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Sendo uma formação social históri-

Bianca Imbiriba Bonente |


Bianca Imbiriba Bonente ca, o capitalismo pode ser parteira
de um desenvolvimento não capi-
talista, pós-capitalista, o que torna
sempre pertinente a indagação so-
bre a necessidade ou possibilidade
O objetivo deste livro é demonstrar que as teorias do desenvol-
de conter a História em sua forma
vimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento processual presente. Uma indaga-
capitalista, tanto no sentido de que o limite teórico e prático da ção como essa aponta para um pla-
sua intervenção é o capitalismo, e apenas ele, quanto no sentido no mais abstrato de análise no qual
de que, ao fazê-lo, projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao o desenvolvimento capitalista não

Desenvolvimento em Marx
é previamente ajuizado como algo
menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para, pri-
positivo (ou inexorável), mas sim
meiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econô-

Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica


como expressão da relação entre
micas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, a norma de funcionamento (ten-
empreende-se um contraste entre os termos comuns dessas teo-
rias e os elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento
em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx.
e na teoria econômica dencial) interna do capitalismo e
os constrangimentos externos que
atuam sobre ela. Isso requer uma
reconstrução crítica da ideia mesma
Bianca Imbiriba Bonente por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista de desenvolvimento que restaure o
sentido mais geral apontado pela
etimologia do termo.
Considerando o que foi dito, é pos-
sível agora confessar: esta lição so-
bre desenvolvimento não saiu da
cartola a partir da leitura de um
dicionário ou obra qualquer acerca
da etimologia das palavras. Na ver-
dade, trata-se de uma entre as vá-
rias lições aprendidas na leitura do
livro que o presente texto propõe-
Bianca Imbiriba Bonente possui -se a apresentar: Desenvolvimento
graduação em Ciências Econômicas em Marx e na teoria econômica:
pela Universidade Federal Flumi- por uma crítica negativa do desen-
nense (2004), mestrado em Econo- volvimento capitalista, de Bianca
mia pela Universidade Federal de Imbiriba Bonente. Aqueles que se
Uberlândia (2007) e doutorado em dedicarem ao exame atento dos ca-
Economia pela UFF (2011). Hoje é pítulos do livro, com o mínimo de
interesse e humildade necessários
professora adjunta do Departamen-
para aprender, certamente tomarão
to de Economia da Universidade
dele esta e outras lições.
Federal Fluminense e pesquisadora
do Núcleo Interdisciplinar de Estudos João Leonardo Medeiros
e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo Professor do Departamento de
(NIEP-Marx). Economia da Universidade
Federal Fluminense
Desenvolvimento em Marx
e na teoria econômica
Universidade Federal Fluminense

REITOR
Sidney Luiz de Matos Mello

VICE-REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense

CONSELHO EDITORIAL
Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente)
Antônio Amaral Serra
Carlos Walter Porto-Gonçalves
Charles Freitas Pessanha
Guilherme Pereira das Neves
João Luiz Vieira
Laura Cavalcante Padilha
Luiz de Gonzaga Gawryszewski
Marlice Nazareth Soares de Azevedo
Nanci Gonçalves da Nóbrega
Roberto Kant de Lima
Túlio Batista Franco

DIRETOR
Aníbal Francisco Alves Bragança
Bianca Imbiriba Bonente

Desenvolvimento em Marx
e na teoria econômica:
por uma crítica negativa do
desenvolvimento capitalista
Copyright © 2012 Bianca Imbiriba Bonente
Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense

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da Editora.

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Impresso no Brasil, 2016


Foi feito o depósito legal.
Sumário
Apresentação, 7

Introdução, 17

PARTE I – POR UMA TEORIA ONTOLÓGICA DO DESENVOLVIMENTO, 27


Capítulo 1 – Leis gerais de desenvolvimento da sociedade:
historicidade e desigualdade do desenvolvimento, 31
Seção 1.1 As leis gerais de desenvolvimento da sociedade, 32
Seção 1.2 Historicidade e desigualdade do desenvolvimento, 35
Seção 1.3 Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações finais, 40
Apêndice I – Esclarecimentos sobre a categoria desenvolvimento desigual, 46

Capítulo 2 – Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica autoexpansiva,


desenvolvimento e estranhamento, 49
Seção 2.1 Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista, 50
Seção 2.2 Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas contradições, 55
Apêndice II – Desenvolvimento capitalista e mercado mundial, 63

Capítulo 3 – O desenvolvimento capitalista e suas particularidades, 69


Seção 3.1 A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo”, 71
Seção 3.2 A crise dos anos 1970 e a contrarrevolução conservadora, 81
Seção 3.3 O desenvolvimento capitalista e suas particularidades: considerações
finais, 98
Apêndice III – Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista, 101

PARTE II – TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO: POR UMA CRÍTICA ONTOLÓGICA, 105


Capítulo 4 – Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico: Harrod, Domar
e Solow, 109
Seção 4.1 Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de Harrod e Domar, 112
Seção 4.2 A estabilidade do crescimento no modelo de Solow, 118
Seção 4.3 Considerações finais, 122

Capítulo 5 – Teorias clássicas do desenvolvimento (I): estratégias de


industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral, 125
Seção 5.1 Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento equilibrado, 126
Seção 5.2 Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento desequi-
librado, 135
Seção 5.3 Rostow e o manifesto não comunista: uma síntese do debate?, 140
Seção 5.4 Considerações finais, 147

Capítulo 6 – Teorias clássicas do desenvolvimento (II): em defesa da


industrialização na América Latina, 151
Seção 6.1 O “sistema centro-periferia”e a deterioração dos termos de troca, 153
Seção 6.2 Em defesa da industrialização na América Latina, 158
Seção 6.3 Considerações finais, 163
Capítulo 7 – As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970, 167
Seção 7.1 A requalificação do debate sobre desenvolvimento, 170
Seção 7.2 O dilema “Estado x Mercado”, 178
Seção 7.3 Considerações finais, 184

Conclusão, 187

Referências, 197

Agradecimentos, 205
Apresentação
Novas lições sobre um velho tema:
desenvolvimento, agora (de fato) examinado
desde uma perspectiva marxista

João Leonardo Medeiros* 1

Em muitas ocasiões, a etimologia de um termo empregado


cotidianamente presta-se ao importante papel de abrir uma
fenda no senso comum, evidenciando que os vocábulos e seu
conteúdo são construções históricas e, como tais, passíveis de
mudança. Ao fazê-lo, a etimologia não apenas funciona como
corretivo crítico do senso comum, mas faculta o reconheci-
mento de um sentido geral e mais abstrato (e não historica-
mente específico) de uma palavra ou expressão.
Tomemos a palavra desenvolvimento, partindo, entretan-
to, de seu sentido cotidiano, associado ao trânsito processual
desde um estado menos evoluído para um estado mais evoluí-
do do que quer que seja. O movimento em si é usualmente per-
cebido como algo positivo, como um bem, uma condição a ser
alcançada e, se possível, promovida. É verdade que, normal-
mente, ninguém julga positiva a evolução de um câncer. Mas
desenvolvimento artístico, cultural, humano são expressões
que capturam o significado dominante que a palavra desenvol-
vimento indubitavelmente possui.
Não parece absurdo sugerir que este sentido corrente de de-
senvolvimento baseie-se na lógica da economia do atual período
histórico, uma economia em que o trânsito pelo tempo tem dire-
ção causalmente determinada pela própria dinâmica implicada
pela estrutura produtiva. Entre hoje e amanhã, a tendência de
uma economia capitalista é de aumento da riqueza produzida
sob a forma mercantil – isto é, em sua duplicidade de utilidade e
preço (valor de uso e valor). A ausência de desenvolvimento ou

*
Professor associado do Departamento de Economia da Universidade Fede-
ral Fluminense e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pes-
quisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx) da mesma instituição.

