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Texto 1 – Transformações sociais na modernidade

Olga Magano (2010), Tracejar vidas «normais»: estudo qualitativo sobre a


integração social de indivíduos de origem cigana na sociedade portuguesa, Lisboa,
Universidade Aberta, Tese de doutoramento em Sociologia, adaptação capítulo 1,
21-29

1. Transformações sociais da modernidade

Todas as sociedades se situam num determinado tempo histórico e social


bem como num contexto geopolítico. A conciliação desses aspectos contribui para
a configuração de uma época societal, concretizada num contexto social em que
os indivíduos se movimentam e fazem aprendizagens para a vida em sociedade,
incorporadas ao longo do processo de socialização. Deste modo, para
compreender os fenómenos sociais é preciso conhecer a sociedade em que os
indivíduos se movimentam.

Neste trabalho sobre percursos de integração de indivíduos de origem cigana


em Portugal, torna-se necessário contextualizar os indivíduos no meio social
envolvente, enquadrando a questão social e sociológica no desenvolvimento
histórico da sociedade. Para isso, interessa ter em conta as transformações sociais
induzidas pela modernidade que modificaram os esquemas tradicionais de
sociedade e conduziram a novas configurações individuais e grupais.

A modernidade caracteriza-se por transformações sociais várias, traduzidas


numa mudança radical da relação entre o indivíduo e a sociedade (Elias, 1989
[1939], 2004 [1987]; Kaufmann, 2003; Lahire, 2005) em relação às sociedades
tradicionais em que cada fase da vida estava muito determinada (a infância, os
ritos de passagem, as profissões que cada um podia desempenhar, o tipo de
casamento, etc.), condicionando o mundo interior que se refere aos sentimentos, à

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interpretação que se faz do mundo, aos valores de referência e à identidade
(Berger e Luckmann, 2004).

Nas sociedades tradicionais valorizava-se os símbolos por significado de


experiência de gerações anteriores, contribuindo para preservar a memória
colectiva. Neste sentido, a tradição, constitui um modo de integrar o controlo da
acção individual na organização espácio-temporal da comunidade pela inserção de
cada actividade ou experiência particular na comunidade de passado, presente e
futuro, com práticas sociais recorrentes, numa coincidência quase perfeita entre o
espaço e o lugar, dado que as dimensões espaciais da vida social são, para a maior
parte da população, em muitos aspectos, dominados pela presença e pelas
actividades localizadas (Giddens, 1990).

Diferentemente, nas sociedades modernas, o espaço e o tempo diferenciam-


se da prática da vida quotidiana, deixam de ser aspectos interligados e
dificilmente distinguíveis da experiência vivida, presos a uma estável e
aparentemente invulnerável correspondência biunívoca (Bauman, 2001), podendo
ser teorizados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia
e da acção. A modernidade foi arrancando de modo crescente o espaço ao lugar,
ao promover relações com “outros” ausentes, fisicamente distantes de qualquer
situação de interacção face a face, em que o local passa a ser penetrado e
modelado por influências sociais distantes (Giddens, 1990). Esta transformação
social acontece em simultâneo com enormes avanços científicos e tecnológicos,
novos modelos de urbanização e modos de vida urbanos, difusão da escrita,
individualização, mudanças no modelo económico e a consequente crescente
capacidade de reflexão sobre a vida social. As transformações verificadas foram
intensivas, por alterarem algumas das características mais íntimas e pessoais da
nossa existência quotidiana e extensivas por estabelecerem ligações à escala do
globo, fenómeno designado por globalização. Esta consiste, precisamente, nessa
expansão do modelo societal moderno através do planeta. Por essa via, passam a
ser possíveis ligações rápidas entre diferentes contextos sociais, com

