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EXORCISMO

nopsis Quattuor Evangeliorum Graece et Latine, Fr. Jerónimo d e A z a m b u j a (Oleastro) O. P.: Os cânones bíblicos e o
prefácio ao Pentateuco. Biblos. 5 5 ( 1 9 7 9 ) 1 8 3 - 1 9 5 . IDEM - Subsídios
Coimbra, 1955; Atlas histórico do Novo Testamento, para a história da exegese bíblica em Portugal. Revista da Universidade
Coimbra, 1967; Gramática grega do Novo Testa- de Coimbra. 2 9 ( 1 9 8 1 ) 3 3 9 - 4 1 9 . IDEM - Fr. Heitor Pinto no contexto da
mento, Coimbra, 1961; Manuel Augusto Rodrigues, cultura da Renascença. I n S I M P Ó S I O « A SOCIEDADE E A CULTURA DE C O I M -
Actas. C o i m b r a. 1 9 8 2 . IDEM - A obra exegéti-
BRA NO R E N A S C I M E N T O » -
Gramática elementar de hebraico, Coimbra, 1967; ca de D. Jerónimo Osório no contexto do h u m a n i s m o, da R e f o r ma e da
José Nunes Carreira, O plano e a arquitectura do Contra-Refonna. Theologica. 2 : 1 8 ( 1 9 8 3 ) . V I L E L A . Albano - U m exege-
templo de Salomão à luz dos paralelos orientais, ta português do Concílio de Trento: Oleastro. Brotéria. 6 9 ( 1 9 7 4 ) 1 6 - 2 8 .
Porto, 1969; Francolino José Gonçalves (com ou-
tros), Toponymie palestinienne, Louvain-la-Neuve, EXORCISMO. A crença na possessão demoníaca, ou
1988; José Augusto Ramos defendeu uma tese (Uni- seja, na possibilidade de que certos espíritos diabóli-
versidade de Lisboa, 1988) sobre O sufixo verbal cos podem atormentar os homens, animais ou até
não-causativo em hebraico antigo no contexto semí- coisas e lugares, é muito remota. O exorcismo (vo-
tico do Noroeste; com participação original portu- cábulo estritamente ligado a práticas cristãs) é uma
guesa coordenada por José Nunes Carreira saiu o cerimónia durante a qual um ministro da Igreja
Atlas Bíblico de J. B. Pritchard (ed.), Lisboa, 1996. (exorcista) emprega alguns meios considerados efi-
Na exegese: António Augusto Tavares, Da mariologia cazes para expulsar o Diabo de um determinado lo-
à cristologia, Lisboa, 1972; Joaquim Carreira das Ne- cal que ele real ou supostamente infesta. Jesus Cris-
ves, A teologia da tradução grega dos Setenta no Li- to, que os textos bíblicos apresentam com alguma
vro de Isaías (cap. 24 de Isaías), Coimbra, 1973; Ma- frequência a conjurar demónios, a expelir diabos de
nuel Isidro Alves, II Cristiano in Cristo: la presenza corpos de paralíticos, de mudos ou de avaros (Ma-
dei Cristiano davanti a Dio secondo S. Paolo, Braga, teus iv, 23-24 e viu, 32; Lucas xi, 14; Marcos, i, 32-
1980; Ressurreição e Fé Pascal, Lisboa, 1991; Fran- -34 e 39), poder que, ainda durante a sua vida, trans-
colino José Gonçalves, Lexpédition de Sennacherib mitiu aos apóstolos (Lucas x, 17-20), é a origem do
en Palestine dans la littérature hébraíque ancienne, exorcismo tal como o pratica a Igreja. O estudo dos
Louvain-la-Neuve, 1986; Anacleto de Oliveira, Die exorcismos desde a Alta Idade Média aos nossos
Diakonie der Gerechtigkeit und ver Versöhnung in der dias - o conhecimento preciso dos rituais neles ob-
