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Teorias do Jornalismo:

fundamentos, história e conceitos


Marco Bonetti

Niterói: Agosto de 2023

Teorias do jornalismo: fundamentos, história e conceitos

Copyleft @ 2023 Marco Antonio de Carvalho Bonetti

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Contato com o autor pode ser estabelecido pelo e-mail marco_bonetti@id.uff.br

Release date: Agosto 16, 2023 [eBook]


Language: Português

SUMÁRIO
Prefácio por Marco Schneider ………………………………………………………………. 3
Introdução…………………………………………………….……………………………… 5
A invenção burocrática das teorias do jornalismo no Brasil ………………………………… 5

UNIDADE 1 – Fundamentos do jornalismo ……………………………………………….… 7


1. Estabelecendo um conceito de jornalismo ………………………………………………… 7
1.1 Primeiro sobrevoo panorâmico …………………………………………………………... 7
1.2 Uma definição teórica de jornalismo …………………………………………………….. 11
1.3 Outra periodização do jornalismo ……………………………………………………….. 13

UNIDADE 2 – A história do jornalismo no Brasil …………………………………………. 16


2.1—Um começo para essa história ………………………………………………………… 16
2.2—A ignorância como técnica de governo até 1808
e o surgimento de um jornalismo áulico ……………………………………………………. 17
2.3 – O complexo relacionamento entre o jornalismo da Independência e a liberdade ……. 18
2.4 – Novo ciclo de liberdade até 1840 ………………………………………………………. 20
2.5 – O jornalismo se aliena da disputa política e se torna cultura ………………………….. 21
2.6 – Jornalismo industrial do século XX …………………………………………………… 23
2.7 – Estabelecimento do jornalismo empresarial ……………………………………………. 25

1
2.8 – A imprensa operária ………………………………………………….…………………. 27
2.9 – A formação do oligopólio e as
duas interrupções da liberdade de empresa: 1937 e 1964 …….…………………………… 28
2.10 – O fenômeno crítico e alternativo ………………………………………………….… 32

UNIDADE 3 – Teorias administrativas do jornalismo ……………………………………. 35


3.1 Um começo para essa história………………………………………………….………. 35
3.2 – Teorias administrativas ………………………………………………….……………. 39
3.3 – As primeiras escolas ………………………………………………….………………. 41
3.4 – Outras teorias administrativas ………………………………………………….…….. 46
3.5 – Estudos de longo prazo ………………………………………………….…………… 48
3.6 – Agenda-setting ………………………………………………….……………………. 50
3.7 – Estudos do emissor ………………………………………………….…………………. 53
3.8 – Gatekeeper ………………………………………………….…………………………. 55
3.9 – Newsmaking ………………………………………………….……………………… 58

UNIDADE 4 – Para entender a transição concreta entre teorias administrativas e teorias


transformadoras do jornalismo
4.1 – Introdução às teorias transformadoras, histórico-críticas:
as ontologias do presente ………………………………………………….………………. 62
4.2 – A dimensão individual do problema do Iluminismo (Aufklärung) …………………… 63
4.3 – Mutação estrutural da subjetividade decorrente do surgimento da
individualidade ética iluminista ………………………….………………………………… 67
4.4 – Ideias e seu lugar ………………………………………………….………………….. 75
4.5 – A cilada do Iluminismo instrumental ………………………………………………… 80

UNIDADE 5………………………………………………….…………………………….. 85
5.1 – As teorias transformadoras do jornalismo ……………………………………………. 85
5.2 – Pensamento alemão ………………………………………………….……………….. 85
5.2.1 – Adorno ………………………………………………….………………………….. 90
5.2.2 – Benjamin ………………………………………………….……………………….. 94
5.2.3 – Marcuse ………………………………………………….………………………… 100
5.2.4 – Brecht ………………………………………………….……………………………102
5.2.5 – Kracauer ………………………………………………….………………………. 105
5.2.6 – Arnheim ………………………………………………….……………………….. 108
5.2.7 – Klemperer ………………………………………………….……………………... 111
5.3 – Pensamento francês ….………………………………………….…………………… 113
5.3.1 – Morin ………………………………………………….…………………………... 116
5.3.2 – Althusser ………………………………………………….……………………….. 119
5.3.3 – Guy Debord ………………………………………………….…………………….. 120
5.3.4 – Foucault ………………………………………………….………………………... 121
5.4 – Estudos culturais ………………………………………………….…………………. 122
5.4.1 - Castells ………………………………………………….………………………… 124
5.4.2 - Martin Barbero ………………………………………………….………………… 127
5.5 – Economia Política da Comunicação e teorias contemporâneas ……………………... 129

UNIDADE 6 – A título de conclusão, o jornalismo é seu conceito..………………………. 130


UNIDADE 7 – Bibliografia …………………………………….…………………………. 136

2
Prefácio
Por Marco Schneider1
Rio de Janeiro, 17 de outubro de 2023.

Inicio a apresentação deste livro de Marco Bonetti no mesmo espírito dialético do autor,
contradizendo uma apreciação do mesmo que lemos logo na Introdução, quando ele afirma não ter
nenhuma pretensão de originalidade. Engana-se, ao menos em parte. Se, por um lado, a síntese
didática que efetua de diversas teorias da comunicação e do jornalismo, principalmente com base
em Mauro Wolf e Armand e Michele Mattelart, não é, de fato, propriamente original, a
reestruturação proposta de suas relações e fundamentos, calcada numa abordagem histórico
dialética e ao mesmo tempo inspirada no método expositivo da Fenomenologia do Espírito, de
Hegel, com sua escala ascendente de figuras, pode ser tudo, menos não original.
Destaque-se nessa reestruturação dois pontos: 1) a releitura, reagrupamento e ressignificação
da oposição teorias administrativas e teorias críticas em novos termos: teorias administrativas e
teorias transformadoras; 2) a articulação da reflexão de fundo com a história do jornalismo,
particularmente do jornalismo brasileiro, devidamente contextualizado na história social, política,
econômica e cultural do Brasil.
Jornalista, filósofo e professor, o autor conduz a empreitada munido do cabedal teórico e
vivencial necessário para debater com propriedade questões centrais do jornalismo, começando pela
da objetividade – cuja possibilidade advoga com base em postulados da Crítica da Razão Pura, de
Kant –, que envolve simultaneamente problemas de ordem ética (mentira, viés, omissão etc.),
epistemológica (é possível conhecer e representar a realidade tal qual ela é?), e política, dado o
impacto potencial do jornalismo nas relações de poder, sejam macro ou micro poderes. Aliás, a
dimensão política do jornalismo é trabalhada em dois eixos articulados: como 1) fio condutor da
narrativa historiográfica presente no livro, que inclui uma história panorâmica do jornalismo, com
destaque para o Brasil – tendo como referência principal Werneck Sodré –, e como 2) elemento
chave na diferenciação das teorias e práticas jornalísticas do tipo administrativo daquelas do tipo
transformador. A contradição entre ambas é mesmo constitutiva do próprio jornalismo enquanto
rebento do iluminismo – ideia que Bonetti recupera de Habermas e Ciro Marcondes Filho –, desde o
princípio tensionado dialeticamente pela disputa entre uma razão emancipatória e uma razão
instrumental de dominação, expressões intelectuais da luta de classes.
Cabe também destacar que o autor, em sua análise histórica das teorias e práticas
jornalísticas, tem o cuidado de evitar dicotomias simplórias no trato dessa contradição do
iluminismo em geral e do jornalismo em particular, recorrendo com ousadia à distinção de Foucault
entre uma analítica da verdade e uma ontologia do presente. Assim as teorias administrativas
operariam uma espécie de analítica da verdade, enquanto as teorias transformadoras se ocupariam
de uma ontologia do presente. Nos termos de Bonetti: “As teorias administrativas do jornalismo são
analíticas da verdade do fazer jornalístico, consideram as massas incapazes de tomada de decisão
autônoma [...], portanto, dependentes de heterodirecionamento fornecido pelo jornalismo para o
bem de todos. As teorias transformadoras do jornalismo são ontologias do presente, denunciam o
fato de as massas estarem sendo manipuladas a partir de interesses de um grupo específico detentor
de poder político e econômico e convocam forças revolucionárias para transformar esta situação”.
A relação subjetividade / objetividade que inaugura o debate é retomada nesse momento à
luz dos estudos de Foucault sobre a história da subjetividade, nas obras A Hermenêutica do Sujeito
e O Governo de si e dos outros, que Bonetti apresenta de modo sintético e com o didatismo
1 Pesquisador titular do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). Professor associado do
departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF-Niterói-RJ). Professor do quadro
permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - PPGCI-Ibict/ECO-UFRJ e do Programa de
Pós-Graduação Mídia e Cotidiano - PPGMC-UFF. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São
Paulo (ECA-USP-2008).

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necessário, sem, por assim dizer, perder a mão, sem tornar a exposição rala. Esse diálogo com
Foucault não é de modo algum uma demonstração gratuita de erudição, mas uma rica
fundamentação teórica da história da heteronomia e controle das massas desde o colapso da polis
grega, que culminará no jornalismo administrativo e suas teorias, que desta feita se mostram numa
nova perspectiva. Além disso, o leitor é brindado nesse momento com uma breve mas precisa
exposição sobre a ética kantiana e seus limites, superados por Hegel e Marx, que buscam articular
autonomia racional individual, coletividade e ação, que é afinal onde a eticidade se decide: “Como
enunciou Marx, os filósofos já explicaram o mundo, agora é preciso transformá-lo. O filósofo que
explicou foi Hegel. O processo de transformação depende de sujeitos autônomos que atuem no
rumo de desenvolvimento da história de modo a que ela se aproxime da idealidade racional”.
Pouco depois, Bonetti articula as reflexões precedentes com a diferenciação entre jornalismo
administrativo e transformador. Na sequência imediata, traz de novo ao proscênio o Brasil, em
diálogo com texto clássico de Roberto Schwarz, As ideias fora de lugar, e conclui sua crítica de
inspiração hegeliana ao Iluminismo – que também inspirou a Dialética do Esclarecimento, de
Adorno e Horkheimer, obra igualmente presente no argumento de Bonetti – nos seguintes termos:
“O problema com o qual nos deparamos é que o próprio Iluminismo caiu numa dupla cilada por
causa do grau de abstração com que abordou a racionalidade. Por um lado, como conjunto de ideias
abstratas, ele pode ser utilizado para transformar o mundo ou igualmente poder não servir para
nada. Veremos que esse foi justamente o caso do Iluminismo brasileiro que funcionou como um
sistema de ideias fora do lugar. Por outro lado, dado o grau de plasticidade do cálculo racional
abstrato, pode gerar sistemas teóricos analíticos da verdade que sirvam para manter inalterado o
sistema de desigualdades ou até mesmo que agrave o sistema de exploração, configurando uma
racionalidade instrumental que aperfeiçoa os dispositivos de controle tradicionais utilizando como
meios a própria comunicação social e o jornalismo administrativo”.
Na segunda parte do livro Marco Bonetti explora a possibilidade de empregar a lente teórica
da crítica estética de Adorno, Benjamin, Krakauer e Arnheim ao cinema, bem como a leitura da
teoria do conceito, de Hegel, por Marcuse, para lançar novas luzes sobre a dialética do jornalismo,
mais uma vez no compasso da oposição entre teorias administrativas e transformadoras. Na
sequência sumária o pensamento crítico francês em Comunicação, além da contribuição dos
Estudos Culturais e da economia Política da Comunicação para as Teorias Transformadoras do
jornalismo.
O valor fundamental da ética como um todo, e da ética jornalística em particular, é a
liberdade. É princípio e fim dos demais valores, pois é condição para seja o que for que se deseje e
sem liberdade nem se pode valorar. Mas a contradição entre liberdade negativa, ausência de freios
externos, e liberdade positiva, poder de se realizar, é incontornável, em termos formais e sócio
históricos. Isso vale obviamente para o indivíduo e a coletividade, sem a qual não há indivíduos,
assim como sem indivíduos não há coletividade. Essa contradição é o x da questão, que o X com
que se renomeou o Twitter perverte e mistifica.
Nessa chave analítica, talvez o argumento central do livro de Marco Bonetti, em sua
contribuição fundamental ao debate ético, político e epistemológico do jornalismo contemporâneo,
se encontre na seguinte passagem: “A luta pelo autodirecionamento gerou um efeito colateral
indesejado, o alienado. […] A relevância deste debate para o jornalismo é imensa porque a
comunicação social se transformou no dispositivo contemporâneo de heterodirecionamento, que
melhor molda esta ilusão de autodirecionamento egoísta.”
Retomando meu argumento inicial, reitero que este livro de Marco Bonetti traz uma
contribuição original para as teorias do jornalismo. Deve ser lido por estudantes e professores, pois
alia didatismo e densidade teórica, além de abrir novos horizontes reflexivos. E ainda que não se
concorde em detalhe com todas as análises originais do autor, elas certamente estimulam o
raciocínio e o pensamento crítico. O que por si só já justificaria o seu estudo.

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Introdução – A invenção burocrática das teorias do jornalismo no Brasil

Teorias do Jornalismo foi o nome dado a uma disciplina instituída no ensino superior no
Brasil com a publicação em 2013 das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação
em Jornalismo, bacharelado. Esta sua origem histórica concreta e burocrática está relacionada com
o fim da obrigatoriedade de diploma superior para o exercício da profissão, resultado de uma
resolução do Supremo Tribunal Federal em 2009, e com o movimento de reforma educacional que
separou o jornalismo das demais habilitações em Comunicação Social.
Em termos de conteúdo, as Teorias do Jornalismo sucederiam ou complementariam uma
disciplina tradicional na formação de ensino superior em Comunicação Social que se chama Teorias
da Comunicação, responsável pela apresentação de campos teóricos que refletiram a respeito de
problemas gerais da área e que contribuía para a formação das profissões a ela relacionadas:
jornalista, publicitário, relações-públicas entre outros. Teorias do Jornalismo, apesar de se ligar com
a cadeira anterior, concentra seu foco a partir da ideia de que nem todas Teorias da Comunicação
são relevantes para o jornalismo, algumas delas sendo mais ligadas aos problemas da publicidade,
outras aos de relações-públicas e das demais áreas afins. Por isso, seria necessário selecionar para
ela um leque de teorias mais pertinentes ao jornalismo, aumentando o tempo de estudo, em desfavor
daquelas de caráter genérico ou mais relacionadas com as outras formações.
A necessidade de determinar quais teorias seriam eleitas levou acadêmicos a se defrontar
com algumas dificuldades tradicionais do campo, as quais já haviam sido enfrentadas por obras
voltadas às Teorias da Comunicação. Polissemia do termo comunicação. Número elevado de
teorias. Polarização das teorias. O que se verá neste livro é uma tentativa de contribuir com esta
definição do escopo das Teorias do Jornalismo.
Sua estratégia é o estabelecimento de critérios de seleção e organização do pensamento
consolidado na forma de teorias que se impuseram como saber relevante para entender o campo da
comunicação. Daí não advir nenhuma pretensão de originalidade, no sentido de que essas
apresentações panorâmicas das teorias contam com excelentes compêndios já tomados como
clássicos, e que nos fornecem as bases para boa parte da apresentação das teorias que realizaremos
aqui, principalmente, Armand e Michele Mattelart (2007) e Mauro Wolf (2001). O foco delas,
porém, é antes o que denominamos aqui teorias administrativas do jornalismo. Conforme Mattelart
elas consideram que a democracia sai fortalecida sempre que os meios de comunicação evoluem. O
grupo dos autores que não pensam assim, preferimos chamar de teorias transformadoras do
jornalismo (Escola de Frankfurt, Estruturalismo e Estudos Culturais). Destas, a bibliografia
panorâmica disponível trata pouco. Fomos buscar outras fontes para apresentá-las ou mesmo nos
amparar nos originais de seus autores, dada a relevância destas escolas. É nisso que aponta a
característica mais distintiva da presente abordagem2.
Trata-se de dividir de modo mais claro o que se poderia denominar teorias administrativas e
teorias transformadoras do jornalismo, e melhor balancear a presença destes dois blocos numa obra
voltada à disciplina de Teorias do Jornalismo. Sentimos uma certa tendência em iniciativas
anteriores de sobrevaloração das teorias administrativas, o que, conforme se verá, nos fará
reposicionar o pensamento de algumas perspectivas mais antigas, em especial, a maneira como
Mauro Wolf apresentou novas tendências de pesquisa em jornalismo frente a esta divisão.
Partimos da ideia de que a relação entre teoria e jornalismo é uma relação de identidade e
diferença. Cada teoria apresenta uma faceta do que o jornalismo efetivamente é, visto que cada uma
2 Optamos pelo termo teorias transformadoras do jornalismo em lugar de teorias críticas do jornalismo para que não
houvesse uma confusão entre o que constitui um bloco um tanto heterogêneo (Escola de Frankfurt, Estruturalismo e
Estudos Culturais) com o que se costuma chamar em sentido mais específico a Teoria Crítica, a Escola de
Frankfurt. Mas evidentemente a medida tem, por fim, somente destacar as diferenças do bloco de pensamento e
evitar um engano, e não se poderia negar a pertinência do uso do termo teoria crítica não fosse a possibilidade de
confusão que ela abre para quem não reparasse no duplo uso do termo.

5
delas é uma representação parcial do jornalismo, sua identidade em alguma medida. Entretanto o
tipo de abordagem, a datação da teoria, a fundamentação teórica fazem com que cada uma delas
seja sempre uma visão parcial. Cada uma compõe um pequeno sistema coerente, fechado em seu
interior. Por isso mesmo, não contempla aquilo que foi representado por outras teorias distintas.
Acreditamos na possibilidade de descongelar esta perspectiva de pensamentos isolados por meio de
uma abordagem histórico dialética que aponta as teorias numa perspectiva panorâmica de inter-
relações. É na apresentação de outra teoria distinta que uma teoria se dá conta da incompletude de
ambas, mas também de sua positividade. Incompletude não significa erro. Positividade não significa
superioridade nem mesmo valor, mas somente sua presença concreta. Presença e alteridade são
termos mais apropriados para estes relacionamentos dialéticos entre as teorias que a exposição
pretenderá explicitar. Trata-se de um limite imposto a uma representação parcial. Toda teoria do
jornalismo é parte. Daí a justificativa de uma exposição panorâmica. Mas não se trata de uma mera
exposição de erudição ou de um aglomerado solto. Antes sim, a tentativa de estabelecer um sistema
de relações teóricas complementares em suas incompletudes. Daí tentarmos fugir da simplificação
de ver ali somente visões antagônicas, ou antinomias, o que se encontraria a partir de uma espécie
de perspectiva congelada. Só no movimento de passagem de uma a outra estas antinomias que
indicam respostas complementares ganham uma perspectiva dialética que não apagará as
diferenças, antagonismos e contradições. Vai se estabelecer uma relação.
O que assim dispostas elas oferecem num todo, é o próprio conceito de jornalismo em toda
sua complexidade, sua exposição no grau mais próximo de verdade, em seu mais avançado
desenvolvimento histórico, e que nunca é completo. Depois de apresentar os fundamentos do
jornalismo, falaremos de sua história no Brasil.
Queremos desenvolver a ideia de que as teorias do jornalismo pertencem a seu tempo. Para
tanto, poderíamos ainda nesta introdução expor superficialmente a totalidade do projeto, mas
optamos por dizer apenas que construiremos a Teoria do Jornalismo a partir de seus fundamentos,
história e conceitos. Quando ao pormenor do que isso representa, preferimos nos inspirar na
recomendação do importante filósofo alemão Georg Hegel, e pedir ao leitor uma particular
paciência, porque conhecer as Teorias do Jornalismo é transitar por todo seu processo de exposição.

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UNIDADE 1 – Fundamentos do jornalismo

1. Estabelecendo um conceito de jornalismo

1.1 Primeiro sobrevoo panorâmico

As Teorias do Jornalismo resultam de um processo de desenvolvimento. Têm de partir do


estabelecimento de um conceito de Jornalismo, mesmo que pouco desenvolvido, o qual será
paulatinamente aperfeiçoado e complexificado conforme avança a exposição. Trata-se de apresentar
logo o objeto de estudo, um fundamento. Para ter acesso a ele, vamos partir de num pequeno livro
da década de 1980, escrito pelo repórter Clóvis Rossi, sob o título O que é Jornalismo. Sua
resposta, ainda num nível muito geral, aponta que jornalismo é a luta pela conquista de corações e
mentes do seu público leitor. Num nível já mais detalhado, a resposta ao que é jornalismo é a
própria estrutura da obra, dividida em cinco capítulos, a metáfora de cinco batalhas. A batalha
interna, capítulo no qual o autor descreve as condições de uma redação de veículo impresso na
década de 80, sua hierarquia, os sistemas de tomada de decisão, as tensões entre as distintas funções
jornalísticas, como o editor, o pauteiro, o repórter, o redator. A batalha externa, em que descreve as
tensões do relacionamento do jornalista com fontes de informação, as quais muitas vezes distorcem
as informações por conta de interesses particulares, de classe, tentativas de escamoteamento de
fatos. A batalha pela propriedade, em que o autor aponta a condição do jornalismo contemporâneo
em sua forma de empresa capitalista, com dono e funcionários, apontando os limites de liberdade
possível do jornalista como trabalhador limitado por interesses comerciais dos veículos, situação em
que ele resume na afirmação de que não há liberdade de imprensa no Brasil, mas somente
“liberdade de empresa”. A preparação para a batalha, em que Rossi discute a inevitável insuficiência
da preparação para uma atividade tão multifacetada, dando um testemunho pessoal ilustrativo: as
dificuldades por que passou ao ser enviado para uma cobertura sobre um tema do qual não sabia
absolutamente nada, Portugal da década de 1970. E, por fim, a batalha internacional, em que relata
problemas advindos das dificuldades de obter informações isentas de interesses sobre países
distantes, quando a origem delas constitui um setor monopolizado por grandes agências
internacionais. A exposição do que é Jornalismo passou portanto de forma abrangente por cinco
batalhas: interna, externa, da propriedade, preparação para a batalha e batalha internacional.
A partir destes tópicos, percebemos que a narrativa do autor se relaciona com a fase em que
o jornalismo se exerce numa empresa jornalística, modelo predominante na última metade do século
XX, e ainda hoje modelo predominante de jornalismo profissional. Uma empresa que é resultado de
um grande investimento de Capital. Ela mantém uma sede de funcionamento. Adquire seus meios
de produção maquinários, desde os menos onerosos como prensas e gráficas num veículo impresso,
até complexos tecnológicos muito mais caros com antenas, ilhas de edição, câmeras, carros e
satélites, no caso da televisão. Compra as mais diversas matérias-primas de suporte à produção das
notícias. Mantém assalariada uma equipe especializada formada por gráficos, cinegrafistas, pessoal
administrativo e jornalistas, organizada numa redação com hierarquia (editores, subeditores,
repórteres, pauteiros, redatores, apresentadores), responsável pela produção da edição jornalística.
Para tanto, este pessoal irá buscar, apurar e elaborar sua matéria-prima imaterial, que é o fato de
interesse jornalístico, até que ele se transforme numa matéria tratada e editada que represente com
fidelidade o fato acompanhado e capaz de ser transmitida por um veículo de comunicação. As
matérias se organizarão numa edição que servirá de suporte para informar seu público, distribuída
por vezes de forma paga outras gratuitas. Esta mesma edição será suporte para transmitir mensagens
comerciais que são pagas pelos anunciantes a fim de resultar em lucros financeiros para o grupo por
meio da publicidade.
Para conseguir produzir estes veículos jornalísticos com precisão quanto a prazos e horários
para sua circulação, as redações possuem sólidas estruturas burocráticas com processos e

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hierarquias muito rigorosas e bem definidas, variando, evidentemente de veículo para veículo, em
processos relativamente parecidos. O percurso se inicia pela elaboração de uma pauta, que é um
documento onde estão previstas as matérias que deverão constituir a próxima edição do veículo.
Rossi deu atenção a este mecanismo da pauta porque ali já pode se manifestar o problema dos
confrontos de opinião entre o repórter e os editores quanto às abordagens das matérias. Muitas
vezes a pauta traz, além da determinação dos assuntos a serem cobertos pelos jornalistas, também
recomendações quanto à abordagem que deveria ser dada ao tema. Quanto o repórter vai para a rua
ou levanta informações via telefone ou mensagens trocadas com fontes de informação, apura os
dados que resultarão num texto ou numa entrevista a ser publicada. Cada produto coletivo feito
pelos jornalistas constitui uma edição de um veículo de comunicação constituído por diversas
matérias, mas o processo de elaboração da forma de veiculação das matérias também se chama
edição. O jornalismo pretende contar o que aconteceu, criando representações com forte
referencialidade aos fatos. Neste processo de edição as disputas se dão novamente, já que o
jornalista apresenta certas informações que são retiradas do texto pelo redator ou editor, outras
vezes dados são acrescidos ou modificados. Para tentar minimizar estes confrontos, as redações
estipulam regras ou soluções supostamente milagrosas para problemas complexos como os da
objetividade em jornalismo, por meio de formuletas como ouvir os dois lados de uma notícia que
envolva conflitos de interesses, recurso em si salutar, mas que, muitas vezes, é insuficiente e serve
de justificativa para o jornalista não realizar seu trabalho mais detalhado de apuração e verificar se
um dos dois lados porventura está mentindo.
Estas discussões foram tema de reflexão do autor. Assim, o trabalho de Rossi é um bom
ponto de partida para as teorias do jornalismo porque em sua perspectiva não acadêmica, de
repórter, ele foi capaz, num texto breve, de lançar um sem número de problemas implicados na
prática do jornalismo contemporâneo.
Por outro lado, em alguns pontos, ele fica a dever, como o da análise a respeito da
objetividade. Conclui que objetividade é um mito, e que objetividade não existe. Assim, o
jornalismo defender a busca da objetividade teria por finalidade convencer o público de que ele está
sendo informado da maneira como devia, como se cada indivíduo que recebe a informação estivesse
ao lado do fato presenciando o que ocorreu com os próprios olhos, sem uma mediação subjetiva do
jornalista que viesse a enviesar a perspectiva do fato por força de alguma intenção consciente ou
não. Rossi diz que a objetividade assim entendida é impossível, e apresenta como prova de que ela
representa um mito o fato de que um experiente repórter de futebol que torcia para um certo time
fez uma matéria em que comentou inúmeros aspectos táticos e estratégicos do jogo, mas esqueceu
de dizer que seu time perdeu para o adversário. Segundo Rossi, a única possibilidade de o
jornalismo refletir com objetividade um fato é a transmissão por meio das imagens de televisão.
Não é preciso muito esforço para demonstrar que a argumentação de Rossi não se sustenta.
Não é com base em um caso isolado, o caso de um repórter esportivo, que seria possível afirmar a
impossibilidade da objetividade de modo tão incisivo. Mas surge então o problema de definir uma
forma apropriada para abordar a questão.
Nosso tratamento do tema aqui não será exaustivo, mas pretende, pelo menos, indicar um
caminho possível para pensar o problema. Um primeiro passo importante é dar uma definição do
que seria a objetividade. Trata-se de um termo que surge de uma oposição a sua contraparte, a
subjetividade. O problema de fundo teórico, portanto, é o da relação entre sujeito e objeto. Esta
relação é o tema da teoria do conhecimento, quando discute se e de que forma é possível a
construção de saber sobre o mundo. Como o sujeito pode pensar algo, que surge de sua capacidade
de representação intelectual, e garantir que este pensamento é capaz de representar o mundo com
objetividade.
Num momento avançado da Filosofia Moderna, quem equacionou este problema foi o
filósofo alemão Immanuel Kant. Para ele, a construção do conhecimento humano se dá a partir de
duas origens, uma ativa, que é a capacidade de pensar a partir de categorias mentais como

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quantidade, qualidade, relação e modalidade. E a outra é a capacidade passiva que temos em nossa
intuição dos fenômenos sensíveis quando algo se apresenta a nós por intermédio da percepção de
tempo e espaço. Só da síntese entre pensamentos e intuição realizada pela nossa faculdade de julgar,
pode surgir conhecimento objetivo para ele. A intuição sensível apenas é cega. Os juízos lógicos
construídos com base nas categorias isolados são vazios. Só juízos lógicos que se conformam aos
fenômenos são conhecimento objetivo. Estes juízos, quando são formulados a priori e se confirmam
em todo e qualquer fenômeno com necessidade, são saber objetivo apodítico, inquestionável,
científico, o que Kant chamou de juízo sintético a priori. Por isso, no campo da física, podemos
afirmar objetivamente que qualquer corpo jogado a alguma altura distante do chão na Terra, se não
for submetido a outras forças em sentidos diversos, cai.
Ora. O grau de dificuldade de constatação dos fenômenos a posteriori, como os de que trata
o jornalismo, são muito mais fáceis de representar com objetividade do que as descobertas
científicas, porque o fenômeno já foi dado, só é preciso representá-lo sem quaisquer pretensões de
universalidade. Só se pode falar de objetividade em jornalismo quando ele tenta representar fatos
empíricos já ocorridos, os quais poderão ser objetivamente relatados. O homem é dotado de
faculdades que vão muito além disso, mas que também permitem criar a representação empírica
com objetividade, possui um instrumental transcendental, como diz Kant, que permite a ele criar
juízos a posteriori capazes de representar fenômenos observáveis no espaço e no tempo. Pois bem,
para Kant, este é um caso típico de objetividade, mesmo que por meio de representações sem
universalidade, regulativas, críticas, que fazem o conhecimento avançar. Portanto, a partir deste
conceito filosófico se sustenta que o jornalismo consegue obter a objetividade sem dificuldade.
Basta relatar o que os sentidos presenciam por intermédio de nossos princípios dos juízos
reflexivos.
O problema do jornalismo surge justamente quando ocorre o que Rossi deu como exemplo,
ou seja, quando alguém ultrapassa o papel de construtor de uma representação objetiva a partir da
experiência empírica e inventa coisas que não se dão no fenômeno, ou não consegue o representar a
contento o ocorrido por força de alguma inclinação subjetiva, como torcer para o time que perdeu e
omitir o placar. O problema do jornalista citado por Rossi, portanto, foi não ter se atido ao fato de
que o time perdeu por dois a zero, não ter esclarecido este fato objetivo. Este acontecimento
empírico objetivo pode ser constatado por qualquer pessoa que estivesse presente no jogo. E
poderia ser narrado com objetividade desde que o relato se ativesse a seus elementos constatáveis
empiricamente. O primeiro gol foi aos 32 minutos do primeiro tempo. O segundo, aos 12 do
segundo tempo. O jogo durou 90 minutos sem prorrogação. E não houve expulsões. Desde que estes
dados estejam corretos, temos um relato objetivo. O problema foi que o jornalista se desviou deste
caminho que ele poderia ter tomado.
Perceba-se que o problema da ciência é muito mais crítico. Ela não só tem de dizer que uma
pedra lançada para o alto caiu, mas que toda pedra lançada para o alto cairá também. A ciência quer
prever o futuro, criar representações objetivas que se dão como objetivas antes mesmo de o
fenômeno empírico ocorrer, determinando como se fosse uma lei como o fenômeno vai se
comportar. Por isso Kant delimitou o campo de conhecimento aonde o homem é capaz de criar este
tipo de conhecimento à teoria voltada ao entendimento da natureza, onde não há liberdade. Numa
matéria jornalística o primeiro deslize rumo à subjetividade, portanto, seria um desvio de ordem
ética. Mentir. Narrar, dada a liberdade de criação da narrativa, algo que não ocorreu. Agir
erradamente mesmo sabendo o que seria o certo. Evitar o que Kant denominava os máximas
subjetivas, e agir atropelando a conduta ética. Percebe-se que o problema aqui não é a possibilidade
ou não de existência da objetividade, mas a abertura para que ela não seja seguida em determinada
ocasião.
Um caso de desvio não impede, entretanto, que exista um jornalismo objetivo, só demonstra
que nem sempre a objetividade é observada. Ele nem mesmo é o único motivo para tais desvios, a
narrativa pode estar errada porque o fato foi mal apurado, pode reproduzir uma mentira de alguém

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sem que o jornalista tenha se dado conta. Vê-se que a situação é complexa. Mas a busca de
objetividade pode ser uma meta, quando o jornalismo se restringe ao relato do que já se passou, sem
cair na armadilha de se permitir más representações que deixem as subjetividades falarem mais alto
que os fenômenos, nem especular sobre o que ainda não foi. O que se pede do relato jornalístico é
que ele se porte como se porta a intuição sensível do ânimo humano. Ofereça representações o mais
próximo possível das percepções, como se fossem aquelas oferecidas pela nossa intuição de tempo
e espaço. Anule a intencionalidade e faça valer uma produção textual ou informativa que reproduza
intencionalmente o que se mostra como fenômeno da experiência. Isso é plenamente alcançável,
portanto não é simples mito. O que se pode dizer ser um mito seria alguém acreditar que toda
matéria jornalística é objetiva. Mas não é disso que se trata. Deste modo, se recupera para o
jornalismo pelo menos a possibilidade da objetividade e que ela não é simplesmente um mito. Há
uma fórmula para sua obtenção.
A matéria objetiva é aquela que qualquer ser humano independente de quem fosse poderia
fazer da mesma maneira, como se fosse um sujeito abstrato universal. O que Kant chamava de
sujeito transcendental. Isso é plenamente possível. Portanto, a objetividade deveria ser um anseio
para o bom exercício da profissão.
Entretanto, determinar o que é possível conhecer para além da objetividade é outro
problema. Se alguém quiser responder à pergunta “por que este fenômeno aconteceu?”, já está indo
para além da objetividade. Criando juízos especulativos. Como argumentou o filósofo David Hume,
dizer que uma enchente foi o motivo da destruição de uma casa seria temerário, mais ainda prever
que a próxima água que pressionar uma casa vai derrubá-la. A causa não poderia ter sido alicerces
frágeis? Uma trinca não cuidada? Quando vemos algo ocorrer repetidamente, nos acostumamos e
estabelecemos uma causalidade que é algo impossível de estabelecer a partir da observação
empírica. Já vimos a água do mar derrubar um castelo de areia mas podemos projetar esta
lembrança sobre um rio e uma construção de concreto? São problemas que colocam o porquê dos
fenômenos em causa. Na maior parte das vezes o jornalismo por si só não é capaz de responder a
algo de tamanha complexidade, portanto deve passar a palavra à ciência, que vai muito mais longe
na capacidade de investigação.
Chega-se então a outro limite claro: representar com objetividade é garantia de que será
conhecida a verdade de um fato? Aqui é importante diferenciar objetividade de verdade e perceber a
facilidade da primeira em oposição às dificuldades da segunda. Quando se fala em verdade, o
problema é semelhante ao que ocorre com a causalidade. Para apuração da verdade, é preciso mais
do que observar dois gols, pois talvez seja preciso saber que alguns jogadores do time adversário
receberam dinheiro para facilitar a vida dos opositores, que o juiz também teria sido incentivado a
não apitar determinado lance. Ou seja, a verdade é um problema com outro nível de complexidade
que não caberá aqui esgotar. Veremos adiante um texto de Bertold Brecht que aprofunda esta
discussão. Mas quanto à objetividade, não deveria ser em nome de dificuldades contornáveis, de
casos ocasionais nem mesmo de práticas comprovadas de má-fé que a ideia de objetividade
jornalística deveria ser descartada. Ao contrário a objetividade deveria ser observada e mantida
como meta a ser seguida por quem pretende se dedicar ao exercício da profissão de forma ética e
responsável. Ela pode ser verificada ou, no caso de não existir, sua ausência ser denunciada.
Portanto ela é um parâmetro válido. Se ele nem sempre vigora e quais foram os percalços para que
se alcançasse, isso não deveria ser motivo de especulação teórica abstrata, mas sim de comprovação
histórica, por isso este tema sempre estará presente no estudo da história do jornalismo.
Independente disso, sempre ter em mente também os limites do que a objetividade contém.
É importante analisar, por fim, outro problema desta definição inicial de jornalismo proposta
por Rossi, o próprio conceito de jornalismo que extraímos do livro. Poderíamos nos perguntar, a
partir desta caracterização inicial do jornalismo como cinco frentes de batalha, se um programa
sensacionalista na televisão, informativo, seria jornalismo. E a resposta seria positiva, visto que
possui também desdobramentos nas cinco batalhas enumeradas – interna, externa, propriedade,

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formação e internacional. O bom senso, entretanto, parece apontar em outra direção, tanto é que
existe o termo “programa sensacionalista” para dar conta desse tipo de transmissão ao qual o título
de jornalismo não cai bem. Percebemos que este conceito de Rossi não oferece recursos mais
precisos para determinar o que é realmente característico do jornalismo, a ponto de deixar um
programa sensacionalista se passar por jornalismo. Vemos ter de dar outro passo, portanto. O que
nos interessava no trabalho de Rossi era, antes, recuperar de sua obra um fundamento que também
pode explicar o jornalismo, posto por ora ainda como puro fenômeno, para que pudéssemos ter uma
visão inicial da gama de aspectos que o jornalismo abrange.

1.2 Uma definição teórica de jornalismo

Vamos aprofundar esta noção inicial recorrendo a um livro de perfil mais acadêmico,
Jornalismo: a saga dos cães perdidos, de Ciro Marcondes (2000). Nele, o autor introduz uma
definição mais precisa para entender a essência do jornalismo, qual seja, a gênese do Jornalismo a
partir do Iluminismo.
Marcondes lembra que foram as revoluções burguesas iluministas que criaram os
personagens típicos da modernidade, o empreendedor burguês, os políticos, e o jornalista, este
último, como representante da modernidade na sua luta pela garantia dos direitos sociais. O autor
diz que “o jornalismo é a síntese do espírito moderno, ou seja, a razão/a transparência impondo-se
diante da tradição obscurantista, da crítica da política do questionamento de todas as autoridades e
da confiança irrestrita no progresso, no aperfeiçoamento contínuo da espécie” (MARCONDES:
2000, p. 9). Portanto uma definição teórica que nos serve, por exemplo, para distinguir coisas que
podem ser publicadas ou veiculadas em papel-jornal ou ondas televisivas, que se dizem ser
jornalismo, mas que, por esta definição, não são. Por exemplo, um programa sensacionalista mesmo
que informativo. Ele nem apela à razão, nem impõe transparência, nem questionamento a tradições
obscurantistas, portanto, não é jornalismo.
Esta abordagem coloca a gênese do jornalismo na Revolução Francesa, símbolo da luta
pelos direitos humanos, da destituição da aristocracia e do abalo das monarquias absolutistas. O
jornalismo é filho deste movimento porque tomou o saber reservado até então às castas superiores
sociais e colocou como meta o distribuir para todos, fazendo circular a informação e o
conhecimento mais ou menos livremente a depender de conjunturas históricas. Mas teria como
marca sempre manter esse objetivo. Outras iniciativas que circularam antes disso, até mesmo
algumas denominadas jornal ou coisas do gênero, não eram jornalismo segundo esta definição.
Assim se descartam alguns exemplos históricos, mas se ganha em concentração do estudo no que
mais importa, no estabelecimento de um referencial teórico mais robusto. Com base nele, por
exemplo, se entenderá e se justificará porque o nascimento do jornalismo no Brasil é bastante
posterior à própria Revolução.
Numa primeira aproximação a respeito do desenvolvimento do jornalismo como processo
histórico, Marcondes o divide em quatro fases. O primeiro jornalismo de 1789 até meados do século
XIX, o jornalismo da iluminação. O segundo, do jornal como empresa capitalista, resultado da
inovação tecnológica, da industrialização dos processos de produção do jornal e da exigência de
sólido capital financeiro para criar e manter um jornal. O terceiro, a concentração das empresas em
torno de grupos oligopolísticos de grande capital que reuniram conglomerados de jornais, rádios e
canais de televisão. Por fim o quarto momento em que o avanço tecnológico dos meios de
disseminação foram aos poucos substituindo o agente humano do jornalista por sistemas de
comunicação eletrônica, redes de circulação interativa de informação, e que já não diferencia mais
jornalismo da pura circulação de qualquer tipo de comunicação, mesmo da publicitária. Esta
transformação temporal que parece indicar o fim do jornalismo como projeto Iluminista, é o que

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justifica o subtítulo da obra: saga dos cães perdidos. Perdeu-se o projeto original e os jornalistas
ficaram como “cachorro sem dono3”.
Entende-se esta visão, principalmente no término dos anos 90, quando a obra foi publicada,
por causa da forte presença de um debate sobre fim da história, fim da modernidade, e esgotamento
das energias utópicas, com as quais o autor estava nitidamente debatendo. Mas tentaremos fugir um
pouco de um certo esvaziamento abstrato teórico que esta visão comporta, por meio da inserção do
debate num quadro histórico dialético que aponta para maiores complexidades no tema.
Um primeiro passo desta crítica é perceber que esta periodização não deve ser vista como
algo além de uma primeira aproximação do tema, visto que o estudo da história do jornalismo no
Brasil aponta para complexidade bem maior. Nosso jornalismo só surgiu aqui em 1808, e ainda com
duas iniciativas questionáveis, uma do próprio rei dom João VI e outra do português exilado
Hipólito da Costa que produzia seu jornal da Inglaterra, em alguma medida representando interesses
comerciais de lá. Se há alguma discussão se o jornalismo de Hipólito corresponde a um jornalismo
iluminista, quanto a frei Tibúrcio e a Gazeta do Rio de Janeiro, não resta nenhuma dúvida de que
não corresponde. A liberdade de imprensa oscila no século XIX ao sabor das alianças políticas.
Houve liberdade de imprensa de 1821, por exemplo, mas ela foi suprimida a partir de 1823. Ela
ressurgiu em 1826 e desapareceu em 1840. Um jogo de idas e vindas ao sabor da história do país,
conforme retrata nosso maior historiador da imprensa, Nelson Werneck Sodré (1966). A tese de
Sodré, com a qual concordamos, aponta que nosso Estado de Direito surgia apenas entre 1888 e
1889. Rigorosamente cem anos depois da Revolução Francesa. Daí nosso jornalismo empresarial
ser muito mais tardio, do final do século XIX apenas, e o sistema oligopolista poderia ter como
marco inicial 1930, com Assis Chateaubriand. Mas o estabelecimento destes marcos teóricos e
temporais serve para percebemos as diversas configurações históricas do jornalismo e entender os
modelos hegemônicos nos diversos períodos, até mesmo para medir qual seria a configuração
vigente, dos conglomerados de comunicação até hoje no país. Estes temas serão retomados em
maior detalhe adiante. Por ora, destacamos alguns pontos somente para indicar a fragilidade dessa
periodização proposta por Marcondes que, evidentemente, fez este sacrifício com vistas a um
objetivo específico de sua obra, que não era tratar de história do jornalismo.
Ele tinha um objetivo mais evidente nesta tentativa de periodização, que era o
estabelecimento de uma quarta fase distinta da terceira, do monopólio. Passados alguns anos desde
a publicação, nos parece que houve excesso de pessimismo por um lado, excesso de otimismo por
outro. Pessimismo porque se falava num fim do jornalismo e na sua substituição por um tipo de
comunicação nos moldes de espetáculos ilusionistas, o que não ocorreu. Otimismo porque o autor
parece não querer enxergar que esse espetáculo já fazia parte da história da imprensa muito antes de
o surgimento desta quarta fase caracterizada por ele pelo domínio das tecnologias audiovisuais de
transmissão jornalística. Em outras palavras, o ilusionismo jornalístico não nos parece uma quarta
fase de ruptura, antes parece apontar para o desdobramento natural do próprio modelo empresarial
que ele classificara como segunda fase.
Seguimos aqui a opção de Nelson Werneck Sodré, da divisão da nossa história do jornalismo
em um jornalismo artesanal e um jornalismo industrial, no qual pudéssemos talvez colocar 1889
como marco, o que corresponde mais diretamente aos fatos históricos. Sodré diz que “a passagem
do século, assim, assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande imprensa. Os pequenos
jornais, de estrutura simples, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com
estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função”
(SODRÉ: 1966, p. 315).
Por outro lado, em termos teóricos, a contribuição de Marcondes tem a maior relevância: a
filiação de um certo jornalismo a um ideal libertador característico do Iluminismo. Este recorte será
importante para entender a distinção entre teorias administrativas e teorias transformadoras do

3 Termo de origem popular que significa uma pessoa que ficou totalmente sem chão, foi vítima de alguma situação
que a desestabilizou, teve as crenças que lhe garantiam estabilidade desfeitas.

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jornalismo, conforme veremos adiante. Trata-se da hipótese fundamental da presente obra, a
estrutura sua própria divisão em unidades distintas de duas família de teorias: um jornalismo
transformador avesso a um jornalismo integrado, administrativo. De outro modo fica difícil
justificar como ao lado de um jornalismo reparador, panfletário e iluminista, sempre houve um
outro jornalismo denominado, áulico, promovido inicialmente pelo rei e pelos imperadores, mas
depois promovido por oligopólios, governantes, latifundiários escravagistas e políticos tradicionais.
E já no período republicano, por oligarcas cafeeiros, caudilhos, agências de publicidade
internacionais e pelo mercado. Para as teorias do jornalismo esta divisão se põe como um
fundamento, visto que tentaremos demonstrar a pertinência de dividi-la também em dois blocos,
teorias transformadoras do jornalismo e teorias administrativas. Neste sentido, um período em que
jornalismo e entretenimento se confundem seria não visto como uma grande transformação da
imprensa, mas o ponto mais alto da forma de indústria cultural e espetáculo já previsível como
decorrência do jornalismo empresarial e monopolista. O tempo em que tudo o que os seres humanos
tinham visto como inalienável se tornou objeto de troca.

1.3 Outra periodização do jornalismo

Uma outra visão de periodização proposta por Jurgen Habermas (1984) toma por base a
história do jornalismo europeu. O autor descreve uma primeira fase da imprensa formada por
pequenas empresas artesanais comerciais características do início do capitalismo ainda pré-
Revolução, e que não existiu no Brasil. Depois, uma segunda fase chamada por ele de “jornalismo
literário”. Usar literalmente este rótulo pode resultar num mal-entendido para a análise do
jornalismo brasileiro, porque teremos aqui outro fenômeno denominado jornalismo literário a partir
de meados do século XIX, e que terá características totalmente diversas desta fase chamada por
Habermas de jornalismo literário. Este título, com o qual Habermas nomeia esta segunda fase
europeia da mídia, se aproxima em termos de conteúdo mais à definição de jornalismo iluminista de
Marcondes, visto que são marcas de ambos ir contra a rentabilidade comercial, investindo mais num
impulso pedagógico e cada vez mais político por iniciativa de homens cultos e escritores. Este tipo
de jornalismo resultou no fortalecimento dos chamados artigos de fundo, grandes trabalhos que
tentavam esgotar o pensamento a respeito de certa temática. Mas também serviram à difusão de
informações críticas de modo exemplar em épocas revolucionárias. Será parente de nosso
jornalismo iluminista e do jornalismo panfletário dos pasquins. Ele está muito ligado aos ideais da
Revolução Francesa. Habermas diz que surgiram, em 1789, 200 jornais desse tipo em Paris.
Veremos os momentos cruciais de influência deste jornalismo político ao longo do século XIX no
próximo capítulo. Jornais que estavam sujeitos à censura e perseguição evidentemente. Constituíam
uma imprensa crítica e opinativa, que circulava escapando por meio de espertezas à perseguição.
Habermas fala então do marco divisor para ingresso numa terceira fase do jornalismo, justamente a
Revolução Francesa.

Só com o estabelecimento do Estado burguês de Direito e com a legalização de


uma esfera pública politicamente ativa é que a imprensa crítica se alivia das
pressões sobre a liberdade de opinião; agora ela pode abandonar a sua posição
polêmica e assumir as chances de lucro de uma empresa comercial. (HABERMAS,
1984, P. 216)

É a partir disso que surge uma terceira fase na qual o jornal vira empreendimento que produz
notícias para fisgar seu público e, por meio deste, cobra espaço para veicular anúncios como uma
mercadoria. O desenvolvimento desta empresa ocorre na Europa já por volta de 1830, quando aqui
só teremos algo parecido a partir de 1889, se consolidando apenas na virada do século. A
contrapartida desta evolução é a concentração do jornalismo nas mãos de capitalistas pois o jornal
passa a depender de máquinas, distribuição, profissionais especializados. Mas junto com a liberdade

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do liberalismo, desenvolve-se a prática de, além de vender espaço publicitário, o jornalismo
começar a vender também sua possibilidade de “pórtico de entrada de privilegiados interesses
privados na esfera pública” (HABERMAS, 1984, p. 218). A autonomia do redator é diminuída
porque ele tem de se render a fins políticos. Na Alemanha essa imprensa vai se desenvolver no lado
conservador e depois no lado social-democrata. No Brasil teremos uma imprensa monarquista e
uma republicana a partir de 1889, uma imprensa nacionalista e uma antinacionalista nos anos 1950.
Estes grandes grupos vão concentrar o poder de produzir jornais e se formarão os trustes de
imprensa já no final do século XIX. No Brasil, o primeiro episódio neste sentido foi a aquisição na
década de 30 de cinco jornais por Assis Chateaubriand, sob patrocínio do grupo que apoiou a
candidatura Vargas à presidência.
O problema da liberdade de imprensa se metamorfoseia no problema da “liberdade de
empresa” como diz Rossi. A natureza do problema da liberdade sofre grande metamorfose e passa a
ser o mesmo das relações de Capital e Trabalho na sociedade Capitalista em geral. Concentração
dos meios de produção cada vez mais em menos mãos apontando na direção de oligopólios. Mas o
debate sobre este poder e a atitude da sociedade frente a ele é bastante distinta no Brasil em relação
a outros países.
Com o surgimento de tecnologias de propagação massiva de informação como rádio, cinema
falado e televisão, países europeus resolvem regulamentar este poder. Percebem que se tratava de
um instrumento poderoso demais para ficar nas mãos de instituições privadas. Alemanha, França,
Inglaterra vão criar sistemas de propriedade mista “para impedir que os ‘monopólios naturais’ do
rádio e da televisão assumissem a forma de empresas de economia privada” (HABERMAS, 1984,
p. 220). Este cuidado não foi tomado nem nos Estados Unidos nem no Brasil. Assim, a população
teve retirada por completo de si uma função Iluminista do espaço público, já que aqui não se
percebeu que, sem regulamentação, “a sua função público-jornalística não poderia ter sido
suficientemente protegida frente a função capitalista privada” (HABERMAS, 1984, p. 220).
Podemos entender melhor, agora, por que Ciro Marcondes trata de uma invasão do
jornalismo pela comunicação. O monopólio da imprensa “em mãos privadas é que ameaçou por
várias vezes as funções críticas do jornalismo” (HABERMAS, 1984, p. 220). Ameaçou, na Europa.
Aqui, tomou de assalto. Por isso a pertinência em falar de uma nova fase, embora seu
desenvolvimento neste sentido já estivesse embutido em potência no próprio modelo empresarial de
jornalismo, cuja exploração teórica coube às teorias administrativas do jornalismo.
A tese principal de Habermas se representa no título de sua obra. Houve uma: Mudança
estrutural da esfera pública. Esfera pública para ele é um espaço nascido originalmente a partir de
círculos burgueses de discussão sobre arte no interior das casas em saraus, e que deu origem a
debates políticos ainda em caráter íntimo que passaram a ganhar projeções públicas e se tornaram
um espaço público de discussão política que foi um dos motores das revoluções antiabsolutistas.
Podemos pensar nesta chave, no Brasil, a iniciativa de grupos secretos vistos com ressalva e
perseguidos, como o da Inconfidência Mineira ou a maçonaria. Na Europa, esses grupos ampliam
suas vozes a partir do uso da potência de difusão das opiniões por meio dos jornais. O jornalismo
assume esta função nos períodos de agitação. Porém, a evolução histórica do jornalismo levou ao
surgimento das empresas jornalísticas e a uma concentração dos veículos que permitiu a ocupação e
monopolização por parte de interesses privados deste espaço público.
Esta é a mudança estrutural que Habermas descreve na Europa por intermédio da história da
instituição por excelência da esfera pública, a imprensa. Apesar da linguagem do teórico alemão ser
um pouco áspera, ela expressa por linhas sinuosas um caráter de transformação muito claro: “À
medida que a esfera pública é, porém, tomada pela publicidade comercial, pessoas privadas passam
imediatamente a atuar enquanto proprietários privados sobre pessoas privadas enquanto público”
(Habermas, 1984, p. 221). Isso significa que a publicidade faz o jornalismo passar por uma
metamorfose. O marketing passará a ser desenvolvido como instrumento científico para domínio do

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comportamento das massas e do mercado. Para fazer isso com técnica, é necessário desenvolver
saberes. Esta será a gênese das teorias administrativas do jornalismo.
Segundo Habermas, o ápice desta tendência será o surgimento das técnicas de public
relations nos Estados Unidos, momento quando o anúncio econômico-comercial terá consciência de
seu caráter político e quando os limites entre redação e publicidade se diluirão a ponto das novas
técnicas assumirem o domínio sobre a esfera pública. Este controle das massas se passa por
ideologia porque “o emissor esconde as suas intenções comerciais sob o papel de alguém
interessado no bem comum. A manipulação dos consumidores” (Habermas, 1984, p. 226)
O jornalismo terá o poder de expor uma opinião pública encenada, falsa, fingindo interesse
geral, instrumento pelo qual o marketing “mobiliza para a firma, para um ramo da economia e até
para todo um sistema de crédito quase-político, uma espécie de respeito que só se teria para com
autoridades públicas” (HABERMAS, 2018, p. 228). Seu caráter fabricado não tem mais nada em
comum com o “Aufklärung”, o Iluminismo, pois “o ‘interesse geral’, à base do qual é que somente
seria possível chegar a uma concordância racional de opiniões em concorrência aberta, desapareceu
exatamente à medida que interesses privados privilegiados a adotaram para si a fim de se
autorrepresentarem através da publicidade… está rompida a velha base da convergência de
opiniões… porque os interesses privados que ingressam na esfera pública queiram se aferrar à
ficção deles… o signo de um fingido public interest” (HABERMAS, 1984, p. 228-9)

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UNIDADE 2 – A história do jornalismo no Brasil

2.1 Um começo para essa história

Qualquer dificuldade ou inadequação da periodização teórica das fases do jornalismo para


estabelecer o começo do jornalismo no Brasil se resolve por um ajuste dialético entre o conceito de
jornalismo e sua manifestação concreta histórica. Em outras palavras, vimos que jornalismo
constitui o espírito do Iluminismo, a luz da razão combatendo o obscurantismo e potencializando
transformações históricas em busca de liberdades individuais que podem ser representadas nas
figuras da liberdade econômica para o burguês, da liberdade governamental para o político e da
liberdade social para o povo (MARCONDES: 2000, p. 9), liberdade em torno da qual se dá a luta
do jornalista. Basta explicitar historicamente quando estas liberdades se vão manifestar no Brasil.
Nosso Iluminismo. Nosso Capitalismo. Nossa República.
O segundo problema, independeNTE deste, consiste em perceber que, mesmo antes do
Iluminismo, há um jornalismo iluminista, antes do Capitalismo, um jornalismo liberal, antes da
República, um jornalismo abolicionista e republicano. Ou seja, perceber que as bandeiras do
jornalismo não surgem com o fenômeno já dado. Antes dele surgir, há um jornalismo que lutou para
que ele fosse alcançado. O jornalismo divulga as ideias que defendem um novo estado de coisas,
que se manifesta, inclusive, no próprio estabelecimento das condições de existência do jornalismo
livre, ainda no sentido Iluminista e liberal do termo. Antes de ser jornalismo livre, o jornalismo foi
um instrumento de luta pela liberdade. Antes de ser livremente aceito, foi perseguido.
Esta perspectiva anterior e posterior às transformações se mostra também na história de
evolução da esfera pública europeia. Vimos Habermas denominar “jornalismo literário” o que
poderíamos denominar simplesmente jornalismo transformador ou iluminista, um jornalismo
engajado em projetos de mudanças anterior ao “Estado burguês de Direito e com a legalização de
uma esfera pública politicamente ativa” (HABERMAS, 1984, p. 216). No caso Brasileiro, um passo
deste jornalismo foi dado com o fim de nosso obscurantismo mais acerbado, marco datado de 1808,
e vai se manter em luta até o estabelecimento do Estado burgues de Direito, em 1888. Todo o
jornalismo do século XIX.
Só a partir da identificação desta peculiaridade da história brasileira da imprensa é possível
entender o choque de visões quanto ao surgimento do jornalismo no Brasil entre Antônio Cândido e
Nelson Werneck Sodré. O primeiro coloca o surgimento do jornalismo em 1808 com o Correio
Brasiliense de Hipólito da Costa, autor que elevará à condição de mais alta figura entre nossos
ilustrados. O segundo vai deslocar este marco fundador para 1888 porque, para ele, a história da
imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista, visto que o problema da
liberdade de informar é uma necessidade social que surge com a ascensão burguesa. Para Sodré o
que teria existido neste intervalo seria algo comparável ao “jornalismo literário” europeu, um
jornalismo em luta permanente contra a censura que constituirá uma história de altos e baixos.
Mesmo assim, em poucos momentos históricos restritos, e em oportunidades abertas por
contingências das disputas de poder no Império. A contingência histórica brasileira que nos faz
muito peculiares é perceber que nos tornamos efetivamente capitalistas só a partir de 1888 porque o
modo de produção Capitalista é incompatível com a escravidão. Decorre daí que Sodré vai ter uma
visão muito menos romantizada a respeito do papel de Hipólito da Costa e de todo o jornalismo do
período, e vai localizar os momentos em que tivemos efetivamente uma imprensa livre iluminista
(embora ainda precursoras do estabelecimento da liberdade de imprensa) em poucos momentos
históricos provisórios, em que a liberdade foi dada à imprensa e não conquistada como instituto
intocável da sociedade. As aberturas ocorreram entre 1821-1823, 1826-1840, 1860-1889. Só após
está data, 1889, se estabelecerá imprensa com liberdade sólida e estável no Brasil. O problema do

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século XX vai ser de outra natureza totalmente distinta, uma na qual, somente a partir das teorias
transformadoras do jornalismo, se obterá meios para entender em toda a sua complexidade.

2.2 - A ignorância como técnica de governo até 1808 e o surgimento de um jornalismo áulico

Independentemente desta necessidade de precisão histórica para entender o processo de


surgimento de nosso jornalismo e mais ainda de nosso jornalismo livre, todos autores concordam
num aspecto. Antes de 1808, o Brasil era as trevas.
Sodré explica que desde 1576 a impressão de qualquer obra em Portugal só se dava com
aprovação da igreja e da inquisição. Mas a partir de 1624 também passou a ser obrigatório
aprovação do Estado e da Cúria romana. Portugal viveu uma expansão do capital comercial que
levou os portugueses tanto a ocupar o Brasil quanto a criar gráficas na metrópole. Porém esta
segunda iniciativa rapidamente foi abafada pela vitória do sistema feudal no reino e sua aliança com
a violência da Inquisição. Portugal matou 30 mil pessoas por decisão da Inquisição. Independente
de concordarmos que Hipólito da Costa foi nosso primeiro jornalista, ele também foi vítima da
Inquisição portuguesa. Foi preso por ligações com a maçonaria inglesa apesar de a adesão à
maçonaria não contrariar nenhuma lei. A Inquisição não precisava desses luxos da justificativa legal
para determinar uma prisão. O atraso no Brasil não era casual. Era uma tática de governo. Sabe-se
que o México e o Peru tiveram universidade no século XVII, o México teve imprensa a partir de
1539, o Peru, 1650. Aqui a universidade é de 1940 e o jornalismo de 1808. Os inconfidentes na casa
dos quais se encontraram livros, ainda tiveram estes livros utilizados como prova do crime contra a
coroa.
A inconveniência de imprensa aqui era tão consensual que nem mesmo os holandeses, que
introduziram no nordeste brasileiro alguns elementos burgueses, não quiseram trazer tipografia para
cá. As iniciativas foram desbaratadas. Uma gráfica montada em 1706 em Recife foi desmantelada
em junho antes que houvesse impresso algo. Em 1746 no Rio, um impressor português trouxe uma
oficina que Portugal mandou queimar e avisando que seu uso resultaria em prisão. Sodré cita uma
fala de Moreira de Azevedo a respeito da situação: “não convinha a Portugal que houvesse
civilização no Brasil. Desejando colocar essa colônia atada ao seu domínio, não queria arrancá-la
das trevas e da ignorância” (AZEVEDO, Apud. SODRÉ: 1966, p. 21)
A ignorância era estratégia de governo, necessidade imperiosa para os que exploravam os
outros. A estratégia portuguesa elevava ignorância à condição de virtude. A prensa chega aqui em
1808 pelas mãos do Conde da Barca, e logo se criou uma junta para examinar o que se mandava
publicar. Era a censura.
Antônio Cândido tem um capítulo de seu A Formação da Literatura Brasileira dedicado ao
tema, porque, pensando a literatura na condição de um sistema que dependeria de público leitor,
gráficas, comércio livreiro, percebe a importância do momento histórico de 1808. “Imprensa,
periódicos, escolas superiores, debate intelectual, grandes obras públicas, contato livre com o
mundo (numa palavra: a promoção das luzes) assinalam o reinado americano de dom João VI,
obrigado a criar na Colônia pontos de apoio para o funcionamento das instituições” (CÂNDIDO:
1857, 215). Portanto, movido pelo acaso das invasões de Napoleão contra Portugal. “Muitas das
aspirações mais caras aos intelectuais brasileiros da segunda metade do século XVIII foram aqui
realizadas nos primeiros anos do século XIX com apoio do próprio governo que as combatera”
(CÂNDIDO: 1857, 215).
Discordamos que seja o caso de falar em Iluminismo o que aponta por parte do autor, ou
para a necessidade de demarcar um marco histórico muito importante, ou para a pura ironia. Nosso
Iluminismo foi a chegada aqui de uma folha mensal de 100 páginas? Talvez cândido tenha tentado
dar uma ênfase ao fato por ser uma radical ruptura. Porém, os dados novos concretos eram dois
jornais. A Gazeta do Rio de Janeiro, com quatro páginas, semanal, era dirigida por frei Tibúrcio José
da Rocha sob tutela de dom João VI. Sodré diz dele que trazia notícias sobre as cortes europeias,

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estado de saúde dos monarcas, não havia manchas em suas páginas a respeito da luta pela
democracia, e o Brasil era o paraíso terrestre em suas páginas. O outro jornal era o Correio
Brasiliense, feito na Inglaterra pelo fugitivo da Inquisição portuguesa Hipólito da Costa. Da visão
positiva de Antônio Cândido sobre ele já falamos mas a seguinte passagem resume bem: “o maior
jornalista que o Brasil teve, o único cuja obra se lê toda hoje com interesse e proveito, foi um
escritor e um homem de pensamento, exprimindo melhor que ninguém os temas centrais da nossa
época das luzes” (CÂNDIDO, 1956, p. 246). Cândido realmente valorou muito positivamente este
marco histórico.
Sodré pensa de modo bem distinto sobre Hipólito. Acha que a suposta liberdade crítica do
jornal vinha do fato de ele ser feito no exterior, longe do território de polícia português. Fazer um
jornal fora do país não chega a ser um problema. O que é mais grave é que Sodré acha que a própria
ótica do jornal era uma ótica externa, mais preocupada com as condições internacionais do
comércio com o Brasil do que com os problemas nacionais. A crítica contra o governo joanino era
assim sempre administrativa. Crítica à abertura dos portos por ser muito tímida, por exemplo. Mas é
escandalosa a falta de posicionamento de Hipólito sobre o abolicionismo, o problema da escravidão
e tráfico humano. Para Sodré, Hipólito era um sujeito ético mas não era revolucionário. Há uma fala
exemplar disso extraída de um exemplar do Correio Brasiliense de 1811: “ninguém quer reformas
mais do que nós, mas que sejam reformas feitas pelo governo e não pelo povo”. Sua relação com o
governo português assim oscilava. Ora o jornal era perseguido, ora se fazia vista grossa ao ingresso
dele no país. Há até mesmo registro de uma troca de cartas em que o governo joanino propunha
assinar um certo número de jornais. O público usual era o capital comercial. A população letrada
aqui era diminuta. Sodré conclui: “a etapa econômica e social atravessada pela colônia não gerava
as exigências necessárias à instalação da imprensa”. (SODRÉ: 1966, p. 21).
Em sua visão, nossa primeira fase do jornalismo seria do que ele chamou de jornalismo
áulico, ou seja, feito pela coroa portuguesa para defender seus interesses. Hipólito era apenas uma
pequena variante do mesmo tema, interesses ingleses. Ambas as origens do jornalismo, portanto,
estavam distanciadas de propósitos Iluministas. Se aderirmos à definição de jornalismo como
projeto do iluminismo, não seriam propriamente jornalismo. Com base na necessidade de defesa de
interesses, dom João VI criou e financiou jornais no Brasil para combater ideias iluministas mas
também financiou um jornal em Londres para rebater críticas de Hipólito, O Investigador
Portugues. A aversão à liberdade se encontrava tão entranhada no Brasil que até mesmo o
movimento de independência pernambucano de 1817, ao se dar a si mesmo de fato independente de
Portugal, colocou em sua Constituição uma cláusula que limitava a liberdade de imprensa, já que
era vedado aos jornais fazer críticas à religião, à constituição, aos bons costumes e aos indivíduos.
Desta fase de nosso jornalismo, veremos ainda que nem se pode ainda falar em teoria que o fosse
capaz de explicar ou problematizar, embora o espírito das teorias administrativas, de que o povo
deve ser controlado também por intermédio do jornalismo, já esteja se manifestando na forma mais
primitiva e intuitiva, ou seja, não teórica, de uma cultura da alienação total a serviço de um poder
despótico sobre o povo.

2.3 O complexo relacionamento entre o jornalismo da Independência e a liberdade

A grande novidade do jornalismo a partir de 1821 será um processo que se repetirá ainda
duas vezes ao longo do século, e que consiste no afrouxamento das perseguições policiais e da
violência contra os produtores de jornais críticos. Manifestações críticas por intermédio do
jornalismo anteriores ao surgimento das condições do Estado de Direito que as garantisse de modo
estável. Por isso, tanto nesse ano quanto nas ocasiões posteriores, o que estará em jogo não será a
conquista efetiva da liberdade, mas apenas uma concessão provisória garantida por algum grupo de
poder em face do enfrentamento de alguma crise e divergência entre grupos poderosos adversários.

