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RESENHA

Introdução à
filosofia da
informática PARE UM POUCO, pense no tópico e defina:
o que é a informática? Pegos de surpresa,
talvez tenhamos alguma dificuldade em
dar uma boa resposta. Porém, é claro ou
imediato para qualquer pessoa em dia com
seu tempo o que é a informática. Sabemos
na prática, fazendo uso cotidiano, do
que se trata, para que serve e qual é a
sua importância. A coisa assim chamada
tem a ver com máquinas, computadores,
laboratórios de pesquisa, mecanismos
programáveis, co man dos eletrônicos,
transações bancárias e sistemas de
comunicação.
Quem forçar um pouco a cabeça
em busca de definição, responderá: trata-
se de uma tecnologia, a tecnologia da
informação no mundo contemporâneo.
Quem a pro cu rar numa enciclopédia,
encontrará primeiro, porém, sua definição
como ciência: tra ta-se da ciência do
processamento au to má ti co e lógico
da informação e da pesquisa de suas
diversas aplicações. Em conclusão,
po de rí a mos afirmar que, definindo em
relação ao gênero, informática seria uma
tecnociência.
Dispomos já de boas histórias da
informática (Williams, 1985; Breton, 1990;
Ceruzzi, 1998). Começamos a dispor de
sua eventual filosofia e, portanto, do saber
so bre seus problemas e desafios, com
o trabalho de Gerárd Chazal. Ninguém
com al gu ma sa be do ria negará que a
pesquisa em informática se desenvolveu
com base em projetos filosóficos. Origina-
se de Lei b nitz a pro po si ção de criar
uma linguagem ar ti fi ci al com base em
relações lógicas e a idéia de inventar um
artefato capaz de processá-la para uso
dos seres humanos. Poucos ainda são,
Francisco Rüdiger porém, os que se dão conta de que,
Prof. do PPGCOM/PUCRS
mesmo convertida em atividade rotineira, a
informática avança fazendo penetração em

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territórios tradicionalmente reservados aos Seguindo essa senda, contribui
cuidados da filosofia, das artes, da literatura em muito o livro para nos mostrar
e de algumas das humanidades. como a in for má ti ca e suas realizações
Chazal considera esse horizonte e, promovem, voluntariamente ou não, uma
à maneira francesa, propõe-se a elaborar desestabilização do pensamento humanista
uma abordagem sistemática e uma tradicional, conforme o qual o homem é
reflexão de corte analítico e interno sobre não só é centro da vida mas possui uma
a informática, sem descuidar dos aspectos especificidade que o distinguiria de todas as
antropológicos que o fenômeno em foco demais espécies vivas, coisas e entidades.
coloca em dis cus são ao pensamento O es for ço de for ma li za ção que aquela
contemporâneo. O autor não contesta o fato prossegue e concretiza a cada dia com a
de que a informática progride em resposta a ajuda das máquinas é um que, em última
necessidades imediatas, de ordem política, instância, visa acabar com o fator humano
militar e econômica, mas chama atenção, e sua condição, em meio ao pensamento
ainda que sem usar o termo, para o fato de tecnológico, de elemento perturbador do
que nela há um projeto que extrapola em bom funcionamento de qualquer que seja o
sentido esses fatores, o projeto de criar ou sistema.
desenvolver uma inteligência artificial. Destarte, explicitam-se e discute-se na
obra várias questões filosóficas subjacentes
“Historicamente, o computador se às atividades da informática, após breve
desenvolveu como forma de calcular recapitulação histórica de seu momento
por causa de necessidades militares, de emergência no pensamento ocidental.
mas muito rapidamente os informatas A relação entre significante e significado
des co bri ram a possibilidade de (símbolo e sentido), os problemas da lógica
manipular símbolos não numéricos e sua linguagem, das conexões entre mente
através da máquina” (p. 46). e corpo, sobre a natureza do pensamento e
o funcionamento da estrutura cerebral - eis
Estamos agora mais longe da época as principais.
em que se costumava falar do computador O argumento é conduzido no sentido
como cérebro eletrônico, mas isso não de problematizar o conceito de inteligência
significa que, no seio das práticas dessa com a qual a informática trabalha. A
dis ci pli na, não habite como desafio e pretensão é construir máquinas capazes
eventual destino a construção de uma de pensar de maneira análoga ao homem.
máquina efetivamente pensante ou, pelo Os recursos lógicos e formais com que
menos, capaz de agir como agem os seres se conta estão todavia impedidos, por
humanos. definição, de atribuírem-lhe a capacidade
Fundamenta-se na urgência em de dizer não. Por isso, ainda estamos
pensar as bases e sentido desse projeto a muito longe de atingir esse desiderato,
reflexão extremamente cuidadosa, clara e com o qual, segundo o autor, poderíamos,
objetiva, isto é, muito bem conduzida, que combinando os res pec ti vos desafios,
o autor oferece em seu livro. Contestando “ganhar um maior inteligibilidade tanto da
a postulação de que a informática é apenas máquina quanto do homem” (p. 114).
um mé to do ou técnica, o pesquisador Camus dizia que um homem começa
francês sustenta que “nas práticas técnicas a existir quando pronuncia esta palavra,
e te ó ri cas que definem a informática, “não”. Poderão as máquinas vir a fazê-lo
trata-se do homem e que por meio delas e, assim, adquirir uma faculdade moral
se en con tra posta em questão toda a que nos distingue? O homem é tal coisa
concepção da con di ção ou natureza porque, embora a linguagem simbólica e a
humana” (p. 23). lógica formal surjam com ele, está longe de

