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Marc-Henry Soulet
Universidade de Friburgo
Seguir tal hipótese requer, no mínimo, questionar o estatuto do laço social subjacente a esta
reorganização da relação entre o indivíduo e a sociedade, objetivo a que se propõe este contributo. Em
primeiro lugar, procurará compreender o que autoriza a emergência de uma leitura renovada do laço
social. Em seguida, buscará trazer à tona a argumentação teórica que fundamenta a concepção
associacionista; então ela se debruçará sobre o que constitui sua pedra angular, ação social individualizada,
mesmo que essa noção permaneça relativamente sem problemas. Por fim, este breve texto concluirá com
uma análise crítica dos pressupostos internos ao modelo teórico de uma sociedade reticular que se
estabelece a partir deste laço social associativo, nomeadamente identificando um conjunto de questões
que, por falta de resposta, põem em causa a admissibilidade de toda essa concepção.
Os tempos estão mudando. São muitas as análises sociológicas que apontam para uma mudança
profunda nas sociedades contemporâneas, há muitas que até identificam
uma mudança de registro deste último. Qualquer que seja o nome que se dê a este movimento de
1
profundidade, as constatações,convergem para uma
leva a questionar mudança
o que na anatureza
constitui naturezadadomudança que nos
estar-junto.
Nanociências e biotecnologias, inteligência artificial e ciências cognitivas, tecnologias de
comunicação e a informatização da vida cotidiana estão de fato criando uma ruptura brutal em
nossa experiência comum concreta. Não apenas as fronteiras entre o real e o virtual, entre o
material e o imaterial estão borradas, mas nossa própria concepção de tempo e espaço está
mudando radicalmente. Ontem, o mundo era carregado por uma espécie de garantidor intra-social
absolutizado, o progresso como futuro radiante, que produziu uma homogeneização simbólica da
sociedade, reforçada por sua territorialização e sua inserção em uma temporalidade social
compartilhada (apesar, em evidência, da existência de micro-tempos sociais secundários).
Assistimos hoje a uma tríplice mutação que reflecte a emergência do heterogéneo como
característica central das sociedades contemporâneas: 1) Uma descoletivização dos efeitos do
progresso. A multiplicação da oferta de mudanças possíveis produz uma pluralização e uma
singularização de comportamentos sociais e estilos de vida. 2) Um a-ritmo da vida social devido à
difração da temporalidade compartilhada em uma série de temporalidades setoriais paralelas. 3)
Uma desterritorialização dos espaços sociais levando a um duplo fenômeno, aparentemente
contraditório, de reticularização e comunautarização dos agrupamentos sociais. Esses três
fenômenos produzem, para usar a expressão de Anthony Giddens, um triplo desengajamento em
relação ao tempo, ao espaço e à própria comunidade.
É fácil entender quando o questionamento sociológico muda diante dessa mudança nas
mudanças tecnológicas e sociais. Do duplo propósito de desvendar o sentido da mudança e de
analisar a resistência a ela, passamos à compreensão de um comum que integra e respeita as
diferenças observáveis, mantendo sua capacidade de constituir uma sociedade. Em outras
palavras, o trabalho sociológico se empenha em pensar essa recomposição do laço social
envolvendo a diferenciação, a autonomia e o mundo comum.
Aqui, novamente, observa-se uma forte convergência de análises, apesar de sua diversidade
intrínseca, mesmo de suas divergências internas: a da hipótese de uma modificação estrutural do
estar junto e a emergência de um novo modelo sociocultural marcado por um individualismo
normativo e por uma concepção de sociedade que exacerba a relatividade das ações praticadas e
os padrões para julgá-las, como evidenciado, cada um a seu modo, por um lado, pelo considerável
desenvolvimento das noções de risco e confiança nas ciências sociais contemporâneas, por outro,
a importantíssima recepção da ideia de modernidade tardia ou modernidade reflexiva. Este modelo
sociocultural caracteriza-se por uma desestabilização dos referenciais sociais aumentando a
incerteza dos membros sobre a sua identidade. O indivíduo se vê, em tal configuração, forçado a
continuamente re-conceituar sua relação com o mundo.
1. Cf. entre outras as noções de supermodernidade para Georges Balandier, de hipermodernidade para Gilles Lipovetsky, de
modernidade avançada para Anthony Giddens, de segunda modernidade para Ulrich Beck, de sociedade de hipertexto para François
Ascher, de sociedade de fluxo para Andrea Semprini... BALANDIER G , Civilized, dizem eles, Paris, Presses universitaires de
France, 2000 – LIPOVETSKY G., Les Temps hypermodernes, Paris, Éditions Bernard Grasset, 2004 – GIDDENS A., Modernity and
Self-identity. Self and Society in the Late Modern Age, Cambridge, Polity Press, 1991 – BECK U., "O conflito de duas modernidades
e a questão do desaparecimento da solidariedade" em Lien social et politiques, n°39, 1998 – ASCHER F. , Esses eventos estão
além de nós, vamos fingir que somos os organizadores. Ensaio sobre a sociedade contemporânea, La Tour d'Aigues, Éditions de
l'Aube, 2000 - SEMPRINI A., La Société de flux, Paris, Éditions L'Harmattan, 2003.