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intensificação de relações sociais em termos mundiais, podendo as ocorrências
num local ser influenciadas por acontecimentos distantes (Giddens, 1990).
Nas sociedades modernas predomina o modelo económico capitalista
assente no desenvolvimento industrial, em conhecimento e inovação tecnológica,
factores que permitiram aumentar a produção de bens e favorecer o consumo,
fomentando a alteração das categorizações dos grupos e dos estatutos sociais
devido à mobilidade simultaneamente espacial e social. Assiste-se também a um
forte crescimento populacional e a movimentos migratórios em que os indivíduos
se concentram sobretudo em aglomerados populacionais perto de cidades,
contribuindo para a mudança de fisionomia nos espaços físicos, com a
generalização de modelos urbanísticos mais ou menos semelhantes,
independentemente do espaço físico ou geográfico onde se formam (Fortuna,
1997).
Outra característica importante das sociedades modernas é o aumento
crescente de informação disponível sobre os vários domínios da vida social que
leva à difusão de saberes que se vão universalizando pela fácil acessibilidade,
principalmente devido aos meios de comunicação de massa. Nos contextos
modernos, as mudanças ocorrem rapidamente e, de um modo geral, em várias
dimensões em simultâneo, sendo particularmente visíveis nas formas de
comunicação que vão desde as diversas modalidades terrestres de mobilidade
geográfica (transportes, vias de comunicação terrestre, aérea e marítima) até às do
desenvolvimento informático (Berger e Luckmann, 2004), nomeadamente
comunicação em rede (Internet) que liga quase instantaneamente diversas partes
do planeta, sendo possível rapidamente aceder a informação sobre locais distantes,
muito para além da sociedade em que se vive.
As rápidas alterações verificadas tiveram impacto nas mentalidades e
criaram nos indivíduos a necessidade de fazer novas aprendizagens que os
capacitem para conhecer e dominar novos códigos simbólicos de leitura da
realidade social e compreensão desta sociedade da informação (Castells, 2003).
Deste modo, para viver segundo as exigências impostas por este novo tipo de

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sociedade, torna-se cada vez mais necessário realizar uma frequência escolar
obrigatória e prolongada, estruturada em vários níveis de ensino, em múltiplas
formações profissionais para satisfazer a necessidade individual de adquirir
informação, mas também para integrar o mercado de trabalho cada vez mais
exigente e diversificado.
A tendência para a universalização da escrita é outra característica
importante da modernidade com a imposição crescente da escolaridade
obrigatória que faz com que exista mais apropriação de conhecimento e possibilita
o exercício de reflexividade sobre a vida social. As práticas sociais passam a ser
examinadas e reformuladas à luz da informação adquirida sobre essas mesmas
práticas, constituindo o que Giddens (1995) designa por capacidade de
reflexividade social que consiste na reflexão do indivíduo sobre a sua sobre acção,
suporte para a tomada de decisões e opções de vida.
O desenvolvimento da modernidade assenta, portanto, na concepção de
liberdade individual para fazer opções culturais o que abre espaço para o
despontar de novas identidades (étnicas, de género, etc.) e novos estilos de vida
heterogéneos – o que Berger e Luckmann designam por “pluralismo moderno”.
Para estes autores, “modernidade significa um aumento quantitativo e qualitativo
de pluralização” (2004:49). A questão da pluralidade cultural relaciona-se
directamente com o poder (económico, social ou simbólico) que não está
equitativamente distribuído e, por isso, contribui para a formação de novas formas
de diferenciação social onde cada grupo social desenvolve estratégias de defesa e
tenta auto-preservar-se impedindo a entrada de elementos exteriores.
Neste contexto de pluralismo, o indivíduo pode movimentar-se e fazer
escolhas (Berger e Luckmann, 2004: 40), ou seja, passa a ser ele “quem escolhe
os laços sociais” (Kaufmann, 2003: 263). A liberdade de escolha a que o
indivíduo passa a ter acesso faz parte das características fluidas da modernidade
ou da tendência para liquidificar o que tradicionalmente era sólido, resistente ao
tempo, com particular incidência para o passado e a tradição (Bauman, 2001).
Para Bauman, os primeiros sólidos a derreter foram as lealdades tradicionais e os