Apologie des 2. Korinterbriefes: Analyse und Ausle- servados, os tratados que regulamentavam a sua prá-
gung von 2 Kor 2, 14-4, 6; 5, 11-6,10, Munique, tica, uma noção mais precisa dos agentes que os exe-
1990; João Lourenço, Sofrimento e glória de Israel: cutavam e das clientelas que os buscavam - é um
Is 53 e sua interpretação no judaísmo antigo, Lisboa, campo quase inexplorado que carece de estudos pro-
1996; Armindo dos Santos Vaz, A visão das origens fundos e abrangentes, não só em Portugal como na
em Génesis 2, 4b-3, 24, Lisboa, 1996. De âmbito mais generalidade do espaço europeu. Deste modo, a in-
abrangente: Joaquim Carreira das Neves, Jesus de Na- cursão que aqui se esboçará constitui um esforço da
zaré, quem és tu?, Braga, 1980; José Nunes Carreira, síntese actualmente possível, baseada quase exclusi-
História antes de Heródoto (Pentateuco, Jos-2 Rs), vamente na interpretação de fontes primárias e cen-
Lisboa, 1993; Mito, mundo e monoteísmo (Gn, Ex, trada na Época Moderna. Nesta época, a prática de
Sam-Rs), Mem Martins, 1993; Filosofia antes dos exorcismos e o recurso dos fiéis a este «remédio»
Gregos (Pr, Jb), Mem Martins, 1994. propiciado pela Igreja foi abundante, ao que por cer-
JOSÉ NUNES CARREIR A to não será estranha a pastoral da Igreja, tanto católi-
ca como protestante, onde o Diabo tinha um lugar
BIBLIOGRAFIA: C A R D O S O , Arnaldo Pinto - Da Amiga à Nova Aliança: Re- destacado. Durante o período da Reforma protestan-
lações entre o Antigo e o Novo Testamento em Sebastião Barradas
(1543-1615). Lisboa: I N I C , 1 9 8 7 . C A R R E I R A , José Nunes Filologia e
te (v. PROTESTANTISMO) houve algum debate sobre o
critica no Comentário de Francisco Foreiro (15227-1581): Subsídios sentido do exorcismo entre os dois grandes blocos
para a história da exegese quinhentista. Coimbra, 1 9 7 4 . IDEM - Dois religiosos que se opuseram. Os reformados acha-
mestres de Antigo Testamento em Coimbra: Frei Heitor Pinto e Paulo
de Palácios e Salazar. Didaskalia. 6 ( 1 9 7 6 ) 3 8 1 - 3 9 4 . IDEM - Tradição e
vam-no um acto mágico e condenavam-no radical-
inovação no comentário de Frei Luís de Sotomaior ao Cântico dos Cân- mente, persistindo na linha de que a religião deveria
ticos. Didaskalia. 9 ( 1 9 7 9 ) 1 5 5 - 2 0 8 . IDEM - Camões e o Antigo Testa- ser um fenómeno puramente interior. Os católicos,
mento. Ponta Delgada, 1 9 8 2 . IDEM - U m a peça de liturgia tridentina:
sermão de Frei Francisco Foreiro aos padres conciliares. Didaskalia. 25 por seu turno, usaram-no para exacerbar o poder da
( 1 9 9 5 ) 1 5 5 - 1 6 7 . F A R I A , Francisco Leite de - As muitas edições de obras Igreja de Roma sobre o Maligno. Era doutrina co-
de D. Jerónimo Osório. Lisboa: Academia Portuguesa da História, mum o sustentar-se que os exorcismos tinham gran-
1981. IDEM - As muitas edições de obras de Frei Heitor Pinto. In
IV CENTENÁRIO de Frei Heitor Pinto (15267-1584). Lisboa: Academia de eficácia contra doenças induzidas pelo demónio.
