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Universidade de Brasília

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo


Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
Espaço e Organização Social
Professor: Frederico de Holanda

O USO DAS MARGENS DO LAGO PARANOÁ E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO


ÂMBITO SOCIAL

Helena Miazaki da Costa Tourinho

Brasília, 2012
RESUMO

! Este trabalho apresenta uma análise preliminar do uso dado às margens do


Lago Paranoá em Brasília. O tema será analisado de forma especulativa, quase
como uma mera apresentação da situação existente, apresentando seus pontos
fortes e fracos, e levantando questionamentos para desenvolvimento de
melhoramentos e propostas futuras. É importante comparar a intenção prevista para
o lago com sua situação atual, buscando compreender qual a motivação da
utilização como conhecida hoje, além de considerar hipóteses para o futuro. Ao
comparar a ocupação prevista por Lucio Costa e como ela se deu, percebe-se o uso
das margens, majoritariamente, por propriedades privadas. Essa privatização
influencia diretamente o âmbito social, já que agrava a segregação social, mantendo
a maior parte das margens subutilizadas por um grupo pequeno de pessoas, ou
desvalorizadas. Quando utilizadas por estabelecimentos comerciais, além de voltar a
parte posterior da edificação para o lago, fazem uso de serviços para a classe mais
abastada, sem incentivar o uso coletivo e público dos espaços, que perdem seu
propósito de servir à comunidade que o ocupa com eficiência. Com raros exemplos
de uso proveitoso da orla, Brasília continua sem medidas eficazes de
aproveitamento de um espaço com grande potencial de uso coletivo, que favoreça
sua população, que, como parte constituinte e atuante nos espaços físicos,
representa reflexo direto da composição da cidade. Essa, por sua vez, deveria ser
configurada de forma a representar a totalidade da comunidade ocupante, servindo
para agregar os indivíduos de diversos setores e bairros e reforçar sua identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Brasília. Lago Paranoá. Ocupação e uso. Espaços públicos.


1

1
INTRODUÇÃO

! A mudança da capital do Brasil, que deu origem a Brasília, referência


urbanística e arquitetônica mundial, estava acompanhada de um discurso otimista, e
de maior desenvolvimento e igualdade para o país, representado na cidade que
abrigaria o centro governamental do Brasil que, no conceito de democracia, é
representante do povo, além de construir uma unidade nacional, dentro evocação
dos Bandeirantes. Contudo, é bem sabido que outros motivos se somam para que a
mudança da capital seja interessante. Essa mudança traria a ideia da cidade que
não pertence a região nenhuma, mas a todas elas ao mesmo tempo, não privilegia
um determinado grupo, mas a nação. De fato, esse preceito se fez verdadeiro.
Porém, pode-se desdobrar outras consequências e interpretações acerca do ato.
Trazer a capital para o interior despovoado significa afastar o centro do governo do
povo, de forma a se proteger de possíveis levantes. A separação simbólica entre
Estado-povo está subjacente a essa separação entre o governo e as cidades
economicamente relevantes na época, na região sudeste, de modo que o governo
se torna mais inatingível se distante de cidades economicamente influentes. Se por
um lado a construção de Brasília parecia a tomada do Estado pelo povo, por outro,
ela reafirma a centralização do poder e a fraqueza e desorganização da sociedade
civil (BRAGA, 2010; HOLANDA, 2002).
! O período no qual ocorreu o Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova
Capital do Brasil, entre setembro de 1957 e março de 1958, é representado pela
produção arquitetônica brasileira significativamente reconhecida em relação a outros
países, antes dominantes nesse campo (WISNIK, 2010 apud. BRAGA, 2010).
Depois de analisados 26 projetos, Lucio Costa foi eleito vencedor, com seu traçado
moderno e forte cunho simbólico, como era o esperado da cidade que seria
construída com a “única”1 função de abrigar o governo do país.
! Nos comentários do júri, as vantagens foram listadas acerca desses
elementos simbólicos, em favor da facilidade de compreensão, da clareza do

