Você está na página 1de 3

A REDE CONCEPTUAL DA AÇÃO HUMANA

Ficha de Trabalho 1

Texto 1
“Todos distinguimos intuitivamente entre as coisas que fazemos e aquelas que nos acontecem. Nas
coisas que fazemos há uma certa causalidade ou iniciativa que parte de nós. Naquelas que nos
acontecem limitamo-nos a ser receptores de efeitos que nós não iniciámos. Comprar uma cautela é
algo que eu faço; que me saia a lotaria é algo que me acontece. Suicidar-me é algo que faço; morrer
é algo que me acontece. Quando o ladrão me rouba a carteira, é algo que o ladrão realiza ou faz mas
é algo que me acontece. A causa ou origem da ação está no gatuno, não em mim. Ele rouba-me, eu
sou roubado. A distinção entre a voz ativa e a voz passiva dos verbos reflete esta dicotomia entre o
que fazemos e o que nos acontece. Entre as coisas que fazemos, fazemos umas voluntariamente,
porque queremos fazê-las, enquanto outras fazemo-las sem querer. Fazemos voluntária ou
intencionalmente as coisas que fazemos querendo fazê-las, consciente e propositadamente. Em tais
casos, dizemos que temos a intenção ou o propósito de fazer o que fazemos. Todavia, também há
coisas que fazemos sem querer fazê-las, como ressonar, espirrar, tiritar de frio ou transpirar de calor
– todas elas ações que não está na nossa mão controlar. Cantamos porque queremos, mas
ressonamos ainda que não queiramos. Outras vezes fazemos involuntariamente algo como
consequência não prevista de uma ação intencional. Matamos voluntariamente o mosquito que
entra no nosso quarto, mas matamos involuntariamente o inseto que se cruza no nosso caminho e
que pisamos sem tê-lo visto enquanto passeamos. Abrimos voluntariamente uma lata de espargos e
involuntariamente cortamos o dedo. Queremos servir o café nas chávenas mas, por descuido, o café
cai e manchamos a toalha sem o termos pretendido. Normalmente apenas somos considerados
responsáveis pelas coisas que fazemos voluntariamente, não pelas coisas que nos acontecem ou que
fazemos sem darmos conta ou sem querer (uma excepção é a negligência culpável, em que o que nos
é atirado à cara não é aquilo que fizemos sem darmos conta, mas a falta de atenção a um acto que a
requeria). A intencionalidade é um pré-requisito do mérito ou da culpa.”
Elisabeth Anscombe

Texto 2
“Suponhamos que apanhei o comboio e paguei o respetivo bilhete. Durante o percurso vou distraído,
sem me dar conta de que brinco com o pedacito de cartão, enrolo-o e desenrolo-o, até que
finalmente o atiro descuidadamente pela janela fora. Nessa altura aparece-me o revisor e pede-me o
bilhete: desespero e, provavelmente, a multa. Posso apenas murmurar para me desculpar: «atirei-o
pela janela, sem me aperceber». O revisor comenta: «se não se apercebeu do que estava a fazer, não
pode dizer que o tenha atirado pela janela, é como se ele tivesse caído». «Desculpe, mas uma coisa é
que me tenha caído o bilhete e outra é tê-lo atirado, mesmo que o tenha feito inadvertidamente».
Parece que esta discussão agrada mais ao revisor do que multar-me. «Veja, deitar fora o bilhete é
uma ação, algo diferente de que nos caia, que é uma dessas coisas que nos acontecem. Quando
alguém faz uma determinada ação é porque quer fazê-la, não é verdade? Mas, em contrapartida, as
coisas acontecem sem querer. Como você não quis atirar o bilhete, podemos dizer que ele não lhe
caiu». Revolto-me contra esta interpretação mecanicista: «Não e não! Poderíamos dizer que o
bilhete me tinha caído se eu tivesse adormecido, por exemplo, ou até se uma rabanada de vento mo
tivesse arrancado da mão. Mas eu estava bem acordado, não fazia vento, e o que aconteceu foi que
atirei o bilhete sem querer». «Basta!», disse o revisor, riscando o seu caderno com o lápis. «e se não
quis fazer, como é que você sabe que foi você, exactamente você, quem o atirou? Porque atirar uma
coisa é fazer uma coisa e ninguém pode fazer uma coisa se não quiser fazê-la». «Pois sabe o que lhe
digo? Atirei a porcaria do bilhete porque me deu na realíssima gana». Multa à parte.”
Fernando Savater

1. Com base nos textos, distingue agir de acontecer.


2. Analisa o texto 2 e diz quem tem razão. Justifica a tua opção.
3. Como podemos saber se um ato é ou não voluntário?
4. Em que condições podemos atribuir a responsabilidade de uma ação a alguém?

