
teoria
histórico-cultural, não adotamos a visão de que as mudanças qualitativas próxima à objetividade da linguagem artística do que anterior
na
(a) a relação da ciência com a mediação da linguagem pela qual ela método é baseado no método funcional da dupla estimulação"
realiza suas abstrações e orienta seu olhar: "A palavra é o gérmen da ciência; e
Jeste
neste sentido cabe dizer que no começo da ciência estava a palavra" (VYGOTSKI,
T(VYGOTSKY, 1928/1994, p. 69, grifo nosso). Podemos expor a noção de
1927/1991, p. 281);
f-M'dupIa estimulação' pelo fato de que os estudos de Vigotski, nessa linha,
ffc recorriam sempre a duas séries de estímulos: os 'estímulos-objeto', que
[b) a centralidade da prática social como movimento pelo qual se áp/são aqueles que provocam reações imediatas no sujeito, e os 'estímulos-
demanda a reconstrução das abstrações científicas e que produz as condições rneio' ou 'signos', que são utilizados ativamente pelo sujeito na resolução
para tal. £ÿ mediada da tarefa proposta pelo pesquisador (Diagrama 1).
Conhece-se para realizar uma prática transformadora, e só realizando Ih:
uma prática transformadora é que se conhece: "O princípio da prática e sua
filosofia se impõe uma vez mais: a pedra que rejeitaram os construtores esta
veio a ser a pedra angular" (VYGOTSKI, 1927/1991, p. 357); feri Diagrama 1 Distinção entre o método da psicologia tradicional e ó método
-
(c) a centralidade da dialética como categoria geral integradora do y- da dupla estimulação.
discurso científico, em psicologia geral. "Esta psicologia não será outra coisa, w:
senão a dialética da psicologia" (VYGOTSKI, 1927/1991, p. 388). Vigotski lança
assim um projeto até hoje não totalmente posto em prática, embora nos anos Na psicologia tradicional: -> R
posteriores de sua vida tenha realizado importantes tentativas, algumas das
quais serão discutidas na sequência.
S meio [signo]
2.2.2 1928-1931: Teoria histórico -cultural
I
'
1928 - Introdução ao 'método instrumental' e ao 'método da dupla
estimulação'
No método da dupla estimulação: S objeto
Diferentemente do que possa parecer, o termo Teoria histórico-
cultural' não se refere a tudo que Vigotski produziu, mas a um determinado
_momento histórico de seu trabalho criador. Assim como qualquer realidade Fonte: Elaborado pelo autor.
social, a produção do conhecimento científico é um processo histórico e,
assim sendo, está sujeita a passar por diferentes momentos no decorrer
da trajetória de vida e atividade científica do pesquisador. Nesse sentido, o Yygotski (1928/1994, p. 70) reconhece que seu método "[...] é baseado
artigo 'O problema do desenvolvimento cultural da criança' é considerado "[...) no método dos reflexos condicionais [...]" de Pavlov. Vemos nisso também
manifesto da teoria histórico-cultural" (PUZIREI, 1989, p. 42), o qual, como uma busca de ênfase na objetividade em suas investigações. Mas podemos
não poderia deixar de ser, também focará questões de método. Na estrutura dizer que a formulação vigotskiana supera o paradigma pavloviano, pois
bem desenhada do texto, publicado ainda quando o autor estava vivo, temos: exige que entremos no âmbito da cultura (mediação do signo, impossível no
1) '0 problema'; 2) 'A análise'; 3) A estrutura'; 4) A génese'; 5) '0 método'. reino animal) e da história (o processo se modifica ao longo de determinado
Indo direto ao ponto de interesse que tem norteado todo nosso curso de desenvolvimento, em diferentes períodos, com evolução, involução
capítulo, "Este método pode ser convencionalmente chamado instrumental e revolução - processo que implica saltos de qualidade decisivos). Portanto
já que é baseado na função instrumental dos signos culturais no assim podemos compreender por que o autor considera que "[...) este método
comportamento e em seu desenvolvimento" (VYGOTSKY,
1928/1994, em sua verdadeira essência é um método histórico-genético" (VYGOTSKY,
p. 69, grifo nosso). Além disso, "no plano da investigação
experimental, 1928/1994, p 70). Nessa direção, ele retoma a célebre afirmação de Blonski
66
Ppjjs£\5".:'.. MATERIALISMO HISTÓRICO DJALÊTICO COMO FUNDAMENTO DA PSICOLOGIA KiSTÓRICO-CULTURAl : CAPÍTULO III - QUESTÕES DE MÉTODO EM VIGOTSKI
|V; natural «-* função artificial (técnica/psicológica)}, havendo assim uma relação