- Em primeiro lugar, uma transformação social resultando na multiplicação das relações sociais
e na diversificação das experiências biográficas. Por um lado, as relações sociais estão se tornando
cada vez mais eletivas e cada vez mais reversíveis. Laços fracos, menos densos, mas mais numerosos,
2
tecer uma rede de pertença não vinculativa e substituir os laços fortes e herdados por uma rede de ,
forte qualidade de sociabilidade (na ausência de solidariedade?) como procura ilustrar a metáfora do
tecido, sólido embora/porque tecido a partir de um grande número de fios em si ainda frágeis. “Esta
nova solidariedade é assim constituída por laços fracos, mesmo frágeis, mutáveis e diversificados,
mas numerosos e largamente escolhidos (eletivos), que associam os indivíduos a filiações sociais
igualmente múltiplas, numa sociedade aberta (não convexa)”.
3
Por outro lado, a identidade dos membros é vista como plural e fluida (e não mais
atribuída nem a uma filiação, nem a uma condição, nem a um status) em conexão com a diversidade
das experiências que o indivíduo tem em o curso de sua existência. Gérard Demuth, o pai dos estilos
sociais, sublinha assim nos mecanismos de formação do ego a importância, para não dizer a presença
contínua, das disjunções na continuidade por causa das muitas mudanças na vida de um indivíduo.
Isso implica, portanto, para ele, a necessidade de orientar sua vida trabalhando sobre si mesmo em
reação aos acontecimentos e mudanças. "Você tem que fazer um esforço constante para permanecer
no jogo, um trabalho de autotransformação, ou seja, de transformação de acordo com a sua natureza."
4
.
2. Esta inscrição eletiva no vínculo, expressão da liberdade individual e preocupação com a autenticidade pessoal, em nada resolve
a questão da fragilidade deste vínculo, pelo contrário. DE SINGLY F., Um com o outro. Quando o individualismo cria um vínculo,
Paris, Éditions Armand Colin, 2003.
3. ASCHER F. & GODARD F., "Rumo a uma terceira solidariedade" in Esprit, vol.11, 1999, p.184. François de Singly desenvolve
uma ideia semelhante. "A multiplicação das filiações gera uma diversidade de vínculos que, tomados um a um, são menos sólidos,
mas que, juntos, mantêm unidos os indivíduos e a sociedade." DE SINGLY F., op. cit., p.22.
4. DEMUTH G., "Do autogoverno à governança global" em HEURGONÉ . & LANDRIEU J., "Nós" e "eu" que inventamos a cidade,
Le Tour d'Aigues, Éditions de l'Aube, 2003. Georges Balandier, por sua vez, enfatiza como "o homem contemporâneo não se
descobre mais estabelecido dentro relacionamentos fortes e duradouros. A mudança, a mudança, a precariedade tornam-se mais
familiares para ele. A novidade, o efêmero, a rápida sucessão de informações, modelos de comportamento, a necessidade de
realizar adaptações frequentes o deixam com a impressão de viver apenas no presente. A gestão de uma existência tende a tornar-
se a dos seus momentos sucessivos." BALANDIER G., "O laço social em questão" in Cahiers internationales de sociologie,
vol.LXXXVI, 1989, p.9.
é dessacralizado "em benefício da simples regulação das relações de mercado, deixando a cada um
o favorecimento de sua própria concepção do bem viver de acordo com seus interesses e valores do
momento". 5 . Nesse sentido, a política é apresentada tanto como uma modalidade de
desenvolvimento de preferências negativas (conforme ilustrado pelo princípio da precaução) quanto
como a criação de oportunidades que permitem a todos assumir o risco máximo em um objetivo
promocional e gratificante (conforme exemplificado pelas políticas de apoio a lógica da capacidade
6
de risco , ).
mas,
"O objetivo
inversamente,
não é permitir
garantirque
quetodos
todosterceirizam
possam assumir
para outros
o máximo
o máximo
de riscos, pois aqui está,
desde toda a eternidade, o princípio da dignidade do homem”.
