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Avaliar ou Examinar a Escola? Performatividade, Regulação e Intensificação do


Trabalho Docente

Article in Impulso · December 2014


DOI: 10.15600/2236-9767/impulso.v24n61p109-127

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1 author:

Ivan Amaro
Rio de Janeiro State University
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Avaliar ou examinar a escola?
Performatividade, regulação
e intensificação do trabalho docente*

To evaluate or examine the school? Performativity,


regulation, and intensification of the teacher’s work
Resumo Este artigo discute os efeitos que as políticas de avalia-
ção têm provocado no trabalho docente, tomando o cotidiano
escolar como pressuposto teórico-metodológico. A pesquisa foi
desenvolvida em duas escolas localizadas na Baixada Fluminense,
região metropolitana do Rio de Janeiro, durante dois anos, com
presença semanal nestas unidades. O objetivo foi interpretar e
discutir os sentidos e os efeitos que os resultados das avaliações
externas na educação básica têm provocado no desenvolvimen-
to do trabalho do professor. Os dados foram obtidos em obser- Ivan Amaro
vações e entrevistas semiestruturadas com duas diretoras e sete Universidade do Estado do Rio
professoras. Conclui-se que examinar não contribui para o desen- de Janeiro (UERJ)
volvimento e avanço da qualidade de escolas, das aprendizagens ivanamaro.uerj@gmail.com
e do trabalho docente. Somente fundados na perspectiva da ava-
liação formativa é que se pode pensar em processos compartilha-
dos e participativos de melhoria da qualidade da educação.
Palavras-chave Avaliação; trabalho docente; Avaliação for-
mativa; Educação.

Abstract This article discusses the effects that assessment poli-


cies have caused in the teachers’ work, taking the school routine
as a theoretical and methodological assumption. The research
was conducted in two schools from the metropolitan area of
Rio de Janeiro, for two years, with our weekly presence in these
units. The objective was to interpret and discuss the meanings
and effects that the assessments of basic education have caused
to the development of the teacher’s work. Data were obtained
from observations and semi-structured interviews with two di-
rectors and seven teachers. We conclude that the assessment
does not contribute to the development and enhancement of
the quality of schools and the learning and teaching processes.
We can think of shared and participatory approaches to improve
the quality of education only if they are founded in a formative
assessment perspective.
Keywords Exams; Teaching; Formative assessment; Education.

* Esta pesquisa faz parte do Projeto “Observatório das Periferias Urbanas”,


financiado pelo Observatório da Educação Inep/Capes.
Políticas de avaliação em trânsito: sa, desenvolvida em duas escolas localizadas
situando nossos pontos de partida na Baixada Fluminense, região metropolita-
na do Rio de Janeiro, ocorreu durante dois
Os atuais resultados escolares, o anos, com nossa presença semanal nestas
que se considera êxito ou fracasso, unidades, e teve como objetivo interpretar
se produzem no âmbito das rela- e discutir os sentidos e os efeitos que os re-
ções de dominação colonial que sultados das avaliações externas na educação
articulam à perspectiva hegemôni- básica têm provocado no desenvolvimento
ca de conhecimento. do trabalho do professor. Inicialmente, foram
(ESTEBAN, 2010, p. 47). definidas quatro escolas: duas de Nova Igua-
çu e duas de Duque de Caxias, por serem as

N
o Brasil, a avaliação da educação, no maiores redes da Baixada. Nova Iguaçu conta
bojo das reformas políticas empre- com aproximadamente cem escolas e Duque
endidas com maior vigor na segunda de Caxias, com 177 escolas municipais. Entre-
metade da década de 1990, tornou-se central tanto, os acordos com as respectivas secre-
nas políticas educacionais em todos os seus ní- tarias não foram simples e imediatos. Houve
veis. No século XXI, ela segue consolidando-se muitas idas e vindas. Conversas e mais conver-
como “mola mestra”, utilizando-se de exames sas. Entretanto, somente com a de Duque de
aplicados em nível nacional, enfocando o de- Caxias foi possível estreitarmos as relações e
sempenho cognitivo dos alunos e, consequen- fecharmos uma parceria para a realização da
temente, avaliando o trabalho docente. Esta pesquisa. Assim, nas conversas com a Secre-
centralidade na avaliação visa à ampliação do taria Municipal de Educação (SME), foi-nos
controle sobre as redes, sobre as escolas, so- indicado que trabalhássemos com quatro
bre o trabalho docente e, em última instância, escolas. A própria SME definiu-as e, como cri-
sobre os alunos, para ajustá-los aos princípios tério, decidiu-se por duas escolas com baixo
reestruturadores de mercado. Neste contexto, Índice de Desenvolvimento da Educação Bá-
a regulação aparece como eixo demarcador da sica (Ideb) e duas com índice mais alto.2 Para
organização dos sistemas educacionais, tendo este artigo, apresentamos dados e análises de
em vista que a avaliação, com o foco em testes apenas duas delas: a Escola A, em 2009, tinha
padronizados e resultados, assume funções Ideb 4,5 e a Escola B, 2,8.
várias, traduzidas em formas e modalidades Nossa questão mobilizadora foi a seguin-
diversas (AFONSO, 2000). te: como os resultados dos testes estandardi-
Este artigo discute os efeitos que zados e do Ideb3 têm interferido no trabalho
tais políticas têm provocado no trabalho docente desenvolvido na sala de aula? A partir
docente,1 tomando o cotidiano escolar como deste questionamento, outros vieram à tona:
pressuposto teórico-metodológico. A pesqui- Que características têm assumido o trabalho
docente a partir da inserção dos testes estan-
1
Apresenta a discussão de dados obtidos em
dardizados e de seus resultados no âmbito da
observações e entrevistas semiestruturadas (duas
diretoras e sete professoras) realizadas em duas escola? Que mudanças os testes aplicados para
escolas públicas da região metropolitana do Rio aferir o nível de desempenho dos alunos têm
de Janeiro, como parte da Pesquisa “Observatório provocado na organização do trabalho peda-
das Periferias Urbanas” (Observatório da Educação
– Inep/Capes). Nossa presença nas escolas iniciou- 2
O Ideb considerado foi o de 2009, tendo em vista que
se em 2011 e foram concluídas em 2013. Contamos iniciamos nossa pesquisa em agosto de 2011.
com duas bolsistas de iniciação científica (FEBF/ 3
Criado em 2007 para aferir a qualidade da educação
Uerj), três bolsistas de mestrado (Capes/Obeduc), brasileira, focaliza duas variáveis: fluxo escolar e notas
duas bolsistas professoras da rede pública (Capes/ de desempenho dos alunos em Língua Portuguesa e
Obeduc). Tendo em vista a finalização do projeto, com Matemática, aferidas em teste nacional denominado
a sistematização, análise dos dados e elaboração do “Prova Brasil”, aplicado bianualmente aos alunos de
relatório final de pesquisa, o ano de 2014 foi destinado 5º e 9º anos do ensino fundamental.
a estas tarefas.