1 O termo “única” foi usado aqui de forma superficial e genérica, apenas para ilustrar que não havia
previsão de desenvolvimento econômico ou produção industrial significativos em Brasília. Tal
movimentação econômica seguiria dando-se pela região Sudeste do Brasil. A mudança da capital foi
efetivada por um conjunto de fatores em áreas diversas (HOLANDA, 2002), que serão desenvolvidos
mais à frente. Esta nota deve apenas explicar que o uso do termo foi feito como figura de linguagem
textual, e não como afirmação embasada bibliograficamente.
2

traçado, da modernidade que representava o século XX, que traziam, nas


entrelinhas, as premissas modernas de cidades igualitárias e socialmente justas,
conquistadas através do plano urbano.
! Curiosamente, duas das quatro desvantagens citadas, diziam respeito ao uso
das margens do corpo d’água presente na cidade: o lago gerado a partir do
represamento do Rio Paranoá, decisão feita previamente ao edital do concurso. E
ambas as críticas visavam ao melhor aproveitamento da área circundante ao lago. O
objetivo era utilizar as margens de forma proveitosa, por meio de parques e
passeios, e dar uso à maior parte delas, de forma a desestimular o uso indevido
(BRAGA, 2010).
! A construção da capital ocorreu em três anos, e a cidade passou a
desenvolver-se, trazendo consigo os passos naturais de crescimento e consolidação
com o restante do país, visto que a sede do governo, e, consequentemente, suas
ações, vinham de Brasília. Atualmente, passados um pouco mais que cinquenta
anos de sua inauguração, Brasília segue representando o centro administrativo do
país. A lista de vantagens do júri, em grande parte, se fizeram verdadeiras. Mas, e
quanto às críticas? Se cumpriram também, infelizmente, mesmo com as medidas
propostas no plano de implantação da cidade.
! As margens do lago são, em grande parte, privadas, em posse de clubes
particulares, de habitações ou estabelecimentos comerciais. Ao contrário do
tratamento dado às margens dos corpos d’água em outras cidades e países, onde
as margens servem de espaços de convivência social, o Lago Paranoá tem as suas
privatizadas e subutilizadas. A sociedade contemporânea tem valorizado, cada vez
mais, os espaços privados e socialmente segmentados, aspecto facilmente
observado pela criação de estabelecimentos comerciais excludentes socialmente ou
condomínios residenciais de entrada controlada (PARENTE, 2006).
! Além da ocupação privativa, a configuração espacial dos edifícios marginais
ao lago contribuem para impedir que a presença ou permanência de pessoas se dê
de forma proveitosa, em termos de encontros e esquivanças, como é natural das
mais diversas cidades, bem-ocupadas, e bem-utilizadas.
! Muito embora suas margens não tenham sido planejadas completamente
públicas, o relatório de Brasília de Lucio Costa explicita que a orla deve permanecer
intacta, sem permitir que as habitações estendessem seus quintais até a água, o
3

que só seria permitido no caso de clubes esportivos, balneários, restaurantes,


núcleos de pesca e lugares de recreio (COSTA, 1957 apud. CODEPLAN, 1991).
Além desses locais exclusivos, em termos de acesso, havia a previsão de bosques,
de acesso público, para usufruto da população urbana. A partir daí, inicia-se as
considerações do desenvolvimento da ocupação prevista e atual das margens do
lago, e suas potencialidades em relação à perspectiva social, dado que a cidade,
como abrigo da sociedade, deve atender ao bem-estar de todos, sem privilegiar um
ou outro indivíduo, partindo do preceito constitucional de equidade e isonomia2
(BRASIL, 1988).

2
A OCUPAÇÃO DO LAGO: PREVISÃO E PRESENTE

! O projeto vencedor do concurso para a nova capital do Brasil, de Lucio Costa,


previa uma cidade menos populosa, e, consequentemente, seu traçado era menor e
sua localização, deslocada para oeste, distanciando-se do Lago Paranoá. Costa
previa habitações individuais nas margens oeste do corpo d’água, e não se fazia
qualquer previsão ou menção a cidades vizinhas que viriam a ocupar o outro lado
das margens. Durante a avaliação dos projetos pela Comissão Julgadora do
concurso para o plano-piloto, considerações em relação à distância da cidade com o
lago e a falta de especificação de estradas para a possível − e provável −
construção de cidades-satélites já constituíam a lista de críticas ao projeto (BRAGA,
2010). Sir William Holford, membro do júri do concurso, sugeriu o deslocamento do
desenho para leste, e os lotes residenciais individuais foram posicionados na
margem mais distante da represa. “A razão deste deslocamento foi reduzir a
extensão de área vazia entre a cidade a água, a seu ver vulnerável, no futuro, a
pressões no sentido de uma ocupação indevida.” (TERRACAP, 1985). Com a
implantação, o crescimento e desenvolvimento da cidade, aumento de sua
população, foram feitos acréscimos e modificações no desenho original, bem como
remanejamento de sua ocupação (Figura 1).