7
Dessa dupla observação emerge uma representação reticular da sociedade na qual os laços
sociais se fazem pelo entrelaçamento e tecelagem de relações "livres" (isto é, como fins em si
mesmas) amarradas entre indivíduos relacionais. A sociedade não é mais pensada como um vasto
todo pré-existente e constrangedor à maneira de Émile Durkheim, mas é concebida como um
movimento de produção contínua alimentada pela interação voluntária dos indivíduos e se instituindo
a partir deles. A este respeito, é significativo notar, pelo menos para os sociólogos francófonos que
propõem tal leitura do laço social, a referência regular feita a Pierre A mobilização deste sociólogo
8
Vermelho . utópico, promotor da associação como princípio tanto da relações de organização entre os
homens e o governo da comunidade que eles formam, vem complementar o papel central que os
solidaristas tiveram durante a ressonância de uma visão societária do laço social.
Em tal modelo, identifica-se assim um novo tipo de relação entre indivíduo e sociedade, em
que o comum não mais seria estabelecido de cima para baixo, mas construído de baixo para cima a
partir das interações dos indivíduos, de suas próprias tentativas de individuação, de seu próprio
esforço para criar a si mesmos como indivíduos. Essa nova relação é vista como constituindo uma
sociedade de indivíduos individualizados, para usar a expressão de François de Singly. A modernidade
avançada, portanto, coloca o indivíduo em seu centro. No entanto, não há nada de novo aqui.
A "primeira" modernidade fez o mesmo, mas tomou como pivô o indivíduo emancipado, ao passo
que a modernidade contemporânea se apoia mais no indivíduo diferenciado. A distinção feita por
Marcel Gauchet entre, por um lado, uma individualização da personalização que se baseia na
afirmação por uma implicação eletiva contra as obrigações impostas de fora e,
5. LACROIX A., "A mutação da política e da ética na era da globalização" in LAROUCHE JM, Reconhecimento e cidadania. Na
encruzilhada da ética e da política, Sainte-Foy, Presses de l'Université du Québec, 2003, p.99.
6. Para Amartya Sen, a "capacidade" de realizar funcionamentos entre os quais um indivíduo pode escolher para alcançar modos
de vida possíveis está no cerne não apenas de sua liberdade, mas também de seu bem-estar. Daí a importância de lhe permitir
desenvolver todas as "capacidades" que lhe darão a possibilidade potencial de realizar conjuntos de funções que vão desde as
elementares (comer, alojar, gozar de boa saúde, etc.) auto-estima, dignidade, participação na vida comunitária, etc.). SEN A.,
Repensando a desigualdade, Paris, Editions du Seuil, 2000.
7. EWALD F. & KESSLER D., "O casamento do risco e da política" em Le Débat, março-abril de 2000, n°109, p.71.
8. Exumação para a qual muito contribuiu a revista de MAUSS. Ver também a antologia compilada e apresentada por Bruno Viard:
LEROUX P., À la source du socialisme français. Pierre Leroux (1797-1871), Paris, Edições Desclée de Brouwer, 1997.
a outra, uma individualização do desvinculamento que busca uma afirmação pelo desengajamento
9
"onde a exigência de autenticidade se torna antagônica à inclusão em um coletivo",
essa
sublinha
mudança.
bem A
diferenciação pessoal, dentro de uma estrutura mantida de igualdade formal, torna-se então o motor
do ser-na-sociedade. A multiplicação das facetas dos indivíduos, a diversificação das suas vivências
sociais ao longo da vida, a variedade das formas de procura da realização de cada um deles, tudo
isto, longe de acentuar o fosso entre estes indivíduos, permite, pelo contrário, multiplicar as
possibilidades de encontro e conexão tanto na base da afinidade quanto da eletividade.
Compreendemos melhor por que "a atual dinâmica central do 'eu-nós' poderia ser um movimento
paradoxal de reencontro pelo crescimento das diferenças" 10, por que a recomposição social em
funcionamento "partida unicamente do desejo singular dos indivíduos"
11
.
De facto, dois movimentos devem ser mobilizados para fundar esta ideia de sociedade
reticular: por um lado, a procura da autenticidade como princípio de afirmação identitária dos
indivíduos, por outro, o declínio daquilo que constituiu a sociedade, as instituições e o que François
12
Dubet chama de programa institucional. do
Este
eudeclínio
social, bem
dos sistemas
como a desestruturação
de formação e representação
dos controles
sociais, convocam, mais do que permitem, que os indivíduos se conectem e produzam vínculos a
partir de si mesmos em sua busca por serem eles mesmos. "O indivíduo de hoje, postula Roger
Sue, quase totalmente desamarrado, não tem outra escolha a não ser se reconectar, a não ser em
um novo modo."
