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De fato, foi com esse sentido que a expressão “fazenda pública” foi utilizada
pela legislação processual, como se observa, por exemplo, de várias passagens do
CPC/2015.4
1
Procuradora do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Tributário pela UFMG. Doutoranda em
Direito Tributário pela UFMG.
2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33. ed., rev., at. e ampl, Ed. Forense: Rio de
Janeiro, 2020, pág. 74;
3
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 18. ed., Malheiros Editores: São Paulo,
1993, p. 617.
4
Apenas a título de exemplo, confiram-se os seguintes dispositivos do CPC/2015:
Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.
(...)
§ 3º Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os
critérios estabelecidos nos incisos I a IV do § 2º e os seguintes percentuais:
Assim, a expressão “fazenda pública” vem sendo utilizada para designar a
Administração Pública em ações judiciais, mesmo que a demanda não verse sobre
matéria estritamente fiscal ou financeira. 5
Contudo, o tema demanda reflexão um pouco mais aprofundada, uma vez que a
expressão Administração Pública, no Brasil, comporta, a divisão entre Administração
Direta e Indireta, sendo necessário identificar quais seriam as entidades da
administração pública que poderiam ser enquadradas no conceito de “fazenda pública”,
de forma a atrair um conjunto de prerrogativas processuais que regem a atuação do
Poder Público quando figura como parte em juízo.
Em outras palavras, resta saber quais seriam as entidades da Administração
Pública que poderiam ser enquadradas na expressão “fazenda pública” de forma a atrair
o conjunto de regras processuais que regem a atuação do Poder Público como parte de
uma ação judicial.
Uma primeira resposta a este questionamento surge da análise da própria
Constituição de República de 1988. O Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça –
contém uma seção só para tratar da Advocacia Pública, imputando à Advocacia-Geral
(...)
§ 5º Quando, conforme o caso, a condenação contra a Fazenda Pública ou o benefício
econômico obtido pelo vencedor ou o valor da causa for superior ao valor previsto no inciso I do §
3º, a fixação do percentual de honorários deve observar a faixa inicial e, naquilo que a exceder, a
faixa subsequente, e assim sucessivamente.
(...)
§ 7º Não serão devidos honorários no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que
enseje expedição de precatório, desde que não tenha sido impugnada.
(...)
Art. 91. As despesas dos atos processuais praticados a requerimento da Fazenda Pública, do
Ministério Público ou da Defensoria Pública serão pagas ao final pelo vencido.
§ 1º As perícias requeridas pela Fazenda Pública, pelo Ministério Público ou pela Defensoria
Pública poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os
valores adiantados por aquele que requerer a prova.
(...)
Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal
da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que
envolvam:
(...)
Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de
intervenção do Ministério Público.
5
Alguns autores optam pelo uso da expressão “Poder Público”. Nesse sentido, confira-se: GARCIA,
André Almeida. Repensando o processo contra o Poder Público. Tese de Doutorado apresendata à
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, jan./ 2014, pág. 17:
O termo “Poder Público”, por sua vez, também não foi à toa escolhido: prevalecendo aqui a
intenção de afastar uma mensagem (de certa forma ssubliminar) transmistida pela corriqueira
expressão “Fazenda Pública”, qual seja, a de que o objetivo principal da atuação do Poder Público
em juízo seria tão somente proteger o erário (não é, como será demonstrado ao longo deste
traballho). Por isso, é preciso afastar-se desse aspecto financeiro tão arraigado que deu origem à
terminologia usual. (Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-
11022015-084111/publico/Tese_Andre_Almeida_Garcia.pdf . Acesso em: 05/05/2021)
da União, no âmbito federal, e às Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal, no
que se refere aos Estados-membros, a relevante tarefa de representação judicial e
consultoria jurídica aos entes da Federação que compõem o Poder Executivo.6
Observe-se que o Texto Constitucional não fez qualquer distinção, razão pela
qual se atribui à Advocacia Pública o exercicío da representação judicial, em todos os
âmbitos federativos, das pessoas jurídicas de direito público que integram tanto a
Administração Direta, como a Administração Indireta. É o que dispõe o CPC/2015:
Art. 182. Incumbe à Advocacia Pública, na forma da lei, defender e promover os
interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por
meio da representação judicial, em todos os âmbitos federativos, das pessoas
jurídicas de direito público que integram a administração direta e indireta.
7
ARE 700.429 AgRg, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe-224 de 14.11.2014.
8
Ver refere. 106, 107 e 108.
própria de Advocacia Pública, razão pela qual previu o CPC a possibilidade de que um
Município seja representado por seu prefeito.