Portuguesa da História, 1991. LEITE, Serafim - Portugal: Sciences sa- Assim, muitos casos de possessos que foram exorci-
crées. In DTC. 1 2 / 2 ( 1 9 3 5 ) 2 6 2 5 - 2 6 2 8 . M A R T I N S , Mário - A Bíblia na
literatura medieval portuguesa. Lisboa: ICALP, 1979. Biblioteca Bre-
zados por sacerdotes católicos eram usados como
ve. MARQUES, A. A. Martins - A obra exegética de Fr. Jerónimo de apologia do poder da Igreja de Roma, e recorde-se
A z a m b u j a . Theologica. 2: 1 ( 1 9 6 6 ) 123-150. 293-327. RAINHARDT, que com a crença na proliferação de bruxas e feiti-
Klaus - Die biblischen Autoren Spaniens bis zum Konzil von Trient. Sa-
lamanca, 1976. IDEM - Biblische K o m m e n t a r e spanischer Autoren des
ceiras (v. B R U X A R I A ) que marcou esses tempos, mui-
16. und 17. Jahrhunderts: Autorenn. Revista Espahola de Teologia. 41 tos se julgavam possuídos pelo Diabo. Esta crença
( 1 9 8 1 ) 9 1 - 1 4 6 . IDEM - Autoren B. Revista Espahola de Teologia. 4 3 no exorcismo como uma solução eficaz e ortodoxa
(1983) 27-55. RAMOS, José Augusto - Tradução interconfessional da Bí-
blia em português. Cadmo. 3 ( 1 9 9 3 ) 8 7 - 1 0 5 . R E C K E R T , Stephen - A pa-
para aliviar certos males deve ser devidamente subli-
ráfrase vicentina do Miserere (edição, notas e comentários). Revista da nhada, pois constitui um traço muito importante da
Faculdade de Letras. 5 : 1 3 - 1 4 ( 1 9 9 0 ) 4 4 1 - 4 5 3 . R O D R I G U E S , Manuel Au- consciência do poder da Igreja, que era frequente
gusto - A cátedra de Sagrada Escritura na Universidade de Coimbra:
Primeiro século (1537-1640). Coimbra, 1 9 7 4 . IDEM - D. Pedro de Fi- nos países católicos da Europa do Sul em geral, e em
gueiró e a sua obra exegética. Didaskalia. 5 ( 1 9 7 5 ) 1 3 3 - 1 5 3 . IDEM Al- Portugal de modo particular. Um caso concreto ocor-
guns aspectos da obra de Fr. Jerónimo de A z a m b u j a (Oleastro). Revista rido em 1753 comprova-o bem. Nesse ano, uma mu-
Portuguesa de História. 1 7 ( 1 9 7 7 ) 2 5 - 3 6 . IDEM - A obra exegética de

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EXORCISMO

lher da diocese de Coimbra contou na Inquisição que tadas isoladamente quer em compilações (uma edi-
«falavam nela almas do outro mundo» e que por isso ção do Malleus Maleftcarum de 1615 continha as
tinha recorrido aos exorcismos da Igreja que, em sua obras de Menghi e de Stampa e circulou ainda um
opinião, não tinham sido eficazes. Bastante indigna- Thesaurus exorcismorum, editado em Colónia cm
do com esta conclusão um inquisitor perguntou-lhe: 1608, que incluía obras de Menghi, Polidoro, Vis-
«se sabe que sam tam poderosos os exorcismos e re- conti e Stampa). No século xvni ainda se descobrem
médios da Igreja pella auctoridade que tem os minis- qualificadores do Santo Ofício a invocar Thyraeo,
tros delia e poder que Deos lhe deu que havendo fe Visconti ou Polidoro para justificar os seus parece-
nos exorcismos ficam as criaturas livres do demó- res. A pressão provocada pelo elevado número de
nio?» ( P A I V A - Bruxaria, p. 111). O papel de relevo energúmenos e o abundante contingente de exorcis-
que o exorcismo tinha na vida do tempo pode me- tas criavam um bom mercado para que surgissem
dir-se através do largo número de manuais de exor- textos portugueses que ensinassem a administrar os
cismos que desde a segunda metade do século xvi e exorcismos. Por outro lado, o cânon ritual estabele-
até ao século xvui foram sendo publicados. São cido no Ritual Romano de Paulo V, aparecido em
igualmente demonstrativos desta importância do 1614, impondo alguma ordem nos ritos de bênção e
exorcismo as referências colhidas em processos da de exorcismo da Igreja, determinava regras nesta
Inquisição* ou em devassas das visitas pastorais matéria que punham em questão certas práticas vei-
(v. VISITAÇÕES) ao largo número de exorcistas que ac- culadas nos tratados de finais de Quinhentos. Estes
tuavam por todo o pais, havendo inclusivamente no- dois motivos concorreram para o aparecimento de
tícias pontuais de que alguns tinham clientelas co- novos tratados, a partir da segunda metade do sé-
piosas. A noção de que todo o mal podia ter uma culo xvii, que acabaram por ser traduzidos para por-
origem diabólica e de que as bruxas eram aliadas do tuguês e tiveram grande circulação. Estão neste caso