7
sua brusca interrupção são, por outro lado, justamente associa-
das ao tímido potencial de crescimento da riqueza produzida ou
à brusca interrupção do crescimento.
Recorramos agora à etimologia da palavra desenvolvimen-
to. Desenvolvimento, desenvolver, vem “de envolver, do latim
involvere, envolver, antecedido do prefixo des-, indicador de
negação, mas também de ação ou abundância, conforme o
contexto: desnudar não é vestir; desfazer não é deixar de fa-
zer (mas desmanchar, fazer outra coisa) […]” (SILVA, 2014).
Seguindo a explicação etimológica, o segundo prefixo (en-) do
vocábulo desenvolver “indica ‘dentro’; o primeiro, des- contra-
ria este, significando tirar do invólucro, como em ‘descobrir’
e ‘descascar’.” Isso significa, em síntese, que “o significado de
desenvolver, desenvoltura, desenvolvimento e outras palavras
assemelhadas é retirar algo que está impedindo a manifesta-
ção” (Ibidem).
Há, naturalmente, alguma relação entre o sentido originário
da palavra desenvolvimento e seu significado atualmente pre-
dominante. Afinal de contas, o próprio estado evoluído ou não
de um objeto da realidade depende não apenas de sua norma
interna de funcionamento, mas também de constrangimentos
externos que possam impedir ou limitar a expressão plena de
suas possibilidades. Agora, se há algo que se revela pelo con-
traste entre o significado corrente do termo e a sua origem eti-
mológica é a marcante presença do caráter de valor (no senti-
do ético do termo) que “desenvolvimento” atualmente possui.
Como dito, em geral desenvolvimento é percebido como um
processo positivo de explicitação do ser, sendo inclusive trata-
do como algo a ser promovido ou estimulado.
Se faz sentido, de fato, sugerir que o vocábulo desenvol-
vimento, do modo como atualmente interpretado, tem rela-
ção íntima com o processo evolutivo da economia capitalista,
então seu sentido valorativo corrente só pode estar associa-
do às formas de consciência que ajuízam o desenvolvimento
capitalista. Tomando por base as interpretações científicas
de tal processo, em particular aquelas das teorias econômi-
cas do desenvolvimento, isso parece fazer todo sentido, por

8
basicamente duas razões. Primeiro porque, passando em re-
vista a infinidade de teorias econômicas do desenvolvimento,
é possível reconhecer em meio à imediata diversidade (pelo
menos) um elemento comum: a percepção do desenvolvimen-
to capitalista como limite do desenvolvimento social, como
o estado a ser alcançado ou promovido, ainda que não haja
consenso sobre a forma particular de capitalismo que pode ou
deve ser tomada como avatar. Segundo, porque, de fato, todas
as teorias econômicas do desenvolvimento percebem o desen-
volvimento capitalista como um bem e, na prática, constroem-
-se como teorias a serviço de sua promoção.
A questão é que sendo uma formação social histórica, o ca-
pitalismo pode ser parteira de um desenvolvimento não capi-
talista, pós-capitalista, sendo sempre pertinente indagar sobre
a necessidade ou possibilidade de conter a história em sua
forma processual presente. Uma indagação como essa apon-
ta para um plano mais abstrato de análise no qual o desen-
volvimento capitalista não é previamente ajuizado como algo
positivo (ou inexorável), mas sim como expressão da relação
entre a norma de funcionamento (tendencial) interna do capi-
talismo e os constrangimentos externos que atuam sobre ela.
Isso requer uma reconstrução crítica da ideia mesma de desen-
volvimento que restaure o sentido mais geral apontado pela
etimologia do termo.
Considerando o que foi dito, é possível agora confessar:
esta lição sobre desenvolvimento não saiu da cartola a partir
da leitura de um dicionário ou obra qualquer acerca da etimo-
logia das palavras. Na verdade, trata-se de uma entre as vá-
rias lições aprendidas na leitura do livro que o presente texto
propõe-se a apresentar: Desenvolvimento em Marx e na teoria
econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capita-
lista, de Bianca Imbiriba Bonente. Aqueles que se dedicarem ao
exame atento dos capítulos do livro, com o mínimo de interes-
se e humildade necessários para aprender, certamente toma-
rão dele esta e outras lições. Para deixar clara a profundidade
e relevância do argumento apresentado na obra, tomemos al-
gumas lições nela contidas.

9
Em primeiro lugar, o livro nos ensina ser possível reconhe-
cer na obra de Marx aquele sentido geral e abstrato do vocábu-
lo “desenvolvimento” que põe ênfase na explicitação objetiva
das possibilidades contidas no próprio ser e não no ajuizamen-
to externo deste processo. Em se tratando do desenvolvimen-
to capitalista, isso quer dizer que

o capital é mais desenvolvido, quanto mais ampla a sua


atuação. Ou seja, por mais contraintuitivo que pareça, o
fato de o capital ampliar seu alcance territorial (tendên-
cia à formação do mercado mundial), penetrar nas mais
distintas esferas da vida social (como, por exemplo, as
artes, esportes, relações familiares, de afeto etc.) e atuar
sobre um número maior de setores (como, por exem-
plo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado, nos
quais a lucratividade é relativamente diminuta e o re-
torno é mais demorado), imprimindo, em todos esses
casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o
capital se desenvolveu. (BONENTE, 2016, p. 99).

Parece simples e de fato é, mas só depois que alguém expres-


sou esse entendimento nada imediato em tal simplicidade sin-
tética, como o fez Bianca Bonente, inspirando-se em Marx. Isso
conduz a mais uma lição contida na obra: desenvolvimento ca-
pitalista assim concebido não tem relação necessária com seu
efeito sobre o conjunto da humanidade. O capitalismo torna-se
mais desenvolvido quando a sociedade torna-se mais capitalis-
ta, quando os constrangimentos à atuação do capital são eli-
minados e sua lógica evolutiva contraditória avança intensiva
e extensivamente no tecido da vida social. Isso pode ser facil-
mente percebido pelo conteúdo corrente da palavra crise, sem-
pre associado à interrupção de uma trajetória de crescimento
da produção (em geral, medida pelo PIB). Mesmo que, antes e
depois da “crise”, tudo mais desmorone – ­ o meio ambiente, as
condições da convivência cotidiana, a possibilidade de subsis-
tência digna da maioria absoluta da população mundial – só
se constata a interrupção do desenvolvimento e, portanto, a

10
crise, quando a produção de mais-valor reduz seu ímpeto. Em
suma: “Falar sobre o desenvolvimento da produção capitalista
significa falar sobre a operação de suas leis em escala global. O
fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais
apenas comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalis-
ta, em lugar de negá-la.” (BONENTE, 2016, p. 69).
Partindo desta noção de desenvolvimento abstrata, geral,
objetiva, o livro nos ensina a passear por diferentes níveis de
abstração, especialmente do universal ao particular. No pla-
no universal, aprendemos sobre as condições historicamente
transcendentes (i.e., propriamente gerais) do desenvolvimen-
to da sociedade, que a autora reconhece a partir de uma leitu-
ra inspirada da Ontologia do ser social de György Lukács (2012;
2013). Considerando a complexidade do processo histórico e a
diversidade da vida social, não surpreende que as tendências
gerais de desenvolvimento não passem de três: a “crescente
sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à
reprodução humana e a constituição da consciência genérica”.
(BONENTE, 2016, p. 189).
O argumento move-se adiante pela tentativa de demons-
trar como essas tendências gerais do desenvolvimento social
articulam-se com tendências particulares que em si caracteri-
zam o funcionamento da sociedade regida pelo capital. É neste
momento do livro que a análise clássica de Marx em O capital,
particularmente de seu Livro I (MARX, 2013), comparece com
mais peso, pois Bonente, corretamente em nosso juízo, com-
preende que o grande mérito de Marx foi ter concentrado sua
atenção em determinações que conformam a norma geral do
desenvolvimento capitalista (e não as condições particulares
do capitalismo inglês, ou do século XIX, ou de livre concorrên-
cia etc. etc. etc.), tomando-as exatamente como aquilo que são
em si: tendências universais.12

1
O termo tendência denota um tipo de legalidade (1) não empírica, mas que
se manifesta empiricamente, como a lei da gravidade; e (2) não teleológica,
mas baseada não teleologicamente em práticas teleológicas espontaneamen-
te articuladas entre si, como a própria lei da queda da taxa de lucro reconhe-
cida por Marx (2013, p. 29).

