Você está na página 1de 8

Graciliano Ramos – A PEÇA

CENA 1

(Escuridão – Luz reflete a sombra de Sarah)

Sarah entra contra a luz cantando, apenas voz.

Se a gente lembra só por lembrar


O amor que a gente um dia perdeu
Saudade inté que assim é bom
Pro cabra se convencer
Que é feliz sem saber
Pois não sofreu

Porém se a gente vive a sonhar


Com alguém que se deseja rever
Saudade, entonce, aí é ruim
Eu tiro isso por mim
Que vivo doido a sofrer

CENA 2

Após a música, entra em direção ao caixão, José Lins do Rego, um dos melhores amigos de
Graciliano, com um caderno numa das mãos e uma garrafa de bebida na outra, e um dos
bolsos o cigarro Selma.

José

Lá se despede, um doido alucinado, um maluco sensacional. Veja-se, nascia em 1892, em


Quebrangulo no Alagoas. (José conversa com a plateia.)

José se aproxima do caixão, e apoia todos os objetos.

José

1,75, era a sua altura, calçava 41, vestia o nº 39. Preferia não andar, Odiava vizinhos, Detestava
rádio, telefone e campainhas, tem pavor ás pessoas que falam alto, usava óculos, meio calvo.

José toma a bebida.

José
Não tinha preferência por nenhuma comida, muito menos gostava de frutas e doces.
Indiferente à música. Sua leitura predileta era a Bíblia, mas era ateu.

José bebe novamente

José: Quando tinha 34 anos, escrevia Caetés. Mas não tinha preferência a nenhum dos seus
publicáveis. Gosta de aguardente. Indiferente à academia. Odeia a Burguesia, adorava
crianças.

José bebe novamente e oferece ás damas a sua frente.

José

Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis,
Jorge Amado, eu José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Gosta de palavrões escritos e falados. Deseja morte do capitalismo, escreveu todos os seus
livros pela manhã.

José

Eu, grande entusiasta do Clube de Regatas Flamengo, ele grande fã do Sport Clube Corinthians
Paulista.

(Flamengo tocaria o hino // SCCP também)

José

Fuma cigarros “Selma”, três marços por dia. E não é à toa que morreu de câncer de pulmão.

José puxa um cigarro e oferece novamente ás damas.

José

É inspetor de ensino, trabalha no “Correio da Manhã”, apesar de o acharem pessimista,


discorda de tudo.

José

Só tem cinco ternos de roupa, estragados. Refaz seus romances várias vezes.

José rir ao falar das considerações finais.


José

Esteve preso duas vezes. É-lhe indiferente estar preso ou solto.

José

Escreve à mão. Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
(Fui amigo dele observem)

José

Tem poucas dívidas. Foi prefeito de Palmeira dos Índios, quando prefeito de uma cidade do
interior, soltava os presos para construírem estradas.

Espera morrer com 57 anos, mas morre aos 61 anos, vítima de câncer de pulmão, acho que
ficou claro como.

José sai de cena. (Após breve pausa, Graciliano se levanta do meio da plateia e começa a falar)

CENA 3

Após breve pausa, Graciliano se levanta do meio da plateia e começa a falar

Graciliano

Os senhores estão em meu funeral. Repleto de pessoas que nem conheço. Que atrevimento!

Graciliano se direciona até o centro do palco.

Graciliano

Porém, não estamos aqui nesta tarde para bisbilhotar tal acontecimento.

Estou aqui não somente para contar-lhes minha história, todavia a história da parcela do
Brasil, particularmente do Nordeste e das mazelas que lhe ocorrem até os tempos hodiernos.

(Graciliano é interrompido pelo entrevistador que sai da plateia)


Graciliano

Mas que merda é essa – Voz baixa

Entrevistador

Um momento, senhor Graciliano, sei que esse é o seu funeral e tal, mas será que poderia me
conceder uma entrevista, sou uma estudante de jornalismo isso seria incrível pro meu
currículo.

Graciliano

Claro, não há muito o que se fazer no pós morte.

Entrevistador

Então, por favor sente-se. Sabe sou uma grande fã, já li todos os seus livros, sempre sonhei em
te conhecer.

Graciliano

Logo eu? Um humano tão chinfrim?

Entrevistador

Sim, o senhor! Mas bem vamos começar, eu gostaria de saber um pouco mais da sua infância…

Graciliano

Mas isso tudo está contado no meu livro ‘Infância’. Valeria a pena repetir?

Entrevistador
Claro, tive algumas dúvidas durante a leitura, e não há nada melhor do que ouvir direito da
fonte!

Graciliano
Meus pais são seu Sebastião e Dona Maria Amélia, tive quinze irmãos
(Leonor, Otília, Clodoaldo (I), Otacília, Clodoaldo (II), Amália, Anália, Marili, Carmem (I), Carme
m (II), Clélia, Lígia, Vanda, Clóvis, Heitor.) sendo o mais filho mais velho.
Graciliano
O mais velho filho de comerciantes, da minha cidade natal, em Quebrangulo não guardo a
menor lembrança e talvez não sei porque guardaria, pois saí de lá com um ano.

