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PENAL EM FOCO
24/04/2019 06:50
Imagem: Pixabay
O conceito penal de funcionário público está disciplinado pelo art. 327 do Código
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Penal . Dentre as suas principais funções está a de determinar o círculo de possíveis
autores dos delitos contra a administração pública cometidos por funcionários
públicos, tais como corrupção passiva, peculato, concussão etc. A sua interpretação, à
primeira vista, nem sempre apresenta maiores di culdades. A riqueza das situações
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concretas, contudo, tem demonstrado justamente o contrário .
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Vejamos alguns exemplos : (i) comete peculato o superintendente do FINDES
(Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo) acusado de desviar valores
relativos ao SENAI/ES e SESI/ES? (ii) comete peculato o dirigente de uma Organização
Social do setor da saúde, no manejo de verbas com origem pública (convênio com o
Ministério da Saúde)? (iii) comete peculato e fraude à licitação o membro do SENAC
acusado de superfaturamento de licitação e apropriação dos valores? (iv) ostenta a
condição de funcionário público o dirigente de fundos de pensão de empresas estatais,
como PETROS, PREVI, FUNCEF (Operação Green eld)?
Mas os problemas não surgem apenas nestes exemplos, que poderiam retratar
situações-limite, alcançam também casos tidos como “triviais”. Recorramos,
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novamente, a exemplos : (i) comete concussão o médico que, trabalhando em hospital
privado conveniado ao SUS, exige valores para proceder ao atendimento de um
paciente (caso 1)? (ii) comete peculato ou corrupção passiva o funcionário de empresa
terceirizada contratada para prestar serviços de limpeza no Foro da Justiça Federal,
que se apropria de dois cartuchos de tinta de impressora (caso 2)? (iii) comete peculato
o estagiário da Caixa Econômica Federal, ao sacar indevidamente valores de conta
bancária de correntista (caso 3)? (iv) se quem trabalha em paraestatal é funcionário
público por equiparação, o que, a nal, signi ca o termo “paraestatal” (art. 327, §1º,
Código Penal) (caso 4)?
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Outra expressão fundamental para a resolução do caso que, da mesma forma, nem
sempre recebe a merecida atenção, é esta: “atividade típica da administração pública”.
Aqui por vezes os Tribunais optam por se esquivar de de nir o seu conteúdo máximo
de sentido, averiguando, caso a caso, se a atividade seria, ou não, “típica da
administração pública”. Isso gera problemas de diversas ordens. Fiquemos, por
enquanto, com apenas um: a incapacidade de o Direito cumprir o seu papel de
orientação e de conformação de condutas. Se ao cidadão é inviável identi car o
comando da norma, porque não su cientemente aclarado pelos seus intérpretes, por
que motivo se poderia dele exigir o seu adequado cumprimento?
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Chegamos, pois, ao caso 4. Não temos aqui uma situação concreta propriamente dita,
mas um problema de ordem conceitual: qual o sentido da expressão “paraestatal” (§1º
do art. 327)? Trata-se, sem dúvida, de um dos termos mais obscuros da doutrina
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administrativa, o que gera re exos diretos no âmbito penal. Importante observar que a
expressão já constava originalmente no então parágrafo único do art. 327 do Código
Penal. Ao se realizar um breve resgate histórico, percebe-se que o Supremo Tribunal
Federal interpretava o termo – sem qualquer hesitação – no sentido de entidades da
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administração pública indireta (autarquias, sociedades de economia mista etc.) .
Essa compreensão perdurou, de modo bastante estável, por décadas, mas começou a
se alterar com a Reforma Administrativa (Emenda Constitucional n. 19/1998), quando
foram introduzidas as guras das Organizações Sociais (OS – Lei 9.637/98) e das
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs – Lei 9.790/99). Nos
anos subsequentes, os Tribunais passaram a enfrentar denúncias que narravam desvio
de valores de verbas de origem pública recebidas – por exemplo – por OSCIPs do setor
da saúde (Convênios com o Ministério da Saúde). Em várias delas, a conduta restou
tipi cada como peculato-desvio ou peculato-apropriação, o que pressupunha a
quali cação dos agentes como funcionários públicos para ns penais.
Diante desse impasse, os Tribunais optaram, pouco a pouco, por enquadrar tais
entidades na expressão “paraestatais”, fulminando por completo o sentido consolidado
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anteriormente atribuído – por eles próprios! – ao termo . Ora, OS e OSCIPs
de nitivamente não integram a administração pública, ainda que com ela possam
colaborar. Tem-se, pois, um claro descompasso. Com isso não se pretende a rmar que
às Cortes estava subtraída a possibilidade de realizar essa “reviravolta hermenêutica”
relativamente ao sentido do termo “paraestatal”. Contudo, tal decisão interpretativa
demanda – novamente – a superação de certos ônus, inclusive o fato de que a Lei
9.666/93 de ne expressamente “paraestatal” como entidade sujeita ao controle direito
ou indireto do Poder Público (art. 84, § 1º), o que excluiria de plano OS e OSCIPs de tal
conceito legal.
Como, então, lidar com a evolução dos sentidos literais dos textos (sentido “genético”
versus sentido “atual”)? Aqui, a metáfora de Dworkin (Law’s Empire, 1986) sobre o direito
como “romance em cadeia” vem a calhar. Os Tribunais devem perceber que – ao
menos metaforicamente – escrevem um romance dia a dia, sendo responsáveis por
manter a coerência da história. Precisam, pois, avisar o jurisdicionado sobre a mudança
radical de rumo e, em se tratando de direito penal, aplicá-la somente a fatos posteriores
a esse “aviso”. Daí sustentarmos que a anterioridade penal não deve dizer respeito
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apenas ao texto, mas também, sob certas condições, à sua interpretação .
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Chega-se, assim, ao nal deste breve ensaio. Buscamos percorrer vários problemas
veri cados durante a aplicação do art. 327 do Código Penal a casos concretos. Nossa
intenção, com isso, foi alertar para a complexidade da interpretação do conceito penal
de funcionário público, bem como demonstrar que ele está, ainda hoje, de cientemente
de nido. E tal carência se revela mesmo diante de casos que reputamos – com ou sem
razão – “simples”.
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1 CP, Art. 327 – Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora
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3 Respectivamente: (i) STJ, CC 119.868/ES, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 3ª Seção, public.
no DJe em 08/11/2016; (ii) STF, HC 125086 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma,
public. no DJe em 27/11/2018 e (iii) STJ, RHC 90.847/PI, Rel. Min. Reynaldo Soares da
Fonseca, 5ª Turma, public. no DJe em 18/04/2018.
4 Respectivamente: (i) STF, HC 97.710 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª Turma, public.
6 Sobre o recurso ao regime de direito público como critério, cf. SCALCON, Raquel. O
7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São
8 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: RT, 2018, p.
776 ss. Sobre os impactos de uma interpretação restritiva do termo “emprego público”
no direito penal (CP, art. 327, caput), cf. SCALCON, Raquel. O conceito penal de
funcionário público no direito brasileiro e alemão, op. cit., passim.
9 Ilustrativamente, cf. STF, RE 35242, Rel. Min. Luiz Gallotti, 1ª Turma, public. no DJ
10 Cf., ilustrativamente, STF, HC 125086 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, public.
no DJe em 27/11/2018.
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RAQUEL LIMA SCALCON – Estágio Pós-Doutoral na Universidade Humboldt de Berlim (Bolsista da Fundação
Alexander von Humboldt e da CAPES). Doutora em Direito pela UFRGS. Advogada.
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