13
Esta tese de uma desagregação dos laços sociais e políticos obrigando os indivíduos a
assumirem a responsabilidade de “fazer a sociedade” não é, no entanto, tão óbvia quanto parece. A
dupla posição de Marcel Gauchet ilustra bem isso. Por um lado, postula a necessidade de um
vínculo já existente e aceito como tal para o desdobramento da individualização do desvinculamento,
a pré-existência do social para que a personalização seja efetivada. "Porque é o monopólio
conquistado pelo Estado em matéria de estabelecimento e manutenção dos vínculos sociais que dá
14
ao indivíduo a liberdade de não ter que Por
pensar
outro
que
lado,
está
ele
emobserva
sociedade."
que ooque
indivíduo
mais decontemporâneo
perto qualifica
é sua desconexão simbólica do estar-junto tornando-o "o primeiro indivíduo a viver sem saber que
vive em sociedade". “Ele não o ignora, é claro, no sentido superficial em que não o perceberia. Ele o
ignora na medida em que não é organizado no fundo de seu ser pela precedência do social e pela
15
inclusão em uma comunidade.
9. GAUCHET M., "Ensaio em psicologia contemporânea 1. A nova era da personalidade" in Le Débat, n°99, 1998, p.172.
12. DUBET F., The Decline of the Institution, Paris, Editions du Seuil, 2002.
13. SUE R., Reconectando o laço social. Liberdade, igualdade, associação, Paris, Éditions Odile Jacob, 2001, p.97.
14. GAUCHET M., loc. cit., p.173.
15. GAUCHET M., loc. cit., p.178.
comandos emanados de instituições estáveis, mas sempre ditados de fora, porém a posteriori ,
do olhar avaliativo de uma diversidade de alter egos com os quais os indivíduos escolhem entrar
em interação. Não se trata, portanto, do advento triunfante da autonomia libertando os indivíduos
de sua inserção em coletivos, mas da emergência de uma heteronomia fragmentada, sempre
incerta porque os atos e as escolhas individuais desenvolvidas sem guarda-loucas e desprotegidas
são submetidas retroativamente ao tribunal dos pares com quem os indivíduos escolheram entrar
em um relacionamento. A partir daí, a dupla capacidade de reconhecer o outro como interlocutor
e de ser por ele reconhecido como tal é colocada no centro desse dispositivo que deve articular
as aspirações individuais de realização de si e a exigência de reciprocidade na relação. Neste
“espaço ético-político determinado unicamente pelas vontades individuais e seus interesses
imediatos, o reconhecimento do outro torna-se o único meio de traduzir o mérito de seu
16
comportamento” .
18. "Noutras palavras, o indivíduo relacional é também um indivíduo associado, um indivíduo cujo modelo de relação é a associação.
Existe, de facto, uma estreita correspondência entre a importância atribuída à relação e o modelo da associação, como se este
fosse a forma natural ao mesmo tempo que a mais completa da relação. Sabemos bem que o que prevalece em geral na associação
é a relação livre por si mesma. , a relação pela relação serve de base e precede todas as outras considerações." SUE R., op. cit.,
p.105.
Tal configuração do vínculo social não deixa de questionar, sob pena de superestimar as
possibilidades formais, mas também as capacidades reais, dos indivíduos de criar vínculos
sociais e de fazer sociedade a partir de suas únicas iniciativas de relação com os outros. Assim,
Bernard Perret denuncia a ideologia "conectivista" "que pretende avaliar a coesão social pela
medida da densidade das redes" sem levar em conta "a inscrição das relações interindividuais
em vínculos sistêmicos e simbólicos que unem o indivíduo à comunidade como um todo"
19
. Esta crítica a um laço social livremente instituído a partir de
indivíduos relacionais despojados de qualquer carga simbólica que os exceda, por mais relevante
que seja, não questiona, no entanto, desde o interior da concepção de uma sociedade reticular
e de um laço social associacionista, ou seja, dos próprios pressupostos desta modelo teórico –
que, precisamente, gostaria de tentar fazer agora.
Essa forma de agir implica antes de tudo a ideia de um ato individualizado, ou seja,
marcado por formas de ação realizadas por um indivíduo, cujo significado é dado pelo próprio
indivíduo e cujo objeto é ao mesmo tempo ele mesmo e o quadro de ação em que ele atua. O
objetivo dessa ação é (re)construir as condições de possibilidade de ação no mundo e de
estabelecer uma relação de associação com as mesmas diferenças, socialmente aceitas e
expressivas de identidade. Este baixo peso do grupo e das estruturas sociais, embora a priori
algo sociológico , marca de facto o procedimento individualizado de produção desta ação e,
consubstancialmente, a fragilidade deste procedimento. No cerne desse processo individual está
uma forma de "cálculo simbólico" produzindo uma imagem-ação, "esse dispositivo organizador
de um campo de práticas" da vida cotidiana20uma
, que,
base
ao contrário
coletiva, que
do habitus
a tornaconstituiu-se
quase invariante
mais para
em
o indivíduo, evolui e transforma porque não postula outro mediador senão o próprio indivíduo
entre o sentido e a prática.