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O episódio de 1821 é exemplar. Dom João VI estava no Brasil desde 1808. Houve um
estopim revolucionário burguês no Porto em 1820, que exigiu a volta de dom João VI a Portugal no
ano seguinte, além de ter obrigado o monarca a fazer inúmeras concessões. A classe burguesa liberal
portuguesa em ascensão obrigou que ele voltasse ao país para assinar uma Constituição que poria
fim ao poder feudal em declínio. Mas, antes de voltar para Portugal, dom João VI ainda foi
obrigado a assinar aqui também uma lei que garantia certa liberdade de imprensa no país em
conformidade com os ideais liberais que passariam a vigorar em Portugal. Chegando lá, após serem
adotadas algumas medidas preliminares, ele restabeleceria à força seu poder absoluto. Porém, nos
dois anos consumidos para tanto, se abriu a oportunidade para que muita coisa mudasse por aqui.
Ficamos independentes de Portugal.
Sodré descreve o penoso processo pelo qual se construiu o apoio ao movimento já que a
Independência não foi unanimidade desde logo, foi uma construção lenta tanto em termos de adesão
quanto de construção de consenso. A ausência do monarca, entretanto, e essas oscilações, deram
abertura para circular uma imprensa que defendeu a Independência, e a imprensa que defendeu a
Independência ajudou para que ela se efetivasse na realidade histórica. Movimento de mão dupla
portanto entre jornalismo e sociedade, dialética. O argumento definitivo para que as forças
conservadoras aderissem ao movimento por aqui, entretanto, foi a previsão bastante evidente de
que, restabelecido o absolutismo em Portugal, o monarca voltaria a impor o fechamento dos portos,
ou seja, a recondução do Brasil ao que havia de pior de sua condição Colonial totalmente
dependente financeiramente da corte. A abertura dos portos era considerada tímida, fato que foi
motivo constante de questionamento por Hipólito da Costa, porque os interesses ingleses a queriam
mais ampla. Mas foi um passo importante. Antes, as cargas brasileiras tinham de ir a Portugal para
ser comercializadas e encaminhadas aos países compradores. Depois, cinco portos brasileiros foram
autorizados a exportar e recolher aqui mesmo os tributos. O dinheiro que ficou na colônia gerou
desenvolvimento econômico. Portanto, a possibilidade de um novo fechamento conseguia
descontentar a todos que viviam aqui, e permitiu aglutinar todas as forças econômicas e políticas
capazes de resistência no Brasil, até mesmo, ferozes inimigos, os liberais, os representantes das
classes escravagistas, todos aqueles que detinham o poder econômico. Foi sobre este pano de fundo
que se construiu o movimento da Independência.
No âmbito do jornalismo, surgiram novos veículos. A maior parte ainda jornais áulicos ou
isentos. O Diário do Rio de Janeiro se propunha ser somente informativos e destituído de pretensões
de influência política. Levava tão a sério sua imparcialidade que não chegou a noticiar a
proclamação da Independência. Isso não isentaria seu redator Zeferino Meireles de sofrer um
atentado, onde morreu. Já se sabia desde então que não dizer também é se posicionar. Porém
começaram a surgir outros tipos de jornal. Muitos jornais defendiam a Independência. Sodré
destaca o papel de Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa então. Editores do
Revérbero Fluminense (de 1821), órgão doutrinário da Independência, teriam convencido o príncipe
dom Pedro que convocasse uma constituinte. Assim, apesar de o 7 de Setembro não ter rendido
qualquer repercussão, a Independência estaria feita por um ato de insubordinação legal e
administrativa. A independência também foi um ato burocrático. O Brasil teria uma lei
independente. Tendo outra lei, não era mais Portugal. Foi este o caminho seguido, com apoio de
forças liberais e também das forças escravagistas conservadoras. Mas foi a partir da confirmação
desta vitória que as contradições das divergências radicais dos grupos que aderiram ao movimento
passaram a se explicitar.
Proclamada a Independência, automaticamente surgia o problema do modelo de governo a
ser adotado no país. Separavam-se os interesses e a liberdade vai ser cassada tanto na imprensa
quanto no campo político. Jornalistas são acusados e passam a ser perseguidos também. A
constituinte é fechada em 1823, e dom Pedro I proclama uma Constituição a seu gosto em 1824.
Começa uma fase de perseguição à imprensa que vai se estender até 1826. Segundo Sodré, a
decepção deve ter sido muito grande porque alguns confundiram a causa da Independência, que

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aglutinou todos os interesses, com a causa da Liberdade, que gerava divergências e não tinha maior
adesão. Aqueles que se iludiram viram seus sonhos de emancipação e abolição evaporar.
Foi uma fase rica da imprensa porque órgãos como o Malagueta não se intimidavam. O
jornal de Luís Augusto May circulou livremente antes da Independência, depois, passou a sair
irregularmente. Foi protagonista de alguns bate-boca jornalísticos porque dom Pedro I se defendia
contra ele num jornal áulico chamado O Espelho, inclusive com matérias contendo impropérios e
xingamentos com palavras de baixo calão contra os adversários. Como os efeitos do bate boca não
fossem suficientes para contentar dom Pedro, May teve a casa invadida, conseguiu escapar de uma
milícia mas perdeu a mão esquerda e sofreu ferimentos na cabeça.
Cipriano Barata, outro jornalista importante deste período cria em 1822 o jornal Sentinela.
Foi preso, condenado à prisão perpétua, e escreveu, da cadeia, diversos números que fazia circular
não se sabe como. Só foi solto em 1830 quando dom Pedro I ia perdendo o poder. A lição tirada por
Werneck Sodré deste episódio em que os jornalistas eram perseguidos acusados de ser subversivos
por defender causas como o fim da escravidão é que “como todos sabem, subversivo é tudo o que
contraria os interesses da classe dominante. Em 1822, era subversiva a ideia de República”
(SODRÉ: 1966, p. 83)
Os jornais aguerridos deste período foram chamados por Sodré de pasquins, veículos que
circulavam em torno da luta pela liberdade. O espaço para sua circulação nascia do fato de dom
Pedro I ter se afastado de parcela de sua base ao dar o golpe contra a Constituinte. Mas também o
enfraquecia seu desgaste para controlar estados onde ainda havia resistência portuguesa contra a
Independência, e a necessidade de lutar contra a garra destes jornalistas revolucionários que
pagaram sua luta com prisões e até com a morte, como no caso de frei Caneca, autor do Tífis
Pernambucano de 1823. Caneca acusou a igreja de estimular a servidão e o despotismo. Atribuiu
crimes a dom Pedro I no Pará. Combateu a escravidão.
Antônio Cândido (1957: p. 257) chama este gênero de jornalismo libertário e apresenta frei
Caneca como seu típico representante. Apaixonado e totalmente entregue à causa da liberdade,
representava um jornalismo desabrido, panfletário, um punho contra a tirania de dom Pedro I.
Morreu fuzilado.
A censura voltou rapidamente na corte mas nas províncias era mais difícil controlar a
circulação. Os jornais circulam em grande quantidade divididos entre direita conservadora, direita
liberal e esquerda liberal.

2.4 – Novo ciclo de liberdade até 1840

O desfecho histórico destes embates mais uma vez vai ter um pivô. Com diversas frentes de
oposição a seu governo em luta, dom Pedro I resolve fechar uma delas, em 1825, e promove um
acordo com seu pai para que ele reconheça a Independência brasileira. Para tanto houve
intermediação da Inglaterra que coloca esta condição para voltar ao pleno comércio com o Brasil, e
que custaria uma soma considerável a ser paga a Portugal a título de indenização além de benefícios
comerciais para a Inglaterra. Para pagar esta indenização, os britânicos se mostraram cordiais e
ofereceram empréstimos de milhões de libras, o que afundaria a situação econômica do país até
meados do século com o estabelecimento do ciclo do café. Foi nossa primeira dívida externa. As
classes privilegiadas brasileiras pagariam a conta e não gostaram do acordo. Novamente então
passam a facilitar a vista grossa para a circulação de jornais que põe abaixo dom Pedro I.
Em 1830 uma série de fatos vai desencadear a crise da abdicação. Em setembro, estudantes
comemoravam a queda de Carlos X da França com insultos antimonarquistas. Foram reprimidos e
um jornalista que dava apoio ao movimento, Líbero Badaró, foi assassinado em 20 de novembro.
Dom Pedro I faz uma viagem a Minas que é denunciada pela imprensa como preparação de um
golpe absolutista. Na volta ao Rio, começam conflitos de rua que culminam com a noite das
garrafadas, quando simpatizantes e oponentes de dom Pedro I se atracaram violentamente. As ruas

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se tornam perigosas para o imperador. Sofrendo pressões e sem apoio militar, entrega sua abdicação
e foge do país em 7 de abril de 1831.
O período que se segue é de liberdade de imprensa sob a regência que cuida do governo para
a criança dom Pedro II até que tenha idade para governar. O Poder Legislativo está fortalecido, com
membros eleitos. Há muita discussão e união de liberais, e mesmo o fantasma de uma tentativa de
retorno e golpe de dom Pedro I desaparece com a morte do antigo governante em 1834. Mas a
exemplo dos períodos de liberdade anterior, quanto mais pensamentos liberais burgueses avançam,
mais as forças escravagistas conservadoras se unem, a ponto de uma composição entre
conservadores e liberais de direita resultar no golpe da maioridade que eleva dom Pedro II ao poder
em 1840. Aí novamente vai recrudescer a perseguição à imprensa, mas também inicia uma nítida
transformação em seu perfil. Os pasquins e seus embates políticos vão ficar para o passado. Vai
surgir aqui uma imprensa literária, não nos moldes do que víramos enunciar Jurgen Habermas, mas
uma imprensa tributária voltada à literatura mesmo, influenciada pelas práticas de divulgação
cultural dos folhetins franceses.

2.5 O jornalismo se aliena da disputa política e se torna cultura

O golpe da maioridade não foi imediatamente vitorioso. Sodré descreve que durante dez
anos ainda haverá resistência liberal, mas esta se encerrará com a tentativa da Insurreição Praieira.
O período é denominado a reconciliação, mas o que houve foi a extinção da oposição. Havia paz,
mas a paz se deu por eliminação das forças contrárias, com utilização de poder de polícia quando
necessário. O avanço da cultura cafeeira dava sustentação política e econômica ao governo. Em
nenhum outro período da história entraram tanto escravos no Brasil, 50 mil por ano entre 1846 e
1850. O latifúndio dominou o cenário político. A imprensa está em suas mãos e deve contribuir para
consolidar a estrutura escravista. Período típico de jornalismo subalterno, submetido. Sodré expõe
exemplo extremo, Justiniano José da Rocha, que fazia um jornal para divulgar atos do governo e
explicar e defender esses atos de ataques oposicionistas. Numa carta referida por Sodré, Justiniano
cobra ser reconhecido por servir pessoas do ministério. Diz que não “quer ser laranja, de que se
aproveita o caldo, e deita-se fora a casca” (SODRÉ: 1966, p. 182)
O jornalismo combativo foi reprimido e cresce o espaço para o literário. No aspecto político
e econômico é uma fase de ambiguidades porque não existe ainda Capitalismo. Surge a navegação a
vapor, o telégrafo e o cabo submarino, bancos, indústria, um desenvolvimento que faz surgir figuras
do empreendedorismo pioneiro como Visconde de Mauá e Mariano Procópio. Mas o regime
escravagista não dá chance ao estabelecimento de um Capitalismo interno. Não há consumidores.
Não há quem tenha poder aquisitivo para comprar. Não há empregos. O comércio não pode se
desenvolver. Mas as forças produtivas de nível industrial criam pressão para que se deem estes
passos. O governo proíbe a vinda de novos escravos em 1850. Estimula-se a substituição da mão de
obra apesar das resistências. Cresce um fluxo migratório de diversos povos que passam
necessidades nos países de origem: alemães, italianos. Porém ainda não éramos capitalistas. Não
havia consumidor. A maior fatia da produção se baseava em mão de obra escrava. Faltava passar a
limpo o problema da escravidão.
As próprias ideias críticas que os jornais poderiam divulgar se encontravam aqui fora de
lugar. O trabalho livre é o princípio da ciência da Economia Política, seja ela liberal ou marxista. No
Brasil do século XIX em lugar do trabalho livre “há o fato impolítico e abominável da escravidão”
(SCHWARZ: 1992, p. 1). Segundo Schwarz este fato coloca o Brasil fora do sistema da ciência,
“simples aberração frente ao Iluminismo” (SCHWARZ: 1992, p. 1). Por isso José de Alencar vai
dizer que a escravidão humilha o brasileiro. Mas ainda haverá quem defenda o regime, com base
nos problemas da miséria do Capitalismo, dizendo que antes bons negros servindo de escravos que
deixar o pobre irmão branco morrer de fome. Os conservadores dizem que os liberais são hipócritas,
criticam o Capitalismo interno e dizem que nosso escravo é feliz.

21
Estas contradições começam a aflorar quanto mais o ideal de modernidade avança por força
das evoluções dos meios de produção econômicos. Os novos meios exigem mão de obra
qualificada, mas o escravagismo não qualifica ninguém. Exigem consumidores, mas escravos não o
são. Frente a cobranças internacionais de que se resolva a mazela da escravidão, a política mostra
um Brasil para inglês ver, buscando modernidade, à beira de sólidas transformações, mas elas nunca
vêm. A referência da Constituição de 1824 aos Direitos Humanos é uma piada de mau gosto. O
regime de trocas sociais era baseado no senhor e no favor. No fundo para o mercado internacional
liberal não importa muito o sistema interno de cada país e suas relações sociais. Mas isso tudo
impede os avanços como os da divisão e especialização do trabalho. A industrialização. É um tempo
em que “a ciência era fantasia e moral, o obscurantismo era realismo” (SCHWARZ: 1992, p. 4)
Neste mundo do faz de conta, as revistas louvam o Iluminismo, mas oferecem um conteúdo
mais voltado a charadas, conhecimentos gerais e folhetim. O auge da hipocrisia para Schwarz é o
hino da República, de 1890, quando diz que “nós nem cremos que escravos outrora, tenha havido
em tão nobre País”. Outrora era dois anos antes.
Mas o espaço para as mudanças começa a surgir na década de 1860. Paula Brito era um bom
exemplo. Mulato, homem do povo, começou como tipógrafo do Jornal do Comércio e montou um
jornal próprio. Abriu as portas de seu veículo para Manuel de Macedo e Machado de Assis, foi um
dos primeiros abolicionistas. Em outros jornais do período como o Sete de Abril, escreviam as
maiores figuras do final do século como Rodrigues Alves, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Castro
Alves. Principia nesta evolução a fase que Sodré chama de agitação.
O impulso real para promover as transformações urgentes surge com a Guerra do Paraguai.
Estimulado pelos Ingleses para destruir o país vizinho que dava sinais de desenvolvimento
importantes, Brasil, Argentina e Bolívia protagonizaram um genocídio4. Por outro lado, a conta
desta guerra ficou alta para o Brasil, tanto em termos de dívidas assumidas quanto em termos de
recursos humanos, pois a política do Imperador para encontrar soldados foi prometer liberdade a
escravos e indenizar os escravagistas, que não ficavam nada contentes. Os capitais buscavam novas
atividades com o fim do tráfico e começaram a surgir investimentos em diversas atividades
burguesas e também em jornais empresariais mais robustos. As faculdades em maior número
começavam também a formar mais bacharéis e se ampliava o número dos jornais universitários de
perspectiva crítica.
Inovação importante foi o surgimento dos jornais de gravura, como o Diabo Coxo do
italiano Ângelo Agostini. É preciso lembrar que a maior parte da população ainda era analfabeta.
Nas eleições de 1886, quando passou a ser exigida alfabetização para votar, a participação nas urnas
caiu de 13% da população para 0,8%5. Com a nova exigência, os índices de alfabetização vão
crescer, mas esta obrigatoriedade faz pensar se a alfabetização avançara mesmo ou se os
alfabetizados também não o seriam só na hora de votar, desaprendendo logo a seguir. Por isso os
jornais de gravura traziam muitas caricaturas e algumas poucas frases que eram lidas nos ambientes
públicos para que o jornal se fizesse entender. Numa campanha, o jornal oferecia um par de olhos
para quem enxergasse um patriota animado com a guerra. A concentração urbana fomenta o
desenvolvimento da imprensa. Em 1868 o Diário do Povo de Tavares Bastos combate o governo
conservador e defende a República. Em 1870 começa a circular no Rio A República, folha do
Partido Republicano Brasileiro. Lança um manifesto escrito por Quintino Bocaiuva após viajar aos
Estados Unidos, Argentina e Paraguai. A tiragem do diário chega a 10 mil exemplares. Defendeu
Tiradentes que era figura até então esquecida. Em 1873 a redação é invadida.
Sodré calcula que de 1870 a 1873 surgiram vinte jornais republicanos e abolicionistas. A
Revista Ilustrada de Agostini alcança 4 mil exemplares de tiragem. Ela se engaja na campanha
abolicionista, alinhando ainda José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, que definiram a Revista
Ilustrada como a “Bíblia da abolição dos que não sabiam ler”. Segundo Sodré, foi o maior

4 Ver CHIAVENATO, Júlio José. Genocídio americano: a guerra do Paraguai, 1979.


5 Ver VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

22
documento ilustrado da nossa história, e pôs a nu os traços grotescos da classe dominante
escravagista.
Como se vê, surge mais um período de ampla liberdade de imprensa que irá reforçar os
ideais de reforma. Em 1880, Joaquim Serra dizia em O Abolicionista que “o trabalho escravo é a
causa única do atraso industrial” (SODRÉ: 1966, p. 235). Luís Gama, jornalista negro de São Paulo
e José do Patrocínio no Rio eram apaixonados abolicionistas. O marechal Deodoro da Fonseca
adere ao movimento abolicionista e sai candidato ao senado. Os jornais o apoiam e ele retribui o
apoio em 1887. O desfecho do Império nasce com uma consulta oriunda da Câmara de São Borja no
Rio Grande do Sul, que questiona dom Pedro II se seu sucessor será a filha Isabel, a chamando de
fanática, casada com príncipe estrangeiro. Nossa mentalidade patriarcal não estava pronta para uma
governante mulher. Ainda teriam de se passar 121 anos até que o Brasil tivesse uma.
Inicia-se então uma ampla campanha republicana amparada pela Gazeta de Notícias. Rui
Barbosa e Lopes Trovão atacam o trono no Diário de Notícias. A princesa Isabel proclama a
Abolição em 1888 numa tentativa financiada por seu pai de melhorar sua popularidade e fortalecê-
la para a sucessão. Mas para os escravagistas esse ato representou a gota d’água, uma ruptura e o
fim de qualquer perspectiva de apoio. Começa a crescer a agitação. Em 15 de novembro de 1889 é
proclamada a República e Deodoro empossado presidente do governo provisório.

2.6 - Jornalismo industrial do século XX

Há uma prova incontestável de que o jornalismo livre efetivamente se estabelecera com este
novo regime republicano. Nossos jornais mais importantes eram monarquistas. Não houve grande
mudança no desenvolvimento da imprensa e eles se tornaram mais combativos, atacando o governo.
Em 1891 surge o Jornal do Brasil, monarquista também. Ingressamos no período do jornalismo
livre já numa fase de desenvolvimento tecnológico que elevara o jornal a empresa comercial
Capitalista, dependente de grande investimento de capital na aquisição de máquinas para sua
viabilização. Ou seja, nosso jornalismo nasce numa fase em que os meios de produção industrial já
são o padrão do jornalismo no restante do mundo. Este modelo será importado. E o Capital dos
escravagistas vai constituir os primeiros empreendimentos deste porte por aqui, ainda que modestos
dada a incipiência de nosso mercado consumidor e base de consumo também.
O reconhecimento do papel do jornalismo para o estabelecimento da República resultou que
vários jornalistas ativistas republicanos são chamados para compor o governo: Rui Barbosa,
Quintino Bocaiuva. Este último, para Werneck Sodré é o representante típico do jornalista do
período. Teve acesso ao estudo, foi escritor, homem culto, personalidade marcante do tempo,
republicano convicto. Será somente a partir deste momento histórico que poderá fazer sentido o que
as teorias do jornalismo desenvolvidas desde o século anterior discutiam. Caso muito particular a
situação histórica de um país em que as teorias que explicam o que ocorreu no mundo vão começar
a poder explicar o que aqui ainda tem de acontecer.
Werneck Sodré reproduziu o depoimento de um jornalista que veio ao Brasil para cobrir a
implantação da República e que é muito ilustrativo neste sentido:

A imprensa no Brasil é um reflexo fiel do estado social nascido do governo paterno


e anárquico de dom Pedro II: por um lado, alguns grandes jornais muito prósperos,
providos de uma organização material poderosa e aperfeiçoada, vivendo
principalmente de publicidade, organizados em suma e antes de tudo como uma
empresa comercial e visando mais penetrar em todos os meios e estender o círculo
de seus leitores para aumentar o valor de sua publicidade do que empregar sua
influência na orientação da opinião pública.
A imprensa em conjunto não procura orientar a opinião por um caminho bom ou
mau; ela não é um guia, nem compreende sua função educativa; ela abandona o
povo à sua ignorância e à sua apatia.

23
O Jornal do Comércio é uma espécie de Times sem virilidade, um bom repertório
de fatos, um conjunto útil de documentos.
A Gazeta de notícias tem Ferreira Araújo, excelente jornalista, julga os homens
com ironia, escreve com precisão e elegância raras. Julgou o Império e manteve
sua independência com a República. Talvez seja o único no país a ter a ideia justa
da missão do jornalista.
(LECLERK, Max, Apud SODRÉ: 1966, p. 252-253)

É claro que, se a imprensa não sabia que deveria influenciar a opinião pública em 1889
como acreditava Leclerk, muito rapidamente ela aprenderia esta lição, principalmente a partir do
momento em que esta opinião pública passasse a ser o mecanismo pelo qual seriam escolhidos os
representantes do poder político. Não são necessárias teorias para aprender isso. Mas o surgimento
de teorias administrativas são um sinal de que os produtores de informação descobriram que tinham
de trazer para si esse papel de dominar e transformar as pessoas. A ironia é que, ao mesmo tempo,
seu surgimento já é uma explicitação que mostrar e elucida esse novo papel perverso da mídia. Por
outro lado, seu surgimento abre a possibilidade de se dar o surgimento de teorias que critiquem este
papel estabelecido pelas camadas dominantes da sociedade. Este aflorar de teorias serve de exemplo
ao que o filósofo Georg Hegel comparou as teorias a um voo de ave que sempre se dá no entardecer,
a partir do já dado.
O que talvez nem mesmo uma teoria seja suficiente para imaginar é a lufada de ar puro que
deve ter representado uma abolição da escravidão tão tardia. Sabe-se a influência que representou
para a Filosofia europeia o primeiro grande movimento de libertação de escravos promovida por
uma insurreição bem-sucedida no Haiti contra o domínio colonial francês. Ora. Ele ocorreu em
1791. Cem anos antes da nossa. A Abolição trilhou aqui um longo e árduo caminho enquanto se
passavam estes cem anos, divorciada do processo de Independência com o qual somente pudera
flertar. Mas mesmo com tamanha transformação, surgiam então os novos problemas. Assim,
libertos, sem uma sociedade que os absorvesse para o trabalho, dirigiam-se ao jornal Cidade do Rio
de José do Patrocínio, que lutara arduamente pela abolição. O jornal torna-se ponto de encontro dos
libertos que vão lá para comer na cozinha e restaurantes montadas pelo dono do jornal para
alimentar este povo abandonado. Por ocasião do isabelismo, Patrocínio aproximou-se do imperador
por gratidão, fato condenado por muitos que fez alguns jornalistas se afastarem do veículo.
Muito difícil julgar qualquer um, frente ao que estava acontecendo. O que deveria ser grande
motivo de felicidade e alívio foi também um tempo de incertezas, fome. Um ato que isentou os
escravagistas dos encargos para manter sua mão de obra viva e que lançou uma multidão que não
teria o que comer e o que fazer no bojo de um Capitalismo recém-desperto de um longo sono
dogmático, na pureza de um absolutamente livre deixar fazer do liberalismo que, por um passe de
mágica, jogara na nova situação poucos muito ricos e possuidores de propriedades, meios de
produção e bens, e outros absolutamente destituídos de qualquer coisa e que teriam de começar a
encontrar formas de se alimentar e conseguir recursos para vestir o próprio corpo.
Acabamos de ouvir na voz de um estrangeiro as palavras paternalista e anárquica.
Ingressamos agora num mundo somente anárquico, de órfãos, em que cada um é por si e surgirá
uma legislação cujo objetivo é a defesa dos valores burgueses, ou seja, da propriedade privada. Ela
será defendida. Mas a maioria da população não tem nada. Analisando a dialética da esfera pública,
Habermas diz que Hegel tinha uma visão muito clara da sociedade burguesa do início do século
XIX: “louva uma vez as leis dela, apontando a Economia Política de Smith, Say e Ricardo como
aparência de racionalidade, mas a sua visão do caráter ao mesmo tempo anárquico e antagônico
desse sistema de necessidades destrói decididamente as ficções liberais, sobre as quais repousava o
auto-entendimento da opinião pública como sendo a razão nua e crua” (HABERMAS,1984, p. 143).
O que o filósofo percebera é que o liberalismo burguês não supera dialeticamente a desigualdade
social, ao contrário, eleva-a a um nível inimaginável até mesmo nos campos da formação intelectual
e moral porque, por um lado, aumenta o acúmulo de riquezas, por outro prende uma classe às

24
limitações do trabalho assalariado singular, fazendo aumentar exponencialmente a miséria. Diz
Hegel que “apesar de seu excesso de riqueza, não é a sociedade civil (burguesa) suficientemente
rica, isto é: na sua (peculiar) riqueza, ela não possui o suficiente bens bastantes para pagar o tributo
ao excesso de miséria e à plebe que ela cria.” (HEGEL, 1976, p. 209)
Perceba-se que Hegel não está fazendo um estudo a respeito do Brasil ou do Haiti. Mas sim
do liberalismo europeu em 1821. Desta miséria da qual Marx retirará as consequências mais
concretas, até mesmo porque viveu num momento em que as contradições já se haviam agravado
em especial na Inglaterra, Hegel tira outra conclusão que nos interessa. Nesta carência que pode
gerar até convulsões sociais, a sociedade civil “é obrigada a procurar fora de si os consumidores e,
portanto, os meios de subsistir, recorrendo a outros povos que lhe são inferiores nos recursos que
ela possui em excesso, em geral na indústria” (HEGEL, 1976, p. 209). Em outros termos, lançar-se
a um colonialismo internacional capitalista. Ora. Brasil e Haiti estão na outra ponta deste
relacionamento dialético.
No âmbito interno desses países explorados, o grau da miséria será inacreditável. O
problema que agora surge é que há um tipo de teoria que aponta para um jornalismo que não tem
nada a ver com essa história. Para ela, a história do jornalismo do século XX será a história do
jornalismo industrial e empresarial, os modos de produzir informação objetiva, os fluxos da
informação até virar notícia, e a apropriação destes meios para colocá-los a serviço dos mecanismos
de governalidade do Estado burguês. Outra família de teorias do jornalismo vai denunciar este
racionalismo instrumental que torna ascéticos os processos de dominação das massas de população
e de governo dos vivos, apontando para a nova tipologia de problemas que vai aflorar no jornalismo
brasileiro de forma mais clara principalmente a partir da década de 1970. Aqui apresentamos
somente os elementos historiográficos do período. Mas o entendimento em toda a sua concretude só
pode nascer da visita às perspectivas teóricas que veremos ainda adiante e que mostram em toda sua
profundidade a complexidade da nova situação: o papel do jornalismo na sociedade capitalista.
Portanto é a partir do jornalismo do século XX que as teorias do jornalismo deixam de ser
instrumentos que somente fazem algum sentido e passam a ser instrumentos sem os quais nem
mesmo é possível entender o que acontece com o jornalismo no Brasil em suas implicações mais
profundas e concretas.
Werneck Sodré faz a história destes dois caminhos, do jornalismo industrial e empresarial do
século XX, mas também do jornalismo operário, anarquista do princípio do século, faceta do
jornalismo à qual outras historiografias não vão reservar espaço nenhum. Portanto, mesmo sem ser
um ramo teórico em sentido estrito, também numa historiografia há opções teóricas que aproximam
uma história inspirada por teorias administrativas ou por teorias transformadoras do jornalismo.

2.7 – Estabelecimento do jornalismo empresarial

O jornalismo empresarial vai se constituindo a partir do capital daqueles que eram até 1888
escravagistas, monarquistas, que passarão a constituir nosso setor agrário. A Tribuna era um jornal
monarquista. A morte de um revisor do jornal se torna um dos pivos das pressões que começam a
isolar Deodoro. Mas o verdadeiro problema do governo de transição era sua disposição a
transformações mais profundas. O tema de sempre em nossa história. Outros jornais monarquistas,
como o Jornal do Brasil, dão força aos ataques financiados pelos conservadores, tornando-se um
grande grupo, correspondentes internacionais, e tirando 5 mil exemplares, ou seja, um jornal que só
podia dar imensos prejuízos a seus proprietários. Mas o objetivo deste jornalismo não era dar lucro.
Tratava-se ainda daquele tipo de jornalismo subvencionado que existiu na Europa no início do
século XIX muitas vezes financiado também por grupos de poder para defender opiniões num
mundo em que a opinião pública passara a ser um meio de luta política partidária. O jornalismo
empresarial tem parentesco com o jornalismo áulico, só que agora em lugar de servir ao imperador
vai servir aos interesses de grupos econômicos da recém-fundada burguesia agrária.

25
O que a elite agrária brasileira percebe muito rapidamente é que não valia muito a pena bater
na ideia de retorno à monarquia, visto que o processo republicano abria condições para que seu
capital fosse destinado a alguns mecanismos, como os jornais, por meio dos quais se poderia
controlar todo o Estado administrando a opinião pública. Esta faria eleger os representantes dos
seus interesses para os cargos políticos. Livrava-se assim de um monarca que poderia ser mais ou
menos conveniente e se adotava um regime em que o poder econômico colocava o Estado a seu
serviço. O importante então era ter o domínio sobre os meios de divulgação que se tornariam o
dispositivo por meio do qual se conduziria as pessoas a votarem naqueles que seriam conduzidos
para os cargos do Estado. E isso dirigiria naturalmente o Estado para as mãos do Capital porque os
meios técnicos e recursos necessários para manter uma empresa jornalística só seriam acessíveis ao
grupos de poder cada vez mais centralizados nas mãos do capital. Joaquim Nabuco escreverá um
artigo premonitório falando as “Ilusões Republicanas”. A escravidão havia acabado e seria motivo
já de comemoração. Mas e o resto? Os novos projetos adiados seriam da ordem da Reforma
Agrária, das políticas sociais, de universalização da educação e da cultura, das reparações para
famílias descendentes de seres humanos escravizados por séculos, só para citar algumas que estão
longe de serem solucionadas mesmo nos tempos atuais.
A base de apoio para estes projetos que, após a renúncia de Deodoro, passaram a ter como
novo defensor Floriano Peixoto, era uma classe média burguesa que ameaçava o latifúndio. Como o
caminho de um embate armado não funciona para os conservadores, eles lançam mão da maneira
política com a eleição de Pudente de Morais que inaugura uma ocupação exclusiva da presidência
pelo setor agrário conservador até 1930, com a exceção de Hermes da Fonseca de 1910 a 1914.
Outro episódio do qual não se pode furtar uma referência é o Arraial de Canudos. Chegavam
da Bahia confusas notícias em 1896 sobre um grupo monarquista fortemente armado e treinado por
nações estrangeiras que teria destroçado já duas forças locais. O republicano Euclides da Cunha é
enviado para acompanhar a quarta expedição contra o arraial após a notícia de que o experimente
general Moreira César também teria fracassado frente a forças armadas experientes formadas ainda
desde a ocasião da Guerra do Paraguai. Escreve para o jornal textos que dão informações obtidas
dos militares sem ter posto os pés na região, a 700 km de Salvador, escrevendo um famoso editorial
intitulado Nossa Vendeia, fazendo referência a um movimento contrarrevolucionário oposto à
Revolução Francesa, em que católicos e defensores do rei se confrontaram aos republicanos.
A grande lição deste episódio para o jornalismo foi aprendida por Euclides do modo mais
trágico quando finalmente se dirigiu ao local e viu o que realmente havia acontecido ali, um
massacre contra um povo simples e religioso sob a liderança messiânica do beato Antônio
Conselheiro, que, no auge de sua miséria, construíra um refúgio comunitário que incomodava os
coronéis latifundiários locais. Choque entre dois países, o Brasil do litoral e o do interior. Entre dois
povos que não se reconheciam, antes se assassinavam. O dos centros urbanos que começam a
ingressar num proto capitalismo e o rural que vive ainda num ambiente caótico posterior à
Abolição. O jornalista Euclides da Cunha se redime e passa toda a história a limpo depois de alguns
anos de meditação, que resultaram num dos maiores trabalhos de reportagem jornalística da nossa
história, Os Sertões de 1903.
Em linhas gerais, em todo este período se consolida a “liberdade de empresa”. Há liberdade
de imprensa plena no sentido liberal. Mas ela não pode ser exercida por qualquer um. Quem tiver
dinheiro terá um jornal ou simplesmente, como descreve Sodré, aluga um: “passa a ser mais barato
comprar a opinião de um jornal do que ter um… vendia-se informação como se vendia qualquer
outra mercadoria… a imprensa, no início do século, havia conquistado o seu lugar, definido a sua
função, provocado a divisão do trabalho em seu setor específico, atraído capitais” (SODRÉ: 1966,
p. 275 )
Os jornais menores lutam pela sobrevivência mas seus públicos reduzidos diminuem até
mesmo seu poder de propagação de ideias. Começam a se render a artifícios para tentar vender
mais, apelando até à divulgação de resultado do jogo do bicho. Alguns articulistas como José do

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Patrocínio escrevem importantes artigos de fundo, mas passam a alugar sua pena. Muitos entraram
em decadência, tiveram de hipotecar imóveis, perderam a gráfica. Para quem queria influir na
opinião, a compra da imprensa passa a ser uma alternativa mais promissora do que montar um
jornal. Vemos apontar o que Habermas diagnostica como grande transformação da esfera pública,
os jornais começam a monopolizar a porta que dá acesso a ela e a cobrar ingresso. Sodré diz que o
personagem típico é João Laje, que oferece a compra do jornal de forma estável sem preconceitos
de ordem ideológica. O governo também se torna freguês recorrente. Na primeira fase do
jornalismo empresarial só o Estado e o capital comercial tinham condições de sustentar o jornalismo
empresarial. É o que Sodré chama de transição da pequena à grande imprensa empresarial.
Outro personagem citado por Sodré é Alcindo Guanabara, jornalista político que serviu
sucessivamente ao combate ao abolicionismo, ataque aos republicanos e depois defesa dos
republicanos. É a respeito dele que se diz ter surgido a anedota sobre Cristo. Pedem ao jornalista
que escreva sobre Jesus, mas o jornalista pergunta: devo escrever pró ou contra?
Passa a ser fácil destruir um jornal. Não eram mais necessários atos de violência. Bastava
cortar o crédito, os anúncios, as campanhas comerciais. Os compromissos financeiros de uma
empresa passam a ser seu próprio algoz. Para que isso não ocorra, o que o mercado espera de um
jornal, papel explicitado pelas teorias administrativas, é que se volte para a tarefa de controlar as
massas em colaboração com o projeto de consolidação do capital político e econômico. Só
aceitando este papel se torna possível sobreviver 60 anos um jornal do tamanho do Jornal do
Comércio. O Jornal do Brasil com 62 mil exemplares recebe equipamentos em 1900 para imprimir
fotografias em suas páginas. Esta metamorfose do jornalismo foi retratada criticamente por Lima
Barreto em Isaías Caminha, mas o livro é mal recebido. Em 1906 já existem anúncios coloridos, e o
anúncio da Drogaria América com ilustração fotográfica.
Em 1923, surge a rádio no Brasil. Em 1926 surge o primeiro outdoor numa estrada. Em
1929 vem a agência internacional de propaganda Thompson para cá e faz uma campanha do
automóvel Chevrolet. Uma das mais antigas agências dos Estados Unidos, a Ayer chega em 19316.
É inicialmente a chegada dos grandes grupos anunciantes que terão evidentemente muito poder,
comprarão páginas em branco nos jornais mesmo sem ter ainda os anúncios porque querem ter o
monopólio do espaço para disponibilizar futuramente a seus clientes.

2.8 – A imprensa operária

O polo crítico do jornalismo se desloca então para uma imprensa proletária. Chama a
atenção que Werneck Sodré dá uma ênfase relevante em seu capítulo dedicado ao tema para a
questão da organização. É um jornalismo do coletivo, por isso vai estar ligado com a história destas
tentativas de resistência organizada, a única arma que poderia se opor ao poder do Capital. Ele
destaca o pioneirismo do movimento estudantil neste sentido. Em 1901 surge a Federação dos
Estudantes, mas a seguir uma Federação Operária. Defendendo que o jornalismo não deveria ser
uma profissão, Gustavo de Lacerda sonha com uma associação e cria em 1908 a Associação
Brasileira de Imprensa. Todas estas iniciativas eram combatidas pelos empregadores e vistas como
ordas de desocupados.
A origem deste pensamento associativo tem relação com o recrutamento de campesinos
europeus de países que tinham forte pensamento anarquista nas organizações pioneiras, campesinas
e operárias. Surgem os jornais anarquistas O Despertador, O Protesto, O Golpe. Em 1908 sob
pressão do setor agrário é aprovada lei que permite expulsar do país agitadores estrangeiros. A Voz
do Trabalhador tirava 4 mil exemplares e sua redação em Belém foi invadida em 1914 por defender
operários em greve. Estes jornais se posicionaram contra a Guerra de 1914, dizendo que era uma
luta promovida por senhores das finanças e do comércio que punham o povo humilde para lutar.

6 Ver SIMÕES, Roberto. A Propaganda no Brasil: evolução histórica. São Paulo: ESPM, 2006.

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No início de 1917 ocorre uma grande greve em São Paulo que termina com vitória dos
operários. Em julho do mesmo ano Lima Barreto escreve, em O Debate, matérias sobre a revolução
russa e sobre uma carta em que o líder revolucionário Vladimir Lênin manifestava apoio ao
movimento grevista paulista. As autoridades reagem, prendem, extraditam os estrangeiros. Esta fase
do jornalismo operário termina assim. Após 1920 já predomina definitivamente a empresa
jornalística capitalista.
Mas não é um período sem conflitos e contradições. Eles somente foram sistematicamente
esquecidos. Trata-se de uma falta de memória seletiva comum ao jornalismo. Em 1910 um
movimetno militar alarma o Rio. Marinheiros e fuzileiros se rebelam na Ilha das Cobras. O local foi
bombardeado por ordens de Hermes da Fonseca, muitos morreram. Nenhum jornal noticiou a
história. Repetição histórica. Em 1984, a rede Globo de televisão não reservaria um único minuto
para noticiar comícios em prol de eleições diretas que reuniram milhões de pessoas nas ruas. No
início do século XX, o setor agrário é que dá sua versão do mundo na imprensa brasileira. Monteiro
Lobato cria a figura do Jeca Tatu, retrato dado como fiel representação do tipo brasileiro do campo,
preguiçoso, vadio, esperto e trapaceiro. Mas esta figura omite as causas da miséria, a existência do
latifúndio. Toda uma outra história elidida.
Era um jornalismo que não entrava nestes detalhes, nem mesmo noticiava o movimento de
1924, da Coluna Prestes, o episódio histórico em que uma milícia de 1500 homens formada pelo ex-
tenentista Luís Carlos Prestes marchou do Rio Grande do Sul até entrar na Bolívia em 1927.

2.9 - A formação do oligopólio e as duas interrupções da liberdade de empresa: 1937 e 1964

Tanto na periodização do jornalismo sugerida por Ciro Marcondes quanto por Jurgen
Habermas vemos que a uma fase empresarial do jornalismo se segue uma fase monopolista. Na
história do jornalismo brasileiro isso ocorre com os Diários Associados, grupo pertencente a Assis
Chateaubriand (Chatô). No auge, somou 18 canais de televisão, 32 de rádio, 7 revistas e 38 jornais.
Mas podemos situar sua origem como conglomerado jornalístico em 1930 quanto Chateaubriand
atingiu uma marca inédita no país, alguém ter cinco jornais.
Na maneira como seu biógrafo Fernando Moraes apresenta, o passe de mágica se deu porque
Chatô percebeu uma oportunidade com o lançamento da candidatura de Getúlio Vargas em 1929
contra a política do café com leite que caracterizou a sucessão presidencial até então. Diz Moraes
que ele buscou apoio do governador mineiro Antônio Carlos e do paraibano João Pessoa, sobrinho
do político Epitácio Pessoa, e teria costurado a chapa Vargas-Pessoa. Feito isso, ao seu estilo,
cobrou a fatura. Precisava de dinheiro para aumentar a abrangência de seus veículos, os jornais
Diário de São Paulo, O Jornal e a revista Cruzeiro. Precisava do Diário de Notícias de Porto Alegre,
e do Diário da Noite de São Paulo e do Estado de Minas, em Minas Gerais. Ainda sobrou dinheiro
para importar impressoras em cor. Foi com esse pulo do gato que juntou capital suficiente para
possuir, em 1944, 26 jornais, 5 revistas, 16 estações de rádio.
Sodré resume a fase dizendo que a concentração da imprensa é brutal. O único jornal novo
que surgirá em 1951, será o Última Hora de Samuel Weiner. A origem seria bem parecida com a dos
jornais de Chatô. Na campanha de 1951 para não correr riscos, Chatô coloca um jornalista para falar
mal de Getúlio, outro para falar bem. Esse era Samuel Weiner. Quando Getúlio é eleito, Weiner teria
cobrado a direção de um jornal a Chatô que o recusa e sugere que ele se torne diretor numa empresa
farmacêutica. Descontente, Weiner teria recorrido a Getúlio, e o presidente lhe sugere que monte
um jornal. Garantiu com seu poder os recursos para Weiner criar a Última Hora. A verdade é que no
Brasil esta foi a fonte principal de capital em quantidade suficiente para criar veículos jornalísticos
empresariais a partir de meados do século XX. O montante de investimentos necessários para
construir a estrutura de rádio e televisão agravam, ainda mais, a situação. Os pesados investimentos
se justificam com fins políticos porque os públicos ainda eram em grande medida analfabetos, o que
aumenta a importância destes novos meios.

28
Seguindo a tradição que já se consolidara no jornalismo empresarial, diz Sodré que as
grandes corporações manipulam a opinião, conduzem as preferências, arrasam reputações,
derrubam governos. Este poder todo se submete em boa medida a forças antinacionalistas, das
agências de notícias e de agências de publicidade. Esta é a grande nova força que desponta no
sentido do controle da mídia. Para dar uma ideia do valor que uma rede destas poderia alcançar,
Sodré diz que na morte do dono do New York Times em 1935 se estimava o valor da empresa em
60 milhões de dólares.
Mas há um fato diferente no Brasil. Contrariando a perspectiva liberal até então hegemônica,
a ideologia nacionalista começa a avançar aqui inspirada pela ascensão de Hitler e Mussolini na
Europa e capitaneada pelo populismo de Getúlio Vargas. A burguesia se assenta em um novo
posicionamento fascista para combater o fantasma do comunismo russo em expansão. O
posicionamento brasileiro em relação ao totalitarismo será bastante ambíguo. O direcionamento
para a direita se articula com uma tentativa de defesa do país frente ao avanço do capital
estrangeiro. A situação da liberdade de imprensa, que era mera ilusão, visto que a mídia toda estava
nas mãos do grande capital, sofre um abalo. Com o abafamento do que foi propagado como ameaça
comunista em 1935, toda a imprensa fomentou o Estado Novo (1937-1945) que foi promotor de
censura por intermédio de um Departamento de Imprensa e Propaganda, de moldes totalitários. Mas
Sodré alerta que a censura pelo Estado é só uma faceta parcial do problema da Liberdade de
Imprensa. Mesmo a chamada imprensa “livre” se tornou instrumento de alienação. É evidente este
processo quando se analisa seu grau de dependência em relação às agências de publicidade.
Findo o conflito, é um golpe militar que coloca o general Eurico Gaspar Dutra no poder
contra Getúlio. A nova constituição de 1946 incorpora alguns ideais nacionalistas como a
determinação de que as empresas jornalísticas têm de ser nacionais e não podem ser sociedades
anônimas. Mas por trás da aparente perspectiva nacionalista, o que está em jogo é a defesa do
capital brasileiro que não quer concorrência internacional no setor. Uma espécie de patriotismo de
classe que soa de modo estranho a quem souber ouvir. A lei deixava de fora, entretanto, todas as
agências internacionais, que eram todas estrangeiras, e a fiscalização fez vista grossa para algumas
iniciativas como Seleções, o grupo Visão e o grupo Abril, nos quais se sabia haver capital
internacional.
Getúlio eleito em 1951 pelo voto retoma a investida nacionalista. Tem um desgaste imenso
com a campanha de nacionalização da exploração do petróleo. Chatô estava na mão inversa, lutou
pela concessão da energia elétrica da ferrovia Central do Brasil para a Light na década de 40. Na
década de 50 acusava Getúlio de ser comunista. Mas a Petrobras vira lei em 1953. Avanços se dão
no campo trabalhista, como carteira de trabalho, estabilidade.
No âmbito da mídia, o único jornal que defendia Getúlio era a Última Hora. Ele cai nas
mãos de uma CPI que descobre a nacionalidade estrangeira de Samuel Weiner, mas que não
incomodou Chateaubriand nem Roberto Marinho, empresários que se sabia terem relações com
dinheiro estrangeiro de diversas maneiras. Vargas suicida-se em 1954.
O que pretendemos destacar é a virada da natureza do conflito em que está em disputa o
controle da mídia. O dinheiro internacional que alimenta a mídia é enorme: Esso, 28 milhões de
cruzeiros; Sidney Ross, 25 milhões; Coca-Cola, 15 milhões; Johnson & Johnson, 13 milhões. Em
1947 a publicidade movimentou 750 milhões, em 1953, já eram 3,5 bilhões de cruzeiros7. A maior
parte dos anunciantes eram estrangeiros e concentravam seus recursos nas poucas agências de
publicidade estrangeiras. Estes números dão visibilidade sobre quem está comprando a opinião.
Os interesses internacionais se farão sentir novamente em 1961, quando, por ocasião da
renúncia do presidente Jânio Quadros, que se dizia vítima de forças invisíveis, há uma tentativa de
golpe para que seu vice, João Goulart, não tomasse posse. O Brasil se torna parlamentarista. O
governo americano produz um plano de contingência caso houvesse necessidade de invadir o Brasil

7 Dados apresentados por Nélson Werneck Sodré (1966, p. 404) a partir da publicação Brasil, de Plínio de Abreu
Ramos, de 11 de novembro de 1960, pgs. 102/103.

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em 1962 para conter os avanços comunistas no continente. Os acenos de Goulart a forças populares
que cobravam nacionalizações, reforma agrária e outras pautas sociais será tachado de iniciativa
comunista e o golpe virá em 1 de abril de 1964, data que é antecipada pela historiografia militar
para 31 de março a fim de evitar sua associação com o dia da mentira8.
Com a instituição do Ato Institucional 5 em 1969, surge um segundo período de censura
prévia à imprensa que durou até 1978. Mas por estranha ironia ela se impõe a seis famílias que já
controlavam o jornalismo, a dos Assis Chateaubriand dos Associados, a de Roberto Marinho do
grupo Globo, a de Júlio de Mesquita Filho de O Estado de S. Paulo, a de Paulo Bittencourt do
Correio da Manhã, a de Nascimento Brito do Jornal do Brasil e a de Octávio Frias da Folha de S.
Paulo. Como elas chegavam ali, não se pode dizer que era um enigma, talvez caiba melhor o termo
maracutaia. “Em São Paulo, antigo criador de aves e ovos, Otávio Frias de Oliveira, tornava-se, por
singular passe de mágica, proprietário da empresa jornalística Folha de São Paulo, que mantinha
três diários dos mais importantes da capital paulista” (SODRÉ: 1966, p. 506)
Reencontramos assim o jornalismo descrito no início de nossa reflexão por Clóvis Rossi.
Empregado por estas famílias, o jornalista é um profissional especializado de classe média que
presta serviço situado entre o dono do jornal e o gráfico de chão de fábrica. Em 1944, ganhava algo
em torno de 5 salários-mínimos, em 57, este valor tinha caído para 2,6. O romance de Lima Barreto
diz de uma redação em 1909: “Era uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas
paralelas de minúsculas mesas, em que se sentavam os redatores e repórteres, escrevendo em
mangas de camisa. Pairava no ar um forte cheiro de tabaco; os blocos de gás queimavam baixos e
eram muitos” (BARRETO: 1909, p. 109).
Assunto que interessa muito para a discussão sobre imprensa no período foi o surgimento
em 1962 de um Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibad) de onde brotava dinheiro para
financiar campanhas políticas e anti-esquerda no país. Financiou 250 candidatos com 5 bilhões de
cruzeiros segundo Sodré. No boletim editado pelo Ibad, com 210 mil exemplares, condenava quem
anunciava candidatos populares como o Última Hora, chamava o jornal de financiador do
comunismo. Sodré diz que o Ibad financiou políticos, achincalhou outros, instalou um sistema
próprio de gravações no Congresso Nacional. O político Leonel Brizola mostrou na televisão uma
cópia de um contrato entre o jornal A noite e a sociedade Promotion em que esta comprava a
opinião do jornal por 5 milhões de cruzeiros. O contrato previa o controle sobre as matérias
políticas, o editorial e a primeira página no veículo. Sodré resume da seguinte maneira as
atribuições do Ibad no Brasil: “corrupção da imprensa, do rádio e da televisão; discriminação
publicitária contra publicações independentes ou não alinhadas; invasão de publicações estrangeiras
editadas em português no Brasil. Segundo: intervenção na política interna do país, pela corrupção e
o controle do processo eleitoral e da ação parlamentar. Terceiro: golpe militar para conquista do
poder. Sabemos agora, por amarga experiência, como esse plano foi rigorosamente desenvolvido até
a última etapa” (SODRÉ: 1966, p. 497).
Na tentativa de defender o país, foi criada uma CPI sobre o Ibad. Brotavam denúncias a
respeito de empréstimos privilegiados dados a O Globo e ao Diários Associados. Esta ebulição toda
acaba com o golpe de 1964. “A CPI do Ibad e da imprensa estrangeira foram tragadas pelo golpe
militar de abril de 1964, com a instalação da ditadura. Logo nos primeiros dias, começou a
destruição de qualquer resistência na imprensa: Última Hora foi invadida e depredada; os jornais e
revistas nacionalistas ou esquerdistas foram fechados; instaurou-se rigorosíssima censura no rádio e
na televisão” (SODRÉ: 1966, p. 500) Acabaram as denúncias ou elas já não davam mais em nada.
Em 1965, explode o escândalo de um acordo ilegal entre o grupo Globo e a Time-Life da ordem de
2,8 milhões de dólares. Mas o assunto some dos jornais e um dos poucos a se indignar com a
situação era Chateaubriand, não porque fosse contra a trapaça, mas porque ele queria ter feito este

8 Importante documentação primária a respeito do Golpe, do plano de contingência americano e até mesmo do envio
e estacionamento de porta-aviões em Santos em 1964 constam do documentário “O Dia que Durou 21 anos” de
Camilo Tavares, lançado em 2013.

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acordo. Porém os militares negaram a ele a oportunidade alegando que se tratava de grupo
estrangeiro. Por força do derrame que sofrera em 1962 já não tinha mais a mesma energia e
disposição para resistência. Mas continuava incontrolável por caráter. E a estratégia do governo
para lidar com o problema Chateaubriand a frente do mais poderoso grupo oligopolista de mídia no
Brasil foi atrair um outro grupo mais cordato para se beneficiar dos atalhos todos que a
governalidade ensinou a oferecer à imprensa até que ocupasse seu lugar. “Os eleitos pelo Ibad
ganharam o merecido destaque, tornaram-se os árbitros da situação feito ministros, porta-vozes da
ditadura, líderes no Congresso” (SODRÉ: 1966, p. 500). A história se prolongaria indefinidamente.
O último porva-voz dos governos militares, Alexandre Garcia, permaneceu por anos à frente de
informativos importantes da rede Globo de televisão.
Difícil distinguir Jornalismo e public relations a partir de então. O que parecia ser a previsão
de um desenvolvimento desemboca no que desde o início já se previa. A história da imprensa é a
história do desenvolvimento da sociedade capitalista, chegou a seus limites. Não se trata de um
desenvolvimento para todos. Para suprir necessidades sociais da burguesia, o jornalismo se tornará
uma técnica de agenciamento das massas para difundir valores que levarão ao sucesso e
manutenção desta própria burguesia e do sistema do qual ela se beneficia mais que os outros.
Veremos, em breve, teorias falarem em cultura de massa, indústria cultural, aparelhos ideológicos
de estado, sociedade do espetáculo. Enfraquecimento da autoridade governamental. Elogio do
desenvolvimento econômico capitalista em outros continentes. Defesa de reformas sociais que
retiram direitos dos trabalhadores, vistos como custos e empecilhos ao bom desenvolvimento e
lucratividade da empresa. Sodré diz que “os processos pelos quais as grandes empresas jornalísticas
conseguiram o patrimônio que ostentam daria uma enciclopédia” (SODRÉ: 1966, p. 485). Ela
envolveria “o painel de corrupção exercida pelo imperialismo em nosso país” (SODRÉ: 1955, p.
485).
Chegados a este ponto de desenvolvimento histórico, fica bastante claro por que defender
dar ênfase a teorias que defendem uma transformação do jornalismo. Sem uma transformação,
restaria ao jornalismo permanecer indefinidamente num contexto vergonhoso em que ele terminou
por se acomodar. Faz lembrar frase de Honoré de Balzac: Se a imprensa não existisse, seria preciso
não inventá-la. Mas como dizia Walter Benjamin, a história é constituída por futuros do pretérito
que vivem em dormência mas que, como sementes de trigo que permaneceram guardadas em
pirâmides e voltam a brotar, só esperam por uma luz do sol. O romance Recordações do escrivão
Isaias Caminha traz um diálogo de dois colegas a respeito do jornalismo que se tornará sua imagem
perfeita e irretocável se não for possível transformar o jornalismo:
— A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba Roxa
ressuscitasse, agora com os nossos velozes cruzadores e formidáveis couraçados,
só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Não há nada
tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de
meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do
instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para
achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova…
E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida
coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos
submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos
ignorantes, parvos, imorais e bestas… Só se é geômetra com o seu placet, só se é
calista com a sua confirmação e se o sol nasce é porque eles afirmam tal coisa… E
como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões!
Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção das
mediocridades, de modo que…
— Você exagera, objetou Leiva. O jornal já prestou serviços.
— Decerto... não nego... mas quando era manifestação individual, quando não era
coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais
terrível também... É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências

31
podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos
mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas,
propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas,
em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro,
conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus
atrozes lucros burgueses... Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de
grandes ideias, fundar um que os combata… Há necessidade de dinheiro; são
precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer
num jornal… Vocês vejam: antigamente, entre nós, o jornal era de Ferreira de
Araújo, de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano… Hoje de quem são? A
Gazeta é do Gaffrée, o País é do Visconde de Morais ou do Sampaio e assim por
diante. E por detrás dela estão os estrangeiros, senão inimigos nossos, mas quase
sempre indiferentes às nossas aspirações… (BARRETO: 1909, p. 105-106)

2.10 – O fenômeno crítico e alternativo

Fechamos nossa exposição panorâmica da história do jornalismo com um último período


que comprova não ser inevitável enterrar o jornalismo sob este epitáfio. Ele traz algo totalmente
diferente para se contrapor ao que seria a submissão absoluta aos valores do Capitalismo, um final
de história muito triste. Trata-se do período alternativo que fez ressuscitar as energias
revolucionárias Iluministas do jornalismo adormecidas. Trata-se de uma homenagem atualizada a
suas manifestações anteriores, a dos pasquins panfletários do período imperial que contou por volta
de 1830 com mais de 50 títulos, e a dos jornais anarquistas e operários da virdada do século que
contou com quase 400. E que encontrou novas energias para se efetivar de novo. Como disse Sodré
num pequeno apêndice acrescentado a sua obra em 1999, “por razões que a dialética explica,
verifica-se por contraste o extraordinário esforço que se espelha no aparecimento de centenas de
jornais novos e pequenos, alguns de vida efêmera, como é natural, preenchendo o vazio que a
grande imprensa estabeleceu em relação ao que é nacional e ao que é democrático” (SODRÉ: 1999,
XVII).
Bernardo Kucinski (2003) situa o período áureo do jornalismo alternativo entre 1975 e 1977,
porém pode compilar num amplo estudo sobre o fenômeno pelo menos sete fases históricas
importantes para apresentar em riqueza de detalhes que se estende desde 1968 até a década de 1980.
O quadro geral já se conhece. O público diminui, desaparecem títulos, há imensa concentração da
imprensa até o ponto de se poder contar as famílias donas dos meios de comunicação nos dedos de
duas mãos. A concentração se traveste de modernização. Segundo Kucinski, a circulação de jornais
diminui em 500 mil exemplares em 1960. Cresce a condição assalariada dos jornalistas, pondo fim
a uma cultura de interesse e desprendimento pelo exercício da função. A legislação de 1968 que
estabelece a obrigatoriedade do diploma para exercício da profissão está neste bojo. Tinha por fim
antes facilitar a vida de algum empregador que tivesse de se livrar de algum jornalista
inconveniente do que melhorar as condições de trabalho da categoria. Despedido por falta de
diploma. Ora. Ninguém tinha diploma. Mas assim ficava fácil escolher e justificar quem deveria
sair sem ter de dar outra explicação. Samuel Weiner já sentira do gosto desta sutil particularidade da
lei no Brasil: não é para todos. Desaparecem os projetos que ainda davam guarida aos chargistas
críticos, às grandes reportagens. A partir de 1966 este processo longo de silenciamento resulta no
fechamento de suplementos humorísticos, o que os levou então a criar O Pasquim. A morte do
jornalista Vladimir Herzog em 1975 gerou forte onda de indignação nas redações que resultou na
multiplicação do surgimento de veículos alternativos.
Kucinski divide o fenômeno alternativo entre duas famílias: derrotados de 1964 e
precursores de novas tendências. Os veículos foram classificados por ele em sete fases: 1) Pif-Paf
(1964) ao fim da Folha da Semana (órgão do partido Comunista em 1966; 2) O Sol, Poder Jovem e
Amanhã (1967); 3) Intervalo em que não surgiram novas publicações; 4) refluxo das manifestações

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e da luta armada (meados de 1969, a fase mais rica que inclui O Pasquim e Opinião; 5) (1971 a
1972) Grilo e Balão, com humor pesado e experimentalismo (destaque para os nomes de Luís Gê,
Laerte, Angeli e os irmãos Chico e Paulo Caruso); 6) a partir de 1974, retorno dos presos políticos
ao Brasil, Versus e Movimento, jornais de ativismo político crítico ao colapso do milagre
econômico; 7) precipita-se com o assassinato de Vladimir Herzog em outubro de 1975 uma
explosão de novos títulos, De fato e Coojornal envolvem a campanha da Anistia em 1977 (Repórter,
Resistência e Maria Quitéria), e jornais estudantis como Batente, de base, ligado aos movimentos
populares e Avesso, que expressava a fadiga em relação ao apelo político.
Uma histórica tentativa. “A oligopolização é rompida, assim, pelo esforço descomedido
dessa floração de jornais e revistas de menor porte, mas que refletem com mais clareza e justeza a
paisagem social e política do país” (SODRÉ: 1999, XVIII). Kucinski explica que todos estes jornais
sofreram de alguma forma influência da revista Realidade, criada em 1966 e que dominou o cenário
das grandes reportagens jornalísticas, com matérias sobre revolução na sexualidade, introdução da
pílula anticoncepcional. Fazia sucesso inspirada no new-journalism americano, escola que pregava
um tipo de reportagem mais humanizada e esteticamente elaborada. Chegou a tirar 400 mil
exemplares.
Outra marca do período era seu relacionamento com movimentos de reação ao regime
ditatorial. Em 1968, por exemplo, a Ação Popular ordenou a seus militantes que entrassem na
clandestinidade. Jornalistas ligados ao movimento que eram da Realidade foram contra a decisão e
criaram alternativos antidoutrinários. O autor destaca o papel do jornalista Raimundo Pereira, que
esteve associado ou inspirou a criação de Amanhã (1967), Opinião (1972), Movimento (1975),
Assuntos (1976), outro Amanhã (1977), em Tempo (1977), Bloco (1979), Brasil Extra (1984) e
Retratos do Brasil (1987). Uma primeira família de jornais alternativos que tratava “os nossos
problemas, que são aqueles que giram em torno da existência das classes menos favorecidas, vêm
sendo discutidos e em torno de cuja discussão surgem as propostas convenientes aos interesses
daquelas camadas da opinião que não encontram guarida nem vez na imprensa oligopolizada”
(SODRÉ: 1999, XVIII).
Uma segunda linhagem de jornais apostou no caminho humorístico e da caricatura. Os
maiores influenciadores foram Ziraldo Alves Pinto, Jaguar (Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe),
Millôr Fernandes e Henfil (Henrique de Souza Filho), que estiveram envolvidos com os projetos de
Pif-Paf e O Pasquim. O Pasquim chegou a 250 mil exemplares, a maior tiragem e circulação da
mídia alternativa. Parte de sua redação foi presa em 1970. Mesmo assim o jornal continuou
circulando a partir do esforço dos que haviam escapado ao cerco e colaboradores.
No cômputo geral, estas últimas fases da história do jornalismo no Brasil são marcadas pelo
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, dos quais se pode pensar em excluir os
impressos. Contribuiu para nossa circulação indigente de letras o fato de que sempre foram altos
nossos índices de analfabetismo, o baixo poder aquisitivo e magra a prática de leitura e estímulo ao
estudo, uma espécie de colheita de frutos da origem obscurantista de nossa cultura colonial
escravagista. Sodré afirma que tratar de meios de comunicação de massa no Brasil representa tratar
de rádio e televisão: “É preciso, desde logo, compreender e aceitar que a imprensa não é meio de
massa, em nosso país” (SODRÉ: 1999, IX). Daí se poder extrair para a história do jornalismo que o
mais importante fenômeno da segunda metade do século XX foi a expansão dos oligopólios
envolvendo rádio e televisão, um alcance da comunicação que o jornalismo mesmo não
acompanhou e onde ele passa a ser coadjuvante de um processo maior, do controle das massas por
intermédio dos meios de comunicação massivos. Quanto aos primeiros 20 anos do século XXI, são
marcados por uma nova roupagem tecnológica do fenômeno, informatizada, cujos primeiros
esforços de decifração apontam no sentido do aperfeiçoamento do mesmo. Porque se trata do
mesmo? O que são esses meios de comunicação de massa? Qual o lugar do jornalismo neste novo
quadro?

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Responder a estas questões são os desafios enfrentados pelas teorias do jornalismo para
explicar a nova situação, e desembocaram em desenvolvimentos que podem ser divididos em dois
projetos antagônicos por motivos teóricos que serão explicitados no devido momento, mas que são
rotuladas erroneamente em simples dicotomias esquerda-direita, comunismo-capitalismo ou
qualquer outra ordem de redução simplificadora desta ordem. Em geral esta simplificação visa
desqualificar os projetos de transformação da sociedade, visto que, evidentemente, a situação do
jornalismo merece ser rigorosamente criticada. Mais fácil desqualificar a crítica para responder a ela
do que tentar justificar o que se apresentou neste capítulo histórico sem muitas papas na língua. A
questão é de um nível epistemológico muito mais profundo que não adere a estes rótulos rasteiros.
Trata-se da distinção entre um projeto de saber que constitui uma analítica da verdade e uma
ontologia do presente, se quisermos utilizar termos propostos por Michel Foucault, que terá
oportunidade de ser melhor explicitada justamente quando em nossa sequência fizermos a transição
entre estes dois paradigmas teóricos, e que passam a estruturar o desenvolvimento do
prosseguimento desta obra: as teorias administrativas e as teorias transformadoras do jornalismo.

