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Em 14 de novembro de 2002, Alyne da Silva Pimentel Teixeira estava no sexto mês de gestação
e buscou assistência na rede pública em Belford Roxo, no estado do Rio de Janeiro. Alyne era
negra, tinha 28 anos de idade, era casada e mãe de uma filha de cinco anos. Com náusea e
fortes dores abdominais, buscou assistência médica, sem fazer exames laboratoriais ou
ultrassonografia, um ginecologista receitou a ela analgésicos e a mandou de volta para casa.
No dia 13, Alyne voltou à clínica. As dores tinham aumentado.
Com sua internação, outro médico percebeu a ausência de batimentos cardíacos do feto. A
jovem foi informada de que teria de dar à luz o bebê natimorto. Esperou sete horas para
enfrentar um parto induzido e cheio de complicações. Ainda passando mal e não teve direito a
acompanhante, o que por si só já é uma infração aos direitos da gestante, contou mais 14
horas até ser submetida a uma cirurgia de curetagem, raspagem uterina que retira os restos da
placenta. Em todo o processo a família foi proibida de visitá-la.
No dia seguinte, 15 de novembro de 2002, quando familiares conseguiram vê-la, seu quadro
de saúde havia agravado. Alyne teria de ser removida da clínica para um hospital que, em
teoria, teria mais recursos para socorrê-la. Depois de oito horas de espera por uma
ambulância, foi transferida em estado crítico e sem prontuário médico para o Hospital Geral
de Nova Iguaçu, onde, com hemorragia e sinais de coma, ficou largada em um corredor do
centro de saúde, por falta de leito.
Alyne Pimentel morreu às 19h do dia 16 de novembro de 2002. Sua filha ficou sob os cuidados
da avó materna, mãe de Alyne, Maria de Lourdes Pimentel, que, além do luto e das
dificuldades financeiras, passaria por um périplo jurídico em busca de reparação. Embora uma
autópsia tenha determinado como causa da morte uma hemorragia digestiva, a própria Casa
de Saúde de Belford Roxo depois informou à mãe de Alyne que o feto ficou dias morto na
barriga da paciente, e que essa seria a causa do agravamento de seu quadro.
A morte de uma mulher jovem é sempre uma tragédia. Neste caso, a tragédia poderia
ter sido evitada se ela tivesse recebido o atendimento adequado. Por trás da morte de
Alyne, está a péssima qualidade dos sistemas de saúde disponíveis fora dos grandes
centros. E a negligência exposta na conduta inadequada dos profissionais envolvidos.
Em fevereiro de 2003, foi proposta uma ação civil de reparação de danos pela família
de Alyne. A dita ação ainda está pendente de decisão. A morte de Alyne constituiu
grave violação ao direito à vida, à saúde e à efetiva proteção dos direitos das mulheres.
O Estado brasileiro não cumpriu com sua obrigação fundamental em relação à saúde,
de reduzir a mortalidade materna, e não assegurou acesso a tratamento médico de
qualidade e cuidado obstétrico emergencial no tempo devido; houve violação ao
direito à não discriminação baseada no gênero, na raça ou condição socioeconômica. A
demora na reparação doméstica também demonstrou o fracasso do Estado em
fornecer recursos jurídicos e reparações, violando o direito de proteção efetiva (artigos
2 e 12, c, da Convenção Cedaw, e artigo 6 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos).
Devido à demora de oito anos sem julgamento desde que o caso foi apresentado à
Justiça brasileira, o Comitê excepcionou a regra da exaustão da esfera doméstica.
A família reagiu, buscou reparação e não obteve respostas. Entrou com uma ação em
Genebra, no Comitê pela Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW) em 30
de novembro de 2007, com o apoio de uma organização brasileira – Advocaci –
Advocacia Cidadã para os Direitos Humanos, e uma organização dos EUA – Center for
Reproductive Rights (Centro de Direitos Reprodutivos).
O Comitê Cedaw considerou que o caso era de morte materna, por não terem sido
assegurados os serviços apropriados à sua condição de gestante, sendo o Brasil
responsável pela morte de Alyne, considerando que ela sofreu múltipla discriminação
por ser afrodescendente e ter poucos recursos econômicos, e que o Brasil falhou em
oferecer uma proteção judicial efetiva e remédios legais adequados, foi determinado
medidas gerais para garantir o direito à saúde reprodutiva das mulheres, tais como:
- Assegurar acesso legal a remédios efetivos em casos nos quais haja violação dos
direitos à saúde reprodutiva das mulheres, capacitação para o Poder Judiciário e para
os agentes responsáveis pelo cumprimento a lei;
Assim, o Estado brasileiro, teve seis meses, para apresentar resposta ao comitê das
iniciativas tomadas a partir das recomendações apontadas. Por fim, a decisão criou
relevante jurisprudência internacional sobre mortalidade materna e direito à saúde
reprodutiva e obrigou, desde já, o Estado brasileiro a rever sua política de saúde
destinada às mulheres.
Alyne Pimentel foi vítima de feminicídio reprodutivo, tendo em vista que o Estado
brasileiro não adotou as medidas adequadas para monitorar instituições privadas e
garantir seu direito à maternidade segura, que por produzir impactos desproporcionais
em função da imbricação de opressões (raça – gênero – classe) exprime o racismo
obstétrico.
No dia 10 de agosto de 2011, o Brasil foi condenado pelo Comitê pela Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Comitê CEDAW), das Nações
Unidas, no caso Alyne da Silva Pimentel. O Brasil tem obrigação de acatar e
implementar a decisão com base no princípio da boa-fé, que rege as relações
internacionais.
O caso Alyne tem uma importância particular. É o primeiro caso de morte materna
decidido por um Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas e representa um
marco na abordagem dos direitos humanos para a mortalidade materna. A decisão
tem um valor simbólico para os governos: não é mais aceitável tratar da morte
materna evitável como um destino das mulheres, uma fatalidade para a qual o estado
não tem nenhuma responsabilidade.
Apesar disso, até hoje o governo brasileiro não tomou nenhuma medida concreta para
o cumprimento das recomendações e a implementação da decisão. O impacto dessa
decisão vai além do Brasil e gera efeito para os outros países, pois estabelece
parâmetros de direitos humanos para o fortalecimento dos sistemas de saúde, para a
melhoria de políticas e práticas em saúde, que devem ser adotados por todos os
países.
04.04.2014