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Vilém Flusser
O nosso mundo se tornou colorido. A maioria das superfícies que nos cercam é colorida.
Paredes cobertas de cartazes, edifícios, vitrines, latas de legumes, cuecas, guarda-
chuvas, revistas, fotografias, filmes, programas de TV, tudo está resplandecendo em
technicolor. Tal modificação do mundo, se comparado com o cinzento do passado, não
pode ser explicada apenas esteticamente. As superfícies que nos cercam resplandecem
em cor, sobretudo porque irradiam mensagens. A maioria das mensagens que nos
informam a respeito do mundo e da nossa situação nele é atualmente irradiada pelas
superfícies que nos cercam.
A escrita linear (por exemplo, o alfabeto latino ou as cifras árabes) surgiu como
revolução contra as imagens. Podemos observar tal revolução em determinados tijolos
mesopotâmicos. Mostram eles a imagem de uma cena, por exemplo, a de um rei
vitorioso. A imagem é composta de “pictogramas” que significam o rei e seus inimigos
ajoelhados. Ao lado da imagem, os mesmos pictogramas foram impressos no barro mais
uma vez, mas desta vez formam linhas. Tais linhas são textos que significam a imagem
ao lado. O pictograma no texto não mais significa “rei”, mas significa “rei na imagem”,
embora seja o mesmo pictograma. O texto dissolve a bidimensionalidade da imagem em
unidimensionalidade e, destarte, modifica o significado da mensagem. Passa a explicar
a imagem.
Imagens devem ser explicadas, contadas, porque, como toda mediação entre o homem
e o mundo, estão sujeitas a uma dialética interna. Representam o mundo para o
homem, mas, simultaneamente, interpõem-se entre homem e mundo (“vorstellen”).
Enquanto representam o mundo, são, como mapas, instrumentos para a orientação no
mundo. Enquanto se interpõem entre homem e mundo, são, como biombos, coberturas
do mundo. A escrita foi inventada quando a função tapadora, alienante das imagens
ameaçava sobrepor-se a sua função orientadora. Quando as imagens ameaçavam
transformar os homens em seus instrumentos, em vez de servirem de instrumentos aos
homens.
1 Escrito em 1979. Publicado em Flusser, V. Pós-História. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
profetas: des-mitizavam imagens.
Mas a escrita não eliminou as imagens. A história do Ocidente (dessa única “cultura
histórica” sensu stricto) pode ser vista como dialética entre imagem e texto. A
“imaginação”, como capacidade de decifrar imagens, e a “conceitualização”, como
capacidade de decifrar textos, superam-se mutuamente. A concepção torna-se
progressivamente mais imaginativa, e a imaginação, mais conceitual. A sociedade
ocidental pode ser dividida em dois níveis: o nível básico dos iletrados que vivem
magicamente (os servos) e o nível dos letrados que vivem historicamente (os
sacerdotes). No nível das imagens e no nível dos textos. Há feedback entre os níveis:
imagens ilustram textos e textos descrevem imagens.
Não que a história tenha deixado de “desenvolver-se”. Pelo contrário: rola mais
rapidamente que anteriormente, porque está sendo sugada para o interior do aparelho.
Os eventos se precipitam rumo ao aparelho com rapidez acelerada, porque estão sendo
sugados e parcialmente provocados pelo aparelho. A história toda – política, arte,
ciência, técnica – vai, destarte, sendo incentivada pelo aparelho, a fim de ser
transcodificada no seu oposto: em programa televisionado. O aparelho tornou-se a meta
da história, passa ele a ser represa do tempo linearmente progressivo. A plenitude dos
tempos. História transcodificada em programa torna-se eternamente repetível.
Por certo: é possível transcender-se tal forma de existência pela decifração das
tecnoimagens. Mas isto exige um passo para trás das tecnoimagens em direção à
programação, não um passo para a frente em direção à conceitualização característica
de textos. Exige um quarto passo. A crítica histórica, aquela que procura motivo atrás
das tecnoimagens, não emancipará o homem delas. De modo que a atual
contrarrevolução das tecnoimagens é superável apenas graças à faculdade nova, a ser
desenvolvida, e que pode ser chamada “tecnoimaginação”: capacidade de decifrar
tecnoimagens. Capacidade esta que tem a ver com o pensamento formal, tal como este
vai se estabelecendo na informática, na cibernética e na teoria dos jogos. Se não
conseguirmos dar esse passo rumo ao “nada” (“estrutura ausente”), jamais poderemos
emancipar-nos do pensamento e da ação programados por tecnoimagens.