11
Ao descer uma vez mais o plano de abstração, o livro traz
mais uma lição: a de que o capitalismo contém possibilidades
muito diversas de operação daquela configuração geral de
seu desenvolvimento. O propósito, neste caso, é demonstrar
que, para além de sua configuração geral, “a produção capi-
talista é caracterizada por tendências particulares, circuns-
critas historicamente a condições específicas de reprodução
sistêmica, que permitem delimitar fases de seu desenvolvi-
mento” (BONENTE, 2016, p. 70). Reconhecendo que o estudo
das determinações particulares que caracterizam as fases de
desenvolvimento do capitalismo exige em si um esforço sin-
gular, Bonente limita-se a cotejar duas formas assumidas pelo
capitalismo no século XX, ressaltando suas determinações
mais claramente distintivas. Isso é feito nas seções 3.1 e 3.2,
que comparam a feição peculiar assumida pelo capitalismo em
sua assim chamada “Era de Ouro” com a forma aparentemente
mais clássica assumida no longo período de crise pós 1970 – o
período usualmente designado neoliberal.
Com a comparação entre fases diversas assumidas pelo ca-
pitalismo no século XX, o livro encerra sua primeira parte, jus-
tamente voltada ao exame das tendências (das mais gerais às
particulares) que caracterizam o desenvolvimento social na era
capitalista. A Parte II do estudo assume essa análise do desenvol-
vimento como fundamento de um contraste crítico que permite
reconhecer a modalidade característica de análise do mesmo
objeto pelas ditas “teorias econômicas do desenvolvimento”.
Para leitores menos pacientes com as limitações e a parcialida-
de da ciência econômica, principalmente os marxistas, trata-se
indubitavelmente de um anticlímax. Saem de cena pensadores
como David Harvey, Moishe Postone, Ricardo Antunes, Mario
Duayer e, principalmente, György Lukács e Karl Marx e entram
Arthur Lewis, W. W. Rostow, Robert Solow, Roy Harrod, Amartya
Sen entre muitos outros que elaboram suas ideias no mesmo
campo e plano. Os que bravamente resistem a tal mudança de
ambiente são brindados com mais algumas lições.
Por exemplo, é possível aprender como, na prática, funcio-
na aquilo que Lukács chamou de “crítica ontológica” (LUKÁCS,

12
2012) e Roy Bhaskar de “crítica explanatória” (BHASKAR,
1998). Por isso se quer dizer uma crítica que não se limita à
demonstração do caráter falso e/ou parcial de explicações al-
ternativas (científicas ou não) sobre um objeto qualquer ou,
ademais, à construção de uma explicação teórica alternativa
que ressignifique o objeto. Trata-se, na verdade, de uma crítica
que, além disso, busca explicar, com igual rigor e interesse, a
partir da realidade, as determinações e processos que expli-
cam a existência e a necessidade social das concepções rivais,
falsas e/ou parciais como são, como interpretações correntes,
principalmente quando tais concepções demonstram possuir
eficácia prática.23
Assim são tomadas várias teorias econômicas do desen-
volvimento. Sem perder de vista sua diversidade evidente,
enfatizada nos tediosos e insípidos manuais sobre o tema, a
análise de Bonente distingue-se por apontar seus pressupos-
tos comuns. Mesmo (ou principalmente) a conhecida crítica
das Economias Clássica e Neoclássica construída pela antiga
Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe)
é examinada deste modo. No caso da Cepal, o que se revela
por detrás de oposição teórica com seu adversário direto é a
seguinte afinidade:

a despeito das particularidades, compartilham todas


uma mesma noção de desenvolvimento (que toma como
pressuposto a forma elementar de riqueza característica

2
Tanto Lukács como Bhaskar reconhecem ser justamente esse o tipo de pro-
cedimento crítico adotado por Marx em todo o seu percurso intelectual. O
capital, não por outro motivo subintitulado Crítica [e não Princípios] da Eco-
nomia Política, não apenas toma a Economia Política como objeto de crítica,
não apenas propõe uma explicação teórica alternativa para o mesmo objeto,
como se preocupa em demonstrar que a economia capitalista não poderia
reproduzir-se, dado seu caráter contraditório, sem uma ciência dedicada
justamente à administração das contradições. Categorias próprias do senso
comum e da Economia Política são, portanto, objeto de uma análise crítica
que revela sua íntima conexão com a imagem que o objeto (economia capi-
talista) espontaneamente projeta de si, mas também sua importância deci-
siva para a preservação do objeto. O exemplo clássico desse procedimento
crítico, a análise da forma salário, no Capítulo XVII de O capital, é apenas
uma instância entre inúmeras contidas na obra de Marx.

13
do capitalismo), uma mesma estratégia de desenvolvi-
mento (que toma como pressuposto o modo industrial
de produzir) e um mesmo ideal de desenvolvimento
(espelhado nos países capitalistas desenvolvidos).
(BONENTE, 2016, p. 163).

Tomando a Cepal como referência, e fazendo uso da própria


linguagem estruturalista, pode-se sugerir que existam “efeitos-
-encadeamento” – no caso, intelectuais – para trás e para fren-
te. Se a Cepal reelabora a visão de mundo que toma o capita-
lismo como horizonte último da história humana de modo a
torná-la mais adequada ao período excepcional em que o capi-
tal conclamou o Estado a salvá-lo de uma aguda crise de lucra-
tividade, por outro lado, a reelaboração crítica das ideias da
antiga Cepal por novos-neoclássicos travestidos de cepalinos
ou não, além de novos pretensos heterodoxos, como Amartya
Sen e outros, entrega uma formulação adequada ao novo perío-
do histórico pós-1960. O que se preserva, neste trânsito, é a no-
ção de desenvolvimento capitalista como um bem e, por outro
lado, a orientação da teoria no sentido de promovê-lo pela via
política. Como diz a autora: “Socialmente justo, ambientalmen-
te responsável, livre ou regulado: trata-se apenas de projetar
para o futuro configurações diversas de uma mesma formação
social (o capitalismo)” (BONENTE, 2016, p. 186).
São, enfim, muitas as lições do livro que tenho o orgulho
de apresentar. Creio que aos leitores ficará imediatamente per-
ceptível que se trata da divulgação do primeiro trabalho de
uma pesquisadora e professora segura de suas convicções e
conhecedora dos argumentos necessários para sustentá-lo.
Como colega de trabalho, amigo e ex-orientador, realmente
não posso deixar de expressar minha satisfação em constatar
a precoce maturidade intelectual de Bianca Imbiriba Bonente,
uma constatação certamente compartilhada por aqueles que
já travaram contato direto com suas ideias. Que sejam essas as
primeiras lições de muitas outras trazidas pela grande autora
corajosamente lançada pela Eduff.

14
Referências

BHASKAR, Roy. The Possibility of Naturalism. London: Routledge,


1998.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo:
Boitempo, 2012.
______. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo,
2013.
MARX, Karl. O capital: livro 1: crítica da economia política. São
Paulo: Boitempo, 2013.
SILVA, Deonisio da. De onde vêm as coisas: origens e curiosida-
des da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon, 2014.

15
Introdução

Não é de se estranhar que um autor polêmico como Marx


suscite ainda hoje tantas releituras e interpretações, dos mais
variados tipos e nas mais diversas áreas, desde aquelas deci-
didas a apontar inconsistências e incorreções teóricas, até as
que buscam, a partir de um resgate, avançar em pontos pouco
explorados pelo autor, passando ainda pelas tentativas de sis-
tematização (pretensamente isentas) geralmente encontradas
em manuais e/ou livros-texto. Em uma inspeção rápida desse
material, podem ser encontradas algumas leituras pertinentes
(embora nem sempre corretas) e outras insustentáveis diante
de um exame cuidadoso da obra do autor. Particularmente no
que diz respeito à temática do desenvolvimento, uma leitura
bastante difundida é aquela que atribui ao autor uma noção
de desenvolvimento associada ao trânsito inexorável por eta-
pas históricas bem definidas. De acordo com essa concepção,
portanto, Marx estaria apresentando a história humana como
uma sucessão de modos de produção (movida pelas contradi-
ções que se estabelecem entre forças produtivas e relações de
produção, ou entre base econômica e superestrutura), cujo fim,
ou estágio último, seria o comunismo (independentemente da
forma como este é concebido).1
Perspectivas desse tipo buscam amparo, por exemplo, em
trechos do prefácio ao Para a crítica da economia política, em
que Marx (1982, p. 26) fala de “relações de produção [...] que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento
das [...] forças produtivas materiais”, ou ainda em trechos do
conhecido prefácio à primeira edição de O capital, em que Marx
utiliza por diversas vezes o termo desenvolvimento, geralmen-
te em referência aos casos inglês e alemão (tomados ambos,
especialmente o primeiro, como “laboratórios de investiga-
ção”). Nesse particular, Marx (2002, p. 16 et seq.) faz afirma-
ções como “o país desenvolvido não faz mais do que repre-
sentar a imagem futura do menos desenvolvido”, ou mesmo,