Essa produção pessoal de sentido que torna compossíveis fragmentos biográficos díspares e
até potencialmente contraditórios refere-se a um processo de subjetivação. Através deste
processo, a experiência torna-se coerente e significativa a partir de um trabalho de articulação e
domínio da heterogeneidade das diferentes dimensões da existência, participando assim
plenamente num trabalho de individuação.
19. PERRET B., Society as a common good, Paris, Éditions Desclée de Brouwer, 2003, p.23.
20. LALIVE D'ÉPINAY C., "Histórias de vida e cotidiano" in Revue suisse de sociologie, n°1, 1983, p.170.
21
de fato, só pode ser social apesar do trabalho de individuação que pode sustentá-la. A "invenção" de .
normas práticas, mencionada acima, por mais simbólica que seja, não deixa de ser eminentemente
social. Por um lado, o indivíduo é duplamente enquadrado pelo peso das estruturas sociais em que
esteve e está inscrito, bem como pelo conjunto de interações sociais em que participou e participa. Por
outro lado, ele extrai sua ação de repertórios sociais de ação para fundar (ou seja, desenvolver tanto
quanto legitimar) o último e buscará constantemente o consentimento de seus contemporâneos como
instituições para tê-lo reconhecido. Antes de mais nada, de fato, em suas próprias condições de
possibilidade, a ação social individuada integra os pesos que se exercem sobre o indivíduo, desenhando
tanto a vertente de suas experiências possíveis quanto as qualidades que ele poderá mobilizar no
processo. ação. A ação social individualizada é, nesse sentido, um emaranhado do biográfico e do
estrutural. Ele articula tanto restrições estruturais resultantes tanto da estrutura social realizada quanto
de contextos de interação co-produzidos, e recursos individuais nascidos de disposições incorporadas,
bem como capital experiencial acumulado. Esses recursos individuais são forjados em relação direta
com os referidos constrangimentos, deles extraem a sua própria existência; eles são limitados e dirigidos
por eles. Mas, ao mesmo tempo, nem tudo é uma questão de determinação estrutural e contingência
interacional. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que esses pesos marcam a magnitude e a natureza
do poder de agir, eles abrem oportunidades e promovem aprendizados que podem ser apreendidos e
atualizados. Permitem, assim, que as lógicas singulares dos atores por eles produzidos e captados em
seu funcionamento possam delinear no campo das possibilidades prováveis que definirão sua
capacidade de gerar e sustentar a ação. Nesse sentido, o constrangimento da ação pelas estruturas
sociais e sua contingência pelas interações vividas criam aberturas para o desdobramento de uma
capacidade de ação singular, mesmo individual, embora social. Além disso, a ação social individuada
pressupõe, em suas condições de realização, um suporte no meio social tanto como recurso e reserva
de experiência de simbolização quanto como instância de validação da admissibilidade das ações
praticadas e do sentido elaborado. "Se nenhuma verdade é mais imposta de fora, se a responsabilidade
pessoal de fazer sua própria verdade é devolvida a todos, explica Danièle Hervieu Léger, eles devem
ter, para arcar com o custo psicológico e social, acesso suficiente a recursos simbólicos, às referências
culturais, aos circuitos de troca que lhe permitem operar e estabilizar com os outros sua montagem de
significado pessoal.
22
A
ação social individualizada é, neste sentido, uma construção social em situação que supõe fortemente
a presença e o suporte de ambientes sociais diferenciados.
O próximo problema consiste, então, em tornar plausível a produção tanto da relação individual
consigo mesmo quanto da relação social com os outros, o que pressupõe a disponibilidade de formas
de regulação social e espaços para colocar o eu em jogo. Para que o trabalho de auto-realização tenha
efeito de realidade, é importante, nesse sentido, ter grades de leitura socialmente testadas que suportem
21. Isso é fortemente lembrado pela tese que postula, de uma perspectiva habermasiana, o fato de que os indivíduos são ao mesmo
tempo produtos e iniciadores da ação. CHÂTEL V., "O vínculo social de ontem a hoje: sobre alguns métodos de integração na
sociedade contemporânea" em PAVAGEAU J. (s/s o dir. de), O vínculo social e a incompletude da modernidade, Paris, Edições L
Harmattan, 1997.