Maligno encarregadas de o espalhar pelos povos fa- o manual do padre italiano Cândido Brognolo, edita-
zia com que quase todas as doenças «estranhas», ou do em 1651 e traduzido em 1727 (com nova edição
para as quais a medicina do tempo (tanto popular co- logo em 1729) pelo arrábido Frei José de Jesus Ma-
mo erudita) não tinha solução, fossem apodadas de ria, com o título de Brognolo recompilado e substan-
malefícios diabólicos que só saravam pelo poder do ciado com aditamentos de gravíssimos authores; o
exorcismo, pelo que seriam aos milhares os que se do espanhol Benito Remígio Noydens, traduzido em
presumiam atacados pelo Demónio. De facto, alguns 1694 por Manuel Rodrigues Martins, e novamente
exorcistas propunham-se aliviar todo o género de editado em 1718 com o título de Practica de exorcis-
males, como mulheres a quem lhes secava o peito tas e ministros da Igreja, presumivelmente o de
depois de parirem, pessoas que estavam doidas, que maior circulação no século xvni, a julgar pelas refe-
tinham dores no estômago, hemorróidas, surdez, do- rências que lhe são feitas em casos dc exorcistas
res nos olhos, etc. Tendencialmente os possessos condenados pela Inquisição portuguesa; e finalmente
eram maioritariamente mulheres. Em relação aos tra- o do jesuíta italiano Giovanni Pinamonte, traduzido
tados de exorcismos que compendiavam as regras e acrescentado com um prólogo pessoal e com os
seguidas pelos exorcistas, não se conhece nenhum exorcismos do Ritual Romano de Paulo V, surgido
da autoria de portugueses. Os que mais abundante- em 1736, pelo padre João Baptista de Reboredo, que
mente circularam entre nós durante os séculos xvi a saiu com o título O exorcista bem instruído. Ainda
xvni, período aúreo da produção deste género de tex- deste período, mas sem terem sido traduzidos e sem
tos, tinham origem italiana ou espanhola. A única terem conhecido a difusão dos tratados de Brognolo,
excepção a esta regra era a obra do jesuíta alemão Remígio e Pinamonte, contam-se os textos do padre
Petro Thyraeo intitulada Daemoniaci... (1594). italiano Floriano Canale, Del modo di conoscer et
A presença deste texto entre os Portugueses demons- sanare i maleficiati (conhece-se edição de Bréscia,
tra a sua actualização nesta matéria, pois a obra de de 1674) e de um Frei Luís de la Concepcion, da Or-
Thyraeo, conjuntamente com os tratados do francis- dem dos Trinos Descalços, Pratica de conjurar en
cano italiano Girolamo Menghi (Flagellum daemo- que se contienen exorcismos y conjuros contra los
num e Fustis daemonum), editados durante os anos maios espíritos (Alcalá, 1673). A prática do exorcis-
70 do século xvi, eram dos mais citados por todos os mo seguia grosso modo os preceitos discriminados
que abordavam a questão da possessão e do exorcis- nos manuais acima citados e constituía na generali-
mo. Ainda pelos finais do século xvi saíram outros dade dos casos uma cerimónia espectacular. Dado
textos. Em 1585 foi editada a Pratica exorcistarum, que o volume de pessoas que se queixavam de esta-
do franciscano italiano Valério Polidoro; em 1597 rem possuídas pelo demónio era avassalador, um dos
saiu em Como a primeira edição da Fuga Satanae, primeiros avisos que se fazia aos exorcistas era o de
do italiano Pietro Antonio Stampa; em 1600 foi pu- antes de mais se certificarem de que estavam perante
blicado o trabalho do italiano Zacarias Visconti inti- um verdadeiro energúmeno e não ante um embuste,
tulado Complementum artis exorcisticae. Note-se ou ante alguém com padecimentos melancólicos que
que durante o século xvni algumas destas obras, no- teria tendência para se julgar possesso. O parecer de
meadamente as de Menghi, foram condenadas pela médicos chegava a ser recomendado. Esta profusão
Igreja e integralmente proibidas ou parcialmente de energúmenos, no entendimento de um qualifica-
censuradas, por se considerar conterem ideias pouco dor jesuíta do Santo Ofício, em 1713, era algo que
ortodoxas. No entanto, entre a data do seu apareci- ele sempre estranhara e que atribuía a duas ordens de
mento e boa parte do século xvii, serviram de guia e razões, deixando entender como no século xvni exis-
de cânon a muitos exorcistas portugueses, quer edi- tiria uma corrente no interior da Igreja muito caute-

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EXORCISMO