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direitos baseados nos costumes e obrigações, por restringirem iniciativas na
tentativa de “esmagamento da armadura protectora forjada de crenças e lealdades
que permitiam que os sólidos resistissem à liquefação” (2001: 9). Para criar uma
nova ordem social impunha-se o “derreter os sólidos” (p.10), ou seja, a
modernidade exigia a correcção dos “defeitos” tradicionais para a criação de
novos sólidos baseados na racionalidade e nas capacidades do indivíduo.
A expansão da sociedade moderna à escala planetária gera relações entre
centro e periferia traduzidas em diferenciações entre as regiões mais ou menos
industrializadas do mundo (Giraud, 1998). Coexistem países muito avançados
tecnologicamente e ricos com outros caracterizados pela pobreza da sua
população, sem auto-suficiência em termos de produção e de consumo, fazendo
com que se tornem dependentes dos países ricos. Dentro de cada país existem
desigualdades entre os indivíduos do “centro” (mais ricos) e os mais pobres
(“periféricos”).
As desigualdades, seja entre membros de um mesmo país ou entre diferentes
países, têm subjacente o poder que se expressa em relações sociais hierarquizadas.
As sociedades capitalistas são formações ou configurações políticas constituídas
por quatro modos básicos de produção de poder (a família, as relações de
produção económica, a relação entre a esfera pública e o Estado e as relações
económicas internacionais) que, embora inter-relacionados, são estruturalmente
autónomos. Santos (1994), distingue também nas sociedades capitalistas quatro
espaços (que também são tempos) estruturais: o espaço doméstico, o espaço de
produção, o espaço de cidadania e o espaço mundial, constituindo um feixe de
relações sociais paradigmáticas – cada espaço estrutural é um fenómeno complexo
constituído por cinco componentes elementares: uma unidade de prática social,
uma forma institucional privilegiada, um mecanismo de poder, uma forma de
direito e um modo de racionalidade.

“O espaço doméstico é constituído pelas relações sociais (os direitos e os deveres


mútuos). Neste espaço, a unidade de prática social são os sexos e as gerações, a

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forma institucional é o casamento, a família e o parentesco, o mecanismo do
poder é o patriarcado, a forma de juricidade é o direito doméstico (…) e o modo
de racionalidade é a maximização do afecto. O espaço da produção é constituído
pelas relações do processo de trabalho, tanto as relações de produção ao nível da
empresa (…) como as relações na produção entre trabalhadores e entre estes e
todos os que controlam o processo de trabalho. Neste contexto, a unidade de
prática social é a classe, a forma juridicional é a fábrica ou a empresa, o
mecanismo do poder é a exploração, a forma de juridisção é o direito de produção
(…) e o modo de racionalidade é a maximização do lucro. O espaço de cidadania
é constituído pelas relações sociais da esfera pública entre cidadãos e o Estado.
Neste contexto, a unidade de prática social é o indivíduo, a forma institucional é
o Estado, o mecanismo de poder é a dominação, a forma de juricidade é o direito
territorial (…) e o modo de racionalidade é a maximização da lealdade. Por
último, o espaço da mundialidade constitui as relações económicas internacionais
e as relações entre Estados nacionais na medida em que eles integram o sistema
mundial. Neste contexto, a unidade de prática social é a nação, a forma
institucional são as agências, os acordos e os contratos internacionais, o
mecanismo de poder é a troca desigual, a forma de juridicidade é o direito
sistémico (…) e o modo de racionalidade é a maximização da eficácia” (Santos,
1994:112-113).

Esta conceptualização, segundo o autor, apresenta virtualidades analíticas e


teóricas por acrescentar a vantagem de criar vários interfaces entre as
condicionantes estruturais e as acções autónomas, tornar possível regressar ao
indivíduo sem no entanto o fazer de uma forma individualista, repor o espaço
doméstico, colocar a sociedade nacional num espaço mundial concebido como
uma estrutura interna na própria sociedade nacional, ou seja, como matriz
organizadora dos efeitos que as condições de medição exercem sobre cada um dos
espaços estruturais.
Na perspectiva de Norbert Elias (2004), a concepção do indivíduo é social
na medida em que a autonomia do ego ou a consciência de si resulta de uma