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UNIDADE 3 – Teorias administrativas do jornalismo

3.1 Um começo para essa história

As primeiras teorias do jornalismo são teorias administrativas. Este título foi dado a elas por
seus opositores, em especial, por integrantes da Escola de Frankfurt, como Max Horkheimer,
Theodor Adorno e Jurgen Habermas. O que está por trás deste título é dar destaque à característica
de que elas enxergam a comunicação social como uma maneira de administrar as massas. Portanto,
elas partem de algumas determinações bem básicas, que formam os princípios das teorias
administrativas do jornalismo, variações num certo sentido sobre um mesmo tema.
Mattelart diz que as primeiras teorias da comunicação surgem a partir da noção de divisão
do trabalho, que será objeto de estudo dos três grandes clássicos da sociologia, Émile Durkheim,
Karl Marx e Max Weber. Esta noção se relaciona com as teorias da comunicação porque todas as
teorias que trabalham a ideia de que a sociedade foi evoluindo e os sujeitos da sociedade passaram a
se especializar por meio da divisão de trabalho, uma espécie de evolução da própria sociedade, que
exigiu que surgissem meios de comunicação. Primeiro porque todos precisam saber onde encontrar
bens que não produzem, mas dos quais necessitam, por exemplo, um sapateiro que tem de anunciar
seus produtos e se informar a respeito de onde pode comprar algo para se alimentar. A comunicação
é um instrumento do qual a sociedade depende para funcionar.
O segundo aspecto é que a divisão de trabalho também exige uma comunicação e uma
organização. Isso vai se tornar mais crítico quando a divisão do trabalho ganha uma dimensão
industrial. Na linha de montagem, para o bom funcionamento das sucessivas atividades
especializadas, é preciso existir uma comunicação para que um saiba que o outro já terminou e
agora é sua vez de atuar. A comunicação passa a ser um termo chave do desenvolvimento social
dentro da perspectiva da especialização, administração e organização de um trabalho coletivo.
Este começo é o princípio básico que explica por que os processos comunicacionais passam
a ser importantes e se tornam o foco da reflexão a respeito do seu bom funcionamento.
A forma como a comunicação começa a ser pensada em sua origem, na virada do século
XIX para o XX vai sofrer influência das teorias científicas mais em voga nesse período histórico,
dentre as quais se colocam teorias que estudavam os organismos biológicos e também o corpo
humano como organismo, fornecendo uma base de perspectiva naturalista que será projetada sobre
o âmbito dos estudos sociais, promovendo a ideia de que a sociedade também é uma espécie de
organismo. Do mesmo modo que o corpo humano é formado por órgãos especializados, como o
coração, o rim etc., a sociedade também é formada em sua configuração como uma espécie de
organismo em que os órgãos são os seres humanos aos quais são atribuídas funções no sistema de
divisão de trabalho.
A comunicação seria o processo que organiza esses fluxos de mercadorias, de informação e
de dinheiro que constituem uma rede, uma totalidade orgânica. Antecessor desses estudos foi um
teórico francês chamado Fraçois Quesnay (1694-1774), que imagina uma representação gráfica da
circulação de riquezas, a Tableau Économique. No século XIX os primeiros estudos teóricos da
comunicação vão se basear nos fluxos da circulação sanguínea para apresentar este tipo de
abstração, criando desenhos muito parecidos com os mapas dos tratados de anatomia que
representam as estruturas de veias e artérias que dão vida ao corpo humano. Do mesmo modo que o
sangue faz circular oxigênio e nutrientes no organismo para ele sobreviver, a comunicação mantém
a sociedade viva.
A outra influência que alimentou esse pensamento a respeito da comunicação foi a área da
infraestrutura de engenharia que pensava também os aspectos econômicos das vias físicas de
escoamento de produção e circulação de mercadorias em estradas, ferrovias, sistemas de
comunicação da área rural com o porto onde os produtos serão embarcados e remetidos a clientes
em países estrangeiros. Comunicação tem neste pensamento um sentido físico. E também tem o

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sentido da circulação de meios imateriais como dinheiro. São dois fluxos que, a exemplo do sistema
de fluxo sanguíneo, consegue mapear esta sociedade, mostrando que as mercadorias circulam na
sociedade.
Saint Simon também vai pensar os meios de comunicação nesta perspectiva do seu papel
social. Ele pretende formular uma ciência de organização social chamada fisiologia social, que
visava o governo dos homens para a administração das coisas, do fluxo de mercadorias e dinheiro.
Trata-se de uma espécie de ficção que enxerga a sociedade como um organismo em que seus órgãos
são máquinas e caminhões e sistemas de transporte que potencializam o desenvolvimento da própria
riqueza social.
Dentro dessa perspectiva vão ter um papel estratégico tanto as vias de comunicação quanto
os sistemas de crédito. A circulação de mercadorias e dinheiro daria vida à própria sociedade por
meio de redes materiais que são justamente a infraestrutura física de estradas, transportes, que se
contrapõe às redes espirituais onde circulam o dinheiro e a informação.
Superadas estas iniciativas pioneiras ainda, com uma abrangência ampla e um pouco
dispersas apesar de passarem pelo tema da comunicação, surge uma configuração mais bem
articulada do ponto de vista de uma teoria da comunicação com Herbert Spencer, motivo porque
Mauro Wolf diz que é com ele que inicia a teoria da comunicação.
Spencer herda os pensamentos anteriormente apresentados e sistematiza uma teoria do
organismo social. É uma teoria que trata da comunicação como um sistema orgânico, mas ele vai
propor a ideia de que não só existe a divisão do trabalho mas também que ela estrutura o organismo
social, com trocas econômicas e de mercadorias, é uma espécie de ser vivo em progresso. Essa é
uma inovação importante que surge nas teorias, e é resultado de ele juntar a essas inspirações
anteriores, uma influência do positivismo, que pensa a sociedade como um processo evolutivo. Sua
teoria é de que o século XIX vê nascer esse papel da comunicação como fator de integração das
sociedades humanas.
À semelhança da evolução das espécies, a sociedade também se desenvolve num processo
histórico linear e sem regressão. A comunicação passa a ser o vetor de integração de toda a
sociedade. Sem a comunicação não existiria uma sociedade de massa funcional. Começa a surgir a
ideia de que esse bom funcionamento também depende de uma espécie de orientação das massas
para que ajam de modo a tornar a sociedade funcional também, o que será o ponto central que dará
identidade às teorias administrativas.
De modo parecido com o que vimos anteriormente, Spencer divide as circulações em dois
aparelhos, um aparelho distribuidor, onde figuram as estradas e fluxos materiais, e um aparelho
regulador, que reúne informação, imprensa, pesquisas, correios e agências noticiosas. Spencer reúne
em seu pensamento a biologia e as engenharias. Mas sua característica original é a marca do
progresso, da melhoria da qualidade de vida humana.
Para entender como estas teorias pioneiras se articulam com o jornalismo, é importante
introduzir agora a noção de massas, que orienta em alguma medida as teorias vistas até agora, mas
que vai perpassar toda a teoria administrativa. Podemos entender o termo teoria administrativa do
jornalismo no sentido da gestão da empresa e da atividade jornalística. Mas não era essa a ideia
original dos criadores do termo. Se a entendermos na perspectiva em que foi criado, o termo teoria
administrativa aponta para a função de administrar alguma coisa, de gestão de alguma coisa distinta
do próprio jornalismo. O objeto dessa administração e dessa gestão seriam as massas.
As massas surgem no momento em que cada vez mais sociedades humanas deixam de ser
principalmente agrárias e passam a ser pautadas por um desenvolvimento industrial e urbano. As
trocas deixam de ser pontuais e começam a caminhar num mundo de grandes fluxos econômicos, de
commodities, que transportam cargas volumosas de produtos. Passam a existir cidades com grandes
concentrações urbanas que se distinguem radicalmente dos modelos agrários. Passam a se
concentrar centenas e milhares de trabalhadores em galpões industriais, em fábricas. E começam a

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surgir especulações a respeito do que poderia ocasionar esta sociedade de massa, qual seria o
comportamento das pessoas numa sociedade de massa.
O primeiro pensamento a respeito desse fenômeno foi uma visão conservadora
predominante no século XIX. Ele entende como uma mudança negativa esta transição para a
sociedade de massa resultante da industrialização, da revolução tecnológica, dos transportes e do
comércio, mas também da circulação de ideais abstratos de igualdade e liberdade advindos do
pensamento iluminista ligado à Revolução Francesa, e seus questionamentos que irão abolir ou pelo
menos enfraquecer os governos absolutistas e monárquicos. O argumento conservador defende que
este movimento rumo à modernidade enfraquece os laços da tradição como os laços da família, da
religião, e contribuem para afrouxar o tecido da sociedade. Ao mesmo tempo em que as ações
necessárias para a sobrevivência começam a se transformar. Já são as relações da sociedade
burguesa que coloca para os operários a necessidade de trabalhar para sobreviver, para colocar
comida em casa. Não se deixar cair na miséria absoluta, na pobreza, recorrendo às relações entre o
capital e o trabalho livre.
O momento histórico cria as relações de trabalho mas também a separação entre o trabalho e
os meios de produção que resultam no surgimento da miséria, bairros inteiros de famintos, crises
econômicas, dificuldades de setores econômicos, trabalho praticamente escravo, de mulheres
grávidas, de crianças. O pensamento conservador vai ser contra esses ‘avanços’ da modernidade,
algumas vezes resgatando aspectos teológicos e autoritários, e vai discutir do ponto de vista teórico
quais foram as consequências dos valores da tradição terem se esgarçado. A ideia é que os sujeitos,
por piores que fossem, tinham ainda algum tipo de freio exercido pelo poder dos laços de família,
da religião, e não cometiam certas atrocidades que na sociedade de massa, até por força do
anonimato das pessoas nas grandes cidades, passaram a ser mais comuns. Vai crescer a
criminalidade. Certos fenômenos das massas vão começar a aflorar.
Ortega y Gasset vai aprofundar esta investigação, afirmando que as massas merecem uma
atenção e um estudo teórico mais consistente, que identificasse a identidade das massas. Um caso
exemplar do comportamento das massas é uma torcida de futebol quando ocorrem as barbaridades
que estamos acostumados a presenciar. Uma torcida que está na parte superior da arquibancada
arremessar um vaso sanitário na cabeça dos torcedores que estão embaixo. Comportamentos que
subvertem qualquer ordem de responsabilidade e de comportamento que se espera de um sujeito
ético. O sujeito que vai pagar pelo que faz não faz isso. Isso não é feito no meio da rua. Mas quando
o sujeito está no meio das massas, esta situação dilui a individualidade do sujeito, sua singularidade,
e ele passa a se sentir parte de um organismo muito maior e que é uma coisa explosiva, que de vez
em quando perde a noção de limite. E por que uma pessoa está com uma camiseta de um time que é
de cor diferente da sua ele acha que ele pode matar aquela pessoa, xingar, ofender, este
comportamento explosivo das massas que será associado teoricamente às massas a partir da
constatação desse tipo de situação.
Este comportamento absolutamente desregrado podia ser visto até então em certas situações,
como numa guerra, em que um povo invadia o povo vizinho. Talvez seja precipitado dizer que se
trata de uma novidade completa, mas este é o argumento do pensamento conservador. De que a
barbárie até poderia acontecer mas se torna uma constante no interior mesmo de um povo associado
a esse novo lugar do sujeito no interior das massas. Numa manifestação de rua as pessoas começam
a quebrar vitrines, fachadas de bancos, um comportamento explosivo que é característico das
massas.
As massas, segundo Ortega y Gasset, são a antítese do homem culto, uma composição
coletiva que não pensa. Uma espécie de ciclope, de monstro gigantesco que age ao sabor de seus
impulsos totalmente descontrolados. Elas subvertem tudo o que é diferente, singular, individual.
Elas procuram seu bem-estar, mas não se preocupam com as causas do bem ou do mal-estar e
aderem a movimentos para derrubar um presidente da república sem nenhuma prova muito
substancial de que ele é a origem de seus problemas. A massa é a jurisdição dos incompetentes, o

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triunfo de uma espécie antropolítica que existe em todas as classes sociais e que tem relação com o
saber especializado da técnica e da ciência, mas de maneira cega, alienada.
Simmel9 é outro autor que vai pensar o problema das massas. Em síntese, ele acha que as
massas são uma formação que não se baseia na personalidade dos seus membros, mas apenas nas
partes que põem um membro em comum com os outros e que equivalessem às formas mais
primitivas da evolução orgânica. Segundo ele, as ações da massa apontam diretamente para um
objetivo e procuram atingi-lo pelo caminho mais curto, o que leva a massa a agir em nome de uma
única ideia e a mais simples possível. O torcedor quer que o time ganhe. Se o jogador roubou ou
machucou alguém num lance, isso não é um problema frente a obtenção do resultado. Portanto a
situação de massa leva a uma perda dos valores éticos, do referencial de moralidade.
Feito esse diagnóstico negativo, surge o grande impasse: nós vivemos numa sociedade de
massas. É como se nosso país, nossa cidade fosse uma grande torcida de futebol. A situação da
sociedade urbana moderna é esse lugar onde todo mundo está junto. E por ser uma sociedade de
massas, de vez em quando esse grupo age como se fosse uma torcida de futebol. Num dia em que
há uma pane no sistema de transporte as pessoas começam a quebrar as catracas e passar por cima
dela. A sociedade de massa é uma sociedade potencialmente explosiva. Em qualquer momento pode
surgir um grupo de pessoas que adere a uma ideia absurda e passa a pôr em prática aquela ideia por
mais violenta que seja.
Surge portanto a oportunidade de que alguém insufle as massas, coloque na cabeça das
massas ideias que as levem à explosão, de que elas façam algo que não deveriam fazer. Assim,
conclui-se que a massa é totalmente influenciável, constituída por um conjunto homogêneo de
indivíduos que são essencialmente iguais, indiferenciáveis, mesmo que provenham de ambientes
diferentes, heterogêneos e de diversos grupos sociais. E que age de modo compacto. Ela é composta
por pessoas que em geral não se conhecem e que estão separadas uma das outras, sem possibilidade
de exercer uma ação ou influência sobre as outras se tentarem ir contra o movimento cego das
massas. Só podem aderir a ele ou incliná-lo, deslocá-lo um pouco. Para controlar as massas seria
necessária uma voz que chegasse ao ouvido de cada um desses elementos. E assim percebe-se
quanto esta temática está relacionada com a teoria do organismo social, as massas são um elemento
desse organismo, num momento em que esse organismo está saindo do controle, ele está se
agredindo do mesmo modo como faz um tumor contra o funcionamento do organismo. Ela precisa
ser comandada para que se estabeleça a ordem no organismo.
O desdobramento natural deste panorama, é surgirem, com a maior boa intenção do mundo,
instrumentos de controle para que a sociedade não se destrua. Surge a ideia de que deve existir um
mecanismo de controle das massas. Algumas teorias sociais vão defender que esse mecanismo de
controle deve ser um Estado forte e policial que controle os ímpetos das massas na base da
violência. Mas outras vão optar pelo caminho do diálogo. E é aí que as teorias da comunicação vão
encontrar espaço para se proporem serem o mecanismo de controle político do comportamento das
massas, já que os meios seriam justamente possíveis instrumentos de manipulação das coletividades
por intermédio do seu poder de disseminação da informação, da comunicação. São teorias que
apontam para a comunicação como instrumento ideológico de repressão ou, pelo menos, de gestão
governamental das coletividades humanas.
O primeiro bloco das teorias do jornalismo, que estamos chamando de teorias
administrativas do jornalismo, nasce da ideia de atribuir ao jornalismo um papel dentre os
dispositivos de manipulação das massas para controlar o potencial explosivo da população. Estamos
destacando originalmente uma intencionalidade positiva que se encontra na gênese deste controle
porque ele pode existir e faz parte das justificativas do exercício do poder da mídia, embora
tenhamos de fazer, desde já, a ressalva, de que este uso do jornalismo será visto na perspectiva das
teorias transformadoras do jornalismo, com maus olhos, visto que a mesma manipulação que
serviria para minimizar problemas e evitar comportamentos ruins, também poderá servir para

9 Georg Simmel (Berlim, 1º de março de 1858 – Estrasburgo, 28 de setembro de 1918), sociólogo alemão.

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manter a desigualdade social, manter o sistema de relação de classes. E aqui aflora o recorte
distintivo entre teorias administrativas e teorias transformadoras. Sua relação é dialética. Uma não
anula a outra, mantendo uma tensão sem a qual não é possível entender a complexidade do
problema. Um lado, portanto, coloca o jornalismo como parte de um sistema de administração das
massas que quer fazer o bem. Sem o qual, as massas persistiriam sem lavar as mãos corretamente,
não usariam máscaras, e se tornariam vítimas inevitáveis de uma pandemia viral.
As sociedades precisam repor de alguma maneira aquilo que foi perdido quando as pessoas
se distanciaram de laços da tradição que, em teoria, garantiam um padrão de comportamento dentro
de certos limites. Em linhas gerais, podemos admitir que as teorias administrativas colocam isso
como sua missão, a ideia de que elas têm de controlar, têm de manipular as massas para que a
sociedade de massas não imploda e não resulte numa catástrofe violenta. Os meios de comunicação
e as primeiras teorias da comunicação vão entender o jornalismo neste sentido.
Por isso vão se desenvolver um rol de teorias administrativas que vão dar subsídio ao
jornalista para que ele consiga desenvolver esta ação. Que num momento de pandemia, ensinem que
as massas têm de lavar as mãos sob pena de morrer todo mundo. Apresentar parâmetros para que as
pessoas não saiam pelas ruas fazendo qualquer coisa, sem usar máscara, tomando cloroquina,
achando que a Terra é plana. Trata-se portanto de uma perspectiva das teorias administrativas na
qual elas se percebem como quem faz o bem, que o jornalismo faz o bem. Busca equalizar esta
sociedade complexa, com várias classes sociais, diferenças, todo mundo junto e convivendo. A
comunicação serve para influenciar os comportamentos das pessoas para que elas não se entreguem
a comportamentos cegos de massa destrutivos. O resultado é uma massa organizada, coisa que
muita gente vai ver como uma espécie de ordem de rebanho, de obediência. Por outro lado, se
coloca esse limiar, a partir do qual, se as pessoas não se comportarem dentro desta ordem, a
sociedade vai virar um caos. É num tênue fio que se equilibra a sociedade de massa, o que fez
surgirem uma série de teorias da comunicação que veremos a seguir.

3.2 - Teorias administrativas

Quanto foi aceito como papel do jornalismo o controle das massas para o bom
funcionamento da sociedade, surgem duas frentes de atuação que serão os eixos de
desenvolvimento das teorias administrativas do jornalismo. Por um lado, para controlar as massas, é
preciso conhecer as massas, saber o que as pessoas pensam, o que elas querem, qual o grau de
carência material que elas vivem. É preciso gerar informações sobre as pessoas. Por outro, saber
convencê-las a agir do modo que se quer.
Este primeiro lado, foi objeto de teorias desde o século XIX, a reunião de informações sobre
as pessoas é uma tecnologia de governo. Historicamente, Mattelart explica como isso surge, com os
institutos de pesquisa privados ou públicos, como o IBGE. É por meio destes sensos e estudos que
se sabe que um percentual da população é masculino, outro é feminino, quais as faixas etárias da
população, quais as faixas de renda e formação educacional. Os números de participantes do
mercado de trabalho e dos desempregados. É uma ciência que vai diagnosticar como as massas são.
Quantos são. Como se comportam.
Estas informações começaram a ser mapeadas pelo sistema de seguros que tinha de saber a
idade de aposentadoria, quanto teriam de pagar para conseguir repassar a aposentadoria para os
mais velhos. Com que idade a aposentadoria deveria ocorrer para equilibrar o sistema. Quanto vai
ter de ser reservado para manter um sistema de saúde pública. Com que idade as pessoas adoecem.
Quantas em média adoecem ou morrem. Estes dados alimentavam cálculos matemáticos que
estabelecem os parâmetros de taxa de risco para todo o sistema de seguro social mas também para o
seguro privado. O seguro de carro, de casa, de transporte. Todos esses sistemas securitários são
estruturados sobre cálculos daquilo que se sabe a respeito das pessoas. Eles têm de saber com
quantos anos as pessoas morrem, com quantos anos adoecem, quantos anos elas trabalham e

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contribuem. É um erro muito básico achar que a coleta de informações a respeito das pessoas é um
resultado exclusivo do avanço de sistemas de informática. Eles facilitam, é claro, o acesso aos
dados e os fornecem com maior velocidade, mas a sociedade sempre teve de conhecer as pessoas.
Em vez de ser via importação de dados digitais, as tecnologias para tanto eram metodologias
sensitárias, pesquisas de mercado, pesquisas de opinião, dados governamentais de ministérios de
trabalho e renda. Uma série de mecanismos de exploração dos dados da sociedade que vão
alimentar as teorias administrativas da comunicação.
Quando alguém vai trabalhar num jornal, ele precisa saber para quem está escrevendo, com
quem está conversando. Faz parte dessa tecnologia de administração das massas ter informações a
respeito das pessoas. Mattelart cita um matemático belga chamado Adolf Quételet que vai fundar
em 1835 esta disciplina que ele chama de física social, ou seja, uma série de instrumentos de
medição por meio dos quais poderá conhecer a sociedade como se a sociedade fosse um fenômeno
físico, e vai tentar definir a partir desses dados o que seria um homem médio. Essa tecnologia vai
fornecer para os gestores da sociedade de massa um retrato, uma caricatura com a qual as pessoas
vão trabalhar. É uma construção artificial do que seria a identidade de um povo, de uma classe
etária, de um gênero. A sociologia vai tentar construir esse retrato de como são os seres humanos,
como eles agem, como se comportam. A estatística se torna o instrumento mais eficaz de
conhecimento.
Sua marca será o de uma ciência empírica. Ela tem de ir no mundo e perguntar às pessoas
como elas são. Tem de reunir dados a respeito delas de alguma maneira, questionários, sensos,
dados burocráticos. A justificativa da existência de tal ciência, de que ela existisse e investigasse as
pessoas na época era a existência das tabelas de criminalidade. A sociedade de massa vem
acompanhada de um fenômeno colateral que é o aumento violento da criminalidade, entre outras
explicações, gerado pelo anonimato das massas. Surge um espaço para o exercício da criminalidade
de maneira mais ampla. Começam a ser feitos estudos estatísticos a respeito dos crimes por meio
dos registros policiais nas delegacias, dos processos judiciais. Periodicamente esses dados se tornam
notícia. Quantas pessoas morreram de forma violenta. Quantas foram mortas pela polícia. Quantas
vítimas de bala perdida. Quantas foram roubadas com mão armada. Quantas foram furtadas.
Os mecanismos de gestão pública percebem a importância desses dados e passam a se
utilizar sistematicamente deles desde meados do século XIX para tomar decisões sobre forças
policiais, sistema de saúde, localização desses postos, ações administrativas que visam proteger as
pessoas. Elas aderem ao sistema da sociedade para serem protegidas naquilo que todos têm de mais
essencial, desde o patrimônio físico até a própria vida.
Ninguém quer estudar, trabalhar, se esforçar e ficar sujeito a pisar na calçada e perder a vida
ou ser sequestrado e ter seu dinheiro sacado por bandidos. Existe toda uma tecnologia do risco e das
probabilidades que já estão presentes nessa ferramenta dos seguros privados e são passados adiante
na forma de uma teoria sociológica que vai apontar tendências de comportamento das massas e
fornecer uma série de subsídios para a gestão das massas.
O segundo eixo em que as teorias do jornalismo vão ter de se lançar, já tendo conhecimentos
a respeito das massas, é estabelecer estratégias para mudar a cabeça das pessoas. Se as pessoas
acham que podem sair nas ruas sem máscaras de proteção num período de pandemia mortal, é
preciso ter uma política de comunicação que informe às pessoas que elas têm de usar máscara sob
pena de morrer e matar por contágio. São necessárias estratégias de comunicação. É mais eficiente
dizer que a pessoa vai morrer, ou dizer que ela pode fazer mal a uma avó que pode ser contaminada,
seus filhos? Que temos de ter um sentido de solidariedade maior que una o país contra a pandemia?
Ou seja, estratégias de comunicação que os profissionais da área de comunicação e também os
profissionais de gestão pública vão refletir e desenvolver para cada caso isolado. É um eixo que foi
bastante explorado pela área de psicologia e dos estudos comportamentais.
Mattelart apresenta dois teóricos desta espécie de psicologia das multidões, termo criado
pelo italiano Scipio Sighele e ao qual se associa o francês Gustave Le Bon. Ela tem por propósito

40
fazer as pessoas mudarem de opinião. Ambos estão estudando a psicologia das massas, ambos
estudam os comportamentos criminais das massas, mas divergem quanto à inclusão dos
movimentos em torno de conquistas sociais. Para Le Bon, a militância sindical também é um tipo de
crime e descontrole das massas. Enquanto Sighele acha que é um movimento legítimo quando
decorre de uma carência fundamental de classe, que aponta para uma perspectiva revolucionária.
Vemos surgir nessa distinção uma diferença importante que vai, de um lado, tentar misturar
militância de classe com balbúrdia descontrolada, de outro, demonstrar a diferença dos casos de luta
por liberdade, dando legitimidade a certas explosões.
Sighele vai atribuir justamente aos órgãos de imprensa esse papel explosivo, de fomentador
de revoltas das massas. Na história do jornalismo do Brasil, o momento de ebulição das massas por
volta de 1888 foi claramente estimulado pela imprensa, tanto no sentido de conquistar
definitivamente a liberdade dos seres humanos escravizados, quanto numa movimentação que
culminaria com o fim do império, e a proclamação da República. Eram causas muito justas, e as
massas foram potencializadas em seu comportamento questionador do regime vigente para
substitui-lo por regimes de governo melhores.
O papel do jornalismo em torno das melhorias, do questionamento das autoridades
ilegítimas, reencontra nesses momentos sua origem iluminista. Por outro lado, num certo sentido,
ninguém tem controle do processo histórico. Havia esperança já em 1822, por ocasião da
Independência, que a escravidão fosse abolida. Os jornais fomentaram a ruptura com o governo
português, mas, já em 1823, dom Pedro I reestabelecia a censura à imprensa e acabava com os
primeiros sopros de liberdade, com apoio dos oligarcas. Quando o próprio dom Pedro I foi
derrubado, com sólido apoio da imprensa também, novamente soprou um ar de liberdade crítica
aproveitado pela imprensa, mas com o golpe da maioridade, volta a governar uma aliança
oligárquica que faz recuar todas as expectativas de transformação, a começar pela de fim da
escravidão.
Para dar conta do desafio antigo de controle das massas e do novo, gestão do consumismo,
será desenvolvido nas teorias da comunicação um termo criado por Tarde10 que introduz uma nova
perspectiva dos grupos sociais, o público. Ao contrário das massas amorfas e indistintas, o público
é definido em torno de um jornal, de uma obra literária, de uma faixa de renda ou etária, ou seja,
público são pessoas reunidas em um grupo amplo, de maneira ainda abstrata, mas sua reunião
implica um motivo mais concreto do que o simples fato de serem pessoas que estão num lugar, num
país. Deste modo também, um público é mais fácil de definir como simpatizante a uma determinada
causa, de ter uma certa tendência, ser alvo de publicidade de um certo produto comercial. Vai
caminhar no sentido de uma segmentação dos grupos humanos para se entender melhor essa
informação a respeito da sociedade.

3.3 – As primeiras escolas

A lista das teorias administrativas mais conhecidas inicia com a Escola de Chicago, muito
influente entre as décadas de 1910 e 1940. Seu objetivo básico é conhecer as pessoas, conforme
vimos há pouco. Mas seu diferencial é seu método de estudo, uma imersão empírica para estudo dos
modos de comunicação na organização da comunidade que veio a ser chamado depois de pesquisa
participante. Trata-se de ingressar nos ambientes empíricos a serem estudados para realizar o
reconhecimento dos grupos sociais, das pessoas. Estes estudos foram desenvolvidos na cidade de
Chicago, conduzidas entre outros pelo jornalista Park11, que se propõe a fazer relatos jornalísticos de
como a sociedade de Chicago é. Ele faz um doutorado em Heidelberg sobre massa e público, e vai

10 Jean-Gabriel de Tarde (Sarlat, 12 de março de 1843 — Paris, 12 de maio de 1904) sociólogo, psicólogo e
criminologista francês.
11 Robert Ezra Park (Harveyville, Kansas, 14 de fevereiro de 1864 — Nashville, Tennessee, 7 de fevereiro de 1944)
foi um sociólogo norte-americano.

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eleger a cidade de Chicago como seu laboratório de observação porque está ocorrendo um
fenômeno interessante ali, a migração de colônias italianas que mudam para os Estados Unidos
atrás de um mundo melhor.
O pitoresco do fenômeno é que essas pessoas não falam inglês. A indústria se desenvolve
gerando empregos e comunidades de italianos começam a fazer parte das massas urbanas. Por isso,
os estudos vão apontar que circulam jornais em inglês nos bairros mas também jornais escritos em
italiano. Percebem que os jornais em língua italiana têm muito mais influência do que os
americanos. Também percebem que o que virá a ser chamado de grupo primário, pessoas
formadoras de opinião, terá papel importante na formação e na capacidade de convencimento
daquelas massas.
Enquanto estrutura teórica, a escola defende que é preciso levar em conta, nos estudos, a
população (o grupo de pessoas), em um território, que tem uma relação mútua de caráter simbiótico,
cooperativo. Esta estrutura formaria no seu nível mais básico uma ecologia biológica, termo criado
por Park, onde existe uma luta por espaço, por propriedade, por bens. Pessoas num meio ambiente
lutando pela sobrevivência e por melhores condições de vida, sendo que a divisão de trabalho, e as
formas de organização da sociedade constituem as bases desse comportamento dos indivíduos nessa
ecologia biológica. Esses grupos foram chamados de grupos primários, se contrapondo à ideia das
massas. São italianos migrantes e moram em Chicago. Isso é mais forte do que o fato de fazerem
parte de uma massa de americanos.
Já num nível superior, superestrutural, que se apoia na ecologia biológica, e funciona como
um mecanismo de controle, entra a imprensa, a comunicação. Traz valores de ordem moral,
regulamenta comportamentos, indica como a sociedade vai estabelecer costumes e crenças, até
mesmo modos de vida que vão alimentar a mobilidade dessa ecologia humana.
Um dos papéis mais importantes da mídia é a própria construção de identidade do grupo
primário. Ela ajuda as pessoas a se enxergarem como grupos que têm homogeneidade e diversidade,
que devem encontrar uma forma de equilíbrio para o bom funcionamento do grupo. É a visão de
que, por trás da fissura entre classes sociais como proletariado e burguesia, há sempre um jeito de se
equilibrar as tensões sociais. Não é preciso uma ruptura radical com os modos de produção. Há
outros modos de absorver essas tensões, e a comunicação vai ter um papel importante no sentido da
pacificação, que constitui a ótica da teoria administrativa.
Outra resposta teórica dada às demandas de administração das massas é uma grade teórica
que tenta diagnosticar momentos deste corpo orgânico, e propor soluções que apontem para o bom
funcionamento dele, o funcionalismo. Ele se enquadra nessa perspectiva das pesquisas empíricas.
Mas num aspecto de tentar entender o funcionamento do organismo social, destacando o papel da
comunicação social como mais uma função para o bem da saúde orgânica. A comunicação tem uma
função, a polícia tem uma função, o governo tem uma função, os grupos sociais têm uma função.
Todos contribuem para o bom funcionamento do organismo social.
Em seu funcionamento objetivo, porém, é possível enxergar dois tipos de intervenção ou
resultado do funcionamento dos órgãos a partir de uma ideia abstrata de bem e mal. Quando o órgão
atua positivamente, sua atuação será denominada função, quando atua mal, será chamada de
disfunção. O estudo desses momentos serve como diagnóstico para que sejam tomadas atitudes
corretivas, porque as disfunções são perigosas. Daí precisarem ser melhor determinadas. Assim as
funções podem ser latentes ou manifestas, o que implica tratamentos distintos, ou preventivos ou
mitigantes. E no caso das situações manifestas, as intervenções de controle da disfunção deve ser
potencializada por meio de transmissões jornalísticas, informativas, culturais, de entretenimento.
Um dos principais autores deste pensamento foi Lasswell12, que criou um modelo para
diagnosticar cada ato de comunicação a partir do estudo sobre quem (emissor) diz o quê
(mensagem, conteúdos), através de que canal (meio) com que efeito (receptor, efeitos). Os

12 Harold Dwight Lasswell (Donnellson, Illinois, 13 de fevereiro de 1902 — 18 de dezembro de 1978) foi um
sociólogo, cientista político e teórico da comunicação norte-americano.

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primeiros estudos feitos pelo autor são a respeito da comunicação em eleição. Trata-se de um
episódio rico para análise da comunicação porque os diversos candidatos colocam propostas
divergentes, modos de ver o mundo distinto. E outro tema que também sempre foi muito relevante
para esses estudos de comunicação foram os períodos de guerra, em especial das guerras mundiais,
tema que sempre foi muito estudado pelos teóricos que queriam entender a adesão das massas a
projetos como o nazismo. Por fim, esses estudos passam a analisar diversas situações em que a
mídia teve algum protagonismo.
Mattelart afirma em sua obra que esse tipo de tecnologia de administração das massas
passou a ser utilizado pelos governos de Estado porque é um meio mais econômico do que a
violência ou a corrupção. Aparentemente o autor aqui se refere a corrupção numa concepção mais
ampla que a usual, ou seja, um governo que libere recursos e facilidades a toda uma população em
vista de persuadir e manipular as massas de modo a continuar governando.
O seguimento deste rumo de pesquisa administrativa desembocou num grupo de teorias
também chamadas Communication Research.
A teoria inaugural desta fase foi muito estudada justamente na análise das guerras. Queria
entender o fenômeno do engajamento dos povos nas duas guerras mundiais já que ele coincidiu com
a maior difusão da comunicação de massa por intermédio das inovações tecnológicas, gráficas
capazes de maior tiragem, rádio, cinema.
Segundo Wolf, seu pressuposto básico é que “Cada elemento do público é diretamente
atingido pela mensagem” (WOLF: 2001, p. 22) dos meios de comunicação. Sua condição de
indivíduo diluído nas massas o torna susceptível desse acesso direto, o que coloca os meios de
comunicação numa condição de aplicador de ideias sobre as massas como uma agulha penetra o
corpo com substâncias injetáveis. Daí o apelido da teoria, ‘hipodérmica’.
Wolf destaca que trata-se de uma teoria sobre a propaganda. Ou seja, sobre a propagação de
ideias. O que será apropriado futuramente também pelos interesses comerciais e o estímulo do
consumismo, por meio das técnicas da publicidade. O jornalismo é meio de propaganda apesar de
não ser publicidade. No papel de propaganda, jornalismo e publicidade se irmanam apesar dos
métodos distintos, um informativo, outro promotor comercial.
A diferença conceitual entre propaganda e publicidade (MALANGA: 1977) é que
publicidade constitui um conjunto de instrumentos técnicos como anúncios, campanhas
publicitárias, peças, planejamento de campanha, estratégias de marketing. Tudo isso é gerido por
um profissional egresso de uma habilitação da comunicação social que passou a ser um curso de
nível superior tanto quanto o jornalismo. É uma profissão que utiliza esses meios para fazer
propaganda. Mas propaganda é um tema mais amplo. Em sentido geral, propaganda é o ato de
divulgar coisas, fazer com que as pessoas tomem conhecimento de coisas. Ela pode ser uma
propaganda ideológica, uma propaganda política, de cunho informativo e social, como medidas
profiláticas de controle ao coronavírus. Dentro desse espectro amplo, o jornalismo também é
promotor de propaganda. Por isso ele também se relaciona com estas teorias do controle de massas,
com métodos distintos. Vai a uma coletiva de imprensa, ouve o que o presidente da República está
dizendo ou um ministro de Estado. Tudo isso faz parte das atuações de propaganda. Daí a
pertinência das teorias do communication research para o jornalismo na perspectiva da teoria
administrativa.
A teoria hipodérmica tentou entender como os países envolvidos com as guerras construíram
um amplo sistema de propaganda para fazer com que as pessoas aderissem ao projeto bélico, muitas
vezes oferecendo seus filhos ao sacrifício em favor de uma certa ideologia. É nos projetos
propagandísticos do nazismo e do fascismo que a propaganda passa a ser não só um instrumento
para fazer com que a sociedade funcione a contento por meio do direcionamento das massas, mas se
torna um instrumento para capitalização de forças organizadas capazes de promover uma guerra
mundial. A propaganda tinha de criar algum fundamento ideológico que movesse as pessoas a pegar
um fuzil e se dirigir a um país estrangeiro para promover uma guerra.

43
Havia um aparelho de propaganda de guerra extremamente eficaz, o que pode ser verificado
pela adesão concreta dos indivíduos a esses projetos. Ele envolvia distintas dimensões. Não era só a
publicidade que fazia propaganda de guerra. Muito pelo contrário. Um dos instrumentos mais
eficazes da propaganda de guerra era o rádio, transmitindo discursos de políticos que reproduziam
ali suas ideologias. Outro instrumento muito eficaz era o cinema. Tanto em filmes jornalísticos,
documentais, quanto também em ficção que iam promovendo valores como o antissemitismo. A
hipótese básica da teoria hipodérmica é que a propaganda funcionou porque ela resultou numa
guerra mundial em que as pessoas estavam envolvidas com as estruturas de pensamento que
permitiam que ela funcionasse. Para que o soldado com um fuzil na mão não desertasse, não traísse
seu país.
Foi em prol dessa movimentação que o imperador alemão em 1917 criou em Potsdam a
UFA, os estúdios cinematográficos resultantes de um aporte considerável de dinheiro, para a
produção de filmes que fizessem contraponto a filmes de outros países que apontavam os alemães
como povo rude, violento, a propaganda antigermânica que atuava em salas de cinema de toda a
Europa. É muito comum a interpretação de que a Primeira Guerra Mundial foi perdida pela
Alemanha porque os cinemas norte-americano e francês criaram uma imagem tão negativa dos
soldados alemães que eles sempre eram recebidos ostensivamente, enquanto os franceses eram
recebidos de maneira solidária, acolhidos, embora fossem de ambos os lados soldados. Todos com
fuzis nas mãos. Esses filmes também iam minando a própria unidade ideológica dentro da
Alemanha por intermédio da crítica ao império, a promoção de valores republicanos. Toda uma
tentativa de minar a unidade alemã do ponto de vista ideológico.
A teoria hipodérmica é o primeiro grande aparato teórico em que surge uma tentativa de
explicar como a comunicação controla as massas numa perspectiva nem tão positiva, a partir da
verificação de como isso aconteceu no processo histórico concreto das guerras e do surgimento dos
centros urbanos e da sociedade de massa. Porém, um de seus principais formuladores, Lasswell, vai
defender que a comunicação em si é neutra, ou seja, que ela pode ser utilizada tanto para o bem – o
funcionamento da sociedade – quanto para o mal – promover uma invasão ao país vizinho.
Vista dessa maneira, a comunicação deixa de ser o lugar de reflexão a respeito do uso e
passa a ser vista como a perspectiva da técnica, em si, neutra. Isso já é um problema imenso, que
será motivo de questionamento forte das teorias críticas futuramente. Porém, pior do que isso, é o
esvaziamento histórico que essa visão promove, criando uma perspectiva desencarnada, abstrata do
mundo, que veremos adiante ter raízes epistemológicas na concepção de ciência racionalista.
A hipótese desta teoria é que a ideologia é simplesmente inoculada nos indivíduos e eles são
convencidos sem nenhuma ordem de resistência. Neste sentido ela vai contra as teorias psicológicas
anteriores que pensavam os sujeitos como atores distintos que poderiam ser mais ou menos
inclinados à criminalidade. Esta, agora, vê os sujeitos como uma espécie de tábula rasa onde as
ideologias simplesmente são adicionadas. Esta visão é muito simplista. E com o avanço dos estudos
não foi mais possível pensar desta maneira.
Porém a descoberta da força dos meios de comunicação no sentido de propagação de
ideologia já servirá de estímulo para que o mercado de bens capitalista invista maciçamente nos
veículos de comunicação, aí sim por meio da publicidade, para alavancar o desejo de consumo que
proporcionará um mercado sempre em expansão como estratégia para evitar as crises do
capitalismo. Esta novidade aparentemente está mais intimamente relacionada com a publicidade, já
que é justamente este o seu papel, porém, isso esconde uma verdade sobre o jornalismo que é o
fenômeno da mercantilização dos veículos, ou seja, uma transformação estrutural da imprensa que
vai permitir o surgimento do jornalismo empresarial, da empresa jornalística, que é um setor da
economia. Ela emprega jornalistas, gráficos, distribuidores, trabalhadores de diversas áreas.
Pertence a uma família ou a um grupo de capital aberto, burgueses capitalistas. Produz veículos
com certa periodicidade em meios diversos como impresso, rádio, televisão, internet. E recebe
dinheiro de três fontes principais: das vendas diretas, da venda de propaganda que capta por

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intermédio de agências publicitárias no seu maior volume, e por meio da publicação de anúncios do
setor público. Mas a relação do setor público com essas empresas no Brasil sempre foi mais
complexa, envolvendo também liberação de dinheiro de bancos oficiais e de estímulo ao
desenvolvimento social com juros subsidiados, adiamento de pagamentos e outros instrumentos que
sempre garantiram forte influência do meio político sobre os veículos nos períodos que Marcondes
denominou jornalismo empresarial e monopolista, e que Nelson Werneck chama de ‘a grande
imprensa’ capitalista.
Quanto a esse último aspecto, a força da mídia é que ela tem poder de influência sobre o
processo de eleição dos políticos nos cargos públicos, que é a forma de acesso ao poder em
sociedades democráticas. Por isso a importância que os políticos darão aos meios, alianças que
tentarão constituir, compromissos de liberações de verbas públicas que vão apalavrar como forma
de barganha pelo apoio das empresas de mídia. Na outra mão, os proprietários dos meios vão tecer
essas tramas de acordos, e o jornalista passará a ter de lidar com pressões exercidas pelos
proprietários dos meios sobre o próprio conteúdo das coberturas, um aspecto a ser sempre
considerado no debate a respeito do jornalismo, da liberdade de imprensa, ou, como diz Clóvis
Rossi, de uma ‘liberdade de empresa’.
Conforme já adiantamos, as teorias administrativas vão se distanciar desse tipo de discussão
para se prender a um caminho de aperfeiçoamento dos conhecimentos a respeito dos públicos e das
estratégias de persuasão justamente atacando o ponto mais frágil da teoria hipodérmica, qual seja,
pensar todos os sujeitos de maneira abstrata, como massa, e restringir o meio de conhecimento de
seu comportamento à análise de eventos históricos determinados, como as grandes guerras.
Já a ideia de público começa a pôr em crise a perspectiva de que todas as pessoas vão ser
afetadas pela propaganda da comunicação jornalística da mesma maneira. A própria desconfiança
de que a recepção de um filme nazista evidentemente teria efeito diverso quando apresentado a um
público de judeus começa a lançar desconfianças a respeito deste pressuposto, não problematizado e
simplesmente aceito tacitamente pela teoria hipodérmica.
A primeira parte do livro Teoria da Comunicação de Mauro Wolf apresenta justamente em
três passos a progressão das teorias do communication research para entender, de modo um pouco
mais técnico, quais seriam os métodos de sucesso na persuasão dos públicos.
A primeira delas é a abordagem empírico experimental, ou da persuasão. Trata-se de uma
metologia teórica empírica que vai criar métodos de entrevistas de pessoas em situações
controladas, como grupos de foco, entrevistas individuais, análise de comportamentos. A marca
desta teoria é uma espécie de cientificismo que coloca pessoas num ambiente controlado e apresenta
a elas estímulos para ver quais serão seus comportamentos de resposta. Este tipo de estudo também
vai ter forte influência dos estudos psicológicos, em especial da análise comportamental.
Ela surge nos anos 40 e vai desembocar no desenvolvimento de uma cultura de pesquisa que
diferencia os públicos dependendo de gênero, faixa etária, condição social, e vai tentar traçar
empiricamente quais estratégias de comunicação podem ser aplicadas a cada público desses frente a
situações específicas, venda de produto, lançamento de um novo caderno editorial num impresso,
para tentar encontrar qual a melhor estratégia para persuadir aqueles grupos a partir desse universo
de amostragem estatístico que tem o papel de representar o grupo todo.
Desenvolvem-se estratégias customizadas para o convencimento dos públicos-alvo e dentro
do laboratório vão estar apresentadas condições ideais para fazer testes e verificar qual delas é mais
acertada. Trata-se de uma pesquisa empírica com ênfase numa análise qualitativa, da resposta dada
por cada grupo. Estas tecnologias serão muito utilizadas pelo mercado publicitário, mas também
pelas empresas jornalísticas no sentido de entender seu público leitor, suas expectativas, sua reação
frente a mudanças de linha editorial ou da própria estrutura de editorias e assuntos do veículo.
Na tentativa de identificação de fatores de sucesso das campanhas, estes estudos mediam o
grau de interesse dos públicos num assunto. Outro método era a exposição seletiva de informações,
com a finalidade de verificar empiricamente se a audiência tende a ficar a favor ou em desacordo

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com ela. Esse recurso é muito importante para o marketing político. Começam a surgir conclusões
desse estudo que apontam para uma predisposição seletiva do público, e também de memorização.
Outros fatores de força da persuasão encontrados foram a credibilidade do comunicador e a
ordem de apresentação da argumentação. Nesse aspecto, identificou-se que pessoas contra um
argumento são mais facilmente convencidas quando são apresentados elementos a favor e contra.
Para quem estava a favor, funciona melhor só falar a favor. Pessoas com maior grau de instrução
são convencidas por argumentos em maior quantidade, as de menor grau, por poucos argumentos.
As tecnologias para o levantamento desses dados foi se aprimorando com o tempo. Assim,
de conversas com voluntários, passaram a ser constituídos grupos montados por profissionais de
recrutamento de pessoas por idade e classe etária, até o ponto em que aparelhos como o people-
meter eram instalados nos televisores de pessoas que recebiam retribuições financeiras para deixar
um sistema controlar minuto a minuto e informar pela linha telefônica em que canal de TV o
espectador estava sintonizado, quantas horas ele assiste por dia, chegando, por fim, aos atuais
sistemas de monitoramento via informática que têm gerado tanta discussão. Mas é importante
perceber que essa fome por informações não é novidade, a digitalização dos estudos apenas deu
mais visibilidade e substituiu em alguma medida amostras estatísticas por um caráter censitário.
Mas falando neste último ponto, já estamos tratando do segundo passo, apresentado por
Wolf, que são as teorias empíricas de campo. A maior diferença em relação ao método experimental
é que sua ênfase é quantitativa. Entrevistadores vão a campo coletar opiniões por meio de
questionários, as chamadas entrevistas estruturadas na forma de questionários com respostas
objetivas.
Estas análises massivas são mais próximas do censitário. É muito utilizada para análise do
conteúdo dos programas. Consolidou definitivamente uma perspectiva sociológica de análise das
pessoas a partir de segmentação por sexo, idade e grupo social. Suas conclusões são muito similares
aos da análise qualitativa, que consegue ser mais consistente no sentido de formular e verificar
hipóteses. Mas um resultado de campo distinto do que se via em laboratório foi justamente a
percepção da força dos chamados líderes de opinião.
Estes dois desenvolvimentos foram dando força a um terceiro passo importante, como que
sua conclusão, de que o efeito dos meios de comunicação é limitado. É muito comum uma pessoa
passar a vida toda torcendo pelo mesmo time de futebol e não adianta um bombardeio de
informações ser lançado sobre ele na tentativa de forçá-lo a mudar. Surge com base nessa hipótese a
teoria dos efeitos limitados que sugere a importância da situação, do contexto histórico, como
condição determinante do maior ou menor grau de disponibilidade de adesão a novas ideias por
parte do receptor da mensagem. Assim, nos anos 30, os efeitos dos mass media eram mais
persuasivos dada a depressão econômica. Nos anos 50 e 60, sua força já era bem menor em termos
de adesão ao consumismo porque a tranquilidade econômica levava as pessoas a pensar melhor
antes de se endividar.
Nesta mesma linha é apresentada a teoria dos usos e gratificações. Ela constatou
empiricamente que muitas vezes a intenção do emissor da mensagem não é exatamente o mesmo
em relação ao uso que o receptor faz da própria mensagem.
Estas metodologias empíricas são instrumento permanente do jornalismo, em especial em
sua dimensão empresarial. Pesquisas sobre perfil de leitor, idade, renovação de interesse estão
permanentemente sendo estudados pelas empresas jornalísticas para se manter financeiramente, e,
principalmente, pelo mercado publicitário, um dos pilares, como vimos, do tripé que mantém um
veículo comercial vivo desde o século XIX.

3.4 - Outras teorias administrativas

Deixando agora a Communication Research, encontramos ainda algumas teorias


administrativas de característica não empírica. É o caso da teoria matemática da comunicação que

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foi formulada nos anos 40 a partir do desenvolvimento de modelos, gráficos, que tenta mapear os
elementos de um processo de comunicação. Justamente no período da Segunda Grande Guerra ela
ganhou importância porque uma das questões que os militares tiveram de enfrentar durante a guerra
era a da comunicação militar, da comunicação dos exércitos, com as linhas de frente para transmitir
as ordens táticas numa estratégia de atuação.
Isso exigiu que os canais de comunicação fossem protegidos contra a interceptação por parte
do inimigo, que deixassem expostos os planos de guerra. A comunicação ganha um valor estratégico
de guerra e algumas máquinas foram desenvolvidas para criar um embaralhamento da informação, a
chamada criptografia da informação, para que, mesmo que as forças inimigas tivessem acesso ao
que era transmitido pelos meios, não conseguisse recuperar o sentido daqueles dados. É na Segunda
Guerra que surgiu a famosa máquina Enigma que codificava a mensagem em uma ponta da
transmissão e na outra, outra máquina configurada com o código necessário para a decifração da
mensagem fazia a operação inversa.
Ela funcionava com base em cálculos matemáticos. Por isso essas teorias matemáticas
começaram a receber estímulos de pesquisa para o desenvolvimento de tecnologias cada vez mais
avançadas tanto de codificação e decodificação, quanto de decifração das tecnologias dos outros.
Há um filme famoso a respeito do matemático inglês Alan Turing, o Jogo da Imitação, em que ele é
recrutado para decifrar o código da Enigma. Ao descobrir um padrão que sempre se repetia ao
término das mensagens, provavelmente uma saudação ao líder do nazismo, conseguiu criar um
programa de computador que conseguia transcrever a mensagem num tempo relativamente curto, o
que garantia ações de resistência dos aliados, que ficavam sempre um passo adiante dos inimigos.
A base da visão matemática da comunicação era uma perspectiva gráfica, em que o processo
de comunicação era visto como um caminho, da fonte de informação que envia uma mensagem por
meio de um codificador que a transmite por um canal, sujeito a ruído, até chegar a um decodificador
que a entrega legível a um receptor da mensagem. É a primeira versão de um problema bastante
contemporâneo que diz respeito ao tráfego de informações na internet, ou numa rede wi-fi, visto
que os aparelhos lançam ondas no ar que podem ser captadas por qualquer um.
Ela dá espaço ao desenvolvimento de toda uma ciência da matemática, da física, da ciência
da computação que estuda esses processos de transmissão e desenvolve seus recursos técnicos. No
princípio, nos anos 40, esses esforços tinham o objetivo de estratégia militar, mas acabaram também
resultando na invenção do próprio computador de uso pessoal e dos desdobramentos técnicos que
resultaram na construção da internet.
Novamente neste sentido, as teorias vão trabalhar a perspectiva de que a máquina em si é
neutra, criando o deslocamento já citado anteriormente, de que as questões ideológicas são
colocadas para fora do escopo de preocupações das teorias do jornalismo. Do mesmo modo que na
origem das teorias do organismo social, essa influência entre matemática e biologia também vai se
manifestar nelas, embora num sentido invertido. É a matemática que vai fornecer instrumentos que
vão ser aproveitados na biologia, como a ideia de cadeias de genes nos cromossomos, informação
genética, e também a ideia de que a informação constitui um sistema ecológico. São pontos em
comum das duas ciências discutidas na teoria matemática da informação. Outro termo muito
presente nela é o de função que já vimos também.
Os modelos de organismos complexos ganham uma contribuição importante do teórico Le
Fleur, que é um modelo mais complexo do que o modelo linear de Shannon e Weaver, introduzindo
novos elementos ali, como a possibilidade do feedback, em que a informação pode fluir de todos os
lugares para todos os lugares, numa espécie de sistema em rede. O ambiente informacional passa a
ser mais descentralizado, em comparação com o modelo linear que parecia apontar todo o poder da
comunicação ao emissor, e um papel passivo ao receptor.
Novamente foi um termo ecológico que ofereceu um modelo para pensar essas novas
relações de informação, constituindo um modelo ecológico comunicacional com duas esferas.
Numa, esta colocado cada sujeito individualmente, num ambiente de comunicação que cerca sua

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vida cotidiana. Na outra, surge uma espécie de visão ampla de todo o sistema em que todos os
sujeitos se integram, o que deu origem ao termo logosfera.
A matéria-prima destas teorias é a noção de informação como algo quantificável e
representável tanto de maneira analógica como digital, na figura de zeros e uns codificáveis. Hoje
em dia essa digitalização da informação foi amplamente popularizada, e diversos meios de registro
de informação como a máquina fotográfica, a câmera, a própria televisão se tornaram meios
digitais, oferecendo capacidades inéditas até então de veiculação. No enfrentamento da pandemia
vimos até mesmo a sala de aula se pulverizar em bites numa movimentação que aparenta ser
característica do presente tempo histórico.
Essa digitalização amplia o poder de organização, visto que a informação combate a
entropia. A entropia é uma definição introduzida por estas teorias que tenta representar a tendência
de desordem, de revolta, de desorganização. Evidentemente para a ordem matemática essa
desordem é algo a ser combatido, o que faz com que se revelem nesses centros de teoria matemática
uma visão de mundo bastante conservadora em diversos sentidos, embora não reacionária. A
informação circulando pelos meios ganha formas que combatem a entropia. Norbert Wiener acha
que qualquer segredo ou controle dos meios de comunicação faz a civilização voltar ao nível da
barbárie porque a informação não vai mais circular e ganhar forma contra a tendência de desordem.
Cria-se uma perspectiva liberal, que defende a liberdade de imprensa, a circulação de informação.
De outro lado, ela é conservadora porque não problematiza que tipo de ordem está sendo aplicado
para a criação dessas formas.
A Escola de Palo Alto incorpora a inovação de Le Fleur mas avança no sentido de defender
que não é possível reduzir a complexidade da sociedade somente a elementos formais numéricos.
Assim, sugere a incorporação de três avanços, que a essência da comunicação são processos
interacionais, em que as pessoas se comunicam entre si; que todo comportamento humano possui
valor comunicativo; e que toda perturbação psíquica remete a perturbações da comunicação e entre
o indivíduo e o seu meio.

3.5 – Estudos de longo prazo

Frisamos em alguns momentos que as teorias administrativas pretendem afastar de seu


escopo os problemas de ordem social e político, o que cria uma certa forma de antagonismo entre as
teorias administrativas e as teorias transformadoras do jornalismo, que reivindicam o caráter
inerente da discussão social e política no bojo da discussão comunicacional. Trata-se de um outro
grupo de teorias que reúnem autores como Adorno, Walter Benjamin, Horkheimer, e que constitui
um outro paradigma importante das teorias do jornalismo, que veremos adiante. Mas precisamos
citar as teorias críticas agora, porque entramos no estudo de um novo bloco de teorias que chamam
para si a ideia de que elas achavam esse embate ideológico entre teoria administrativa e teoria
crítica uma espécie de situação de impasse, mal resolvida, ruim para o desenvolvimento das
próprias teorias do jornalismo. Essa é a tese presente no livro de Mauro Wolf. Essas novas
tendências da pesquisa em jornalismo se colocam como uma espécie de alternativa para que essa
discussão não fique travada por uma polaridade que coloca como foco central se as questões
políticas, de regime de governo, do capitalismo, do comunismo, devem ou não entrar no campo de
discussão das teorias do jornalismo. Elas defendem que se deixe de lado esse problema, o que, num
certo sentido, não deixa de ser um posicionamento também. E assim poderemos entender melhor
qual foi esse posicionamento. O que explica também porque apresentamos a elas antes das teorias
transformadoras do jornalismo.
Essa apresentação parte de uma revisão das características das teorias administrativas que
vimos até agora. Há quatro premissas das teorias administrativas segundo Mauro Wolf: o processo
comunicativo é assimétrico (o emissor é ativo e potente, o receptor é passivo); a comunicação é
individual (numa situação de massa cada pessoa é apenas um ponto amorfo ou, de forma mais

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relativizada, faz parte de um público com certas características, mas se parte sempre do pressuposto
que a comunicação atinge sempre o indivíduo isoladamente), a comunicação é intencional (o
emissor tem intenção de dizer o que diz); os processos de comunicação são episódicos (cada um é
uma espécie de acontecimento, que pode ser estudado isoladamente).
As teorias de longo prazo se contrapõem a cada um desses pontos da teoria administrativa. A
ideia é que houve uma grande modificação nesses quatro tópicos, sob o lema de que os fenômenos
não podem ser estudados isoladamente, mas que o efeito da comunicação para a transformação da
cabeça das pessoas acontece mais lentamente. É necessário um prazo maior para que se transforme
a maneira como elas veem o mundo. Não adianta ver um único filme ou um telejornal. A persuasão
de dá a partir de um leque imenso de ações que, todos coordenados, criam um impacto. Os nazistas
começaram em 1933 a ter uma política específica de propaganda, a partir de 1937 criam o
ministério do Esclarecimento do Povo dirigido por Goebels até 1945, ou seja, foi um longo
processo de criação de uma ideologia, de uma identidade, como veremos mais para frente, uma
identidade nacional que vai sendo construída. Brasileiro não gosta de argentino. Isso é uma
construção ideológica de décadas. Do dia para a noite não se muda uma coisa dessas que está
arraigada no espírito nacional. É o mesmo problema do racismo.
Cada um dos tópicos foi invertido. Primeiro. A teoria de longo prazo diz que o emissor não é
todo poderoso, não é só um canal de televisão que detém o monopólio de vozes do sistema
comunicacional. Há outros canais. Portanto, a comunicação não é tão assimétrica assim. Segundo. A
concepção de que a comunicação é individual passa a ser questionada, e dá lugar à ideia de que
você pode conhecer as pessoas em termo de grupos, de público e não mais como uma massa
homogênea. Além disso, as pessoas conversam entre si, com os amigos, com os parentes. Há um
fluxo de comunicação outro que faz com que as pessoas não sejam tão isoladas assim. Existe uma
conversa dos sujeitos para elaborar opiniões sobre as informações a que eles foram submetidos.
Terceiro. A perspectiva, de que a comunicação sempre atinge o público e o faz mudar de opinião,
começa a ser questionada tanto do ponto de vista teórico quanto histórico. Em 1984 as emissoras de
televisão omitiam coberturas jornalísticas a respeito de comícios pelas eleições diretas no Brasil.
Mas outras emissoras e jornais cobriram. Por fim, a ideia de que não tem como fazer um estudo
sobre um único telejornal para ver se aquela edição mudou a cabeça de alguém. É preciso ter um
estudo de mais longo prazo porque as pessoas mudam de ideia lentamente também.
Segundo esse novo paradigma de pesquisa, começa-se a fazer a pergunta inversa. A mídia
tem algum poder ou ela é somente mais uma voz que está soando, como se o apresentador
jornalístico fosse uma pessoa que viesse à minha cada uma vez por dia e dissesse alguma coisa e
fosse embora. Depois, converso com outras pessoas, falo com outras pessoas, e, se vou ou não levar
em conta a opinião dele, é uma decisão minha. As primeiras teorias que surgem na perspectiva de
longo prazo vão enfatizar justamente que a mídia não tem nenhum poder de influência de
convencimento. A emissora de televisão não vai mudar as ideias que tenho a respeito do presidente
da República independente do que ela diga. O papel da mídia sai da função de convencimento, de
persuasão e administração das massas. E passa a ser o lugar para o qual as pessoas apelam para
saber a respeito das coisas. Não temos condições de sair todo dia de casa para saber o que o
ministro da Saúde está falando sobre a Covid, o que a Receita está falando sobre imposto de renda e
economia, portanto, tem uma hora do dia que vou até a televisão e tomo contato com a realidade
construída pela mídia. Ela passa a ser vista como um lugar que oferece uma grade de pensamento
para quem assiste. Esse novo poder vai se manifestar por intermédio de três características.
Primeiro. Como esse efeito da mídia é de longo prazo, tem uma força da mídia que é a
capacidade de acumulação ou manutenção de certo ponto de vista por longos períodos. Sempre
batendo na mesma tecla, a persistência desta informação pode levar ao convencimento das massas.
O tempo todo a mídia fica dizendo que o presidente da Venezuela é um ditador, repete, repete, como
eu não tenho muitas condições também de checar se isso é verdade, pode ser que eu incorpore de
maneira automática esta visão das coisas. Há uma certa limitação na formação da opinião por

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depender em alguma medida da informação que vem da mídia. Por outro lado, há uma certa
consonância de diversos meios que vão dando o assunto num mesmo sentido, por motivos que
muitas vezes não sabemos, recursos oficiais entrando nos veículos, dinheiro de anunciantes
entrando por meio das agências de publicidade, interesses dos próprios donos dos jornais. Por fim,
uma certa onipresença da mídia, porque ela está em todo o lugar. Ela pode estar falando com 20
milhões, 30 milhões de pessoas.

3.6 – Agenda-setting

Portanto, a mídia não é todo poderosa, mas ela tem algum poder. A primeira teoria que se
desenvolve neste sentido é a teoria do agenda-setting. Ela coloca a ideia de que “em consequência
da ação dos jornais, da televisão e de outros meios de comunicação, o público sabe ou ignora, presta
atenção ou descuida, realça ou negligencia, elementos específicos do cenário público” (WOLF,
2001, p. 144). Ou seja, a mídia é capaz de pautar a agenda. Como diz um representante desta teoria,
Bernard Cecil Cohen, a mídia não é capaz de dizer às pessoas como pensar, se eu vou pensar a favor
do presidente da Venezuela Nicolás Maduro, ou contra. Mas ela vai ter como levar as pessoas a
pensar sobre aquele assunto. Na época em que os americanos imaginaram ser possível um golpe na
Venezuela, a mídia falava o tempo inteiro dele. Quando perceberam que não ia dar, o tema sumiu da
mídia. E com o bloqueio do petróleo russo ocorrido em 2023 por ocasião da guerra contra a
Ucrânia, os americanos estão até conversando com a Venezuela para tentar comprar petróleo. Este
vai e vem do assunto se configura como meio de pressão.
Um exemplo. Numa campanha política, tem dois candidatos, um ecologista e outro
trabalhista. Se a mídia ficar batendo muito no tema ecológico, vai criar problemas para um
candidato e facilidade de expressão ao outro. Pautando o assunto, num certo sentido, também vai
haver controle das massas. A influência sobre as massas se dá somente no controle da agenda.
A base de pesquisa do agenda-setting são estudos empíricos, em que numa certa fase do
estudo se analisa as mídias durante um certo prazo relativamente longo, a partir da eleição de um
tema como meio ambiente, depois se cruza esse resultado com análises empíricas de campo para ver
se a maneira como a mídia tratou esse tema conseguiu colocar os seus assuntos em pauta na
sociedade. Então ela é uma espécie de estudo comparativo, em que você tem num polo o que a
mídia falou e no outro o que as pessoas acham ao longo do tempo e como foi mudando a opinião.
Portanto são reaproveitadas as metodologias das teorias administrativas tradicionais, como
pesquisa de campo, mas a investigação caminha na direção da associação dos resultados obtidos
com o do discurso da mídia. Depois essa análise evolutiva do que se falou de um mês ao outro, se
houver uma coincidência, a mídia falava de ecologia e as pessoas estão discutindo isso, se concluiu
que houve o impacto desejado na agenda. Mas Wolf questiona o fato de não haver uma metodologia
muito padronizada para isso. Quanto tempo preciso estudar, quais meios devo analisar? Há muitas
variáveis. As pessoas não assistem a um jornal só, acompanham vários meios, e fica difícil mapear
o que as pessoas assistiram. Outro problema é medir o que as pessoas acham. Qual é o grau de
precisão possível de ter num estudo em que você vai para a sociedade para tentar descobrir o que as
pessoas estão pensando. São dificuldades que se colocam para as pessoas para dar andamento a este
método teórico.
O desdobramento natural destes estudos, num outro sentido, é tentar entender se os jornais
estão fornecendo uma espécie de grade mental com a qual cada um enquadra temas. Se você vai
discutir aborto, o que pode acontecer? Você pode discutir o aborto segundo uma perspectiva
jornalística sugerindo existirem casos de mulheres que foram negligentes em relação ao controle
conceptivo e depois resolveram abortar sem nenhuma razão, só porque quiseram, numa decisão
individualista e egoísta que atentou contra a vida. Este recorte ideológico vai levar as pessoas a se
posicionarem contrárias à prática do aborto. Mas você pode fazer uma outra matéria somente com
vítimas de estupro, muitas vezes, contra crianças de 10 anos que engravidaram de um tio, uma

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perspectiva que vai levar boa parte das pessoas a serem mais favoráveis a uma flexibilização do
aborto. Dependendo do tipo de matéria que o jornalismo privilegia, vai-se criando uma grade de
organização do pensamento, de modo que as matérias vão levando para um lado ou para outro, mas
levando de uma maneira que se torna uma construção lenta, gradual, da construção de opiniões aos
poucos. Os estudos de agenda querem ver se essa moldagem funciona.
A teoria se concentra portanto em dois polos da atuação do jornalismo, primeiro de definidor
da agenda do dia, segundo, a influência da percepção da hierarquia dos fatos.
Estas teorias foram muito utilizadas para estudar eleições presidenciais ou temas muito
específicos como a morte de negros nos Estados Unidos por policiais. Wolf cita algumas conclusões
desses estudos. Uma delas foi a medição do grau de influência dos meios televisivos e meios
impressos. Ao contrário do que inicialmente poderia se imaginar, o poder do impresso é muito
maior do que a televisão na definição da agenda. Há tentativas de explicar isso por meio da
concentração do leitor na leitura, enquanto o caráter de mosaico de muitas notícias da televisão é
prejucial a ela no sentido de ter força de agendamento. Mas não há uma explicação definitiva para
os dados encontrados, o estudo empírico simplesmente constatou que os jornais falavam mais de
tais temas, a televisão de outros quais e os dos impressos foram mais citados pelas pessoas ouvidas
nas ruas.
Outros estudos a respeito dos períodos eleitorais são interessantes também. Existem muito
mais notícias sobre fofoca, questões folclóricas sobre os candidatos, se tinha parentes, se tinha
amante ou não. Isso é muito mais noticiado do que as propostas políticas. Os meios minimizam os
temas eleitorais mesmo em um ano eleitoral. Um estudo de 1976 dizia que 30% da campanha
política tinha tema político, o restante era temas de ordem íntima, pessoal, que não tinham relação
com a campanha. Outro tema interessante era saber o que acontece quando a mídia deixa de falar de
um assunto. Os resultados apontam que o tema realmente some da pauta. São exemplos de
resultados que Wolf enumera.
Mauro Wolf é um defensor da agenda-setting, porém, realiza algumas críticas na tentativa de
aperfeiçoar esta teoria do ponto de vista metodológico. Estes aprimoramentos seriam talvez o
caminho para que a teoria deixasse de ser apenas uma hipótese. Quando se fala da teoria do
agenda-setting, é comum a tratar como a “hipótese do agenda-setting”, porque ela no fundo nunca
deixou de ser simplesmente uma hipótese. Alguém acha que provavelmente os meios pautam a
agenda social, mas isso nunca é visto em termos definitivos. É uma hipótese que se levanta para
explicar algo e que terá de ser comprovada por meio de constatação empírica com estudos de longo
prazo. Comprovada a transferência, persiste o caráter empírico da constatação, e todo novo estudo
terá de comprovar mais uma vez sua validade. Em resumo, se passaram 50 anos do uso da
metodologia e ninguém tem como afirmar que ela está correta. Principalmente a afirmação de que
os meios de comunicação não têm poder de convencimento, pensamento que se mostra temerário.
A primeira recomendação objetiva de Wolf, é evitar a aleatoriedade na escolha dos meios
estudados. Alguns estudaram eleição, outros estudaram saúde, alguns estudaram rádio, outros
estudaram impressos. Não houve uma metodologia mais clara e padronizada de pesquisa.
O primeiro problema é justamente determinar quais são os meios de comunicação que serão
considerados no estudo. Por que escolher rádio, televisão ou os dois? Tem algo que indique qual
mídia se deve estudar? O agenda-setting é uma comparação entre o que está na mídia e o que as
pessoas estão conversando. Mas o que é esse estar na mídia? O que está no jornal ou na televisão? A
opção por um único meio, como a televisão, por exemplo, impede que o estudo identifique qual é a
força de influência de distintos meios. A opção por uma situação indiferenciada de diversos meios
também gera o problema de falsa impressão de homogeneidade entre os meios, sendo que isso pode
estar distante da realidade da cobertura. O único caso em que não haveria prejuízo de abstrair estas
distinções é um em que todos os meios cubram determinado assunto. Por exemplo, o caso da
pandemia, que todos os meios cobriram.