2 BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Segundo o artigo 5º,
todos são iguais perante a lei, garantindo-se o direito aos princípios fundamentais: vida, liberdade,
igualdade, segurança e propriedade.
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Figura 1 - Comparação entre o projeto proposto por Lucio Costa e o plano-


piloto conforme sua implantação

! As pressões supostas por Holford fizeram-se verdadeiras, e tal


remanejamento resultou numa apropriação da orla do Lago por, quase que
totalmente, habitações e estabelecimentos privados (MADOZ, 2006). Se por um lado
o crescimento citadino é interessante, por outro, a locação de atividades e
habitações subordinadas à especulação e fins puramente lucrativos do setor privado
acabam por minar a função social3 que a cidade deve prover a seus cidadãos. Além
disso, as políticas públicas não proporcionam medidas eficazes contra a contínua
privatização, agravando a situação, que termina por privar classes mais baixas do
acesso à cultura e informação (PARENTE, 2006). Ainda que existam ideias para o

3A Constituição Federal, em seu artigo 182, especifica que a cidade exerce sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Segundo as
diretrizes gerais do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), a garantia do direito a cidades sustentáveis
compreende condições dignas de vida, incluindo cidadania e direitos humanos, a participação popular
na gestão da cidade, de aproveitar seu cotidiano com qualidade de vida sob os aspectos social e
ambiental. Todos esses preceitos se fazem subentendidos no discurso do relatório de Lucio Costa
para Brasília (CODEPLAN, 1991).
5

melhor aproveitamento dos espaços, a influência da elite termina por prevalecer,


mantendo-se as margens privatizadas e subutilizadas.

2.1
ASPECTOS SOCIAIS NO USO DO ESPAÇO PÚBLICO
! Além dos fatores da configuração dos espaços da cidade, da ocupação
ocorrida desde sua implementação até hoje, e das políticas públicas, existe o fator
social e cultural intrínseco à sociedade atual, representado pela maior segregação
social, cada vez mais expressiva na sociedade contemporânea, que se pode
constatar empírica e superficialmente através da valorização dos itens de luxo, como
bem ilustrada por Vieira (2012), a respeito do shopping Iguatemi JK, inaugurado em
meados de 2012, em São Paulo:

Oficialmente, o shopping é “plural”. As lojas âncoras são Zara, Top Shop,


Livraria da Vila. Há Ponto Frio, Havaianas e “até mesmo” lotérica. “Já viu
shopping de luxo ter Havaianas?”, diz outro assessor. Mas os lojistas
parecem não crer na onda do “mix plural”. [...] A ideia parece ser expor na
entrada o que há de mais caro, não as pechinchas. Mulheres com roupas
extravagantes, peles, casacos e bolsas “máxi” dão com a cara nas portas
fechadas das grifes e suspiram. Outras, menos endinheiradas, fascinadas
por moda, irritam-se. “Estou odiando este shopping. Tudo que é bom está
fechado”, critica a blogueira de moda Jessica Flores, do Borboletas na
Carteira.

! Não obstante, a reação a observações como essas escondem, nas


entrelinhas, o quão arraigada está essa − quase que vontade − de diferenciação e
separação de convívio. Convívio esse que, na maior parte das vezes, trata-se
apenas de poder aquisitivo, e não necessariamente estilo de vida ou capacitação
intelectual, como se faz provar no campo de comentários do artigo: “Os (sic)
socialista precisa aprender a gostar de coisas boas, a pobreza só tem romantismo
na literatura, parece que todos são uns AMÉLIAS, adoram não ter o que comer, e
não (sic) tem menor vaidade.” (VIEIRA, 2012)
! A partir desse exemplo, pode-se perceber duas características distintas da
relação entre indivíduos da sociedade: a) a reafirmação da baixa interação entre
diferentes grupos da sociedade, e b) a interação interpessoal acontece somente
dentro de um espaço privado. Aparentemente, quanto maior e mais urbana a cidade,
maior é a tendência de se afastar da participação efetiva da comunidade (KELLER,
1968), ou dos espaços públicos, onde, para proteger sua integridade moral ou física,
6