ou quando tinha comportamentos extraordinários de


horror, repulsa e agitação perante objectos sagrados
como a cruz, um rosário, água benta, ou quando ou-
via certos trechos bíblicos ou palavras santas, como
Jesus. Em interpretações mais apuradas chegava a
falar-se de sinais «evidentes» (os acima enunciados)
e de sinais «prováveis» de possessão (ranger os den-
tes, atravessar os olhos, espumar como um cão rai-
voso, sentir peso exagerado quando um sacerdote
lhe colocava as mãos na cabeça) ( R E B O R E D O -
O exorcista, p. 22-23). Antes da realização do exor-
cismo tanto o exorcista como o energúmeno se de-
viam preparar para a cerimónia. O exorcista obteria
obrigatoriamente uma licença passada pelo ordinário
da diocese onde actuava (qualquer indivíduo com o
grau de exorcista, que era o terceiro nível das ordens
sacras menores - depois de ostiário e leitor e antes
de acólito - tinha poderes para exorcizar), devia con-
fessar-se, ou pelo menos fazer um bom exame de
contrição e com humildade encomendar-se a Deus,
conjecturando-se ainda que teria maior eficácia se
executasse o exorcismo após a celebração de uma
missa. Ao energúmeno exigia-se que se confessasse
e que jejuasse um ou mais dias antes da realização
do exorcismo, devendo os seus familiares jejuar jun-
tamente com ele, ofertar esmolas e mandar rezar
missas. Admitia-se que o acto devia ser realizado de
preferência em lugar sagrado, sendo o espaço públi-
co de uma igreja aquele onde mais frequentemente
estas cerimónias se executavam. Feitos estes prepa-
rativos o exorcista devia com toda a solenidade ves-
tir uma sobrepeliz e colocar uma estola, fazer o sinal
da Cruz, dizer um credo e munir-se de uma cruz e
água benta. O energúmeno devia ser colocado ante o
exorcista com uma vela acesa na mão, atado se esti-
vesse «perigoso», e uma ponta da estola do exorcista
devia ser posta sobre a sua cabeça. Observadas estas
condutas e posições, aspergindo de início o energú-
meno com água benta, começaria então o exorcista a
dizer algumas fórmulas de exorcismo, que a partir de
1614 o Ritual Romano compila, lendo ainda passa-
gens dos evangelhos de São Mateus, São Marcos,
São Lucas e São João e alguns salmos. Note-se que
estas cerimónias podiam durar alguns dias, depen-
Exorcismo de uma possessa, séc. xvu. Desenho a traço e dendo isso da avaliação do exorcista, não devendo
aguada de sépia de Amaro do Vale.
nunca este tentar entabular conversação com o ener-
gúmeno. O grande número de supostos endemoni-
losa em relação ao modo como o exorcismo devia nhados que por vezes se concentravam nas igrejas, o
ser efectuado: a primeira, que entre gente pobre e público que estas cerimónias atraíam, os esgares,
desvalida houvesse tanto possesso, como se a pobre- berros, cuspidelas e vómitos de alfinetes, penas, an-
za e desgraça que regularmente levariam mais almas zóis, pequeno bichos, cordéis, ossos de animais, es-
a Deus, levassem mais corpos ao Demónio; a segun- pinhas ou dentes que alguns energúmenos por vezes
da, que entre as religiões de mais perfeição e letras faziam, juntamente com os gestos e palavras pronun-
houvesse tão poucos que tomassem por ofício o serem ciadas com autoridade pelo exorcista, criavam uma
exorcistas, e entre as de menos letras e virtudes hou- composição decerto bastante teatral e muito marcan-
vesse tantos exorcistas. Donde concluía que a «pobre- te para todos os espectadores. Não é pois de estra-
za multiplicava os energúmenos e a ignorância multi- nhar que muitas vezes alguns exorcistas cometessem
plicava os exorcistas» (Inquisição de Lisboa, processo gestos e práticas que eram considerados abusivos
597, fl. 22). Genericamente admitia-se que um indiví- por parte das instituições de controlo como a Inqui-
duo estava possesso quando se observava alguma ou sição ou as visitas dos bispos. Durante o século xvu
todas as seguintes condições: quando era capaz de fa- há notícia de cerca de duas dezenas de eclesiásticos
lar ou entender línguas que nunca aprendera (nomea- condenados pela Inquisição pela prática de erros du-
damente latim), quando sabia segredos ou descobria rante os exorcismos, de que os mais frequentes eram
coisas ocultas que não se podiam saber por via natu- o de tentarem abusar sexualmente das mulheres que
ral, quando tinha uma força física superior ao normal.