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Wolf cita um autor chamado McCombs, que parte de novos dados históricos acumulados
pela pesquisa de agenda para colocar em novos moldes o problema da comparação entre impresso e
televisão. Ele confirma o maior poder de influência dos impressos em relação à televisão para
determinação da agenda. Porém percebe que pode existir um momento de reta final, por exemplo,
nas eleições, em que podem aparecer temas polêmicos que seriam disseminados muito rapidamente
pela televisão e que poderiam interferir nos resultados.
Na tentativa de organizar melhor os estudos dos meios, foi proposto por Wolf dividir os
assuntos acompanhados pela mídia em três categorias. Primeira, assuntos que atingem todo mundo,
e que serão de interesse dos meios de ampla circulação como um telejornal noturno ou jornais
impressos, segunda, assuntos de interesse de públicos segmentados, como os de um jornal esportivo
ou de assuntos econômicos, e, terceira, assuntos na maior parte das vezes negligenciados mas que,
ocasionalmente, pode ser que a mídia se interesse por elea.
Outra sugestão seria estudar o que Wolf chamou de tematização. Isso está relacionado com a
recepção e análise das notícias. Quando se ouve uma notícia, o receptor enquadra a notícia dentro
de uma espécie de grade de pensamento que cada um carrega em sua mente, até mesmo de um
ponto de vista linguístico. Essa grade organiza a informação dentro de uma espécie de gaveta que
temos reservada para ela. Uma certa notícia é classificada na gaveta do esporte porque fala de um
time que ganhou de outro por cinco a zero. Portanto existem essas gavetas nas quais os temas são
colocados.
Wolf diz que um dos maiores poderes da mídia é ir levando as pessoas a criarem
determinadas estruturas de gavetas, determinadas grades, que é o que ele chama de tematização.
Quando ouvimos que a polícia invadiu um barraco numa favela e prendeu alguém com drogas, esse
assunto será tematizado como assunto de polícia, de segurança. Já quando ouvimos dizer que um
diretor de um banco foi flagrado desviando dinheiro e manipulando mercado financeiro, esse diretor
será considerado suspeito até surgir uma sentença judicial. Ele não será preso e algemado, e nenhum
policial vai estourar a porta do seu apartamento. São sutilezas que tiram o assunto do tema crime e o
joga em outra que talvez chamemos de assunto administrativo, crime de colarinho branco, e esses
assuntos são totalmente separados.
É o mesmo mecanismo que atua quando dois rapazes são pegos com drogas. Se ele estiver
na favela e se for negro, passa a ser visto como um traficante. Se ele estiver na Barra da Tijuca e for
branco, passa a ser visto como um jovem cooptado pelo tráfico. Isso está impregnado na linguagem
e na sociedade, e o que a teoria está dizendo é que a mídia tem poder de interferir no longo prazo
nessa construção e alteração dessas grades estruturais, o que ele chama de tematização.
Wolf entra em seguida na discussão da metodologia básica do agenda-setting, ou seja,
estudar num certo momento os meios e noutro a agenda social, para poder comparar as duas
agendas, e apresenta suas sugestões.
Ele diz que há três pressupostos da agenda-setting que são muito questionáveis. O primeiro
pressuposto é que aquilo que a mídia fala vai formar a agenda da sociedade. A verdade é que pode
ser que a mídia forme, mas isso é algo que tem de ser verificado empiricamente pela pesquisa. Mas
pode ser que isso não aconteça. O segundo é que um dos parâmetros que deve ser levado em conta é
a quantidade, portanto o estudo pressupõe que se um assunto foi tratado mais vezes que o outro, a
sociedade vai falar mais do assunto que do outro. Novamente surge aqui o problema da
comprovação porque isso nem sempre é verdade. Pode ser que um assunto que foi tratado duas
vezes tenha maior impacto do que outro que foi falado cinquenta. O terceiro é um acordo tácito de
que a qualidade não é relevante, há um desprezo pela essência qualitativa do que está em pauta. Os
estudos de agenda-setting tendem a se prender ao aspecto quantitativo. Eles utilizam pouco os
grupos de foco. Usam mais as pesquisas de campo.
Indo mais para o lado qualitativo do aprendizado, surgem dois modelos que tentam explicar
o modo como as pessoas se relacionam com as informações. O primeiro deles se chama o modelo
da atenção, que sugere que qualquer informação que aparece para o público, chama a atenção, e

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sobre ela, cada um vai tentar realizar uma análise com a finalidade de tratar aquela informação e o
resultado será a maneira como ele será impactado por ela. Existem pessoas que não vão colocar
muitas restrições para aceitar o que a informação transmite e passam a construir suas grades de
interpretação a partir da informação. O segundo deles se chama o modelo da interpretação, que
explica como pensam pessoas que recebem a informação e enquadram na sua grade preexistente, o
que fará com que a informação ser filtrada e aspectos ideológicos ou distorcidos que ela tenha sejam
facilmente identificados e neutralizados.
Em termos de agenda, trata-se de aceitar a agenda do meio automaticamente ou se o sujeito
aceita ou rejeita agendas a partir do que ele já pensa anteriormente.
Outra questão metodológica é que Wolf cria uma proposta de tratamento do problema do
tempo nas pesquisas. Propõe que os estudos sigam cinco categorias temporais. A primeira é frame
temporal, ou seja, todo o período que o estudo vai abranger. Vai iniciar em abril e terminar em
outubro quando as eleições, por exemplo, se realizam. A segunda é o intervalo temporal, ou seja,
dentro desses sete meses, o intervalo existente entre o momento quando vou estudar a mídia e o
momento quando vou estudar a sociedade. A terceira é a duração do levantamento da agenda, ou
seja, quanto tempo vou estudar a mídia e quanto tempo vou estudar a sociedade. A quarta, é a
determinação do período de levantamento da mídia e o período de determinação da época de estudo
da sociedade. A quinta, o que ele chama de momento ótimo, no sentido de otimização, é a
identificação dos períodos em que o efeito da mídia exerceu maior influência sobre a pauta da
sociedade.
Ele ainda propõe classificar as maneiras como o público será estudado a partir de três
parâmetros para melhor especificar o que está sendo estudado. Assim, distingue, em primeiro lugar,
estudos sobre uma agenda intrapessoal, em que vai estudar as maneiras como cada pessoa escolhe
os assuntos que figuram na sua agenda. Em segundo lugar, há uma interpessoal, que está
relacionada ao ambiente de trabalho, onde surgem assuntos que terão de ser tratados. E, em terceiro,
a agenda pública, aquela na qual a sociedade como um todo está ligada.
Por fim, diz é que necessário determinar qual será o grau de profundidade das análises,
criando uma escala de um a três. O primeiro grau ele chama de estudo do conhecimento, um nível
de estudo do agenda-setting em que simplesmente se observa se as pessoas estão falando sobre o
que a mídia está tratando. O segundo grau ele chama de estudo do realce, em que não só será
estudada a agenda da mídia e da sociedade mas também o grau qualitativo que foi dado ao assunto
pela mídia e pela sociedade. O terceiro grau seria o estudo das prioridades, que é um estudo
bastante amplo, abrangendo uma série de hierarquias de assuntos e suas relações mais complexas.
Antes de avançar com as novas tendências de estudos de jornalismo, uma palavra só a
respeito da pretensão das teorias de longo prazo de terem superado o antagonismo teoria
administrativa versus teoria crítica. Esta é a tese de Wolf. Porém, percebe-se que o que o agenda-
setting faz é instrumentalizar a teoria administrativa com novos recursos. Diz que não se pode
controlar nem persuadir as massas, como a teoria administrativa original apregoa, mas que as
massas podem ser controladas por meio do controle da agenda. Portanto, se algum tema polêmico
está desgastando essa administração porque as pessoas não concordam com uma orienação que o
governo, por exemplo, tenta lhes impor, coloque-se na mídia o tema Copa do Mundo, para fazer
sumir o ponto de discórdia. Ou seja, a agenda-setting também é uma teoria de administração das
massas, ou seja, uma teoria administrativa. O mesmo vai ocorrer com as teorias que passamos a
apresentar agora, as teorias do gatekeeper e do newsmaking.

3.7 – Estudos do emissor

A marca principal destas teorias, como o próprio nome indica, é privilegiar o estudo do
emissor, e abstrair as questões que envolvem o canal, o meio de comunicação e o público. No caso
do jornalismo, trata-se de um estudo que focaliza o jornal, os jornalistas, e o seu processo de

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trabalho e produção. Por isso, elas foram buscar como base metodológica a sociologia de Max
Weber, que tem todo um desenvolvimento no campo da sociologia do trabalho. Ele propõe que os
estudos sociológicos se voltem para a dimensão ética da sociedade. Ele também é um estudioso das
religiões, percebe que a religião é um dos polos formadores de uma certa conduta ética, de uma
maneira de agir das pessoas que professam determinada religião, e está interessado em saber até que
ponto ela tem força para promover a mudança do comportamento humano.
Em seu livro mais famoso, A ética protestante e o espírito do capitalismo, chega à conclusão
de que o Capitalismo nasceu da religião protestante. O fundamento que possibilitou o surgimento
desse sistema social seria uma virada ética que deslocou a visão pecaminosa do dinheiro.
Diferentemente de Marx que vai colocar a origem do Capitalismo no desenvolvimento dos meios de
produção, reúne argumentos e fatos que apontam para a ideologia como motor de liberação para as
práticas capitalistas.
A marca da ética protestante é a exigência de que o fiel lide com o dinheiro e com o trabalho
de uma maneira diferente do que a ética católica pregava. Segundo esta, o dinheiro sempre foi
alguma coisa associada ao pecado, à coisa ruim, afirmações como que é mais fácil um camelo
passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus. Ao contrário disso, a ética
protestante vai colocar o dinheiro como uma coisa positiva.
Ao mesmo tempo, a visão católica pejorativa em relação ao trabalho, associado a ter de
trabalhar para ganhar com o suor do rosto o pão de cada dia como uma espécie de castigo de origem
decorrente da queda de Adão do paraíso também foi superada pela ética protestante. O primeiro
passo importante nesse sentido foi o detalhe histórico muito pontual de Lutero ter traduzido a bíblia
para o Alemão utilizando a palavra trabalho para a palavra traduzida pelos católicos como louvor.
Assim, quando alguém se dedica a Deus, ela também está trabalhando. Por isso, passa a ver o
trabalho que se realiza no ambiente laico, por exemplo como jornalista, como algo também de uma
espécie de missão que também louva ao divino. O trabalho é algo que Deus nos colocou no mundo
para realizar. Deus deu tempo ao homem para realizar um trabalho. E o fruto desse trabalho, que é o
que Deus quer que se faça, é alguma coisa positiva. Portanto ganhar dinheiro é uma coisa positiva
dentro da perspectiva luterana e também de outras correntes protestantes.
Essa visão positiva do trabalho que o associa a uma espécie de vocação divina vai dar uma
dignidade quase que divina também à vocação profissional. Surge toda uma ética por trás das
profissões, que é exatamente a mesma ética que abriu as portas para o capitalismo.
Outro ponto importante desta teoria, e que serviu de metodologia para as teorias que
veremos a seguir, é uma estratégia para definir como se poderia estudar estas profissões. Para isso
Weber cria uma metodologia que ele chamou de tipos ideais. Quando está estudando esta passagem
para o capitalismo, ele tem de criar uma espécie de imagem típica do católico e do protestante para
verificar como esses ‘tipos ideais’ se comportam frente ao trabalho, para poder compará-los. Estas
teorias que veremos a partir de agora também se baseiam na construção metodológica de tipos
ideais, mas no caso delas, tipos ideais do jornalista.
Esta metodologia da tipologia no Brasil é muito importante, porque, quando começa a surgir
uma teoria brasileira que visa explicar a construção da sociedade, um dos principais livros que trata
disso é o “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda, obra que se utiliza da tipologia
weberiana para criar a figura do português, do espanhol e do próprio brasileiro, o homem cordial.
Ou seja, ela se tornou uma metodologia muito sólida que foi dando diversos frutos importantes para
os estudos sociológicos.
Partindo de Weber, as teorias dos emissores vão ter um método estabilizado, ao contrário do
que ocorreu com o agenda-setting. Ou seja, elas pressupõem que quem determina o comportamento
no trabalho é a ética estabilizada nos costumes, lugar onde a ética religiosa tem um papel
importante. Mas este método se lança sobre seu campo específico de preocupações, o emissor
jornalístico, servindo para desenhar uma ética particular desta categoria do trabalho. Por isso o
jornalista parece estar associado a um trabalho quase missionário, vocacional, que coloca em outro

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tipo de perspectiva também o fato de as empresas de comunicação serem organizações que querem
ganhar dinheiro. É uma nova perspectiva que não vem mal algum nisso.
Nesse sentido, surge uma distância bastante maior dessas teorias em relação à teoria
administrativa do que a teoria do agenda-setting. Mas permanece o problema de fundo da relação
com a criticidade que é a diferença entre teoria administrativa e teoria transformadora do jornalismo
conforme veremos ainda adiante.
Por ora importa saber que a metodologia está toda desenvolvida, toda dada e madura. Para
seguir nesta teoria, basta estudar Max Weber e aplicar sua tipologia. A perspectiva weberiana retira
de suas preocupações, como já vimos, a dimensão ideológica ou política dos meios de comunicação
de massa. Por tratar a evolução da sociedade como uma evolução ética, ela esvazia as tensões
sociais que se colocam de modo muito forte em Marx, de que a sociedade tem contradições de
classe. Weber não se dizia contrário a Marx. Mas defendia outro ponto de vista.
Por outro lado, a maneira como são construídos os tipos oferecem um instrumento muito
eficiente para entender o modo de funcionamento dos jornais. Assim, a teoria dos emissores se torna
uma das teorias mais interessantes quando o objetivo de seu estudo e exposição é mostrar como
funciona um jornal, quem é o jornalista, quais são seus comportamentos, o que é a ética jornalística,
a ética do grupo de pessoas que trabalha dentro de uma empresa jornalística. É uma teoria didática.
Para quem já conhece o jornalismo por ter trabalhado num jornal ou emissora de rádio ou TV, elas
mostram simplesmente o que um jornalista já sabe. Mas para quem ainda não teve a inserção no
mercado profissional, elas explicam muito bem como a coisa funciona.
A aplicação do método vai se voltar para a construção dos tipos. E, para isso, existe uma
estratégia que se sobressai, que é a observação participante, a mesma perspectiva que já foi vista na
Escola de Chicago. O pesquisador vai para dentro do ambiente social a ser investigado. Só que,
agora, esse lugar para onde o pesquisador se desloca não é mais uma comunidade, e sim o próprio
jornal, onde os jornalistas vão ser observados para se entender como a coisa funciona. Outra
estratégia utilizada é o próprio questionário, que pode ser enviado a jornalistas para tentar obter
respostas que alimentem a construção desse tipo ideal.

3.8 – Gatekeeper

O termo gatekeeper significa literalmente em inglês tomar conta do portão. A origem do


termo remonta a estudos publicitários que queriam entender quem fazia as compras numa fazenda,
quem tomava as decisões quanto aos produtos a serem adquiridos, quem escolhia os produtos no
supermercado. A metáfora com a qual ele é transposto para o jornalismo é que há alguém que deixa
ou não deixa uma notícia entrar no noticiário. Portanto tem uma cancela na pauta, que é o momento
em que se está prevendo o que deve ou não entrar no noticiário; há outra cancela na apuração, visto
que o repórter seleciona quem vai entrevistar, o que vai escrever em sua matéria; e uma terceira na
edição, pois o editor ou redator corta coisas, acrescenta outras. É toda uma estrutura de filtros que
resulta no que entra ou não entra no produto final jornalístico. O trabalho de pesquisa resulta na
construção de uma tipologia que representa esta figura do gatekeeper no jornal. São feitas visitas,
entrevistas com jornalistas, até que seja possível construir esse tipo ideal. Quais são os momentos e
quem toma as decisões que resultam na transposição da porteira.
Wolf cita estudos de Charles Whright que estabeleceu o uso desse termo nos estudos do
jornalismo. A metodologia que utilizou foi a observação participante. Um primeiro tópico abordado
pela investigação sobre o gatekeeper foi tentar identificar qual era o critério utilizado por ele para a
escolha das matérias. O resultado encontrado é de que esse critério é predominantemente subjetivo.
O gatekeeper tem um poder, que é o poder de deixar ou não algo figurar no noticiário, e ele
simplesmente exerce o poder e diz qual matéria vai entrar.

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A velocidade de produção dos veículos é tão acelerada que, muitas vezes, chegam cinco
matérias e alguém terá de escolher uma para entrar e deixar quatro de fora. Por vezes essa pessoa
nem pensa muito porque o prazo de fechamento está se estreitando. Escolhe o que estava mais à
mão, ou o que achou que estava melhor escrito, ou um assunto inédito que talvez vá agradar o
público. Enfim, inúmeros possíveis critérios pontuais de cada escolha. Segundo os estudos
empíricos, não existe um critério objetivo.
Os estudos de Whright resultam em estatísticas para possíveis motivos para deixar de dar
alguma notícia, calculadas a partir de 1300 justificativas de escolha que os entrevistados no papel de
gatekeeper forneceram a ele. Em 800 explicações, se disse que o jornal não tinha espaço para
publicar, algumas explicações foram de que a notícia era um pouco antiga, já havia sido dada pelo
veículo. Ou que, na perspectiva da pessoa, o assunto não tinha interesse ou faltava qualidade ao
texto. Daí é possível extrair pontos importantes a serem entendidos pelo jornalista em seu processo
de formação. Tem de escrever direito. Matéria mal escrita tem mais chance de ser cortada. Daí se
começa a entender como as coisas funcionam dentro de um jornal.
Segunda questão, a falta de espaço. Isso é um problema permanente do jornalismo. O
modelo moderno de jornalismo exige que se escreva num formato pré-determinado, os chamados
lead13 e a pirâmide invertida14. Essas técnicas tem relação com isso. Não há espaço para colocar toda
a matéria muitas vezes, por isso, ela tem de ser escrita de um modo que o editor rapidamente possa
selecionar dez linhas, cortar tudo dali para baixo, sabendo que a matéria ficará o mais bem escrita
possível dentro daquelas dez linhas porque ali está o mais importante do texto.
Outros 70 casos identificados foram de um desencontro entre o assunto da matéria e a área
de maior interesse do veículo. Muitas vezes o assunto até tem ineresse, mas não é a área
privilegiada por aquela linha editorial.
Outra descoberta importante dos estudos é o mapeamento de quem decide em cada jornal.
Isso é totalmente idiossincrático, cada jornal tem sua estrutura e ela pode mudar de um dia para o
dia seguinte. Mas há alguns elementos estruturais funcionais que geralmente refletem a
configuração de poder, como a existência de hierarquias entre editores, subeditores, redatores,
repórteres, copydesks, cada um com uma certa autonomia e poder nas relações entre eles definidas
pela direção.
Os estudos tentaram identificar quem é o gatekeeper e com quem ele discute para tomar suas
decisões de corte e publicação. Mas o resultado do estudo empírico de Whright é que ele não
discute com ninguém. Toma uma decisão totalmente centralizada já que não há nem mesmo tempo
para discutir se uma matéria vai entrar ou não. É mais comum, nas redações, essa discussão ocorrer
após a publicação. Alguém questionar por que sua matéria não entrou ou porque foi alterada, por
exemplo. Surgem argumentos neste momento para comparar o que foi publicado com o que foi
dado por outras publicações, demonstrando que não dar certa matéria acarretou ‘levar um furo’ por
parte do veículo concorrente, ou comprovação do acerto quando uma matéria publicada ‘deu um
furo’ de reportagem nos concorrentes.
O motivo por que o gatekeeper inclui a matéria é em grande medida subjetivo. Mas há
elementos que podem ser elencados por exercer influência nesta decisão. Há a orientação do jornal
que privilegia certos assuntos ou certo sentido da cobertura em determinado tema. Por outro lado,
há medo de represálias. Por mais que o gatekeeper tenha autonomia para determinar o que vai
entrar, talvez, no dia seguinte, essa decisão seja motivo de repreensão por parte de superiores
hierárquicos. Ainda existe um certo sentimento de estima por quem contratou o gatekeeper, pessoas
que o ajudaram a chegar em seu posto. Existem influências de carreira, e perspectiva de mobilidade
profissional, porque o profissional sabe que se ele fizer certos jogos em torno de interesses
13 O lead consiste na exposição sumária da resposta às perguntas: quem, fez o quê, como, quando, onde e por quê.
14 Pensando a figura normal de uma pirâmide, um triângulo, a base é mais larga e a ponta mais estreita. Se a largura
representa a importância dos fatos que constituem um texto, o mais importante deve vir primeiro, o que motiva a
ideia de pirâmide invertida, um triângulo com a base, mais larga, o mais importante, logo no início do texto e,
conforme ele evolui, começam a vir elementos secundários.

56
conhecidos, isso pode colocá-lo mais próximo ou mais distante de promoções. E cada jornalista
administra a partir de sua estratégia e de seus limites de comportamento ético essas alianças e
proximidades com chefias. Como se vê, tudo muito empírico, histórico e pontual. Mas percebe-se
inexistência de fidelidade de grupo. O jornalista é extremamente individualista e existe até mesmo
perseguição nas redações caso se perceba qualquer tipo de aumento de força de um grupo para
direcionar as matérias ou as coberturas. Se algum editor ver um grupo se consolidando e ganhando
força, ele vai entender isso como uma ameaça e vai demitir três ou quatro para contornar este
problema.
Existe uma rigorosa hierarquia no interior de um veículo, até mesmo por força da velocidade
dos processos de fechamento. Além do que isso também interessa aos donos do veículo porque eles
sabem que sua palavra será sempre a última e será sempre respeitada. Eles são quem contrata e
demite em última instância. A já enunciada “liberdade de empresa”.
Os aspectos agradáveis do trabalho são a grande autonomia do gatekeeper. E também existe
um aspecto competitivo e meritocrático de fazer parte de um trabalho que pode ser destaque
positivo em termos do resultado final apresentado. No meio jornalístico é comum um tipo de
comparação, dizendo que tal jornal está com uma editoria tal impecável, que está realizando um
ótimo trabalho de coberturas. O jornalismo respira essa busca de reconhecimento pela qualidade do
trabalho. O profissional tenta se destacar na produção do jornal e, entre os jornais, para conquistar
um nome que vai ser a carteirinha de entrada para os melhores veículos, para ser bem-sucedido
profissionalmente. O que gera uma mentalidade muito competitiva.
A ética jornalística entendida assim exclui as reflexões a respeito do valor das matérias em
termos de consequências sociais, entre outros aspectos. Há uma ideia perpassando essa ética
protestante que é o determinismo, que vem da influência religiosa, do pensamento de controle
absoluto dos acontecimentos pela divindade. Se Deus tudo pode e tudo sabe, ele sabe porque
colocou cada um para desempenhar aquele determinado papel. É uma espécie de abafamento do
livre arbítrio que na ética católica está muito mais presente. Na ética protestante, que dá fundamento
ao capitalismo, há uma naturalização de comportamentos em função da assunção dos designios do
destino. A ética vocacional tem lugar também para profissionais que façam serviços não tão bem
vistos assim porque eles fazem um serviço que a sociedade exige também que seja feito. A ordem
dessas profissões e necessidades vocacionais não é um desígnio social, mas da ordem do plano
superior divino.
A laicização desse pensamento desemboca em figuras míticas do liberalismo como a famosa
mão invisível do mercado de Adam Smith, para quem há uma condução que organiza as coisas. Do
ponto de vista do jornalismo, essa visão surge como perspectiva ideológica que busca atenuar o
debate em torno da intencionalidade do jornalista no sentido de conduzir as massas. O número de
atividades que o jornalista tem de fazer, o número de opções que tem de tomar, junto com o pouco
tempo para essas ações e a pressão constante de falta de espaço, dão lugar ao pensamento que,
mesmo que o jornalista porventura tenha manipulado seu público em um determinado episódio, na
maior parte das vezes isso vai ocorrer de maneira inconsciente. Muito mais em razão das condições
tensas e opressoras do trabalho do que de uma intencionalidade do jornalista, que tenha
maquiavelicamente se mobilizado para tal manipulação. O jornalista tinha cinquenta matérias e só
pode colocar duas. Se houve alguma ordem de manipulação na determinação de que aqueles dois
assuntos escolhidos são os mais importantes, ela seria inconsciente, motivada pela necessidade de
tomar decisões. Isso resultou na ideia de distorção involuntária que vai acompanhar também essas
teorias do emissor.
Esse tipo de visão é radicalmente contrária a outro tipo de abordagem que denuncia às vezes
o jornalismo por fazer jogos políticos e econômicos. Acaba tirando um pouco a impressão de que
tudo no jornalismo é extremamente calculado e joga isso na conta de um certo acaso, que abranda
as pressões sobre o profissional.

57
3.9 – Newsmaking
O deslocamento que as teorias do emissor realiza é de teorias que estavam preocupadas
diretamente com o modo como a comunicação servia para a organização e controle das massas para
uma outra que pretende entender melhor esse processo de emissão voltado, tendo como pressuposto
que ele visa o controle. Ou seja, o deslocamento não deixa de ser uma nova contribuição de
recursos para o melhor desempenho do controle, não deixando de ser, portanto, uma teoria
administrativa.
Por outro lado, a teoria do newsmaking amplia as discussões da sociologia do trabalho. Por
isso, Mauro Wolf apresenta o newsmaking como uma espécie de continuação do gatekeeper.
Portanto, tudo o que se viu anteriormente é passado como uma herança para a outra. A mesma
consistência metodológica, o mesmo uso do método dos tipos ideais. A diferença é que agora vai se
criar uma tipologia mais ampla do que a do gatekeeper que se restringia ao ato de deixar a matéria
entrar ou não.
Na maneira como Wolf apresenta o newsmaking, existem dois grandes eixos, ou duas
grandes questões que norteiam todo o desenvolvimento do newsmaking. Uma delas é a maneira
interna de funcionamento da redação, a outra é o estabelecimento de algo extremamente vago que
será chamado de cultura profissional. Esta cultura profissional é algo perfeitamente observável num
veículo, empiricamente. São características que envolvem até mesmo detalhes pitorescos como a
predominância do gênero dos jornalistas, a presença de álcool e drogas nesses ambientes.
Para demonstrar a relevância do problema da organização do ambiente de trabalho, basta
refletir que a primeira coisa que se deve fazer para produzir um jornal não é sua pauta. A primeira
coisa que se tem a fazer para um veículo circular com periodicidade é organizar como as pessoas
vão trabalhar, quem vai fazer o quê, determinar quais as funções, quais os recursos necessários,
quais prazos devem ser respeitados. Decidir se o jornal vai ter editor, se esse editor vai ler o texto
dos demais, se ele vai pautar, ou quem vai fazer isso, se haverá reunião de pauta e como vai
funcionar. Definir quais serão as editorias do veículo. Como a equipe vai se estruturar para cumprir
prazos, garantir matérias em quantidade suficiente para dar conta do tamanho do veículo entre
outros parâmetros necessários para a produção de uma edição.
O jornal é uma maquininha que tem de estar anteriormente organizada para funcionar, só
então começa o processo de pauta, apuração, edição e, finalmente, o jornal sai. Portanto a coisa
fundamental de uma redação é a organização do trabalho. Faltando dois minutos para fechar uma
edição é preciso saber muito bem quem decide se vai entrar a matéria A ou a matéria B. E quando
alguém decide, quem está subordinado a ele vai obedecer, porque, se não houver essa hierarquia
extremamente rigorosa, o jornal não vai fechar em dois minutos. Se começar uma discussão de que
a outra matéria é melhor, só isso já vai levar cinco minutos, e a equipe vai perder o prazo de
fechamento. Com isso, atrasa todo o sistema industrial que começa a operar depois que o jornal
fecha para conseguir chegar no tempo certo nas bancas no país todo, muitas vezes envolvendo
logística de transporte aéreo, terrestre, distribuidores. Só para rodar a edição de milhões de
exemplares, muitas vezes, se passam horas. Cada veículo terá suas peculiaridades. Se os prazos são
menos críticos num veículo mensal, passam a ser mais estreitos num semanal, é mais apertado ainda
num diário, e muito mais num telejornal onde cada meio minuto conta. Isso exige uma hierarquia
muito forte para que o veículo funcione.
É exatamente isso que os estudos do newsmaking tentam mapear. Quando alguém vai
trabalhar num jornal, vai ter um prazo muito estreito para entender todos esses mecanismos e se
adaptar totalmente a eles. Se começar a demorar muito para entender esse rigor exigido para o bom
funcionamento do veículo, vai ser rapidamente substituído. Por outro lado, forma-se uma cultura
profissional que tenta aliviar a tensão elevada do ambiente do jornalismo. É o outro lado.
Assim se articulam os dois eixos que vão nortear as investigações do newsmaking, cultura
profissional e organização do trabalho. A teoria vai criar categorias que se articulam entre estes dois
eixos. Um primeiro trio de categorias, chamados de elementos funcionais, têm por finalidade tornar

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passível de reconhecimento um fato até então desconhecido (a transformação de um acontecimento
em notícia), a colocação da notícia num formato (cada meio, de um modo diferente, no rádio, na
televisão, numa notícia, numa reportagem, deve haver uma apresentação temporal e espacial da
notícia que está relacionada com o formato do veículo), a retratação da notícia com um caráter de
generalidade (ela não pode ser tão idiossincrática, pitoresca, a ponto de isso se sobrepor ao próprio
objetivo genérico da notícia).
Em relação à transformação dos acontecimentos em notícias, percebe-se que os fatos
representam uma espécie de matéria-prima que será processada pela indústria jornalística para
produção do resultado final, a notícia. Daí vem o próprio título da teoria, newsmaking, o processo
de fazer a notícia. O acontecimento passa por dentro de uma engrenagem de transformação. Wolf
começa a analisar como a cultura profissional interfere neste processo, nascendo dessa análise sua
própria definição. Cultura profissional é um emaranhado de retóricas de fachada, astúcias táticas,
maneiras como as pessoas se relacionam nesta engrenagem para defender seus interesses
profissionais. O repórter tenta destacar positivamente suas matérias para ser mais valorizado nessas
relações internas da redação. O repórter comenta que foi para uma cobertura e que os repórteres dos
veículos concorrentes também estavam lá, ou seja, isso é uma maneira de dizer para o editor que ele
deve dar a matéria sob risco de levar um furo da concorrência. São táticas. Uma espécie de cultura
com certos valores, papéis diferentes e as formas de convencimento dos superiores hierárquico, uma
espécie de ritual lúdico, semelhante a um jogo, que o jornalista tem de realizar dentro de seu
ambiente de trabalho para conseguir realizar a contento sua função.
Entrando nos aspectos mais específicos da teoria, uma das primeiras categorias que ela
estabelece são os chamados critérios de noticiabilidade, cujo propósito é minimizar a subjetividade
das escolhas do jornalista substituindo-a por um critério mais objetivo. Se a redação aderir a esta
proposta, poderá fazer uso desta noção de noticiabilidade. Ele não deixa de ser subjetivo, mas tenta
dar uma espécie de nota para as matérias e tenta determinar que certas matérias têm uma nota maior
do que outras. Tenta medir a noticiabilidade. Estabelecida essa medida, quanto mais alta a
noticiabilidade de um tema, maior deveria ser a chance de ele entrar na edição, maior a chance
daquela matéria-prima virar um produto final.
A base do problema por trás desta necessidade de critério é que há muito mais assuntos do
que notícias. Quantitativamente, a relação é desproporcional. A quantidade de assuntos que existem
é um número imenso, enquanto a quantidade de notícias é aquela que cabe num jornal. Uma aula é
um fato, chover é um fato, cair uma pedra de um prédio é um fato. São inumeráveis os fatos que
ocorrem o tempo todo. E o jornal tem 360 notícias, por exemplo. Um número finito e muito
limitado. Isso exige a existência de um funil muito radical, que pode até mesmo dar a impressão de
que essa escolha é um pouco aleatória. E isso é verdade em muitos casos. Por isso a proposta da
teoria do newsmaking é colocar uma régua, um critério mais objetivo para aperfeiçoar este funil. A
noticiabilidade vai ter critérios para definição de seu valor.
A teoria define quatro características do valor notícia: substantiva (um sequestro é mais
relevante como notícia que uma batida de carro mesmo que com uma vítima), a disponibilidade do
material (o assunto pode ser muito importante mas não sabemos nada sobre ele, já sobre a batida de
carro, descobri que a vítima era o presidente do Banco Central, e isso passa a dar outro valor
substantivo à própria matéria), o público (uma cobertura sobre a cantora Anita vai ter público
independente do jornalista achar aquele fato banal), a concorrência (vantagens em relação a outros
veículos que farão a matéria, um diferencial).
Continua sendo um critério ainda subjetivo, mas já é bem mais palpável que a subjetividade
livre constatada pelas pesquisas do gatekeeper. Portanto, o newsmaking está tentando oferecer uma
relação de critérios que poderia ser utilizada por uma redação para servir de parâmetros para o bom
funcionamento do jornalismo. Ou seja, pretende assumir um caráter normativo a partir da sua
apresentação como um recurso para fazer jornalismo melhor.

59
Esse meandro pelo qual os fatos vão ser trabalhados para que surjam notícias é um dos
fatores fundamentais de legitimação do jornalismo segundo Wolf. São objetivos importantes deste
processo de produção de notícia, buscar a objetividade, não ter erros, ter exclusividade. Mas vai
evitar erro como? Colocar dois jornalistas para ler todas as matérias no fechamento. Um lê e outro
revisa, por exemplo. Portanto são formas de organização administrativa do trabalho que vão criar
redundância onde existem pontos críticos, susceptíveis a erros graves, para justamente o trabalho
revisado evite estes equívocos. Ali vão ser postos dois ou três profissionais trabalhando numa
mesma coisa porque o veículo determinou que não deve existir erro ali. São decisões da
organização do trabalho jornalístico que vão aperfeiçoar o jornal.
Aqui surge com clareza a razão por que um jornal empresarial vai ter muito menos erros do
que um blog se as medidas administrativas preventivas forem adotadas. O motivo é que, no blog,
uma pessoa faz tudo sozinha. Ela mesma lê, escreve, entrevista, revisa. Numa empresa jornalística,
não. A estrutura é empresarial. Pode ter um redator, outro editor, um terceiro checador, que confere
tudo antes de a matéria sair. Ou seja, são mecanismos de proteção da qualidade da notícia final que
justificam dizer para o público que ele ganha mais assistindo a um jornal X do que vendo blog Y
porque lá alguém está fazendo tudo sozinho. Tem critérios da qualidade da notícia em que um
solitário não vai conseguir fazer tão bem quanto uma equipe de 400 profissionais.
Esse fato de errar menos, ter mais checagem, mais gente apurando, vai dando uma
legitimidade ao jornal que faz com que tenha uma espécie de privilégio, de credibilidade do veículo.
O motivo disso é a estrutura de trabalho que envolve inúmeros profissionais naquela organização de
trabalho. Por mais que o jornalista seja bom, num blog, ele está sozinho.
Depois de assentadas essas bases, o newsmaking vai entrar na exposição do que ele chama
das rotinas produtivas. Para que o processo de produção de rotinas tenha uma estabilidade, um
fluxo, as redações têm de ter uma rotina que garanta que a cada dia vai sair o jornal. Estas rotinas
vão ser criadas em torno de alguns objetivos gerais.
O primeiro deles é a captação de notícias, que vai exigir a existência de uma produção de
pautas, de envio de repórteres para a rua, de acompanhamento de fatos e acontecimentos, de
entrevistas. Essa estrutura jornalística desempenhada por inúmeros profissionais resulta numa
captação de notícias que vêm para a redação. Dentro da captação há uma série de discussões, como
a relação com as fontes, o uso de material de agências, o papel das assessorias de imprensa e o uso
de material gerado pelas assessorias, o uso de internet para pesquisa. O segundo bloco de rotinas
gira em torno do objetivo de seleção das notícias. Retomamos aqui o problema já visto de que há
fatos inumeráveis e um pequeno espaço para publicação das notícias. É um processo interno do
jornal para definir do leque de matérias produzidas, quais vão ser publicadas. O terceiro grupo de
rotinas tem por objetivo a edição das matérias que depende do formato do veículo, de opções sobre
o espaço ou tamanho destinado ao assunto, se ele vai ser acompanhado de imagem ou só texto no
impresso, se a matéria receberá um título em seis colunas ou um pequeno, se as imagens estão boas
para televisão. Estes três grupos constituem as rotinas produtivas que caracterizam o modo de
trabalho de cada veículo jornalístico. Elas buscam um fluxo contínuo de informação que garanta a
circulação.
Com o newsmaking, encerramos a apresentação do grupo das teorias administrativas, dentro
das quais as teorias do longo prazo também devem ser incluídas. Ela explica como deve funcionar
uma redação para cumprir seu papel de administração das massas. E a partir de agora passamos a
ver melhor qual é a perspectiva do que poderíamos chamar de modo geral de teorias
transformadoras. Mattelart denomina estas teorias num capítulo intitulado “Indústria cultural,
ideologia e poder”, e as divide justamente em três blocos, a teoria crítica, que reúne os pensadores
da Escola de Frankfurt no bojo da qual surgiu o termo indústria cultural; o estruturalismo, rótulo
abrangente, do qual elege como representantes o ramo oriundo de Saussure e Barthes,
desembocando em Louis Authusser, e Michel Foucault; e os estudos culturais. Caberia ainda incluir
neste bloco a Economia Política da Comunicação.

60
Antes da exposição delas, veremos melhor qual é a natureza desta bifurcação que nos levou
a chamar o que vimos até agora de teorias administrativas e o que se verá depois teorias
transformadoras do jornalismo. A primeira pista para entender esta divisão é a própria definição de
jornalismo por Ciro Marcondes visto anteriormente, ou seja, a filiação do jornalismo ao Iluminismo.
Mas é preciso aprofundar este tema. A característica que vai marcar esta divisão é justamente o
pensamento típico do Iluminismo de que as pessoas têm de se libertar por intermédio da razão,
buscar emancipação, superação das condições presentes em favor de avanços sociais possíveis. A
razão está à disposição dos indivíduos para que estudem, pensem, julguem para oferecer
instrumentos eficientes a cada um para se autodirecionar, tomar conta da própria vida de maneira
racional e madura e que permita à coletividade construir uma sociedade mais justa e melhor.

61
UNIDADE 4 – Distinguindo teorias administrativas de teorias transformadoras do jornalismo

4.1 - Introdução às teorias transformadoras, histórico-críticas: as ontologias do presente

Mattelart diz que as teorias administrativas “concebem as mídias como novas ferramentas da
democracia moderna, como mecanismos decisivos de regulação da sociedade e, neste contexto, só
poderiam advogar uma teoria voltada para a reprodução dos valores do sistema social, do estado de
coisas existente” (MATTELART: 2007, p. 51). Para elas, o mundo não deve mudar, o sistema social
e a ordem social são os melhores possíveis. A mídia só deve se acomodar dentro dessa estrutura,
que já está pronta, e fazer com que ela funcione bem. O jornalismo vai ter um papel, mas a estrutura
social em si já está dada, não é preciso mexer em nada ou, em último caso, se for necessário mudar,
esse não é um problema do jornalismo.
O bloco de teorias que veremos na próxima unidade vai se contrapor a esse tipo de ideia
porque questiona as coisas como estão aí, critica o sistema em que a sociedade está organizada e o
próprio jornalismo, e cobra a transformação de ambos. Exige do jornalismo sua utilização como
aliado da solução dos problemas de um determinado momento histórico. Em lugar de um
jornalismo integrado ao sistema, defende um outro tipo de jornalismo transformador que questiona
se as condições históricas dadas e o próprio sistema não deveriam ser revistos e transformados.
Esta visão transformadora vai envolver toda a chamada teoria crítica em sentido mais estrito,
a Escola de Frankfurt, perspectiva de orientação marxista. Ela se alinha ao pensamento de que a
transformação do mundo deve se orientar rumo ao comunismo ou, pelo menos, a uma ordem social
menos injusta que a liberal capitalista. Mas também são teorias transformadoras outras escolas
teóricas não marxistas, como o caso do estruturalismo. É nesse sentido que tratamos Escola de
Frankfurt, parcela do estruturalismo, estudos culturais e economia política como um grupo de
teorias que serão chamadas aqui de teorias transformadoras do jornalismo. Num capítulo de seu
livro intitulado Indústria cultura, ideologia e poder, Mattelart apresenta uma formulação que
poderia ser o lema do grupo: são escolas de pensamento que “irão se interrogar sobre as
consequências do desenvolvimento desses novos meios de produção e transmissão cultural,
recusando-se a tomar como evidente a ideia de que dessas inovações técnicas, a democracia sai
necessariamente fortalecida” (MATTELART: 2007, p. 52).
A partir de uma investigação teórica, explicitam que os meios de comunicação se tornaram
também meios de violência simbólica, aliados do sistema de dominação que o ajudam a se manter
mesmo quando esse sistema é muito perverso para pessoas ou para grupos. Um primeiro ponto
interessante é que esta divisão fundamental das teorias também divide os próprios jornais em duas
famílias. Na história do jornalismo brasileiro sempre houve veículos que se pode aproximar de cada
um desses dois lados da divisão teórica. No surgimento da imprensa, um Correio Brasiliense mais
crítico e moderadamente transformador, uma Gazeta do Rio de Janeiro áulica e administrativa. A
própria categoria de imprensa áulica vai explicar parcela do desenvolvimento da mídia brasileira
por todo o século XIX, contraposta a um jornalismo iluminista e outro panfletário, revolucionário. É
nessa perspectiva que havia um jornalismo que defendia a escravidão no Brasil mesmo quando ela
representava uma vergonha planetária perpetuada aqui, que não existia mais em nenhum outro lugar
do mundo, e outro jornalismo que se posicionava contra a escravidão. Mas ainda no século XX, esta
dupla perspectiva do jornalismo retorna na forma de um jornalismo empresarial e monopolista
versus um jornalismo nacionalista, operário ou alternativo.
Portanto, deve-se evitar tratar esta divisão da maneira simplista, o que é comum: capitalismo
versus comunismo, direita versus esquerda. A divisão é de outra natureza menos simplória.
Pensando este problema do ponto de vista epistemológico, Foucault irá diferenciar uma analítica da
verdade de uma ontologia do presente, duas macrocategorias que se aproximam mais do que
estamos tratando aqui para estudar a história e estruturação da constituição da imprensa e das suas
teorias: teorias administrativas do jornalismo e teorias transformadoras do jornalismo. No nível das

62
micro categorias, visitamos, na unidade anterior, teorias administrativas, e passaremos, na próxima
unidade, a expor aquelas que constituem as teorias transformadoras. Mas ainda cabe no nível das
macrocategorias estabelecer com muita clareza esta diferença. É por não ter tratado com o devido
rigor esta divisão que Mauro Wolf não enxergou o caráter administrativo das novas tendências dos
estudos em comunicação, ou seja, que agenda-setting, gatekeeper e newsmaking são teorias
administrativas e não teorias que superam uma suposta antinomia resultante de um mero debate
político datado entre o que Umberto Eco chamou de apocalípticos e integrados. O campo do
jornalismo se mostra bastante apropriado para tornar clara a verdadeira natureza desta divisão. A
estratégia para tanto passa pelo aprofundamento do estudo das bases iluministas do jornalismo.

4.2 A dimensão individual do problema do Iluminismo (Auflklärung)

Não há dúvidas de que é uma boa abordagem associar a origem do jornalismo ao


Iluminismo como fez Ciro Marcondes e também Habermas. Porém o próprio Iluminismo se
bifurcou historicamente dando origem a duas vertentes que são a base para entender a diferença
entre teorias administrativas e teorias transformadoras do jornalismo, tema que teremos de abordar
em detalhe adiante. Ora, devemos entender melhor a proposta de emancipação dos sujeitos
característica do Iluminismo que permaneceu ligada somente a uma destas vertentes.
O estudo da dimensão individual do sujeito no Iluminismo passa pela análise do que
determina a maneira de uma pessoa se comportar, a maneira de agir. O ato pode ser conforme a uma
regra, um dever, mas também pode ser movido pela total liberdade individual, ir contra uma
orientação, tomar caminho diferente do que a norma pede. Na perspectiva do Iluminismo, o único
padrão norteador do comportamento do sujeito deve ser que ele aprenda a usar sua própria
racionalidade para tomar uma decisão autodirecionada, autodirigida, que escape ao
heterodirecionamento. Este é o seu lema na dimensão do comportamento individual.
Foucault estudou o tema a partir de um texto de Kant chamado O que é Iluminismo (1985),
publicado em 1784 no jornal Berlinische Monatsschrift. Foucault destaca que ter sido publicado
num jornal, já introduz o problema do Iluminismo alemão – ali, o Iluminismo estabelece uma
relação entre o homem culto e o leitor que pretende se transformar, aprender. Interessante momento
histórico em que o homem culto não ficava enclausurado na universidade nem seu pensamento
restrito aos livros, mas em que circulavam ambos por jornais, publicações de sociedades intelectuais
comunitárias, associações acadêmicas e revistas em geral. Na transição para o Estado de Direito, o
pensamento tinha a visibilidade pública e o espírito polêmico característicos da segunda fase do
jornalismo segundo Habermas15. Esta noção de publicidade, como atividade de tornar público um
pensamento crítico, vai inspirar Habermas a formular a teoria da mudança estrutural do espaço
público.
Na Alemanha do tempo de Kant, o espaço público e político era dos burgueses homens com
poder. Sobre este círculo da esfera pública se exercia uma influência tanto do jornalismo quanto da
filosofia, num modo que Foucault denominou “relação sagital”, ou vertical, do discurso com sua
própria época. Como vai refletir sobre isso e surgiu neste mesmo ambiente, o texto de Kant é
metadiscursivo, daí sua importância segundo Foucault.
A reflexão vai se concentrar sobre o poder da circulação de pensamento iluminista como
fator de impulso ao processo de conquista de autonomia dos sujeitos. Kant discute o tema na
perspectiva do pensamento racional, Mendelssohn responde ao mesmo tema numa perspectiva
religiosa. Ambos foram instigados a tanto, por uma pergunta sobre o que seria o Iluminismo
encaminhada pela redação do jornal. O que se coloca no primeiro plano, portanto, é a relação entre
o Iluminismo e um ponto muito preciso da História, a Alemanha de 1784. Para Foucault, Kant
coloca pela primeira vez a questão do presente, a questão da atualidade, da História a partir do
ponto de vista do agora onde estamos inseridos.

15 Esta periodização foi apresentada em 1.3.

63
Nem em Descartes nem tampouco creio eu em Leibnitz vocês encontrariam uma
questão que seria da ordem de: o que é precisamente este presente a que pertenço?
Ora, parece-me que a questão a que Mendelssohn respondeu à qual Kant
responde… foi uma questão formulada publicamente… não é simplesmente o que
na situação atual pode determinar esta ou aquela decisão de ordem filosófica… a
questão se refere ao que é esse presente. Ela se refere, em primeiro lugar, à
determinação de certo elemento do presente que se trata de reconhecer, de
distinguir, de decifrar entre todos os outros… mostrar que esse elemento é o
portador ou a expressão de um processo… que concerne ao pensamento, ao
conhecimento à filosofia…. Dentro dessa reflexão mostrar de que modo quem fala,
como pensador, como filósofo, faz parte ele próprio desse processo. (FOUCAULT:
2010, p. 13)
A um mesmo tempo, elemento para reflexão e posicionamento do autor. A filosofia surge
como tema na superfície de sua própria atualidade discursiva. O filósofo já não evita colocar a
questão do seu pertencimento a esse presente. Não mais a abstração de alguém numa comunidade
humana em geral, mas um indivíduo pertencente a um presente, onde estão outros, um certo nós,
que se refere a um conjunto cultural da sua própria atualidade. A filosofia se põe como interrogação
a respeito da atualidade, o problema da modernidade, e que Kant diz ser o encaixe do Iluminismo.
Trata-se do próprio leito de uma ideia transformadora num determinado lugar, o que Foucault
chamou de ontologia do presente.
Foucault destaca o ineditismo de um movimento histórico tomar consciência crítica de si
mesmo, um processo cultural tomar consciência de si, nomeando-se: o Iluminismo ter se chamado
de Iluminismo. Assim, situa-se em relação a seu passado e em relação a seu futuro e presente, e se
coloca como um processo de intervenção no mundo. O mesmo vai ocorrer com outro acontecimento
autorreferenciado contemporâneo ao texto, a Revolução Francesa.
Mas nem toda a obra de Kant se posiciona assim. Foucault vê Kant como o fundador de
duas tradições entre as quais se dividiu a filosofia moderna, a bifurcação da qual falaremos ainda
mais adiante. A partir das três críticas, uma analítica da verdade, determinar como é possível um
conhecimento verdadeiro do objeto. A partir de outro tipo de questão, nos textos sobre Aufklärung e
Revolução, a questão sobre o que é a atualidade, como ela está configurada, uma ontologia do
presente, uma ontologia da atualidade, uma ontologia de nós mesmos.
Assim como parte da obra de Kant fica de um lado e parte do outro, podemos separar as
teorias do jornalismo do mesmo modo. As teorias administrativas do jornalismo são analíticas da
verdade do fazer jornalístico, consideram as massas incapazes de tomada de decisão autônoma por
tudo o que foi visto nos capítulos anteriores, portanto, dependentes de heterodirecionamento
fornecido pelo jornalismo para o bem de todos. As teorias transformadoras do jornalismo são
ontologias do presente, denunciam o fato de as massas estarem sendo manipuladas a partir de
interesses de um grupo específico detentor de poder político e econômico e convocam forças
revolucionárias para transformar esta situação. Coloca-se uma opção para as teorias. “É preciso
optar ou por uma filosofia crítica que se apresentará como uma filosofia analítica da verdade em
geral ou por um pensamento crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma
ontologia da atualidade. E é essa forma de filosofia que, de Hegel à Escola de Frankfurt, passando
por Nietzsche, Max Weber, etc., fundou uma forma de reflexão à que, é claro, eu me vinculo na
medida em que posso”. (FOUCAULT: 2010, p. 22)
Entendida esta bipartição histórica das teorias, é preciso analisar o ponto crítico de contato
desta ontologia do presente com a história, visto que este ponto é o próprio sujeito da sociedade de
massa em seu tempo histórico, pois é a humanidade que faz e escreve a história. Kant evoca este
sujeito transcendental para ocupar o foco da atuação da ontologia do presente. Para ele, Iluminismo
é “a saída do homem da sua menoridade, pela qual ele próprio é culpado” (KANT: 1985, p. 100).
Sem sair desta situação, o que encontramos é um ser humano heterodirecionado, dirigido por outro,
cuja voz se tornou o próprio jornalismo administrativo. Este sujeito a ser manipulado se tornou o

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objeto de estudo de todo um campo de ciências restringidas à analítica da verdade, uma produção de
conhecimento objetivo, científico, que dá instrumentos para o controle das massas, sua
administração. Suas teorias se perguntam unicamente quem constitui estas massas e como é
possível usar o jornalismo para as dirigir. A novidade é o surgimento de uma outra família de teorias
que denuncia criticamente este projeto de dominação constituindo uma ontologia do presente que
analisa a situação dada e contribui com seu desmascaramento com o intuito de fortalecer a luta em
busca da emancipação, sabendo-se, de antemão, que essa transformação do ser humano não é fácil
de se obter. Este é o tema de Kant e também das teorias transformadoras do jornalismo. No caso de
Kant, a solução passa pela adesão ao modelo de direcionamento do dever ser por intermédio dos
imperativos categóricos descobertos pela filosofia prática.
Para tanto, Kant chama a atenção para dois elementos. Primeiro, o que ele denominou
menoridade. Menoridade quer dizer “incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção
de outro indivíduo” (KANT: 1985, p. 100). Segundo, mais complexo, esclarecer que, se o homem
está preso numa menoridade, “a causa dela reside, não numa falha do entendimento, mas numa falta
de decisão e de coragem para se servir do seu entendimento sem a direção de outrem”
(FOUCAULT: 2010, p. 25). Kant provoca seu público com uma frase de Horácio: “Sapere aude!
Tem a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento” (KANT:
1985, p. 100).
O que se busca, portanto, é uma ‘saída’. Na maneira como Kant coloca o problema, o estado
de menoridade não é um estado do qual não se pode sair, resultado de uma impossibilidade ou
impotência natural. Trata-se antes de ter de reunir coragem para largar uma proteção que Kant
compara a um andador de bebês. Não se trata de privação de liberdade por força de censura, poder
ou violência. O homem imaturo, ele mesmo, entrega o poder aos outros, não são os outros que
tomam o poder dele. O motivo é que não querem dirigir a si mesmos, aí se entregam a tutores que
os dirigem. Eles precisam sair desta prisão.
Os três exemplos de tutores que Kant cita demonstram bem que não se trata de uma intenção
malévola exterior ao sujeito, são o autor de um livro, o padre e o médico. Kant não critica o livro, o
padre ou o médico, evidentemente, antes critica as pessoas que, na relação com eles, se privam do
próprio entendimento, de sua própria consciência moral, de seu próprio gosto. Entregam para outro
o governo de si. O grande problema da menoridade é que a culpa pela menoridade é do próprio
sujeito que se acomoda a ela. É preciso sair dessa tutela e ganhar governo autônomo para controlar
a si mesmo. Sem isso, surge uma relação viciada que caracteriza o estado de menoridade.
A ligação deste problema com o jornalismo é muito nítida, visto que, na sociedade
contemporânea, a mídia vai ocupar este papel de tutor, que é exatamente o que propõe toda a teoria
administrativa. Algumas teorias transformadoras do jornalismo vão trabalhar com a hipótese da
repressão, de pressupor a existência de um sistema externo aos sujeitos que impõe este
heterodirecionamento, que faz dos cidadãos vítimas. Mas Kant desloca esta questão, por isso o
interesse de Foucault neste texto. Segundo ele, é o cidadão quem se deixa por nesta situação. Isso
não refuta, a nosso ver, a tese da repressão, como discutiremos adiante, mas a coloca em outro grau
de complexidade. A mídia é o quarto poder, governador dos outros, das massas. Mas o que coloca
jornalismo neste lugar não é somente sua pretensão de controle, mas também o fato de que as
pessoas se deixam governar. A transformação desta relação passa também pelo reposicionamento
individual.
Kant diz que a missão de cada indivíduo é romper com duas amarras: preguiça e covardia.
Não se tratam de defeitos morais do indivíduo, nem da incompetência das massas, mas sim de uma
tarefa imposta para superar um estado natural de dependência oriundo da infância mas que deve ser
superado na idade adulta, mesmo em ambientes que não deem nenhum tipo de estímulo para isso,
como o de uma sociedade competitiva, em que manter os outros na imaturidade pode ser uma
estratégia de dominação de determinados grupos por outros. Ainda mais numa sociedade em que é
preciso vencer outros para não cair nos infernos concretos construídos pelas relações sociais

65
desumanas. É preciso fazer emergirem de si mesmo as condições mais favoráveis para que nos
demos a nós mesmos a decisão, precisamos ter a força e a coragem de ter com nós mesmos a
relação de autonomia que nos permite nos servir de nossa razão e da nossa maturidade.
Foucault acha que o texto expõe isso de modo claro, porém, faz um desvio curioso no que se
refere à estratégia de superação. Primeiro, diz que há um impasse porque as pessoas não querem
sair do estado tutelado, e, como são covardes e preguiçosas, continuam amarradas mesmo tendo a
ferramenta para obtenção da liberdade à mão, ou melhor, na cabeça. O poder de as tirar desse estado
não está nas mãos do professor ou autor do livro, nem do padre nem de Jesus, nem do médico ou de
Deus, ou do jornalista. Não há como surgir indivíduos humanos ou simbólicos que tirem as outras
pessoas desse estado. Há aqueles que, vendo a apatia dos outros, assumem o lugar da autoridade e
se aproveitam disso, decidem desempenhar o papel de ‘libertadores’ dos outros. Ou eles são pura e
simplesmente mal-intencionados e gozam dos prazeres da exploração dos outros, ou, mesmo que
bem-intencionados, só acabam por reforçar o vínculo de dependência. Este é o problema que pode
pôr a perder inclusive algumas das teorias transformadoras do jornalismo.
Segundo Kant, não é possível tirar os outros desse estado de letargia porque, mesmo
tentando levá-los a despertar, os tutores os habituam ainda mais ao jugo. Estes passam a tolerar cada
vez menos a liberdade e a emancipação. Destaque-se que o texto foi escrito em 1784, cinco anos
antes da Revolução Francesa. O risco de toda revolução, é o que Kant está dizendo, é fazer todos
caírem necessariamente sob o jugo dos que quiseram libertá-los. Nisso reside o maior perigo. A
solução teórica proposta por Kant para evitar tal armadilha, que serviria tanto para revolucionários
franceses como para projetos revolucionários posteriores, passa pelo isolamento e reposicionamento
das relações entre dois pares que estão comprometidos nesse relacionamento viciado, o par
obediência/ausência de raciocínio, e o par privado/público.
Os que governam estimulam covardia e preguiça dos governados, apostando que há
obediência onde há ausência de raciocínio. Os oficiais querem que os soldados não raciocinem,
obedeçam. O padre quer que os fiéis não raciocinem, creiam. O ministro da economia espera que
não raciocinem, somente paguem impostos.
O segundo par problemático que tem de ser analisado segundo Kant é privado e público. O
que ele chama de privado, são momentos em que o sujeito deve obedecer às normas que
determinam o que a sociedade espera dele. Kant associa o aprendizado dessas leis a faculdades que
não se guiam pelas nossas determinações mas sim por conhecimentos acumulados pela ciência e
pela tradição, como no caso da medicina, do direito ou do culto religioso. O uso privado do
ajuizamento ocorre no exercício de uma atividade profissional. Quando somos funcionários,
devemos cumprir os ditames da função, cujo objetivo é o bem coletivo. No uso privado,
pertencemos a uma instituição, a um corpo político, somos uma peça de uma máquina social com
um certo papel a desempenhar. Nesse lugar devemos cumprir a obrigação esperada. O que se pede é
que o padre deve pregar, isso é o uso privado.
O que ele chama de público é o espaço onde devemos fazer uso livre e racional do
ajuizamento. Esta é precisamente a esfera do ajuizamento por meio da crítica, o elemento do debate
universal, em que devemos figurar como sujeito autônomo. É quando somos um sujeito racional
que se dirige a sujeitos racionais, no jornalismo crítico, por exemplo. A esfera pública. Num texto
de Kant intitulado O conflito das faculdades, o filósofo contrapõe a formação crítica racional
característica do curso de Filosofia, ao perfil reprodutor de conhecimento estabelecido das
formações em Medicina, Direito e Religião. Há um tipo de preparação para o exercício privado (ser
médico, ser advogado ou juiz, ser padre) distinto da preparação para o exercício público (ser
filósofo, promover o debate e a discussão acadêmica, crítica, transformação política).
Pensando nesta chave nosso problema, temos de discutir se o exercício racional crítico
público cabe também como preocupação das teorias do jornalismo ou se suas teorias deveriam se
restringir à descoberta das invariantes da boa prática da profissão. Encontramos as duas soluções
porque a formação em jornalismo abre espaço para ambos os lados por meio de suas teorias

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administrativas e suas teorias transformadoras. Este é um nítido divisor de águas. As teorias
transformadoras do jornalismo vão ter de se deparar com o problema da menoridade encontrada na
sociedade administrada, em que o princípio da obediência se alia com o não raciocinar, problema
que as teorias administrativas vão ignorar. Por outro lado, seria também irresponsável um
jornalismo que promovesse a crítica irracional pregando a simples desobediência. Um jornalismo
que não observasse as descobertas das teorias administrativas e atropelasse técnicas de apuração,
edição, montagem, busca de objetividade. Ou que estimulasse a barbárie em lugar das regras de
convívio social. É isso que Kant demonstra. Só resguardando obediência junto com raciocínio
crítico existirá uma sociedade com ordem e inteligência transformadoras, o presente que se ponha
como um presente melhor. Isso é o Iluminismo, o próprio projeto da modernidade, o jornalismo
transformador, a luz, a razão, tecendo crítica à tradição, ao obscurantismo para fazer o mundo
melhorar.
Raciocinar e ser rebelde é tão infantil quanto não raciocinar e obedecer. A confluência do
raciocinar com o obedecer na esfera da função privada e o criticar na esfera pública é a grande
fórmula para tirar da minoridade todo um tempo histórico segundo Kant. O que se ganha com isso é
a autonomia dos sujeitos junto com o avanço do mundo. Dado o peso da palavra obediência,
Bertold Brecht acha a questão tão central que propõe até mesmo a utilização de outro termo,
disciplina, para não deixar dúvidas. “O termo ‘disciplina’ deve ser substituído por ‘obediência’ nos
lugares onde a opressão predomina, porque disciplina também é possível sem um déspota e,
consequentemente, tem um significado mais nobre do que obediência” (BRECHT: 1934, P. 7). É
disso que Kant também está tratando mesmo sem o cuidado terminológico apurado encontrado em
Brecht. Kant denomina ‘tolerância’ esta obediência cega a um poder despótico, aceitar tudo
excluindo o raciocínio. Deve existir uma liberdade de pensar sob a sua forma pública e só aceitar o
que concerne ao uso pessoal, privado, intimista e oculto. O Iluminismo dá à liberdade a publicidade
na forma do universal, de modo que ela transforme o interior do corpo social, onde se preserva o
lado intimista, privado, de cada um.
O Iluminismo inaugura assim a possibilidade de uma nova partição histórica do governo de
si e do governo dos outros. Perguntando-se a si mesmo quem será o promotor dessa virada, como se
dará a saída (Ausgang) dessa situação, Kant só responde de maneira abstrata estarmos a caminho do
Iluminismo. A era que permite o desenvolvimento do Liberalismo, do Capitalismo e do Jornalismo.
Mas passados 200 anos do estabelecimento deste projeto, temos de aprofundar ainda mais esta
análise porque a liberdade que se esperava destes projetos emancipatórios da subjetividade não se
efetivou.