[...] deveria realizar-se por si mesmo nos limites da organização |Ví de mútua constituição e de alternância nas relações de predominância entre
de uma ou outra atuação psicotécnica [...), aparecendo na
qualidade de seu órgão essencial, que garante o projeto,
&U' funções elementares e superiores, e não uma relação de mútua exclusão, o que
reconstrução e desenvolvimento planejado desta prática. Este &" é reiterado no livro sobre A história do desenvolvimento das funções psíquicas
•
72 73
DE MÉTODO EM VIGOTSKI
CAPÍTULO III - QUESTÕES
MATERIALISMO HISTÓRICO DiAl.ÉTICO COMO FUNDAMENTO DA PSICOLOGIA EUSTÓRICO-COLTU RA l ÍV;
lí;.-
li"
disso, também se pode traduzir
smisiovoi por 'semântica' ou,
metodológica, a qual não se pode dizer que chegou a ser totalmente postal Além com mais
íf
por 'relativa ao sentido'. Aqui o leitor nota
em prática durante a vida de Vigotski. Sua proposta seria a de que "A análise! f-ajs precisamente,
o problema de se traduzir
semitcheskii por 'semântica', pois
a
sêmica [.semitcheskii] é o único método de estudo adequado da construção! fareza e também 'semântica',
mas a palavra
[stroenie] sistémica e semântica [smisiovoi] da consciência"9 (VIGOTSKI, 1933-J fònstrução da consciência é sistémica semântica' o adjetivo
é smisiovoi. Enquanto no termo 'análise
34/1982, p 166). .„tjtilizada palavra pouco familiar 'sêmica'. Smisiovoi
traz
Os termos russos entre colchetes não são por mera curiosidade, pois*! pi0-semitcheskii - smisl, que se traduz mais propriamente por 'sentido', na
levando à
amplo
linguística estrutural. Cada unidade mínima de significação, que, combinada ela trata do significado e que esse não é tão
//.dita', busca mostrar que psicológicas
com outras, define o significado de morfemas e palavras; traço semântico, 0 sentido tem aver com todas as consequências
| quanto o sentido. é algo mais
componente semântico". do significado da palavra, mas o significado
u do entendimento
"[...] caminho do pensamento à palavra [...]" (VIGOTSKI,
Pode-se traduzir 'stroenie' por 'construção' ou por 'estruturação' - preciso. Ele é o próprio exata
do pensamento à escolha
esta palavra na tradução brasileira, feita da espanhola (VYGOTSKI, 1933- 1933-34/1982, p. 160), entenda-se: caminho Pois está claro que só
há
dizer o que se está pensando.
34/1991), está como 'estrutura', mas autores russos, como Veresov, têm l do signo verbal opara início, com significado. Aqui se está dizendo
'palavra' em
preferido 'construção'. De fato, é uma tradução possível, visto que seu palavra, desde de sinais.
de sons, ou de letras, ou
radical também está presente em palavras como construtor [stroítel'] uma acepção mais coloquial, a sequência dando-
significado proporciona a transição do pensamento à palavra, isso, o
Assim o
etc. Além do que, no russo, também há a palavra struktura. Esta ultima,
Ihe vida, e da palavra ao pensamento,
dando-lhe materialidade. Por não só
evidentemente, é conhecida por Vigotski, sendo utilizada por ele em palavras,
abstrato, ele se realiza em
diversos textos, inclusive alguns citados no presente trabalho (VYGOTSKY, próprio pensamento já não é algo
1928/1994; 1931/2000). Deduzimos que, se nesse momento preferiu-se se expressa nelas.
o significado,que é o
objeto da análise
falar em stroenie da consciência e não em struktura da consciência, isso 0 fato mais importante aqui é que realização de
'semântica', é uma atividade humana, um modo de
pode indicar uma necessidade conceituai, pois a primeira designação semica ou refere,
O significado não é o 'objeto' a que o signo se
insinua mais um caráter dinâmico, em formação, e a segunda um caráter Um processo de transição. primeira. Nas palavras
nem é o próprio 'signo' em sua materialidade sensível éa
um tanto mais rígido, estabelecido.
p. 160), "[...] significado é algo mais definido:
de Vigotski (1933-34/1982, nos alongar,
] da operação do signò". Não podemos
estrutura [struktura interna tipificadas
9 No original: "CeMniecKHíi aiiaJína ecTb e/j hhctb&hh hh aÿeKBarHMtí moto,q »3yHemm
dentre os estudos em que Vigotski
trabalha com estruturas
CKCTeMHoro h cMbicnoBoro crpoeHra co3HaHHíV (VIGOTSKI, 1933-34/1982, p. 166}",
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