1
O que é realmente uma ação?
Intuitivamente, todos sabemos que uma ação é o tipo de coisa que fazemos quando, por exemplo, nos levantamos da
cadeira e vamos até à cozinha ou quando acenamos a alguém que vemos na rua. Surpreendentemente, é difícil caracterizar
ou definir com rigor o que é uma ação. Um sonâmbulo, por exemplo, está realmente a agir ou não?
Passear, estudar ou acenar são tipos de ações. Quando alguém passeia, estuda ou acena numa certa ocasião, está a realizar
uma ação particular. Aquilo que pretendemos saber é o que é uma ação particular. O melhor é partirmos da seguinte ideia:
as ações são acontecimentos. Um acontecimento é algo que ocorre uma única vez numa determinada região do espaço
durante um certo período de tempo. Todas as ações são acontecimentos, mas é óbvio que nem todos os acontecimentos
são ações. Um terramoto, um eclipse ou uma trovoada são acontecimentos, mas não são ações.
A questão que assim se deve colocar é a de saber o que têm de especial aqueles acontecimentos que são ações. As ações
são acontecimentos que envolvem agentes. Um agente é o sujeito que pratica a ação. É uma pessoa, tem estados mentais
conscientes, como crença e desejos, e comporta-se de determinada maneira em função dos seus estados mentais. Assim,
um terramoto não é uma ação porque a sua ocorrência não envolve qualquer agente. De facto, todas as ações são
acontecimentos que envolvem agentes, mas nem todos os acontecimentos que envolvem agentes são ações. Imagine-se
que o Pedro cai acidentalmente. A sua queda é um acontecimento que envolve um agente – o Pedro -, mas não é uma
ação. A queda foi apenas algo que lhe aconteceu e não algo que ele fez. Isto sugere o seguinte passo na tentativa de
compreender melhor o que é uma ação – as ações são acontecimentos que consistem em algo que um agente faz. Será
que esta afirmação nos permite compreender definitivamente o que é uma ação? Também não, já que nem todos os
acontecimentos que consistem em algo que um agente faz são propriamente ações. Por exemplo, se o Pedro tiver um
ataque de tosse, estará a fazer algo – tossir. No entanto, parece que o ataque de tosse do Pedro não é propriamente uma
ação do Pedro, pois ele não tem a intenção de tossir. E a presença de uma intenção parece crucial para que estejamos
perante uma ação. Então, devemos completar a definição anterior do seguinte modo: as ações são acontecimentos que
consistem em algo que um agente faz intencionalmente.

Esta é a perspetiva comum acerca do que é uma ação, mas conduz a uma dificuldade que vamos agora examinar. Os
acontecimentos, incluindo as ações, podem ser descritos de variadas formas. Um mesmo acontecimento admite várias
descrições verdadeiras. Consideremos as seguintes afirmações: 1) a Joana levantou o braço; 2) a Joana votou a favor da
proposta do João; a Joana partiu o nariz da Cátia. Podemos admitir que cada uma destas afirmações é uma descrição
verdadeira do mesmo acontecimento. A Joana votou a favor da proposta do João levantando o braço. E, ao levantar o
braço, partiu acidentalmente o nariz da Cátia, que estava ao seu lado durante a votação. Nestas circunstâncias, podemos
interrogar-nos se o acontecimento descrito nas afirmações 1, 2 e 3 é uma ação. Por um lado, levantar o braço e votar
favoravelmente a proposta do João são coisas que a Joana fez intencionalmente. Assim, esse acontecimento é uma ação.
Mas, por outro lado, partir o nariz da Cátia foi algo que a Joana fez sem intenção, o que sugere que esse acontecimento não
é uma ação. A filósofa inglesa Elizabeth Anscombe (1919 – 2001) encontrou uma saída para esta dificuldade. Para ela, um
acontecimento em si nunca é intencional. Pode ser intencional sob algumas descrições, mas não ser intencional sob outras
descrições. Assim, o acontecimento do qual a Joana é agente é intencional sob as descrições 1 e 2, mas não é intencional
sob a descrição 3. Sendo assim, como poderemos decidir se esse acontecimento é ou não uma ação?
A solução reside na seguinte ideia: um acontecimento é uma ação se é intencional sob pelo menos uma descrição
verdadeira. Ora, o acontecimento do qual a Joana é agente é intencional sob pelo menos uma descrição verdadeira.
Portanto, é uma ação.
A intenção é um “pensar acerca de”, é o que nos propomos realizar (propósito da ação), traduzindo aquilo que o agente
quer atingir (fim), o que quer fazer (comportamentos) e por que razão o quer fazer (motivo).
A intenção implica uma antecipação da ação e acarreta consigo, de modo implícito, a escolha e planeamento da ação
(projecto), e a ponderação dos meios possíveis para a concretizar, bem como a avaliação das consequências (deliberação).
Mas a intenção não se concretiza sem a decisão, pois o agente só pode realizar efectivamente o que pensou quando
escolhe entre várias hipóteses de atuação.
Já sabemos o que são ações. Mas, como se explicam as ações? Quais os seus motivos? Por que razão o Manuel está a
correr? Poderíamos afirmar que o Manuel está a correr porque quer perder peso e sabe que correr é uma boa forma de
perder peso. Então, este exemplo sugere que, para explicarmos uma ação, precisamos de apontar pelo menos uma crença
e um desejo do agente. Porém, para que a explicação seja correta, temos de indicar as crenças e os desejos apropriados,
que são aqueles que efetivamente conduzirão à ação. Imaginemos que a Sofia está a correr numa certa ocasião. Tal como o
Manuel, a Sofia quer perder peso e acredita que correr é uma boa forma de perder peso. No entanto, a Sofia não está a
correr para perder peso. Na verdade, ela corre porque está a ser perseguida por um assaltante. Neste caso, se estivéssemos
a explicar a sua ação em função do seu desejo de perder peso e da sua crença de que correr faz perder peso, estaríamos a
oferecer uma má explicação. Porquê? Porque esse desejo e essa crença não são aquilo que a leva ou motiva a correr neste
momento – não são as verdadeiras causas do seu comportamento. Para explicar o seu comportamento, deveríamos
apontar antes o seu desejo de não ser vítima de um assalto e a sua crença de que correr é necessário para não ser
assaltada. Chegamos, assim, à seguinte ideia acerca da explicação das ações: explica-se uma ação indicando as crenças e os
desejos do agente que causaram ou motivaram essa acção.

1. Como se explica uma ação?

2. Elabora, através de um exemplo, uma rede conceptual da ação .

2
3

Você também pode gostar