4.3 – Mutação estrutural da subjetividade decorrente do surgimento da individualidade ética


iluminista

Tendo esclarecido o propósito iluminista de dotar o sujeito de autonomia intelectual racional


para condução de seus atos, é preciso inserir este projeto agora numa linha histórica, visto que o
surgimento da subjetividade iluminista funcionou como divisor de águas que separa, uma antes e
outra depois dela, duas outras fases da história de constituição da subjetividade. Nas suas aulas de
1982 a 1984, Michel Foucault se dedicou a apresentar o processo histórico pelo qual se deu a
emergência da subjetividade moderna, o que ele chamou de A Hermenêutica do sujeito (2004). A
construção da subjetividade foi tema de estudo também das palestras reunidas no livro O governo
de si e dos outros (2010).
Ele descreve que a emergência da subjetividade nasce com o exercício do indivíduo de sair
de dentro de si e se aproximar de alguma coisa fora dele, algo de uma ordem superior, para
aperfeiçoar sua alma, sua conduta ética, aquilo que Foucault chama de “o cuidado de si”. Para
Platão, esta força exterior era o mundo das ideias, acessível pelo exercício da filosofia. O cuidado
de si grego ganha um primeiro diagnóstico analítico no diálogo Alcibíades, em que Sócrates

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demonstra ao discípulo sua falta de conhecimento para ser um bom gestor da cidade. Para contornar
a deficiência, porém, não é necessário qualquer conhecimento, antes, a prática filosófica que parte
da ciência da ignorância. O saber de que nada sei.
Estes exercícios de aperfeiçoamento moral se faziam acompanhar pela supervisão de outro
sujeito, um mestre, que se colocava na condição de orientador. O primeiro instrutor de que se tem
largo registro filosófico foi justamente o Sócrates instigador da maiêutica. “No tempo dos sofistas,
no tempo de Sócrates, no tempo de Platão ainda, um mestre era considerado na sua singularidade,
quer com base em sua competência e habilidade sofísticas, quer em sua vocação de homem divino e
inspirado, como em Sócrates, quer no fato de que já teria alcançado a sabedoria, como no caso de
Platão.” (FOUCAULT: 2004, p. 192).
Nas filosofias dos séculos I e II, eram praticados exercícios espirituais derivados das
técnicas de cuidado de si sob influências religiosas e pitagóricas. Elas também reservavam um lugar
para o mestre. No estoicismo, Frontão foi guia de Marco Aurélio, Sêneca instrutor de Nero. Epicuro
conduzia seus seguidores no Jardim. Mas a inovação importante do período foi uma popularização
da filosofia e a pulverização deste papel de tutor, “mesmo fora das instituições, dos grupos, dos
indivíduos que, em nome da filosofia reivindicavam o magistério da prática de si, esta prática de si
tornou-se uma prática social. Começou a desenvolver-se entre indivíduos que, propriamente
falando, não eram do ofício” (FOUCAULT: 2004, p. 191). Até atingir um ponto em que houve total
estilhaçamento desta função no que se poderia denominar de uma moralidade social. Então “o
mestre está em vias não exatamente de desaparecer, mas de ser invadido, cercado, ameaçado por
toda uma prática de si que é, ao mesmo tempo, uma prática social… vem manifestamente atrelar-se
às relações de si com o Outro” (FOUCAULT: 2004, p. 191). Vai se estabelecendo assim uma
abrangente tradição de heterodirecionamento.
Uma das inovações mais importantes destas práticas foi o estabelecimento de um tipo
particular de diálogo que Foucault denominou parrehsia. “A parrehsia, traduzida em geral por
‘franqueza’, é uma regra de jogo, um princípio de comportamento verbal que devemos ter para com
o outro na prática da direção de consciência” (FOUCAULT: 2004, P. 202). Num primeiro momento
ela era exigida do próprio tutor, que devia ser franco com seu tutelado. Mas, posteriormente, esta
necessidade de fala franca passou a ser exigida do educando, de quem se cobravam satisfações
verbais a respeito de seus atos e pensamentos.
A partir de então, o orientador externo somente supervisiona os exercícios de elevação da
alma para que o tutelado não se perca e alcance valores éticos apropriados. Estes depoimentos
foram os precursores da confissão religiosa. Aliás, foram diversos os elementos desenvolvidos por
estas escolas, suas tecnologias do cuidado de si supervisionado, apropriados pela nova configuração
medieval de controle por heterodirecionamento, através das instituições que Foucault chama
pastoral cristã no curso dado por ele em 1979, embora esta influência tenha sido sempre negada
pela Igreja por se tratarem de práticas taxadas como pagãs.
O heterodirecionamento se intensificou a ponto de a conduta da alma passar a ser controlada
em cada indivíduo da comunidade e em cada momento da sua vida pela pastoral. A vida era
comandada pelo pastor de maneira integral, devendo seguir uma obediência cega à qual o indivíduo
deveria se sujeitar. Este dispositivo de controle se tornou tão eficaz que passou a ser palco de
disputas pelo seu controle dentro mesmo da Igreja, principalmente a partir do século XI. As
principais características da pastoral cristã segundo Foucault foram três. O desenvolvimento e a
complexificação das técnicas e dos procedimentos pastorais além de uma institucionalização muito
rigorosa destes procedimentos. A contraposição da forma de tratar o problema da obediência no que
se relacionava com os clérigos e os leigos quanto a suas obrigações e seus direitos. A definição de
uma teoria e uma prática do poder ministerial dos padres reforçado pelo instrumento da indulgência.
Por outro lado, a eficácia deste instrumento de submissão à obediência também atiçou
governantes a incorporar estas tecnologias de dominação para exercício do poder político, o que
levaria ao surgimento de novas transformações na própria pastoral. Na Europa, este movimento

68
ocasionou a feudalização da Igreja e a adoção de práticas jurídicas pela Igreja. Foucault situa o auge
deste movimento em 1215 quanto a prática da confissão se tornou obrigatória no Concílio de
Latrão. Surge assim
um tribunal permanente diante do qual cada fiel deve se apresentar regularmente.
Vemos aparecer e desenvolver-se a crença no purgatório, isto é, um sistema
modulado de pena, provisório, em relação ao qual a justiça, enfim, o pastorado,
pode desempenhar certo papel. E esse papel vai estar precisamente no
aparecimento do sistema das indulgências, isto é, na possibilidade de o pastor, na
possibilidade de a Igreja atenuar em certa medida e mediante certo número de
condições, essencialmente condições financeiras, as penas previstas. (FOUCAULT:
2008, p. 268).
A confissão tem um papel importante neste dispositivo porque representa o momento em
que o sujeito expõe seus pensamentos mais íntimos e se coloca à disposição para receber um
julgamento e uma sentença, seja de absolvição ou condenação por parte de seu mestre. Constitui o
ponto máximo deste movimento de surgimento da subjetivação, do qual se pode tirar como
constante em todo este primeiro período, o movimento de abandono de si rumo a um além, uma
constante desta primeira fase. Evidentemente esta movimentação implica heterodirecionamento.
Assim, não há dúvida de que esta técnica de dominação e de tutela do rebanho foi
preservada e figura como base dos instrumentos técnicos de controle das massas do século XX. Só
que, em vez de este poder de condução estar nas mãos dos padres, está com o próprio jornalismo e a
comunicação de massa de forma geral. A etapa de ter de extrair do interior de cada ovelha seus
pecados foi substituída por uma condenação ampla, geral e irrestrita de todo membro das massas.
Isso se agrava pelo fato de que a própria mídia cria no inconsciente coletivo os sonhos pecaminosos
dos consumidores, conforme veremos nas análises de Walter Benjamin e de Edgard Morin. Em
diversos pensamentos das escolas transformadoras do jornalismo poderemos ver este problema ser
denunciado de diversas formas, as teses da repressão, da ideologia, dos dispositivos de controle.
Mas deixaremos estes detalhes da análise para os próprios pensadores que passaremos a apresentar
na próxima unidade. Por ora, precisamos explicitar a radical ruptura com esta primeira fase pastoral,
apontando justamente para um segundo período do desenvolvimento da subjetividade que envolve
tanto Iluminismo quanto racionalismo, empirismo e até mesmo um certo espiritualismo alemão,
materializado na forma do luteranismo. É a ruptura que se fortalece a partir dos séculos XVI-XVII,
resultando na ascensão da Filosofia Moderna e culminando no Iluminismo.
Segundo Foucault, surge com a descoberta do sujeito cartesiano uma transformação
fundamental que irá caracterizar um segundo momento distinto da subjetividade, porque a filosofia
moderna vai ser construída sobre o próprio sujeito, e não mais sobre a crença na existência de uma
força exterior da qual ele deveria se aproximar. Há uma virada copernicana de ponto de vista. Como
resultado deste antropocentrismo, a unanimidade em torno dos projetos de heterodirecionamento
desaparece. Se antes o sujeito tinha de se aproximar de algo exterior que o encaminharia na direção
certa, agora, a partir das descobertas da subjetividade moderna, a melhoria se dá pelo
aprimoramento dos aparatos que já se encontram dentro do sujeito mesmo. Ele ganha autonomia.
O exemplo que deixa mais clara a natureza da mudança se dá na epistemologia. A partir de
Descartes, a base de construção do conhecimento é o próprio aparato de dúvida e pensamento de
um sujeito que descobre as verdades mais profundas e indubitáveis a partir de meditações a respeito
de si mesmo. A modernidade não descobriu o sujeito segundo Foucault, mas elevou o sujeito à
condição de alicerce a partir do qual se ergue a construção do conhecimento válido. O sujeito passa
a ser o chão de construção do saber. O pensamento ético vai cada vez mais se encaminhando para a
descoberta do que atingirá um auge na moral kantiana, ou seja, na constatação de que, utilizando a
razão pura, é possível descobrir máximas que poderiam ser elevadas à condição de lei universal do
comportamento, os imperativos categóricos.
Desta maneira, portanto, a razão do próprio sujeito é o elemento que o vai dotar de um
instrumento infalível da descoberta do comportamento a ser tomado eticamente, o deixando imune a

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qualquer tentativa de obediência ao heterodirecionamento. Confia na tua própria razão. Sapere
aude! Liberta-se de teus mestres. Luta por uma sociedade em que não tenha de expor suas entranhas
espirituais em rituais periódicos para ser vítima de punições. Reencontramos, portanto, os temas do
Iluminismo, agora numa perspectiva histórica. Há uma ruptura com a ideia de que é necessária uma
orientação ou uma ligação com algo externo para a boa condução do comportamento. O Iluminismo
cria uma alternativa, uma outra via para que o sujeito tenha seu desenvolvimento ético, porque a
filosofia moderna lança a ideia de que o sujeito é dotado de capacidades intelectuais, racionais, de
percepção, dentro de si mesmo, que são suficientes para seu próprio autogoverno. É esse
instrumental interno que oferecerá as bases para o desenvolvimento da alma, incluído o
desenvolvimento ético.
Essa é também a perspectiva kantiana, de que somos dotados de racionalidade porque
pensamos, porque abstraímos, porque temos instrumentos na mente que possibilitam ao sujeito
fazer cálculos matemáticos entre outros usos da razão para boas tomadas de decisão. Dentro de si o
sujeito também tem instrumentos racionais que vão dizer a cada um qual é o comportamento ético
que deve ser adotado.
Kant dizia que, se for feito qualquer juízo a respeito de uma ação como, por exemplo, o
roubo, se o sujeito perguntar a si mesmo do ponto de vista ético como saber se essa ação é correta,
ou se é um desvio ético, ele mesmo teria como resolver o problema. Bastaria para tanto usar um
artifício da razão que é a projeção abstrata ao infinito daquele comportamento. Imaginemos,
portanto, um mundo onde todo mundo roube todo mundo. Padrão universal de comportamento. As
consequências seriam desastrosas, a absoluta falta de confiança mútua, a falta de condições para
instituições como um banco funcionar, um cartório. A sociedade vai entrar em colapso. Ninguém
mais vai acreditar no dinheiro que é simplesmente um pedaço de papel ou um número registrado
num computador. Vai terminar toda ordem de confiança e credibilidade de qualquer pessoa em
relação a qualquer outro. Portanto, pensando racionalmente se percebe que o roubo é um desvio
ético que não pode alcançar a condição de imperativo categórico universal.
Por outro lado, a outra hipótese de exagero abstrato, de analisar um mundo onde ninguém
roube, percebe-se a diferença. Nesta sociedade ideal há plena confiança. Talvez não seja necessária
uma polícia, nem cadeia. Não tem bala perdida. Portanto a própria racionalidade já oferece um
parâmetro muito claro com o qual posso fazer um exercício de projeção das condutas éticas e sou
capaz de chegar a conclusões do que deveria ser um comportamento universal, que Kant chamou de
imperativo categórico. Esse é o instrumento ao qual, se o sujeito resolver dar o salto da confiança na
racionalidade, ele pode recorrer para agir por si mesmo. Vai usar uma máscara de proteção contra
vírus mesmo que a mídia diga que já não é mais necessário usar, porque continuam morrendo 150
pessoas por dia e ele não quer engrossar esse número por mais que a mídia diga que já não é mais
obrigatório o uso do acessório.
Por que, então, ainda existem roubos? Por que o Brasil teve acesso aos pensamentos
Iluministas a partir de 1808 mas só em 1888 terminou a escravidão? Em outros termos, existe
alguma imprecisão na maneira como o Iluminismo apresenta o problema da ética do ‘dever ser’
kantiano? Que há um problema, é fácil ver. Qualquer criminoso pode ser dado como exemplo, um
político que rouba relógios. São sujeitos dotados de razão, portanto são capazes de vislumbrar os
imperativos categóricos. Eles sabem, portanto, que estão fazendo a coisa errada quando eles
roubam. Porém, a questão que se coloca na prática, é que, mesmo sabendo que estão fazendo a
coisa errada, eles fazem a coisa errada por alguma razão subjetiva. Acham que ninguém vai
descobrir, acham que não vão ser presos mesmo se descobrirem. O grande problema da abordagem
kantiana do ‘dever ser’ do imperativo categórico para a discussão ética é que toda pessoa pode
continuar fazendo a coisa errada por mais que saiba o que não deveria fazer. Por mais que saiba que
não deveria abstrair a situação social de seu país no que tem de mais perverso em suas matérias para
se dedicar a uma produção que seja somente tecnicamente apurada, o jornalista pode optar por
aderir à tese de que não tem nada a ver com o país. A ética do ‘dever ser’ kantiana não é capaz de

70
dar mecanismos mais eficazes para superar esta questão porque fica restrita ao âmbito interno de
um idealismo subjetivo que abstrai o sujeito concreto histórico. Trata-se de uma ética
administrativa, uma analítica da verdade, como já seria de supor pelo fato de ela ter sido
desenvolvida em uma das críticas.
A maior prova da impropriedade da moral kantiana foi dada por ele mesmo num texto em
que demonstra com orgulho e ingenuidade aonde nos levam as abstrações matemáticas quando
servem de parâmetro para nortear a condução da moralidade. Em Sobre um suposto Direito de
Mentir por amor à Humanidade (1797) defende que seria um crime mentir para um assassino que
batesse à nossa porta perguntando se um amigo nosso a quem ele pretende matar está escondido em
nossa casa, ocultando o amigo refugiado para que não fosse assassinado. Este grau de crença cega
na racionalidade só podia existir num mundo onde não havia espaço para campos de concentração
ou favelas.
Mas nesta abstração ideal de um mundo sem sangue tem um outro problema. O
comportamento concreto aparece nele como mero confirmar ou não do imperativo categórico.
Entregar ou não o amigo. Portanto, do ponto de vista do mundo real, tanto faz saber que o
imperativo categórico pode ser deduzido logicamente porque o comportamento vai ser a favor ou
contra ele indiferentemente da pressuposição do imperativo, ou seja, o comportamento ético
concreto é indiferente a ele. Em resumo, tanto faz que ele tenha sido ou não pensado. Se o amigo
for entregue, é indiferente saber se o motivo será ou não a reflexão racional.
É importante perceber onde isso acaba levando na perspectiva do problema do
comportamento de massa. Um ambiente, como vimos anteriormente, em que a pessoa age errado
conduzida pelo comportamento de rebanho do grupo por mais que ela saiba que está errado o que
ela está fazendo. Por mais que seja um imperativo categórico não jogar privadas da arquibancada
superior sobre a torcida adversária na arquibancada de baixo, porque o mundo viraria um caos se
todos se sentissem no direito de lançar vasos sanitários das janelas dos prédios contra seus
adversários, existe alguém que jogou num determinado jogo de futebol realizado no Brasil. Como
controlar esse sujeito numa situação de massa em total anonimato, onde as pessoas são capazes de
se comportar de maneira quase bestial conforme vimos anteriormente? Este é justamente o grande
argumento a favor das teorias administrativas do jornalismo, mostrar a necessidade de alguém
conduzir as massas sob pena de caos absoluto. Justifica-se a preocupação a respeito do
comportamento das massas característico das teorias administrativas.
Mas a solução administrativa soa tão mal quanto entregar o amigo a um assassino. A
Filosofia percebeu esse descalabro, e deu mais um passo. Atingimos, portanto, um terceiro período
da subjetividade, que tem o objetivo de superar lacunas da ética Iluminista. Trata-se do que veio
depois do Iluminismo na tentativa de superar suas limitações. É segundo este pensamento, que parte
da crítica da ética Iluminista, explicitamente na obra do filósofo alemão Georg Hegel, que se
inaugura a linhagem transformadora à qual Foucault se referia quando falava de Hegel, Nietzsche e
da Escola de Frankfurt.
O caminho trilhado por Hegel partiu da análise da religião. A novidade teórica de Hegel é
tentar estabelecer uma postura dialética entre as duas propostas, de autodirecionamento iluminista e
de heterodirecionamento social ou religioso porque Hegel gosta da ideia de existir uma autonomia
interna do sujeito crítico mas gosta também da ideia de existir um referencial histórico e social
externo que ele chamou de eticidade de um povo. É somente numa relação com a eticidade que o
pensamento racional ganha concretude histórica e o ato do sujeito ético passa a ser a construção da
história. Não há uma razão que pensa e um sujeito ideal abstrato que age em conformidade ou
contra ela. A única coisa que existe efetivamente é o agir do sujeito concreto, histórico. O homem é
o que ele faz. Este agir confirma ou nega o que determina a tradição da eticidade.
Hegel coloca o sujeito num lugar de mediador entre uma força que o obriga a agir da
maneira correta no interior de um grupo de pessoas a quem a ação vai atingir também, e uma força
interior racional autoconsciente de autodeterminação que vislumbra seus atos e decide

71
racionalmente o que deve ser feito em cada situação. Trata-se do mesmo ser humano que abandonou
sua menoridade, como Kant apresenta, só que agora ele é de carne e osso e não um modelo ideal.
Ele está inserido em um contexto social que coage cada um a aderir a um certo rumo dos
comportamentos, o que supera o impasse em que a ética se encontrava na perspectiva kantiana, que
poderíamos resumir como o acreditar que todo mundo iria naturalmente aderir a este projeto dos
imperativos categóricos quando, o que acontece, no fundo, é que muita gente prefere continuar
usando fraldas ou agir a favor de seus interesses egoístas por mais que as condições para este
crescimento estejam dadas. O que amarra comportamentos e sociedade são os atos concretos
históricos. Não há lugar mais para ilusões perdidas nem para uma moralidade que só envergonha o
pecador. O que surge de decepcionante na história da humanidade é sua história, que se desvela de
modo trágico, surpreendente. Na história será possível verificar qual foi a opção de cada agente
concreto frente a suas opções. Elas poderão coincidir com as recomendações dos costumes de seu
tempo ou ir contra eles. Portanto, em vez de focar no comportamento do sujeito, a proposta de
Hegel é focar nos hábitos de uma cultura, em seu espírito de época. Eles são o ponto concreto a
partir do qual se poderá transformar o mundo, porque se eles forem corrigidos, o comportamento
racional coincidirá com o que os comportamentos recomendam.
É possível achar que Hegel só teria deslocado o problema de lugar. Em vez de ter de
transformar a alma de cada um para que opte por uma vida regrada na base dos imperativos
categóricos, transformar os costumes de uma sociedade para que os hábitos estejam o mais
conformes possível aos imperativos categóricos, que a racionalidade se atualize em lei,
comportamento, atitude social esperada, e se confirme em atos concretos que constituirão a sua
história. É na mudança das leis do espírito do tempo que se constroem condições históricas para que
o homem aja livremente em conformidade com as leis, que ele queira sempre agir em conformidade
com ela. Entretanto, essa diferença de perspectiva muda tudo, porque se não temos uma chave de
acesso para entrar no coração de cada pessoa para lutar por esta transformação, no caso das regras
sociais, ou, como diria Marx, da superestrutura, há como lutar por uma transformação concreta e
histórica. Como enunciou Marx, os filósofos já explicaram o mundo, agora é preciso transformá-lo.
O filósofo que explicou foi Hegel. O processo de transformação depende de sujeitos autônomos que
atuem no rumo de desenvolvimento da história de modo a que ela se aproxime da idealidade
racional.
Um dos elementos que coloca a religião e as leis sociais nesse local privilegiado para o
controle da ética é que elas não atuam na base da racionalidade abstrata, trabalham com a
emotividade, com apelo ao sentimento de um ser humano integral, sensível e racional. Portanto o
amigo entrega ou não o outro amigo a um assassino no momento de construção histórica atual. Seu
ato figurará dos anais tanto quanto o assassinato de César. Talvez Brutus agisse diferente em outro
contexto que não o obrigasse ao crime para alcançar sua libertação. Esse é o campo capaz de
mobilizar o sujeito para que ele queira crescer. O grande problema do desenvolvimento ético
sempre foi justamente este, como Kant já diagnosticara. A pessoa não quer crescer, não quer
amadurecer. Isso é muito custoso e trabalhoso. Prefere ficar anos vivendo em conformidade com os
ditames religiosos porque sabe que ali ele está agindo mais ou menos certo, está sendo
relativamente bom, não está errando demais. Por isso, prefere entregar a condução de sua vida a
uma instituição exterior que vai conduzi-lo numa certa linha em vez de querer ganhar uma
autonomia que pode levar alguém a agir errado e ter de pagar por isso sem ter para quem correr para
aliviar a própria consciência. Isso só reforça que é no âmbito da superestrutura que as
transformações devem acontecer. O problema de seguir o autodirecionamento ou o
heterodirecionamento se desloca para uma nova questão, de saber em que momentos em que eles
coincidem ou divergem, e, quando divergem, surge a perspectiva de que é necessário transformar
por vezes as próprias leis que representam este heterodirecionamento.
Esta transformação, entretanto, não é cega, subjetiva, ela é pautada pela própria
racionalidade da coletividade que soube desde sempre que é errado roubar, errado o homem

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explorar o homem, errado cercear a liberdade, desde que a liberdade não signifique atropelar a
liberdade e o direito alheio. O que Kant julgava serem meras máximas subjetivas, Hegel coloca
como leis absolutas da racionalidade: não fazer mal a si mesmo, cada um se esforçar para
desenvolver ao máximo as suas potencialidades como ser humano, ser solidário e ajudar o
desenvolvimento da coletividade. O problema é que o arranjo coletivo do espírito de época tem de
permitir que cada um siga esses ditames sem automutilação. Quando as transformações na
superestrutura se direcionam no mesmo rumo da pura racionalidade, há uma feliz coincidência. De
que a ação pensada incondicionalmente e racionalmente por qualquer um coincide com o que é a
própria lei social e com o que um sujeito desejaria para se satisfazer. Daí a liberdade se torna agir
como pede a lei. Que é justamente o que Kant defendia. Mas ele não percebeu que, para tanto, não é
simplesmente o sujeito quem tem de ser autônomo, mas sim a lei que tem de evoluir na direção da
efetiva liberdade. E o foco da ação transformadora tem de se deslocar do indivíduo para a
sociedade.
O problema, portanto, passa a ser a maneira como esta transformação no espírito social se
dá. Novamente, recorremos a Hegel porque em outro momento de sua obra, vai discutir o problema
do Iluminismo não mais no nível da individualidade transcendental, mas sim da coletividade e da
história do povo, naquilo que ele denominou o espírito. Na Fenomenologia do Espírito (2002) há
um subcapítulo sobre o Iluminismo. Ele prepara o tema apresentando uma versão parecida com a
que já vimos: “Sede para vós mesmas o que sois todas em vós mesmas: sede racionais” (HEGEL:
2002, p. 371)16.
Mas longe de reduzir este debate ao indivíduo, Hegel enxerga o Iluminismo como um
desenvolvimento da cultura que provoca transformações sociais, numa frente contra a fé, noutra
lançando luz “frente às intenções impuras e às intelecções pervertidas do mundo efetivo” (HEGEL:
2002, p. 372). Vamos nos concentrar neste segundo aspecto. Por causa da crítica do mundo efetivo,
o Iluminismo não vai ser recebido sem dor, antes se fará acompanhar pelo “sentimento de ser a
dissolução de tudo que se consolida, de ser desconjuntado [no suplício] da roda através de todos os
momentos de seu ser-aí, e triturado em todos os seus ossos” (HEGEL: 2002, p. 372).
A inteligência efetiva depende de um sujeito que pensa, porém, para entender a fissura das
prisões em que o pensamento se encontrava confinado, Hegel percebe que o conhecimento isolado é
mera vaidade do sujeito, que percebe seu próprio conteúdo como algo vão. Entretanto, “quando a
consciência que apreende tranquilamente, de toda essa tagarelice espirituosa da vaidade, toma e
compila em uma Coletânea as versões mais pertinentes e penetrantes da Coisa – a alma que ainda
mantinha o todo, essa vaidade dos juízos espirituosos, vai por terra com o que resta da vaidade do
ser-aí” (HEGEL: 2002, p. 373).
O tradutor Paulo Menezes acrescentou uma nota a esta passagem dizendo que Hegel parece
se referir à Enciclopédia quando usa a palavra Coletânea, Sammlung em alemão. Não há dúvida de
que o termo utilizado sirva de paradigma para nomear os 35 volumes, 71.818 artigos e 2.885
ilustrações publicados entre 1751 a 1772 pelos franceses. Mas também toda a pandemia de jornais.
Ocorre que esta publicação impressa se propõe romper com o isolamento do pensamento e adentrar
no espaço público por meio desde grande texto coletivo disponibilizado para uma população
disposta a ler, debater e aprender, constituindo verdadeira ontologia do presente. O pensamento

16 A questão em Hegel ganha complexidade, visto que o conceito de razão para ele é distinto do conceito
predominante na Filosofia Moderna, de se tratar de uma faculdade do ânimo humano. E não haverá aqui como
tratar este problema. Mas esta faculdade transcendental não deixa de ser uma das manifestações da razão na forma
de faculdade humana, e será o que estará em jogo neste capítulo sobre o Iluminismo, tanto que, outra diferença
entre ele e Kant mesmo no âmbito da racionalidade humana é que ele atribui esta frase à inteligência, uma categoria
anterior e menos determinada que a de Iluminismo, e que dá conta também da própria fé. Ver Hyppolite: “… a
Reforma foi, segundo nosso filósofo, ‘a revolução dos alemães’. De fato, o movimento da Reforma foi
compreendido por Hegel como uma primeira etapa da libertação do espírito. Em sua Filosofia da História, compara
Lutero com Sócrates e diz que, com Lutero, ‘o espírito começa a voltar a si mesmo’, eleva-se a ‘uma reconciliação
interior’. A Reforma é o começo da Aufklärung …” (HYPPOLITE: 1999, p. 450).

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crítico não pode ser um mero pensar, nem pensar de um só, tem de ser polifônico, escutado e
debatido por todos, uma imensa coleção (Sammlung). Este vitral destrói as vaidades porque “a
Coletânea mostra à maioria que há uma perspicácia melhor que a sua; ou, pelo menos, mostra a
todos que há uma perspicácia mais variada que a deles, um melhor saber e um ajuizar em geral,
como algo universal e agora universalmente conhecido.” (HEGEL: 2002, p. 373). Verdadeira
invasão e estilhaçamento da fronteira entre sujeito isolado e coletividade histórica, portanto.
O problema central do saber é que, mesmo que exista uma cultura, sem esta ruptura, tanto fé
quanto saber se tornam vítima, “… vítima da impostura de um sacerdócio que leva a termo sua
vaidade ciumenta de permanecer só na posse da inteligência, como também em seus próprios
interesses egoísticos e que, ao mesmo tempo, conspira com o despotismo” (HEGEL: 2002, p. 373).
Para Hegel, o despotismo se aproveita da situação de “má inteligência da multidão”, e “má intenção
dos sacerdotes” e unifica ambas em si. “Extrai da estupidez e confusão do povo, por intermédio do
sacerdócio impostor – e desprezando ambos – a vantagem da dominação tranquila e da
implementação de seus desejos e caprichos; mas é ao mesmo tempo, o mesmo embotamento da
inteligência: igual superstição e erro” (HEGEL: 2002, p. 374).
Sem o encaixe com o real, o Iluminismo é insuficiente e pode se tornar barbárie. Só se
efetiva travando uma batalha histórica contra o que é reativo a ele, não voltado a cada um desses
personagens [clero, déspota e povo] como se fosse um inimigo mas sim se dirigindo à inteligência,
no debate público, visando acordar de sua menoridade os sujeitos carentes de vontade,
infantilizados. Caso consiga contornar as restrições, a inteligência vai contaminando o espírito
como um vapor dispersando na atmosfera sem obstáculos. Hegel usa aqui a metáfora de uma
infecção que se alastra, poderíamos pensar numa pandemia. Dialogando com Diderot, entende a
razão crítica como uma infecção que contamina os ídolos do passado, doença contra a qual qualquer
remédio só piora sua marcha implacável. Ela contamina os ídolos que orientavam o comportamento
para manter as intenções impuras e o despotismo em vigor, “logo se apodera radicalmente de todas
as vísceras e membros do ídolo carente-de-consciência” (HEGEL: 2002, p. 374). Hegel cita
Diderot: “O deus estrangeiro [no caso, a racionalidade] coloca-se humildemente ao lado do ídolo do
país. Fortifica-se pouco a pouco. Um belo dia, dá uma cotovelada em seu companheiro e, catapum!,
lá vai o ídolo abaixo” (DIDEROT: 1979, p. 175).
Assim, a consumação do Iluminismo para Hegel só se dá na história efetiva, na Revolução
Francesa. Ele começa como um desenvolvimento que passa a se justificar tanto no campo religioso
quanto no científico pela sua utilidade. Utilidade econômica e técnica de um lado, de outro lado
utilidade prática, religiosa e moral. Kant é o retrato fiel desta divisão com sua filosofia teórica e sua
filosofia prática. Mas mesmo constituindo a verdade do Iluminismo como a utilidade, Hegel acha
que o passo importante decorrente deste encontro entre certeza e verdade ainda não foi dado pelo
Iluminismo. Este encontro tem de se mostrar universalmente na luz da efetividade para que se
reconciliem esses dois mundos kantianos, que o céu baixe e se transplante para a terra. Isso só pode
ocorrer na história. Não adianta só a boa vontade e o autodirecionamento do sujeito isolado,
seguidor dos imperativos categóricos. Têm de existir, ou se construir, condições históricas para a
ruptura, que o imperativo categórico se torne a melhor opção do sujeito histórico dadas as condições
sociais e históricas em que ele vive. Não haverá assassino batendo em sua porta porque as
condições sociais contribuíram para abolir os motivos de todo assassino, as pessoas não compram
mais armas para se defender, logo não haverá tiros. O Iluminismo como sujeitos atômicos isolados é
somente boa intenção nunca efetiva, dever ser. Seu desdobramento que só se dá neste encontro com
o efetivo é “a revolução efetiva da efetividade – a nova figura da consciência, a liberdade absoluta”
(HEGEL: 2002, p. 401).
Este problema refletido sobre as teorias do jornalismo indica mais uma vez de um lado um
jornalismo que se propõe ser esse orientador de comportamentos e que prefere que cada indivíduo
das massas seja o mais obediente possível ao que ele determina fazer, ou um jornalismo que vai
estimular esse desenvolvimento das leis da coletividade no rumo da racionalidade, promovendo

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situações que incentivem o estabelecimento de reflexão própria e de autocontrole do seu próprio
comportamento por intermédio do uso da razão para a transformação da própria sociedade. Para não
ter este seu propósito frio e abstrato tão descaradamente exposto, a teoria administrativa prefere
dizer que não deve se intrometer em assuntos externos ao jornalismo, de ordem social.
O que tiramos deste desvio talvez demasiado longo mas que acreditamos ser fundamental
para pensar as teorias do jornalismo, é que o problema das teorias administrativas não é fazer o
melhor possível o jogo de um conjunto de leis e costumes sociais de uma determinada sociedade.
Ela poderá ter esta mesma função desde que esteja no interior de uma sociedade justa que tenha
chegado a bom termo em relação à liberdade, à igualdade e à fraternidade de um povo. Mas ela não
percebe que, enquanto esta sociedade não é justa, a definição teórica do jornalismo tem de se render
à necessidade das demandas de teorias transformadoras do jornalismo, que são aquelas que
efetivamente vão poder contribuir para que esses avanços sociais necessários aconteçam.
O problema com o qual nos deparamos é que o próprio Iluminismo caiu numa dupla cilada
por causa do grau de abstração com que abordou a racionalidade. Por um lado, como conjunto de
ideias abstratas, ele pode ser utilizado para transformar o mundo ou igualmente poder não servir
para nada. Veremos que esse foi justamente o caso do Iluminismo brasileiro que funcionou como
um sistema de ideias fora do lugar. Por outro lado, dado o grau de plasticidade do cálculo racional
abstrato, pode gerar sistemas teóricos analíticos da verdade que sirvam para manter inalterado o
sistema de desigualdades ou até mesmo que agrave o sistema de exploração, configurando uma
racionalidade instrumental que aperfeiçoa os dispositivos de controle tradicionais utilizando como
meios a própria comunicação social e o jornalismo administrativo.

4.4 – Ideias e seu lugar

Começamos pelo problema da abstração subjetiva do Iluminismo conforme vimos na moral


kantiana, que opera como se as condições históricas, políticas, as relações de dominação concretas
não precisassem ser enfrentadas na conquista da autonomia, da maioridade. Quando este sistema é
transportado para o mundo histórico real, talvez ainda seja capaz de explicar avanços no sentido da
liberdade civil vitoriosa na Alemanha no seu período. Mas não se adéqua minimamente ao caso do
Brasil, evidentemente, pois, sem entrar muito no mérito de quando o deveríamos situar
historicamente e de qual teria sido seu grau de radicalidade, o fato é que o Iluminismo aqui foi
muito mais tardio, e seu poder efetivo de transformação, minguado.
Que nosso Iluminismo não tinha as condições revolucionárias para a liberdade é o tema do
texto de 1973, As ideias fora de lugar, de Roberto Schwarz. Sua reflexão lança luz sobre o ingresso
do Iluminismo no Brasil histórico a partir do século XIX e discute o acontecimento aparentemente
paradoxal de o país ter sido afetado pelo pensamento iluminista sem que os avanços evidentes que a
racionalidade deveria proporcionar aqui tivessem ocorrido17. O fato abominável mais notório que
persiste é a escravidão.
As ideias se tornam uma espécie de ornamento. O homem livre fala bem de Kant, de
Rousseau, autores cuja obra ele compra com o dinheiro que sua família ganha com a exploração de
escravos. Forma-se uma cultura do favor. O favorecido providencia uma explicação para isso, de
que as teorias importadas não servem para o Brasil, que são fora da nossa realidade. Quando
depreciamos o pensamento libertador como um neocolonialismo e recusamos perceber o baixo nível
de desenvolvimento cultural e educacional do qual somos vítimas, isolamos essa doença
reproduzindo mais uma vez o que dita nossa tradição. O discurso racional olha de fora para a

17 Schwarz faz uma análise pontual sobre a situação do século XIX, mas podemos projetar o mesmo problema para o
Brasil contemporâneo no nível mais teórico, quando percebemos o grau de irracionalismo presente em fatos como a
mortalidade brutal de crianças vítimas da polícia brasileira, o ressurgimento de um discurso partidário conservador, a
tentativa de inibição do acesso amplo e irrestrito ao ensino em diversos níveis, a manutenção das condições de vida
indigente de ampla parcela da população num país relativamente rico.

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realidade brasileira como quem foi barrado numa cancela em Port Bou18. Vê um país com original
plasticidade linguística onde nepotismo chama-se mérito; capricho chama-se utilidade.
Em sua análise, Schwarz não nega a influência do Iluminismo no que se refere a alguns
avanços ocorridos no século XIX, como a Independência do país em relação a Portugal. Mas, por
outro lado, fica em suspenso sempre uma pergunta que questiona por que os ideais Iluministas não
resultaram em avanços maiores ou mais rápidos na história do Brasil. Na própria história do
jornalismo, houve avanços pontuais em certos momentos, vésperas da proclamação da
Independência, véspera da abdicação de dom Pedro I, véspera da Abolição da escravidão, véspera
da Proclamação da República. Mas em outros momentos houve retrocessos violentos, como o
fechamento da assembleia constituinte em 1823, os atentados contra jornalistas por dom Pedro I, o
endurecimento da política de Estado contra ideais liberais por volta de 1840 com dom Pedro II,
censura à imprensa de 1969 a 1979 com o regime militar. Isso sem falar em retrocessos mais
recentes de ascenção de projetos políticos reacionários. Ou seja, o contrafluxo que sempre
acompanhou, como uma sombra de negatividade obscura, a luz do Iluminismo. Esta luta dialética
entre luz e sombra se reflete de modo exemplar no jornalismo, por isso insistimos nesta bipartição
também no campo teórico. Houve um jornalismo promotor de avanços que sempre conviveu com
outro que não quer mudanças. Este é um divisor de águas entre uma teoria administrativa e uma
teoria transformadora do jornalismo. Mas ainda resta a pergunta sobre o porquê do atraso aqui.
O mérito da análise de Schwarz é explicar isso. O título do texto já indica o caminho para
explicitar este desencontro: As ideias fora de lugar. Ou seja, as ideias de transformação iluministas
não encontraram um leito histórico apropriado aqui para recebê-las no século XIX, não encontraram
respaldo de um povo naquele momento histórico a ponto de vencer resistências de parcelas
privilegiadas que queriam a manutenção das bárbaras relações sociais vigentes, não foram
suficientes para mudar a mentalidade de tradições arraigadas e defensoras de colonialismo ou, pelo
menos, os hábitos e costumes que formam um rastro de malfeitos: escravagismo, imperialismo,
ditadura militar, extermínio de negros entre outros. Há uma limitação no poder de transformação
das ideias quando elas se encontram com um certo momento histórico avesso à transformação. Por
vezes, elas não conseguem avançar mais além de um dado grau. Por outro lado, quando existe esse
encaixe das ideias num momento histórico, elas têm um poder transformador admirável. O objetivo
de Schwarz é tentar entender melhor como isso funciona a partir de um caso concreto histórico, o
Brasil do século XIX.
O autor parte de um problema básico, de que as ideias do Iluminismo defendem como valor
fundamental o direito do indivíduo à liberdade. Portanto, colocam para o sistema econômico a via
de garantia da liberdade e de funcionamento do mercado uma perspectiva de existência do trabalho
livre, ou seja, de um sistema em que alguém possa vender sua força de trabalho para alguém que a
queira comprar para transformar esse trabalho em valor da mercadoria e possa colocar no livre
mercado para estabelecer suas relações comerciais. O trabalho livre é portanto um princípio dessa
economia de matriz liberal e Iluminista. Mas estes valores difundidos no Brasil desde 1808 vão
conviver com a escravidão até 1888, ou seja, 80 anos ainda. O fenômeno importante a destacar é a
convivência dessa mentalidade do pensamento liberal Iluminista que caracteriza a escravidão como
fato abominável, com leis e práticas escravocratas.
Se o primeiro grande impulso Iluminista resultou na Independência em 1822, o mesmo
sopro reclamava ainda outros inúmeros avanços, mas quem os defendia foi sendo sistematicamente
abatido, como frei Caneca, por exemplo, que foi executado, Cipriano Barata que ficou preso
décadas. O paradoxo é defender transformações no nível das ideias convivendo na prática com algo
bárbaro como a escravidão.

18 Esta é a cidade de fronteira entre França e Espanha onde o grupo de intelectuais alemães fugindo do nazismo foi
barrado em 1940. Fugindo havia sete anos, impedido de prosseguir e prestes a ser entregue aos nazistas, Walter
Benjamin deu fim à própria vida.

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Schwarz diz que essa particularidade coloca o Brasil fora do sistema da ciência Iluminista,
pois ela constitui um amplo pacote de valores, e o Brasil renegava um dos valores mais básicos
desse projeto que era a garantia da liberdade dos direitos individuais. O país se torna uma aberração
frente aos ideais Iluministas19. No teatro de José de Alencar, o autor já denunciava que o fato de
existir escravos no Brasil em pleno século XIX humilhava o brasileiro20.
Os conservadores do século XIX defendiam que era melhor ter bons negros submetidos à
chibata do que deixar morrer de fome um pobre irmão branco. Acusavam os ingleses e holandeses
de serem hipócritas porque existiam pobres nos respectivos países. Achavam mais interessante que
todo branco fosse defendido e que o preto vivesse submetido, tentando justificar por que a
escravidão deveria existir e deveria se manter. No final do século XIX ainda houve muita gente que
se indignou com o final da escravidão, regiões em que os agricultores fizeram boicote ao trabalho
livre com imigrantes, porque achavam que o sistema antigo voltaria pois o escravo era feliz.
Isso explicita a coexistência de argumentos pró e contra escravidão num mesmo período
histórico. Schwarz diz que a disparidade entre o ideal escravagista e o ideal iluminista ficam
patentes aqui, enquanto na Europa não havia tanta disparidade. Os ideais Iluministas lá acabaram
com escravidão, promoveram o trabalho livre, acabaram com o regime absolutista. Isso não quer
dizer que não havia problemas por lá também, visto que existia pobreza, exploração capitalista
brutal, aquilo que vai se tornar por parte da interpretação marxista a contradição do Capital, a
exploração do Trabalho. A Economia Política se desenvolverá no centro do próprio Iluminismo.
Mas ela só era uma ciência de verdade num continente onde ninguém era escravo. A referência legal
da constituição de 1824 que apregoa a liberdade individual vai se tornar uma letra morta porque isso
não foi suficiente para acabar com a escravidão até 1888. O próprio sistema de leis não se fazia
valer21.
As causas dessa idiossincrasia brasileira foram pouco discutidas e Schwarz se propõe a criar
uma hipótese que explique a situação. Para ele, o Brasil conseguiu manter um regime de produção
econômica escravagista, ao mesmo tempo em que aderiu a um projeto Capitalista de circulação
internacional de valores e mercadorias. Surgiu uma espécie de dupla face da identidade nacional
que permite ao Brasil ter comércio com outros países mostrando um semblante moderno e límpido
num cenário em que produtos são trocados, a qual convive com outra face obscura e suja que olha
para dentro produzindo dentro de uma cápsula de processo produtivo interno que se esconde muito
bem, em que o absurdo da escravidão continua a ser utilizado como meio de produção. Da porta
para dentro, repressão e escravidão. Da porta para fora, uma postura liberal de troca de produtos e
divisas.
19 O Brasil conviveu com a comunidade internacional dizendo que aqui persistia a aberração da escravidão, do mesmo
modo como hoje a comunidade internacional aponta para as queimadas, o desmatamento ilegal da Amazônia, os
assassinatos de negros por policiais, a existência das favelas e da fome, e reconhecem novamente uma aberração. Não é
um problema que remonta ao século XIX e que se resolveu, é um permanente atraso e descompasso entre aquilo que se
diz e aquilo que se faz. Em pleno surgimento de uma pandemia viral de Covid-19 que ocasionou 700 mil mortes (até
2023), a ciência Iluminista oferece recursos e apoios para que se combata sua expansão, mas tem de duelar com uma
forte cultura histórica reacionária que propõe soluções alternativas sem comprovação científica como cloroquina e que
divulga que preocupações extremadas com a saúde é coisa de povo frouxo, pouco viril. Na sua perspectiva, deveríamos
deixar a doença fazer seu serviço para selecionar os mais fortes e aumentar a resistência da saúde da população, a
imunidade de rebanho, como se os seres humanos fossem gado. Um pensamento irracionalista conservador.
20 As pessoas ilustradas tinham vergonha no século XIX, como talvez alguém tenha vergonha hoje da fome e dos
moradores de rua. Assim como no momento contemporâneo existem pensamentos que fazem as pessoas terem
vergonha, posicionamentos políticos, intolerância em relação à diversidade, sexismo, defesa de ditadura. São
pensamentos de parcelas da população, que circulam livremente, e que nos surpreendem.
21 Isso aponta para a facilidade no Brasil de conviver com leis que não se aplicam à realidade. Policiais no Brasil não
são punidos por assassinar nem criminosos nem inocentes. Há uma plasticidade no exercício do judiciário que trata de
modo diferente um empresário que atrasa quatro anos a entrega de um prédio a seus compradores, e um cliente que
porventura tenha atrasado dois meses de prestações na aquisição desse mesmo imóvel. O primeiro talvez tenha de pagar
alguma multa decorridos dez ou quinze anos de processos arrastando com vagar na justiça, o segundo pode perder o
investimento e ter seu imóvel devolvido ou penhorado em poucas semanas.

77
Para o comércio internacional, ele também adepto da liberdade abstrata Iluminista, a
maneira como cada país vai gerir seus negócios internos é um problema que concerne à maturidade
ou à menoridade de cada um, e o mercado internacional não vai querer se intrometer nesse
problema desde que prossiga auferindo lucros. Esta situação, porém, colocava o Brasil numa
relação tensa em relação ao próprio desenvolvimento técnico dos meios de produção e das
descobertas científicas que transformavam rapidamente as tecnologias de produção no mundo do
século XIX. Esta condição vai colocar o Brasil para trás nos avanços da divisão e especialização do
trabalho. Não era um problema crítico do escravagista a ampla exploração do tempo de trabalho,
visto que o tempo não tinha custo variável. O tempo do escravo já era desde sempre todo seu. Por
isso a produção podia manter processos precários e de baixa produtividade sem problemas,
mentalidade que vai novamente colaborar para um atraso de desenvolvimento tecnológico e criar
uma situação de dependência que se manterá desde estes séculos passados até hoje.
Não havia preocupação nem com produtividade, nem com aperfeiçoamento dos processos
produtivos, nem com qualificação da mão de obra do setor produtivo, nem racionalidade nos
modelos de distribuição de produtos. O sistema produtivo era muito mais calcado no medo e na
insegurança que em processos técnicos e científicos. A ciência se mostra num país assim como uma
espécie de fantasia, de luxo, de algo desnecessário. Já o obscurantismo que justificava o sistema
escravagista na base da repressão, era visto como uma prática realista. O país vem de uma tradição
de violência contra as pessoas. A sustentação do regime se dava com base na força, e essa
truculência vem sempre ainda à tona e sempre pode mais uma vez se intensificar. O topo da
violência simbólica contra o povo brasileiro é a ameaça de que, se cada um não se enquadrar no
sistema, irá morar numa favela, sem nenhum tipo de garantia de cidadania. Exceptuados aqueles
que já moram lá, todos os outros temem esta perspectiva como se estivessem dentro da sala 101 do
romance de George Orwell, em que os piores pesadelos se tornam realidade, e aceitam quaisquer
regras, por mais que sejam limitadoras de direitos, para fugir deste martírio.
No século XIX, Schwarz diz que tínhamos aqui três classes sociais, os latifundiários, os
escravos, e os homens livres. O autor explica que essa liberdade era relativa porque não existia
internamente um sistema de distribuição de trabalho e de oferta de mão de obra livre. Não existia
circulação de dinheiro para que as maiores massas populacionais sustentassem um mercado de
consumo interno. Isso é muito importante para entender o jornalismo no Brasil. Porque se não
existe um mercado interno comercial que possa sustentar o jornalismo por intermédio do pagamento
para divulgação e circulação de anúncios, um mercadinho que faça circular mercadorias e dinheiro,
que alimenta também os alfaiates, os jornalistas, os trabalhadores. Ou seja, só existe mercado
interno quando existe uma massa salarial e oferta de bens de consumo. E isso não existe numa
sociedade escravagista, em que boa parte da população não tem salário nenhum no bolso. Não
tínhamos mercado, assim não podíamos ter indústria, comércio, fornecimento, jornalismo. Não é
por outro motivo que Werneck Sodré desloca a fundação do jornalismo comercial para 1889. Antes
disso o que existia era uma produção precária e artesanal.
Os senhores de escravo eram ricos pois tinham acesso ao dinheiro internacional angariado
por meio da exportação e consumiam basicamente também produtos importados que não geravam
nem mercado interno nem desenvolvimento econômico. Os escravos não tinham dinheiro nenhum,
e os homens livres viviam basicamente do favor dos senhores de escravos e do dinheiro que
alimentava sistemas burocráticos que davam suporte ao funcionamento do mercado internacional.
Os postos de ocupação para estas pessoas eram muito poucos, e eram ocupados por pessoas
indicadas por quem tinha dinheiro, alimentando ainda mais a política do favor.
Essa política do favor vai comprometer também a autonomia do jornalismo. O jornalismo
majoritário não será crítico porque ele depende para sua sobrevivência do favor do possuidor de
dinheiro e poder. Isso explica melhor por que vai surgir um jornalismo administrativo e pouco
crítico no país. Os poucos casos de jornalismo transformador no período se resumiam ou a
iniciativas como a de Hipólito da Costa que vivia fora do país e de quem é necessário relativizar a

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autonomia, visto que atendia aos interesses comerciais de firmas inglesas; ou de heróis da
resistência como frei Caneca, que morreu fuzilado. É importante perceber que essa relação de
dependência vai se manter também no período do jornalismo empresarial e monopolista, ainda mais
porque esses conglomerados vão exigir aportes cada vez maiores de dinheiro para conseguirem
sobreviver.
Isso explica por que o discurso racional se descola da realidade. Cria segundo Schvarz
original plasticidade linguística. Capacidade de fazer uma coisa e dar outro nome ao que fez: vai
chamar dependência de independência e, como visto, capricho de utilidade,parentesco e nepotismo
de mérito. Isso vai ser sustentado por uma hipocrisia de mão dupla, pois de um lado quem tem o
poder fala dessa maneira cínica tanto quanto o homem livre, e o grande prejudicado será o escravo
que não tem nunca chance alguma de ganhar independência por mérito. E vai achar que a culpa por
não conseguir chegar lá é sua, desmerecimento.
As ideias se tornam uma espécie de ornamento. O homem livre fala bem de Kant, de
Rousseau e dá ordens a seus escravos. Vai surgir a explicação para isso de que as teorias importadas
não servem para o Brasil, que são fora da nossa realidade. O favor impede a denúncia da farsa do
liberalismo, da meritocracia, num lugar onde não há chance nenhuma de fazer valer esses conceitos.
Falando especificamente do jornalismo, Schwarz diz que as revistas e jornais louvam o
jornalismo transformador, o Iluminismo, mas, por outro lado, aceitam a escravidão e não ficam
tratando muito desse assunto. Imprensa passa a ser alguma coisa escrita ou impressa em papel e
distribuída aos públicos, mas o seu conteúdo será constituído por jogos, charadas, conhecimentos
gerais, informações internacionais, ou folhetim. As discussões de fundo a respeito do
desenvolvimento do país, do regime econômico, do sistema político, tudo isso vai minguando das
páginas dos jornais até desaparecer. Essas causas só vão voltar à tona em momentos muito
específicos da história onde houve novos rearranjos dos jogos de poder. O jornalismo mais presente
no século XIX é ou um jornalismo áulico que faz o jogo do governo e defende seus valores, ou um
jornalismo de salão que divulga amenidades. Não há espaço para o sentido crítico. Ainda pior,
quando aparece um texto com verniz crítico, ele permanece na discussão abstrata de valores dos
filósofos iluministas, da liberdade abstrata, que em momento algum dialoga com o fato abominável
da escravidão do presente histórico efetivo. O símbolo máximo da hipocrisia já enunciamos antes, é
uma frase do hino da República de 1889 que reclama que houve escravos outrora em nosso país
livre. Outrora era dois anos antes. As ideias fora de lugar são totalmente plásticas. A pessoa pode ser
extremamente moderna em seu falar, em suas argumentações, em suas ideias expressas, e sua
prática pode ser totalmente reacionária22.
De vez em quando, as ideias libertárias se encaixam na história e a força do jornalismo se
faz valer para a transformação efetiva do mundo. É quando a ideia se encaixa e a proposta de
melhoramento do mundo se atualiza. Mas a cultura brasileira vem de uma tradição de conviver com
as ideias fora de lugar. Por isso é preciso compreender este quadro paradoxal e ter muita paciência
para dar o tempo dos acontecimentos e das transformações, sempre muito mais lentas do que seria
desejável. Por um lado, isso não pode ser motivo de descrença no jornalismo. Por outro, há que se
perceber que mesmo teorias transformadoras do jornalismo correm o risco de se tornarem simples
bijuteria, se não houver uma práxis que coloque a mão, não nas abstrações teóricas, mas sim na
substância ética concreta do tempo histórico.

22 Isso dá uma chave para entender por que o país ainda convive com tantos casos de feminicídio, de abuso sexual por
padres, abuso por médicos, pedofilia. Não que sejam exclusividades daqui, mas são momentos em que a realidade da
cultura brasileira se deixa flagrar em todo tipo de comportamento que é também seu. Um médico que é acusado hoje
por molestar mais de 150 pacientes não começou a fazer isso ontem, ele fez isso durante 50 anos, e somente agora está
surgindo um ambiente propício a que esse tipo de comportamento seja passível de punição. Outros dados particulares,
como o morticínio de 3 mil pessoas por ano pela polícia em 2022, ainda dependem de transformação até que cheguemos
a um dia em que o objetivo de alguém que entra para a polícia não seja matar as pessoas. No último dado estatístico
disponível a respeito da Alemanha figura que a polícia matou em 2021 sete pessoas no país.

79
4.5 – A cilada do Iluminismo instrumental

Uma consequência ainda mais nefasta puniu o projeto do Iluminismo por ele ignorar os
elementos históricos e culturais concretos. Ele foi engolido num processo dialético pelas forças
promotoras da desigualdade social, dando origem a um ramo da ciência que se tornou um
instrumento capaz de ajudar a oprimir parcela da humanidade. É a partir deste fato que fica
totalmente clara a distinção entre teorias administrativas e teorias transformadoras do jornalismo.
Não adianta mais tentar associar simplesmente as teorias transformadoras do jornalismo ao projeto
do Iluminismo, o que aparentemente seria uma boa solução dada sua origem estar relacionada com
o combate ao obscurantismo, à tradição, às autoridades. Num amplo período histórico do jornalismo
foi até possível usar desta simplificação porque, evidentemente, obscurantismo, tradição e
autoridades representaram forças de cerceamento à liberdade e de manutenção de desigualdades e
injustiças, das quais a própria escravidão no Brasil serve como exemplo, e que mereceram ser
combatidas.
A partir do século XX, porém, a própria razão Iluminista se bifurcou e a nova chave para
distinguir a teoria transformadora do jornalismo é distinguir sua razão crítica de uma outra razão
instrumental e administrativa à qual se contrapõe. Despregado dos seres humanos concretos e de
suas condições históricas, o Iluminismo instrumental pode ter cara de razão, cálculo de razão,
cheiro de razão, mas passou a representar o cume do irracionalismo. Evidentemente o cálculo não
deve ser abandonado. O jornalismo poderia servir sim à administração das massas de moldes
instrumentais, mas isso só se justificaria se o sistema social em que ele atuasse fosse capaz de
oferecer vida digna a um bilhão de habitantes. As massas deveriam então fazer o que ele orientasse
porque seria aquilo que cada um dos elementos da massa decidiria fazer por sua própria conta,
colaborar para colocar todos numa única classe média social. Entretanto, enquanto isso não existe,
tem de estar atuante uma tradição transformadora do jornalismo que tem de entender o que está
errado e o que tem de se transformar na sociedade em que o próprio jornalismo está inserido. Esta é
a nova chave em que se coloca a distinção entre teorias administrativas e teorias transformadoras do
jornalismo. Esta bipartição nunca vai se extinguir porque a história sempre avança e, mesmo onde
há uma sensação de que algo já se encontra bem resolvido, sempre existirá espaço para novos
avanços e um jornalismo transformador poderá investir num tipo de cobertura que resulta no
convite ao exercício do pensamento crítico e da melhoria do mundo.
Na apresentação da nova edição alemã da Dialética do esclarecimento, Adorno (1985) diz
que seu propósito era avaliar “o processo de transição para o mundo administrado” (ADORNO:
1985, p. 9). O que ele chama aqui de mundo administrado é justamente este mundo em que a
racionalidade Iluminista deu origem a um ramo que se transformou no próprio dispositivo de
dominação. Contra ele, surge outro ramo, “o pensamento crítico, que não se detém nem mesmo
diante do progresso, exige hoje que se tome partido pelos últimos resíduos de liberdade, pelas
tendências ainda existentes a uma humanidade real, ainda que pareçam impotentes em face da
grande marcha da história” (ADORNO: 1985, p. 9). Quanto mais desiguais forem as relações
sociais, mais aguerrida deve ser sua oposição. Trata-se de uma contraofensiva, que tem por
finalidade “a ideia de que hoje importa mais conservar a liberdade, ampliá-la e desdobrá-la em vez
de acelerar, ainda que indiretamente, a marcha em direção ao mundo administrado” (ADORNO:
1985, P. 10). A racionalidade saiu dos trilhos da promessa de vida melhor para todos. Sendo mais
preciso, a ciência baseada na razão bifurcou no que Adorno chama de modo geral numa teoria
tradicional e uma teoria crítica, inspirado na ideia original de Horkheimer. Não basta portanto fazer
seguir o desenvolvimento tecnológico e do conhecimento científico. É preciso liberar as conquistas
das descobertas da ciência de uma aliança que elas estabeleceram com o desenvolvimento das
desigualdades sociais sob o signo do Capitalismo. As teorias administrativas do jornalismo
justamente não fazem esta exigência de criticar a racionalidade que alimentou as transformações

80
Iluministas porque ela se metamorfoseou num processo de administração que mantém as
desigualdades do mundo com auxílio do cálculo de uma racionalidade despida de valores morais,
como bem traduziu Peter Sloterdijk, numa razão cínica. As teorias administrativas se regem
justamente por uma epistemologia que referenda este papel utilitarista da razão, que a fez se tornar
instrumento de dominação. Contra ela, é preciso manter a associação entre racionalidade e crítica
das desigualdades como um contraponto a um uso da racionalidade que a torna defensora e
mantenedora de desigualdades.
Por outro lado, mesmo garantido o uso da racionalidade como instrumento de crítica do que
está errado, ainda é necessário saber transformar a divulgação desta crítica num mecanismo de
superação dos problemas. Essa passagem não é simples. Se fosse suficiente divulgar as críticas para
as pessoas de um país de modo a que elas pudessem entender estas críticas e contribuir com a
transformação, tudo estaria resolvido com a disseminação das críticas sociais. Bastaria estudar. Dar
publicidade às críticas. Fazer um povo aprender o que é a liberdade e quais são os processos por
meio dos quais ela é cerceada e restituída. Aumento do acesso à educação resolveria. Mas a coisa
não é tão simples nem fácil.
Primeiro, há uma determinante qualitativa do que deve ser estudado. Nem tudo que se tem
por educação tem a marca da racionalidade crítica. Como um dos motores da busca por aprendizado
é a realização profissional, por trás da bandeira de uma educação universalizada e circulação ampla
de informação pela mídia, vimos uma experiência histórica que propaga um pensamento
conservador, administrativo, que mistura desenvolvimento com opressão de certos grupos sociais. O
problema passa, portanto, pela qualidade do que se divulga e se ensina. Analisando este papel da
mídia, Adorno diz que “a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e
idiotiza as pessoas ao mesmo tempo.” (ADORNO: 1985, p 15)
Em sua abordagem a respeito da educação, num texto intitulado O conflito das faculdades
(2008), Kant contrapõe a crítica característica do curso de Filosofia, ao perfil reprodutor de
conhecimento estabelecido das formações em Medicina, Direito e Religião. Esta análise a respeito
do ensino no século XVIII nos oferece um parâmetro para pensar o ensino contemporâneo, e sua
vertente hegemônica tecnicista, administrativa, que promete às pessoas um futuro promissor de
realização econômica a partir do exercício do trabalho qualificado. Essa visão abstrai as misérias e
mazelas históricas, e se concentra sobre o desenvolvimento de uma vocação egoísta. Segundo Kant,
há um tipo de preparação para o exercício privado (ser médico, ser advogado ou juiz, ser padre).
Mas há outro tipo de aprendizado para o exercício público (ser filósofo, promover o debate e a
discussão acadêmica, crítica). O jornalismo tem lugar para ambas vertentes. Melhor dizendo, uma
linha teórica dele, a administrativa, diz sem dizer que o jornalismo deve reproduzir a sociedade que
está aí, como se ele fosse simplesmente uma técnica. O jornalista deve encontrar um emprego e se
realizar pessoalmente. Outra, das teorias transformadoras, defende que as teorias devem se orientar
segundo a luta pela transformação. Um complicador desta transformação decorre de que a
sociedade se molda hegemonicamente pela outra linhagem, a administrativa, predominantemente
tecnicista.
Percebe-se que o problema se complexificou desde os tempos de Kant porque as teorias
administrativas também são promotoras de mudança. Só que sua mudança tem como propósito o
jogo das cadeiras da distribuição de pobreza e riqueza, e a radicalização da natureza da própria
sociedade desigual. Um mundo cada vez mais administrado como dizia Adorno. O paradoxo deste
suposto avanço técnico instrumental fica evidente quando se analisam as propostas de avanço destas
teorias em relação ao problema de base que é o modelo de individualidade e de tomada de decisão.
Os avanços propostos pela ciência tradicional são aprimoramentos dos próprios dispositivos de
controle das pessoas que vimos remontar às técnicas de heterodirecionamento da pastoral.
Heterodirecionamento continua sendo, portanto, o termo fundamental para entender uma
situação em que o agir não se conforma ao que o próprio sujeito da ação pensa, mas se conforma,

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isto sim, com o pensamento de um outro, um diretor do pensamento, que determina o que aquele
sujeito deve fazer.
Porém há que se considerar também um novo heterodirecionamento que se passa por
autodirecionamento porque propaga valores cínicos e egoístas, valores que estimulam o sujeito a
pretender acumular conhecimento que permitam a ele ser um dos membros do grupo de poder da
sociedade. A luta pelo autodirecionamento gerou um efeito colateral indesejado, o alienado. E na
superfície de uma luta na base da pirâmide social, não deixa perceber o desnível social em que se
encontra o topo que, por mais que um trabalhador se esforce, nunca conseguirá alcançar.
A relevância deste debate para o jornalismo é imensa porque a comunicação social se
transformou no dispositivo contemporâneo de heterodirecionamento, que melhor molda esta ilusão
de autodirecionamento egoísta. Ela ocupou o lugar do conselho, da confissão, colocando em seu
lugar justamente o que temos denominado administração das massas. Mas criou uma carapuça que
disfarça seu papel de heterodirecionamento por se fazer passar por estimuladora da acumulação e do
consumo. O que ela exige é fidelidade. Para dar um exemplo, a imprensa no período da pandemia
de Covid (2020-2023) teve um papel importante, ao fazer circularem informações sobre cuidados
sanitários como lavar as mãos e usar máscaras. Mas ao persistir dois anos dizendo diariamente que
isso deve ser feito, a imprensa trata todos como uma massa de gente desqualificada beirando a
imbecilidade. Paira por trás dessa postura a impressão de que, se a imprensa parasse de orientar a
lavar a mão, as pessoas parariam de fazê-lo. Já vimos que isso está associado ao papel que a
imprensa administrativa se coloca de heterodirecionar o comportamento das massas. Isso afronta o
autodirecionamento, que é quando o próprio indivíduo se conduz racionalmente a um novo hábito
de modo autônomo e emancipado. Liberdade. Decidir lavar as mãos. O pensamento administrativo
conclui que não fosse sua insistência diária em divulgar o hábito de higiene, todo mundo pararia de
se lavar. Por isso é melhor mandar fazer do que sofrer consequências sanitárias catastróficas. Tirar a
liberdade é uma benesse porque o sujeito de massa livre não sabe agir direito.
Mas percebemos rapidamente as contradições desta perspectiva. A mídia noticiou com
estrondo o fim da obrigatoriedade de uso de máscaras em certos ambientes, medida de exceção
adotada por agentes públicos em diversos níveis entre 2020 e 2022, e finalmente abolida. A partir de
então, não sendo mais obrigatório, a mídia passa a se disfarçar de promotora do
autodirecionamento, ou até mesmo de desobediência. A mídia passou a anunciar à exaustão, que
não precisávamos mais nos submeter a usar máscaras. Um ato de libertação. Porém, neste novo
contexto, alguém resolver por conta própria continuar usando a máscara de proteção passa a ser
vista como heterodirecionamento contra o qual a mídia propaga a rebeldia, quando, na verdade, o
heterodirecionamento é a falsa sensação de libertação propagada pela mídia. O espírito de época da
nova heterodeterminação desemboca num clima em que parece iminente alguém resolver questionar
quem está usando a máscara pelo fato de que já não é mais obrigatório seu uso. Perguntar a ele se
está desinformado, se não assiste os jornais, se não sabe que já não é obrigatório mais usar. O que
está em jogo não é mais se o uso da máscara constitui uma decisão pessoal autônoma, mas sim qual
é o parâmetro divulgado pela mídia. É como se o próprio presente histórico das crenças e hábitos
sociais não fosse escrito pelas pessoas que agem no mundo, mas sim pela história que a mídia
escreve. Uma sociedade do espetáculo como veremos no pensamento de Guy Debord. Um sujeito
emancipado, autodirigido, pode concluir que ainda não vale a pena correr o risco de abolir o uso de
máscara. Mas, na perspectiva de uma teoria administrativa que pretende controlar os
comportamentos das massas o tempo todo, aquele é um sujeito desobediente, um ponto fora da
curva gerada pelas pesquisas de opinião, porque a mídia agora está repetindo diariamente que não é
mais necessário o uso do acessório de proteção.
O que ocorre na prática é que há uma classe social que se deu o direito da condução da
história em nome de todos porque é ela quem determina o que será divulgado pela mídia. Numa
sociedade em que os jornais são empresas particulares, são seus donos que controlam este
direcionamento. Para não dar a perceber o jogo, dizem que o trabalho jornalístico é objetivo,

82
imparcial, comprometido com a coletividade. Poderia ser, porém o que se vê não é isso. Assim, este
projeto constitui um blefe. “Os próprios dominadores não acreditam em nenhuma necessidade
objetiva, mesmo que às vezes deem esse nome a suas maquinações. Eles se arvoram em
engenheiros da história universal. Entretanto, os dominados [não se dão conta disso e] aceitam
como necessidade intangível o processo que, a cada decreto elevando o nível de vida, aumenta o
grau de sua impotência.” (ADORNO: 1985, p. 49) Perceba-se que, neste contexto, que os
comportamentos autônomos afrontam os dispositivos administrativos, dentre os quais está a mídia.
Agora que uma parte mínima do tempo de trabalho à disposição dos donos da
sociedade é suficiente para assegurar a subsistência daqueles que ainda se fazem
necessários para o manejo das máquinas, o resto supérfluo, a massa imensa da
população, é adestrada como uma guarda suplementar do sistema, a serviço de seus
planos grandiosos para o presente e o futuro. Eles são sustentados como um
exército dos desempregados. Rebaixados ao nível de simples objetos do sistema
administrativo, que preforma todos os setores da vida moderna, inclusive a
linguagem e a percepção, sua degradação reflete para eles a necessidade objetiva
contra a qual se creem impotentes (ADORNO: 1985, p. 49).
Este pensamento planificador rege teorias como a hipodérmica, pesquisas de campo e
experimental, o agenda-setting, que presumem a mídia como determinadora do comportamento ou
da pauta de preocupações das massas. Oferecem instrumentos para a mídia controlar essa suposta
escritura da história social. Se o tema do uso obrigatório de máscaras sumiu da agenda, as pessoas
deveriam parar de pensar no tema e, logo, se esquecer de usar. Na ótica da sociedade administrada,
“seria digna de escárnio a sociedade que conseguisse transformar os homens em indivíduos. A
horda, cujo nome, sem dúvida, está presente na organização da Juventude hitlerista, não é nenhuma
recaída na antiga barbárie, mas o triunfo da igualdade repressiva, a realização pelos iguais da
igualdade do direito à injustiça” (ADORNO: 1985, p. 27).
Para tornar clara a pirueta teórica ocorrida com o Iluminismo, o primeiro passo foi entender
de onde vem esta tradição de obediência cega, da pastoral cristã. O segundo discutir que surge com
o Iluminismo uma proposta de autodirecionamento que promove a desobediência à tradição, e que
foi positiva num primeiro momento. Mas ainda é necessário um terceiro, entender que o jogo entre
obediência, desobediência e construção da história se tornou um fenômeno tão complexo que deu
margem ao surgimento de teorias científicas baseadas nos princípios do Iluminismo de dois ramos,
um dos quais, sua vertente liberal, quer aperfeiçoar os mecanismos de controle e obediência
racionais, os fazendo se passar por liberdade e emancipação. Contra esta armadilha se posicionam
teorias que propõem caminhos de transformação efetiva. Descobrir como o jornalismo pode
denunciar estas artimanhas e transformar esta relação de heteronomia disfarçada em autonomia
egoísta, é o que será o objetivo das teorias transformadoras.
Por fim, surge uma dificuldade que se coloca para cumprir este objetivo. Entender como
romper com esse círculo vicioso de inversões sucessivas criado por um desenvolvimentismo
utilitarista e promotor de desigualdade sob o manto da confusão. Alguém poderia dizer que o
jornalismo deve só dizer alguns dias que é para lavar a mão e depois suspender a mensagem,
aguardando, diferentemente do agenda-setting, que as pessoas continuassem lavando as mãos por
decisão própria. Mas não se trata disso. Se trata de outra coisa bem mais profunda e difícil. Ou seja,
o fato de que a mídia continua transmitindo a mensagem, denuncia que a inspiração da mídia é uma
teoria administrativa que trata todo mundo como se fosse incapaz de conduzir o próprio
comportamento, mas para criar um outro jornalismo que supere isso não basta falar apenas três dias
sobre a prevenção e parar de falar. Esse é o problema a ser enfrentado pelas teorias críticas. Como o
jornalismo pode contribuir para que os indivíduos alcancem seu real autodirecionamento numa
sociedade justa, conduzidos pelas análises racionais, e que não se deixem seduzir pelo encanto de
usar este suposto autodirecionamento individualista que representa uma nova forma de menoridade.
Estabelecida num bom nível de complexidade uma apresentação ampla do problema, as
teorias transformadoras vão dar sequência à nossa exposição, apresentando em que aspectos cada

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uma delas foi capaz de trazer contribuições para superar a insuficiência da perspectiva Iluminista
dada a ausência de reflexão a respeito da dimensão social, histórica e concreta do problema. Todas
elas compartilham do mérito teórico de não procurar soluções unicamente a partir de estratégias de
influência de sujeitos abstratos, mas sim enveredando pelo caminho que o Iluminismo não foi capaz
de seguir porque não incorporou de modo mais concreto e histórico a dimensão social do problema
tendo ficado congelado como se fosse um mito arcaico agarrado ao problema lógico ou utilitarista
abstrato.

84
UNIDADE 5

5.1 – As teorias transformadoras23 do jornalismo

Num capítulo intitulado Indústria cultural, ideologia e poder, Mattelart é muito preciso em
descrever a diferença entre as teorias administrativas e as teorias transformadoras do jornalismo.
A sociologia funcionalista concebia mídias, novas ferramentas da democracia
moderna, como mecanismos decisivos de regulação da sociedade e, nesse contexto,
só podeira advogar uma teoria voltada para a reprodução dos valores do sistema
social, do estado de coisas existente. Escolas de pensamento crítico irão se
interrogar sobre as consequências do desenvolvimento desses novos meios de
produção e transmissão cultural, recusando-se a tomar como evidente a ideia de
que, dessas inovações técnicas, a democracia sai necessariamente fortalecida
(MATTELART: 2007, p. 73).
Nesse capítulo ele justamente elenca três escolas que são o que estamos chamando de teorias
transformadoras do jornalismo em nosso trabalho, a Escola de Frankfurt propriamente dita, que
também é conhecida pelo nome de teoria crítica, o movimento estruturalista, e os estudos culturais.

5.2 – Pensamento alemão

O primeiro bloco de teorias do jornalismo que analisamos a partir de agora é a Escola de


Frankfurt. Seus integrantes são marxistas e estudiosos do marxismo, mas, também, boa parte deles
são estudiosos de Hegel. Vamos ver inicialmente os passos que ligam a Escola de Frankfurt com
essa matriz filosófica que foi sua orientação.
No caminho entre Hegel e Marx, há um primeiro passo teórico dado por Ludwig Feuerbach,
que tem um papel importante nessa apropriação posterior dos estudos críticos. A discussão de Hegel
a respeito de moral e ética era muito centrada nos problemas da filosofia da Religião, e das
transformações éticas que ocorreram ao longo da história da religião. Feuerbach laiciza o
pensamento de Hegel. No lugar onde Hegel colocava a religião, Feuerbach vai dizer que temos de
entender que a sociedade antiga colocou a religião nesse lugar, mas que é preciso entender melhor o
que isso significa.
Ele promove de uma maneira muito clara a inversão do pensamento de Hegel na medida em
que ele diz que a religião é uma criação humana. A religião é um episódio da história antropológica.
O homem num certo estágio de seu desenvolvimento intelectual e de suas faculdades de juízo
resolveu criar a religião. Portanto, Deus foi criado pelo homem como um mecanismo, um artifício
que serve entre outras coisas justamente para o controle dos comportamentos, do controle da
moralidade, do controle da ética. A religião coloca certos parâmetros para que a sociedade seja
possível. Ela tem um papel na construção da sociedade, mas ela é uma construção humana, que
deve existir, que Moisés deveria num certo momento fixar os dez mandamentos porque, senão, a
essência humana iria se perder.
Essa tese de Feuerbach promove uma inversão do pensamento hegeliano pois, por mais que
o Deus de Hegel não fosse um deus ortodoxo de qualquer religião oficial, Hegel está sempre
apresentando essa figura de Deus e da religião, para a qual ele reservava um papel importante na
própria constituição do Estado social. Para Hegel Deus é o espírito. E a Fenomenologia do Espírito

23 Apesar de já termos explicitado esta visão na introdução, achamos oportuno reforçar aqui a opção pelo termo
teorias transformadoras do jornalismo em lugar de teorias críticas do jornalismo para as contrapor às teorias
administrativas. O motivo, já o dissemos, foi evitar a ambiguidade entre o que constitui um bloco heterogêneo
(Escola de Frankfurt, Estruturalismo e Estudos Culturais) com o que se costuma chamar, em sentido mais estrito,
Teoria Crítica, a Escola de Frankfurt. Mas não pretendemos negar a pertinência de uso do termo crítica, talvez na
forma “teoria do jornalismo crítico”, solução que também nos ocorreu.