Graciliano

(Hino de Buíque – PE ao fundo)

(“Oh! Buíque coberto de glória


Teus filhos desejam te exaltar
Porque fazem parte da tua história
Motivo de sempre te amar.”)

Criei-me em Buíque, zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco, para onde, a


conselho de minha avó, meu pai se transferiu com a família.

Graciliano
Então, pude me dedicar aos estudos e assim acabei descobrindo o amor pelas letras, acredita
que publiquei meu primeiro conto com 11 anos de idade?

Graciliano
(Ao fundo instrumental – “Aquele Abraço- Gilberto Gil” para representar o Rio de Janeiro.)
Um pouco mais tarde passei a produzir textos já no Rio de Janeiro, os quais assinava sob o
pseudônimo Feliciano Olivença por conta da minha falta de idade.
Cheguei até a trabalhar em jornais como Correio da Manhã, O Século e A Tarde, além dos
meus próprios literárias, além de ensinar português.

Entrevistador
De acordo com algumas pesquisas que realizei, o senhor ocupou cargos públicos, entre eles ser
prefeito de Palmeiras dos índios. Como foi que chegou a prefeito da cidade?

Graciliano
Assassinaram o meu antecessor. Escolheram-me por acaso. Fui eleito, naquele velho sistema
das atas falsas, os defuntos votando, o sistema no Brasil anterior a 1930, e fiquei vinte e sete
meses na prefeitura.
Entrevistador
Consta que, como prefeito soltava os presos para que fossem abrir estradas.

Graciliano
Não era bem isso. Prendia os vagabundos, obrigava-os a trabalhar. E consegui fazer, no
município de Palmeira dos Índios, um pedaço de estrada e uma terraplenagem difícil.

Entrevistador
Tive conhecimento dos relatórios do prefeito ao governador do Estado, dando contas de sua
administração, não é?

Graciliano

O primeiro teve repercussão que me surpreendeu pra caralho, essa merda, foi comentado no
Brasil inteiro. Houve jornais que o transcreveram integralmente.

Graciliano

Apenas, como a linguagem não era a habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e
porque neles eu dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. A
culpa não é minha se analfabetismo mata os rebanhos.

Entrevistador rir e se desculpa.

CENA 4

Entrevistador

Bom, agora quanto á sua vida amorosa?

Graciliano

Bem, cheguei a me casar duas vezes.

A minha primeira esposa, Maria Augusta, foi um amor rápido, ela tinha apenas 19 anos e eu
tinha 23.

(Ao fundo “Pensando em Você – Paulinho Moska)

“Eu estou pensando em você

Pensando em nunca mais

Pensar em te esquecer
Quando penso em você

É quando não me sinto só”

Graciliano

Um amor de jovem, paixão ardente uma pluma de sentimento mutuo, morreu após dar à luz
ao meu quarto filho aos 26 anos.

Graciliano

Me deixando só e com bastardos a criar, o Márcio, Júnio, Múcio e Maria Augusta

Ela como aquela frase “Estou pensando em você, pensando em nunca mais te esquecer”.

Entrevistador

E a sua segunda esposa?

Graciliano

(Um amor puro – Djavan)

“O que há dentro do meu coração

Eu tenho guardado pra te dar

E todas as horas que o tempo

Tem pra me conceder

São tuas até morrer”

Heloísa Medeiros Ramos, conheci ela, onze anos após a morte precoce da minha Maria. Esse
(palavrão) de amor é (palavrão), é um bicho que te pica e faz você se apaixonar novamente,
mas acho que Heloísa foi outro amor puro da minha vida.

Graciliano

A diferença de idade não foi um problema, 18 anos é essa diferença. Era uma moça jovem com
seus 18 anos em sua plena mocidade e um senhor capenga bem vestido com seus 36 anos e
seus 4 filhos. Com ela tive mais quatro filhos, Ricardo, Roberto, Luiza e Clara.

Morri com ela ao meu lado e agradeço por isso.


Entrevistador chama Graciliano após ele se perder em suas memorias.

Entrevistador

A sua obra de ficção é autobiográfica?

Graciliano

Nunca pude sair de mim mesmo.

Só posso escrever o que sou. E se os personagens se comportarem de modos diferente, é


porque não sou um só. Em determinadas condições, procederia como esta ou aquela das
minhas personagens.
Entrevistador
Sobre o movimento Modernista, qual a impressão que lhe permanece acerca dele?
Graciliano
Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os
modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma
coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.
Entrevistador
Quer dizer que não se considera modernista?
Graciliano
Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em
Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.
Entrevistador
Já quero agradecer pela disponibilidade para conceder essa conversa!
Graciliano
Não é necessária tanta gratulação. Pode ir.
Entrevistador
Até logo!

Entrevistador sai com animação explícita e Graciliano permanece com a cara séria e olhar fixo
ao público.

Você também pode gostar