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Filosofia – Documento de apoio 1

Unidade temática: O Problema do Livre-Arbítrio Ano letivo de: 2022/23


Tema: O que é o agir ? – 10º ano

Objetivo: Complementar a definição do que é o Agir a partir de um texto de F. Savater.

# Texto de apoio – O que é o agir ?


Autor: Fernando Savater
Obra: As Perguntas da Vida, D. Quixote, pp. 139-142.

“(…) Nesta altura a questão importante é determinar o que é a ação e o que é agir. Um movimento corporal não
é nem pouco mais ou menos o mesmo que uma ação: não é o mesmo «estar a andar» que «ir dar um passeio».
De maneira que as perguntas vitais a que a seguir temos que tentar responder são: que significa «agir»? O que é
uma ação humana e como é que se diferencia de outros movimentos que outros seres fazem, bem como de
outros gestos que os humanos também fazem? Não será uma ilusão ou um preconceito imaginar que somos
capazes de verdadeiras ações e não de simples reações diante do que nos rodeia, nos influencia e nos constitui?

Suponhamos que apanhei o comboio e paguei o meu respetivo bilhete. Durante o percurso vou distraído,
pensando nas minhas coisas, sem me dar conta que brinco com o pedacito do cartão, enrolo-o e desenrolo-o,
até que finalmente o atiro descuidadamente pela janela aberta. Nessa altura aparece-me o revisor e pede-me o
bilhete: desespero e provavelmente a multa. Posso apenas murmurar para me desculpar. «Atirei-o pela janela…
sem me aperceber.» O revisor, que é também um pouco filósofo, comenta: «Bom, se não se apercebeu do que
estava a fazer, não pode dizer que o tenha atirado pela janela. É como se ele tivesse caído». Mas eu não estou
disposto a aceitar essa restrição: «Desculpe, mas uma coisa é que me tenha caído o bilhete e outra tê-lo atirado,
mesmo que o tenha feito inadvertidamente». Parece que esta discussão agrada mais ao revisor do que multar-
me: «Veja, deitar fora o bilhete é uma ação, algo diferente de que nos caia, que é apenas uma dessas coisas que
acontecem. Quando alguém faz uma ação é porque quer fazê-la, não é verdade? Mas em contrapartida as coisas
acontecem sem querer. De maneira que como você não quis atirar o bilhete podemos dizer que na realidade ele
lhe caiu». Revolto-me contra esta interpretação mecanicista: «Não e não! Poderíamos dizer que o bilhete me tinha
caído se eu tivesse adormecido, por exemplo, ou até se uma rabanada de vento mo tivesse arrancado da mão.
Mas eu estava bem acordado, não fazia vento e o que acontece é que atirei o bilhete sem querer». «Basta!» –
disse o revisor riscando o seu caderno com o lápis. «E se não o quis fazer, como é que sabe que foi você,
exatamente você, quem o atirou? Porque “atirar” uma coisa é fazer uma coisa e ninguém pode fazer uma coisa
se não quiser fazê-la». «Pois sabe o que lhe digo? Atirei a porcaria do bilhete porque me deu na realíssima gana!»
Multa à parte.

A verdade é que existe uma diferença entre o que simplesmente me acontece (viro um copo com um safanão
na mesa ao ir buscar o sal), o que faço sem me dar conta e sem querer (o belo do bilhete atirado pela janela!), o
que faço sem me dar conta mas segundo uma rotina adquirida voluntariamente (como meter os pés nos chinelos
quando me levanto da cama meio-adormecido) e o que faço apercebendo-me e querendo (atirar o revisor
bruscamente pela janela para que vá buscar o bilhete). Parece que a palavra «ação» é uma palavra que apenas
convém à última destas possibilidades. É evidente que ainda existem outros gestos difíceis de classificar mas
que à partida parecem qualquer coisa menos «ações»: por exemplo, fechar os olhos e levantar o braço quando
alguém me atira qualquer coisa à cara ou procurar algo a que me agarrar quando estou quase a cair. Não,
decididamente uma «ação» é apenas o que eu não teria feito se não tivesse querido fazê-lo: chamo ação a um
ato voluntário. O «finado» revisor tinha portanto razão…”

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