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gógico e na regulação e controle do trabalho desafios. Não cabe a mera pretensão cientí-
docente? Que outras dimensões regulatórias/ fica racionalista de explicar fenômenos, mas
emancipatórias podem ser potencializadas de confrontarmo-nos com estranhamentos,
para construir uma proposta alternativa de questionamentos, desconfianças, que nos
avaliação voltada para o desenvolvimento da permitem fazer outras perguntas que ultra-
escola, dos professores e dos alunos? passem as limitações lógico-causais dos fenô-
Nossas reflexões potencializam a com- menos educativos. Dessa forma, intentamos
preensão de que os testes e os resultados, seguir os
por si sós, são insuficientes para dar conta
da definição do que seja uma escola de qua- percursos metodológicos que re-
lidade. Consideramos que o cotidiano escolar tirem da invisibilidade os sentidos
é um emaranhado complexo, multifacetado, dos fragmentos tornados despre-
plurirreferencial e, portanto, prenhe de pos- zíveis e irrelevantes, fragmentos
sibilidades, contradições, dissensos e consen- mediadores de articulações com-
sos. Passam, portanto, longe das tentativas plexas, de modos de viver e pensar,
de objetivação da qualidade da escola ou de da dinâmica dos processos sociais.
“medir aptidões ou aprendizagens humanas” (ESTEBAN, 2003, p. 128).
(FERNANDES, 2009, p. 45). Estudá-lo é cons-
truir possibilidades e arcabouços teórico-me- E é no cotidiano que as políticas de ava-
todológicos que nos permitam compreendê- liação, concretizadas em aplicação de testes
-lo como espaço-tempo de grandes conexões, periódicos (bianualmente) e na publicização
articulações, entendimentos e desentendi- (publicidade) de resultados, ganham centra-
mentos entre os sujeitos que ali se encontram lidade e geram efeitos diversos e perversos
diariamente. É percebê-lo como lugar em que no trabalho pedagógico docente, evidencian-
se negocia e se subverte. É neste espaço-tem- do acomodações, resistências, discordâncias,
po que sujeitos híbridos lidam com diferentes ambiguidades.
enfoques, diferentes interesses, diferentes Inicialmente, detalhamos nossa opção
intenções, e no qual tudo acontece simulta- metodológica e apresentamos o campo da
neamente. É no cotidiano que enfrentamos pesquisa – a escola como espaço-tempo de
o cruzamento de (im)previsibilidades e (in) movimentos plurais – situando os percursos
visibilidades. Para Garcia (2003), o cotidiano norteadores da pesquisa. A seguir, identifica-
gera medos, intrigas, mas também provoca mos pontos de contato entre a empiria e as
fascínios e deslumbramentos. concepções de avaliação, compreendendo-as
como parte das decisões políticas e os senti-
[…] há quem fique intrigado, há dos que assumem no contexto da prática e
quem morra de medo e há também no contexto de resultados/efeitos. Compre-
os afortunados, eu diria, modesta- ender os distanciamentos e as aproximações
mente, mais afortunadas do que entre os atos de avaliar e examinar é o ponto
afortunados, que ficam absoluta- de partida para, em seguida, perceber refe-
mente fascinadas com o misterioso rências relativas ao conceito de performati-
cotidiano, que vive a nos revelar em vidade como tecnologia política a serviço da
suas dobras que, ao se desdobrar, regulação e controle do trabalho docente.
deixa aparecer o que estava escon- Em seguida, apresentam-se os processos de
dido e que à primeira vista não apa- responsabilização docente, a partir dos re-
recia. (GARCIA, 2003, p. 193). sultados obtidos por seus alunos nos testes
em larga escala, coadunando-se com a pers-
Realizar pesquisas ancoradas no coti- pectiva do que Afonso (2010) define como ac-
diano da escola constitui-se em complexos countability, ou seja, concepção que envolve

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os mecanismos de prestação de contas e de ações rituais, representações ou leis
responsabilização. Para efeito deste artigo, que lhes eram impostas outra coisa
focalizamos as falas de professoras, gestoras que não aquela que o conquistador
e orientadoras pedagógicas. julgava obter por elas. Os indígenas
Em seguida, alguns achados permitem- as subvertiam, não rejeitando-as di-
-nos indagar que conformações assumem o retamente ou modificando-as, mas
trabalho do professor diante da interferência pela sua maneira de usá-las para
dos testes em seu cotidiano. Problematiza- fins e em função de referências es-
remos os efeitos regulatórios que estes exa- tranhas ao sistema do qual não po-
mes produzem no trabalho pedagógico, bem diam fugir. (CERTEAU, 2008, p. 39).
como evidenciaremos os aspectos que emer-
gem da realidade como indícios de controle, Para Alves (2003), somos construídos
performatividade e intensificação do traba- no cotidiano a partir de um conjunto de ações
lho docente. Procura-se contribuir para uma e acontecimentos culturais, tomados como
maior problematização dos efeitos que as po- miúdos, insignificantes, mas que formam
líticas de avaliação em larga escala em vigor nosso existir. Pais (2007, p. 25) complemen-
produzem, considerando-se suas limitações ta, afirmando que o emaranhado comple-
como definidoras dos processos vividos pelas xo do cotidiano, no confronto das diversas
escolas, e apontar movimentos que podem in- ações, assume-se “como um terreno de ne-
dicar caminhos outros, alternativos. Trata-se, gociações, de resistências, de inovações e,
portanto, de pensar em “outras formulações consequentemente, de dilemas”. Assumir o
mais consequentes” (FREITAS; SORDI, 2013, cotidiano como pressuposto teórico-metodo-
p. 88), em que as avaliações estejam a serviço lógico é assumir riscos, desafios, dilemas, mas
do desenvolvimento da escola, do professor e também assumir suas potências, mesmo que
do aluno. Procura-se, assim, indicar potenciali- imprevisíveis. Afinal, trata-se de um modo de
dades de constituir experiências de avaliação fazer pesquisa que se distancia da lógica da
formativa e de construção da qualidade social procura da verdade, pois “o discurso veros-
da educação no espaço-tempo das escolas. símil pode contribuir para que sejam oculta-
dos aspectos significativos da pesquisa que
Caminhando com nossos caminhan- expõem a contradição, a falha, a insuficiência,
tes: fazendo, desfazendo e refazen- enfim, o erro” (ESTEBAN, 2003, p. 136). Nesta
do trilhas no cotidiano perspectiva, ao tratarmos das avaliações em
O cotidiano não é feito de encaixes perfei- larga escala, buscamos problematizar a con-
tos. Constitui-se de movimentos não fixos, não cepção de qualidade alardeada pelos discur-
exatos, não precisos. As práticas cotidianas não sos oficiais, colocando em questão as visões
são simples práticas repetitivas. São práticas lineares e deterministas de que seus resulta-
criadas, recriadas e novamente reinventadas. dos representam um dado regime de verdade
Os estudos do cotidiano não têm a pretensão (FOUCAULT, 1997).
de construir conhecimentos totalizantes e/ou No cenário cotidiano, perguntas são fei-
totalizadores. De acordo com Certeau: tas, desfeitas e refeitas em um jogo de pos-
sibilidades que movem o pensar sobre aquilo
Há bastante tempo que se tem que fazemos todos os dias. Conforme Cora-
estudado que equívoco rachava, zza (2002), a pesquisa na área da educação,
por dentro, o ‘sucesso’ dos coloni- em uma visão pós-crítica, tornou-se uma po-
zadores espanhóis entre as etnias derosa forma de modificar, mesmo que mi-
indígenas: submetidos e mesmo nimamente, o caráter repetitivo das práticas
consentindo na dominação, muitas pedagógicas e o avanço dessas práticas secu-
vezes esses indígenas faziam das lares. A pesquisa que procura e ensina é aque-