1
Uma síntese desta leitura, e das principais controvérsias por ela suscitadas,
pode ser vista em Harris (1983).

17
“uma nação deve e pode aprender de outra. [...] não pode ela
suprimir, por saltos ou por decreto, as fases naturais de seu de-
senvolvimento”. Nas passagens mencionadas, portanto, Marx
estaria comunicando aos conterrâneos alemães que o futuro
de seu país poderia ser conhecido diretamente pelo exame
do passado de um país mais desenvolvido: a Inglaterra. Como
sintetizado no trecho que Marx extrai das Sátiras de Horácio:
“Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”.2
Ainda que o emprego da palavra desenvolvimento nas pas-
sagens supracitadas tenha alimentado polêmicas, é possí-
vel encontrar inteligibilidades bastante diversas da questão
dentro do mesmo ambiente teórico. Uma interpretação par-
ticularmente instigante encontra-se no trabalho póstumo do
filósofo marxista G. Lukács (1979). Considerando o conjunto
da obra e o sentido geral da teoria social marxiana, Lukács
propõe que, com a palavra desenvolvimento, Marx tem por
referência o aumento objetivo da complexidade como elemen-
to regulador da dinâmica de funcionamento de objetos estru-
turados ao longo do tempo (LUKÁCS, 1979, p. 54). Ou seja,
“uma dada estrutura (totalidade) é objetivamente superior,
ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da mesma es-
pécie caso seja constituída por um maior número de compo-
nentes específicos, ou pelo mesmo número de componentes
mais complexos” (MEDEIROS, 2007, p. 45).
No caso da sociedade (abstratamente considerada), esse
aumento no grau de complexidade poderia ser traduzido no
crescimento da sociabilidade em sentido extensivo (aumento
da quantidade de componentes predominantemente sociais
como elementos mediadores da vida em sociedade) e/ou in-
tensivo (crescente complexidade dos componentes já existen-
tes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como
recuo das barreiras naturais. Sobre as tendências que regulam a
dinâmica de funcionamento da sociedade, Lukács (2007, p. 237
e 238 et seq.) menciona ainda o aumento das forças produtivas
do trabalho (ou seja, a diminuição do tempo de trabalho neces-
sário à produção e reprodução das condições de vida humana)
2
“Está rindo do quê? Em outras palavras, a fábula fala de ti.”

18
e a formação do gênero humano, resultado das “ligações quan-
titativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as socieda-
des singulares originalmente pequenas e autônomas”.
No caso da sociedade em forma especificamente capita-
lista, desenvolvimento significa, seguindo a mesma lógica,
a operação das leis que emanam da organização própria
da economia regida pelo capital em sentido extensivo (isto
é, para uma porção mais ampla do globo, submetendo uma
quantidade maior de formações sociais e seres humanos) e/
ou intensivo (comandando momentos mais amplos da con-
vivência social, como as atividades artísticas, esportivas,
relações afetivas etc.). O trânsito de um estágio mais baixo
de desenvolvimento para um mais alto significa, portanto, a
predominância mais ampla da lógica capitalista na existência
social (e não a passagem do pior ao melhor, seja lá como es-
ses estados possam ser definidos).
Se essa é, de fato, a maneira como Marx concebeu o desen-
volvimento, então o desenvolvimento de que fala em O capital
é o desenvolvimento do seu objeto de análise (a sociedade ca-
pitalista, cuja dinâmica é dominada por sua economia, como
procura demonstrar a obra). Ademais, o fato de que Marx
tenha procurado capturar a essência desse desenvolvimento
mediante o enunciado de leis de tendência revela, por um lado,
que o autor tem plena consciência de que o processo de desen-
volvimento comporta histórias (isto é, trajetórias concretas,
efetivas) bastante diferenciadas. Isso porque leis de tendên-
cias não são afirmações sobre sequências regulares de even-
tos, mas sim proposições sobre a capacidade causal de um de-
terminado objeto do mundo, que pode ser exercida sem que os
fenômenos causados se manifestem (em virtude da operação
de tendências contrarrestantes). Naturalmente, isso confere
à análise de Marx um caráter post festum, não preditivo. Por
outro lado, a caracterização do processo de desenvolvimen-
to mediante o enunciado de leis de tendência nitidamente re-
vela o reconhecimento do caráter não teleológico da história
em seu conjunto. Ainda que Marx destaque a teleologia como
o aspecto distintivo da práxis humana, ele simultaneamente

19
caracteriza a dinâmica da sociedade como o resultado da arti-
culação espontânea, não teleológica, dessas práticas.3
Com essas considerações, torna-se possível retomar as
passagens de Marx citadas no início desta introdução, espe-
cialmente aquelas que tratam da relação entre Inglaterra e
Alemanha. À luz da interpretação aqui defendida, pode-se
sugerir que Marx considerava a Alemanha um país capitalis-
ta, mas com um grau de penetração do capital na vida social
como um todo relativamente limitado em comparação com a
Inglaterra. Por esse motivo, afirma que “além dos males mo-
dernos, oprime a nós alemães uma série de males herdados,
originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu
séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito
do tempo. Somos atormentados pelos vivos e, também, pelos
mortos. Le mort saisit le vif. [O morto tolhe o vivo]” (MARX,
2002, p. 16 e 17).
Um indício claro desse raciocínio também pode ser encon-
trado na afirmação de que a Alemanha é menos desenvolvida
que a Inglaterra por não contar com uma regulação jurídica
das relações entre capital e trabalho, isto é, com uma estrutura
jurídica compatível com a produção capitalista (ou ainda, com
“relações de produção” correspondentes à “etapa determina-
da de desenvolvimento das [...] forças produtivas materiais”).
Mais do que isso, ao afirmar que a Alemanha se desenvolveria
como a Inglaterra, Marx não estava falando de eventos e fenô-
menos históricos concretos, mas sim do surgimento, naquele
país, de um terreno favorável à operação das leis (econômi-
cas) que caracterizam e governam a sociedade capitalista.
Na tentativa de esclarecer o motivo pelo qual julgamos
necessário demonstrar que essa é efetivamente a noção de

3
Em O capital, essa diferença entre o caráter teleológico das práticas indi-
viduais e o caráter não teleológico do processo social em seu conjunto é
salientada por diversas vezes. Um bom exemplo é a análise da prática dos
capitalistas em processo de concorrência, realizada no Capítulo X do Livro
I. Embora os capitalistas movam sua prática no sentido da extração de mais-
-valia extraordinária, do ponto de vista do processo em seu conjunto, o re-
sultado de tais práticas é a redução do valor da força de trabalho (MARX,
2002, p. 368-370).