85
nada mais é do que a obra que demonstra como Deus se materializa na terra, porque uma das
maneiras de Deus se materializar na terra em sua manifestação mais elevada é o próprio homem.
Feuerbach vai apresentar esta teoria numa perspectiva laica. Ele vai valorizar tudo o que
Hegel falou, valorizar sua dialética, sua integração da subjetividade com a história, sua síntese do
Iluminismo com o pensamento arcaico. Mas Feuerbach acha que é preciso fazer um aprimoramento
naquele pensamento, qual seja, tirar Deus do sistema e colocar o homem na parte que lhe cabe.
Na religião o homem objetiva a sua própria essência secreta. O que deve ser
demonstrado é então que esta oposição, que esta cisão entre Deus e homem, com a
qual se inicia a religião, é uma cisão do homem com a sua própria essência… Esta
essência nada mais é do que a inteligência, a razão ou o entendimento. Deus
pensado como o externo do homem, como o não-humano, isto é, um ser não
humano e pessoal, é a essência objetivada da inteligência. A essência divina pura,
perfeita e imaculada é a autoconsciência da inteligência, a consciência que a
inteligência ou a razão têm da sua própria perfeição. (FEUERBACH, 2007, p. 61)
Deus não criou o homem a sua imagem e semelhança. O homem é quem criou Deus para
representar sua parte boa, ideal, em sua imagem e semelhança. A religião é um fato antropológico e
histórico. Feuerbach representa o que se denominou hegelianismo de esquerda, criando uma família
de teorias críticas que vai se aproveitar de toda a riqueza da filosofia de Hegel, purificado desse
Deus que ele introjetou em seu sistema. Jesus nada mais é que um homem muito bacana, um cara
muito exemplar, a ponto de que exista um livro que conte a história dele, que mostre como ele foi
capaz de criar uma síntese que se apoia na religião de seu tempo, do velho testamento, mas que a
reformula numa versão histórica mais aprimorada no novo testamento, superando os limites do
judaísmo. O homem é um Deus revelado. No fundo o que existe é só o homem, e projetamos suas
ações e pensamento nessas figuras que de alguma maneira representam seu lado mau e seu lado
bom, na ficção da religião. Mas só o homem existe.
Orientado por essa perspectiva laica de Feuerbach, o grande seguidor da tradição dialética
histórica vai ser Marx. Ele vai pegar essa ideia de que só existem como sínteses dialéticas aquilo
que o Iluminismo via como conceitos do entendimento cindidos, por exemplo, homem e sociedade,
cultura e natureza, liberdade e necessidade. Portanto só há homem porque há sociedade. E só há
sociedade porque existe o homem. Só existe cultura porque há natureza e assim por diante. E vai
colocar esse homem que tem em si essa matriz de pensamento crítico para pensar algumas coisas
dessa sociedade de seu tempo.
Marx aproveita de Hegel e Feuerbach um instrumental teórico capaz de explicar como se
dão as relações do homem com a sociedade, para que se realizem estudos críticos da sociedade e
dos mecanismos que fazem com que o homem aja de uma certa maneira. Mas num período já
avançado do século XIX, as preocupações de Marx não estarão mais centradas nas obrigações que a
igreja nos coloca, mas nas obrigações que a sociedade capitalista nos coloca e que são novas
obrigações, é uma nova tradição. Já não se orienta pelo preceito bíblico de que é necessário
trabalhar para ganhar o pão de cada dia com o suor do rosto para pagar o pecado original, mas
trabalhar porque precisamos de salário para nos mantermos vivos comprando alimentos. É uma
nova perspectiva de obrigações que vem de fora, ou seja, é um novo tipo de heterodirecionamento
não mais representado pelos ditames da religião, mas um heterodirecionamento determinado pelas
condições objetivas concretas das relações sociais de produção, dos meios de produção no sistema
da economia.
Marx vai dizer que esse mesmo papel que talvez tenha sido hegemonicamente exercido pela
religião, a partir da segunda metade do século XIX passou a ser da economia. Dependendo da
maneira como eu me relacione com essa heterodireção eu vou morar na favela ou vou morar num
apartamento em Copacabana. Dependendo dessa relação vou passar fome ou vou ter uma boa
alimentação em casa. Trata-se de um mecanismo de obrigação muito mais físico e concreto e muito
mais impositivo do que ameaças de perspectivas futuras como nos enviar para o inferno. É uma
obrigação do mundo físico, da eticidade social concreta coletiva.

86
Hegel dizia que o homem só se torna efetivo no mundo por intermédio do ato. Marx vai
dizer que o ato fundamental do ser humano é o ato econômico, é o trabalho. É o ato que faz a
economia e a sociedade sobreviver. Existe um trabalho que vai produzir tudo o que essa sociedade
vai consumir. E é nessa perspectiva que cada homem vai ter uma relação com essa sociedade, num
sistema em que essa relação pode se dar de duas maneiras na sociedade capitalista. Ou esse homem
se relaciona com a sociedade porque ele detém os meios de produção, e ele é um capitalista. Ou ele
não detém os meios de produção e terá portanto de vender a sua força de trabalho para alguém que
os detém, e ele vai ficar nas mãos daquele. Ou seja, não são condições iguais, não são condições
justas. Numa sociedade que depende da realização econômica para sua manutenção em termos de
vida e de sobrevivência, há pessoas que têm os instrumentos para gerar essa riqueza em suas
próprias mãos, e pessoas que são destituídas disso que Marx vai chamar de meios de produção.
Como elas são destituídas dos meios de produção, elas têm de vender sua força de trabalho
de qualquer jeito senão elas vão morrer de fome. E aí surge nas mãos do capitalista a oportunidade
de não pagar o valor inteiro que o trabalho vale, mas sim de pagar muito menos, e se apropriar da
riqueza gerada pelo outro naquilo que Marx vai chamar de mais-valia.
Para que essa apropriação do trabalho alheio não seja notada, Marx diz que houve uma
fetichização da mercadoria. Como em geral as pessoas não têm o exercício crítico, não conhecem o
modo de funcionamento da economia, não sabem da divisão dos papéis nas classes sociais, elas
acham que na verdade a mercadoria vale o que vale por ela, por meio da satisfação que proporciona
a quem a usa, do prazer de quem a consome. Marx vai comprovar teoricamente que ela vale o que
vale porque ela é a soma do que há nela de matéria prima junto com o valor que foi agregado a ela
pelo trabalho. No fundo esta descoberta já coube a outros autores da Economia Política como Adam
Smith e Ricardo. Porém Marx coloca o foco no fato de que esse valor incorporado à mercadoria
pelo trabalho é apropriado pelo empregador que paga apenas uma parcela muito menor do que ele
vale ao trabalhador. O fato de não vermos o valor do trabalho ali é o que ele chamou de
fetichização, que teve inspiração no termo fetiche das culturas indígenas, palavra portuguesa
aparentada com feitiço empregada originalmente para estigmatizar práticas religiosas dos povos
dominados no colonialismo. Portanto o capitalismo promove a magia de fazer desaparecer o
trabalho e fazer aparecer o capital.
A relação das pessoas com essa magia é a alienação, o desconhecimento. Seu objetivo é
manter os trabalhadores em condições sub-humanas, condições semelhantes ao trabalho escravo
porque o trabalhador não tem para onde correr. Portanto a luta contra o Capitalismo é uma luta pela
liberdade. O trabalhador não é livre. Ou ele se submete à relação de trabalho ou morre de fome. A
análise de Marx é uma denúncia do atentado contra a liberdade de grandes parcelas da população
feita a partir de um material histórico muito privilegiado que são as relações de trabalho na indústria
inglesa, que são as mais brutais possíveis, ocupando mulheres grávidas, crianças em suas linhas de
produção, trabalhando 14 horas, 16 horas por dia. Ele denuncia o grau de perversidade dessas
relações capitalistas.
Hegel dizia que o perigo da inação é transformar o indivíduo humano sem energia em objeto
da história, sua vítima. Esse homem que não age é culpado de seu próprio sofrimento, o que Hegel
chamava de consciência infeliz, porque não se mostra à altura do que exige seu momento histórico.
Seu refúgio é a situação privada circunscrita. Esse egoísta prefere a felicidade imediata à grandeza.
Mas essa felicidade imediata é o que há de mais finito. Hegel morreu há 250 anos, sua felicidade
evaporou com ele, e a de qualquer um vai seguir o mesmo caminho. Tudo o que temos como
indivíduo comum está fadado ao desaparecimento. O indivíduo comum está preso a suas pequenas
circunstâncias, isolando-se assim do espírito do mundo e dos processos históricos. A história passa
por cima dele em marcha, ou seja, a eticidade passa por cima da moral subjetiva, que se apresenta
como um mero nada passageiro. Portanto, o indivíduo que faz a história realmente avançar pode ser
tanto moral quanto amoral. Não é isso que importa. Para fazer avançar a história é preciso entender
a situação histórica, elevar-se para além do bem e do mal, para enxergar, ou permanecer cego e ser

87
vítima dos jogos da astúcia da razão. Aqueles que não conseguem ler os sinais dos tempos são os
fracos. Hegel diz que a tragédia da História é em grande parte a tragédia da estupidez humana.
Herdeiros diretos do pensamento de Hegel e Marx com aplicações para o jornalismo são os
autores da Escola de Frankfurt. Mattelart explica que ela é uma das escolas que não se conforma em
colocar o jornalismo como uma peça de manutenção do sistema como está e propõe que as teorias
do jornalismo deveriam promover uma crítica do sistema em que o jornalismo está inserido.
Ela surge no período da república de Weimar na Alemanha, por uma contingência histórica.
Um judeu alemão radicado na Argentina e muito rico chamado Hermann Weil atende ao pedido de
seu filho de criar uma escola de estudos sociológicos marxistas em Frankfurt, na Alemanha.
Portanto ela sempre foi bem resolvida financeiramente, o que garantia sua liberdade para realizar
estudos marxistas. Com a tomada de poder pelo nazismo, diversos de seus pesquisadores passam a
ser perseguidos e a sede se transfere para a universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, onde
alguns dos seus participantes vão atuar, entre eles Adorno. Ele tenta fazer uma espécie de convênio
de colaboração com pesquisadores da comunicação americanos para tentar se integrar no novo
continente que o acolheu, o que resultou num convênio com Lazzarsfeld para o estudo dos
programas de rádio. Mas os resultados iam caminhando numa perspectiva muito crítica da própria
indústria cultural a ponto de inviabilizar a colaboração. E terminou por desembocar em trabalhos
independentes, entre eles, o livro Dialética do Esclarecimento, que Theodor Adorno escreveu com
Max Horkheimer.
Adorno desenvolve um segmento na obra intitulado Indústria cultural, onde “mostra a
regressão do esclarecimento à ideologia, que encontra no cinema e no rádio sua expressão mais
influente” (ADORNO: 1985, p. 17). É evidente a importância deste conceito, porém Mattelart diz
que o conceito de indústria cultural resulta numa condenação indiferenciadora. Daí a teoria de
Adorno condenar expressões musicais como o jazz, que, num certo sentido, promovia uma tentativa
de incorporação da cultura nesses meios técnicos industriais que vão tomando conta da
comunicação social. Para Adorno, “a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas
desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo” (ADORNO, 1985, p. 15) Mattelart diz também que
a crítica promovida por Adorno a respeito do papel que a cultura começa a ter nessa nova
configuração da indústria cultural explicita num esvaziamento do poder crítico da cultura quando
uma obra de Bethoven é levada para a rádio e disseminada indiscriminadamente, é justamente o que
dá força ao nascimento do termo que surge num livro de Horkheimer (1967), que é o conceito de
razão instrumental, ou seja, de uma racionalidade que mantém apenas algumas marcas originais da
racionalidade plena mas é uma racionalidade instrumentalizada por uma classe social em detrimento
de outra classe social. Nesse tipo de uso, ela quase que ganha uma espécie de autonomia, de
independência, particularmente quando essa razão aparece na forma da técnica, que ganharia vida
própria em relação a valores importantes da racionalidade histórica iluminista, e teria sido
sequestrada justamente para a manutenção de mazelas do capitalismo. Aponta no sentido de que a
técnica também está presente quando ela se materializa na forma de produtos cinematográficos, do
jornalismo, ou da indústria e da indústria cultural. Essa razão se torna autônoma e foge ao controle
do homem, que faz da técnica uma espécie de inteligência independente que passa a realizar coisas
que vão contra os próprios interesses da humanidade, ou, pelo menos, da maioria dos seres
humanos. “O esclarecimento acaba por reverter à mitologia” (ADORNO: 1985, p. 15)
Essa razão instrumental ganhar uma espécie de autonomia porque ela se mostra desligada do
próprio bem-estar do homem que a princípio seria o principal palco de desenvolvimento da razão
com vistas a seu bem-estar. A autonomia faz a técnica se voltar contra a própria humanidade, ou,
pelo menos, contra grande parte dos seres humanos em benefício de poucos. Essa razão
instrumental é a parceira dessa manifestação falsa de cultura, da indústria cultural, que aparenta ser
um instrumento de informação das pessoas, de formação das pessoas, mas que não passa de
aparência porque no fundo aquilo não está fazendo ninguém crescer. Tudo se torna aparência. O
fato de alguém comprar duzentos livros e colocar numa estante no fundo de uma transmissão de

88
uma live já seria prova suficiente de sabedoria. A pessoa faz uma faculdade mas não assistia aula,
não prestava atenção em nada, queria simplesmente sobreviver à prova dos desafios que se colocam
para ele se formar e isso é tudo o que a pessoa quer retirar dali. Um formalismo abstrato muito
característico do momento contemporâneo. Isso resulta num esvaziamento do papel formador e
educador da cultura que é característico do momento contemporâneo. Ser educado hoje em dia se
resume a ter um diploma.
Mattelart aponta que Walter Benjamin era outro autor da Escola de Frankfurt que trata o
problema da técnica de uma maneira distinta em relação a Horkheimer e Adorno, porque ele
identifica uma possível colaboração entre técnica e cultura de verdade. Ele tem um histórico
bastante diferente dos outros dois autores. Ele não era um membro efetivo da Escola de Frankfurt,
era simplesmente um bolsista, um colaborador. Ele enfrentou problemas para sua sobrevivência,
tendo dependido ao longo da vida de colaborações de parentes e amigos, e contava com aportes
esporádicos de dinheiro do Instituto de Pesquisas de Frankfurt. Essa relação criou um tipo de
dependência em relação ao Instituto, o que aparece muitas vezes em troca de cartas ou desabafos, de
que era exigido dele que colocasse, de modo mais marcante, ideias marxistas em seus escritos e
menos teologia judaica. Sendo que Benjamin encarnava justamente uma síntese de religião com
marxismo, o que a presença de uma terminologia que incorpora termos como aura já deixa entrever.
Veremos adiante sua obra em mais detalhes. Ele tinha um pé na religiosidade muito mais sólido que
os demais integrantes da Escola de Frankfurt. Benjamin volta em certo momento de seu trabalho
para o desenvolvimento de uma hipótese de exploração de um tipo de materialismo histórico a
partir da análise de Paris do século XIX, que vai resultar num livro imenso e inacabado a respeito
das Passagens. Em 1940, Benjamin está fugindo com um grupo e suicida-se porque o grupo foi
impedido de atravessar a fronteira em Port Bou. Pela mesma rota, conseguirá passar tempo depois
Siegfried Kracauer, seu amigo e pensador que tem afinidades com a Escola. E no mesmo círculo
crítico próximo aos frankfurtianos se pode colocar Rudolf Arnheim que colaborava com a
Weltbühne, jornal cultural de esquerda. Também era amigo de Benjamin, Bertold Brecht.
Outro teórico da Escola citado por Mattelart é Herbert Marcuse, que é um grande estudioso
de Hegel também, e dedica ao estudo do filósofo o livro Razão e Revolução. Ele obteria titulação
com uma tese sobre a ontologia de Hegel, porém seu orientador, o nazista Martin Heidegger,
desvinculou-se do trabalho. Ele encontrou novo orientador e defendeu sua tese. Habermas chamou
Marcuse de “o Heidegger-Marxista”. Um dos conceitos mais disseminados dele é o de homem
unidimensional, com o qual ele tenta representar um momento histórico em que todas as pessoas
componentes de uma massa são dirigidos a partir de fora, um amplo heterodirecionamento como
técnica de governo, porque a condição das massas as orienta em um sentido único, quase que um
sentido totalitário. Para ele, “superestimamos grandemente o poder de doutrinação dos meios de
informação de que as pessoas sentiriam e satisfariam por si as necessidades que lhes são agora
impostas” (MARCUSE: 1973, p. 29).
A crítica mais atual pondera não podermos compartilhar totalmente com a crença
marcusiana de que “as pessoas são receptáculos precondicionados, ou que sofram um aplainamento
dos contrastes totalmente eficaz no imaginário”, porém, destaca que “este aplainamento é a
tendência dominante na indústria cultura e sua eficácia, no que pese não ser absoluta, é
suficientemente grande para merecer nossa atenção e justificar novos desdobramentos da
perspectiva crítica frankfurtiana” (SCHNEIDER: 2015, p. 95).
Mattelart cita ainda um autor de outra fase posterior da escola, Jurgen Habermas, que
escreveu o livro sobre o surgimento da esfera pública sobre o qual já tratamos anteriormente. Ele
tem também uma teoria original a respeito do agir comunicativo. Considera que a ação e interação
não mais são vistas unicamente na perspectiva de seus efeitos, mas devem ser analisadas como
associadas a tramas de trocas simbólicas e contextos linguísticos. Distingue então um agir
estratégico que é instrumental, ao qual se contrapõem outros modos de ação, a ação objetiva e
cognitiva que se impõe dizer a verdade, a ação intersubjetiva que via a correção moral da ação, a

89
ação expressiva que supõe a sinceridade. Trataremos com um pouco mais de detalhe das obras de
alguns frankfurtianos e destes seus colegas e conterrâneos que também apresentam contribuições na
direção de construção de teorias transformadoras do jornalismo.

5.2.1 – Adorno

Adorno foi grande estudioso de Hegel, tendo feito três palestras a respeito do filósofo
editadas na forma de livro. Mas para a teoria do jornalismo sua principal contribuição foi o livro
Dialética do esclarecimento, de 1947, escrito com Horkheimer, onde aplica os fundamentos do
marxismo para entender a comunicação social moderna. Nesse sentido, os autores desmascaram que
aquilo que deveria ser um instrumento do projeto de transformação iluminista e de esclarecimento
das pessoas entra numa relação dialética interna sem contato com o presente histórico e acaba por
transformar o jornalismo no mesmo mecanismo que opera no funcionamento de uma indústria de
alienação.
Do mesmo jeito que Marx dizia que o trabalhador numa relação com a indústria é tratado de
tal modo que seu valor some magicamente, e que surge a impressão fetichizada de que só o produto
tem valor, do mesmo jeito o jornalista vai ser um trabalhador dentro de uma indústria cultural sem
ter noção do valor que ele gera ao produzir aquele veículo. Uma empresa é capaz de colocar
jornalistas para trabalhar e faturar com a venda do resultado do trabalho, a produção de notícia. A
venda da notícia se dá diretamente com a compra de um exemplar, por exemplo, de uma revista,
mas indiretamente quando a indústria cultural faz a promoção de uma série de valores do
consumismo que levam as massas a comprar produtos, a financiar seus sonhos pelo sistema
bancário, trocar de carro, comprar uma casa, valores que fazem funcionar a contento essa grande
engrenagem da qual o jornalismo passa a ser uma peça, uma função, que é a função de
administração das massas, a função que é evidenciada pelo pensamento das teorias administrativas.
Portanto, voltamos agora ao ponto inicial de nossa exposição, quando apontamos para a origem do
termo teoria administrativa. Esse termo nasce de uma crítica que se volta contra esse bloco de
teorias do jornalismo visto até agora, que coloca o jornalismo no lugar de uma peça que faz a
sociedade capitalista funcionar bem.
São uma séria de valores que a indústria cultural está passando e que fazem com que esse
adjetivo cultural seja uma espécie de ironia. O papel da cultura nunca foi ganhar dinheiro. Mas de
repente vira. Uma sociedade em que o jornalismo está inserido dentro de uma perspectiva
econômica que visa lucro e que se alimenta desses objetivos. Para cumprir seu papel de modo
consistente, o próprio jornalismo tem de entrar no jogo da fetichização capitalista, contribuindo com
uma alienação do pensamento crítico, contribuindo para que essa alienação exista, para que as
pessoas não entendam o valor que elas agregam aos produtos.
É por isso que surgem matérias que elucidam boas atitudes do governo quando ele passa a
permitir reduzir os salários e reduzir o tempo de trabalho nas empresas para manter empregos.
Aparentemente é contraditório dizer que é uma coisa boa reduzirem o salário. E quem parar para
pensar realmente vai perceber que tem alguma coisa errada nessa lógica. Ela diz que a medida é boa
porque seria pior a pessoa ser demitida. Um sujeito trancafiado dentro de sua individualidade
egoísta pode realmente pensar assim. Mas alguém que percebe qual é a movimentação universal do
capital e das relações sociais vai perceber que demitir um empregado é pior no fundo para a
empresa, porque assim desaparece o dinheiro que o próprio empregado injeta no mercado para que
ele funcione e gere lucros aos empresários, e as demissões são motivos para que a economia
definitivamente trave por falta de recursos para circulação de mercadorias. Portanto, manter pessoas
empregadas é uma medida boa para o capitalismo porque elas continuarão consumindo por menor
que seja seu poder de compra. Está sendo omitido o fato de que dar emprego não é um ato de
generosidade, é um ato de integração da população num projeto generalizado de exploração. Se
houvesse alguma ordem de generosidade envolvida nesse ato, em vez de baixar o salário, a empresa

90
poderia reduzir suas margens de lucro. O dado trimestral dos balanços bancários em 2022, apontam
para lucros da ordem de 30 bilhões de reais trimestrais, ou seja 10 bilhões de lucro mensal, para
cada um dos principais órgãos do sistema financeiro. Enquanto os dados a respeito da pobreza no
país apontam nesse mesmo período para 33 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza,
passando fome.
São criadas justificativas por que a indústria não pode ganhar menos, de que a indústria não
pode se descapitalizar, que precisa fazer investimentos em tecnologias mais novas, que precisa
ampliar sua produção, ou seja, justificativas para que o sacrifício se faça sempre do lado de uma das
duas classes sociais, e que a mídia reproduz fielmente em suas reportagens. São justificativas para
uma movimentação no sentido de cada vez mais pagar menos para o trabalhador, até o ponto em
que ele se sinta absolutamente obrigado a trabalhar por qualquer coisa para não morrer de fome.
É esse tipo de prestação de serviço a favor do projeto de alienação que vai colocar o
jornalismo em seu momento empresarial. Esse será o objeto da crítica de Adorno e Horkheimer, ou
seja, de uma teoria crítica que vai elucidar esse mecanismo de dominação. As premissas colocadas
pelas teorias administrativas, de que o indivíduo faz parte de uma massa amorfa, que o homem na
situação de massa não pensa, tudo isso serve como justificativa para que não se tente justamente
defender como um dos papéis do jornalismo fazer com que os indivíduos pensem, contribuir para
que eles saiam desse estado de letargia, que eles percebam a necessidade de se organizar em
movimentos de classe para tentar combater essa dominação do capital.
Por outro lado, essa indústria cultural tem um papel fundamental num projeto perverso de
destruição da própria cultura porque ela sempre foi um elemento de direcionamento dos sujeitos a
um pensamento crítico, ao exercício da racionalidade analítica, do entendimento pleno das coisas. É
papel da cultura fazer uma certa obra de arte, frente à qual as pessoas não vão entender nada, ou vão
fazer uma crítica destrutiva, mas que, também, poderá ser motivo para que se entenda o que aquilo
quer dizer, elevando a capacidade intelectual e analítica do público. Exercitando a crítica cultural, o
sujeito está treinando a mesma ordem de racionalidade analítica que, depois, poderá ser o
mecanismo da tomada de atitudes éticas e políticas. Portanto a cultura ajuda o sujeito a desenvolver
seus mecanismos de ajuizamento que são os mesmos em operação para entender a política e a
economia.
A indústria cultural atenta contra a vida da cultura porque ela faz de conta que é cultura mas
as mercadorias que ela entrega são uma enganação. Um jornalismo que em vez de contribuir para
desenvolver o senso crítico vende matérias que fazem com que as pessoas se integrem de vez no
sistema. É essa a crítica da Escola de Frankfurt. Denunciar um jornalismo que se entregou de
maneira acrítica a um papel de entender as massas, entender os públicos, e fazer as pessoas
comprarem mercadorias. Essa é a perspectiva de um jornalismo feito nos moldes das teorias
administrativas.
Num texto a respeito da estética, Adorno destaca que a popularização da música em rádios é
um ataque à cultura. A rádio transmite uma sinfonia de Beethoven e seu público ouve, tendo a
impressão de que absorveu cultura. Mas a sinfonia está sendo tocada e sorvida como quem ouve
qualquer coisa. A audição não está sendo problematizada. A Nona Sinfonia é uma homenagem à
Revolução Francesa. Quando ela mistura voz com música instrumental, isso ocorre pela primeira
vez numa forma de sinfonia na história da música, o autor está introduzindo o homem dentro
daquele formato consagrado desde Haydn. E quando ele fala, sua letra diz de uma ode à alegria.
Portanto tem toda uma história da Nona Sinfonia que exige para o pleno entendimento da obra toda
uma leitura, uma dedicação, uma capacidade de entendimento a respeito de suas inovações estéticas
em relação ao desenvolvimento da história da música. A cultura não é dada a um simples ouvir de
um fenômeno físico, dos conjuntos de notas. Ela é a materialização de uma ideia que estrutura a
obra toda. E que precisa ser desvendada a partir de sementes que essas notas podem ser se fizermos
elas frutificarem. É o público que tem que fazer com que uma Nona Sinfonia se torne algo
significativo na vida da gente. E assim retornamos ao dilema de Kant a respeito da preguiça e da

91
falta de coragem que tendem a manter o indivíduo na menoridade. A cultura pode levar o sujeito a
libertar-se dessa condição, mas essa liberação depende de uma energia do próprio sujeito. Não basta
tocar cultura na rádio.
O método de Adorno e Horkheimer será mostrar que a cultura já tem explicações para os
problemas das relações humanas desvirtuadas. Hegel diria, relações entre senhores e escravos e suas
decorrentes desigualdades. A Odisseia, uma obra grega escrita 800 anos antes de Cristo já seria uma
denúncia da dominação. Adorno cita a passagem em que Ulysses navega de volta para casa após a
guerra contra Troia e passa por uma ilha onde existem sereias. Elas emitem um encanto que faz os
homens se apaixonarem. Quando se aproximam, elas se revelam um monstro que devora suas
vítimas. Os navegantes sabem do perigo, mas o canto é tão inebriante que eles caminham mesmo
assim para sua morte enfeitiçados.
Ulysses sabe que terá de passar por ali, portanto se utiliza das artimanhas da racionalidade
para sair ileso. Ele ordena aos soldados que tampem os ouvidos com cera, fechem os olhos e remem
um longo período até passar o perigo. Mas ele Ulysses pede para ser amarrado no mastro de modo
que ele não consiga se soltar porque ele quer ouvir o canto. Já está embutida nessa passagem a
figura do dominador Ulysses e dos trabalhadores a soldo.
Na cultura já é possível enxergar as relações sociais de dominação. Portanto a cultura
contém elementos críticos para o entendimento das relações sociais. Os autores dizem que
a regressão das massas de que hoje se fala nada mais é senão a incapacidade de
poder ouvir de imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as
próprias mãos… a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas
míticas superadas… Os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se
voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos,
iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força. Os
remadores que não podem se falar estão atrelados a um ritmo, assim como o
trabalhador moderno na fábrica, ao cinema e no coletivo. (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 47)
A cultura tem esse dom elucidador por ser nada mais que a reflexão ou representação da
própria essência do mundo. Um exemplo interessante dado por Adorno nesse aspecto é a distinção
entre natureza e cultura. Suas teses apontam numa perspectiva hegeliana de que a natureza é uma
cultura alienada, ou seja, uma cultura ou uma racionalidade que não tem consciência de si mesma
como razão. A diferença entre natureza e cultura é que a cultura tem essa autoconsciência. Ela é
essa própria autoconsciência da razão.
Vamos fazer um breve parêntese para elucidar o que Hegel chamava de razão, visto que esse
termo pode levar a confusão. O problema é que na evolução da filosofia moderna, razão foi
associada com uma característica do intelecto humano, que o permite analisar de modo
representativo as coisas e construir explicações, hipóteses, conhecimento. Para Hegel, razão não é
isso, apesar de existir também um tipo de razão que é isso. Entretanto, a razão humana nada mais é
que a própria razão em sua forma autoconsciente. Mas há razão sem autoconsciência também.
Razão… é a lei do mundo… Razão é ao mesmo tempo substância e poder infinito,
que ela é em si o material infinito de toda vida natural e espiritual e também é a
forma infinita, a realização de si como conteúdo. Ela é substância, ou seja, é
através dela e nela que toda a realidade tem o seu ser e a sua substância. Ela é
poder infinito, pois a Razão não é tão impotente para produzir apenas o ideal, a
intenção, permanecendo em uma existência fora da realidade – sabe-se lá onde –
como algo característico nas cabeças de umas poucas pessoas. Ela é o conteúdo
infinito de toda a essência e verdade, pois não exige, como o faz a atividade finita,
a condição de materiais externos, de meios fornecidos de onde extrai-se o alimento
e os objetos de sua atividade; ela supre seu próprio alimento e sua própria
referência. E ela é forma infinita, pois apenas em sua imagem e por ordem sua os
fenômenos surgem e começam a viver. É a sua própria base de existência e meta
final absoluta e realiza esta meta a partir da potencialidade para a realidade, da

92
fonte interior para a aparência exterior, não apenas no universal natural, mas
também no espiritual, na história do mundo (HEGEL: 2012, 55).
Alinhados com essa observação, os teóricos da Escola de Frankfurt percebem que, do
mesmo modo que a natureza não tem consciência da sua racionalidade, é possível rebaixar o ser
humano à condição de natureza. Diz Hegel que “pensar é uma das coisas que não podemos ajudar
ninguém a fazer”, frase que pode ser entendida no mesmo espírito da crítica de Kant à menoridade.
Mas a preocupação de Frankfurt, orientada pelo marxismo, é demonstrar que um dominador pode
colaborar para que essa condição seja perpetuada, aspecto ao qual nem Kant nem Hegel deram
muito destaque. Adorno destaca duas passagens da Odisseia que são muito exemplares disso.
A primeira é a passagem em que Ulysses encontra um ciclope. Trata-se de um gigante de
força descomunal que aprecia carne humana. Ao entrar na caverna do Ciclope onde o herói e seus
soldados encontram vinho e comida abundante, o grupo é surpreendido pela volta do monstro, que
fecha a porta da caverna com uma pedra de tamanho descomunal e passa a matar e devorar os
soldados gregos. Quando dão a ideia a Ulysses de que o ciclope deveria ser morto, Ulysses lembra
que só o gigante pode retirar a pedra da porta. Se ele morresse, todos morreriam ali dentro trancados
também. Por isso Ulysses começa uma conversa com o ciclope na qual Ulysses diz que se chama
Ninguém. Quando ele adormece, furam o olho do gigante.
No dia seguinte, o ciclope tem de abrir a caverna para colocar suas ovelhas para pastar, e os
soldados de Ulysses fogem escondidos por baixo dos animais. O gigante cego não percebe. Esse
gigante cego é a metáfora do dominado. Força descomunal, verdadeiro artífice da sociedade
moderna, é ludibriado porque é reduzido à condição de natureza, que não percebe as artimanhas da
razão. Ulysses em fuga ironiza o ciclope e elucida a trama. O gigante corre para sua tribo e
denuncia que “Ninguém” furou seu olho. E assim, por não saber a diferença entre um nome próprio
e um pronome pessoal, os irmãos do ciclope não entendem a situação e o herói escapa com seus
soldados.
A terceira passagem muito exemplar da animalização do ser humano, reificação ou alienação
como chamava Marx, é a chegada a uma ilha em que uma feiticeira oferece uma beberagem aos
soldados de Ulysses, e os transforma em animais. Ulysses, alertado pelos deuses, é o único que não
bebe e consegue escapulir da armadilha.
A estratégia de Adorno de valorizar a alta cultura, encontrar exemplos de inteligência líquida
na literatura e na música clássica, além de sua denúncia quanto ao rebaixamento intelectual
promovido por estilos de arte da indústria cultural que contaram com algum prestígio, como o caso
do jazz, resultaram na interpretação de que se tratava de um pedante. Motivo por que seria criticado
fartamente até os dias atuais. Mas percebe-se a importância de sua reflexão.
O texto que introduziu a ideia de indústria cultural faz parte também do volume da Dialética
do Esclarecimento. Numa análise das teorias do jornalismo, esse conceito é muito emblemático
porque ele representa exatamente uma espécie de resultado esperado dos desdobramentos de uma
teoria administrativa. Adorno não analisa diretamente o jornalismo porque não é o caso mais
exemplar, e sim o cinema. Explica por exemplo que há filmes A e filmes B, mais bem feitos e mais
mal feitos, e que esse tipo de classificação em vez de comprometer a qualidade do cinema, nada
mais é que uma estratégia do próprio cinema construída a partir dos estudos estatísticos e do
mapeamento dos públicos de perceber que há pessoas com um gosto mais apurado e outras menos.
Assim, o cinema faz produtos para atender um público A e um público B para que nenhum público
fique fora da abrangência dos produtos cinematográficos para serem absorvidos e constituir as
massas passívies de serem alvo de campanhas persuasivas publicitárias ou propagandísticas sem
exceção. São estratégias de controle de massa que tomam conta dos meios.
O grupo Folha, da Folha de S. Paulo, foi dono também da Folha da Tarde, da Gazeta de
Santos, e do Notícias Populares porque o jornalismo também utiliza esse tipo de técnica para
aumentar sua área de influência. São técnicas que vão para o jornalismo também apesar de no

93
cinema isso estar mais claramente colocado. A ideia de que a divisão de públicos permite uma
divisão estratégica dos meios para ampliar sua abrangência de influência.
A perspectiva crítica sempre presente nos textos de Adorno e Horkheimer permite entender
as estratégias da indústria cultural, que reduz o público a um simples material estatístico.
O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma
quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que
espontaneamente, em conformidade com o seu nível, previamente caracterizado
por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de uma massa fabricada para
seu tipo. Reduzidos a um simples material estatístico, os consumidores são
distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa (ADORNO; HORKHEIMER:
1985, p. 116).
Os autores explicitam como o jornalismo empresarial está funcionando. Sabe-se que o
dinheiro que se investe em publicidade não vale a pena. As pessoas precisam comprar e não é por
causa da publicidade que as pessoas compram. É claro que existe uma pequena margem de
concorrência que estimula a publicidade. Mas há coisas que não têm concorrência. Uma marca de
carro de luxo que só é acessível a poucos. Por que uma marca dessas investe em publicidade?
Justamente porque ela precisa alimentar essa indústria cultural que fomenta o consumo de maneira
indiscriminada. Existem papéis subentendidos que não são simplesmente vender o produto que
estão marcados como função da publicidade, vender modos de vida.
“Os custos de publicidade, que acabam por retornar aos bolsos das corporações, poupam as
dificuldades de eliminar pela concorrência os intrusos indesejáveis. Estes cursos garantem que os
detentores do poder de decisão ficarão entre si”. Trata-se de uma técnica negativa, “um dispositivo
de bloqueio: tudo aquilo que não traga seu sinete é economicamente suspeito. A publicidade
universal não é absolutamente necessária para que as pessoas conheçam os tipos de mercadoria aos
quais a oferta de qualquer modo está limitada. Só indiretamente ela serve à venda” (ADORNO;
HORKHEIMER: 1985, p. 77). Soa muito estranho que “durante a guerra, continua-se a fazer
publicidade de mercadorias que já não podem mais ser fornecidas, com o único fim de exibir o
poderio industrial” (ADORNO; HORKHEIMER: 1985, p. 152).
Uma síntese do pensamento dos autores sobre a desigualdade, diz que
o aumento da produtividade econômica, que por um lado produz as condições para
um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho técnico e aos grupos
sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O
indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao
mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza a um nível
jamais imaginado (ADORNO; HORKHEIMER: 1985, p. 141).
O papel do jornalismo administrativo, porém, é formar uma espécie de núvem de fumaça
que disfarça esta situação. “A enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e
idiotiza as pessoas ao mesmo tempo” (ADORNO; HORKHEIMER: 1985, p. 152).
Adorno publica numa fase posterior um livro chamado Dialética Negativa e, após sua morte,
ainda seria trazido a público um outro título, Teoria Estética. Nessas duas obras ele se reinventa
radicalmente, deixando de lado os problemas mais pontuais dos meios de comunicação e se
lançando aos grandes temas da Filosofia, lógica e estética. Destaquem-se ainda as aulas que proferiu
em 1959 a respeito da Crítica da razão pura de Kant, que denunciam a interrupção do projeto
kantiano frente à necessidade de um seguimento quanto às características dialéticas do pensamento.

5.2.2 – Benjamin

Walter Benjamin é um dos autores da escola que vai tratar do tema da técnica numa
perspectiva mais aberta, no sentido de destacar que a técnica pode ser apropriada pelo pensamento
crítico para fornecer mais uma arma de transformação social. Ou seja, que ela em si não carrega
necessariamente esta marca de instrumentalismo, e que o papel do teórico de esquerda seria

94
justamente combater isso e apresentar modelos de apropriação da técnica em favor do pensamento
crítico. Essa colaboração possível entre técnica e projeto crítico é característica de Benjamin.
Os sete anos finais de sua vida constituíram uma difícil e penosa fuga do nazismo. Sua
característica fundamental é a síntese entre judaísmo e marxismo, difícil de entender porque
representa
a ligação de Benjamin, não aos preceitos ou aos dogmas da religião judaica,
mas a um modelo de leitura herdado da leitura dos textos sagrados… Que
Benjamin reivindique esta tradição mística no contexto de uma análise
materialista dos textos literários é absolutamente notável: significa que a
crítica materialista não tem como meta estabelecer a verdade definitiva
sobre uma obra ou autor, mas tornar possível a descoberta de novas camadas
de sentido até então ignoradas (GAGNEBIN: 1983, p 39).
Da incompreensão desta síntese resulta que “cada um censura em Benjamin certas
insuficiências teóricas e responsabiliza outros por elas: ou ele não é suficientemente teólogo, ou
suficientemente dialético, ou suficientemente materialista” (GAGNEBIN: 1983, p 24). Assim, ele se
encontra “lançado no interior de várias correntes de pensamento, tanto políticas quanto filosóficas”
(GAGNEBIN: 1983, p 25). Gagnebin destaca um ponto importante de sua síntese o interesse pela
teologia conflitando com sua teoria materialista da produção cultural. Benjamin insiste na distância
necessária “entre ordem do político e a ordem transcendental da reflexão teológica (judaica) ou
crítica (marxista) mesmo que essas duas ordens só possam ser concebidas
conjuntamente”(GAGNEBIN: 1983, p 28). Essa é a retratação de sua original síntese dialética.
Outro ponto relevante da obra é o estabelecimento de uma relação com a técnica que, por
um lado, não nega a crítica marxista de que os aparatos técnicos foram tomados de assalto pelo
capitalismo, mas, por outro lado, vai defender que o desdobramento histórico de seu uso não
precisava ser assim, ou seja, poderia haver uma técnica aliada à cultura que tivesse um papel crítico,
iluminista, libertador. A aliança com a técnica é passível de desembocar em outros caminhos, outros
desdobramentos da relação técnica sociedade como a que acontecia na Rússia, por exemplo, que já
era uma outra relação.
Benjamin não foi exatamente um entusiasta do socialismo russo. Ele viaja para o país em
1926-7, um período tumultuado no país por força da morte de Lenin em 1924 e os conflitos que se
sucederam. Suas impressões não tão positivas são o assunto de um diário de viagem que é um
momento único da sua obra por trazer um forte traço biográfico. Por outro lado, apesar de apelos
insistentes para que ele vá para Israel, ele não adere ao projeto. Anda nessa corda bamba entre duas
ideologias, marxismo e judaísmo. É amigo de Gershom Scholem, fundador do moderno estudo da
cabala, mas também é amigo de Bertold Brecht, importante teórico e escritor teatral marxista.
A tentativa de Benjamin de sintetizar religião e racionalidade marxista atualiza o próprio
pensamento de Hegel a esse respeito. Só que em lugar de uma síntese entre o Estado prussiano e a
religião protestante do século XIX, ele pensa numa síntese entre marxismo e judaísmo como uma
nova reconciliação entre a sensibilidade religiosa judaica e a racionalidade crítica marxista.
Ele desenvolve conceitos que dialogam com os dois eixos, como o de aura, que ele
considera um polo de resistência contra a alienação dos sujeitos. Isso aparece no ensaio exemplar a
respeito de fotografia e cinema, intitulado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
que tem alguns pensamentos importantes para uma teoria do jornalismo transformador.
O texto principia explicando que Marx promoveu uma análise do modo de produção
capitalista, da economia política, numa época em que esse desenvolvimento ainda estava em seus
primórdios, por volta de 1860. Benjamin, por sua vez, já se situa em 1920-30, ou seja, num tempo
em que muito desenvolvimento posterior já ocorreu, caracterizando um momento mais avançado
dessas relações do capitalismo. A principal consequência deste deslocamento é que se tornou mais
fácil verificar os impactos da transformação infraestrutural na superestrutura, visto que o reflexo
nestas sempre se dá mais lentamente que na infraestrutura econômica.

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Por outro lado, a expectativa de Marx da tomada de poder e da implantação de uma
sociedade sem classes não se consolidou na Alemanha, portanto é preciso apresentar estas relações
num momento histórico interrompido ainda, em que as tensões colocam o desenvolvimento pleno
da superestrutura como uma promessa adiada, que não deixa nem se manifestarem as vantagens do
pleno uso da infraestrutura, nem aflorarem os frutos mais promissores da cultura proletária. Para
entender o que ocorre, Benjamin propõe uma série de categorias para análise estética que evitam
armadilhas postas pelas categorias burguesas como criatividade e gênio, validade eterna e estilo,
forma e conteúdo.
Para Benjamin, nesse momento é bem mais fácil entender a relação que Marx descreveu
entre infraestrutura econômica e superestrutura social e política, o que pode ser feito por meio do
estudo da relação da infraestrutura técnica industrial com a superestrutura constituída pelo cinema.
Na verdade o cinema é o tema de seu artigo. Ele vai tentar em termos de teoria da arte mostrar o que
o cinema traz de novo para essa reflexão a respeito da infraestrutura e superestrutura, pois seu
estudo vai fazer surgirem algumas categorias capazes de explicar o que está acontecendo naquele
momento histórico de ascensão do nazismo. Por meio dessa análise do cinema ele propõe uma
discussão estética que vai trazer consequências de ordem política.
Nesse sentido ele se aproxima de Adorno. Este vai buscar na literatura e na música os
antagonistas do rádio e da indústria cultural, aquele vai estudar o cinema para ter acesso ao
momento histórico e suas relações estruturais. O diferencial de partir do cinema é analisar uma arte
técnica, portanto este debate vai colocar também a técnica como ponto central da reflexão teórica.
Benjamin estabelece de princípio três conceitos para pensar o tema. O primeiro será o de
reprodutibilidade técnica. Descreve com este termo o fato de que, pela primeira vez no processo de
produção de imagem, a mão se encontra liberada da função de produtora da obra artística e isso será
entregue de maneira totalmente automática e transparente para uma câmera cinematográfica, um
aparato que representa a materialização de uma tecnologia que é quem vai a partir de agora ser
reponsável por essa produção artística. Portanto a reprodutibilidade não tem nada a ver com a cópia
ou com a imitação ou a falsificação. Ela constitui uma passagem de um processo artesanal para um
processo mecânico, que pode ser elevado ao nível industrial. Esta migração de um trabalho manual
para um trabalho técnico industrial vai caracterizar uma mutação dos próprios meios de produção
artísticos, por isso será pertinente tratar esse novo fenômeno como uma indústria cultural, já que é
uma cultura que não será mais produzida de forma artesanal, mas é feita com base justamente a
partir de instrumentos técnicos tão especializados quanto são o de uma indústria e de uma linha de
montagem.
Por outro lado, o cinema produz objetos, o filme, assim como são objetos um quadro de
Velasquez ou de Rafael, ou uma música ao piano. Da comparação destes objetos, Benjamin tira uma
nova categoria, a de autenticidade. Certo quadro de Rafael é um exemplar único que está no Museu
de Arte de São Paulo (Masp), e foi adquirido por iniciativa de Assis Chateaubriand de europeus no
pós-guerra porque aqueles estavam falidos. Ou seja, há toda uma história que se pode acompanhar e
que constitui sua história de autenticidade. Esta existência única era o núcleo da tradição da obra e
dependia da materialidade deste exemplar. A perda da materialidade que a reprodutibilidade implica
destrói a autenticidade. Benjamin cita Abel Gance que previa uma grande fila de personagens
históricos se acotovelando nas produtoras cinematográficas porque queriam ter direito à sua
filmagem, Beethoven, Napoleão, todos os personagens históricos querendo participar deste grande
Big Brother.
Da unicidade da obra nascia também uma alma ou aura que era uma espécie de
personalidade forte da obra, se preferirmos evitar a ideia panteísta de que essa obra tem uma alma
suprassensível, uma de entidade mística, mesmo desconfiando que é exatamente a isso que
Benjamin se referia. Benjamin destaca que a obra de arte reprodutível perde esta autenticidade e a
aura. Aura, diz ele, é um efeito que algo nos causa, agindo como uma manifestação a partir da visão
de uma montanha ou até da sombra de um galho sobre nosso corpo.

96
A reprodutibilidade mata esta autoridade. A era da reprodução leva o ouvinte a querer ter a
obra perto de si, superar o caráter único pela cópia. Ouvir Beethoven num disco. Benjamin alerta
que esta relação tira o objeto de seu invólucro, destrói sua aura. Cresce a importância estatística,
fria, genérica. Decresce o interesse em aprender com a obra, dar tempo a ela, estudar sua
composição, sua história, sua importância para a história da arte. A cultura vai perdendo seu
entorno. Vai sendo deslocada do momento social em que surgiu e em que agia.
Benjamin vai apresentar a seguir duas transições históricas demarcadas pelo surgimento da
obra reprodutível. A primeira é que existe um deslocamento do objeto estético de uma função ritual
para uma função política. A arte tinha um lugar em cada tradição, Vênus foi amada pelos pagãos,
difamada pelos cristãos, mas sua personalidade forte, sua aura, estava ali, fosse para o amor fosse
para o ódio. Depois da reprodutibilidade, a obra se libera da tradição, da ética, dos valores religiosos
e ritualísticos de onde tinha surgido. Mas esta aparente autonomização desanda numa arte pela arte
que nada mais é que uma nova teologia da arte na visão de Benjamin, reacionária, que procura
manter a arte longe de seu novo porto de ancoragem que é a política. O pensamento conservador
busca criar uma arte que nega seu valor social e toda a interpretação objetiva. Recai no subjetivismo
hipertrofiado romântico.
Mas não há como fugir desta associação da arte reprodutível com o social, desde sua
possibilidade de existência. O cinema só existe para um vasto público porque um consumidor não
pode pagar um filme sozinho. Precisava de nove milhões de espectadores em 1927 pelos cálculos de
Benjamin. A segunda força econômica capaz de manter uma indústria cinematográfica é justamente
aquela que usa o cinema como dispositivo de controle social, a política. Benjamin escreve sete anos
depois que o imperador alemão mandou construir a UFA, o maior conglomerado de produção
cinematográfica do planeta em 1919 para produzir propaganda ideológica favorável aos alemães na
Primeira Guerra Mundial. E percebe em seu tempo o uso que o nazismo já está fazendo do cinema
para convencimento das massas.
Uma última transição histórica analisada pelo autor é a da passagem do valor de culto para o
valor de exposição. Estas categorias também estão relacionadas com as anteriores, mas apontam
para a perspectiva da história da arte como uma linha de transposição de um valor de culto
(ritualístico) para um valor de exposição (político mas também comercial, valor de troca
financeira), linha na qual Benjamin coloca a arte rupestre num polo, o cinema no outro. Criando
este novo espaço visual artificial, a técnica criou uma segunda natureza e, para Benjamin, a função
do cinema é exercitar nas pessoas a nova percepção exigida pela natureza técnica que faz funcionar
o capitalismo.
Novamente podemos tirar conclusões deste ponto a respeito da extinção da autoridade e da
crise que explica por que alguns elementos da tradição foram totalmente abandonados por qualquer
elemento das massas que vai num cinema qualquer junto com mais uma centena de pessoas e assiste
ao filme. E no fim, milhões de pessoas vão assistir a mesma obra. Quem quiser pode ver. Não exige
uma preparação. As pessoas vão ver outros filmes e outros mais e a fruição vira uma coisa
corriqueira. Não é preciso mais parar e exigir de si mesmo uma espécie de esforço que a cultura
tradicional exigia. Havia um valor tradicional de patrimônio da cultura. Uma obra de 600 anos atrás
está num museu porque é uma espécie de patrimônio, de riqueza, da criação de um sujeito
privilegiado que faz com que o espectador tenha uma relação de respeito para com aquela obra.
Isso leva o espectador a tentar entender a obra. Se não entender logo, vai se esforçar para
tentar desvendar seus mistérios. Estudar para saber por que aquela obra está no museu. Qual o
motivo que a fez figurar ali e ser uma referência da grande obra de arte universal. Qual motivo
levou uma sinfonia a ser considerada uma das maiores realizações da história milenar da música.
Temos de entender isso. Ir atrás. Se não conseguimos entender uma obra dessas, a deficiência é
nossa, é de ausência de apuração no gosto, da falta de repertório. Temos de correr atrás. Essa ideia
existe quando se considera que a obra é realmente alguma coisa muito importante.

97
O fim desta transformação do sujeito, de seu aprimoramento, é o lado mais perverso dessa
relação da indústria cultural com as massas. Ao entrar num cinema, elas assistem ao filme por vezes
bem feitos, mas saem do cinema do mesmo jeito que entraram. Os indivíduos não estão mais
dispostos a se esforçarem para se desenvolver, crescer quando se deparam com alguma coisa que
não entendem. Quando elas vivem esse estranhamento de não entender elas simplesmente taxam o
filme de ser mal feito e vão assistir outro. Frente a um grande filme clássico russo ou alemão
expressionista, é comum ver um espectador que estuda cinema dormir na sessão, porque é mais
fácil passar por aquilo e ir para outra experiência mais dada do que ter de se esforçar para entender
qual seria o motivo de um Eiseinstein ser um clássico dos anos 1920 a respeito de quem cem anos
depois os professores ainda continuam a recomendar que se assista e conheça. O espectador não
quer se dar esse trabalho. O cinema que faça coisas de que a pessoa goste e que a pessoa entenda
sem esforço. Conforme Benjamin, o público é reacionário frente ao Dadaísmo, mas é progressista
frente a Chaplin. O problema é que as formas fáceis não são capazes de propor determinados temas.
Nada mais tem aura, não há nada que me obrigue a fazer concessões, me esforçar e mudar o
que eu penso a respeito de algum tema. Não tem nada que me estimule a crescer porque nós
olhamos para obras de arte uma atrás da outra em imensa quantidade, e nada disso deve ter tanta
importância assim. Desaparece o senso de desconfiança de que deve existir alguma coisa especial
numa obra que conseguiu durar 400 anos no gosto da sociedade culta se tornando um clássico. A
obra reprodutível elimina esta marca de aura, de tradição, de respeito que a gente tem pela arte, e a
partir de então o que interessa é o que o indivíduo acha. Um esvaziamento absoluto do valor da
cultura no sentido de uma cultura que provoque e que mostre que esse indivíduo está limitado
demais e que tenta provocá-lo a crescer.
Em contrapartida a esse esvaziamento absoluto do valor da obra, a reprodutibilidade, oferece
em troca a possibilidade de a pessoa ter a obra de arte em casa. Não é preciso mais ir a um salão
para ouvir uma sinfonia, ela está à disposição de qualquer um em sua forma de reprodução. Essa
posse física dá uma sensação de acesso à cultura quando na verdade o acesso está totalmente
bloqueado no sentido do desenvolvimento do indivíduo que seria a princípio o que interessa da obra
de arte. O fato de começar a ler o Ulisses de James Joyce e não entender nada dá lugar, não a uma
indignação e desafio imposto a si mesmo de ler até entender, mas antes ao prazer de ter o volume na
estante. A cultura deixa de ser um mecanismo de intervenção que transforma o indivíduo para ser
trunfo. Isso tem de ser criticado. Um sujeito tem de educar seu gosto e, nessa evolução do gosto, vai
aprendendo a lidar com o autodirecionamento crítico e racional que vai desembocar num sujeito
ético, que sabe agir racionalmente. São dois movimentos de aprendizado paralelos. Tanto se
aprende a julgar esteticamente formando um gosto, quanto se aprende a julgar eticamente. O
desenvolvimento de um leva ao desenvolvimento do outro. Quando mais o sujeito se exercita mais
ele será capaz de consolidar seu mecanismo de julgamento.
Benjamin entra no centro de sua questão quando analisa o cinema. Mostra que surge ali uma
nova relação do ator com o trabalho final. No teatro, o ator era dono do personagem, criava esse
personagem e o ia aperfeiçoando a cada nova apresentação. No cinema, trata-se de um teste imposto
pela máquina, pela câmera, que vai exigir que o ator passe por ele. Benjamin diz que ser aprovado
ali é defender a humanidade frente ao aparelho, é como uma vingança para as massas que se
subjugam a ele “porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa
alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas durante o dia de trabalho” (BENJAMIN:
2000, p. 179).
O mesmo massacre que a câmera impõe ao ator de cinema é o que as fábricas impõem às
massas. Por isso, “à noite as massas se reúnem para assistir a vingança que o intérprete executa em
nome delas na medida em que o ator não somente se afirma diante do aparelho sua humanidade aos
olhos dos espectadores como coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo” (BENJAMIN:
2000, p. 179). O ator reverte o sistema de dominação e coloca o cinema a favor de sua promoção
como ator. Quem faz sucesso é ele.

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Essa passagem dialoga com a noção de fetiche de Marx. Ali, a mercadoria é vista como algo
que tem um trabalho introjetado e que oculta o fato de ter esse trabalho como seu componente de
valor porque ele está abstraído na forma de uma caneta, de um carro, da mercadoria. No caso do
cinema ocorre uma coisa diferente porque o ator tem o rosto dele impresso no produto, porque ele é
o ator do filme, logo seu trabalho aparece e a mercadoria filme não consegue apagar sua presença. A
a presença de seu trabalho compõe o valor do filme. Por causa disso, os grandes atores vão ter uma
relação privilegiada enquanto classe trabalhadora que consegue se impor ao capital, vão cobrar
caches que se considera serem milionários, abusivos, excêntricos, mas nada mais são que o
verdadeiro valor do trabalho a que todo o trabalhador teria direito e que o capital não consegue
retirar tão violentamente quanto consegue no caso dos trabalhadores anônimos que alimentam suas
linhas de produção.
Outro ponto importante desta transformação histórica é que o ator passa pelo teste sendo
exatamente quem ele é. Quanto mais natural ele for para se encaixar no papel, melhor. Uma
interpretação exagerada acaba atrapalhando o desempenho. Deste modo, o ator passa pela mesma
situação que o sujeito das massas passa, ou seja, ele não tem estímulo para se transformar. O cinema
o quer como ele é. O ator do teatro é diferente. Se ele percebe que tem uma passagem engraçada na
peça mas ninguém riu, ele se pergunta por que e tenta alterar algo em sua interpretação para fazer o
público rir numa passagem que a obra abre a possibilidade para isso. Cria uma ênfase na frase e
todo mundo cai na gargalhada. A peça de teatro é uma espécie de pedra bruta que vai sendo
aperfeiçoada a cada dia.
No cinema, o ator não tem esse controle da personagem. Ele recebe a sequência de cenas na
ordem necessária à produção e não ao desenvolvimento lógico da história. Na montagem
personagens que nem se viram podem estar dialogando. Esse tipo de artificialidade demonstra que é
muito diferente o papel do ator no cinema e no teatro. A sociedade de massa reproduz esse
mecanismo de alienação do trabalho também na indústria do jornalismo empresarial. Trata-se de um
equipamento complexo, com pauta, edição, checagem, dentro do qual um profissional pode entrar e
passar a desempenhar seu papel assim como o ator de cinema. Se ele se adaptar e conseguir fazer o
equipamento produzir matérias com eficiência, esse jornalista não precisa mudar nada em si. Ele
está passando no teste. Por mais despreparado que o profissional seja, e essa é a mensagem
imanente que as técnicas de reprodutibilidade transmitem, desde que a pessoa deixe a máquina
cumprir o papel dela e seja um auxiliar apropriado para esse funcionamento, qualquer um pode estar
ali. Basta passar nas exigências da técnica. Para ser jornalista de vídeo, tem de falar bem, tem de ter
uma boa imagem, tem de ter carisma, mas ter consciência crítica é mero acessório, não necessário, e
muitas vezes indesejado. Essa é a lição que a tecnologia está dando para o tempo contemporâneo.
Se você tiver um bom computador, um bom software, conseguir produzir com isso um resultado
comercial, para que estudar? Isso não é preciso. Há quem pense que este questionamento do novo
lugar do humano frente a técnica não deve ser problematizado.
Há softwares com templates que apresentam toda diagramação pronta. Para que aprender a
fazer então, se a técnica já oferece tudo pronto? Porque esse sistema está nas mãos dos detentores
dos meios de produção e o jornalista nunca vai deixar de ser uma peça numa engrenagem se não
tiver senso crítico de seu próprio papel, nem vai contribuir para a transformação dos problemas do
mundo, em especial se esses problemas forem do interesse e forem ocasionados intencionalmente
pelos detentores dos meios técnicos de produção.
Esse sistema desestimula o crescimento individual, desestimula a dor da aquisição da
cultura, afirmando que esse esforço é vão. Vai ficar dez anos estudando piano para conseguir
reproduzir uma sonata? Mais fácil comprar um sampleador e virar DJ. É uma sociedade que
naturaliza o esvaziamento de qualquer esforço de autotransformação, e também de
autodirecionamento, o que são valores totalmente avessos aos valores do Iluminismo, do
desenvolvimento de consciência crítica. Por outro lado, perdem-se os ouvintes qualificados. Quem
estudou dez anos de piano vai entender muito melhor qual o valor de uma sonata de Chopin, vai

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entender as dificuldades técnicas de sua execução, sua proposta estética. Vai ouvir essa obra como
quem ouve uma missa. Mas isso já não é mais valorizado. O caminho no qual se acredita hoje é dar
certo no Big Brother.
Dois pontos destacados por Benjamin ainda em relação ao cinema são que o cinegrafista,
como um cirurgião, penetra o real como se fosse um corpo. Oferece dele, a imagem, realidade livre
da manipulação. Provavelmente estava pensando aqui em uma apropriação como a de Vertov em
relação ao cine-olho experimental do cinema soviético. Mas em contrapartida também aponta para a
possibilidade do cinema atingir diretamente o sistema nervoso do público por intermédio de
choques, que podem ser tanto choques mobilizadores como o do cinema de um Eisenstein como
choques alienantes e anestésicos. As massas gostam da crítica burlesca de Chaplin, sempre ingênua,
e reagem contra um filme surrealista. Por outro lado, surge um cinema que publiciza o sonho
privado menos por entrar no sonho de cada um do que por criar um grande sonho coletivo como o
universo do camundongo Mickey.
Benjamin percebe que o cinema está mexendo com um novo território da percepção humana
ainda pouco explorada, que é o do inconsciente. Fala de um inconsciente óptico revelado pela
câmera, em que percebemos por seu meio o que não é possível conhecer somente com o olho. Mas
percebe seu uso anestésico caso se entregue a objetivos antirrevolucionários, ou mesmo a projetos
totalitários de dominação. Assim coloca o dadaísmo de seu tempo como uma ocupação crítica desse
novo espaço estético, e o futurismo como seu antípoda que defende que a guerra é bela.
Chega assim ao grande tema teórico de seu artigo. A possibilidade de apropriação das
técnicas de reprodutibilidade, em especial do cinema, por projetos que tiram de suas características
um uso reacionário, capaz de deixar as massas oprimidas da sociedade moderna se exprimirem em
sua natureza e sua violência, não para exigir seus direitos, mas sim para direcioná-las para outra
causa, a da guerra e do fascismo, para adequar estas massas ao poderio da geração da sociedade
industrializada sem ter de rever a propriedade dos meios de produção.
Esta é a grande gênese do fascismo para Benjamin. Uma apropriação reacionária da conexão
do cinema com a sociedade e a política. A reprodutibilidade da imagem cria o campeão no esporte
(milhões de pessoas podem assistir a uma final de campeonato), o astro no cinema, e o ditador na
política. São os campeões de audiência. Os influenciadores mais perigosos caso se inclinem aos
projetos antirrevolucionários.
Benjamin chama a esse movimento de estetização da política e da guerra. São para ele os
instrumentos adotados pelo fascismo. O que leva a humanidade a um ponto de auto-alienação tão
extremado que permite a ela viver sua própria destruição como um prazer estético. As categorias
que veio apresentando ao longo do trabalho se colocam contra esta apropriação ao responderem
contra a estetização da política com a politização da arte.