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la que move, instiga, desacomoda e procura insatisfação com verdades prontas, preten-
outros modos de pensar e fazer educação. Se- samente únicas e inquestionáveis, não nos
guindo caminho semelhante, Esteban (2003, furtamos a construir um campo crítico sobre
p. 135) aponta-nos que “os estudos do cotidia- a cultura em que os números, traduzidos em
no não oferecem garantias e as metodologias taxas, índices, gráficos, tabelas e resultados,
de pesquisa rascunhadas recusam a definição cada vez mais tomados como sinônimos de
de etapas, procedimentos, instrumentos, te- verdades incontestes, ganham centralidade
orias que mostrem o caminho seguro para o na definição das políticas educacionais.
encontro da verdade”. Não desprezamos os números, mas é
Movimentamo-nos em busca de indagar essencial superar uma lógica quantitativista
outras possibilidades superadoras de uma vi- que encerra verdades incólumes. Problema-
são aparentemente homogênea das contradi- tizá-los é relevante para construir percursos
ções relativas à qualidade da educação brasi- epistemológicos, focalizando nossos olhares
leira que se pressupõe atingir com a fabricação para os pormenores, detalhes, minúcias de
de mais e mais testes e exames. Pesquisamos um contexto complexo e ambivalente de sig-
para problematizar o estabelecido, o configu- nificados diversos (GINZBURG, 1989). Olhar
rado como dado, como certo. Pesquisamos os números destituídos de uma análise do
porque nos inquietamos com o falso consen- contexto dinâmico, histórico, social, enreda-
so que vem se instalando nos campos social e do pelas subjetividades e situações diversas é,
político, senão científico, que desconsidera e no mínimo, embaçar os olhares e negligenciar
desqualifica o pensar diferente. os sinais, os indícios e vestígios das relações
Assim, pesquisamos para: colocar em que acontecem no dia a dia da escola.
dúvida supostas verdades prontas sobre as As taxas de aprovação, desde 2005, nos
aprendizagens de alunos da educação básica anos de realização da Prova Brasil, apresen-
e sobre as práticas de professores/as e ges- tam-se estagnados, sem avanços significativos.
tores/as; desnaturalizar os discursos sobre Apesar de os objetivos do Sistema de Avaliação
avaliação e qualidade da escola com contor- da Educação Básica (Saeb) indicarem como fi-
nos retóricos; problematizar o que se coloca nalidade subsidiar os sistemas para redefinição
como impermeável à crítica. Pesquisamos de suas políticas, há indicações de que as infor-
para expressar o sentimento de insatisfação, mações produzidas ainda não se traduzem em
dedicando-nos a derrubar o que parecia es- melhoria substantiva dos sistemas.
tar aparentemente edificado. “A estranhar o Em nosso campo de pesquisa, algumas
que sempre foi tão familiar. A desnaturalizar informações sobre os sujeitos participantes
o tido por natural. A duvidar do que oferecia são importantes. A Escola A conta com 23 pro-
só certezas. A desassossegar o sossegado. A fessoras, das quais 17 possuem graduação em
assustar o tranquilo. A suspeitar das verdades Pedagogia. Dentre estas, dez possuem pós-
colocadas acima de qualquer suspeita” (CO- -graduação lato sensu nas áreas de Educação.
RAZZA, 2002, p. 57). Do total, apenas seis professoras possuem o
Situações e incômodos com a obses- nível médio (formação de professores). No
são pelos resultados do sistema educacional, ano de 2011 havia 517 alunos matriculados (1º
desprezando os processos pedagógicos coti- ao 5º anos do ensino fundamental), distribuí-
dianos, foram nossos motivadores maiores. dos em dois turnos. Em 2012 havia 523 alunos
Abraçando a pesquisa que procura, busca-se matriculados, indicando certa regularidade
perceber que efeitos a Prova Brasil e seus no quantitativo atendido pela escola. A Es-
resultados provocam no cotidiano da escola, cola B conta com 12 professoras, seis delas
identificando como são tratados, apropria- graduadas em Pedagogia com pós-graduação
dos, (re)significados e utilizados (ou não) na lato sensu na área de Educação. As outras pos-
complexidade do real. Seguindo as trilhas da suem apenas o nível médio. Nesta escola há

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uma grande rotatividade de professoras por mas técnicos, os problemas metodológicos
estar localizada em uma região bastante vio- tornam-se problemas de rendimento e, por
lenta da cidade, o que impede que haja uma fim, a conversão do debate educativo como
permanência maior das docentes. problema conceitual em um problema mera-
Aproximar-se do cotidiano da escola mente técnico. Estas inversões contribuem
permitiu-nos acessar sua complexidade e para que surjam traições acerca das funções
suas práticas para além dos números, perce- que os exames poderiam ter, produzindo mo-
bendo elementos que nos deram indícios de vimentos de subversões e fraudes.
seus fazeres. Nossas conversas cotidianas
com professoras, orientadoras pedagógicas, Estas traições giram desde as di-
funcionários/as, gestoras, alunos/as, além de versas fraudes que se realizam ao
registros observados no cotidiano, tendo em exame (copiar do companheiro,
vista que de 2011 a 2013 estivemos na escola levar anotações para o exame), até
formas muito mais sutis mas não
pelo menos uma vez por semana, foram es-
menos eficazes, tais como dar a aula
senciais para construir nossas percepções em função do exame preparado, ela-
sobre a realidade da escola. A seguir, entre- borar cursinhos para identificar as
meadas à reflexão teórica, são apresentadas formas de resolver com acertos um
algumas evidências que emergem do cotidia- exame objetivo, fotocopiar diversos
no da escola. exames de gerações anteriores e re-
construir exames em função do que
Examinar não é avaliar: considera- quem já os resolveu se lembra. […]
ções sobre seus distanciamentos a ação na aula se converte em uma
Examinar e avaliar, historicamente, ação perversa em seu conjunto: os
são conceitos que se confundem e que con- professores só preparam os alunos
para resolver eficientemente os exa-
fundem. Examinar dentro de um paradig-
mes e os alunos só se interessam por
ma parametrizante tornou-se uma prática aquilo que representa pontos para
racional-instrumental para definir desempe- passar no exame. (DÍAZ BARRIGA,
nhos baseados em uma pretensa exatidão. 2008, p. 61-62)
Destina-se, assim, a construir um regime de
verdade para indicar o que é e o que não é A avaliação, tomada por este prisma, é
uma “escola de qualidade”, constituindo uma reduzida a uma visão simplista e simplificado-
“dada verdade”, um pensamento hegemô- ra. Ela reveste-se do caráter objetivo, técnico
nico incontestável, que ignora a diferença, a e instrumental materializado nos testes obje-
possibilidade de pensamento outro. O exame tivos, com vistas a quantificar e classificar os
transformou-se em instrumento central para produtos da aprendizagem (DIAS SOBRINHO,
melhorar os sistemas de ensino e, portanto, 2002, p. 64). Uma de nossas colaboradoras in-
conferir qualidade à educação. Este caminho forma-nos como os testes padronizados inva-
cria uma “falsa esperança”. diram a escola e como a avaliação centraliza-
Há um falso princípio didático embrenha- -se nos produtos:
do nas relações estabelecidas entre sistema
de exames e sistema de ensino: “um melhor Estas avaliações não têm ajudado
sistema de exame, melhor sistema de ensino. em nada na melhoria da qualidade.
Nada mais falso que esta proposição. O exame Os alunos estão cansados de tantos
é um efeito das concepções sobre aprendiza- testes. É provinha Brasil, Prova Bra-
gem, não o motor que transforma o ensino” sil, Prova Caxias.4 Agora esta tal de
(DÍAZ BARRIGA, 2008, p. 43). Para o autor, a
4 Teste, nos mesmos moldes da prova Brasil, elaborado
pedagogia do exame promove três inversões: e aplicado pela Secretaria Municipal de Educação aos
os problemas sociais assumidos como proble- alunos do ensino fundamental.