20
desenvolvimento carregada por Marx, é indispensável ainda
contrastá-la com a noção de desenvolvimento convencional-
mente aceita no campo da ciência econômica. Nesse caso, ob-
servamos que o desenvolvimento é entendido, em geral, como
trânsito do “pior ao melhor”, o que envolve um juízo sobre
condições pretéritas, presentes ou futuras, realizado com base
em determinados critérios preestabelecidos. Ao lado dessa
posição geral, está a noção de desenvolvimento como mero
desdobramento de possibilidades postas pelo presente orde-
namento social, colapsando o desenvolvimento da sociedade
enquanto tal e o desenvolvimento capitalista (o que não chega
a surpreender, pois, como se sabe, para a Economia a socieda-
de capitalista é o limite último de todas as teorias e práticas).
Os exemplos mais claros de conjugação das duas carac-
terísticas apresentadas são, sem sombra de dúvida, ofereci-
dos pelas teorias econômicas do desenvolvimento, tomadas
como objeto do presente estudo. O surgimento desse con-
junto de teorias é normalmente datado do período poste-
rior à Segunda Guerra Mundial e marcado pelo fato de eles
compartilharem uma mesma preocupação: explicar por que
os diferentes países sustentam trajetórias históricas de cres-
cimento distintas e propor saídas para os “menos favoreci-
dos” – geralmente tratados como subdesenvolvidos.4 Como
esperamos demonstrar ao longo deste estudo, essas teorias
possuem diferenças e particularidades, tanto nos diagnósti-
cos quanto nas prescrições, que não podem ser ignoradas.
Ainda assim, o desenvolvimento é tratado, em geral, como a
passagem de um estágio de privação material para um estado
de pletora material, qualquer que seja o critério para avaliar
essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida,
nível de escolaridade etc.). Além disso, a formação social ca-
pitalista é tomada como um pressuposto, tanto na definição

4
Vale notar que há uma variedade de termos e eufemismos utilizados para
tratar desse grupo de países: desde o próprio “subdesenvolvidos” até “de-
primidos”, “periféricos”, “terceiro mundo” etc. Para facilitar a exposição,
adotaremos prioritariamente o termo subdesenvolvimento, a não ser quan-
do estivermos empregando a linguagem de um autor específico na exposi-
ção de suas ideias.

21
dos fins (objetivos primordiais do desenvolvimento) quanto
na definição dos meios (isto é, das estratégias e requisitos
necessários a essa passagem). Trata-se, portanto, como dito,
de encarar o desenvolvimento como o eterno desdobrar do
presente e, simultaneamente, de ajuizar esse processo, explí-
cita ou implicitamente, como positivo.
Por que deveríamos recusar a noção de desenvolvimento
veiculada pela ciência econômica, uma noção que conduz à
identificação imediata de desenvolvimento com desenvolvi-
mento capitalista? Pensemos, por um minuto, que Marx tinha
razão. Admitamos que ele esteja correto quando procura de-
monstrar que o capitalismo não pode subsistir sem o exército
industrial de reserva, que o capitalismo não pode prescindir da
separação dos seres humanos em classes sociais (ou seja, da
desigualdade), que nós não temos como controlar, mesmo pela
ação do Estado, a dinâmica capitalista (isto é, que estamos su-
bordinados à possibilidade de crises e de um uso destrutivo da
natureza). Se esse argumento faz sentido, e nós estamos pre-
sos ao desenvolvimento capitalista, então nossa única alterna-
tiva seria desenvolver uma teoria da conformação universal,
e, naturalmente, da administração da calamidade. Por outro
lado, se percebemos o desenvolvimento capitalista como mo-
mento específico de um desenvolvimento mais amplo, então
podemos ao menos nos questionar se devemos contribuir para
a explicitação das leis que respondem pelo desenvolvimento
capitalista, ou se devemos, no sentido contrário, esforçar-nos
por transitar para outro modo de desenvolvimento.
Em segundo lugar, ainda partindo da premissa de que Marx
tinha razão, se o desenvolvimento capitalista envolve, por ne-
cessidade, mazelas sociais e ecológicas, seria impossível que,
junto às mazelas, não emergissem formas de consciência em
diversos níveis (cotidiano, filosófico, científico etc.) que se
ocupassem dessas mazelas, fosse para compreender suas cau-
sas e/ou propor soluções. Se as mazelas são mazelas em algum
sentido, elas reclamam remédio, e as teorias que confundem
desenvolvimento capitalista e desenvolvimento em-si enquan-
to tal tratam de oferecê-lo. Então, no fundo, essas teorias não

22
são apenas teorias, são ideias necessárias de um mundo que
produz mazelas.
Diante desse panorama geral, podemos finalmente afirmar
que o objetivo deste estudo é demonstrar que as teorias do
desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desen-
volvimento capitalista, ou seja, tomam o capitalismo (e ape-
nas o capitalismo) como limite teórico e prático da sua inter-
venção e projetam a formação social capitalista (uma imagem
dela, ao menos) como figura inexorável do futuro da humani-
dade. Para, primeiro, atestar e, depois, defender o nexo entre
as teorias econômicas do desenvolvimento e a reprodução da
sociedade capitalista, foi estabelecido um contraste entre os
termos comuns dessas teorias e os elementos que caracteri-
zam a análise do desenvolvimento em-si da sociedade capita-
lista encontrada na obra de Marx (seguindo, é claro, a inter-
pretação aqui defendida). O contraste evidenciou não apenas
ser possível conceber o desenvolvimento da sociedade na sua
atual configuração, como uma fase historicamente contingente
do desenvolvimento social em geral, mas também confirmar
a hipótese de que as teorias econômicas do desenvolvimento
são manifestações teóricas do próprio desenvolvimento social
na sua atual forma.
As páginas que se seguem apresentam, em duas grandes
partes, os resultados do estudo. Na Parte I, buscamos defender
a possibilidade de formulação de uma teoria do desenvolvi-
mento autenticamente ontológica e definir de modo mais pre-
ciso o sentido do termo desenvolvimento dentro dessa pers-
pectiva.5 Para tanto, essa parte encontra-se dividida em três
capítulos, nos quais buscamos progressivamente diminuir o
nível de abstração da análise: no primeiro, tratando das prin-
cipais linhas de desenvolvimento da sociedade, abstratamente
5
O termo ontologia, empregado por diversas vezes ao longo deste livro, re-
fere-se ao conjunto de considerações gerais sobre a realidade, sobre o ser,
sobre o que existe em-si, uma visão geral de mundo, enfim, que constitui o
pano de fundo para a interpretação dos diferentes momentos da existên-
cia natural e/ou social. O termo ontologia é dotado de uma “duplicidade
semântica”, podendo referir-se tanto à realidade em si mesma, quanto às
considerações sobre a realidade, duplicidade que também afeta as palavras
“economia” e “história”, por exemplo.

23
considerada; no segundo, buscando a apreensão das linhas
gerais de desenvolvimento da sociedade em forma especifica-
mente capitalista, com especial atenção para aquelas tendên-
cias que determinam o caráter autoexpansivo dessa formação
social; no terceiro, por fim, examinando a manifestação das
leis anteriormente apresentadas em dois contextos históricos
específicos (o período conhecido como “Era de Ouro do capi-
talismo” e aquele posterior à crise dos anos 1970), buscando,
com isso, mostrar como a análise do desenvolvimento em-si
deve envolver o reconhecimento de que as tendências gerais
são atravessadas por particularidades. A Parte I conta ainda
com três apêndices, em que buscamos explorar algumas temá-
ticas específicas, que, ao longo da pesquisa, apresentaram-se
como complementos importantes à linha central de argumen-
tação, cujo eixo encontra-se presente nos capítulos.
Cumprida esta etapa, a Parte II foi dedicada à inspeção
crítica das teorias econômicas do desenvolvimento, que ex-
pressam de maneira mais clara a forma como o desenvolvi-
mento é geralmente abordado no âmbito da ciência econômi-
ca. Considerando, no entanto, a proximidade inicial entre as
temáticas do desenvolvimento e do crescimento econômico
(por vezes tomados como sinônimos), julgou-se prudente ini-
ciar a Parte II oferecendo, no quarto capítulo, um panorama
geral dos modelos de crescimento econômico no período pré-
1970. Para tratar das teorias do desenvolvimento produzidas
no mesmo período (que, em virtude do “pioneirismo”, foram
por nós intituladas teorias “clássicas” do desenvolvimento),
foi necessário dividi-las em dois grandes grupos: aquelas que
falam sobre as regiões subdesenvolvidas, em geral (apresenta-
das no quinto capítulo), e aquelas que tratam especificamente
do caso latino-americano (apresentadas no sexto capítulo). O
sétimo capítulo, por fim, busca apresentar as principais reo-
rientações observadas no debate sobre desenvolvimento no
período posterior à década de 1970.
Apenas para enfatizar, a inspeção crítica realizada ao lon-
go da Parte II não tem como objetivo avaliar se as teorias do
desenvolvimento, ao interpretarem os problemas dos países

24
subdesenvolvidos, produzem ideias melhores ou piores, quan-
do comparadas umas com as outras. Ao contrário, espera-se
demonstrar, através da identificação de elementos teóricos
comuns, que as teorias sob análise encontram-se no interior
do amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir
uma crítica conjunta, fundamentada no arcabouço teórico da
Parte I e apresentada na conclusão geral deste estudo.