22. Danièle Hervieu-Léger aponta para esse fenômeno ao enfatizar o paradoxo da "recommunautarização" da crença em um
contexto estrutural de individualização da crença. HERVIEU- LÉGER D., A religião em migalhas ou a questão das seitas, Paris,
Éditions Calmann-Lévy, 2001, p.139.
Se, de fato, o vínculo social se estabelece a partir dos comportamentos eletivos propostos
pelos indivíduos em busca de si mesmos, então há que se considerar que está surgindo um novo
tipo de solidariedade, nem comunitária nem societal. Qual seria a base então? Como a capacidade
de ser membro de tal sociedade se manifesta e se materializa? Quais são, de certa forma, as
modalidades de coesão e socialização social em uma configuração societária após o “programa
institucional”? “Se, assim perguntam François Ascher e Francis Godard, os modos de investimento
individual na sociedade são caracterizados pela flexibilidade, ou seja, compromissos fácil e
rapidamente reversíveis, disponibilidade permanente, não investimento, como então produzir
significado coletivo?... Como podem ser criados padrões se os modos dominantes de adaptação
ao mundo consistem em não mais se comprometer e, portanto, em jogar com os padrões como
24
com os preços do mercado de ações? Além disso, se a diferenciação social já não
resulta essencialmente de identidades herdadas que explicam desigualdades estruturais, mas se
torna mais fruto de singularidades que procuram afirmar-se e visam o reconhecimento social, como
então pensar as desigualdades? Que ligações podem ser feitas entre a lógica da diferenciação
individual no cerne de tal modelo sociocultural e o ideal de igualdade das democracias modernas?
Como funciona a produção social das desigualdades nessa diferenciação/realização de
23. Tentei discutir essa questão em uma contribuição recente. SOULET MH, "Vulnerabilidade e integração em uma sociedade de
indivíduos" em CHÂTEL V. & ROY S., La Vulnerabilité sociale, Montreal, Liber, no prelo.
24. ASCHER F. & GODARD F., loc. cit., p.184.
10
pessoas ? Porque é preciso reconhecer que essa produção da sociedade "de baixo" esconde as
desigualdades para se autoinstituir e participar da produção de acordos fundadores de normas
sociais. De fato, os indivíduos são tanto mais capazes de individuação quando há uma sociedade
ao seu redor, ou seja, quando eles se beneficiam de suportes aos quais se agarrar por dentro. E
é um truísmo dizer que a distribuição social do acesso a essas mídias não é igual para todos.
Porque “…para quem não dispõe destes recursos, explica Robert Castel, a exigência de
individualização traduz-se numa perda de estatuto, num regresso à vulnerabilidade e, no limite,
num completo desligamento das filiações coletivas. Sem dúvida, restam indivíduos, mas são
indivíduos superexpostos , e não mais protegidos. Eles estão na linha de frente, de costas para a
parede e sem reservas e são obrigados, como dizem, a "pagar com sua pessoa" .
25
Se, de fato, o que está no cerne dessa ideia de vínculo associativo é o declínio das formas
anteriores de socialização e controle social, cabe então perguntar como o indivíduo relacional se
constitui como um indivíduo emancipado, capaz de orientar. e ajustar-se a outros indivíduos
relacionais. Ou todo o modelo teórico se baseia no postulado de um indivíduo plenamente
constituído, já presente, numa visão neocontratualista da sociedade. Ou, o que me parece ser o
caminho mais plausível, implica uma transferência da formação do indivíduo emancipado,
diferenciado e responsável para... o próprio indivíduo. Se for esse o caso, então a construção do
indivíduo como indivíduo resulta do trabalho produzido pelo próprio indivíduo em sua
experimentação com o mundo social. O indivíduo socializado, tendo sempre que se pensar
conjuntamente como igual e diferente entre os outros, é então pelo menos tanto o produto de sua
própria atividade e das interações que estabelece quanto de uma internalização de modelos já
existentes. Guy Bajoit procura explicitar essa ideia ao afirmar que "a sociedade é um somatório
de indivíduos ligados uns aos outros, que se constroem como suas próprias individualidades por
meio de suas relações, e que, ao mesmo tempo, também produzem a sociedade, que por sua vez
26
oferece-lhes as condições materiais, sociais e culturais para que possam atuar". Essa experiência
25. CASTEL R., "Indivíduos sem apoio" em CHÂTEL V. & SOULET MH, Agindo em situações de vulnerabilidade, Quebec, Les
Presses de l'Université Laval, 2003, p.60. Mas não devemos limitar a questão dos apoios e das desigualdades de acesso aos
mesmos às categorias sociais mais excluídas. A análise da vulnerabilidade social realizada por Vivianne Châtel e do que ela chama
de má-integração busca justamente questionar as fragilidades do individualismo contemporâneo do ponto de vista do não
reconhecimento como sujeito de certos indivíduos, do ponto de vista de uma inclusão acompanhada de um sofrimento social tanto
mais difícil de expressar quanto vivenciado a partir do lugar de membro.