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EXORCISMO

exorcizavam através de indecorosos «tocamentos» e reinado de D. Miguel e instalados em Coimbra, em


mesmo de união sexual, o exigirem esmolas ou ofer- 1832, no Colégio das Artes, foram novamente expul-
tas pelos exorcismos efectuados, ou de mandarem sos (decreto de 24 de Maio de 1834) logo que se
benzer os alimentos ou medicinas naturais que se completou a vitória liberal em todo o país. Mas, se
ministravam aos energúmenos. Para o século xvni exceptuarmos a Companhia de Jesus, nenhuma or-
conhece-se até ao momento um único caso, o que dem fora suprimida nem nenhum religioso forçado a
parece apontar para o facto de que a vigilância inqui- abandonar o hábito até 1834: as medidas decretadas
sitorial se tornou mais atenta sobre esta matéria ape- em 1832 por Mouzinho da Silveira nos Açores desti-
nas a partir de Setecentos. Uma nota conclusiva para naram-se a suprimir estabelecimentos em excesso
esclarecer que entre os teólogos a doutrina a respeito nestas ilhas e a redistribuir racionalmente os religio-
do exorcismo criava alguma controvérsia de que al- sos pelas casas remanescentes; e as decididas no
guns dos aspectos mais polémicos seriam os seguin- Porto em 1833 por Silva Carvalho reportaram-se so-
tes: saber se tinha alguma eficácia benzer coisas ma- bretudo aos conventos e mosteiros abandonados pe-
teriais para efeito de exorcizar (como os alimentos los seus moradores. Até ao momento, as intenções
que o exorcizado devia comer), uma vez que coisas dos liberais iam no sentido da reforma das ordens -
materiais nada podiam contra o Demónio, que era uma necessidade que vinha de longe e que poucos
criatura espiritual; saber se, como defendia Brogno- ousavam contestar mas a extinção era também
lo, todo o exorcismo era eficaz ou não; saber se ha- previsível: tinha sido já anteriormente proposta e era
via exorcistas com mais eficácia do que outros. considerada por alguns como necessária. Foi o que
J O S É P E D R O PAIVA aconteceu com o decreto de 30 de Maio de 1834,
que surpreendeu pelo que tinha de radical: de uma
BIBLIOGRAFIA: C O N C E I Ç Ã O , L U Í S - Practica de conjurar, en que se contie- assentada, todas as casas (conventos, mosteiros, co-
nen exorcismos, y conjuros contra los maios espíritos [...]. Alcalá:
Francisco Garcia Fernandes, 1673. J E S U S M A R I A , José de, fr. Brognolo légios, hospícios, etc.) de quaisquer ordens regulares
recopilado e substanciado com aditamentos de gravíssimos authores masculinas (v. C O N G R E G A Ç Õ ES RELIGIOSAS M A S C U L I N A S )
[...]. Coimbra: Of. Ferreirianna, 1727. MARTINS, Manuel Rodrigues eram extintas, os seus bens nacionalizados e os reli-
Practica de exorcistas e ministros da Igreja. Coimbra: João Antunes,
1718. MENUHI, G i r o l a mo Flagellum daemonum: Exorcismi terribles, giosos pagos pelo Estado desde que não tivessem
potentíssimos et ejjicaces. Venetiis: D o m i n i c um Malduran, 1 6 0 8 . P A I V A , colaborado com o governo deposto. As razões justi-
José Pedro Bruxaria e superstição num pais sem «caça às bruxas»: ficativas de uma tal medida, na perspectiva dos res-
Portugal 1600-1774. Dissertação de doutoramento apresentada à F L U C
em 1996. REBOREDO, J o ão Baptista de O exorcista bem instruído com ponsáveis pela mesma, são expostas no relatório que
um método perfeitíssimo para sabia e prudentemente curar todo o gé- precede o decreto, na forma sobretudo de acusações
nero de malefícios. Lisboa: Of. de António Pedroso Galrão, 1736. RO-
MEO, Giovanni - hiquisitori, esorcisti e streghe nell'Italia delia contra-