25
Parte I
Por uma teoria ontológica do desenvolvimento

Para realizar a inspeção crítica das teorias do desenvolvi-


mento veiculadas pela ciência econômica, faz-se necessário,
antes de tudo, esclarecer os princípios gerais que irão nortear
o presente estudo e delimitar com precisão o sentido aqui atri-
buído ao termo desenvolvimento. Organizada em três capítulos
e três apêndices (nos quais são destacados pontos específicos
do argumento), a Parte I tem fundamentalmente esse intuito.
Ao longo das páginas que a compõem, pretendemos defender,
em linhas gerais, uma visão de mundo dentro da qual o termo
desenvolvimento é empregado de modo plenamente objetivo,
isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades
objetivas de funcionamento do objeto examinado (indepen-
dentemente da forma como se julguem essas propriedades).
Se o objeto em questão for a sociedade (em geral e em sua
forma especificamente capitalista), é preciso, em primeiro lu-
gar, demonstrar a historicidade e a processualidade que ca-
racterizam essa forma de ser. Em segundo lugar, é necessário
apreender as leis gerais de movimento da sociedade e as leis
que regem o funcionamento do modo de produção especifica-
mente capitalista. Por fim, devem-se conhecer as condições
concretas de manifestação dessas leis, em condições históri-
cas específicas, e perceber como, apesar das particularidades,
as determinações mais gerais são mantidas. Nesse último caso,
podemos ainda observar em que medida as mudanças nas con-
dições particulares contribuem para tornar o funcionamento
do capitalismo mais adequado à lógica do capital.
Para dar início ao tratamento dos pontos acima enumera-
dos, dedicamos o primeiro capítulo da Parte I ao resgate da
descrição oferecida por Marx sobre a sociedade em geral e à
identificação de determinações que transcendem os marcos
de qualquer modo de produção específico. Ao mesmo tem-
po, aproveitamos a oportunidade para expor algumas consi-
derações preliminares, que, além de elucidarem importantes

27
afirmações feitas por Marx a respeito do mundo e da forma
de capturá-lo no pensamento, também permitem “limpar o
terreno”, desfazendo o que parecem ser alguns dos equívo-
cos mais recorrentes na interpretação da teoria marxiana. O
primeiro capítulo é complementado ainda por um apêndice,
no qual fazemos alguns esclarecimentos adicionais a respeito
da categoria desenvolvimento desigual, particularmente impor-
tantes para estabelecer a distinção entre a perspectiva aqui
delineada e aquela defendida por grande parte das teorias de
inspiração marxista.
O segundo capítulo destina-se mais pontualmente ao res-
gate dos elementos indispensáveis à caracterização do siste-
ma social vigente, tomando como base a descrição feita por
Marx, especialmente em O capital. Considerando a impossibi-
lidade de refazer o longo argumento elaborado pelo autor, o
capítulo terá ao menos um foco fundamental: a demonstração
de que, por sua própria constituição, a sociedade mercantil
possui como dispositivo imanente o impulso para o aumento
da riqueza, ou, dito de outra forma, que esse modo de produ-
ção possui uma dinâmica autoexpansiva. Trata-se, mais espe-
cificamente, de demonstrar como, em sua processualidade, a
dinâmica capitalista produz crescimento contínuo da riqueza
e como esse resultado vem acompanhado do acionamento de
novas contradições. Para auxiliar a compreensão desse pon-
to, dedicamos o Apêndice II à apresentação de um importante
elemento da dinâmica capitalista: a tendência à formação do
mercado mundial.
No terceiro e último capítulo, analisamos a dinâmica capi-
talista em um nível ainda mais baixo de abstração, mostrando
como as tendências gerais apresentadas no capítulo anterior
são atravessadas por determinações particulares (inclusive
tendências historicamente específicas) que influenciam a for-
ma concreta de manifestação das leis gerais. Para tanto, utiliza-
mos como exemplo dois períodos históricos: o primeiro conhe-
cido como a “Era de Ouro do capitalismo” e aquele posterior
à crise dos anos 1970. A partir do contraste entre esses dois
períodos, esperamos mostrar as mudanças, mas também as

28
permanências, indicando como o capital modifica-se num de-
terminado momento para preservar sua lógica geral. Por fim,
utilizamos o Apêndice III para prestar alguns esclarecimentos
sobre a complexidade da dinâmica capitalista, apontando para
o equívoco cometido por aquelas teorias que tentam explicar
a dinâmica capitalista exclusivamente a partir de uma única
categoria.

29
Capítulo 1
Leis gerais de desenvolvimento da sociedade:
historicidade e desigualdade do desenvolvimento

Na vasta produção intelectual de Marx, é perceptível a pre-


ocupação recorrente em elucidar o modo concreto de funcio-
namento da sociedade, sua processualidade histórica, suas
linhas gerais de desenvolvimento. Seguindo as pistas deixadas
por Lukács (1979), filósofo que se ocupou deste aspecto da
obra marxiana, momentos fundamentais de tais argumentos
podem ser explicitados, de modo a oferecer resposta a uma
série de questões pertinentes para os propósitos deste estu-
do. Por exemplo, o desenvolvimento da sociedade é governa-
do por leis? Existe algum tipo de lei regulando a forma como
os seres humanos, nas suas atividades cotidianas, produzem e
reproduzem as condições de sua existência? Mais do que isso:
existem características e determinações desse desenvolvimen-
to que sejam comuns a todas as épocas da produção, indepen-
dentemente das condições históricas específicas?
Respondendo afirmativamente a essas questões, o presen-
te capítulo tem como principal objetivo identificar justamente
as leis humanas universais que caracterizam a produção, abs-
traídas as formas históricas (concretas) como se manifestam
(como já indicado, esse nível de abstração será progressiva-
mente reduzido conforme avançarmos para os capítulos se-
guintes). Para tanto, utilizamos na primeira das três seções
o resgate feito por Lukács (1979; 2007) para expor, de modo
sistemático, as principais tendências que regulam o desenvol-
vimento do ser social. Feito isso, dedicamos a segunda seção
ao tratamento de duas temáticas extremamente importantes
para o argumento do presente trabalho: historicidade e desi-
gualdade do desenvolvimento. Por fim, mostramos na última
seção algumas qualificações necessárias ao correto entendi-
mento da teoria ontológica de desenvolvimento da sociedade
aqui defendida.
Seção 1.1 As leis gerais de desenvolvimento da
sociedade

Tomando como base especificamente os estudos de Marx


sobre a economia (entendida aqui como a esfera de produção
e reprodução da vida humana), Lukács (2007, p. 238) demons-
tra que a linha geral de desenvolvimento da sociedade (aquela
que transcende os marcos de um modo de produção especí-
fico) é marcada por três tendências básicas: a primeira delas
apresenta-se como um constante recuo das barreiras naturais, a
segunda na forma de um também constante aumento das forças
produtivas do trabalho, e a terceira está relacionada à confor-
mação do gênero humano.
A primeira das tendências identificadas por Lukács na obra
de Marx, o recuo das barreiras naturais, significa, por um lado,
que a vida humana e social jamais pode desvincular-se inteira-
mente de sua base última na natureza – trata-se, portanto, de
recuo e não de eliminação (LUKÁCS, 1979, p. 53). Por outro,
essa tendência mostra que “[...] tanto quantitativa quanto qua-
litativamente, diminui de modo constante o papel do elemento
puramente natural (quer na produção, quer nos produtos)”
(LUKÁCS, 2007, p. 238 et seq.). Nesse sentido, observamos que
“momentos decisivos da reprodução humana – basta pensar
em aspectos naturais como a nutrição ou a sexualidade – aco-
lhem em si, com intensidade cada vez maior, momentos sociais,
pelos quais são constante e essencialmente transformados”.1
Ainda seguindo a leitura de Lukács da obra de Marx, a segun-
da tendência que caracteriza a dinâmica de desenvolvimento
da sociedade é a tendência ao aumento das forças produtivas
do trabalho, que se manifesta diretamente em uma diminuição
do tempo de trabalho socialmente necessário à produção de
1
Para ilustrar essa tendência da vida social de tornar-se, sempre e cada vez
mais, mediada por categorias sociais, podemos resgatar ainda uma das cé-
lebres passagens da Introdução de 1857, na qual Marx mostra como mesmo
uma atividade vital à nossa manutenção como seres naturais (o ato de ali-
mentar-se) é também socialmente determinada: “A fome é fome, mas a fome
que se satisfaz com carne cozida, que se come com faca ou garfo, é uma
fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes” (MARX,
1982, p. 9).