Já a representação em juízo das autarquias e fundações de direito público ficava
a cargo de determinação na lei do ente federado que as criar.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal em 2018, ao julgar a ADI n° 145,
entendeu que a CR/88 estabelece um modelo de unicidade do exercício da advocacia
pública no âmbito dos Estados, a ser exercida de forma exclusiva pelos Procuradores de
Estado e do Distrito Federal de atividade jurídica de todas as unidades estaduais e
distrital, o que inclui as autarquias e as fundações, sejam elas na via consultiva ou
contenciosa.
Ao fazê-lo, declarou a não ser possível a criação de cargos distintos da carreira
de Procurador de Estado, como o de procurador autárquico, à exceção daqueles criados
antes da Constituição de 1988.
No Estado de Minas Gerais, esta representação fica a cargo da Advocacia Geral
do Estado, tal como disposto na Lei Complementar n° 151/2019.
Cumpre destacar, com relação às pessoas políticas da Federação, que, em regra,
a capacidade de ser parte é da pessoa política e não de seus órgãos. A legitimidade para
uma demanda, portanto, é da pessoa à qual pertence o órgão, e não deste.
Contudo, o Código de Defesa do Consumidor prevê uma exceção a essa regra,
ao consagrar, em seu art. 82, inciso III, a legitimidade ativa de órgãos para ações
coletivas sobre relações de consumo, caso tais órgãos tenham atribuição específica de
defesa de consumidores.9
Além dessa exceção legal, o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo
excepcionalmente a “personalidade judiciária” de órgãos públicos, desde que ele tenha
9
Lei n° 8.078/90:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em
juízo individualmente, ou a título coletivo.
(...)
Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados
concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I - o Ministério Público,
II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;
III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem
personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos
protegidos por este código;
IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins
institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a
autorização assemblear.
status constitucional e a ação proposta busque a defesa de suas prerrogativas
institucionais.10
De acordo com a legislação processual, a citação é o ato de comunicação
processual por meio do qual o réu, o executado ou o interessado é chamado para
integrar a relação processual.11 Em outras palavras, é com a situação que se
perfectibiliza a formação da relação processual, adquirindo o réu a condição de parte no
processo.
Assim, é a partir da citação que a Fazenda Pública, quando demandada, passa a
integrar a relação processo na posição de ré.
Dispõe o artigo 242, § 3º, do Código de Processo Civil que “a citação da União,
dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de suas respectivas autarquias e
fundações de direito público será realizada perante o órgão de Advocacia Pública
responsável por sua representação judicial”.
As procuradorias dos Estados sempre sustentaram que o dispositivo deve ser
interpretado de forma a limitar sua incidência apenas sobre a União e suas entidades,
sob pena de inconstitucionalidade.
Isso porque ao dispor sobre quem deve receber a citação o CPC viola a
capacidade de autoadministração dos entes federados, decorrente dos artigos 18 e 25 da
CR/88. Caberia, assim, a cada pessoa jurídica de direito público definir qual será o
órgão responsável pelo recebimento dos mandados de citação.
Essa interpretação foi recentemente acatada pelo Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5773 em que se discutia a
competência exclusiva do Advogado-Geral do Estado de Minas Gerais para
recebimento de citação referente as ações ajuizadas contra o Estado.
A ação foi proposta pelo Procurador-Geral da República e impugnava o art. 7º,
inciso III, da Lei Complementar mineira nº 30/1993, que prevê a competência do
Procurador-Geral do Estado, para receber citação inicial, ou comunicação, referente a
qualquer ação ou processo ajuizado contra o Estado ou sujeito à intervenção da
Procuradoria-Geral do Estado.
10
Súmula 525 do STJ: A Câmara de Vereadores não possui personalidade jurídica, apenas personalidade
judiciária, somente podendo demandar em juízo para defender os seus direitos institucionais.
11
CPC/ 2015
Art. 238. Citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para
integrar a relação processual.
O Relator, Ministro Alexandre de Moraes, entendeu pela inconstitucionalidade
formal do dispositivo por entender que se trataria de matéria processual, e, portanto,
fora do âmbito de competência legislativa dos Estados.
Na oportunidade, prevaleceu o entendimento de que a competência outorgada ao
Advogado-Geral do Estado pelo art. 7º da Lei Complementar mineira nº 30/93 para
receber citação constitui norma de organização interna de órgão da administração direta
do Estado de MG e, portanto, encontra-se “em harmonia com o texto constitucional, em
especial com o princípio insculpido no caput do art. 25 da CF, pelo qual ‘os Estados
organizam-se e regem-se pelas Constituições e Leis que adotarem’, resguardadas as
competências que lhes sejam vedadas.”12
3) Caracterização e problemática da ideia de supremacia do interesse público sobre o
privado e sua influência sobre as normas processuais que regem a atuação da Fazenda
Pública em juízo
O princípio constitucional da isonomia, estampado logo no caput do art. 5° da
Constituição da República de 1988, enuncia que “todos são iguais perante a lei”. No
entanto, longe de determinar a atribuição de tratamento idêntico a todas as pessoas em
toda e qualquer situação, a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, conforme notória lição de Aristóteles.