e em estilo por vezes panfletário. Apesar de as or-
riforma. Florença: Sansoni. 1990. THYRAEO, Petro - Loca infesta, hoc dens religiosas «terem homens de sólida virtude, de
est de infestis oh molestantes daemoniorum et defunctorum hominum distinto saber e de estremado patriotismo», os male-
spiritus. Lugduni: Joanne m Pillehotte, 1599. WALKER, Daniel Pickering
Unclean spirits: Possession and exorcism in France and England in
fícios, segundo este relatório, eram tantos que «tudo
the late sixteenth and early seventeenth centuries. Londres: Scolar reclama [va] aquela extinção»: no plano cultural,
Press, 1981. WEBER, Henri - L ' e x o r c i s m e à la fin do xvi siècle, instru- porque propagavam o fanatismo e a superstição e se
ment d e la Contre R e f o r m e et spetacle baroque. Nouvelle Revue du Sei-
zième Siècle. 1 ( 1 9 8 3 ) 7 9 - 1 0 1 .
aproveitavam da ingenuidade das populações; no
plano moral, porque muitos religiosos, «com a sua
desregrada conduta», difundiam, pelo seu exemplo,
EXPOSTOS, Roda dos. v. ASSISTÊNCIA.
o vício e a discórdia «no seio das famílias»; no plano
religioso, porque alienavam a autoridade dos bispos
EXTINÇÃO DAS ORDENS RELIGIOSAS. A extinção e absorviam a dos párocos e subvertiam «as puras e
das ordens religiosas deve ser entendida no quadro sãs doutrinas do Evangelho»; no plano político, por-
geral da desamortização*, que implicou a alienação que pregavam contra a liberdade, utilizando os púl-
pública dos bens das corporações de mão-morta (re- pitos como «tribunais de calúnias facciosas e sangui-
ligiosas e laicas), libertando a propriedade e sujei- nolentas», praticavam actos de «ingerência nos
tando-a à mobilidade do mercado, como condição negócios civis» e desafiavam a autoridade dos sobe-
histórica para a superação da velha ordem senhorial ranos; no plano económico e social, porque prejudi-
e para a lenta implantação da nova sociedade capita- cavam, enquanto pessoas celibatárias e corpos de
lista e burguesa. Com considerável amplitude geo- mão-morta, o aumento da população, a posse e o co-
gráfica na Europa e situada cronologicamente em mércio da terra, a multiplicação do número de pro-
anos diferentes, conforme os países, surge sempre prietários e de contribuintes (v. C O N G R E G A N I S M O ) . Es-
em todos no mesmo contexto dos movimentos revo- tas acusações, produzidas a quente numa situação
lucionários que moldaram a configuração do mundo muito conflituosa, são exageradas; mas, no contexto
ocidental contemporâneo, liberal, primeiro, e demo- em que ocorreu, a extinção das ordens tornara-se
crático e laico, depois. Assume, no caso português, inevitável, embora o modo brutal, apressado e im-
dois momentos privilegiados: em 1834, com a vitó- pensado com que foi executada tivesse consequên-
ria definitiva do liberalismo*, e em 1910, com a im- cias polémicas e condenáveis. Com efeito, há que si-
plantação da República. 1. Na época liberal: Os an- tuar o fenómeno nas suas motivações profundas e
tecedentes da extinção das ordens têm lugar já no contextuais, não as confundindo apenas com os seus
século xvni, com o marquês de Pombal, que pelo al- resultados negativos, porque estes são também in-
vará de 3 de Setembro de 1759 expulsara os Jesuí- desligáveis das medidas políticas subsequentes e,
tas* e incorporara os respectivos bens na Fazenda sem dúvida, dos eventuais erros e negligências dos
Nacional - expulsão confirmada por alvará de 1 de governos. A extinção das ordens religiosas, tal como
Abril de 1815. Autorizados a regressar ao país no

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