E, para esse tipo de indivíduo, a questão das mídias e do acesso a elas também é nodal. "Nisto a abordagem da vulnerabilidade
social que proponho difere da proposta por Robert Castel porque não se dirige, passo a citar, "a estas silhuetas incertas, às margens
do trabalho e ao limite das formas de 'trocas socialmente consagradas ' mas a silhuetas frágeis, muitas vezes invisíveis porque
parecem integradas e autónomas, mas apenas na aparência. ) do que na fragilidade da busca pela autonomia." CHÂTEL V., "Sobre
o conceito de vulnerabilidade social" em CHÂTEL V. & ROY S., La Vulnerabilité sociale, op. cit.
26. BAJOIT G., Mudança Social. Abordagem sociológica às sociedades ocidentais contemporâneas, Paris, Éditions Armand Colin,
2003, p.14. Guy Bajoit se propõe a explorar essa questão da articulação da individuação e da socialização ao propor considerar o
caráter heurístico de uma entrada na identidade para a sociologia." Para resumir o argumento, podemos dizer: é a prática das
relações sociais que, ao fazer o indivíduo internaliza constrangimentos sociais e significados culturais, gera tensões existenciais
entre as três esferas que compõem sua identidade pessoal; é gerenciando essas tensões existenciais que ele desenvolve sua
capacidade
11
dos outros e de si remete para a ideia de uma socialização por fricção, por ajustamentos
sucessivos, o que não exclui contudo a existência de papéis e normas, simplesmente estes
são objecto de um trabalho de apropriação selectiva. "A noção de "papel adequado" pelo
equilíbrio particular entre os repertórios propostos permite compreender como o indivíduo
individualizado, socializado pela aprendizagem de repertórios, pode permanecer livre... A
mudança reside no fato de que os indivíduos podem ou não manter importante em sua identidade pessoal.
27
Ou eles podem se apoiar nele." Assim, A individuação nas marcas da modernidade tardia
uma dupla obrigação: ser autêntico e ser autoconsciente. No entanto, essa dupla lógica não é
incompatível com a ideia de socialização. Quanto mais o indivíduo é individuado, mais tempo
socializado , que, aliás, Émile Durkheim já havia formulado.28 A individuação aparece neste
sentido como uma nova norma, como um imperativo socialmente prescrito. condicionamento,
mas em experiências enraizadas na transação e na elaboração processual de normas. A
reflexão deve, portanto, centrar-se nos procedimentos emprestados por uma socialização
processual. , uma socialização vazia de conteúdo, que apenas exigiria a ereção do seu próprio
contentor?
Que tipos de mídia social podem participar no apoio a essa socialização? O que é uma
29
"socialização individual" de certa forma?
estar sujeito (a acomodação e distanciamento) e é graças a essa capacidade que (re)constrói a sua identidade pessoal; é para
realizar essa identidade pessoal com, entre, graças a, apesar dos outros que ele concebe lógicas de ação e nelas se engaja; é
envolvendo-se nestas lógicas de ação que ele (re)produz os constrangimentos sociais e os significados culturais, que condicionam
a prática das relações sociais. Assim, ao introduzir o sujeito como instância de mediação entre as estruturas que condicionam as
relações sociais e a lógica de ação dos atores, coloquei o sujeito individual no centro da abordagem sociológica. É, portanto, uma
questão de um paradigma de identidade." BAJOIT G., "Por um paradigma de identidade em sociologia" em SOULET MH, Ser um
indivíduo em uma sociedade de indivíduos, Fribourg, Academic Press Fribourg , no prelo.
12
diferenças afirmadas e numa validação recíproca dos comportamentos postos e dos valores
assumidos (daí a importância das apostas do reconhecimento mas também das lógicas de
sedução sublinhadas por Gilles Lipovetsky). Anteriormente, o indivíduo se construía em um
universo de significados explícitos e socialmente certificados dos quais se apropriava mais ou
menos conscientemente. A emergência deste laço social associativo inscreve-se numa crise do
modelo cultural da modernidade marcada por uma erosão das normas que constituíam, pela
socialização, as estruturas congruentes e estáveis do pensamento e da ação em sociedade. Mas
se não pode mais se basear em processos socialmente reconhecidos, a confiança na continuidade
da própria identidade, graças à constância do significado e da existência dos ambientes materiais
e sociais, deve ser conquistada por mecanismos mútuos significativamente coordenados. Neste
caso, a regulação social é baseada em acordos localizados
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apego circunstancial e provisório a transcendências, elas próprias relativas às quais os ,
indivíduos se referem segundo a natureza dos acordos em jogo.Um tema central de reflexão
torna-se, portanto, a compreensão dos procedimentos dos acordos intersubjetivos e sua
cristalização para permitir ação e projeção.