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ANA.5 Não precisamos de mais pro- prova. Nosso trabalho limita-se às
vas; o que precisamos é de condi- disciplinas de Português e Matemá-
ções melhores, de tempo para pla- tica. (Professora 1A).8
nejar, para formação… Isso é que
faz melhorar a escola! Parece que Esta pressão induz a um trabalho volta-
só o que importa é o resultado, do do exclusivamente para que os alunos alcan-
índice final. (Diretora da Escola A). cem um bom resultado no exame: o produto.
Além disso, um efeito preocupante gerado
Para Freitas (2012, p. 387), há também pelos resultados envolve a autoimagem que
uma naturalização de que a maximização do a escola constrói. Para a diretora da Escola B,
uso de testes é que promove uma melhoria esta lógica é injusta:
nas aprendizagens dos alunos, indicando que
os Estados Unidos, país que mais implemen- Fizemos duas reuniões para discu-
ta políticas de responsabilização e testagem tir os resultados do Ideb de 2009.
estandardizadas, estão na média do Program- Fizemos uma autoavaliação e pro-
me for International for Student Assesment curamos entender o que houve,
(PISA) há mais de dez anos e não saem disso. quais foram as nossas falhas. Mas,
Os resultados do PISA, em 2012, comprovam o sentimento de frustração foi
esta tendência.6 Em 2005, já se apontava tal muito maior e não conseguimos
falácia: “Não é tão certo que indicadores me- entender quais foram as nossas
lhores ou índices de avaliação melhores cor- fragilidades e ninguém nos ajudou
respondem a um trabalho melhor no campo a entender. Isto é injusto com a
da educação.”7 (DÍAZ BARRIGA, 2005, p. 2). gente. (Diretora Escola B).
Os exames, exaustivamente defendidos
como necessários para aferir a qualidade do Nos períodos de divulgação dos resul-
sistema educativo brasileiro, produzem efei- tados da Prova Brasil9 e do Ideb, os aspectos
tos diversos e perversos sobre os sistemas, essencialmente classificatórios, somativos,
sobre as escolas e, especialmente, sobre o normativos e reguladores assumidos pelas
trabalho dos professores. Uma professora avaliações em larga escala são apropriados,
desabafa sobre a centralidade dada aos tes- principalmente pela grande mídia, como for-
tes externos e como isso tem implicado dire- ma de estabelecer uma lógica mercantilista
tamente em seu trabalho: e competitiva no cerne da educação. Os re-
sultados de 2011 foram divulgados no início
Eu não faço mais nada além de pre- do segundo semestre de 2012, ou seja, com a
parar para a Prova Brasil. Na esco- metade do ano letivo em curso, dificultando
la, fazemos simulados todo mês. qualquer possibilidade de apropriação e aná-
Nosso trabalho está centrado nesta lise para contribuir com definições pedagógi-
cas no planejamento das escolas. Os resulta-
5
Avaliação nacional da alfabetização aplicada em 2013.
Portaria n. 482, de 7 de junho de 2013, modifica o
dos de 2013 só foram liberados no início do
Saeb passando a ser constituído por três processos mês de setembro de 2014.
de avaliação: Avaliação Nacional da Educação Básica
(Aneb); Avaliação Nacional do Rendimento Escolar
(Anresc) e Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA). 8 Designaremos os professores da escola A com
6
O país atingiu 481 pontos em Matemática, ocupando números seguidos da letra A. As professoras da Escola
a 36ª colocação, e 498 pontos em Leitura, ocupando a B terão a numeração seguida pela letra B.
24ª posição. 9 Exame criado em 2005, possui abrangência universal
7
Tradução livre do autor. “No es tan cierto, que a e é aplicado a cada dois anos, avaliando habilidades
mejores indicadores o mejores índices de evaluación de leitura e de resolução de problemas. É aplicado a
se corresponda un mejor trabajo en el campo de la todos os alunos de 4ª série (ou 5º ano) e 8as séries (ou
educación” 9º ano) do ensino fundamental de escolas públicas.

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A reportagem do Jornal Extra10 intitulada indicam o caráter competitivo que tem toma-
Ideb 2011: segunda cidade mais rica do estado do conta dos sistemas educacionais. Estas “in-
fica em posição ruim no índice da educação justiças” emergem na visão das professoras.
(IDEB, 2011, 2008) dá o tom do foco que a mí-
dia dá à classificação e reforça um discurso Nossa escola vem melhorando no
meritocrático e competitivo. O veículo, como Ideb, mas isso não é suficiente.
grande parte da mídia, reduz a complexidade Como nosso Ideb é baixo, a gente
do processo de construção de qualidade da só recebe reclamação e exigência
escola, situando-a em uma matriz meramente da Secretaria. Mas as escolas que
econômica, constituída na díade receita/gas- sempre foram melhores são pre-
tos e na tentativa de responsabilizar as redes miadas, aparecem no outdoor na
e, por tabela, seus docentes, pelos baixos re- entrada da cidade. Isso é injusto
sultados alcançados. Dessa forma, constrói porque esta avaliação não vê os
nossos avanços, mas as escolas que
quase uma consensualidade e, em já estão bem. (Professora 1B).
muitos níveis, acarreta a falta de
reflexão sobre o ideal educacional Não concordo em colocar as cinco me-
que almejamos. Ou seja, o excesso lhores escolas no Ideb em outdoor. E as ou-
de importância que se atribui ao tras escolas? Não tem nenhuma qualidade? É
problema da má qualidade via resul- desestimulador, porque cada escola é única e
tados de exames não permite bre- tem diferenças em sua comunidade. (Profes-
chas para discussões sobre o que se sora 2B).
entende por escola de qualidade ou
boa escola. (FERNANDES; NAZARE- Eu achei um absurdo colocar as me-
TH, 2011, p. 64). lhores escolas na entrada da cidade!
Eu soube que houve uma reunião
Outras situações apontam para a ên- na Secretaria com todas as escolas,
fase aos resultados alcançados e à lógica da mas apenas as cinco melhores fo-
premiação e bonificação (merit pay ou per- ram reconhecidas. Estas avaliações
formance pay system) (AFONSO, 2012) como não avaliam nada! (Professora 3B).
forma de convencimento da sociedade sobre
a “excelência” de algumas escolas, o que pro- O sentimento de injustiça e falta de re-
voca um clima de competição entre escolas conhecimento salta aos olhos. Evidencia-se
de uma mesma rede. Após a divulgação dos que poucas escolas ganham notoriedade, re-
resultados do Ideb 2009, a rede de ensino em conhecimento e visibilidade pública dentro da
que realizamos a pesquisa colocou outdoors lógica de resultados. Este cenário enquadra a
na cidade reconhecendo as escolas que ha- invisibilidade das escolas que não atingiram
viam alcançado os maiores índices. Não foram as metas e esconde possíveis motivos que
mais do que cinco escolas em uma rede com- podem ter contribuído para os resultados:
posta por mais de 170. condições precárias de infraestrutura, rota-
Faixas afixadas nas portas das escolas e tividade de professores, áreas de violência,
prêmios oferecidos a gestores, professores e falta de material, ausência de participação da
alunos pelo bom desempenho fazem parte do comunidade no espaço escolar, dificuldades
largo conjunto de “mimos” ofertados e que da gestão da escola, baixa remuneração etc.
As confusões entre examinar e avaliar
10
Jornal pertencente às Organizações Globo e invadem escolas e criam falsas percepções
que possui grande circulação nos municípios da
Baixada Fluminense, adensados por uma população pela sociedade, acreditando que a qualidade
econômica e socialmente mais desassistida. é alcançada mediante políticas que não re-