as pessoas escolhem não compartilhar nenhum tipo de informação ou mesmo


interação (JACOBS, 2000). Essa homogeneidade de interação, somada à
privatização onde a primeira ocorre termina por causar uma desertificação do
espaço público, onde o encontro das diferenças e semelhanças entre grupos da
sociedade poderia não só validar a essência própria de cada um, possibilitando
crescimento e tolerância ao diferente, mas também propiciaria a função social
almejada com os espaços na cidade. Isto é, se no âmbito social já existe uma
diferenciação de classes, o espaço público trata de fazer essa reintegração
(BRASIL, 1988; DAVIS apud. TENORIO, 2012; JACOBS, 2000).
! Os espaços públicos passaram a ser considerados potencialmente perigosos,
e seu uso ficou à mercê das classes menos favorecidas, sem qualquer tipo de
manutenção ou incentivo ao cuidado pelo espaço coletivo (PARENTE, 2006).
Enquanto as classes mais altas se isolam, parte por medo, parte por afirmação de
status, a cidade passa a oferecer, cada vez menos, bons exemplos de convívio
público, como um retrato de sua própria composição habitacional.
! O afastamento do espaço público leva a parte da alienação social, além de
reforçar a relação sectária entre indivíduos que dividem uma cidade, e fazem parte
da mesma sociedade, já que é necessária uma atualização constante do mundo
circundante para a formação do caráter nesse contexto social (GEHL, 2006 apud.
TENORIO, 2012).

2.2
ESPAÇOS PÚBLICOS ÀS MARGENS DO LAGO
! A privatização dos espaços parece refletir esse novo “valor” social
(PARENTE, 2006). As ocupações vistas ao longo da orla do Lago Paranoá
privilegiam pequenos grupos, quando não apenas uma família, em áreas
potencialmente públicas e benéficas para o cumprimento da função social do
espaço, e da quebra de fronteiras entre solidão e companhia, que contribui para a
maior tolerância ao diferente, reforçando uma forma descomprometida de estar entre
outros, o que também aumenta a sensação de segurança e conforto pessoal, e que
poderiam fornecer à cidade o sentido de urbanidade, como interação entre cidadãos
no espaço coletivo (GEHL, 2006; JACOBS, 2000 apud. TENORIO, 2012; MELLO,
2008).
7

! A prerrogativa do uso do solo nos dias de hoje não pode ser creditada apenas
à iniciativa privada e à sociedade dos chamados novos-ricos. Desde seu projeto, e
mesmo com a − boa − intenção de Holford, ainda que a orla devesse permanecer
intocada, seu uso poderia se fazer por estabelecimentos privados, como balneários,
restaurantes e clubes esportivos, aos quais se permitiria a ocupação até a beira
d’água. As habitações deveriam estar recuadas dessa, para permitir o tráfego das
pessoas para a contemplação da paisagem. Ora, ainda que essa liberação das
margens esteja no texto, a intenção privada também se encontra no projeto,
desenho e texto, enquanto os “bosques e campos de feição naturalista e rústica para
os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana” (COSTA, 1957
apud. CODEPLAN, 1991), não. Estaria implícito que nas áreas vazias próximas à
orla, no desenho, seriam destinadas a esses bosques? (Figura 2)

Figura 2 - Croqui do projeto de Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília


8

! Ainda que a resposta fosse “sim”, a verdade é que a Brasília sonhada por
Lucio Costa e Comissão Julgadora não se concretizaria. Era uma cidade que já
privilegiava uma classe mais abastada, com padrões espaciais de modo de uso e
apropriação dos lugares abertos distintos daqueles da classe mais baixa, como
explicitado no desenrolar da história da relação entre poder e povo no Brasil4 .
! Não houve uma destinação de atividades eficaz para todas as margens,
resultando em uma grande quantidade de áreas intermediárias, sem qualquer tipo
de uso, próximas a propriedades privadas, que terminaram por invadí-las (MELLO,
2008). Soma-se a essa característica o fato de as áreas da margem abrigarem a
setorização de atividades. As margens contíguas à cidade servem ao setor de
clubes e estabelecimentos comerciais, condomínios fechados, todos com algum tipo
de restrição a acesso ou determinados grupos sociais, ora com entrada restrita,
como é o caso dos condomínios, ora com serviços acessíveis a apenas um nicho
social muito específico. Já na margem das penínsulas, o uso é inteiramente
habitacional. Essa especificação gera fronteiras, que são tidas como barreiras na
cidade, dificultando o acesso e desestimulando o uso dos espaços pela comunidade
(JACOBS, 2000).
! A privatização das margens parece uma “marca de nascença” na cidade. No
decorrer dos anos, o acesso ao Lago Paranoá continuava destinado àqueles filiados
a clubes ou proprietários de seus lotes nas penínsulas. Foram feitas
recomendações, vindas da Terracap, para que esse acesso fosse mantido intacto e
arborizado, e, dado o fracasso dos parques populares, perdidos em “favor” dos
clubes privados, restava a esperança de que fosse feito o calçamento das
penínsulas, às margens d’água, para passeios da população, com previsão de
atividades de aluguel de meios de transporte para favorecer e incentivar o flanar dos
usuários (TERRACAP, 1985).
! Não seguidas as recomendações, a população de mais rica, dominante em
relação à posse e acesso ao corpo d’água brasiliense, além de não permitir o uso
dos espaços por qualquer outra parcela da comunidade, continua sem ocupar
efetivamente os espaços públicos, gerando uma desertificação desses, o que
propicia o mal-uso ou a atração de atividades indesejáveis.

4 Conforme referido na introdução do trabalho. Para mais informações sobre esse aspecto, ver
Holanda, 2002, p. 285-300.
9

! Como explicitado por Jacobs (2000), esses hiatos de uso acabam por
contaminar as ruas e regiões adjacentes, até que se crie uma grande área
subutilizada. Até mesmo dentro das propriedades privadas, como as habitações na
beira do lago, de posse desses mesmos indivíduos, seu uso se dá muito
eventualmente, somente pela própria família ocupante, e em horários muito
determinados, em decorrência do horário comercial. Outro uso das margens é feita
por terrenos dos estabelecimentos comerciais, também elitizados, nos quais a
configuração edilícia e a oferta de produtos e serviços neles inseridos não estimulam
o acesso democrático5 da população.
! O tipo de apropriação e uso dos espaços não se dá somente pelo fator sócio-
cultural. A arquitetura como variável independente também cumpre seu papel,
influenciando no uso dos espaços. A localização das construções em terrenos
particulares ou dos estabelecimentos comerciais viram as costas às margens. O dito
fundo das edificações se volta para o Lago, enquanto estimulam a atividade interna,
tanto nas casas dos Lagos Norte e Sul quanto nos centros comerciais como Pier 21.
E se nas casas o quintal arborizado indica, no mínimo, uma intenção de
possibilidade de o ocupante chegar à margem, os centros comerciais priorizam
estacionamentos que separam o fluxo contínuo dos usuários ao Lago, além de não
proporcionar espaços aprazíveis para seu usufruto.
! Sabendo que os corpos d’água exercem uma atração sobre as pessoas
(BREEN; RIGBY, 1996 apud. MELLO, 2008), é interessante observar que, nos
espaços em Brasília, o tipo de uso do espaço é feito visualmente (HOLANDA, 2002).
Aproveita-se as vistas do Lago Paranoá como paisagem, como fundo à experiência
vivida nos centros comerciais ou de dentro de casa. O Lago funciona como moldura
a uma situação, um potencializador de outra apropriação, que valoriza a última,
porém, mantém o espaço admirado sem uso efetivo (Figuras 3 e 4).

5 O termo democrático, neste caso, diz respeito à não-restrição do espaço. Sua conotação seria
melhor aplicada em se tratando de espaços públicos e abertos, sem quaisquer vedações próprias de
edifícios (PARENTE, 2006). Contudo, dado que os estabelecimentos comerciais dos quais trata o
texto não têm nenhum tipo de restrição explícita por meio de linguagem que não arquitetônica, são
passíveis de acesso de qualquer pessoa, sem impedimento de acesso. Logo, ainda que mais
restritivo, se comparado com um espaço aberto, é igualmente permissivo em termos de livre acesso e
presença de pessoas.
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Figuras 3 e 4 - Paisagens comuns em estabelecimentos comerciais à beira do