5.2.3 – Marcuse
Uma importante contribuição de Herbert Marcuse para as teorias transformadoras do
jornalismo é a grande sistematização e análise que realiza a respeito do pensamento hegeliano, tanto
em A ontologia de Hegel e a teoria da historicidade (Hegels Ontologie und die Theorie der
Geschichtlichkeit: 1968) quanto em Razão e Revolução.
Trata-se de uma exposição sistemática e esclarecedora do pensamento hegeliano que, na
forma original, por vezes se passa por difícil de entender e muito trabalhosa. Podemos resumir a
principal contribuição de Marcuse neste sentido, como esclarecer o que é a noção de conceito em
Hegel, visto que ela destoa da visão tradicional. Marcuse mostra que não é possível entender Hegel
sem rever certos termos que têm sentido peculiar na sua obra, como realidade, razão, vida.
Segundo Marcuse, para Hegel, “a verdade não tem a ver apenas com proposições e juízos,
isto é, ela não é tão-somente um atributo do pensamento, mas é também um atributo da realidade
em formação. Algo é verdadeiro se é o que pode ser, se satisfaz a todas as suas possibilidades

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objetivas. Na linguagem de Hegel, o que é verdadeiro é, pois, idêntico ao seu ‘conceito’.”
(MARCUSE: 1969, p. 34)
O conceito tem, portanto, uma dupla função em Hegel. De um lado, compreende a natureza
ou essência do objeto em questão, representando a apreensão verdadeira deste objeto pelo
pensamento. De outro lado, o conceito se refere à realização efetiva daquela natureza ou essência, à
sua existência concreta. Não se tratam, portanto, de simples abstrações, de um lado, e do mundo de
outro, como fazem supor as teorias administrativas do jornalismo, em que o conceito de jornalismo
parece ser genérico, abstrato e poder se aplicar a qualquer tempo e lugar indiferentemente. A noção
de conceito de Hegel fundamenta as teorias transformadoras do jornalismo no sentido de que o
jornalismo é um fenômeno histórico e concreto que não pode ser pensado isolado de suas condições
históricas e sociais, dentro das quais ele atua como agende de transformação e é por elas também
transformado. Portanto, o conceito de jornalismo é uma construção histórica.
Aí surge a outra contribuição importante do pensamento de Marcuse, explicitar que esta
noção do sistema hegeliano aponta para uma ambiguidade. Os conceitos em Hegel jamais denotam
meras proposições como na lógica formal, e sim, denotam formas ou modos de ser concretos
compreendidos pelo pensamento. Portanto ressalte-se que a mesma palavra, conceito, é utilizada de
duas maneiras totalmente distintas, o que pode ser motivo de imprecisão. Daí ser fundamental
sabermos que estamos tratando desta noção encarnada de conceito em que a realidade está mesclada
ao pensamento e não da sua forma abstrata.
A partir desta definição, surge outro problema. Ocorre que a realidade só atinge o nível
pleno de desenvolvimento do conceito num estágio específico que Hegel disse ser a sua verdade.
Em outras palavras, nem sempre o aqui e agora efetivo se alinhou totalmente com o conceito de sua
realidade. A unificação destes polos opostos é um processo evidenciado por Hegel em cada
existente singular. A forma lógica do ‘juízo’ expressa uma ocorrência real.
Marcuse dá o seguinte exemplo:
Tomemos, por exemplo, o juízo ‘este homem é um escravo’. De acordo com Hegel,
tal juízo significa que um homem (sujeito) foi escravizado (predicado) mas,
embora escravo, continua a ser um homem e, portanto, essencialmente livre e em
oposição àquele predicado. O juízo não é a atribuição de um predicado a um sujeito
estável, mas a expressão de um processo real do sujeito, pelo qual este se torna
diferente de si mesmo. O sujeito é o processo mesmo de vir-a-ser o predicado e de
o contradizer. Este processo dissolve em uma multiplicidade de relações
antagônicas os sujeitos estáveis que a lógica tradicional assumia. A realidade
aparece como uma realidade dinâmica, na qual todas as formas fixas se revelam
meras abstrações. Consequentemente, quando na lógica de Hegel os conceitos
passam de uma forma à outra isto significa, para o pensamento correto, que uma
forma de ser passa à outra e que cada forma particular só pode ser determinada pela
totalidade das relações contraditórias em que existe. (MARCUSE: 1969, p. 34-35)
Se o conceito de homem traz em si a necessidade de liberdade, pudemos ver o atraso da
liberação dos escravos. Para Hegel, o que ocorria aqui era que somente em 1888 a realidade atingiu
um estágio no qual ela existe no modo da verdade. Antes disso, não. Isso quer dizer que nem tudo o
que existe o faz em conformidade com suas potencialidades, com seu conceito, mas sim que o
espírito, tendo atingido a autoconsciência de sua liberdade, se tornou capaz de libertar a natureza e a
sociedade, como se atuasse como um permanente motor a exigir sua efetivação. Ou seja, a
realização do conceito não é um fato, antes sim uma tarefa. Marcuse dia que “a forma pela qual os
objetos aparecem imediatamente não é ainda sua forma verdadeira. O simplesmente dato é, de
saída, negativo, isto é, diferente de suas reais potencialidades. É no processo de superação desta
negatividade que ele se torna verdadeiro; o nascimento da verdade requer, pois, a morte do estado,
que é dado, do ser. O otimismo de Hegel é baseado em uma concepção que destrói o que é dado.” ”
(MARCUSE: 1969, p. 35)

101
Em vez de ser uma simples repetição tautológica do que está aí, as formas efetivamente
desenvolvidas do conceito hegeliano só atingidas pelo movimento dissolvente da razão, que revoga
e altera o que está errado até que corresponda aos seus próprios conceitos. As teorias
administrativas do jornalismo são meros reflexos das atualidades irracionais porque não colocam
em xeque estas atualidades e as têm por pressuposto inevitável. Somente as teorias transformadoras
preveem esta metamorfose que não é, entretanto, cega, é conduzida pelo pensamento no processo de
‘mediação’. Frente à força da verdade dos conceitos como indústria cultural, cultura de massa,
cultura de resistência, o conteúdo de nossas percepções e conceitos, toda delimitação de objetos
estáveis, desaparecerá. As mentiras e desigualdades perpetradas por estes sistemas de comunicação
em que o jornalismo administrativo encontra um papel são dissolvidos em uma multiplicidade de
relações que esgotam seu conteúdo desenvolvido e que se reduzem à atividade compreensiva do
sujeito.
A filosofia de Hegel é, na verdade, aquilo de que foi acusada por seus opositores
imediatos: uma filosofia negativa. Ela é, na sua origem, motivada pela convicção
de que os fatos que aparecem ao senso comum como indícios positivos da verdade
são, na realidade, a negação da verdade, tanto que esta só pode ser estabelecida
pela destruição daqueles. A força que move o método dialético está nesta convicção
crítica. A dialética está inteiramente ligada à ideia de que todas as formas do ser são
perpassadas por uma negatividade essencial, e que esta negatividade determina seu
conteúdo e movimento. A dialética constitui a oposição rigorosa a qualquer forma
de positivismo.… (MARCUSE: 1969, p. 35)
Esta percepção teórica exige uma inversão muito radical do sistema da ciência. Nas teorias
transformadoras, os fatos enquanto fatos não têm autoridade. Eles são somente aquilo que é
proposto pelo sujeito que os mediatiza pelo processo de compreensão de seu desenvolvimento. A
teoria se liberta do ideal pelo fato de que ela se torna um instrumento de transformação do real. O
pensamento não compactua com a ordem existente. “O pensar crítico não cessa, mas assume nova
forma. Os esforços de razão voltam-se para a teoria social e para a prática social.” (MARCUSE,
1969, p. 37). Assim as teorias transformadoras do jornalismo se tornam a proposição de conceitos
de jornalismo que desmentem as práticas do próprio jornalismo denunciando-as quando elas se põe
como serviçais da manutenção dos instrumentos de cerceamento de liberdade dos seres humanos,
um dogmatismo.
Aprendemos com Hegel o caráter fixo e fechado do dogmatismo. Marcuse
demonstrou a função politicamente conservadora do conceito ritualizado.
Ilyenkov, por fim, esclareceu de que modo as frases feitas ‘impedem o
acesso da pessoa pensante à realidade’. Estamos aqui no próprio coração da
dimensão política da subjetividade, e da intersubjetividade, tendo em vista o
poderoso papel da linguagem e da informação midiatizada na subjetivação
coletiva de certas representações da realidade. (SCHNEIDER: 1995, p. 111)

5.2.4 – Brecht

O teatrólogo e escritor marxista Bertold Brecht foi amigo de Walter Benjamin e exerceu
forte influência sobre ele. Escreveu em 1934 um texto que dialoga diretamente com o jornalismo,
Cinco dificuldades para escrever a verdade (Fünf Schwierigkeiten beim Schreiben der Wahrheit), e
distribuiu clandestinamente o texto na Alemanha hitlerista. Inspirou-se para tanto no episódio
ocorrido 100 anos antes, quando Karl Georg Büchner contornou a censura no território de Hessen.
Brecht enviou seu escrito para o território alemão colocando o título falso de “Guia prático de
primeiros socorros”. O texto foi novamente impresso no jornal Versuche 9, em 1949.
Sua ideia principal é que cinco dificuldades andam ao lado e tentam impedir que as pessoas
escrevam coisas que brotam da verdade, as quais devem “ser superadas uma a uma e ao mesmo
tempo”. As cinco dificuldades de escrever a verdade são ter: a coragem de escrever a verdade,

102
apesar de ela ter sido reprimida em toda parte; a inteligência de reconhecê-la, apesar de ter sido
camuflada; a arte de manejá-la como uma arma; o julgamento para escolher aqueles em cujas mãos
ela será eficiente; e a astúcia para conseguir disseminá-la entre eles, por vezes com uso de artifícios
como a própria troca do título do texto feita por Brecht.
As palavras de Brecht se fazem ecoar em episódios importantes da história do jornalismo
brasileiro como o período dos Pasquins, o jornalismo operário, o jornalismo alternativo, onde sua
aplicação se dá diretamente. Mas tem um ingrediente ainda mais radical, quando diz que estas
dificuldades são enormes obstáculos para os escritores submetidos ao fascismo, mas se colocam
igualmente para aqueles que foram perseguidos ou fugiram, e, ainda, para aqueles que escrevem em
países de liberdade burguesa.
Nesta última afirmação se encontra a radicalidade crítica deste texto.
A coragem de escrever a verdade tem de combater uma certa inércia natural, de que é muito
difícil não se curvar diante dos poderosos e é mais vantajoso enganar os mais fracos. Renunciar ao
emprego e à glória do lado poderoso por vezes são custosos, por isso a necessidade de coragem para
não se deixar cair nas armadilhas do egoísmo.
Sem a inteligência de reconhecer a verdade também não adiante o jornalista ser bem-
intencionado. Não é fácil descobrir a verdade.
Depois de descoberta, é preciso entender a arte de tornar a verdade efetiva como uma arma.
A verdade deve ser dita por causa das consequências que resultam da sua divulgação para o
comportamento de uma coletividade. Dizer que um jogo terminou em um a zero não é verdade
nenhuma. Trata-se de um fato objetivo sem qualquer repercussão. Brecht diz que importa perceber a
verdade naqueles pontos em que um pouco de luz faz perceber que onde ninguém era esperado, há
homens que se põem a caminhar como aparições, eles são os causadores das catástrofes.
Feita esta descoberta é preciso avaliar quem são aqueles em cujas mãos a verdade será
eficaz. Tem gente com quem não adianta expor a verdade. Quem é heterodirigido no sentido
kantiano está mumificado mesmo quando vê a verdade. Então, as vezes, é perda de tempo dizer a
verdade a quem não a quer ouvir. Aqui está a maior dificuldade. É como se fosse uma doença da
sociedade contra a qual os projetos críticos se lançam. Tirar as pessoas da anestesia do
heterodirecionamento.
Encontrados estes sujeitos dispostos a ouvir, é preciso também astúcia de disseminar a
verdade entre estes muitos porque há quem lutará para que ela não venha à tona. Como dizer a
verdade num jornal que recebe anúncios do governo? Que tem um dono? Que tem um público
anestesiado?
Portanto, retorna o tema da liberdade de empresa jornalística. Infelizmente nesta situação a
astúcia é necessária. Brecht dá exemplos. Confúcio falsificou um antigo calendário chinês
patriótico. Ele alterou apenas poucas palavras. Onde constava “o potentado de Kun deixou matar o
filósofo Wan por ter dito isto ou aquilo”, Confúcio trocou matar por “assassinar”. Onde constava
que o tirano morreu num atentado, ele escreveu “foi julgado e condenado à execução”. Com isto,
Confúcio trouxe ao trilho da história um novo rumo.
Brecht diz que, em nosso tempo, quem diz “população” em vez de “povo” e diz
“propriedade da terra” em lugar de “solo”, só por isso já negou muitas mentiras. Tira, das palavras,
sua mística preguiçosa. A palavra “povo” quer dizer uma certa unidade, e aponta para interesses
comuns. Portanto, deveria ser utilizada somente quando se tratam de diversos povos, porque só
nesse caso poderá existir interesses comuns. A população de um território tem interesses distintos e
contraditórios, e esta é uma verdade geralmente suprimida. Quem fala do solo, descrevendo apenas
o cheiro da terra e a cor do campo, apóia também as mentiras dos dominadores. Porque as questões
do campo não são fundamentalmente fertilidade do chão, nem do amor do homem à terra, nem do
seu trabalho, mas principalmente do preço do trigo e da mão de obra. As contradições do
Capitalismo.

103
Os que colhem os lucros do solo não são aqueles que plantam o trigo, e o cheiro de terra é
desconhecido na Bolsa de Valores. Esta cheira a algo bem diferente. A palavra certa a contrapor a
campo é propriedade, termo com o qual pode-se enganar menos. O termo “disciplina” deve ser
substituído por “obediência” nos lugares onde a opressão predomina, porque disciplina também é
possível sem um déspota e, consequentemente, tem um significado mais nobre do que obediência.
Melhor que a palavra “honra”, é a expressão “dignidade humana”. Com isso não se perde de vista o
indivíduo tão facilmente. Brecht fala do nazismo quando afirma que “é bem sabido que espécie de
ralé se aglomera a defender a ‘honra’ de um povo! E como os afortunados distribuem honrarias
sobre os que garantem sua fartura com a própria fome.” A astúcia de Confúcio pode ser utilizada até
hoje. Confúcio substituiu interpretações injustas de acontecimentos nacionais por outras mais justas.
O inglês Thomas Moore descreveu em uma utopia um país no qual a justiça prevalecia — era um
país bem diferente daquele em que ele vivia, mas que se parecia muito com ele exceto por essa
condição.
Um segundo grupo de astúcias é relacionada ao disfarce. Brecht diz que Lênin, mesmo
ameaçado pela polícia do Czar, pretendia descrever a exploração e a repressão da ilha Sacalina pela
burguesia russa. Ele escreveu Japão em vez de Rússia, e Coreia em lugar de Sacalina. Os métodos
da burguesia japonesa lembraram a todos os leitores os métodos russos em Sacalina, mas o texto
não foi proibido porque o Japão era inimigo da Rússia. Muito do que não se permitia falar a respeito
da Alemanha na Alemanha foi permitido falar sobre a Áustria.
Há muitas artimanhas como estas, pelas quais, pode-se enganar estados suspeitos. Voltaire
combateu os milagres da igreja por meio de um elegante poema sobre a virgem de Orleans. Ele
descreveu o milagre indubitável de Joana d’Arc ter permanecido virgem apesar de ingressar no
exército e viver entre os monges. Pela elegância do estilo com o qual descreveu aventuras eróticas
tiradas da vida voluptuosa dos governantes, ele lançou a tentação de revelar a eles uma religião que
lhes proporcionasse os meios de justificar religiosamente esta vida licenciosa. Além do mais, criou a
possibilidade de que seu trabalho chegasse de maneira ilegal às mãos daqueles para os quais eram
destinados. O poder de seus leitores estimulou que fosse tolerada sua divulgação. E o grande
Lucrécio registrou ter se aproveitado muito da beleza dos seus versos para disseminar o ateísmo
epicurista.
Um alto nível literário pode servir de proteção para uma informação crítica. Muitas vezes,
porém, desperta suspeita. Nesse caso, deverá ser empregada estrategicamente uma forma mais
simples. Assim ocorre, por exemplo, quando o autor passa de contrabando em meio a trechos de
uma forma desprezada, como a do romance policial, descrições embaraçosas. Tais artimanhas
justificam plenamente um romance policial. O grande Shakespeare fez deliberadamente sua
personagem falar de modo rasteiro, claramente abaixo das expectativas com o texto de um grande
autor, no discurso da mãe de Coriolano, com o qual ela confronta o filho que marcha contra sua
cidade natal impotente. Ele não queria passar a ideia de que Coriolano havia se afastado de seus
planos por uma razão lógica nem por uma emoção profunda, mas por uma certa preguiça com a fala
da mãe, uma inércia, por se entregar a um velho hábito.
Por fim, Brecht fala de mais dois tipos de astúcia, relacionadas a se fazer de bobo. O
exemplo vem de Shakespeare, no discurso de Marco Antônio perante o cadáver de César. Ele
destaca que Brutus, o assassino de César, é um homem honrado. Mas relata também o delito e faz a
descrição deste delito de forma muito mais expressiva do que a descrição do executor. O orador se
deixa vencer pelos próprios fatos. Ele os torna mais eloquentes do que a própria retórica dele
mesmo.
Um poeta egípcio, há quatro mil anos, utilizou método similar. Era uma época de grande luta
de classes. A classe até então dominante, defendeu-se a muito custo do seu adversário, a parte da
população até então oprimida. No poema, surge na côrte do imperador um sábio que incita a luta
contra o inimigo interno. Relata a desordem surgida pelo levante nas camadas inferiores de maneira
extensa e com insistência.

104
Uma outra modalidade de se fazer de bobo é elogiando o errado. Brecht conta uma história.
As repartições públicas foram tomadas, e seus registros foram roubados; os escravos tornaram-se
mestres. O filho do patrão se torna servidor da escrava, quem nunca havia visto o dia está agora
caminhando na luz. Os pobres do país ficaram ricos. Quem não tinha pão, agora possui um paiol.
Quem não tinha centeio, agora possui celeiro. Quem pediu donativo de centeio, agora o está
distribuindo. Quem não tinha uma junta num carro de boi, hoje tem seu gado. Quem não podia
emprestar um animal para arar, hoje possui rebanhos inteiros.
Este relato apresenta um tal estado de desordem que só pode parecer desejável aos
oprimidos. Mas é difícil culpar por isso o poeta. Ao dar esta impressão de inversão da opressão, ele
condena expressamente um outro estado de coisas, ainda que de mau jeito.
Neste espírito do absurdo, também Jonathan Swift escreveu que os filhos dos pobres
deveriam ser curados e vendidos como carne, para o país prosperar. Fez cálculos precisos que
demonstravam ser possível avançar muito a economia caso não se recuasse neste propósito.
Swift se fazia de bobo. Defendia uma certa forma de pensar, odiada por ele, com rigorosa
veemência e meticulosidade frente a uma questão que faria saltar, aos olhos de todos, sua
mesquinharia. Qualquer um poderia ser mais inteligente do que Swift, ou, pelo menos, mais
humano, mas estariam incluídos aí especialmente aqueles que não haviam examinado certas crenças
nem as consequências que se seguiam a elas.
Brecht elogia então o filósofo Hegel, voltado a pesquisas sólidas no campo da lógica, que
forneceu a Marx e Lênin, os clássicos da revolução proletária, métodos de valor inestimável. O
desenvolvimento da ciência realiza-se de modo colaborativo e articulado, porém de maneira
desigual a depender do avanço em cada área, o que impede o Estado de manter tudo sob seu
controle. Os vanguardistas da verdade podem escolher terrenos de luta relativamente pouco
vigiados. Tudo depende do surgimento de um pensamento certeiro, de um pensamento que aborde
as coisas e seus processos nos seus aspectos transitórios e mutáveis. Os dominadores têm forte
antipatia por grandes mudanças. Gostariam que tudo permanecesse igual, de preferência por mil
anos.
Conforme se adiantou, o texto de Brecht termina por um parágrafo de síntese:
Todas estas cinco dificuldades devem ser superadas uma a uma e ao mesmo tempo,
porque não podemos investigar a verdade sobre as condições de barbárie sem
pensar naqueles que sofrem subjugados a elas, enquanto nós, constantemente
sacudindo todo sentimento de covardia, procuramos o contexto real que diz
respeito a aqueles que estão prontos para utilizar este conhecimento, sem descuidar
de entregá-lo a eles numa forma de tal modo elaborada que o saber possa ser
utilizado como uma arma em suas mãos, e devemos, ao mesmo tempo,
contrabandear o saber com tal astúcia que seu fator surpresa não seja descoberto
pelo inimigo, de modo que possa ser anulado.

5.2.5 – Kracauer

Siegfried Kracauer fazia parte do grupo de judeus alemães fugitivos do nazismo que tentou
cruzar a fronteira entre Espanha e França em Port Bou, obtendo sucesso na empreitada. Kracauer
migrou para os Estados Unidos em 1941. Conhecia Adorno e outro frankfurtiano Leo Lowenthal
desde o final dos anos 1910 e produziu extensa obra crítica em jornais além de diversos trabalhos
acadêmicos, com destaque para seu estudo a respeito do cinema alemão encomendado pelo Museu
de Arte Moderna de Nova York: De Caligari a Hitler. Por muitos anos editor do Frankfurter
Zeitung, jornal de onde foi sendo aos poucos expulso com a entrada de capitais em 1929 que
evitaram a falência do grupo, e com a ascensão do nazismo. Atribui-se a ele um escrito anônimo, a
novela Ginster (1928) em que denunciava as condições do período. Dizia que os jornais não podiam
mais oferecer o melhor lugar para o exercício da crítica social. Anuncia a necessidade do
surgimento de um novo tipo de escritor que “em vez de ser contemplativo, fosse político, em vez de

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buscar submeter o particular ao universal encontra o universal a partir do particular, em vez de
perseguir desenvolvimentos, deve procurar rupturas” (KRACAUER: 1995, p. 9). Mas a principal
forma de expressão de seu pensamento era ainda por meio de escritos de jornal. Evitou trocar o
Weltbühne assumidamente crítico pelo Frankfurter Zeitung onde atingia maior público e mais
heterogêneo.
No jornal, podia saltar rapidamente entre diversos temas, desde cinema até circo, rádio e
revisões literárias, sociologia e filosofia, até arquitetura, planejamento urbano, comentário político e
análise sociopolítica. Para ele o jornal era o meio de engajamento da esfera pública sobre diversos
temas. Mas ele percebia a transição dos ares em seu país, conforme registra numa carta a Adorno,
dizendo que “sacrifico minha energia por artigos, a maioria dos quais nunca terá vida além do
papel” (KRACAUER: 1995, p. 10).
Sua contribuição teórica de maior fôlego foi uma especulação original a respeito da crítica
do cinema como uma crítica da administração da sociedade, apontando para a aliança entre cinema
e política em moldes semelhantes aos que se encontram na obra de Benjamin. A contribuição teórica
de Kracauer fica ainda mais consistente em sua obra posterior, Teoria do cinema (1960). Ali ele
descreve a câmera cinematográfica como um equipamento que inaugura uma nova percepção visual
mais profunda que a do olho. Contra uma teoria que parecia relegar a câmera a mera reprodutora do
que o real já mostrava aos olhos, ele argumenta que a câmera amplia este olhar ao penetrar na
própria estrutura das relações invisíveis do real, mostrando aquilo que passa invisível a olho nu.
Uma coisa é ver um desfile de soldados nazistas na perspectiva de um deles, outra no sobrevoo de
uma câmera aérea mostrando a totalidade do grupo, aquilo que Kracauer denominaria o “ornamento
da massa”. Assim a técnica abre a possibilidade de análise da própria mentalidade de uma época, de
um povo, de um momento histórico.
Esta é a tese fundamental de Kracauer. Sua história do cinema alemão entre 1919 e 1933 que
compõe De Caligari a Hitler tem menos relação com a história do cinema do que com a tentativa de
encontrar por trás dos filmes uma espécie de porta de acesso ao espírito de época do povo alemão.
Via a história dos filmes como uma história das atitudes do povo, numa perspectiva psicológica
inconsciente e invisível para a qual a câmera dava acesso e permitia analisar.
O que poderia aparentar ser um problema de sua obra, portanto, sua contingência histórica
empírica, parecia ter transformado seu livro numa análise datada, ganha assim outra dimensão
positiva. Mostra o poder de análise ontológica do presente que se agrega ao ser humano quando ele
utiliza a câmera como uma espécie de instrumento de ampliação da sua própria faculdade de
conhecimento. O jornalismo também tem muito a aprender com isso, saber que a câmera abre novas
perspectivas de representação do real que não são possíveis realizar sem ela.
A outra crítica que se faz a esta abordagem é que Kracauer parte em sua análise da
conjuntura histórica para tentar explicar a história do cinema alemão a partir de uma finalidade
específica, que seria demonstrar como se deu a construção de uma ideologia para o Terceiro Reich
por meio do cinema. O livro se propõe demonstrar o processo de ascensão ao poder de Hitler. Esta
linha teórica norteia toda a interpretação dos filmes. Mas o que pode aparentar ser uma inclinação
da metodologia, que poderia forçar certas conclusões e colocar a perder seus resultados teóricos,
também pode ser visto justamente como a pertinência exigida pela análise dada sua conjuntura
histórica específica. Kracauer chamava de miopia um tipo de abordagem teórica que preferia falar
de temas mais universais numa época em que a política concreta era tão tumultuada.
Sua visão se sustenta, primeiro, porque esta pretensa orientação contingente não tira o
mérito de que o trabalho inaugura uma perspectiva teórica de abordagem psicológica da sociedade
que tinha apoio em autores que se ancoravam numa possível ligação entre os pensamentos de Marx
e Freud, como os frankfurtianos Erich Fromm e Herbert Marcuse. Junto com Horkheimer, Adorno
também havia trabalhado numa pesquisa denominada Studien zum autoritäten Character, que
especulava a respeito da tendência autoritária que constituía uma espécie de mentalidade do povo

106
alemão do período hitlerista, tendendo para o totalitarismo. Ficaria um trabalho menos conhecido da
parceria, escrito originalmente nos Estados Unidos, só foi traduzido para o alemão na década de 70.
Esta tendência do povo alemão incorporava um sentimento antigo de revolta anticapitalista,
que era canalizado pela proposta Nacional-Socialista, e que punha em seu lugar a ideia de um
regime disciplinar que estabelecesse um sistema de extrema ordem. Esta distorção disfarçava o
caráter capitalista do próprio nazismo e prometia uma falsa solução diferente baseada em
percepções emocionais primárias. O foco dos estudos de Fromm e também de Kracauer era
trabalhar esta desmistificação. Kracauer via o cinema como um campo onde era possível reconhecer
símbolos culturais indicativos desta mitificação, apontando no sentido da construção das
características subjetivas do povo em que se mostravam espelhadas. Seu método, portanto é
nitidamente empírico.
Segundo, porque, sendo totalmente empírico, o que se vê como resultado da análise é uma
teoria que explicita o que efetivamente se passava naquele período na sociedade daquele país.
Kracauer identifica em quatro períodos do cinema alemão o surgimento de filmes que indicavam os
déspotas poderosos como pessoas bem intencionadas difamadas por pensadores rasos oportunistas
que pretendiam implementar o caos e trair a própria pátria em nome de valores como a social-
democracia e o comunismo. Este era justamente o sentimento do povo no período pós 1919, depois
que a Alemanha fora derrotada na Primeira Guerra. Os conservadores repetiam que a guerra havia
sido perdida em casa, por força dos traidores internos que minaram as bases de sustentação do
imperador.
Não há dúvida de que o cinema pós-Primeira Guerra na Alemanha é marcado pela condição
de trauma de guerra. Os filmes expressionistas como Dr. Caligari, Nosferatu, Siegfried, Metropolis,
Dr Mabuse entre outros, apontam para um sentido comum batizado por Anton Kaes (2009) Shell
Shock Cinema, ou seja, cinema dos traumatizados de guerra. “Em quatro anos, setenta milhões de
pessoas foram incorporadas às armas, perto de nove milhões morreram em batalha, outros dois
milhões nunca voltaram para casa… Doze milhões de soldados voltaram com deficiência física e
um número imenso voltou com traumas psicológicos com efeitos de longo prazo” (KAES: 2009, p.
3). Não foi por outro motivo que a psiquiatria e a psicanálise tiveram desenvolvimento tão veloz ali.
As consequências da Grande Guerra fizeram surgir o termo “trauma de guerra”, que os
médicos usaram para diagnosticar soldados da linha de frente sofrendo de colapsos nervosos. E o
cinema também esteve envolvido neste movimento. Em outubro de 1914, o Comando Supremo
alemão cedeu e permitiu que dois cinegrafistas representando quatro empresas de cinema fossem
para o front. Várias condições tiveram que ser satisfeitas: as empresas de cinema tinham que ser
patrióticas e “puramente alemãs”; apenas câmeras alemãs e estoque de filmes alemães podiam ser
usados; as empresas tiveram que enviar representantes confiáveis ao campo de batalha; e o mais
importante, as filmagens só foram autorizadas com a permissão do chefe do estado-maior do
exército. Fez parte do esquema Oskar Messter, pioneiro do cinema alemão.
Paul Virilio explicava em seu clássico Guerra e cinema esta estreita ligação, em que, por
força das novas visibilidades inauguradas pelas técnicas de observação, ser visto é ser morto. Os
aparelhos do cinema foram protagonistas da primeira guerra tecnológica. Alertado diversas vezes
que havia uma frente de batalha que se dava no cinema, finalmente o imperador alemão fora
convencido da necessidade de um cinema de guerra, e libera os recursos para a construção da UFA
em 1917. Em novembro, de 1918, depois que o kaiser abdicou, a UFA se tornou o berço do cinema
expressionista.
O primeiro filme que trata dos traumas é Os Nervos (Nerven) de Robert Reinert, filmado em
Munique no verão de 1919. Nove anos antes, o Kaiser alemão anunciava que a guerra que viria a
seguir seria decidida a favor de quem tivesse os nervos mais fortes. Dr. Caligari que abre a análise
de Kracauer trata diretamente de um asilo. Francis, o algoz de diversas vítimas sofre de trauma
psiquiátrico na forma de sonambulismo, vive em estado de catalepsia e desperta somente sob

107
hipnose do vilão Dr. Caligari. A teoria da hipnose freudiana foi desenvolvida sob as sombras da
Grande Guerra.
A personagem feminina que se apresenta logo na introdução do filme, Jane, passa pela tela
como se fosse um fantasma, lembrando as histéricas tratadas pela psicanálise. Cesare, a personagem
do sonâmbulo assassino, apresenta “um estado que remete a histórias dos soldados que retornaram
do front quando tratam de suas experiências de proximidade com a morte” (KAES: 2009, p. 57)
Portanto, a tenda de Caligari mimetiza o próprio papel do cinema. Cesare tem aproximadamente 23
anos, a idade do cinema em 1919.
Tudo isso é o pano de fundo da análise feita por Kracauer, mas ele se apega a uma suposição
de que houve uma inversão no roteiro do filme. Originalmente pensado para retratar um Dr. Caligari
que era perverso e representava um tirano que mandava seus homens (Cesare) para o front com o
fim de matar, pelo uso de um recurso de frame-history, os papéis se invertem. O motivo por que a
tela mostrava um cenário de pinturas distorcidas ao gosto do expressionismo se revela. Era a visão
conturbada do narrador, a personagem que conta a história, e que era o louco na verdade. Caligari é
uma ilusão deste maníaco, o verdadeiro Caligari é um bom médico psiquiatra, salvador de doentes
mentais. O tirano se torna o bom governante. Segundo Kracauer esta não era a intenção dos
roteiristas. Seria resultado das artimanhas da produção de Erich Pommer com o fim de não
descontentar os poderosos da UFA. A credibilidade de que isso ocorreu era incontestável dada a
impressionante produção de análise cinematográfica do jornalista que fez que “Kracauer fosse o
mais prolífico e influente crítico de cinema da Alemanha dos anos 1920” (KAES: 2009, p. 76)
Kaes aponta que o escrito de Kracauer foi influenciado pelo fato de ele estar nos Estados
Unidos em 1947, quando escreve a obra, precisando dar explicações ao fenômeno do caráter
autoritário alemão e do comportamento da Alemanha na segunda Guerra para a pátria que lhe dera
refúgio. Na mesma linha também se alinhava o estudo feito pela Escola de Frankfurt em 1945 em
colaboração com a universidade da Califórnia, que estudou a emergência do fascismo e do
antissemitismo. Kracauer vai colocar um novo método que coloca o cinema como aliado desse
projeto.
A obra de Kracauer é um ensinamento exemplar para o jornalismo porque sua obra enfrenta
as mesmas dificuldades com as quais o jornalismo se depara quando tem de apurar a verdade. Hoje
em dia se questiona até mesmo se a perspectiva explorada por Kracauer, de que o script do Dr.
Caligari teria sido invertido por um frame que reposicionou uma visão crítica a respeito do poder, se
sustenta, visto que contrasta com uma possível descoberta posterior do script onde o frame
narrativo já estaria previsto.
Mas o fato é de que a teoria de Kracauer está inundada de realidade que a penetra por todos
os lados e coloca desafios de interpretação. Esta é a grande lição de Kracauer. A verdade não é fácil
de elucidar. Ela recebe novos impactos frente a novas descobertas. Por isso, é possível errar. Quem
está num país que lhe deu abrigo pode ter de ser flexível. Não é possível ter acesso a este tipo de
teoria sem levar em conta que Kracauer era antes de tudo um jornalista exilado perseguido pelo
nazismo, que tem muito a ensinar para o jornalismo propriamente dito.

5.2.6 – Arnheim

No mesmo grupo de amizades dos frankfurtianos, também com inserção importante no


campo da teoria da imagem e da crítica da cultura em jornais como o Weltbühne, encontramos
Rudolf Arnheim. Sua obra mais famosa é Arte e percepção visual (2008), representante importante
da aplicação da teoria da Gestalt como fundamento de crítica de arte. A obra foi produzida em 1954
no exílio nos Estados Unidos, portanto, já se encontra nela a neutralidade que se exigia dos alemães
radicados ali no período macarthista. No mesmo espírito depurado de qualquer ameaça vermelha foi
reeditado em 1957 o livro Film as Art onde Arnheim aplica a teoria da Gestalt para diferenciar um

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campo da percepção pura que ele chama “imagem do mundo” (Weltbild) de outro em que olhamos
por meio de imagens cinematográficas “imagem de cinema” (Filmbild).
Arnheim percebeu que a imagem de cinema acrescentava algo ao objeto em termos de
capacidade expressiva, explorando em maior detalhe o que Kracauer já havia definido como
realismo. Num pequeno artigo sobre o Expressionismo alemão, Arnheim identificou a gênese desta
exploração. Os filmes expressionistas de 1919 a 1924 já não podiam mais ser vistos com
naturalidade pelo público dos anos 1930. Atores com pinturas exageradas, gestos impulsivos,
ausência de som. O cinema havia se transformado radicalmente. Mas, ao mesmo tempo, Arnheim
não deixa escapar o mérito ao movimento expressionista pelo fato de ter sido o primeiro movimento
cinematográfico que promoveu uma ampla importância do posicionamento de câmera, da
iluminação, ou seja, dos fatores formais do meio de expressão cinematográfico.
Ele (Expressionismo) proclamou o reinado dos fatores formais pondo fim a um
período em que os objetos reais foram supervalorizados. Ele pôs em evidência a
cor, a forma, o movimento, o motivo emocional e, mesmo depois de superado,
restou dele um novo frescor: a sensação da importância dos aspectos formais, o
estímulo ao seu uso e a perda de vergonha de valorizar a forma…Sabemos hoje que
é possível com um simples posicionamento de câmera ressaltar uma composição na
tela, destacar uma característica bizarra de um objeto, sem ter de manipular a
natureza do objeto. Este fortalecimento do meio expressivo pela iluminação e
posicionamento de câmera – isto é o elemento expressionista dos filmes de hoje!
(ARNHEIM: 1977: 150).
Arnheim defendeu a tese de que esse algo a mais nascia justamente numa lacuna existente
no âmbito da percepção entre a imagem de um objeto quando o vemos no mundo (Weltbild) e a
imagem de um objeto mostrado na tela de cinema (Filmbild).
As diferenças primordiais são seis: 1) na imagem de cinema, a forma como os objetos
sólidos são projetados na superfície plana da tela é distinta da maneira como eles são projetados no
plano da retina porque naquela não há como mudar o ponto de vista de observação; 2) a paralaxe,
ou seja, a distância entre os dois olhos no rosto, é capaz de oferecer imagens um pouco distintas ao
cérebro que consegue a partir desta diferença criar a noção de profundidade tridimensional, coisa
que a imagem única do cinema não consegue; 3) na imagem de cinema até então não havia recursos
capazes de captar as cores dos objetos, enquanto os olhos enxergam cor, e isso é um dos elementos
que faz com que o papel da iluminação no cinema seja muito mais importante do que nas situações
naturais; 4) as bordas da imagem do cinema impedem o olho ver além do campo filmado, e o
tamanho de um objeto na tela vai depender da distância com que a câmera estiver dele quando for
filmado (o close-up, o plano geral), enquanto, no mundo, o cérebro compensa as deformações da
perspectiva por meio dos instrumentos psicológicos conhecidos como “regularidade de tamanho” e
“regularidade de forma” (estudados pela Gestalt), além do que os olhos, cabeça e corpo estão em
permanente movimento, “vendo” não só o que está à frente dos olhos, mas também o que agora está
atrás, mas que se sabe estar ali porque já foi visto há pouco; 5) há total possibilidade de quebra da
continuidade de tempo e espaço no cinema (por meio da montagem de tiras de filme descontínuas)
enquanto no mundo real essa quebra do tempo ou do espaço não é possível; e 6) no cinema estão
ausentes todos os outros sentidos que funcionam como apoio à visão, como o sentido gravitacional
que nos indica quando estamos olhando inclinados para cima ou para baixo.
Essas seis diferenças comprovam a enorme distância existente entre olhar simplesmente para
algo e olhar para algo que é visto por meio da projeção da imagem. Não há como ignorar esta
dimensão quando o jornalismo trata do problema da representação e da objetividade. Estas lacunas
abrem brechas para desvios parecidos com os que já analisamos anteriormente. Quanto mais
proveito se souber tirar dessas diferenças, explicitando cada uma delas ou mesmo criando efeitos
surpreendentes a partir da exploração criativa de cada uma delas, mais se adentrará no universo de
uma arte, ou técnica, capaz de representar com maior ou menor profundidade.

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Mas um aspecto da obra de Arnheim que talvez interesse ainda mais ao jornalismo está em
outro trecho de seu livro, aquele que acreditamos ter sido retirado não por coincidência da obra nos
Estados Unidos por ocasião de sua reedição em 1957. Trata-se do capítulo suprimido em grande
medida intitulado O que filmar.
Os filmes que se destinam à grande massa de público de todo o mundo revelam a
imagem característica de mundo do espectador: os ricos e nobres são inimigos e
devem se dar mal, mas nem tanto porque seus privilégios sejam imerecidos e sim
porque nós não participamos também dos privilégios. Nós desejamos também as
vantagens, a riqueza, a moleza e a libertação do trabalho cotidiano. Nós
enxergamos nossa própria pobreza e desconforto com os olhos do inimigo, nós
culpamos a nós mesmos, e buscamos encobrir nossos pontos fracos com cenários
coloridos, porque não somos, no fundo, conscientes, mas sim crentes e devotos…
Nós acreditamos de longa data que há um deus amoroso no céu. Não reparamos e
lançamos contra as outras pessoas críticas racionais, mas censuras morais, cujas
regras são extraídas de um código de comportamento estúpido. Traição,
desentendimentos familiares não são para nós casos infelizes que se dão quando
pessoas cujas personalidades não combinam estão juntas porque a natureza as
conduziu a um erro de percurso. Se tratam muito mais de crimes condenáveis que
devem levar a uma condenação eterna, perdão ou arrependimento. Pessoas que se
entregam a essas condutas devem, se não quiserem nos aborrecer, ser lançadas para
fora da convivência com o mundo burguês tradicional, não podem permanecer em
nosso círculo social, mas devem ser tratadas como criminosos, vigaristas, ou
cortesãos. Um homem com uma loja de atacados que se deixa uma vez desviar
numa má conduta, mas que recua num arrependimento sincero, pode seguir sua
vida de senhor respeitável, o mesmo se dá com mulheres e crianças. Que tipo é
assim retratado? É o alienado. (ARNHEIM: 2012, p. 172).
Veremos análise semelhante a seguir no estruturalismo crítico. Arnheim pensa na mesma
linha. Para Arnheim, é muito claro por que as histórias dos filmes são alienantes e não mantém o
mínimo contato com a realidade cruel do mundo.
Isso acontece não só porque 90% da produção cinematográfica estão nas mãos de
pessoas que têm interesse na manutenção da ordem social que é favorável a elas,
pessoas que têm interesse de desviar as energias revolucionárias e deixá-las
lançarem-se contra um para-choques. Seria impossível levar uma produção
cinematográfica para milhões de pessoas se o cinema não atendesse ao gosto delas.
A produção de filmes flerta com aquilo com que as pessoas estão mais habituadas.
Se ela é inimiga da arte e do desenvolvimento é porque ela oferece o tipo de
produto engordurado e que alimenta o ódio à arte e à transformação em cada uma
destas pessoas.(ARNHEIM: 2012, p. 164).
Como exemplo de roteiro ideológico, Arnheim cita que
Joe Dallmann escreveu um roteiro leve que agrada o gosto do grande público. Um
velho general está numa situação financeira desastrosa de modo que cai em boa
hora o pedido de casamento de um joalheiro para sua filha. Um dia antes do
casamento o joalheiro toma conhecimento de que sua noiva ama outro homem. Isso
faz com que no dia das núpcias, conclua que a união não é possível, desista da
noiva e rompa com a relação (ARNHEIM: 2012, p. 165-6).
Arnheim diz que, para concluir com chave de ouro a comunhão deste mundo cor-de-rosa
fraterno, o joalheiro dá um cheque de presente ao casal, que além de poder materializar sua vontade
de estar junto ainda poderá usufruir das benesses do dinheiro. Um filme assim, diz Arnheim,
menospreza a inteligência do ser humano, mas, mais do que isso, age no inconsciente gerando uma
imaturidade emocional de satisfação com o mundo que é conformista e conveniente para quem
detém os poderes instituídos, sejam políticos ou econômicos.
Arnheim foi jornalista, tendo publicado em 1925 sua primeira crítica cultural na revista
Palco do Mundo (Weltbühne), para a qual contribuiu regularmente entre 1928 e 1933. Naquele

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último ano o periódico foi fechado pouco depois de seu editor Carl Ossietzky ser preso pelos
nazistas. Já no período da guerra, Ossietzky foi morto num campo de concentração. Arnheim diz
dele que “Ossietzky é o único herói de verdade que eu conheci. Ele não se expôs ao assassinato e à
tortura com o impulso instintivo de um revolucionário ousado, mas pelo simples dever de defender
suas convicções superou sem hesitação sua própria fragilidade física e timidez” (ARNHEIM: 1977,
p. 12)
Era sob influência desta geração de jornalistas escreveu o artigo “Alma na camada de prata”
(Die Seele in der Silberschicht) onde se encontra o mesmo espírito presente tanto nas ideias
posteriores de Walter Benjamin – quando fala da perda da aura na obra de arte reprodutível – quanto
do artigo pioneiro neste sentido, “Alma e forma”, de George Lukács. A forma e o ser humano
político tinham de estar imbricados também no cinema. Uma marca da Palco do Mundo foi seu
posicionamento contrário à propaganda militar alemã de 1918, imperialista, que via a derrota alemã
como resultado não do fracasso de suas forças armadas no exterior, mas sim de uma suposta
sabotagem interna por parte de comunistas e social-democratas no próprio país. Apesar de se
posicionar à esquerda, o jornal adotava um caráter combativo e crítico distanciado, entretanto, dos
partidos comunista e social-democrata. Um dos últimos artigos de Arnheim foi sobre um poeta
nacionalista Gottfried Benn, em quem Arnheim via a inclinação para o irracionalista nazista como
oposição ao iluminismo. O título do artigo Die Flucht zu den Schachtelhalmen pode ser traduzido
em algo como “Fuga para o pasto”, já que a palavra no título remete a um tipo de leguminosa
utilizado antigamente para alimentação de animais. Após se despedir do jornalismo sugerindo aos
nazistas que fossem literalmente pastar, em 1933, Arnheim foge para a Itália e, em 1938, para a
Inglaterra, dando seu último salto em busca de segurança em 1940, quando migra para os Estados
Unidos.

5.2.7 – Klemperer

Colocar Victor Klemperer neste ponto da exposição parece ser bastante oportuno, porque o
alemão de origem judaica foi uma vítima do nazismo como os autores até aqui enumerados, embora
em vez de fugir do país tenha suportado ali mesmo a perseguição, mas também porque foi um
filólogo, o que o coloca num ponto de transição para as escolas que analisaremos a seguir sob o
rótulo de estruturalismo. Ele registrou toda a sua vida em diários que somaram mais de 4 mil
páginas escritas. Quando o nazismo subiu ao poder, Klemperer já escrevia diários havia 36 anos,
mas sua obra-prima não podia deixar de ser justamente o registro do período nazista, quando ele faz
uma análise do lado de dentro – Klemperer nunca saiu da Alemanha – do que ocorria à língua alemã
e sua relação com os judeus. Ele só conseguiu sobreviver ao período porque era casado com uma
alemã ariana, o que o punha num grupo intermediário da linha divisória racial na visão dos nazistas,
mulher a quem ele dedica o prefácio de sua obra sinalizando sem entrar em detalhes todo o
sacrifício que a manutenção deste relacionamento deve ter custado a ela. Simplesmente a chama de
heroína. Para ele “para ser herói não basta ter coragem e arriscar a vida. Para isso serve qualquer
arruaceiro, qualquer criminoso. Em sua origem, o heros (herói) é uma pessoa que realiza atos que
estimulam o melhor da humanidade.” (KLEMPERER: 2009, p. 43).
Klemperer chama o resultado da transformação por que passou a língua alemã no período de
Linguagem do Terceiro Reich (LTI), título de seu livro sobre o período. Para construir sua análise
ele explica que observava como os operários conversavam na fábrica, como os trogloditas da
Gestapo falavam e como os judeus eram enjaulados além de como as pessoas se expressavam a esse
respeito. Diz ele que a tarefa não era difícil porque as pessoas se expressavam uniformemente. “Não
se notavam grandes diferenças; para ser sincero, nenhuma. Adeptos e opositores, beneficiários e
vítimas, todos seguiam os mesmos modelos” (KLEMPERER: 2009, p. 51). Ele sentia na pele tudo o
que ocorria ali, todo portador da estrela amarela dos judeus estavam proibidos de pegar qualquer
tipo de livro, revista ou jornal. Desde 19 de setembro de 1941 todos os judeus foram obrigados sob

111
pena de morte a portar a estrela amarela na lapela das roupas. Qualquer transgressão a estas
determinações representava perigo de morte. Só conseguiram escapar desta perseguição quem teve
muita sorte.
Por outro lado, tudo era muito transparente para quem estava ali. “O nazismo se embrenhou
na carne e no sangue das pessoas por meio de pelavras, expressões e frases impostas pela repetição,
milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente” (KLEMPERER: 2009, p. 55). É muito
presente na obra de Klemperer o que se verá explorado teoricamente no estruturalismo, o papel e o
poder da língua, seu totalitarismo. Ele não teoriza esta questão, mas fornece um documento
importantíssimo da manifestação empírica daquilo que o estruturalismo irá estudar de modo
abstrato.
Uma característica importante desta língua artificial nazista é sua pobreza. “Ela é pobre por
princípio, como se cumprisse um voto de pobreza” (KLEMPERER: 2009, p. 61). Klemperer acha
que o mito fundador desta língua foi o livro Minha Luta (Mein Kampf) de Adolf Hitler. Esta
linguagem se alimentou da linguagem militar depois corrompeu esta linguagem e se alastrou. Sua
forma de disseminação eram textos em panfletos, jornais, revistas, livros escolares, obras científicas
e literárias. Antes do nazismo, havia ampla liberdade de expressão no jornalismo, na ciência e na
poesia. Havia correntes distintas como o neorromantismo, o impressionismo e o expressionismo.
Havia liberdade de criação que refletia em riqueza da língua até 1933. Repentinamente se impôs
uma unificação que tornou a língua moribunda, pobre de espírito, uma escravidão linguística
uniformizada que é a principal característica da LTI.
Diz Klemperer que “a razão da pobreza parece evidente. Com um sistema tirânico
extremamente invasivo, tudo era vigiado nos mínimos detalhes para que a doutrina nacional-
socialista permanecesse intacta, sem falsificações em cada um de seus aspectos incluindo a
linguagem” (KLEMPERER: 2009, p. 64). Este tipo de controle se inspirava no modelo de censura
eclesiástica. Os textos para serem publicados dependiam de dizeres do Partido Nacional-Socialista
Alemão (NSDAP) que dizia não se opor à publicação, termo assinado pelo presidente aa comissão
oficial de censura de proteção ao nacional-socialismo.
Para o autor, o maior mistério do Terceiro Reich é entender como Mein Kampf conseguiu
penetrar na opinião pública, como permitiu que Hitler dominasse como dominou todo um povo,
colocando seu texto como a bíblia do nacional-socialismo. Trata-se de um fenômeno histórico novo,
o fanatismo dos adeptos do nazismo. Infelizmente Klemperer aprendeu o que estava se passando de
uma maneira dura. Ele narra como aprendeu as primeiras palavras nazistas de que teve
conhecimento. A primeira, aprendeu de seu filho adotivo quando este lhe contou que participara de
uma expedição punitiva (Strafexpedition). Quando estava na fábrica onde trabalhava, descobriram
uns comunistas e lhes aplicaram uma surra com cassetetes de borracha lubrificados por óleo de
rícino. “Nada de muito sangue, mas alcançamos o nosso objetivo”, a expedição punitiva, disse o
rapaz. Klemperer disse que anotou este novo termo nazista em seu material de estudo e o explicou
como tudo que podia encarnar arrogância, violência e desprezo contra pessoas diferentes. Naquele
momento, ainda achava que se tratava de uma influência italiana do fascismo porque ainda não
tinha condição de entender o que se passava tão perto. Perceberia só mais tarde da pior maneira que
“o pecado original e mortal do nazismo era alemão, não italiano” (KLEMPERER: 2009, p. 92).
Havia, por exemplo, um inédito ritual de iniciação ao nazismo. Quando uma pessoa aderia
radicalmente ao nazismo ela devia visitar seus amigos para comunicar-lhes a respeito de suas novas
convicções políticas, esperando que eles continuassem a aceitá-la como amiga. Havia algo ali de
messiânico. Klemperer explica que nos exames para conclusão de curso nas escolas havia uma
pegadinha, que era perguntar o que viria depois do terceiro Reich. Quem respondesse que era o
quatro Reich seria eliminado, porque a resposta certa era que nada vem depois do terceiro Reich
porque ele seria eterno.
Para o autor, o antissemitismo foi o aspecto central do nazismo. Foi a ideia fundamental, o
meio de propaganda mais eficaz e mais forte do partido, a mais ousada materialização da doutrina

112
racial. Não havia como especular sobre a inferioridade dos povos do leste nem dos negros na
Alemanha, mas “um judeu, esse qualquer um conhecia” (KLEMPERER: 2009, p. 217). Foi com
base neste racismo pseudocientífico que se permitia justificar o descomedimento, a conquista, a
tirania, a crueldade e o genocídio. Ele inaugurou uma nova forma de intolerância, que se deve
associar ao extermínio por meio de câmaras de gás. Introduziu um ódio contra o judeu distinto da
intolerância religiosa, antes baseada na ideia de raça. Destes tempos anteriores esta intransigência
era dirigida a pessoas de outra fé. Mas ao situar no sangue a distinção entre judeus e não judeus, a
ideia de raça tornou impossível qualquer mediação como foi possível a conversão ao cristianismo.
Neste sentido, o pior dia do nazismo foi 19 de setembro de 1941, o dia a partir do qual se
tornou obrigatório o uso da estrela de Davi, de seis pontas, em amarelo. Na rua, a primeira
experiência de Klemperer sobre esta marca estampada foi se deparar com um senhor que vem ao
seu encontro com ar sério conduzindo um menino pela mão. Estanca à sua frente, e diz para o
garoto que o judeu era o culpado de tudo. Outro senhor o procura a seguir para dizer que condena
estes métodos. Mas ambas experiências o ferem. Se sente marcado. As relações sexuais entre judeus
e arianos eram chamadas de Rasenschande (desonra racial). São vivências comuns a quem se torna
vítima do racismo.
Com os primeiros abalos na guerra nos anos 40, a propaganda passa a substituir números de
mortes por palavras como inestimável e sem número. “O espantoso aqui era o caráter grosseiro da
mentira, que transparecia nos próprios números. A doutrina nazista acredita na estupidez das
massas, consideradas incapazes de raciocinar.” (KLEMPERER: 2009, p. 332). “Nem dá para
afirmar, com segurança, se todos os que riram ou se indignaram com as mentiras descaradas de
Goebbels permaneceram imunes a elas. Durante o período em que fui professor em Nápoles,
quantas vezes ouvi dizer de tal ou qual jornal que é pagato, (é pago), ou seja, mente para agradar a
quem o controla” (KLEMPERER: 2009, p. 339). Mas um dia depois se esquecia do episódio e se
passava a confiar novamente no que o jornal dizia.
Nos estertores do terceiro Reich, Klemperer descreve que era lido na rádio Berlim o artigo
mais recente do ministro da Propaganda. Estes documentos serviam para definir a linguagem
permitida. Isso explica a pobreza da língua, ela obedecia a um único padrão de linguagem que só
permitia expor um lado da natureza humana. Nela, cada ser humano não era nada, o povo era tudo.
Ninguém estava nunca sozinho, estava sempre exposto. Assim, a LTI busca “privar cada pessoa da
sua individualidade, anestesiando as personalidades, fazendo do indivíduo peça de um rebanho
conduzido em determinada direção, sem vontade e sem ideias próprias, tornando-o um átomo de
uma enorme pedra rolante.” (KLEMPERER: 2009, p. 66). Administração das massas. Conclui o
autor: “A LTI é a linguagem do fanatismo de massas” (KLEMPERER: 2009, p. 66).
Ao mesmo tempo, por meio das ondas radiofônicas invisíveis, outros discursos começavam
a invadir o país. Vinham da Suíça, de Londres e de Moscou: Rádio Soldado, Rádio da Liberdade.
“Todos sabiam que essa escuta proibida era punida com a morte, mas mesmo assim conheciam os
horários, as frequências e os demais pormenores de cada estação… Todos aguardavam o fim
próximo de Hitler e a chegada dos russos.” (KLEMPERER: 2009, p. 412). Esta narrativa dialoga
intensamente com os momentos históricos em que o jornalismo foi censurado no Brasil, em
particular com o período de 1968 a 1978. É como se um povo inteiro gritasse que apesar de você,
amanhã há de ser outro dia.

5.3 – Pensamento francês

O estruturalismo é formado por uma ampla gama de teorias e escolas que têm em comum
aceitarem por sua base de desenvolvimento teórico a noção de estrutura. Este termo nasce inspirado
na palavra sistema utilizada pelo suiço Ferdinand de Saussure. Ambos servem de base para o
desenvolvimento de uma teoria da linguagem denominada Linguística. Sua tese básica é que a
língua é um(a) sistema/estrutura constituído(a) unicamente por diferenças.

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Em linhas gerais, o termo estrutura tenta explicar o que acontece com qualquer língua
quando tentamos entender como ela organiza suas palavras. Um bom exemplo são os termos
madrugada, manhã, meio-dia, tarde, noite, meia-noite. Não é muito fácil explicar o que cada uma
delas é a não ser que as entendamos como uma série de termos que se relacionam num sistema a
partir de suas diferenças. A língua funciona assim. Temos uma sequência de horas do dia, e a
madrugada vai abranger a faixa entre 0h01m e 5h59 por exemplo, já a manhã vai iniciar às 6h0m e
segue até 11h59m, quando surge o meio-dia, 12h00, seguido pela tarde, de 12h01m até 18h59m,
quando começa a noite de 17h0m até 23h59m, seguida pela meia-noite, 0h00m e chegamos
novamente à madrugada. Um termo vai até onde começa o outro termo. O dia é um contínuo e cada
trecho dele vai ser abrangido por uma palavra que vai se diferenciar de todas as outras e que vai
representar um certo período. Portanto uma estrutura, ou um sistema.
Tudo isso estará sujeito a idiossincrasias regionais e sociais, porém independente disso, a
língua só vai funcionar em cada comunidade ou país porque esse sistema de diferenças estará
acordado entre a comunidade de falantes que vai saber exatamente do que se trata quando alguém
fala manhã. Outro ponto interessante da dependência da língua em relação à sociedade é que nem
todos os povos dividiram igualmente estes trechos. Onde temos dois termos, tarde e noite, em
português, temos três, afternoon, evening e night, em Inglês, ou Nachmittag, Abend e Nacht em
Alemão. Cada língua organiza seu sistema de diferenças.
O estudo de diversas línguas pode revelar os mecanismos em ação nessas divisões. No
exemplo das cores, Saussure identifica línguas que só têm duas palavras para cores: branco e preto.
Isso não significa que as pessoas vejam de modo diferente, elas conseguem ver que há uma
diferença entre uma coisa que chamamos preto e uma que chamamos vermelho escuro. Porém a
palavra que vai dar nome naquela língua a essas duas coisas distintas é uma palavra só, preto. Essas
foram chamadas como tipo I. Já um tipo II, tem branco, preto e vermelho. De modo semelhante,
quando aparece algo azul para as pessoas de lá, elas vão chamar aquela cor de preto se for escuro,
de branco de for claro. A palavra azul não existe. Os grupos III e IV já possuem palavras verde e
amarelo. O grupo V, azul, o VI marrom, até chegarmos a complexidades de organização maiores.
O importante é perceber que a língua funciona como um sistema de diferenças e outros
sistemas mesmo não linguísticos são capazes de serem descobertos. Uma linguística posterior vai
discutir as diferenças entre os sons que geram os significados, os fonemas. Uma antropologia
estruturalista vai criar o termo mitemas para definir diferenças presentes na estrutura de mitos e
contos de fadas. E assim por diante. Essa ideia da construção analítica de sistemas de diferenças, ou
de estruturas vai ter fértil uso teórico em especial nas ciências humanas, o chamado estruturalismo.
Quando se fala de estruturalismo, isso faz referência a uma série de teorias em distintas
ciências, pois houve uma antropologia estrutural, uma filosofia estruturalista, uma linguística
estruturalista, uma psicologia estruturalista, ou seja, uma série de teorias que pegaram esta noção de
estrutura e utilizaram a ideia do sistema de diferenças para estudar fenômenos em seu âmbito
específico. Levy-Strauss por exemplo, na antropologia cultural. Lacan na psicanálise.
Surgem algumas dessas teorias estruturalistas que podem servir de base para a discussão
teórica do jornalismo, tanto aquelas que estudam especificamente a linguagem, o signo jornalístico,
que é o instrumento pelo qual o jornalista cria uma representação, uma matéria, uma fotografia, uma
cobertura de televisão. Esse tipo de perspectiva será estudado no âmbito da Semiótica. Essa já é
uma primeira contribuição para as teorias do jornalismo.
Por outro lado, boa parte do estruturalismo é marcado por aquele posicionamento
amplamente apresentado e discutido anteriormente nas teorias administrativas, ou seja, são escolas
formalistas que não estão relacionadas com as questões de emancipação do sujeito, da sociedade.
Muitas delas não entram nessa discussão, motivo por que se aproximam das próprias teorias
administrativas, o que é o caso da semiótica do Charles Peirce, ou de filósofos da linguagem que se
aproximam das questões do estruturalismo como Frege e toda uma linhagem de filósofos analíticos.

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Porém destacam-se algumas outras escolas estruturalistas que não vão abrir mão dessa
discussão crítica, aquelas que pretendemos apresentar justamente aqui.
O primeiro nome importante neste sentido é o de Roland Barthes, um estruturalista francês
que participou do Centro de Estudos de Comunicação de Massa. Ele foi herdeiro do pensamento de
Saussure, no sentido de que parte dos conceitos iniciais daquele, mas ele tenta aperfeiçoar a teoria
original a partir de algumas inovações.
Signo em linhas muito gerais é qualquer coisa capaz de representar algo. Uma palavra, uma
fotografia, um filme. Saussure dividia o signo em duas partes, que chamou significante e
significado. Quando olho uma foto de Barthes, significante é a imagem mental que estimula minha
sensibilidade, significado é o conteúdo que esse estímulo é capaz de suscitar, o autor Roland
Barthes. É dentro desta perspectiva diádica que Barthes inicia seus estudos estruturalistas, por
exemplo, quando fez um estudo estruturalista a respeito de revistas de moda em 1967, e vai tentar
construir um sistema de roupas de uma mesma família que as classifique em torno de tribos, de
tendências sociais, algo parecido na moda com o que acontece com as diferenças entre cores ou
palavras classificatórias dos períodos do dia.
Apesar de ter realizado alguns estudos ortodoxos nesse sentido, da tentativa de criação de
estruturas diferenciais para estudo da sociedade, por outro lado ele vai perceber que o
estruturalismo se tornou uma espécie de modismo de época nos anos 60, principalmente, e vai
tentar romper com esse sonho eufórico de que a metodologia seria capaz de grandes revoluções
teóricas nas ciências sociais para defender um posicionamento mais crítico em relação aos próprios
instrumentos analíticos oferecidos pelo estruturalismo. Dentre suas novas descobertas, começa a
perceber que a língua, por ser um sistema congelado em alguma medida de relações entre
significantes e significados, dependendo do jeito como essas relações sejam congeladas, a própria
língua poderia funcionar como um sistema de opressão dos falantes.
Para melhor explicitar este problema, Barthes introduziu e deu intenso destaque no conjunto
conceitual significante/significado às noções de denotação e conotação. Saussure destacava em seus
estudos uma relação denotativa, ou seja, a relação entre o significante ‘cachorro’ e o animal que
pode ser representado como significado dessa palavra. Nesse nível da língua não há muita margem
para alteração do sentido nem muita plasticidade para pequenas inclinações no significado que
permitam certos desvios. Porém no nível destacado por Barthes, o nível conotativo, a coisa é
diferente. Quando utilizamos o signo ‘cachorro’, que é o animal definido denotativamente pelo
termo, e usamos esse conjunto signo+significado como um novo signo, então o signo tem outro tipo
de significado num nível mais elevado, o conotativo. Isso ocorre quando digo que um ser humano é
um cachorro. O par original significante+significado funciona como signo de um novo significado,
que é muito mais plástico porque envolve um grau muito mais flexível de significação. O que é um
sujeito cachorro, é aquele que saiu com a melhor amiga da namorada, ou é o que tem três
namoradas? Alguém pode achar que ter duas não é errado, mas que cinco já é demais. Ingressamos
num campo muito mais subjetivo de determinação onde justamente a cultura vai ter condição de
lançar significados mais plásticos, muitas vezes de caráter opressor. É isso que Barthes vai destacar.
Quando se atribui a palavra ‘mulato’ como referência “à cor do couro de uma mula”, e a atribui a
um ser humano, surge uma segunda camada de significação que serve a propósitos racistas. E
quanto a língua incorpora essas camadas de significação para palavras como ‘mulato’, ‘denegrir’
entre outras, está incrustando na estrutura da língua um sistema que contém palavras de caráter
opressivo, depreciativo, sendo que essa carga é naturalizada pelo fato de que o termo é
simplesmente uma palavra da língua, aparentemente neutra. A pessoa utiliza a palavra e nega que
seja racista, ela está simplesmente fazendo uso de uma palavra que consta do léxico linguístico. Não
percebe que, com um uso inconsequente desses termos, está sendo racista também.
Passa a figurar como natural uma estrutura de opressão que está no DNA da linguagem. A
linguagem aceita esse tipo de formulação justamente porque ela é um sistema de diferenças,

115
plástico, que aceita inúmeras constituições estruturais, que simplesmente determina até onde vai a
palavra mulato e onde começa o moreno e onde começa o cafuzo e assim por diante.
Barthes demonstra que no uso mais simples da linguagem pode existir uma violência
simbólica, e, nesse sentido, a língua se torna um sistema de violência totalitário, porque se a pessoa
quiser conversar com outro, ela pode dizer o que bem entender, mas vai ter de dizer com os
instrumentos que a língua oferece, com suas palavras. Se a língua for carregada de cargas
semânticas racistas, sexistas, o falante terá de usar essa língua mesmo para poder se expressar.
A língua portuguesa tem o gênero masculino e o gênero feminino. Isso por si só já cria um
direcionamento quando o falante pensa em questão de gênero e opção sexual que induz no sentido
desse binarismo. Naturaliza a ideia de que a pessoa é ou menino ou menina. Algo que fuja desse
dualismo vai aparentar ser antinatural, não há nem figuras na língua que consigam expressar
diretamente algo diferente.
Ao mesmo tempo, uma perspectiva crítica vai abrir um novo campo de disputas pela
estruturação da linguagem para tentar combater esse caráter opressivo e totalitário da linguagem. É
possível buscar, por exemplo, inspiração em outras línguas como o Alemão que têm três gêneros,
masculino, feminino e neutro. E que tem palavras para denominar menino e menina que são
palavras neutras.
Em geral a tendência dos falantes seria não desconfiar da língua porque ela vem de uma
tradição que nos transmitiu uma tradição, mas Barthes diz que temos de desconfiar sim e tomar
cuidado com a língua porque ela pode se prestar a servir de instrumento a fazer passar por natural,
coisas que não são naturais, e sim consequência de decisões históricas de um conjunto de falantes
que pode ter se equivocado e que tem de ser questionado como qualquer tradição sob a luz da
racionalidade. Nesse sentido, o estruturalismo se encontra com ideais iluministas justamente pelo
fato de ser, em algumas de suas manifestações, teorias críticas.
Barthes foi um dos responsáveis também por uma abertura de leques em relação aos tipos de
linguagem que permitem esse tipo de abordagem, algo que apontou por certo tempo uma distinção
terminológica entre semiologia e semiótica. Mas os termos foram equiparados numa decisão da
sociedade internacional de semiótica. Saussure ficou restrito à análise da língua, da linguagem
verbal. Barthes vai levar o mesmo tipo de discussão para as imagens, para a propaganda, para
aquilo que ele veio a denominar mito. No campo pictórico isso é muito evidente. Toda a iconografia
de cristo surgiu aproximadamente 300 anos depois de sua morte. Isso já abre a possibilidade de se
perguntar qual foi o modelo de homem escolhido para essa representação imagética. E a resposta
pode ser encontrada em nossa história da arte. Hoje em dia já foi bastante explorada a tentativa de
reconstruir a constituição física de Jesus com base em estudos científicos, e que desembocam
inúmeras vezes em figuras muito diferentes daquela clássica de um homem claro de olhos azuis. Ela
é uma construção histórica de uma iconografia católica, cristã europeia. Isso faz com que olhemos
um quadro desses e não tenhamos nenhuma ordem de estranhamento, sua figura foi naturalizada.
Mas sabemos que se trata de uma construção cultural histórica.
A lição que se extrai disso para o jornalismo é que o jornalista crítico tem de ter muita
consciência de toda a carga histórica que a linguagem carrega, que essa carga semântica não é
ingênua nem isenta, e, portanto, quem escreve tem de tomar sempre o maior cuidado com as suas
opções de linguagem sob pena de dizer o que não quer, reforçando valores com os quais não
concorda.

5.3.1 – Morin

Em 1960 foi criado o Centro de estudos das comunicações de massa (CECMAS) em Paris
por iniciativa do sociólogo Georges Friedmann, com o objetivo de discutir na França as relações
entre a sociedade global e as comunicações de massa que se integram funcionalmente a ela. Este
instituto mudará de nome duas vezes, primeiro para Centro de estudos transdisciplinares,

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sociologia, antropologia e semiologia, nome do qual se retirou, depois, o termo semiologia, em
favor de política. Roland Barthes representara a linha indubitavelmente estruturalista do centro, mas
outro nome importante da escola foi Edgar Morin. Um aspecto importante a destacar é que não se
trata de um autor marxista, assim como Barthes também não era. Morin vem da antropologia, e
lança um livro muito influente chamado O espírito do tempo, onde ele descreve o que seria uma
Cultura de massa com o objetivo de se contrapor a limites estabelecidos pela reflexão sobre a
Indústria cultural.
Ele não desqualifica os frankfurtianos, mas acha que a visão muito depreciativa da Indústria
cultural levou autores como Adorno a não estudar o fenômeno. A recusa dos alemães em relação ao
termo cultura de massa era uma opção consciente pois achavam que ele sugeria uma cultura
produzida pelas massas, mascarando o fato de ser uma cultura produzida por uma elite que
mercantilizava a cultura. Nesse sentido, Morin não se distancia dos alemães, por manter uma
postura crítica. Porém se distancia deles ao estudar o fenômeno nos seus detalhes concretos em vez
de o generalizar abstratamente, antecipando uma perspectiva dos estudos culturais. A cultura de
massa se materializa nas novelas de televisão, no melodrama, mas também nos quadrinhos, no jazz,
no cinema. Na época que Morin constrói sua teoria, o cinema era uma mídia fundamental, por isso
concentra sua análise na cultura que o cinema cria nos anos 60, e vai explicitar o tipo de cultura que
o cinema cria, nisso que ele vai chamar de Espírito do tempo.
A importância desses fenômenos culturais, como já pudemos ver em certa medida no texto
de Benjamin, é que o cinema cria uma espécie de grade de percepção por meio da qual as pessoas
vêem o mundo, e criam categorias para o entendimento do mundo. Morin se pergunta então quais
são os valores, as categorias da grade de percepção que esse cinema da cultura de massa está
criando. Não se tratam dos grandes diretores, mas sim dos diretores dos melodramas vistos por
grandes massas de população. Hoje seria talvez o equivalente a nossas novelas de televisão. Na
época era o cinema que ocupava esse espaço.
Os valores que ele encontra são o amor, a felicidade, a autorrealização. Aquilo que até hoje é
a temática melodramática, que apregoa que o dinheiro não é relevante, que os conflitos sempre
podem ser contornados por quem sabe viver bem, que as diferenças de classe não são relevantes
quando se vive uma paixão, que há vilões e mocinhos, e que tudo sempre termina bem, com as
devidas distribuições de recompensas a quem se comportou bem e castigos a quem fez o mal. Os
casos intermediários que poderiam ser considerados injustiças se passam em geral com pessoas de
grupos sociais específicos que a cultura de um povo admite serem sacrificados por bons motivos.
Um índio que perde a vida tentando salvar um bom português, é algo fácil de encontrar no
Romantismo brasileiro.
Um dos instrumentos mais eficazes dessa Cultura de massa é que ela alimenta também no
imaginário do público uma espécie de lugar maravilhoso onde vivem essas pessoas do bem, mas
que elas não são deuses inacessíveis que não existem ou abstrações, são pessoas concretas que são
jogadores de futebol, atrizes, cantoras. Esses são os modelos vivos da Cultura de massa que Morin
chama de olimpianos, fazendo referência ao Olimpo grego. O cinema daquele período foi criando
esses personagens, que foram os grandes astros, e eles passam a ser tema permanente de uma mídia
que os persegue e mostra diariamente sua intimidade, suas conquistas, seus desafios, seus novos
papéis nas telas, seu sucesso. Cria-se todo um universo das celebridades que a mídia fica mostrando
para as pessoas.
Do ponto de vista das pessoas, a exibição desse mundo serve como uma espécie de
promessa de que elas também podem chegar lá. Se a pessoa souber se colocar dentro desses
sistemas, se se deixar conduzir pelos caminhos de acesso, qualquer um poderá qualquer hora se
tornar também um deles, fazer sucesso num esporte, virar ator de televisão, ser selecionado num
programa de reality show, e passar a estar lá dentro. Ou seja, é um mundo democrático. Qualquer
um pode chegar lá.