Então, a própria ideia de relações eletivas consagra a extensão da reflexividade ao
indivíduo para que ele se estabeleça, se mantenha e se regule como sujeito em um contexto de
indeterminação de fins últimos e obrigação de dar um sentido próprio. curso. Neste sentido, o
indivíduo é aqui pelo menos tão incerto quanto incerto e, para agir, necessita, tanto mais, de uma
representação constantemente renovada de si mesmo e da sociedade, o que leva François
Ascher a falar de uma solidariedade reflexiva qualificar o que está na base desse laço social
associativo .é incorporado em lógicas atomizadas de ação. Em outras palavras, como nos
socializamos ou nos socializamos no exercício da reflexividade, mas também como essas
próprias práticas reflexivas são objeto de uma meta-reflexividade?
Terá sido entendido que o objetivo desta contribuição foi lançar para o papel as primeiras
questões sobre um modelo de análise das mudanças contemporâneas nos laços sociais, modelo
que hoje ocupa um lugar crescente no campo científico. Tão grande é o mérito deste último de
prolongar a reflexão sociológica ao mesmo tempo que convida à sua renovação, o fato é que, por
falta, por enquanto, de tematizar os fundamentos sobre os quais ela repousa, ele não apenas
executa uma grande risco de enfraquecimento interno, mas também se expõe a não poder
responder às objeções que lhe são dirigidas de fora.
30. Para usar uma expressão de Philippe Corcuff que este autor explica como uma noção-problema "tentando superar a oposição
entre a transcendência (o que transcenderia, excederia a existência humana em algo maior) e a relatividade (o caráter relativo,
histórica, social, culturalmente, etc. dos seres humanos que compõem as sociedades humanas), integrando suas respectivas
parcelas de verdade Transcendências que não teriam um caráter absoluto, e que integrariam uma fragilidade. Valores que viriam de
nosso mundo terreno, mas que funcionariam como marcos , um pouco acima de nossas cabeças, ajudando-nos a nos orientar.
CORCUFF Ph., The Glass Company. Por uma ética da fragilidade, Paris, Éditions Armand Colin, 2002, p.9.
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Certamente, a ideia de relações sociais múltiplas que se articulam de forma eletiva entre
indivíduos, formalmente iguais mas socialmente diferenciados, a fim de prosseguirem em sua
busca de afirmação identitária e de autorrealização autêntica, e que estão a cargo da instituição
do laço social contemporâneo e, portanto, da produção de uma sociedade em rede, é atraente
para nós. Claro que a representação de um sujeito relacional, livre para escolher as suas
filiações (e revogá-las) e autónomo, ou quase, para a fixação dos padrões a que pretende
atrelar os seus comportamentos, ecoa, em parte, com a experiência do mundo social que temos
ou, pelo menos, que gostaríamos de ter. Certamente, a imagem de uma sociedade que não
seria essa totalidade sui generis que se impõe de fora e que constrange nossas aspirações e
nossas iniciativas, mas que, ao contrário, seria o resultado de ações e interações que ,
semelhantes e ao mesmo tempo diferentes, desenvolvem-se livremente, e que não impediriam
nossa realização pessoal, mas sim a apoiariam, é eminentemente solidário conosco.
O fato é que há uma boa chance de que esse modelo societário permaneça no estágio
de uma utopia teórica suave se não enfrentar uma série de questões que, se talvez tenham
sido forjadas dentro de outro paradigma de sociedade, ainda assim permanecem pedras
angulares de análise sociológica. Enquanto a articulação entre trabalho de individuação e
trabalho de socialização não tiver sido explicitada neste modelo de produção da sociedade a
partir de baixo, enquanto a noção de ação social individuada, ou qualquer outra denominação
que não aquela que preferiremos designar o que, embora latente em tal concepção, está no
princípio da livre associação do indivíduo com seus pares, não terá sido problematizado,
enquanto a racionalidade prudencial que opera na formação de acordos locais e detalhados não
for têm sido vinculados a uma explicação da constituição de transcendências relativas que
servem como recursos de certeza e legitimidade para os comportamentos eletivos do indivíduo
relacional, tanto que os mecanismos de auto-reconhecimento recíproco e do outro como membro
significativo e efetivo em para estabelecer um comum minimamente e temporariamente
compartilhado não tenha sido atualizado, então a utilidade de tal concepção corre o risco de
estar bem estabelecida. Quão grandes são os perigos que corre, de se tornar a ideologia dos tempos hipermod