32
objetos e, portanto, à reprodução dos seres humanos. Antes
que conclusões equivocadas sejam extraídas dessa afirmação,
é necessário enfatizar que o enunciado “tempo de trabalho so-
cialmente necessário” não deve ser confundido com o enun-
ciado da categoria “valor”. O ser humano sempre trabalhou e
sempre despendeu tempo em sua atividade produtiva, mas só
em determinadas condições sociais (aquelas postas pelo ca-
pital), o trabalho apresenta-se de modo dominante como pro-
priedade das coisas produzidas, como valor, e o tempo funcio-
na como medida dessa propriedade. Portanto, como veremos
no próximo capítulo, somente na sociedade comandada pelo
capital, a redução do tempo de trabalho socialmente necessá-
rio apresenta-se como diminuição do valor unitário das merca-
dorias e constitui uma tendência dinâmica que marca a fundo
a reprodução sistêmica.
Por ora, tratamos do aumento da produtividade, numa
perspectiva bastante ampla, como uma tendência ultrageral
da reprodução social, que contribui para a diversificação das
necessidades sociais e das formas de práticas humanas (e até
mesmo para a ampliação das possibilidades de crescimento
populacional). Nas palavras da historiadora Ellen Meiksins
Wood:

Evidentemente, não se discute que numa perspectiva


bastante longa o desenvolvimento das forças produti-
vas materiais tenha tido o caráter geral da evolução;
mas isso significa apenas que as mudanças nas forças
de produção tendem a ser acumulativas e progressi-
vas, que, uma vez ocorrido um avanço, raramente ele
se perde completamente, e que a regressão seja excep-
cional no longo prazo. Se isso é verdade, ainda é possí-
vel caracterizar como evolutivos e “direcionais” esses
desenvolvimentos (e não teleológicos), no sentido de
que há uma tendência progressiva geral e cada desen-
volvimento se faz acompanhar de novas possibilidades
e de novas necessidades. Mas isso nada nos diz acerca
do vigor, da frequência, da rapidez ou da extensão da

33
mudança; nem contradiz o entendimento, expresso por
Marx, de que “petrificação” tem sido mais a regra que a
exceção. (WOOD, 2003, p. 115).

Sem muitas mediações, chegamos à terceira tendência que


acompanha o desenvolvimento do ser social, na qual se ex-
pressa um novo aspecto de sua historicidade, e que também
constitui mais um progresso objetivo desse ser: a explicitação
do caráter genérico da humanidade. Sobre este ponto, é im-
portante ter presente, em primeiro lugar, que individualidade e
gênero já aparecem como categorias do ser natural, e que, por-
tanto, do ponto de vista biológico, o gênero humano já existe
em si quando o ser humano separa-se objetivamente dos pri-
matas superiores. Mas o gênero, como relação exclusivamente
natural, só pode assumir a forma de um gênero mudo, como
nota Lukács:

A relação assim surgida entre os exemplares singulares e


o gênero é uma relação puramente natural, inteiramente
independente de qualquer consciência, de qualquer ob-
jetivação da consciência: o gênero se realiza nos exem-
plares singulares; e esses, em seu processo vital, reali-
zam o gênero. É óbvio que o gênero não pode ter nenhu-
ma consciência; e igualmente óbvio é que, no exemplar
singular natural, não pode surgir nenhuma consciência
genérica. (LUKÁCS, 1979, p. 140).

O caráter genérico da humanidade, tomada em sentido so-


cial, no entanto, manifesta-se aos indivíduos que constituem
o gênero, abrindo o caminho para a tomada de consciência
tanto da identidade genérica como da singularidade de cada
indivíduo. Mas essa tomada de consciência é, ao menos ini-
cialmente, restringida pelo fracionamento da humanidade
em comunidades diversas e, em muitos casos, isoladas, e
pela própria divisão dos seres humanos em classes sociais,
que muitas vezes leva à negação do reconhecimento da iden-
tidade humana de camadas inteiras da população (escravos,

34
por exemplo). O reconhecimento do gênero humano como
um problema universal que envolve todos os seres humanos,
além das fronteiras de comunidades específicas, das classes e
outras divisões possíveis (“raça”, gênero), é um fenômeno re-
lativamente recente, que acompanha o recuo progressivo das
barreiras naturais, o desenvolvimento das forças produtivas
e especialmente a tendência à formação do mercado mundial
(LUKÁCS, 2007, p. 238).
Assim como no caso da tendência ao aumento das forças
produtivas, veremos no próximo capítulo como a explicitação
do gênero humano ganha contornos mais definidos no modo
de produção capitalista, e que, apesar do caráter de progres-
so objetivo, vem acompanhado do acionamento de novas
contradições. Antes disso, seguimos na próxima seção com o
tratamento de duas questões indispensáveis ao correto enten-
dimento da concepção de desenvolvimento aqui defendida: a
historicidade e o desenvolvimento desigual.

Seção 1.2 Historicidade e desigualdade


do desenvolvimento

A respeito da historicidade, vale notar imediatamente que


atribuí-la a determinado objeto significa, antes de tudo, reco-
nhecer seu contínuo movimento ao longo do tempo (movimen-
to este que não implica, necessariamente, a irreversibilidade
de processos, sejam eles físicos ou sociais). Nessa afirmação, é
preciso dar especial atenção ao uso do termo “contínuo”, pois
uma das condições para que se estabeleça a mudança de um
objeto é que este continue e permaneça sendo o mesmo obje-
to, ainda que tenha sofrido alterações substantivas. Só é possí-
vel, por exemplo, analisar as modificações experimentadas por
determinada espécie ao longo do tempo se esta se sustenta
como mesma espécie. O mesmo se aplica à sociedade: falar
das modificações pelas quais passou o capitalismo nos últimos
anos só faz sentido na medida em que este modo de produção
continua a existir. Como nota Lukács (1979, p. 79 et seq.): “a
continuidade na persistência, enquanto princípio de ser dos

35
complexos em movimento, é indício de tendências ontológicas
à historicidade como princípio do próprio ser”.
Mais do que isso, a historicidade implica não apenas a per-
manência na mudança, “mas também e sempre uma determi-
nada direção na mudança, uma direção que se expressa em
transformações qualitativas de determinados complexos, tan-
to em-si quanto em relação com outros complexos”. Sem mui-
tos rodeios, podemos extrair daqui o entendimento correto do
papel desempenhado pelos conceitos de desenvolvimento e
progresso dentro dessa formulação. Com o auxílio de Medeiros:

Os conceitos de desenvolvimento e progresso são empre-


gados para descrever em si mesma a direção do movi-
mento de objetos estruturados, ou seja, para descrever
objetivamente a direção do movimento. A ideia-chave en-
volvida neste procedimento é a complexidade. Uma dada
estrutura (totalidade) é objetivamente superior, ou mais
desenvolvida, do que outra estrutura da mesma espécie
caso seja constituída por um maior número de compo-
nentes específicos, ou pelo mesmo número de compo-
nentes mais complexos. Dada esta concepção de desen-
volvimento, a noção de progresso serve para descrever
a passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento
para um nível mais alto – o aumento da complexidade de
objetos estruturados. (MEDEIROS, 2007, p. 45)

No caso do ser social, identificamos ao menos três tendên-


cias (ou desenvolvimentos) desse tipo. A crescente sociabili-
dade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à repro-
dução humana e a constituição da consciência genérica são
expressões precisas dessa “passagem de um nível mais baixo
de desenvolvimento para um nível mais alto”. Vale notar que
o reconhecimento desses progressos objetivos independe da
forma como são avaliados: “Nessa constatação ontológica do
progresso, não está contido nenhum juízo de valor subjetivo.
Trata-se da constatação de um estado de coisas ontológico,
independentemente de como ele seja avaliado posteriormente.