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presentam uma avaliação, mas um conjunto um processo eminentemente peda-
de ações que envolvem a aplicação de testes. gógico, plenamente integrado ao
Logo, avaliar não é examinar! ensino e à aprendizagem, delibera-
Por outro lado, o conceito de avaliação do, interativo, cuja principal função é
foi construído, historicamente, com a finalida- a de regular e de melhorar as apren-
de de analisar os processos, mesmo com inte- dizagens dos alunos. Ou seja, é a de
resses diversos. Fernandes (2009), ancorado conseguir que os alunos aprendam
nos estudos de Guba e Lincoln (1989 apud melhor, com compreensão, utilizan-
FERNANDES, 2009), faz uma síntese de quatro do e desenvolvendo suas competên-
gerações: avaliação como medida, avaliação cias, nomeadamente as do domínio
como descrição, avaliação como juízo de valor cognitivo e metacognitivo. (FER-
e avaliação como negociação e construção. NANDES, 2009, p. 59).
Estas trajetórias envolvem perspectivas que
apontam para alternativas e configuram-se As marcas e características das diversas
como propostas que avançam nas finalidades concepções de avaliação permanecem e ain-
e características dos conceitos anteriores. O da encontram espaços em escolas, redes e
que implica pensar que a avaliação constitui-se sistemas. O desafio é construir uma avaliação
em conceito mais amplo que envolve pressu- com foco nos processos de aprendizagem e
postos éticos relativos a práticas em que su- distante da lógica de resultados.
jeitos estão envolvidos. Fernandes apresenta Muitos pesquisadores têm apontado
uma dimensão clara dessa trajetória: concepções mais amplas de avaliação (HAD-
JI, 2001; PERRENOUD, 1999, ESTEBAN, 2008a,
De uma concepção inicial muito limi- 2008b; SAUL, 1995, VILLAS BOAS, 2004a,
tada, redutora e essencialmente téc-
2004b, 2008). Há movimentos instituintes
nica, evoluiu-se para uma concepção
mais sistêmica e abrangente com a
que evidenciam a preocupação com uma
sistemática apreciação do mérito e avaliação voltada para o avanço das aprendi-
do valor dos objetos avaliados, que zagens dos alunos e para uma melhoria efe-
deixaram de ser exclusivamente tiva da qualidade da escola. Alguns indícios
as coisas relativas aos alunos para são evidenciados pelas professoras, quando
passarem a incluir professores, pro- questionadas sobre a avaliação que desenvol-
jetos, currículos, programas, mate- vem em suas salas de aula:
riais, ensino ou políticas. (FERNAN-
DES, 2009, p. 51). fazemos uma avaliação comprome-
tida com a aprendizagem e o cresci-
Apesar dos avanços, o autor propõe mento de todos os alunos. Para nós,
que o conceito de avaliação avance em seus saber o que o aluno sabe e como
sentidos, distanciando-se, assim, da ideia de aprende é o ponto de partida para
que “avaliar é sinônimo de examinar, aplicar replanejarmos as atividades de for-
testes, elaborar tabelas com dados quanti- ma diversificada. (Professora 2A).
tativos e definir o que é ou não uma escola Os instrumentos avaliativos que mais
de qualidade” (FERNANDES, 2009), discurso usamos são a observação dos nossos alunos e
este assumido como consolidado. Constitui- o diagnóstico da leitura e escrita que fazemos
-se, assim, numa visão de avaliação formativa a cada mês para ver o avanço [deles]. Tem
alternativa,11 considerando-a uma colega que usa o portfólio, que é muito
11
O autor indica que há, atualmente, diversas concepções interessante… A gente não fica só presa nos
que apontam rupturas com a ideia de que avaliar é o testes e provas. Avaliamos, também, os as-
mesmo que examinar: avaliação autêntica, avaliação pectos atitudinais, como frequência, partici-
contextualizada, avaliação formadora, avaliação
reguladora, avaliação educativa, avaliação formativa etc.
pação etc. (Professora 3A).

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O tratamento dado ao “erro” é um as- posições centrais nas decisões políticas e eco-
pecto que chama atenção. Uma professora da nômicas mundiais, indicando características
Escola A corrobora o que foi dito pelas profes- regulatórias e de maior controle, com inten-
soras acima e aponta indícios de que há uma ções explícitas de transformar a educação em
preocupação em fazer uma avaliação diferente: um grande mercado (AFONSO, 2000, 2010;
FERNANDES, 2009; BALL, 2005; DÍAZ BARRÍ-
Errar na escola é permitido, pois é GA, 2008; DIAS SOBRINHO, 2003).
através do erro que nós percebe- O discurso oficial, sob as retóricas do di-
mos a oportunidade de criar ati- reito à aprendizagem e da qualidade da edu-
vidades desafiadoras que façam cação, aponta a constituição de uma política
o aluno refletir e reconstruir seu de avaliação sistêmica sustentada, essencial-
conhecimento para poder acertar. mente, nas funções de regulação, controle da
(Professora 4A). gestão e do trabalho docente e mensuração
do desempenho dos alunos, utilizando testes
Esta noção de “erro” coaduna-se com a objetivos padronizados aplicados a cada dois
concepção de ”erro” defendida por Esteban anos, no caso do ensino fundamental. Assim,
(2008a, p. 18), em que, muitas vezes, mais do confere-se aos exames confiabilidade, legiti-
que o acerto, ele revela o que a criança “sabe”, midade e fidedignidade técnica para definir se
colocando este saber em uma perspectiva pro- o aluno aprendeu ou não, se a escola é de qua-
cessual, indicando, também, aquilo que ela lidade ou não, se o responsável é o professor
“ainda não sabe”, portanto o que pode “vir a ou não. No quadro das reformas há um con-
saber”. A avaliação, nesta perspectiva, serve junto de mudanças que atingem as estruturas
para reorientar o trabalho do professor e auxi- do Estado, dotando-o de novas funções e res-
liar nas aprendizagens dos alunos. ponsabilidades coadunadas com os proces-
sos reestruturadores do mundo capitalista.
Performatividade e regulação: efei- Para Ball (2005 p. 1.106), estas configurações
tos no trabalho docente surgem “de mudanças nos papéis do Estado,
Em nome da maior qualidade dos siste- do capital, das instituições do setor público e
mas educativos, ações têm sido implementa- dos cidadãos e nas suas relações entre si”.
das e dirigidas diretamente às escolas e seus Neste sentido, as mudanças dão-se, ini-
profissionais. cialmente, no movimento de passagem “do
No Brasil é notória a proliferação de Estado como provedor para o Estado como
exames como sinônimos de avaliação: Pro- regulador, estabelecendo as condições sob as
va Brasil,12 Exame Nacional do Ensino Médio quais vários mercados internos são autoriza-
(Enem), Provinha Brasil,13 Avaliação Nacional dos a operar” (BALL, 2005, p. 1.107). A partir
da Alfabetização (ANA), Exame Nacional de daí, desencadeia-se um conjunto de ações no
Certificação de Competências de Jovens e sentido de tornar o Estado eficiente, eficaz
Adultos (Encceja). Além destas, os sistemas e ágil: avaliação de desempenho de alunos,
estaduais e municipais, a partir de um efei- responsabilização de escolas e professores,
to replicante, foram se constituindo a partir implantação de políticas de bonificação/pre-
dos modelos nacionais e internacionais. Estas miação docente, redefinição das funções de
políticas seguem o plano de reformas edu- gestores etc.
cacionais executado por países que ocupam Apesar de muito semelhantes, as políti-
12
Teste também denominado Avaliação Nacional do cas de avaliação não assumiram característi-
Rendimento Escolar (Anresc) e que, juntamente com cas uniformes nos diversos países, mas apre-
a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb) e sentam alguns aspectos comuns: concepções
com a ANA, compõe o Saeb.
13
Teste da alfabetização aplicado no início e no final do neoconservadoras de educação, foco em
ano letivo, em turmas de 2º ano de escolaridade. desempenhos, estreitamento curricular, com-