12
ABREU, Vanessa Saraiva de. CONSTITUCIONALIDADE DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO ADVOGADO-
GERAL DO ESTADO PARA RECEBER CITAÇÃO. Disponível em: https://www.emporiododireito.com.br/
leitura/constitucionalidade-da-competencia-exclusiva-do-advogado-geral-do-estado-para-receber-
citacao
13
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 4. ed., São Paulo:
Jus Podivum e Malheiros Editores, 2001, pp. 10/11.
Porém, há regras no processo que se apresentam diferenciadas para as partes,
justamente com vistas a alcançar o equilíbrio naqueles casos em que uma delas detenha
uma nota marcante e diferenciada em relação às demais.14
A seu ver, ambas as alegações deveriam ser afastadas pelas razões que passa a
expor:
Ora, quanto ao último ponto relacionado ao interesse público, já foi visto que não é
bem assim. Defender o interesse público, no enfoque da supremacia dos direitos
fundamentais do cidadão, em muitos casos pode significar justamente atender ao
pedido do autor, o que por si só já eliminaria a pretensa justificativa que nele
apoiada.
Por outro lado, talvez antigamente fizesse mais sentido a reiterada alegação de que a
burocracia da máquina administrativa dificultaria sobremaneira a apresentação de
uma defesa. O avanço tecnológico e o crescente fortalecimento das instituições já
não permitem que tal dado seja aceito assim com tanta facilidade. Do mesmo modo,
como já dito, com concursos públicos cada vez mais concorridos, o corpo técnico
das procuradorias tem altíssima qualidade e capacidade, sendo mesmo possível dizer
que maior dificuldade certamente terá o patrono do cidadão que litiga contra o Poder
Público.16
Isso tudo para concluir que deve ser revisto o papel das prerrogativas que sejam
despidas de fundamento que as sustente, apontando-as como fonte de agravamento de
14
Nesse sentido, cf. CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 18. ed., Rio de Janeiro:
Forense, 2021, pág. 22.
15
GARCIA, André Almeida. Repensando o processo contra o Poder Público. Tese de doutorado defendida
na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Janeiro/2014. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-11022015-084111/publico/Tese_Andre
_Almeida_Garcia.pdf
16
GARCIA, André Almeida. Op. cit., pp. 57-58.
uma suposta desigualdade material em razão da evidente vulnerabilidade do cidadão
face o poderio estatal.
Ousamos discordar. Essa alegada vulnerabilidade – que se colocaria no campo
do direito material – desaparece no processo, onde, diante de uma controvérsia entre o
Estado Administração e o particular levada ao Poder Judiciário, deve ser resolvida pelo
Estado Juiz.
A presunção de legitimidade, a imperatividade, a exigibilidade e a
executoriedade dos atos administrativos desaparecem perante o Poder Judiciário, a
quem, de maneira imparcial, compete decidir a causa com base em um conjunto de
fatores, que incluem as alegações das partes, o direito vigente, mas também as provas
produzidas nos autos.
Principalmente no que diz respeito aos fundamentos das partes e provas dos
autos, as Advocacias Públicas dependem muitas vezes de informações técnicas que,
dado o gigantismo do Estado de Bem-Estar plasmado da Constituição Federal, se
espraiam por vários órgãos, setores, entes e servidores da Administração, e são, sim,
dificultadas pelo tamanho e necessária burocracia da máquina administrativa.
Esse ponto foi bem destacado por Marco Antônio Rodrigues:
Quanto à supremacia do interesse público, é claro que não se deve entender “que
os interesses estatais devem sempre prevalecer sobre os interesses dos administrados,
mas que o interesse público, definido a partir da ponderação deve prevalecer em certa
atividade concreta sobre interesses isolados, sejam particulares, sejam estatais.”18
17
RODRIGUES, Marco Antonio. A Fazenda Pública no Processo Civil. Atlas. 2. ed., Edição do Kindle, pág.
30.
18
RODRIGUES, Marco Antonio. A Fazenda Pública no Processo Civil. Atlas. 2. ed., Edição do Kindle, pp.
10/11.
A Fazenda Pública, na qualidade de promotora desse interesse público,
obviamente ostenta posição diferenciada das demais pessoas físicas ou jurídicas de
direito privado. E para que ela possa atuar da melhor maneira possível, evitando
condenações injustificáveis que prejudicam toda a coletividade, é preciso que lhes sejam
conferidas as condições suficientes para tanto.
No entanto, concordamos com Marco Antônio Rodrigues que é necessária a
análise individualizada dos benefícios processuais concedidos à Fazenda Pública para
verificar sua compatibilidade com os direitos fundamentais processuais.19
19
RODRIGUES, Marco Antonio. Op. cit., pág. 31.