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Desta maneira vai se reforçando a ideia administrativa de que ninguém precisa mudar para
ser uma pessoa melhor. Tudo depende de uma sorte que o coloque no momento certo no lugar certo,
além de alguma habilidade é claro para passar nos testes que o acesso a esse universo coloca. Jogar
bem. Ser belo ou bela. Ter astúcia quando necessário. Saber se safar dos conflitos e situações. No
mundo da reprodutibilidade técnica, basta passar pelo teste da máquina para se tornar um grande
ator. E esses grandes atores vão ingressar nesse mundo dos olimpianos, cheio de iates, carrões,
casas milionárias. Essa imagem que se torna a nova mitologia do século XX.
Essa mitologia tem uma carga ideológica que ela carrega e que ela dissemina. A Cultura de
massa está sempre valorizando certos comportamentos e, nesse sentido, ela está ocupando
justamente o lugar que foi anteriormente a educação, a família, a religião, a identidade nacional,
uma série de equipamentos de heterodirecionamento do comportamento, como veremos em maior
detalhe em seguida, papel que que a Cultura de massa tenta chamar para si. A teoria de Morin deixa
claro como opera essa Cultura de massa que é gerida pelos seguidores de uma teoria administrativa,
pelos jornalistas que fazem parte do sistema para que ele se mantenha, e funcione bem.
Por outro lado, a Cultura de massa tem manifestações suas que são mais eficazes do que o
próprio jornalismo, como o melodrama, porque atua ali diretamente sobre a emotividade. Mas o
mecanismo de atuação é o mesmo. No jornalismo sensacionalista, fala mais alto ainda.
Sua análise demonstra que esse mito projetado midiaticamente contém internamente a
promessa de que é possível também chegar lá. Isso não é para todo mundo, mas alguns conseguirão.
Se alguém ganhar na loteria poderá ascender imediatamente a esse mundo de dinheiro farto,
felicidade, prazer, autorrealização encarnado nesse grupo de pessoas olimpianas. Por outro lado, a
maior parte dos sujeitos não ganhou na loteria ainda, portanto, começa a surgir na mente de cada
indivíduo um contraste violento entre essas promessas que a Cultura de massa apresenta e sua
realidade.
Isso cria uma espécie de tensão entre real e imaginário que é resultado da sua realidade dura
e difícil em contraste com o mundo do imaginário olimpiano. Mas essa tensão é agravada pelo fato
de que essa mitologia contemporânea não é mais inacessível como era o Olimpo grego, nosso
Olimpo está aqui, onde circulam nossos astros do cinema. A partir de alguns instrumentos da
psicanálise, ele diz que surgem relações compensadoras para aliviar esta tensão de ainda não
estarmos lá. Esse não estar lá por um lado é uma forma de repressão, de interrupção da promessa.
Por outro lado, a Cultura de massa oferece a esse indivíduo prazeres compensatórios como os
prazeres do imaginário cotidiano, quando assisto ao filme ou um capítulo de novela por exemplo, os
prazeres do final de semana, e o prazer prolongado das férias. Momentos em que é possível abstrair
todas as mazelas da vida real e desfrutar de uma fantasia que lança o indivíduo para um idílio
simbólico equivalente ao mundo simbólico dos olimpianos, com a vantagem de ser customizado. O
idílio de cada um é criado por cada um mesmo, evidentemente, dentro de seus limites de
possibilidade.
A frustração faz com que o indivíduo busque esses mecanismos compensadores e um dos
mecanismos que mais vai lucrar com essa necessidade de cada indivíduo de buscar isso será
justamente o próprio mercado de consumo. A propaganda vai canalizar essa frustração e propiciar
descargas compensatórias a cada ato de consumo, porque a propaganda é também parte desse
universo cor-de-rosa onde carros não quebram, sandálias não deformam, todos bebem socialmente e
são belos e agradáveis.
É interessante notar como uma evolução desse mecanismo nos tempos atuais, vai introduzir
literalmente cada indivíduo no próprio universo olimpiano por intermédio das portas de acesso de
redes sociais. Cada um vai poder ser sentir um pouco olimpiano também a partir dessa construção
de exposição que cada um mesmo faz a partir das facilidades que as novas tecnologias de produção
de imagem proporcionam.
A reboque desse mecanismo de projeções criado pela Cultura de massa surge um novo
individualismo hedonista herdeiro do individualismo burguês porém um pouco distinto daquele. A

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diferença é que em vez do prazer da acumulação, o novo individualismo se satisfaz por intermédio
do consumo, do acompanhamento das modas, dos acessos aos bens promovidos pela publicidade.
Esse novo individualista é portanto um mecanismo importante de manutenção e expansão da
economia capitalista.
A Cultura de massa é portanto a cultura do sistema. Aquela para a qual as teorias
administrativas do jornalismo preparam quadros, que farão a Cultura de massa funcionar, visto que
há um tipo de jornalismo que também faz parte dela. E a exposição da teoria de Edgar Morin só tem
a respeito dela um papel negativo, ou seja, um papel de denúncia, de explicitação do modo de
funcionamento dos mecanismos de poder, tanto quanto a noção de Indústria cultural, apesar de
explorar com mais detalhes a superfície do fenômeno, explicitando diversas particularidades desse
mecanismo.
Por este motivo, Morin lança em 1975 um segundo volume da obra, porque ele percebe que
desenvolveu um estudo sociológico que explica como funciona o sistema mas não oferece
vislumbre de alternativas ou de caminhos de ruptura em relação àquele mecanismo. Assim, passa a
chamar o primeiro volume de ‘neurose’ e o segundo volume de ‘necrose’. Aparentemente sendo
algo mais danoso, a necrose é um tecido que apodrece, mas, ao mesmo tempo, gera danos ao
sistema que vão fazer com que o sistema entre em crise. Esse volume foi muito influenciado pelas
ações históricas de maio de 1968 na França, um movimento questionador do sistema que começa a
comprovar historicamente que, apesar de o sistema aparentemente ser intocável e perfeito desde que
alimentado pela Cultura de massa, na verdade ele mantém reprimidas forças de insatisfação que
podem eclodir de vez em quando em formas que o sistema não havia previsto. E isso é interessante.
Desestabiliza o sistema.
O autor tenta reorientar sua teoria no sentido de incorporar algumas descobertas da
psicanálise, do estruturalismo para dar instrumentos que tragam à tona essas movimentações
reprimidas que se encontram escondidas para que aflorem e se tornem novos maios de 68. Ele está
fomentando uma possibilidade de revolta ou de indignação em relação à situação estabelecida,
quando ela é perversa, o que é o caso da sociedade que explora as massas e que cria uma Cultura de
massa para que as massas se eduquem e ajam como o sistema precisa que elas ajam, se sentindo
felizes para sempre em função das promessas do mundo olimpiano e dos mecanismos
compensatórios que criam seu equilíbrio.
É nessa perspectiva que a teoria de Morin dá um passo, entretanto, sem propor um caminho
de superação, mas somente apontando para as contradições que podem fazer aflorar movimentos
contestatórios.
Seu maior avanço é mostrar que é possível identificar onde essas perspectivas de ruptura são
mais possíveis de acontecer quando os grupos humanos são grupos de jovens, a exemplo do que
ocorreu com os movimentos de maio de 68. Na transição entre o mundo infantil e o adulto, há um
momento de transformação radical em que é possível fazer aflorar com muita força a crítica a
respeito do sistema antes de efetivamente ingressar e se adaptar a ele. Outros campos em que ele
enxerga que essa energia crítica pode aflorar é o movimento feminista, porque representa uma
tentativa de reação de outro grupo oprimido historicamente.

5.3.2 – Althusser

Outro autor importante do estruturalismo francês é Louis Althusser que também esteve
envolvido com o movimento de maio de 68. Para efeito dos estudos de jornalismo, criou um
conceito importante, o de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), por meio do qual é possível
entender com muita clareza a substituição da qual falamos há pouco, de que o papel anteriormente
de influência e formação das pessoas da educação, da religião, se transferiu para a mídia.
Althusser vem de uma tradição marxista, diferentemente de Barthes, de Morin. A origem de
seu pensamento será a própria noção de Estado marxista, que entende o Estado como um aparelho

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repressivo, uma máquina que permite às classes dominantes assegurar seu poder sobre a classe
operária, ajudando a burguesia a extorquir a mais-valia. Este poder é constituído por aparelhos
administrativos, o exército, o chefe de Estado, o governo. Visto desta maneira, o projeto marxista de
poder passa por uma tomada do poder de Estado. Mas Althusser vai propor uma alternativa ou, pelo
menos, demonstrar que há um trabalho complementar a ser feito.
Althusser explica que além do aparelho repressor do Estado, há o Aparelho Ideológico de
Estado (AIE). Neste, o que ocorre não é uma unidade homogênea, mas antes uma multiplicidade
complexa que faz ser muito mais coerente usar os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia para
entender os AIE. Aqui cabe muito mais a noção de que uma força pode ir crescendo e a outra
diminuindo gradativamente em vez de viradas radicais. Isso ocorre porque se trata de um aparelho
que não recorre prioritariamente à coerção, à violência e sim ao convencimento, à persuasão. Ele
não é um aparelho repressor que ataca o diferente. É um campo onde se dá uma disputa simbólica.
O Aparelho Ideológico de Estado ocupa aquele lugar que antigamente era prioritariamente
da igreja, da educação, da família. Mas, como vimos já em Morin, o poder de influência se deslocou
historicamente para a Cultura de massa, para o cinema, para o jornalismo. A teoria de Althusser
deixa transparente a existência deste lugar de construção ideológica. A religião continua tendo este
papel em alguma medida. A escola também, independente de pertencer a um sistema público ou
privado. A família também persiste sendo formadora de ideologia. Mas a grande novidade é que o
sistema jurídico também passa a ser um novo aparelho com o surgimento do Estado de Direito, o
campo político, os diversos partidos, os sindicatos e as organizações de classe tanto trabalhadoras
quanto patronais. A sociedade civil como um todo. A outra novidade é o campo cultural. A cultura
num sentido amplo que envolve não só a Indústria cultural, a Cultura de massa, mas também a
chamada alta cultura, as Letras, as Belas Artes. Surge uma capacidade formativa dos
comportamentos nos esportes. Por fim, há os aparelhos ideológicos da informação, a imprensa, o
rádio, a televisão, o cinema.
Em resumo, Althusser mapeia todas as instituições modernas de controle do comportamento
das massas, de administração das massas, e as apresenta como um sistema complexo onde cada um
de seus elementos exerce alguma ordem de influência. Uma característica importante a perceber é
que esses aparelhos de Estado não são somente públicos. Podem ser congregacionais ou mesmo
privados. Portanto a disputa pela ideologia é um campo de disputas onde praticamente todos
participam de alguma maneira. Não participar constitui simplesmente uma omissão e entrega ao
heterodirecionamento.
Por outro lado, Althusser chama a cada um desses aparelhos, Aparelhos de Estado. Ou seja,
ele também amplia a própria noção de Estado para além do que costumamos chamar de poder
público. Este seria somente sua faceta repressora. A teoria descuidou antes dele dessa outra
dimensão ideológica, que não tem repressão e que é muito mais ampla. Numa sociedade capitalista
este fator associa em certa medida o poder do aparelho às condições econômicas. E este palco será
também um espaço de luta de classe. Portanto, contra um jornalismo administrativo deve se criar
um jornalismo transformador para ocupar a fatia que cabe ao jornalismo neste amplo campo.

5.3.3 – Guy Debord

Guy Debord também foi liderança do movimento de 68 na França e criou o termo Sociedade
do espetáculo, título de seu livro. Já vimos esta ideia expressa de algum modo em outras teorias. A
referência que a maior parte das pessoas têm no mundo contemporâneo é mediada pelos meios de
comunicação. Elas ficam sabendo o que aconteceu em todos os lugares por intermédio dos jornais.
Sociedade do espetáculo explica isso, mas explica também o fato de que esse lugar para onde as
pessoas estão olhando está se transformando em um palco de um grande espetáculo que tem por
papel manipular a percepção do sujeito de massa para que ele continue comprindo seu papel na
sociedade.

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Essa configuração dos meios de comunicação como espetáculo não é exclusiva das
sociedades capitalistas, portanto em países com outros sistemas de governo, como o socialismo, ela
também se constituiu. E se tornou a marca de uma sociedade em que a ideia da existência de um
real em si vai perdendo cada vez mais importância em relação à representação que se constrói desse
real por intermédio dos meios de comunicação. Do mesmo modo que a reprodutibilidade foi
esvaziando a aura da obra de arte, a sociedade do espetáculo vai anulando a aura do real. E o real
passa a ser uma coisa que tem menos credibilidade do que a sua representação na mídia. As imagens
saem do mundo e criam uma espécie de mundo próprio virtual que passou a ser a realidade.

5.3.4 – Foucault

Podemos iniciar a análise de parcela da obra de Foucault pelo estruturalismo, embora ele
seja um filósofo muito complexo, cuja obra tem outras facetas e que, evidentemente, não pode ser
reduzida a uma perspectiva estruturalista. O início de seu trabalho tem influências estruturalistas,
através do pensamento de Georges Dumézil. Em História da loucura, por exemplo, Foucault parte
da análise da histórica evolutiva de uma palavra, loucura, para estabelecer o movimento do campo
semântico que determinados momentos históricos estabeleceram em torno da diferença louco/são,
louco/normal. Apresenta, ao longo da obra, variações nesta relação, o que coincidiria com uma
análise do desenvolvimento plástico da linguagem que vimos anteriormente em Barthes. Mas ao
contrário daquele, o que tem plasticidade para Foucault não é simplesmente o deslocamento do
sentido conotativo, mas uma camada outra que ele vai chamar de epistéme e que representa uma
camada de ordem do discurso que serve de base para o desenvolvimento científico. Estrutura, aqui,
tem uma figuração mais cultural que puramente linguística. Foucault demonstra que as palavras na
ciência têm uma história, e que o método de desenvolvimento da ciência também se organiza sobre
uma episteme que tem história. Trata-se, sob o pano aparente da evolução das palavras nas ciências,
de identificar uma camada de base mais profunda que também é histórica, a qual ele vai denominar
epistéme no livro As palavras e as coisas.
Por um lado, a obra demonstra que existe uma historicidade na relação estabelecida entre
palavras e coisas que pode ser constatada na evolução da própria construção do conhecimento pela
ciência. Seu objeto de estudo para comprovar isso se dá em três campos científicos, biologia,
economia e estudos da linguagem. Por outro lado, começa a problematizar o fato histórico de que a
ciência produzida a partir dessas bases epistemológicas históricas também é uma fonte do exercício
do poder. A relação poder/saber é uma das contribuições deste trabalho.
É possível entender esta obra como um trabalho estruturalista, porém tem sua originalidade
peculiar que já aponta para uma superação do próprio estruturalismo, visto que discute os limites da
representação e aponta para a existência de coisas do lado de fora da linguagem que são os
verdadeiros motores do desenvolvimento daquela num nível mais fundamental.
Esta ruptura com o estruturalismo se torna mais clara numa obra de 1975, Vigiar e Punir,
momento a partir do qual sua obra vai trabalhar o poder numa perspectiva muito mais concreta do
que a teoria da linguagem. No caso, seu tema é o corpo e dispositivos de coerção do corpo. Isso
demonstra que o poder não está somente na linguagem. Mas está também em dispositivos muito
mais concretos do mundo, como os sistemas de punição. Eles também têm uma história, partindo da
punição física da tortura, ou passando da punição por privação da vida na pena de morte para a
punição como restrição de liberdade nas prisões, até o desenvolvimento de dispositivos ainda mais
modernos de vigilância que espalhariam pelo mundo equipamentos de controle desenvolvidos a
partir de experiências feitas nesses sistemas prisionais, e que se tornariam mecanismos de governo e
controle das massas com uso da vigilância.
A novidade aqui é apontar para o fato de que o Estado controla as pessoas por mecanismos
muito mais efetivos do que a ideologia, o convencimento racional disseminado pelo jornalismo,
mecanismos que são dispositivos de controle do corpo bastante mais concretos do que o discurso

121
jornalístico. Um dos mecanismos desenvolvido com o fim de vigilância é o panóptico, um sistema
de observação dos presos desenvolvido no século XVIII, que consistia numa arquitetura do prédio
prisional circular, em que os vigias ficavam num centro em que podiam ver todos os presos em suas
celas, enquanto os presos não conseguiam nem se ver nem conversar entre si.
Apesar desse mecanismo ser totalmente físico, arquitetônico, seu reencontro com os
problemas do jornalismo se dá curiosamente na forma dos sistemas de comunicação digital
contemporâneos ao estilo de um Big Brother como na ficção de George Orwell. Uma tela que é
capaz de nos controlar individualmente a partir de um comando central seria a virtualização daquele
sistema prisional, e ofereceria por intermédio dos instrumentos de reconhecimento dos indivíduos
nas massas que já pudemos ver desde as primeiras teorias administrativas um poderoso dispositivo
de controle da sociedade de massas.
Aquilo que Foucault encontrara como mais concreto que a linguagem se tornou linguagem
também por força da digitalização.
A penúltima fase da obra de Foucault foi uma espécie de programa interrompido. No
primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault apresenta uma proposta alternativa à visão
que costuma condenar a ideologia e a repressão como forma de dominação contemporânea.
Acredita num outro mecanismo que propõe começar a desenhar distanciando-se da análise dos
discursos. Mas redireciona o projeto no que é tido como a última fase da obra de Foucault, uma
nova tentativa de identificar os dispositivos de controle do corpo, a partir do estudo do surgimento e
do desenvolvimento de um tipo de subjetividade moderna, cuja origem ele vai encontrar desde
Platão, com os desenvolvimentos subsequentes nos estoicos até o cristianismo, e o surgimento do
sujeito epistemológico cartesiano. Sobre este sujeito se teriam construído dispositivos de controle
do comportamento por intermédio da formação ética.
Um dos campos em que ele acha estar mais presente esta discussão seria o campo da
sexualidade, por isso o projeto segue, embora redimensionado. Lança em vida dois outros volumes
da História da Sexualidade, voltados aos gregos e helenistas. Mas alguns anos após sua morte, ainda
seria lançado um quarto volume póstumo não autorizado sobre o tema, focado desde a Patrística até
o momento que ele denominou pastoral cristã.
Aproveitando seu pensamento do final dos anos 70, quando faz uma dura crítica ao
estruturalismo, Foucault aponta que o estruturalismo se tornou uma espécie de metodologia muito
mecanicista. O estruturalismo tentava tirar o homem do centro dos estudos das ciências humanas e
colocava no centro a própria linguagem. Trata-se de um uso do estruturalismo que aposta no
desenvolvimento formal de taxinomias muito elaboradas para estudo da sociedade e que se perde
nesse formalismo exagerado descompromissado com o real e com a linhagem crítica do
Iluminismo. Como já vimos desde a introdução do tema da criticidade, Foucault foi o autor que
destacou esta dupla faceta das ciências humanas desde Kant, de uma analítica da verdade, e de uma
ontologia do presente. Esse estruturalismo mais formalista se reduz à primeira vertente, quando
Foucault se coloca, no final da vida, como um herdeiro da segunda.

5.4 – Estudos culturais

O terceiro grupo de teorias transformadoras apresentada por Mattelart são os chamados


Estudos Culturais. É comum associá-los a um centro de estudos teóricos surgido na Inglaterra, na
universidade de Birmingham, focado naquilo que Mattelart chama de estudo da cultura dos pobres.
Trata-se de uma escola crítica que tem um pé de apoio no marxismo embora em alguns momentos
ela se distancie dos desdobramentos da Escola de Frankfurt. Ela vai pensar uma cultura existente no
mundo contemporâneo, mas que nem é o resultado alienado da indústria cultural, nem a cultura de
massa também alienante descrita por Edgar Morin, e sim uma cultura que vai se contrapor à cultura
de massa, que, em geral, não deixa de ser um produto de uma intencionalidade das elites para
manter as coisas como estão. Porém, este campo é passível de disputa porque pode ser ocupado

122
também por uma cultura popular, que nasce do povo e que vai disputar com a cultura de massa a
criação de um espaço para ela, vai disputar ideias que irão se contrapor às do sistema.
Seu surgimento se dá em torno de uma revista Scrutiny, que publicava artigos que
denunciavam o surgimento do capitalismo industrial e das expressões culturais que representam
esse capitalismo, tanto a indústria cultural quanto a cultura de massa. Ela explicita que essas
expressões têm um efeito pernicioso e destrutivo em relação às formas da cultura tradicional
popular tanto quanto destrutivo da alta cultura defendida pelos frankfurtianos. Portanto os Estudos
Culturais querem dar o mesmo estatuto combativo contra o capitalismo que os frankfurtianos
atribuiam à alta cultura, à cultura popular, cultura operária. Contra os ataques da cultura de massa, é
preciso defender as expressões populares de cultura.
Os artigos da revista divulgam assim literatura popular, e torna-se o centro de uma espécie
de cruzada cívica para defender os valores da cultura popular. Não é coincidência que esse
movimento surja na Inglaterra, porque é o país onde se deu a primeira industrialização da economia
e porque existe uma cultura popular relevante, que é resultado de uma população pobre porém
produtora de cultura. Não se trata de um povo absolutamente miserável, mas sim de gente pobre que
consegue ter uma cultura, capaz de produzir suas próprias expressões culturais.
Originalmente, o que se divulgava na revista eram produções literárias das massas, mas logo
será dada uma abrangência maior no momento em que professores de redes de ensino dos colégios
ingleses aderem à revista e tentam identificar no próprio ensino secundário os trabalhos que
poderiam ser aproveitados para disseminação mais ampla, podendo constituir, até mesmo, novas
obras literárias mesmo que não publicadas, com valor estético relevante do ponto de vista de uma
cultura de classe operária, cultura da pobreza, cultura popular.
Uma das primeiras ideias teóricas importantes da escola foi elaborada por Richard Hoggart
de que essas formas de vida populares e folclóricas são uma espécie de resistência contra os
avanços da cultura de massa, numa perspectiva que busca fazer uma crítica de uma cultura que
esteja dissociada da sociedade. O modo de combate é levar para as escolas o resultado da cultura
popular local.
Deste modo, muito rapidamente houve uma ampliação para além da expressão escrita, com
o surgimento de grupos que trabalhavam a divulgação de música popular, de expressões do folclore,
todos em torno dessa pesquisa que tenta reunir elementos que documentem a existência e o papel de
uma resistência popular cultural, com enfoque particularmente importante para o movimento de
resistência feminista, que vai ser um dos polos de projeção muito forte desta mobilização. Seu foco
era demonstrar que houve autoras importantes da literatura que foram esquecidas ou apagadas da
história da literatura justamente pelo fato de serem mulheres e representarem uma outra perspectiva
do mundo distinta da hegemônica.
A noção de hegemonia veio de um autor marxista italiano, Antonio Gramisci, para quem não
há uma cultura só, mas sim disputas em torno de ideias que prevalessem na cultura como formas
hegemônicas, ou seja, que se sobressaíram ou se impuseram, apesar de outras formas também
existirem e de disputarem espaço para sobreviver, sobressair ou se impor também. Essas disputas se
dão nos processos históricos concretos, com diversos resultados possíveis decorrentes da força de
cada corrente ideológica.
Outro polo importante de estudos da escola foram dedicados à produção televisiva. Foram
identificados quatro momentos em que eles deveriam ser estudados, a produção, a circulação, a
distribuição ou consumo, e a reprodução. Neste sistema, a audiência é vista como o público receptor
das mensagens televisivas, mas, por outro lado, também são vistas como fontes de mensagens
porque os esquemas que são reproduzidos na televisão respondem às próprias imagens que se tem
da população e da audiência, embora por vezes filtrados por uma série de códigos profissionais
conforme já estudamos em teorias do jornalismo de caráter administrativo.
Um autor de destaque dessa escola é Stuart Hall que foi diretor do instituto e que se voltou
também para o estudo de audiência, identificando ali três tipos, uma audiência dominante, uma

123
oposicional, e uma negociada. Isso fica mais claro a partir da definição de identidade também
proposta pelo autor. A audiência dominante é aquela que está relacionada com o modo de ver
hegemônico da sociedade capitalista, burguesa e que se coloca como uma visão natural
historicamente. A oposicional é aquela que vai se contrapor, reagir, denunciar que a visão
hegemônica não pode ser vista de maneira ingênua. E a negociada seria uma espécie de mescla das
anteriores.
A perspectiva dos Estudos Culturais aponta que o que deve ser historicamente avaliada é a
noção de identidade social dos sujeitos. Essa identidade é construída pelos sujeitos dentro da
sociedade e será o parâmetro de heterodirecionamento a ser seguido pelos sujeitos que fazem parte
daqueles valores identitários. Ela é uma espécie de projeção do self, da subjetividade dos indivíduos
dentro do mundo numa figura histórica concreta. A partir da identidade que cada um assume dentro
de uma comunidade, a própria sociedade vai olhar para esse indivíduo e vai julgar aquele sujeito a
partir desses valores identitários. Por outro lado, o sujeito vai se controlar para agir dentro dos
moldes de comportamentos que sua própria identidade representa como se eles fossem seu
horizonte ético de comportamentos, o direcionamento de seu caráter.
Trata-se de uma construção social, portanto não se tratam mais de valores com o grau de
unidade característica das religiões, por exemplo. Mas também não são simplesmente os valores
individuais subjetivos. Nem se tratam de valores naturais, naturalmente dados objetivamente.
Portanto, as teorias da identidade têm de estudar como surgem as identidades para poder entender
melhor seu modo de funcionamento.
Outros nomes importantes dos Estudos Culturais na Inglaterra são Raymond Williams e
Edward Thompson. Seus trabalhos partem de pesquisa empírica, emoldurada historicamente e
politicamente. Sua agenda intelectual é o estudo da cultura popular e tem por meta valorizar as
manifestações populares de textualidade. Outra marca forte é a consideração do receptor como uma
presença ativa. Sua ênfase recai portanto nos produtos e na recepção.
Nessa perspectiva, o jornalismo desempenha um forte papel formador de identidade. Vimos
isso de alguma maneira nas teorias de longo prazo, na tematização e na formação das grades de
pensamento com os quais filtramos e analisamos os fatos.

5.4.1 – Castells

Em alguns momentos históricos, a presença da noção de identidade foi muito forte. Por
exemplo, no surgimento dos Estados nacionais. Junto com o surgimento dos países no modo como
se deu, estava já colocada de alguma maneira a ideia de uma identidade alemã, uma identidade
francesa, da identidade de um povo. Historicamente essa noção irá se transformar. Originalmente,
se entendeu que essa identidade era algo materializado por meio do sangue das pessoas de um certo
lugar, numa genética, havia um forte elemento concreto biológico por trás dessa noção de
identidade nacional.
Nos tempos modernos, o sentido será outro. Manuel Castells percebe que identidade não é
algo que surge num grupo humano como surge uma flor numa planta, ou seja, de uma maneira
natural, determinada. Identidade, ao contrário, é construída. É claro que a identidade pode estar
associada a um sangue, a um território ou a um biótipo genético, mas isso sempre é resultado de
uma construção social. Por este motivo, pode ser que essa construção tenha também o mesmo tipo
de problema já visto na linguagem com as críticas estruturalistas, ou seja, pode ser que essa
construção valorize certos segmentos humanos e deprecie outros. Nesse sentido os problemas da
identidade vão ser muito parecidos com os problemas da linguagem. É uma construção histórica
que é capaz de carregar preconceitos tanto quanto valores mais avançados.
Do ponto de vista teórico, Castells diz que há três tipos básicos de identidade, uma
identidade legitimadora, uma identidade de resistência, e uma identidade de projeto. Identidade
legitimadora é aquela por meio da qual quem está no poder de um Estado, por exemplo, reforça

124
valores identitários daquele Estado. Identidade de resistência, é construída por aqueles que não
concordam com o projeto de identidade legitimadora, oficial. E a identidade de projeto, ideia de que
podem existir grupos identitários reunidos em torno de interesses comuns como os de grupos de
gênero, de luta por direitos sociais, grupos que têm interesses comuns e se reúnem em torno de
certos interesses e valores para tentar obter conquistas.
Stuart Hall pensa isso de maneira um pouco distinta de Castells. Ele define os tipos de
identidade historicamente. Uma identidade do sujeito sociológico, onde já se pensa na identidade
como uma construção histórica e datada, que, dependendo do lugar e do momento histórico onde o
sujeito está colocado, vai haver uma identidade consolidada e em processo histórico de possíveis
mudanças. E a identidade da pós-modernidade, que lembra muito a identidade de projeto do
Castells, grupos de pessoas que se reúnem em torno de certas lutas e projetos, buscando
determinadas transformações que sejam do interesse daquele grupo.
Trazendo essa teoria da identidade para o caso brasileiro, é possível verificar historicamente
como se deu essa construção. Evidentemente a Independência é um marco de sua fundação porque
até então éramos portugueses morando em outro continente. A partir de então começa a fazer
sentido pensar numa identidade brasileira. Até então poderia ocorrer o que Antônio Cândido
descreve a respeito da literatura brasileira. Houve no Brasil um Gregório de Matos, um padre
Antônio Vieira mas eles não são brasileiros, simplesmente são portugueses que estavam aqui. Eles
se sentiam portugueses. Nossa literatura vai se iniciar justamente com as primeiras movimentações
do “nosso Iluminismo a partir de 1808”, mas vai ganhar possibilidade histórica efetiva a partir de
1822.
Os ideais de liberdade em relação a Portugal, o surgimento da imprensa, a circulação dessas
ideias apontam para uma gênese dessa identidade nacional brasileira. Que ganha seu primeiro
grande ato na independência. Porém não foi formado intencionalmente então um projeto de
identidade. Esse projeto só surgiria muito depois, com dom Pedro II.
Dom Pedro II foi criado e educado para ser o Imperador do Brasil e sabia como estudioso da
história das nações e da construção dos Estados nacionais que era importante ter uma identidade
nacional, uma identidade brasileira. Ele cria um projeto de fomento do romantismo, destinando
recursos para promoção de pessoas que vão criar o movimento do romantismo literário brasileiro,
musical, das artes plásticas, mas também aquelas que vão criar o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro que começam a revisitar a história criando uma história do Brasil, com heróis brasileiros.
Portanto uma construção identitária em que pessoas vistas anteriormente por Portugal como
bandidos, insurrecionistas, passam a ser vistos como heróis fundadores.
Essa inversão de valores é a estratégia adotada para criar uma identidade legitimadora
brasileira. Ela vai se apropriar no caso do romantismo da figura do bom selvagem do Rousseau para
se aproveitar do fato concreto de que o Brasil tinha índios aqui e usar esse fato como um diferencial
identitário nitidamente brasileiro. Ser um povo formado por uma mescla do branco e do índio. Isso
vai desembocar futuramente na ideia de que somos formados pelo branco, o negro e o índio. Mas
inicialmente essa identidade vai se restringir às figuras do branco e do índio, porque ainda se trata
de um século XIX escravagista. Logo não vai se pensar no negro como grupo formador também da
brasilidade. Mas sim o índio.
A configuração que vai se dar a esta mistura é a de um português que vinha de uma
sociedade mais avançada do ponto de vista da perspectiva europeia, onde havia relações sociais tão
complexas que já era possível identificar as figuras éticas do bem e do mal. Havia o português bom
e o português mau. Figuras que vão habitar as páginas dos romances do período. Por outro lado, o
selvagem era sempre bom numa perspectiva rousseauniana porque não havia sido corrompido ainda
pela sociedade, ele era puro, não tinha maldade, não fazia mal aos outros ou aos animais a não ser
pela própria necessidade da sobrevivência.
Nos romances, portanto, a partir da perspectiva dessa bondade pura, ao índio bastava olhar
para um português para saber profundamente de sua índole. Daí sua adequação à produção de

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literatura de gênero melodramático, novelístico, em que os protótipos do herói e do bandido são
fundantes das tensões narrativas. A partir dessa sua natural dignidade, da sua condição natural, ele
era um juiz das disputas e se sacrificava a serviço do português bom para o salvar da maldade. Logo
o índio morria, se sacrificava em nome de um projeto do bem que seria concretizado pelo sucesso
de um português civilizado e bom.
Portanto essa é a ideologia dominante legitimadora das relações sociais que vai formar a
identidade nacional até o final do século XIX e que constitui a primeira forma da identidade
brasileira. É nesse contexto identitário que se poderá entender melhor o paradoxo da convivência de
ideias libertárias com nosso sistema escravagista. Trata-se do sistema de construção da identidade
legitimadora do poder do branco português que veio da Europa para o Brasil para construir uma
civilização aqui, e construir um império dos trópicos que constituirá o país com apoio do índio. Mas
ao mesmo tempo vai surgir evidentemente uma identidade de resistência por exemplo da cultura
negra que não vai concordar com um projeto identitário do qual ele nem mesmo faz parte, e que
reserva a ele o papel de sustentáculo econômico da construção do país, em completa invisibilidade,
como se fosse mais um que tivesse de se sacrificar em nome de um projeto que se tem por muito
generoso e bom.
A título de um breve desvio com finalidade didática, vamos citar brevemente a década de
1930, quando surge um pensamento teórico a respeito da construção da identidade brasileira,
principalmente na figura de três autores, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de
Holanda.
O livro Casa-grande & senzala (1933) de Freyre é um clássico que tenta interpretar o Brasil
a partir de uma perspectiva cultural para se contrapor à visão do racismo até então predominante. O
autor volta-se à análise dos costumes, hábitos e crenças miscigenados no território brasileiro a partir
de sua tripla origem, portuguesa, africana e indígena. Descreve com particular sabor pitoresco os
hábitos sexuais e gastronômicos do patriarcado que desafiavam os padres portugueses e descreve
tanto a miscigenação quanto a desintegração da sociedade patriarcal em confronto com o
desenvolvimento urbano. Mas não se liberta de uma visão conservadora à qual se filiou
politicamente para tentar justificar as relações de dominação a partir de uma suposta teoria da
complementariedade entre algozes e vítimas, conforme a qual o sadismo do dominador teria se
casado com o masoquismo do dominado, criando uma espécie de par equilibrado, a teoria que se
tornou conhecida como a da carnavalização, que tentava justificar o injustificável. Como bem diz
Darcy Ribeiro na introdução da 39a edição da obra “Gilberto Freyre escreveu a obra mais
importante da cultura brasileira”, entretanto “sempre me intrigou, e me intriga ainda, que Gilberto
Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político tenha podido escrever esse livro
generoso, tolerante, forte e belo” (FREYRE: 2000, p 11).
Três anos depois, em 1936, aparecia o segundo clássico do período, Raízes do Brasil, de
Sérgio Buarque de Holanda, livro que esclarecia o sentido das posições políticas antiliberais do
momento, à direita, o integralismo, à esquerda, o comunismo e o socialismo. Uma tensão daquele
presente para a qual o autor tenta buscar explicações no passado. Se utiliza do método da tipologia
weberiana para criar as figuras do semeador e do ladrilhador, comparando-os à colonização
portuguesa e à espanhola respectivamente. Um contraste da ordem das cidades da América
espanhola com o desleixo português. Já vimos como isso impactou a origem tardia do nosso
jornalismo. A ordem divina existe, mas as estrelas não são alinhadas como azulejos. O espírito
português do qual somos descendentes é contaminado por esse permanente drama. Famoso se
tornou seu capítulo sobre o homem cordial, capítulo entendido só pela metade, do qual se leu mais o
título que o conteúdo. Apresenta antes de qualquer sentido positivo a cordialidade como a tensão
entre o interesse do laço familiar e o interesse do Estado, indicando que, para o homem cordial, que
se pauta pela emotividade, seja ela amorosa ou sádica, o Estado perde a disputa, criando uma crise
reativa a plena implantação do estado moderno em detrimento do poder patriarcal na direção do

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Estado brasileiro. A ironia do destino fez acompanhar o livro por um golpe de Estado no ano
seguinte ao lançamento.
O terceiro autor importante desta geração foi uma das vítimas do golpe de 1937. Caio Prado
Júnior que teve de fugir do país, só podendo retornar em 1939. Sua primeira obra era de 1933,
Evolução política do Brasil, já se utilizando da metodologia do materialismo histórico e dialético
para revisitar a história política brasileira numa perspectiva crítica. Porém em Formação do Brasil
Contemporâneo de 1942 é possível encontrar uma aplicação rigorosa da análise da infraestrutura
econômica apontando seus desdobramentos no campo da superestrutura e até das evoluções
geográficas da ocupação do país. Portanto, o autor representa uma visão histórica amparada na
explicitação do avanço das relações sociais decorrentes dos momentos históricos de moldes
hegelianos, a partir de seus desenvolvimentos no pensamento marxista.

5.4.2 - Martin Barbero

A questão fundamental de Jesus Martin Barbero foi apresentada no livro Dos Meios às
Mediações que é um texto denso e que tem como hipótese que foram os românticos quem abriu
espaço de visibilidade para as manifestações populares. Ao longo da história da literatura não havia
esse espaço. Só no Romantismo surgiu a preocupação de tentar investigar a origem dos povos, das
nações, do nacionalismo, que valorizou o comportamento folclórico, da cultura popular que sempre
existiu mas que nunca havia sido levada a sério. Ela se mantinha viva em tradições como festas
juninas, literatura de cordel, procissões entre outras mas que sempre era desprezada, taxada de ruim,
malfeita. Os Românticos resgatam essas manifestações e destacam sua importância. Por exemplo,
com o estudo das línguas e dialetos populares. Os irmãos Grimm fazem uma das primeiras
gramáticas da língua alemã, e também estudam e registram os contos de fadas que vêm de uma
cultura popular alemã. Começaram a surgir livros com registros dessas manifestações, o folclore vai
ganhando um estatuto de cultura com validade.
Ao mesmo tempo, os românticos também taxam aquelas manifestações como folclóricas,
primitivas, simplórias. Há uma dupla situação, por um lado valorizar e dizer que aquelas
manifestações merecem atenção e registro, mas por outro lado, diferenciar esta produção da grande
literatura, da grande música erudita, que é o resultado do trabalho de pessoas geniais. Essa
dualidade entre uma cultura superior e uma inferior também serve em alguma medida de reforço e
naturalização da existência de mecanismos de dominação. Há pessoas melhores e pessoas do povo.
É um movimento elitista. No caso do Brasil isso é bem nítido, a criação de um português superior,
de um índio subalterno a ele e um negro que só servia de suporte para a manutenção da extração.
Um pensamento de esquerda do século XIX rompe com essa perspectiva elitista. Os
anarquistas vão afirmar sua cultura popular própria como instrumento de luta contra os
dominadores. Outro marco são os marxistas que vão defender a ideia de que a cultura proletária é
autêntica e que vai denunciar a cultura hegemônica, promovendo em seu lugar uma conscientização
internacional da situação de divisão de classes.
Martin Barbero, porém, critica ambas expressões. Não é marxista nem anarquista. Ele abre
uma nova perspectiva para as culturas populares na linha dos estudos culturais, ou seja, valorizando
as expressões culturais de grupos oprimidos como a mulher, o jovem, os aposentados. Deste modo,
foge da polarização marxista contra a Indústria Cultural, ou pelo menos amplia sua dimensão crítica
para além dos problemas de divisão de classe e dominação dos meios de produção. Ele adota uma
perspectiva do poder de maneira muito mais descentralizada, inspirado em pensadores como
Foucault que chamaram a atenção para manifestações de poder sobre o corpo no hospício, no
hospital, na prisão, ou seja, um poder que tem capilaridade e que não se resume ao Estado e seu
poder coercitivo. Essa visão reconhece muito mais pluralidade de matrizes e problemas de poder
que se manifestam nas expressões culturais.

127
Ao mesmo tempo, ele é crítico, pois se contrapõe a um pensamento administrativo e
conservador, que está ligado ao pensamento de que há uma turba descontrolada, que as massas são
degeneradas, e que é preciso manipular as massas para manter a estabilidade.
Por fim, ele ainda critica teorias mais contemporâneas, como a teoria da revolução do
consumo, que apresentam uma visão utilitarista do mundo, em que a realização da liberdade se
daria pelo poder de consumo. Ela está ligada ao pensamento pós-moderno, que apontava nos anos
90 para a tese de que a história não apresentaria outras rupturas importantes, que a tensão
capitalismo comunismo teria esfriado e resultado num mundo em que a polarização de regimes
sociais e políticos já não teria mais importância. A validade do ser humano a partir de então seria a
capacidade de consumo que ele tem. Portanto a libertação é se tornar um consumidor pleno.
A tese de Martin Barbero resgata a descoberta importante dos frankfurtianos que demonstra
como a cultura é um espaço estratégico para pensar as contradições sociais. Só que, diferentemente
de Adorno, Martin Barbero vai pensar a cultura popular como espaço de luta e transformação.
Por isso, traça uma história da enculturação que se deu sobre a cultura popular. Foi
justamente com o Romantismo que surgiram projetos de estado Nação cujo sistema de identidade
envolveu matrizes cultuais populares. No nosso caso, o Brasil apelou para a matriz de constituição
étnica que envolvia o índio. Ao mesmo tempo, essa enculturação separava o que poderia vir dessa
cultura indígena de uma cultura europeia civilizada, que envolvia uma ciência e instrumentos
civilizatórios tidos como muito mais avançados. Esse saber superior seria um dos argumentos para
que se deixasse o exercício do poder em suas mãos.
Já vimos isso. Martin Barbero enfatiza que a burguesia toma o poder da aristocracia
monárquica e precisa colocar no lugar da cultura nobre uma cultura que represente os valores da
nova camada de poder burguês. Mas o problema que ela enfrenta então é que a burguesia nunca
teve expressões culturais. Quando dom Pedro II vai embora, surge um buraco cultural em termos de
identidade nacional que só vai ser minimamente restituído em 1922 com o movimento modernista.
Esse movimento modernista vai ter uma de suas mais fortes vertentes no nacionalismo que recupera
valores nacionais indigenistas como a antropofagia, por exemplo. Isso é mais claro na figura de
Mário de Andrade. Já por outro lado, haverá uma influência internacionalista de classe, que é mais
característica de Oswald de Andrade.
Martin Barbero analisa esse movimento na Europa do século XIX, que é o século das
revoluções burguesas. Como a burguesia não tinha cultura para se contrapor aos instrumentos da
cultura aristocrática da grande música, da grande literatura, ela passa a valorizar as manifestações
da cultura popular, o cordel, as novelas, as feiras populares, o carnaval, as festas religiosas. Como
vantagem adicional, além de dar destaque a essas manifestações, ela ainda vai transformar todas
essas manifestações em oportunidades comerciais de lucro.
A cultura popular foi a origem de matéria-prima para a gênese da Indústria Cultural,
produzida pelo povo, comercializada pela burguesia, reproduzindo assim os mesmos mecanismos
de exploração da indústria capitalista também no campo da cultura. Essa cultura fica assim
deslocada de seu contexto crítico e se torna mercadoria sem sabor que diverte as pessoas que pagam
para ter essa dose de entretenimento. O burguês se apropriou da própria cultura popular e fazendo
uma espécie de antropofagia ao revés, retira o poder crítico dessas manifestações e as devolve na
forma de cultura consumível, que vai servir aos propósitos de uma teoria administrativa de controle
das massas e de geração de lucro. Este argumento já aparecia na obra de Adorno.
Mas em Martin Barbero o tema aparece de forma mais detalhada como hipótese e
apresentação de elementos que a sustentem. O primeiro produto da cultura de massa foi o folhetim
nos jornais. Aconteceu com o jornalismo o mesmo que aconteceu com a cultura popular. Seu
elemento crítico Iluminista é anestesiado para que o jornal seja um instrumento de disseminação de
informações sem valor crítico, somente a serviço do bom funcionamento do sistema. Ele deixou de
ser o instrumento crítico de questionamento das autoridades, de lançamento de luz sobre o obscuro,

128
e é engolido por um sistema que cria uma imprensa áulica e uma imprensa comercial que só visa
lucro.
Por outro lado, Martin Barbero defende que o elemento crítico da cultura popular se
manifesta em outras manifestações que se recusam a ingressar no sistema de forma veemente. Essa
recusa é típica do dadaísmo, que cria obras de arte como um mictório. Sua tendência é não entrar
num museu. Mas mesmo se entrar, sua presença será tão chocante no museu que não haverá como
um espectador passar incólume ao tomar contato com aquela obra. O choque será tão violento que a
arte conservará seu poder crítico mesmo dentro do sistema.
Esse tipo de reatividade contra a cultura de massa será fomentada pelos estudos culturais.
Seus estudiosos querem identificar esses momentos de ruptura radical, para poder destacar seus
elementos críticos e apoiar esse tipo de manifestação. Martin Barbero cita a música brasileira como
polo de resistência, a cultura afro, a cultura dos povos indígenas.

5.5 – Economia Política da Comunicação e teorias contemporâneas

Mattelart finaliza seu livro com dois capítulos, um em que fala da Economia Política da
Comunicação, outro em que desfila uma série de teorias contemporâneas. O que se segue é uma
exposição mais sumária destas informações.
Economia Política da Comunicação é uma linha de pesquisa bastante presente no Brasil, de
origem marxista, e que tenta estudar problemas como a distribuição da propriedade dos meios de
comunicação, analisando as famílias que possuem os grandes conglomerados oligopolistas como
grupos Globo, SBT, Record, e também a estrutura das afiliadas, em boa parte, nas mãos de políticos
Brasil afora. Família Carlos Magalhães na Bahia, família Collor de Melo em Alagoas, família
Sarney no Maranhão. Além da distribuição local da mídia, também estuda o desequilíbrio dos
fluxos de informação e produtos culturais entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Uma das modificações propostas por esta teoria em contraposição à Escola de Frankfurt foi
substituir o termo indústria cultural por “indústrias culturais”. O objetivo desta mudança era
abandonar uma visão muito genérica dos sistemas de comunicação, em virtude de que políticas
públicas de democratização cultural se contrapõem à ideia de serviço e monopólio da lógica
comercial. Assim, penetrar a complexidade de diversas indústrias que exploram uma atividade cada
vez mais valorizada pelo capital, as atividades culturais.
Uma de suas referências importantes, Wallerstein, defendia a tese de que no capitalismo há
uma tripla realidade, um espaço geográfico dado, a existência de um polo como “centro do mundo”,
zonas intermediárias em torno desse pivô central e de margens amplas que, na divisão do trabalho,
se acham subordinadas e dependentes das necessidades do centro. Descreve o movimento de trocas
entre esses polos de troca desigual. O capitalismo é uma criação da desigualdade mundial.
Esta visão rompe com a visão marxista vulgar que homogeneíza a economia e com a liberal
que demarca uma separação Leste-Oeste. A rede de comunicação é parte essencial desta
configuração centrípeta do mundo, com suas hierarquias e a coexistência de modos de produção
distintos.
Porém a pesquisa administrativa não via essa realidade, confundia liberdade de expressão
com liberdade de expressão comercial. Estava mais focada na análise do mundo a partir das
relações capitalismo/comunismo, pautada em sistemas de desenvolvimento do mundo numa ótica
imperialista e de segurança nacional. O Departamento de Estado americano pauta-se na livre
circulação de ideias calcado no princípio da liberdade de circulação de mercadorias.
Isso desembocou num imperialismo cultural, conjunto dos processos pelos quais uma
sociedade é introduzida no sistema moderno mundial e a maneira pela qual sua camada dirigente é
levada a moldar as instituições sociais para que correspondam aos valores e estruturas do

129
centro dominante do sistema.
O fato objetivo é que a troca dos diversos produtos culturais é desigual. Há uma forte
ligação entre o complexo militar-industrial e os meios de comunicação, o que leva a uma
privatização do espaço público.
Assim surge uma dependência de alguns países em relação a outros. Esta visão rompe com a
sociologia funcionalista, que é acusada de ser uma defesa do imperialismo cultural e da
comunicação porque oferece recursos administrativos para o bom funcionamento do sistema. Há
uma geração de pensadores críticos nesta linha que incluem o brasileiro Paulo Freire. Por interpretar
as indústrias culturais como uma pluralidade, a Economia Política da Comunicação se aproxima da
visão dos Estudos Culturais.

6 – A título de conclusão, o jornalismo é seu conceito

Partimos de uma exposição preliminar sobre o que é jornalismo para uma apresentação
histórica que mostrou em maior detalhe o desenvolvimento do jornalismo no Brasil até chegar ao
grau de abstração universal mais elevado que são as teorias, tanto as teorias administrativas quanto
as teorias transformadoras do jornalismo. Ao término deste percurso, o resultado encontrado é a
explicitação num bom grau de desenvolvimento do próprio conceito de jornalismo. Este foi o
objetivo deste trabalho, apresentar o conceito de jornalismo no Brasil.
Numa primeira impressão, pode-se dizer que conceito é o conjunto das teorias a respeito de
algo. Mas surge daí um problema fundamental deste trabalho, que é entender como se dá a relação
entre o conceito e a coisa conceitualizada.
Um primeiro desafio a entender é que esta relação não é fixa, sofreu metamorfoses ao longo
da história, o que podemos verificar recorrendo uma vez mais ao trabalho descritivo histórico das
ciências narrado por Foucault em As palavras e as coisas. Dali, Foucault abstrai três momentos
distintos dessa relação que ele chama, destoando da tradição, de arcaico (o que costumamos chamar
na Filosofia de período Renascentista), clássico (em geral denominado Filosofia Moderna) e
moderno (termo com o qual ele representa o período posterior a Kant e Hegel).
O momento arcaico se caracteriza como um período em que palavras e coisas eram vistas
como habitantes de um mesmo mundo. As palavras falavam, mas as coisas falavam também numa
imensa prosa do mundo. As coisas eram vistas como signos também. E as palavras eram coisas que
precisavam ser decifradas. O texto era visto como algo enigmático tanto quanto as coisas. Exigiam
um comentário. Se as coisas eram uma criação divina, as palavras o eram também. E os conceitos
podiam ser vistos tanto separadamente, como um mundo concreto das ideias platônicas, quanto
como formas que são causas das coisas, da matéria, e que residem dentro dela, constituindo o
mundo da imanência aristotélica. O conceito se aproximava da verdade na medida em que
possibilitava o desvelamento do que Deus havia escondido na própria palavra, que era o sentido de
seu mundo também. O processo do saber era uma ascese por meio da qual o homem tentava se
aproximar deste mundo espiritual.
O momento clássico vai se diferenciar do arcaico rompendo o vínculo entre palavras e
coisas. A partir de então, o conceito passa a residir no território mental da representação de um
sujeito pensante. Neste território, o conceito, como representação da coisa, poderá passar por uma
análise, executada na assepsia da tábua da mathesis ou na taxinomia dos signos, tábuas utilizadas
como método dentro das quais a investigação racional analisará e descobrirá identidades, diferenças
e relações entre as coisas por intermédio dos conceitos. A palavra não está mais no nível das coisas,
ela passa para um outro nível em que reflete as coisas como um espelho. Sua representação. Já não
era mais a coisa na impossibilidade do conhecimento analítico como cosmos complexo, mas sim a
coisa na possibilidade da geração do conhecimento analítico a partir do estudo de suas partes mais
simples presentes na representação, partes que propiciam o avançar do saber rumo às
complexidades. O pensamento clássico criou um espaço homogêneo para o desenvolvimento do

130
saber analítico, que permitiria um desenvolvimento inédito do conhecimento, num tabuleiro onde o
pensamento estava liberado das impurezas das misturas. Foucault utiliza como símbolo do
pensamento clássico o quadro de Velásquez, Las Meninas, onde o sujeito aparece como objeto do
signo (as meninas), como produtor do signo (Velásquez representado dentro do quadro), como o
patrocinador do quadro (os reis) e como observador (o homem ao fundo da sala), numa célebre
análise da representação em sua plenitude.
Nesta condição de reflexão límpida entre palavras e coisas, como diz Gerard Lebrun, “a
metafísica clássica não colocava jamais a questão de saber em que medida seus conceitos tinham
um sentido” (LEBRUN: 1993, p. 70). O pensamento apagava o problema de sua subjetividade
dando explicações a respeito do relacionamento da subjetividade (do conceito) e da objetividade
(das coisas).
É importante deixar mais claro o que isso significa, porque se trata do limiar entre teorias
administrativas e teorias transformadoras do jornalismo. Desde o surgimento da filosofia clássica
com Descartes, a noção de conceito migrou para dentro do pensamento subjetivo. “Penso logo
existo” é uma descoberta que se dá no nível do conceito, como um pensamento que pensa um
sujeito, mas que está na cabeça desse sujeito pensante. Logo, o sujeito passa a ter autoconsciência,
como o Velásquez pintado no interior do quadro de Velásquez. Esta inovação foi muito importante
porque abriu caminho para o estabelecimento do sujeito moderno como base de construção de uma
epistemologia, mas abriu uma fissura que nunca foi superada pelo pensamento moderno entre
representação e coisa, entre sujeito e objeto, entre pensamento e mundo. A partir da primeira certeza
racionalista, de que existo como substância que pensa, como relacionar o pensamento, o conceito,
com o mundo exterior? Como relacionar o jornalismo com seu conceito? Foi este abismo que o
pensamento moderno nunca superou. Para Descartes, o conceito era objetivo porque o bom Deus
não iria nos enganar em algo tão fundamental quanto nossas percepções do mundo externo, a
relação entre coisa e representação.
Após a violenta crítica do ceticismo moderno humano contra este dogmatismo, a solução
kantiana será assumir a subjetividade da objetividade. Não sabemos se há esse Deus, sabemos
somente que o conceito só pode ser objetivo se partir das categorias subjetivas do entendimento
numa síntese com os objetos construídos subjetivamente na intuição. Ou seja, a garantia de que um
conceito representa conhecimento é que só no modo de representação, do conceito, é possível
representar conhecimento sobre algo com objetividade para nós humanos. Um conceito fora da
subjetividade não existe. O conceito é uma representação subjetiva. Mas, visto que não há outro
modo de conhecer para o homem, damos o nome a esta representação subjetiva de objetividade
quando ela for capaz de explicar algo a priori que podemos verificar ser sempre o caso em toda a
intuição sensível, o que se comprova a posteriori. Ora, a intuição sensível também é subjetiva. Este
é o problema. O conceito diz que existe gravidade e que as coisas abandonadas no alto caem. E
sempre é assim. A divisão subjetividade/objetividade passa a ter outro papel, separar o conceito da
mera quimera, da ilusão do pensamento puro sem compromisso com o mundo da intuição sensível.
O que garante a objetividade do conhecimento é que o conceito seja construído de tal forma que
seja capaz de explicar toda a experiência possível na síntese que nosso entendimento faz da intuição
sensível com a necessidade prevista pelo conceito. Portanto, a lei da gravidade é um universal a
priori pensado subjetivamente que ganha objetividade quando percebemos também subjetivamente
que toda a matéria percebida na intuição sensível se submete a ela, ela regula todo fenômeno no
modo como o percebemos na intuição subjetiva de tempo e espaço.
É desta perspectiva cartesio-kantiana que surge a noção tradicional de conceito como
imagem mental por meio da qual se representa um objeto. O conceito representa e substitui a coisa
no âmbito da inteligência. É com base nos conceitos que se constroem teorias. As teorias
administrativas se acomodam nesta chave de perspectiva, criando pensamentos que explicam o
funcionamento do jornalismo, e abstraindo tudo o que foi jogado para fora da tábua analítica, ou
seja, as relações sociais históricas dentro das quais o jornalismo vive. A fissura entre pensamento e

131
coisa deixa o conceito trabalhar livremente mesmo que abstraindo parcelas da coisa que ele escolhe
não incorporar à sua análise.
Hegel vai dizer que este projeto epistemológico coloca o pensamento na perspectiva de um
verme, que rasteja no pó do que está na frente do nariz, e que não consegue erguer o pescoço para o
céu nem mesmo para a sociedade onde o pó se acumula. Ela só consegue saber sobre o que
podemos e queremos ver. Até mesmo Kant vai perceber o grau de miopia de seu projeto
epistemológico estabelecido na primeira crítica, uma epistemologia que vai abandonar as discussões
sobre Deus, o Absoluto, o Infinito, mas também sobre a História Humana, a ética, a Química, a
Biologia e a Arte. O conhecimento se restringiria a uma física limitada pelos recursos da
matemática. Na segunda crítica recuperou a discussão Ética. Na terceira, arte e biologia. Se Kant
pode ser visto como o filósofo da virada em relação à epistemologia clássica, é justamente porque a
perspectiva da terceira crítica é o indício do caminho da virada, de algo que Kant poderia ter feito,
mas que no fundo não fez. Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant descobriu duas coisas estranhas.
Primeira, que há um pensamento construído totalmente sobre a subjetividade sem objeto, o que
acontece quando o próprio sujeito constrói um objeto artificial a partir de sua própria subjetividade
na forma de uma Ideia, a arte. Cria-se um campo todo estranho de pensamento sobre este não-objeto
artístico que ganha uma forma sensível depois de ser construído artificialmente, a estética e a
discussão sobre a arte, a crítica de arte. Segunda descoberta, mais importante quanto à questão da
crítica e da elevação da mente para outra dimensão do conceito, Kant encontra na natureza um tipo
de objeto real que não se deixa reduzir àx explicações dos juízo sintéticos à priori mecânicos, e nos
quais parece que um tipo de causalidade semelhante ao da arte e da ética está em operação,
produzindo estes objetos que ora se fazer seguir em forma de caule, ora de folhas, ora de frutos, ora
de raízes.
A contingência dos fenômenos da natureza orgânicas é imensa, por isso, Kant não vai
chamar qualquer saber sobre eles de conceito, mas somente de pensamento, e vai dizer que, sobre
eles, não é possível formular teorias, somente crítica. São coisas sobre as quais não é possível
formar conceitos, mas somente projetar ideias especulativas da razão, assim como as ideias da arte.
Sobre elas não é possível conhecer teoricamente, mas somente pensar. Este pensamento não será
nunca conhecimento objetivo porque não há conceito a priori que explique por que a árvore
direcionou seus esforços para criar mais raiz e não mais flores. Kant diz que nunca poderá nascer
um Newton que explique uma simples folha de erva.
Tivemos que dar esta ampla volta para mostrar claramente que o problema teórico que
persiste desde Descartes a Kant é unir o conceito, o pensamento, ao mundo. Para Kant, na
teleologia, se tratava de ser obrigado a reinserir uma dimensão suprassensível da qual nada se pode
saber, um deus garantidor desta união num nível em que o pensamento humano não consegue
entrar, nem consegue objetividade.
É neste limiar que se dá a virada para a episteme moderna. Hegel, assim como todo o
romantismo alemão na filosofia, vai tomar o fio da meada kantiana na noção de conceito e vai
superar todas as dificuldades apresentadas até aqui negando que o conceito seja um pensamento
humano que explica algo no mundo e dando uma outra dimensão à razão que extrapola a
subjetividade. É fácil perceber no dilema kantiano a respeito do fim natural, que ele está observando
sem se deixar convencer pelo que vê, o nascimento de um conceito na matéria, independente do
pensamento. Ele não teve coragem de reconhecer tal gênese.
Hegel dá este passo necessário, assumindo que o conceito é algo que está no mundo e não na
cabeça de um sujeito humano. Na Lógica, Hegel constrói uma estrutura da razão que possui uma
doutrina do ser, uma doutrina da essência e uma doutrina do conceito. Portanto a noção de conceito
em Hegel são três livros que somam mais de mil páginas. Numa visão sumária para o que nos
interessa aqui, a Lógica aponta para duas coisas muito importantes. Primeira, que Hegel retira o
conceito do território da subjetividade e o lança num outro patamar superior, onde continuará
existindo o conceito numa maneira parecida com a que o entendimento colocava o conceito, a partir

132
de categorias. Mas, em Hegel, as categorias não são nem as categorias aristotélicas nem as
kantianas. Elas serão totalmente complementadas e substituídas por outras diversas categorias que
constituem a exposição inteira do livro.
Por outro lado, quando Hegel começa a analisar o conceito em si, vai apresentar três
categorias, a primeira das quais ainda se poderia parear com as do entendimento, porque se trata do
nível da mecânica. Porém, faz, logo a seguir, a noção de conceito saltar para níveis muito mais
elevados já que em duas esferas em que isso não é mais possível, as esferas que contém as
categorias do quimismo e da teleologia. Com isso, ele retoma o fio da meada da descoberta kantiana
na terceira crítica, mas, onde o outro não quis avançar, vai seguir com a noção de conceito para
além da subjetividade do entendimento e da intuição sensível humanas e explicitar a existência de
um outro universo de categorias a partir de uma teleologia livre, característica não mais da natureza
mecânica, mas de algo que surge com o quimismo e a teleologia, se abrindo para um leque muito
mais amplo de conceitos que abrangerá manifestações não só dos organismos vivos mas ainda do
espírito que, portanto, serão conceitos possíveis de compreender as artes, a religião, as relações
sociais, a história e a própria filosofia.
A análise da transição do conceito na teleologia da natureza orgânica é muito didática e
demonstra como foi feita esta superação de entender o conceito como pensamento humano e a coisa
como o conteúdo desta representação. Hegel diz na lógica que uma semente de planta é um conceito
universal, portanto, ela já contém o particular da raiz, dos ramos, das folhas dentro de si, mas este
particular só está presente em si como atualidade empírica quando a semente se abre em cada um de
seus momentos espaciotemporais, o que é o equivalente ao ajuizar da planta.
Este exemplo pode também servir para fazer perceptível como nem o conceito,
nem o juízo se encontram simplesmente em nossa cabeça, e não são simplesmente
formados por nós. O conceito é o imanente às coisas mesmas; por ele, as coisas são
o que são; e conceituar um objeto significa, por isso, ser consciente de seu
conceito. Se passamos depois ao julgamento do objeto, isso não é nosso agir
subjetivo pelo qual esse ou aquele predicado é atribuído ao objeto, mas
consideramos o objeto na determinidade posta mediante o seu conceito” (HEGEL:
2012.a, p. 303)
Em sua visão:
É absurdo admitir que haveria primeiro os objetos que formam o conteúdo de
nossas representações, e posteriormente viria nossa atividade subjetiva, que por
meio da operação do abstrair e do reunir do que é comum aos objetos, formaria os
seus conceitos. O conceito é, antes, o verdadeiramente primeiro, e as coisas são o
que são pela atividade do conceito a elas imanente, e que nelas se revela. (HEGEL:
2012.a, p. 298)

O jornalismo é seu conceito. Não o que se pensa a seu respeito, mas o que ele é enquanto
concretude histórica absoluta. O conceito é o princípio de tudo, de toda a vida, e assim, o que é pura
e simplesmente concreto. Nesta transição entre o saber do entendimento e o saber da razão, Hegel
vai conduzir a doutrina do conceito em três níveis, o primeiro do conceito subjetivo ou formal, o
segundo do objeto, e o terceiro da ideia. A Lógica de Hegel nada mais é que a exposição de todas as
categorias do conceito. Quem folheia a obra sem conhecer o autor pode pensar, ao contrário, que o
princípio da Lógica é o Ser. Que o Ser teria maior importância que o conceito. Engano. O Ser é a
categoria mais pobre do conceito. O próprio Hegel coloca a indagação na pequena Lógica da
Enciclopédia. Se o conceito for designado como a verdade do ser e da essência, temos de estar
preparados para a pergunta: “por que não se começou por ele?” a própria obra? A Lógica? A
resposta é que se o objetivo do livro era descobrir a verdade, não se podia começar por ela, mas ela
tem de ser pensada até se comprovar por si mesma para o pensamento.
Se o conceito fosse posto no começo da Lógica e, como é totalmente correto
segundo o conteúdo, definido como a unidade do ser e da essência, então surgiria a
questão do que se entende por ser e por essência, e como os dois termos vêm a

133
condensar-se na unidade do conceito. Assim, porém, só se teria começado pelo
conceito segundo o nome, e não segundo a coisa. O começo propriamente dito
seria feito com o ser, tal como aqui ocorreu; apenas com a diferença de que as
determinações do ser, e igualmente as da essência, teriam de ser tomadas
diretamente da representação; ao contrário, nós tivemos conhecimento do ser e da
essência considerados em seu próprio desenvolvimento dialético, e enquanto
suprassumindo-se a si mesmos para serem a unidade do conceito” (HEGEL,
2012.a: 290)
Assim, o conceito de jornalismo surge aqui da apresentação de seus fundamentos, com
destaque para sua história numa sociedade histórica concreta brasileira, e nos desdobramentos
teóricos que tentam estabelecer sua essência tanto no nível do que é o jornalismo em si – as teorias
administrativas – quanto no que ele é para si, desenvolvido, dimensão que deve se colocar numa
perspectiva dialética com sua história e sociedade, apresentando até mesmo as condições de
existência concreta às quais ele esteve, está e estará submetido – a perspectiva das teorias
transformadoras do jornalismo.
Este movimento foi preconcebido por Foucault como sendo a epistemologia moderna, uma
perspectiva em que são estabelecidos limites da representação subjetiva para a produção de saber, e
quando surge um novo saber que se mostra aberto para aquilo que está do lado de fora da própria
representação como fenômeno concreto. Este lado de fora fica sujeito, portanto, tanto a uma análise
reflexiva que Foucault denominou analítica da verdade, a perspectiva das teorias administrativas
quando tentam entender o jornalismo como ele é em seu momento histórico, quando numa
ontologia do presente, a descoberta de conceitos que são puramente racionais e que muitas vezes,
estão à frente de seu tempo histórico, gerando uma tensão física, revolucionária, transformadora do
próprio conceito e da sociedade onde seu objeto, o jornalismo, está inserido. O lugar do jornalismo
histórico.
As teorias transformadoras, portanto, não são especulações vazias. Estes conceitos racionais
apresentados por elas são dedutíveis da análise dos próprios dados empíricos em sua integralidade
concreta. No âmbito do que Foucault estudou, a vida – já entendida numa perspectiva história que
revela um evolucionismo , o Trabalho – na forma das relações sociais, do ‘nós pensamos’ e do ‘nós-
produzimos’, que denuncia as contradições da sociedade capitalista e aponta para formas de sua
superação -, e a Linguagem – o locus de autoconsciência do conceito, mas que tem sua historicidade
também em permanente avanço, conforme uma evolução do próprio conceito e das teorias
transformadoras do jornalismo pretende indicar.
Junto com esta noção dialética de conceito, Hegel identificava a existência de uma força de
necessidade da racionalidade, que o autor por vezes chama de astúcias da razão. A razão vai se
impor ao presente no sentido da ampliação da Liberdade. A prova ontológica deste mecanismo é
que uma das últimas categorias da Lógica é justamente a categoria de necessidade, que abrange a
racionalidade. Portanto existe um motor na história e a hipótese da pós-modernidade é uma piada de
mau gosto, conforme a evolução histórica desde a década de 1990 já tem comprovado. Porém, a
velocidade lenta com que esta necessidade impõe as transformações dá margem ao surgimento das
teses da estagnação e da perfeição do momento histórico presente, de fim da história. Quanto à sua
imperfeição, são provas as contingências dos interesses egoístas, das regalias, das distâncias sociais
que no caso do Brasil ainda são motivos de vergonha. Sua superação vai depender do desenrolar das
condições do processo histórico que, por aqui, tentamos demonstrar que sempre foi atrasado. E de
sua superação.
Por isso, a noção de ‘conceito’ de Hegel deságua em sua relação com a História. O conceito
racional está despregado da atualidade no sentido de que a atualidade não é sua causa, ao contrário,
o conceito é a causa da atualidade, mas sempre há um retardo de sua atualização, que coloca o
conceito como uma força de tensão. A questão é que assim como um conceito de planta pode
originar empiricamente uma planta maior ou menor, menos perfeita ou mais perfeita como
representante da espécie, ou seja, envolvendo uma dimensão contingente, até que surja o exemplar

134
perfeito em sua plenitude, o mesmo ocorre com a História. Uma causa pode ainda ter de esperar por
sua efetivação em sua plena totalidade e passar por estágios intermediários que a negam em alguma
medida. A efetivação, por outro lado, acontecerá, porque o conceito racional tem necessidade de ser.
Sua necessidade de ser, entretanto, não está pautada no que um indivíduo pensa ou outro, a respeito
do que deve acontecer, mas sim na força da própria razão contra a qual as subjetividades insistem
em resistir, contrárias ao desenvolvimento pleno da racionalidade em sua plenitude social coletiva,
mesmo que submetida a grilhões radicais. O sujeito coletivo encontra no conceito suas armas
espirituais enquanto o conceito encontra no sujeito coletivo real, suas armas materiais. Esta
independência é a liberdade do conceito. O ponto mais elevado onde esta previsão é possível é no
conceito em sua forma teórica pura, porque ali ele faz aparecer enquanto representação o que deve
ser. Não há como comparar as teorias administrativas do jornalismo com as teorias transformadoras,
porque se as primeiras simplesmente mostram o pó onde o verme do presente está afundado, as
teorias transformadoras do jornalismo denunciam os problemas das condições presentes e prevem o
que o jornalismo deveria ser.

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