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petição entre professores e escolas, ausência (FREITAS, 1995; AFONSO, 2000). Meritocra-
da dimensão pedagógica e exacerbação da cia, responsabilização e privatização tornam-
dimensão técnica, preparação para os testes. -se eixos centrais deste projeto, em que o
O caráter neoconservador e neoliberal destas monitoramento do trabalho pedagógico dos
políticas configura o que se denomina “Esta- professores, por meio de resultados atingidos
do avaliador”, que assume “um ethos com- pelos alunos e medidos em testes padroniza-
petitivo, neodarwinista, passando a admitir dos, é o centro das políticas (FREITAS, 2012).
a lógica do mercado, através da importação Os testes padronizados, chamados de
para o domínio público de modelos de gestão “avaliação”, assumem claramente função
privada, com ênfase nos resultados ou produ- reguladora e controladora. Seu caráter psi-
tos dos sistemas educativos” (AFONSO, 2000, cométrico aponta para uma intenção não
p. 49, grifos do autor). materializada de garantir a padronização dos
Dessa forma, a inserção de uma cultu- procedimentos de avaliação e a homogenei-
ra gerencialista empresarial no setor público zação das condições de respostas aos testes.
promoveu uma verdadeira invasão de ins- Dessa forma, as proposições de avaliação,
trumentos de controle e responsabilização. nestas condições, negam a possibilidade de
A avaliação em larga escala, pautada no es- existência das diferenças entre sujeitos, es-
tabelecimento de indicadores para medir tados, regiões, localidades etc. Estabelece,
desempenhos dos alunos, performances das portanto, padrões de comportamento e co-
escolas e de seus professores, torna-se meca- nhecimentos uniformes em todo o território
nismo essencial para legitimar o controle do nacional. Esteban (2012) considera que os
trabalho docente por meio dos resultados de processos avaliativos, nestes termos, pautam
desempenho dos alunos, aferidos nos testes uma norma que funciona como força impo-
padronizados. Este movimento reformador sitiva em que são reconhecidos aqueles que
atual, baseado na lógica de responsabiliza- se encontram dentro do padrão definido.
ção, de meritocracia e gerencialismo, Aqueles que se afastam são desqualificados.
A eficácia e eficiência exigidas das escolas e
propõe a mesma racionalida- dos docentes evidenciam as novas funções a
de técnica de antes na forma de serem assumidas e impõem uma autoimagem
“standards”, ou expectativas de que desvaloriza as subjetividades envolvidas
aprendizagens medidas em testes no processo educacional. Uma das diretoras
padronizados, com ênfase nos pro- aponta estes sentimentos:
cessos de gerenciamento da força
de trabalho da escola (controle Os professores têm se esforçado
pelo processo, bônus, punições), muito para melhorar os resultados.
ancorada nas mesmas concepções Mas, quando os resultados são
oriundas da psicologia behaviorista, divulgados, há um cenário desola-
fortalecida pela econometria, ciên- dor. A frustração é clara no rosto
cias da informação e de sistemas, de todas aqui da escola. Como não
elevado à condição de pilares da sabemos as formas de melhorar os
educação contemporânea. (FREI- resultados, nos sentimos incapazes
TAS, 2012, p. 383). e ineficientes. (Diretora Escola B).

Este processo de reestruturação do Es- Para Ball (2005, 2011), instaura-se uma
tado impõe redefinições nas funções de diver- “cultura da performatividade”, na qual o pro-
sos sujeitos. Os professores e gestores pas- fessor é o protagonista e é convocado a apre-
sam a constituir-se como corpo central para sentar desempenhos cada vez mais eficazes e
a implementação do projeto neotecnicista eficientes. Considera que as performances dos

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indivíduos ou de organizações atuam como para avaliar os alunos dentro de uma
parâmetros de produtividade ou de resultado, visão formativa, mais global, pois,
ou atuam como indicativos de “qualidade” ou como vai ter Prova Brasil este ano,
“momentos” de promoção ou inspeção. Além tudo tem que estar voltado para ela.
disso, “significam, englobam e representam a (Professora 2 B).
qualidade, a validade e/ou valor de um indiví-
duo ou organização dentro de um determina- A performatividade, como uma tecno-
do âmbito de julgamento/avaliação” (BALL, logia política, envolve caráter de tecnicização
2005, p. 543). Seguindo a lógica do desempe- e instrumentalização dos processos, além
nho e do alcance de resultados, a necessidade de expor o conhecimento e sua condição de
de reestruturação produtiva e das funções do mercadoria (BALL, 2005, p. 544). A performa-
Estado avaliador provocou o surgimento de tividade é alcançada quando são construídos
novas tecnologias de controle. Neste contex- e disseminados indicadores e informações
to, a avaliação ganha destaque considerável que permitam a publicidade de escolas como
por ser um mecanismo que objetiva o controle instrumentos de estímulo, julgamento e com-
para atingir metas definidas pelo poder cen- paração entre profissionais e instituições. Isto
tral, a efetividade e a qualidade, criando uma se dá na ampla divulgação de resultados, nas
lógica performativa do trabalho docente. A avaliações em larga escala, o que produz a
intensificação do trabalho em busca de melho- construção de rankings, exaltando as primei-
res resultados é a materialização dessa “corri- ras colocadas, consideradas escolas melhores
da performativa”. Duas professoras da Escola e de qualidade, e as demais como incompe-
B apontam indícios dessa intensificação: tentes e sem qualidade.
As tecnologias políticas não são ape-
Eu não faço mais nada além de pre- nas instrumentos para promover mudanças
parar para a Prova Brasil. Na esco- técnicas e estruturais das escolas. Elas objeti-
la, fazemos simulados todo mês. vam, também, “reformar” os docentes e, as-
Nosso trabalho está centrado nesta sim, alterar o sentido do que é ser professor,
prova porque fomos muito mal em ajustando-os aos ditames gerencialistas para
2009. Nosso trabalho tem se limita- melhorar as performances em busca de re-
do a trabalhar Português e Mate- sultados. Além disso, as avaliações, consubs-
mática. Tem sido muito estafante tanciadas em testes padronizados para aferir
porque a gente tem que elaborar desempenhos cognitivos dos alunos, desem-
os simulados, corrigir, preencher penham relevante papel na regulação do tra-
fichas etc. Não tem sobrado tempo balho pedagógico, interferindo nas formas de
para trabalhar outras disciplinas e como a ação de ensinar deve acontecer. Para
preparar aulas mais interessantes. Afonso (2000, p. 40), a política de avaliação
(Professora 1 B). pautada no alcance de metas e resultados in-
terfere e condiciona diretamente as práticas
Eu me sinto cobrada e pressionada pedagógicas dos profissionais, gerando efei-
para melhorar a nota na Prova Bra- tos de considerável pressão sobre o trabalho
sil. Tive que assumir esta turma de 5º docente, o que o torna um “treinador para
ano mesmo sem querer. Sinto que os testes”. Dessa forma, tais tecnologias aca-
estou trabalhando muito, pois mui- bam por contribuir incisivamente na “despro-
tos alunos têm grandes dificuldades fissionalização” docente. Estudos e pesquisas
em leitura e interpretação. Em Mate- recentes (AMARO, 2013; ASSUMPÇÃO, 2013;
mática, eles são melhores, mas têm MOTA, 2013; LINO, 2014; MELO, 2014), que
tido muito trabalho. O maior pro- tomam as escolas de periferia como campo,
blema é que não tenho autonomia indicam que a cultura do exame vem repercu-