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ser nesse registro que ele se esgota. Tentar cabo e no fim do referido projeto não haja
reproduzir ou simular a conduta ou mesmo mais homens, por um ou outro motivo, não
a mente humana levando em conta esse é cogitada.
aspecto, se factível, seria desejável pelo Falta ao livro um pouco mais de
projeto informático ? reflexão crítica e densidade histórica para
Desviando-se dessa linha de dar conta dos aspectos políticos, no sentido
questões, o livro não obstante fornece de exer cí cio do poder, que movem as
importante trabalho de retaguarda para atividades da informática e que se articulam
seu enfrentamento. Em breves capítulos, filosoficamente no plano do que podemos
o leitor tem acesso ao pano de fundo dos cha mar de pensamento tecnológico,
debates, às posições teóricas existentes, conforme se pode ler, por exemplo, no
os problemas enfrentados e os eventuais livro de Katherine Nancy Hayles, How we
experimentos desenvolvidos a seu respeito. became post-humans (1999).
Ainda que em vários pontos o texto tenha Chazal tem claro que, procurando
nos parecido bastante árido e exigente, é res pon der tecnicamente às várias
didático o sentido geral da exposição de Le ne ces si da des de nossa vida social, a
Miroir Automate. informática mais e mais se vê diante da
Para Chazal, o problema hoje não “é tarefa que é “simular as funções mentais
mais saber se a máquina pode pensar ou do homem: o raciocínio, a percepção,
se o computador é tão inteligente quanto a aprendizagem, a linguagem e, na
nós”, conforme diziam os advogados do robótica, algumas de nossas possibilidades
homem contra a sociedade da máquina. corporais” (p. 230-231).
O problema é, antes, “definir os limites, Passando por alto as circunstâncias
se existem, da imagem sistêmica de nós históricas mais amplas que subjazem a
mes mos, da máquina e do universos essa decisão, o filósofo prefere chamar a
reticular que tece as múltiplas relações dos atenção sobre a forma como os trabalhos
homens com seus computadores” (p. 214). feitos nessa direção servem para aumentar
Escrito antes da expansão da Internet, o conhecimento a nosso respeito e sem
o trabalho revela no capítulo de onde é invocar aqui lo que faria diferença dos
retirada essa observação sua sensibilidade seres humanos em relação às maquinas
para a maneira como o processamento informacionais ou inteligentes. Sugerindo
e trans mis são de informações por que há um movimento de vai-e-vem entre
computador se articula com as relações o homem e a má qui na, ele ilumina a
sociais que os homens criam e para base comum entre os dois termos e evita
a maneira como ambas, re la ções e postular a assimilação de um ao outro,
informações, dependem de algo mais que a que resultaria em uma ou outra supressão.
máquina. As máquinas podem formar uma Indo além, afirma que “esse movimento se
cadeia cada vez maior e talvez aberta ao origina na faculdade humana de criar as
infinito mas, antes e depois dela, com o que máquinas” e de que, portanto, ele “parte do
nos deparamos são os homens (p. 222). homem e o exprime” (p. 234).
Focando o assunto dentro de limites Que estranho diálogo do homem
bastante estreitos, visando dar conta da con si go mesmo é esse mediado pela
novidade de seu objeto, o filósofo passa linguagem formal e pelo processamento
ou alto, senão ignora de todo, as questões ma qui nís ti co do pensamento como
mais explosivas que, endereçadas à informação é, porém, algo que transcende
tecnologia como projeto e matriz de cultura, o plano de estudo e os objetivos muito
colocam-se há muito tempo aos pensadores claramente explicitados dessa excelente e
da técnica e da cultura maquinística. A esclarecida introdução às questões técnicas
hipótese por eles já discutida de que, ao e internas de uma filosofia da informática .

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