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evolução civilizacional que impõe uma forte interiorização do controlo social, da
moral, dos deveres e da obrigação de ser livre que caracterizam a modernidade. A
individualização resulta da interiorização progressiva de normas de conduta, de
capacidade de auto-controlo e de auto-restrição. A diferenciação crescente das
funções sociais e o processo de monopolização do poder legítimo pelo Estado
levam a relações sociais mais densas e complexas aumentando a relação de
dependência funcional de cada indivíduo para com os outros, sendo essa
diversificação de funções que os indivíduos desempenham uns em relação aos
outros o que designamos por “sociedade” (Elias, 2004). Os indivíduos não
existem fora do conjunto de laços concretos e abstractos que os ligam uns aos
outros, assim como a sociedade não existe sem eles, sendo o mundo social um
mundo de relações recíprocas em que o indivíduo e a sociedade só podem ser
compreendidos na sua interdependência. Nestes contextos de mudança, procura-se
assegurar traços unificadores fazendo com que grupos sociais distintos do
dominante ou maioritário sejam, de livre vontade ou pela força, integrados no
modo de produção considerado mais avançado, sofrendo o impacto das alterações
nos modos de vida que isso acarreta.

Durante muito tempo, o poder esteve concentrado naqueles que detinham a


posse de terras. Ser proprietário de terra era elemento fundamental para
caracterizar os grupos sociais e os classificar hierarquicamente, tendo sido mesmo
a principal justificação histórica para partir à conquista de novos territórios. Com
o desenvolvimento social, económico e tecnológico, a posse de terra deixou de ser
factor fundamental para justificar a detenção de poder, sendo substituída
gradualmente pela acumulação de capital económico, base para o
desenvolvimento da sociedade capitalista, levando a que certos atributos
tradicionalmente associados a estratos superiores se fossem universalizando,
mesmo entre as classes trabalhadoras (Elias, 1989).
No que se refere à constituição política, os Estados modernos são nações,
concepção que pressupõe uma concentração de poderes (Giddens, 1990) com

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definição de “fronteiras” terrestres e políticas e constituição de uma estrutura
organizativa assente num aparelho político, em instituições governamentais (como
os tribunais ou um parlamento) cujas autoridades se apoiam num sistema legal e
também em estruturas com capacidade de usar a força para impor as decisões de
um Estado com autonomia (Giddens, 1997).
O projecto sociocultural da modernidade, segundo Boaventura de Sousa
Santos, assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da
emancipação (Santos, 1994). O pilar da regulação é constituído pelo Estado, pelo
princípio de mercado e o princípio de comunidade; e o pilar da emancipação é
constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estética-expressiva
da arte e da literatura, a racionalidade moral-prática da ética e do direito e a
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. Temos vindo a
assistir a um desenvolvimento mais acentuado do pilar da regulação em
detrimento do pilar da emancipação.
Em síntese, a modernidade, produzindo transformações em todas as
dimensões, económica, tecnológica, política, individual, social e cultural é,
simultaneamente, fonte de novas oportunidades e pluralismos e de controlo social
do tipo “jaula de ferro” com o significado de desencantamento do mundo induzido
pela perda de ideais de sentido para a existência. Nos contextos sociais modernos
devido à especialização de saberes, a socialização dos indivíduos encontra-se
exposta a uma variedade de opções podendo produzir diversidade de trajectórias
individuais (Wirth, 1997). As relações interpessoais são mais individualizadas e o
indivíduo surge como uma nova figura social que se desliga da maior parte das
amarras que o prendiam na sociedade tradicional (Giddens, 1990). Ora, a
individualização é a libertação do ego mas é também concomitantemente a sua
regulação coerciva (Foucault, 1994 [1974]) pela “domesticação” como controlo
que o Estado exerce através de processos “subtis e insidiosos”. Segundo Giddens,
o indivíduo encontra-se numa situação de “mistura do risco e da oportunidade”
(1990:103) que abre um campo de oportunidades onde os indivíduos podem

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arriscar, procurando alternativas às regularidades impostas pela burocracia do
sistema, sem descurar a perspectiva dos riscos associados.
A modernidade é, então, o contexto societal em que se situam as estratégias
de integração dos indivíduos e, como tal, de grupos ciganos, categoria social
dominada e excluída precisamente pela rejeição que tem evidenciado da
individualização moderna (Giddens, 1990, Dumont, 1992; Berger e Luckmann,
2004).

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