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tindo de forma contumaz e insistente no co- externa e interna da escola. Conduzidas com
tidiano da escola, alterando práticas, fazeres, metodologias adequadas e não se susten-
saberes, reduzindo o professor a mero “apli- tando em uma perspectiva reducionista de
cador” de testes, desprofissionalizando-o. formação, as avaliações podem fornecer in-
Assim, buscamos indicar algumas poten- formações relevantes sobre o desempenho
cialidades de práticas avaliativas articuladas à dos alunos, sobre o trabalho dos professores,
necessidade de uma “accountability alternati- sobre o funcionamento da escola e sobre as
va” (AFONSO, 2012) que esteja voltada para o condições de trabalho (FREITAS et al., 2009).
desenvolvimento da escola, de seus docentes Pesquisas têm revelado preocupações
e de seus alunos. com as funções assumidas pela avaliação
como processo de regulação, controle, po-
Finalizando nossa reflexão: cami- der e seleção (FREITAS, 1995; DALBEN, 2004;
nhos outros são possíveis… VILLAS BOAS, 2004a, 2004b, 2008 ). A avalia-
Os processos de avaliação em larga es- ção de escolas provoca tensões e sentimen-
cala atualmente em curso indicam um cenário tos negativos, na medida em que os profes-
pouco alentador em relação à qualidade. Per- sores experienciam perda de poder e de
sistem, ainda, graves problemas de fluxo, de controle e sensação de estar constantemente
estrutura das escolas, de carência material, de sob regime disciplinar. Isto pode culminar em
gestões atreladas a poderes políticos locais, desmotivação, estresse, descontentamento,
de projetos e programas desarticulados e so- acúmulo de funções, o que provoca sobrecar-
brepostos, de formação insuficiente dos pro- ga de trabalho.
fessores. Estes problemas afetam diretamen- O não reconhecimento dos docentes
te a qualidade e não podem ser enfrentados como pensadores e participantes das deci-
apenas com ampla disseminação de testes sões relativas à organização escolar, ao currí-
para aferir desempenhos. culo, às práticas pedagógicas e, naturalmen-
Para Freitas et al. (2009), o objetivo de te, à avaliação pode tornar-se um obstáculo
melhorar a qualidade da educação mediante a para alcançar os objetivos. Toda e qualquer
avaliação de professores e da escola por meio ação e/ou política tem maior potencialidade
de testes padronizados aplicados aos alunos se integrada à instituição de forma copartici-
é uma ilusão. Os autores discordam da forma pativa, corresponsável, coletiva e em um cli-
como algumas redes conduzem suas políticas ma de confiança e pertencimento.
de avaliação, tendo em vista serem políticas É possível identificarmos as tensões que
de governo sustentadas na lógica da merito- envolvem a forma como a cultura dos exames
cracia e não em políticas de Estado, como ex- adentra o espaço escolar e atinge em cheio a
pressões democráticas e representativas dos prática docente. Para Werle (2010), diversas
diversos setores da sociedade. As avaliações tensões envolvem a avaliação em larga es-
realizadas pelas redes municipais de ensino cala e precisam ser enfrentadas por meio de
seriam mais eficazes se considerassem os um debate que envolva os diversos níveis do
dados produzidos pelas avaliações como per- sistema educacional e os sujeitos das comu-
tencentes à escola. nidades escolares. Nos modelos de avaliação
Mas, diante deste quadro de pretenso em voga tem sido muito difícil perceber ações
consenso, haverá espaço para negociação e que superem as concepções que os guiam.
construção de outros modelos? Os resultados Apesar desse quadro, as informações produ-
das avaliações, como percebemos nos dados zidas nestas avaliações podem contribuir de
apresentados e discutidos anteriormente, alguma forma para a organização, planeja-
acabam por impactar na autonomia dos do- mento e avaliação da escola e dos próprios
centes e no controle das ações pedagógicas, sistemas, desde que estas sejam apropriadas,
além de interferir, principalmente, na imagem interpretadas e relacionadas a outros fatores