Lago Paranoá

! Fortuitamente, há dois casos em Brasília que permitem a apropriação e


percepção sensível do espaço proporcionado pelo Lago: o calçadão, parte do
Projeto Orla, criado na Asa Norte, e o Pontão do Lago Sul (Figuras 5 e 6). Ambos
são exemplos, em maior ou menor escala, de urbanidade. Esse conceito diz respeito
a vida pública, configurando o conjunto de ações, programadas ou não, que
indivíduos desenvolvem nos espaços. A definição pressupõe uma interação
presencial, seja visual ou de interlocução, entre dois ou mais indivíduos, conhecidos
ou não. Dentro dessas condições, somente o espaço físico − e público − pode
oferecer (TENORIO, 2012).
! O pier da Asa Norte proporciona maior mescla de tipos: familiares, de faixa
etária, de classes econômicas, devido ao acesso irrestrito, sem qualquer tipo de
elemento que configure barreira ou entrada e passagem determinada, ao passo que
o Pontão desestimula determinadas classes através desses meios formais. Ainda
que o acesso não seja restrito ou controlado, e que o uso seja feito por todas as
classes, existe a predominância dos mais abastados, devido aos serviços oferecidos
e tipos de edificação, e esse tipo de segregação já é suficientemente prejudicial à
democracia espacial citadina (Figura 7).
11

Figura 5 - Localização do calçadão do Projeto Orla, no final da Asa Norte

Figura 6 - Localização do Pontão, no Lago Sul


12

Figura 7 - Tipo de ocupação no Pontão do Lago Sul

! O primeiro caso referido é um bom exemplo da democratização do espaço.


Ora, se o lazer é listado como um direito de todos os cidadãos, logo, entende-se que
esse também deve ser democrático, com total liberdade de acesso a áreas
destinadas a tal função. A cidade e seus habitantes, como um todo, somente têm a
ganhar com o incentivo à convivência ilustrada no caso do calçadão na Asa Norte.
Se os cidadãos ocupam seu tempo disponível com atividades prazerosas, essas
geram uma força social positiva para o todo, de forma construtiva para as relações
interpessoais e até mesmo comerciais da cidade (PARENTE, 2006). O pier criado no
final da via L4 norte passou a atrair usuários de diversas classes, com as mais
diferentes expectativas de uso do local, o que levou a um convívio diversificado da
área (Figura 8), que, por sua vez, passou a atrair pequenos comerciantes, que
fornecem pequenos serviços, como venda de bebidas e até aluguel de caiaques,
realçando o poder atrativo local, e servindo como recomendação dos próprios
usuários para aqueles que nunca estiveram no local, na maioria das vezes. O local,
além de servir à vida pública, também permite a categoria de espaço de exceção,
visto que pode abrigar − como já o fez − usos eventuais de maior porte, e maior
concentração de pessoas (Figura 9; HOLANDA, 2002). Esse é um exemplo de como
13

o lazer democrático transborda para a esfera social, trazendo outros tipos de


benefícios, sempre a atrair mais pessoas, de forma a incentivar maior manutenção e
investimento na utilização do espaço.

Figura 8 - Exemplo do uso cotidiano no calçadão da Asa Norte

Figura 9 - 2ª Regata da Liga Brasiliense de Remo, em outubro de 2011,


realizada no calçadão da Asa Norte
14

! Os corpos d’água proporcionam a identificação do lugar, favorecendo a


orientação dos habitantes, e, devido ao porte, sua presença não desaparece em
meio ao cenário urbano, mas se impõe como elemento referencial na apreensão do
local pelo usuário, atraindo sua ocupação e uso das margens naturalmente (MELLO,
2008). Contudo, em Brasília, apesar de raros e não necessariamente eficientes do
ponto de vista social, os casos de disponibilização das margens à população
encontram-se com outro fator que dificulta seu uso: a distância que a maior parte da
comunidade tem de percorrer para chegar aos poucos casos de margens públicas.
! O Lago Paranoá não é centralizado em relação ao todo, e sua localização é
marginal, o que dificulta o acesso dos habitantes a ele. Não se trata somente da
distância física, mas também da falta de vias ou transportes coletivos que levem a à
beira da água. Concomitantemente, os usos do solo em suas margens, as funções
das edificações que têm o privilégio de assentar-se ali, não predispõem uma mistura
constante de pessoas, são locais frequentados pelo mesmo − pequeno − grupo, isto
é, sua ocupação, mais uma vez e por outro motivo, não se concretiza de forma
satisfatória (JACOBS, 2000; MELLO, 2008).
! Se o tipo de configuração, como o caso de Brasília, no qual o corpo d’água
está distante dos potenciais usuários, tende a ser ocupado com a presença de
jardins e belvederes, então o Lago Paranoá desempenharia seu papel conforme
pensado no projeto de Lucio Costa. Além da privatização da orla, a falta de
facilidade de acesso, e até a falta de diversidade de uso dos espaços citadinos
deixam o lago como paisagem de fundo, enquanto a vida da cidade segue seu
cotidiano, sem desconfiar o ganho que teria usufruindo de um recurso como esse.