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determinantes da qualidade de uma institui- Para Vianna,
ção educativa.
Diante das discussões empreendidas nes- a avaliação não deve ter caráter en-
te artigo, as repercussões dos resultados das dógeno […]. A avaliação não é ape-
avaliações no trabalho docente das escolas in- nas para autoconsumo […]. Uma
vestigadas indicam algumas características se- das características fundamentais da
melhantes às indicadas por Sousa (2003): cen- avaliação é a sua transparência, que
tralidade dos olhares sobre os resultados nas vai ter conseqüências, sobretudo,
avaliações, limitando-se à informação quantita- no seu impacto. (2000, p. 163-164).
tiva representada pelo Ideb; afastamento dos
professores, bem como de outros sujeitos (alu- É necessário que os movimentos reais
nos, pais, comunidade) das decisões sobre a que acontecem na escola e que as informa-
qualidade da escola; destaque exacerbado dos ções produzidas pelas avaliações externas
resultados da avaliação externa, sem a promo- sejam tomados como indicadores para a
ção de um debate interno e sem interpretação apropriação de seus problemas a partir do
do que eles representam; resultados direcio- diálogo constante com práticas cotidianas de
nando práticas e ações neotecnicistas de pre- avaliação interna, propiciando um ambiente
paração a partir de projetos de treinamento reflexivo da instituição escolar, levantando e
dos alunos para os exames; esvaziamento da definindo outros indicadores que não se res-
função do docente, tornando-o um mero apli- trinjam ao desempenho dos alunos e ao fluxo.
cador de testes; precarização do trabalho do Para além destas políticas conservado-
professore etc. ras, é preciso apontar caminhos alternativos
Antes de tudo, é fundamental que ges- de responsabilização e de regulação da qua-
tores (em todos os níveis), orientadores edu- lidade da escola pública que se constituam
cacionais e pedagógicos problematizem estas como reação aos modelos de avaliação cen-
avaliações e desconstruam o pensamento trados em resultados dos estudantes em tes-
normalizador de que os resultados da Prova tes padronizados. Para Santos,
Brasil/Ideb são os únicos indicadores da quali-
dade da escola. Conforme Sordi (2012, p. 487), há que se considerar que existem
não se trata de desconsiderar a necessidade propostas alternativas a estas polí-
do uso de informações de medida como um ticas conservadoras e que mesmo
dos elementos da avaliação, mas trata-se de as críticas a elas levantadas podem
compreendê-las como insuficientes, acionan- oferecer algumas contribuições
do uma complexa rede interpretativa e pro- para a melhoria da formação docen-
blematizadora. te, sem, contudo, resolver a diver-
Para Oliveira (2010), uma das dificulda- sidade de problemas enfrentados
des de gestores e professores envolve o des- nessa área. (2004, p. 1151).
conhecimento dos conceitos que orientam a
elaboração, aplicação, correção dos testes e Afonso (2010, 2012) indica que, ainda
os usos que se faz dos resultados, o que in- que haja muitos modelos de avaliação refe-
viabiliza sua utilização em uma dimensão pe- renciados nas políticas dos países centrais, é
dagógica. Um dos obstáculos que se percebe preciso atentar para outros contextos, espe-
em grande parte das redes é o afastamento cificamente localizados na América Latina. Há
do professor da tarefa de pensar a avaliação. propostas outras que se afastam das perspec-
É importante que formas outras considerem tivas eurocêntricas e ganham fôlego para que
o docente como sujeito pensante e atuan- se estabeleça uma ampla reflexão no sentido
te na perspectiva de propiciar mudanças na de tornarem-se visíveis como alternativas à
educação. política de avaliação em larga escala funda-

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mentada em meritocracia, responsabilização, mação, a transparência e a justiça,
gerencialismo e performatividade. entre outros. (2012, p. 477).

Não há nenhuma razão para não Sordi (2012), ao analisar as atuais políti-
pensarmos e escrevermos no sen- cas de avaliação, argumenta também sobre a
tido de contribuir para resgatar necessidade de movimentos contra-hegemô-
criticamente a problemática da nicos propositivos:
accountability, enclausurada atual-
mente nas lógicas do pensamento Não podemos ignorar que a insis-
único, neoconservador e neolibe- tência em modelos de avaliação,
ral. Torna-se necessário, por isso, cuja base é meritocrática e ranquea-
mostrar que há outras alternativas dora, pode ainda induzir a decisões
que podem e devem ser reflexiva- que discriminam os estudantes,
mente consideradas e postas em penalizando aqueles que mais pre-
pratica, sobretudo por terem maior cisam da escola, tornando-os invisí-
densidade teórico-conceitual e/ou veis nos dias dos exames para não
pertinência política e educacional. prejudicarem o rendimento da tur-
(AFONSO, 2012, p. 477). ma. Reações a estas distorções, que
legitimam a exclusão de estudan-
Stobart (2010 apud AFONSO, 2012, p. tes em nome de uma qualidade de
477) propõe a “accountability inteligente”, ensino artificialmente produzida,
que representa uma forma de prestação de requerem proposição de modelos
contas e responsabilização baseada em re- alternativos de avaliação. (SORDI,
lações éticas que sejam promotoras de con- 2012, p. 487).
fiabilidade nas escolas e nos docentes. Esta
alternativa não centraliza a avaliação em um A experiência de avaliação institucio-
único instrumento paramétrico definidor da nal implementada em uma rede municipal14
qualidade da escola, mas na multiplicidade e é assumida como política pública cuja funda-
diversidade de procedimentos e instrumen- mentação ético-epistemológica ancora-se na
tos. Trata-se de uma proposição em que as potencialidade da reação propositiva aos mo-
finalidades educacionais e de avaliação são delos de accountability em vigor, em nível na-
mais realistas e ancoradas no respeito à au- cional, em diversos estados e municípios. Esta
tonomia dos diversos sujeitos e das escolas. proposta sustenta-se em uma perspectiva de
Neste sentido, Afonso aponta que pensar em redirecionamento da avaliação, no sentido de
alternativas de accountability parte da neces- torná-la parte da escola como espaço privile-
sidade de focalizar uma concepção mais am- giado de constituição da qualidade. Assume
pliada e complexa. Defende uma configura- que uma concepção de avaliação participa-
ção democrática de accountability que inclui tiva envolve um esforço coletivo articulado
ao projeto político-pedagógico com vistas ao
a avaliação, a prestação de contas e
estímulo de práticas democráticas de gestão
a responsabilização, pressupondo
(SORDI, 2012, p. 488).
relações e conexões abertas, pro-
Ao restringir a avaliação da escola e de
blematizáveis e susceptíveis de se
seus professores ao desempenho dos alunos e
aperfeiçoarem ou reconstituírem, e 14
O documento “Avaliação Institucional Participativa:
que se legitimem ou se sustentem uma alternativa para a educação básica de qualidade
em valores e princípios essenciais: da rede municipal de ensino de Campinas e Fundação
Municipal para Educação Comunitária” (Campinas,
a cidadania crítica, a participação, 2007), fundamenta os princípios da avaliação e aponta
o empowerment, o direito a infor- os aspectos executivos da proposta.

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ao fluxo, reduzem-se as capacidades de a ava- pedagógico, articulando objetivos e finalida-
liação gerar efeitos pedagógicos qualitativos. des da educação com os pressupostos da ava-
Dessa forma, criam-se dificuldades para que as liação formativa (AMARO, 2011).
escolas e os sistemas municipais exercitem as Conforme Sordi,
capacidades de autoavaliação, de promover
ampla avaliação institucional, o que desenca- o que não deve ser objeto de nego-
dearia processos de construção da “qualidade ciação são os princípios que regem
negociada”. Assim, a avaliação da escola vai os modelos contra-hegemônicos de
além e assume potencialidades alternativas avaliação, especialmente porque
que envolvem uma “accountability” inteligen- estes traduzem concepções de qua-
te, alternativa e negociada (AFONSO, 2012; lidade, concepções de educação,
SORDI, 2012; BONDIOLLI, 2004). de Homem e de mundo bastante
Por fim, os projetos de avaliação alter- distintivas. (2012, p. 509).
nativos, que tomem a escola e seus docentes,
bem como os demais sujeitos, como centros Portanto, examinar não contribui para
de referência para discutir, problematizar e o desenvolvimento e avanço da qualidade de
pronunciar-se sobre o tipo de qualidade que escolas, das aprendizagens e do trabalho do-
almejam, (LINO, 2014) tornam-se instrumen- cente. Somente fundados na perspectiva de
tos de contrarregulação (FREITAS, 2007). avaliar formativamente é que se pode pensar
A avaliação, seja ela externa, interna ou da em processos compartilhados e participativos
aprendizagem, deve fazer parte do processo de melhoria da qualidade da educação.

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Dados autorais:

Ivan Amaro
Doutor em Educação (Unicamp) - Professor do Programa
de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação
em Periferias Urbanas – PPGECC

Recebido: 12/04/2014
Aprovado: 06/10/2014

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