3
CONCLUSÃO

! É sabido que a presença de corpos d’água nas cidades é um forte atrativo


para pessoas e atividades, além de servir como diferencial positivo em relação a
outros locais que não os possuam. Desde antes de lançado o edital do concurso
para a mudança da capital, a cidade conta com a previsão para o Lago Paranoá, e,
em seu relatório, Lucio Costa expressa a expectativa de uso para suas margens,
que seriam utilizadas de forma a garantir à cidade esse diferencial, proporcionando
aos seus habitantes um contraponto aprazível aos espaços de trabalho (PARENTE,
15

2006), levando a uma cidade completa e equilibrada, segundo os preceitos


modernos, na medida em que oferece aos seus ocupantes os meios para obtenção
de bens e serviços da vida cotidiana laboral e gregária, e os meios para o
aproveitamento do lazer.
! Apesar do desenrolar da situação da ocupação nas margens do Lago
Paranoá, sua presença na cidade continua valorizada e querida pela população.
Parece demasiadamente contraditório que a afeição pela represa seja generalizada,
mas não consiga transpor as barreiras sócio-econômicas tão impositivas atualmente.
Se o lago é, por definição, público, carrega a conotação de que é um bem
compartilhado por todos. A interpretação desagradável dessa constatação é que,
atualmente, o uso da represa se dá como a construção de Brasília se deu, em
termos simbólicos: a cidade que não representaria uma parcela específica de
brasileiros, mas todos eles. Por outras palavras, a capital reforçou a separação entre
o poder e seus subordinados. O uso do lago se faz do mesmo modo: é de todos,
mas sua utilização reforça a separação entre grupos sociais.
! Ainda assim, vontade para a utilização do espaço existe, de fato, e, em alguns
casos, existe também a infiltração de indivíduos que se aproveitam de cada pedaço
sem vigilância para usufruir do espaço. O fenômeno social que está sendo
negligenciado é o desempenho de áreas que proporcionam a urbanidade tão
desejada para a cidade. Quando nesses locais, existe um convívio entre as
diferenças, fortalecendo o vínculo das pessoas ao local, conscientizando-as do que
é a esfera pública: é de todos igualitariamente.
! Quando Jacobs (2000) discorre sobre as fronteiras que barram o ir-e-vir entre
áreas da cidade, e terminam por contaminar áreas vizinhas, a autora faz um
diagnóstico de um problema existente nas cidades. Contudo, se a temática do
problema − fronteiras − for separada de seu processo − a contaminação de áreas
vizinhas −, não seria possível reaplicá-lo como o mesmo processo para situações
inversas? Se o uso eficaz de determinado espaço público incentivar usos de
espaços semelhantes em áreas vizinhas, não seria um benefício para a cidade no
âmbito social? Já que a configuração da cidade, a determinação dos usos das
margens, e a falta de infraestrutura que atenda ao Lago Paranoá, além de não
integrá-lo efetivamente à cidade são fatores que impedem o uso proveitoso de suas
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margens. Pois o caminho inverso, considerando-se outros fatores que contribuam


para tanto, é completamente passível de ocorrer.
! A iniciativa de uma medida que visasse a esse ganho de bem-estar deveria
ser governamental, juntamente com a população, que já ocupa de forma
relativamente satisfatória os poucos espaços públicos presentes na cidade, e que,
sem dúvida, utilizaria outros, se existissem.
! Há uma grande quantidade de exemplos de casos bem-sucedidos em outras
cidades e países, que poderiam servir de modelo para Brasília, que tem o apreço de
seus habitantes, e que poderia valorizá-lo ainda mais com medidas que
beneficiassem a todos, uma vez que a cidade é seus habitantes, e vice-versa.
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4
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