36
(Pode-se aprovar, deplorar, etc. o ‘recuo das barreiras natu-
rais’)” (LUKÁCS, 1979, p. 54).
A questão é que a sociedade, assim como outros objetos es-
truturados, fica mais bem representada como uma totalidade,
composta de complexos, complexamente articulados, em que
“todo ‘elemento’, toda parte, é também [...] um todo; todo ‘ele-
mento’ é sempre um complexo com propriedades concretas,
qualitativamente específicas, um complexo de forças e rela-
ções diversas que agem em conjunto” (LUKÁCS, 1979, p. 40).
Se investigamos, portanto, a relação que se estabelece entre as
diferentes partes e/ou esferas que integram uma totalidade, o
que se observa é que estas partes e/ou esferas podem possuir
legalidades próprias e se comportar de maneira heterogênea:
“por um lado, complexos diferentes de uma mesma totalidade
podem estar em estágios distintos de desenvolvimento; por
outro, alguns complexos podem estar contingentemente regre-
dindo ao invés de progredindo”. (MEDEIROS, 2007, p. 46)
Na medida em que progressos singulares, em uma ou outra
esfera da vida social, podem ser acompanhados por regres-
sões simultâneas em outras esferas, temos de reconhecer que
todo desenvolvimento (ou progresso) que tem lugar na his-
tória do ser social pode assumir, por necessidade (isto é, em
razão da própria configuração dinâmica do objeto), a forma
de um desenvolvimento desigual. Apesar de ser por vezes asso-
ciado às diferenças na distribuição de riqueza entre as nações,
trata-se aqui o desenvolvimento desigual como uma categoria
cujo alcance é mais abrangente, dentro da qual a desigualdade
entre países pode apenas ser vista como um caso específico.2
E para entender a profundidade dessa categoria, recorremos
ao exemplo, citado por Marx, da desigualdade de desenvolvi-
mento que se estabelece entre a produção material em face da
produção artística:

2
Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento desigual, focada espe-
cialmente na distinção entre as duas noções (a defendida no presente estu-
do e aquela que trata exclusivamente da desigualdade de desenvolvimento
entre as nações), poderá ser vista no Apêndice I.

37
Em relação à arte, sabe-se que certas épocas de flores-
cimento artístico não estão de modo algum em confor-
midade com o desenvolvimento geral da sociedade, nem,
por conseguinte, com o da base material que é, de certo
modo, a ossatura da sua organização. (MARX, 1982, p. 20).

Na verdade, segundo o autor, não estão em conformidade e


nem poderiam estar. Tomando como ilustração a relação entre
a arte grega e a sociedade moderna, observa Marx:

A intuição da natureza e as relações sociais que a ima-


ginação grega inspira e constitui por isso mesmo o fun-
damento da [mitologia] grega serão compatíveis com
as selfactor [máquinas automáticas de fiar], as estradas
de ferro, as locomotivas e o telégrafo elétrico? Quem
é Vulcano ao lado de Roberts & Cia., Júpiter em com-
paração com o pára-raios e Hermes em face ao Crédit
Mobilier? Toda mitologia supera, governa e modela as
forças da natureza na imaginação e pela imaginação,
portanto, desaparece quando essas forças são domi-
nadas efetivamente. O que seria da Fama ao lado de
Printing House Square? A arte grega pressupõe a mito-
logia grega, isto é, a elaboração artística mas incons-
ciente da natureza e das próprias formas sociais pela
imaginação popular. Esse é o seu material. (MARX, 1982,
p. 20 e 21).

Ainda que tenha sido muito pouco trabalhada por Marx (o


conceito de desenvolvimento desigual é apenas explicitamen-
te abordado na Introdução de 1857, na forma de “pontos que
devem ser mencionados aqui e não devem ser esquecidos”),
essa formulação nos permite oferecer uma crítica consistente
a, ao menos, duas concepções distintas e opostas, que nor-
malmente figuram no debate sobre o assunto. Por um lado,
tem-se a “concepção simplista e vulgarizada do progresso,
que retém apenas um resultado qualquer já quantificado do
desenvolvimento (crescimento das forças produtivas, difusão

38
do conhecimento etc.) e, sobre essa base, decreta a existência
de um progresso generalizado”; por outro, no extremo oposto,
temos a posição que, assumindo os retrocessos como unidade
de medida, nega de modo absoluto a presença de progresso
(LUKÁCS, 1979, p. 124).
É evidente que, na medida em que, em ambos os casos, mo-
mentos singulares do processo de conjunto são amplificados e
tomados como critérios únicos, as duas concepções são equi-
vocadas. Como ressalta Lukács:

Desigualdade do desenvolvimento significa, “simples-


mente”, que a grande linha de evolução do ser social
[...] não pode se explicitar em linha reta, segundo uma
lógica racional qualquer, mas se move em parte por
vias travessas (deixando mesmo atrás de si alguns be-
cos sem saída) e, em parte, fazendo com que os com-
plexos singulares, cujos momentos reunidos formam o
desenvolvimento global, encontrem-se individualmen-
te numa relação de não-correspondência. (LUKÁCS,
1979, p. 134).

A compreensão deste ponto é particularmente importante


para o presente estudo, pois as teorias do desenvolvimento
não raramente incorrem em equívocos como os enunciados
anteriormente. Em primeiro lugar, grande parte dessas teorias
agarra-se a um critério específico de desenvolvimento para, a
partir dele, decretar “a existência de um progresso generaliza-
do”, desconsiderando o caráter necessariamente desigual des-
se desenvolvimento. Além disso, essas teorias, em lugar de en-
carar o desenvolvimento como um reconhecimento objetivo,
costumam tratar o desenvolvimento como um “juízo de valor
subjetivo”. Essas e outras questões correlatas serão tratadas
mais detidamente nos próximos capítulos. Por ora, seguimos
com a apresentação de mais alguns elementos indispensáveis
à caracterização da perspectiva aqui delineada.

39
Seção 1.3 Linhas gerais de desenvolvimento do ser
social: considerações finais

Apesar de já terem sido revelados, ao longo das seções


anteriores, as principais leis gerais de desenvolvimento da
sociedade e o caráter necessariamente desigual desse de-
senvolvimento, o correto entendimento da teoria sobre a so-
ciedade aqui defendida, no nível de abstração em que nos
encontramos, depende ainda da realização de alguns escla-
recimentos adicionais. É precisamente esse o objetivo da
presente seção. Ao longo das próximas linhas, pretendemos
sustentar o caráter tendencial, não teleológico e objetivo das
leis sociais, nem sempre reconhecido por parte da literatu-
ra sobre o tema. Em seguida, reafirmamos o caráter neces-
sariamente post festum do conhecimento sobre a sociedade,
apontando para algumas implicações de tal atitude, tanto em
termos teóricos quanto práticos.
Em primeiro lugar, portanto, devemos notar que as leis so-
ciais não são tomadas aqui como leis empíricas, ou seja, não se
trata de buscar e reconhecer regularidades (conjunções cons-
tantes) na relação entre eventos. As leis de tendência, que se
referem ao modo de agir de objetos estruturados, podem ou
não se manifestar em eventos, dependendo da força com que
operam as contratendências (ou fatores contrarrestantes).
Importa compreender, portanto, que o fato de uma determi-
nada lei não se verificar em certo momento não contradiz a
existência da lei em si. Como destaca Lukács:

[...] a tendencialidade, enquanto forma fenomênica ne-


cessária de uma lei na totalidade concreta do ser social,
é consequência inevitável do fato de que nos encontra-
mos aqui diante de complexos reais que interagem de
modo complexo, frequentemente passando por amplas
mediações, com outros complexos reais; a lei tem cará-
ter tendencial porque, por sua própria essência, é re-
sultado desse movimento dinâmico-contraditório entre
complexos. (LUKÁCS, 1979, p. 64).

40
Além disso, as dinâmicas e determinações anteriormente
enunciadas funcionam com relativa autonomia com referência
às intenções particulares dos sujeitos em suas ações (o resul-
tado social do processo em si não tem uma finalidade, ou seja,
é não teleológico).3 A dificuldade aqui reside no fato simples,
embora nem sempre intuitivo, de que, enquanto a maioria das
atividades cujo conjunto compõe o movimento da sociedade
é certamente de origem teleológica, o somatório dessas ativi-
dades é feito de conexões causais que em nenhum sentido po-
dem ser de caráter teleológico – e, na maioria dos casos, pro-
duz resultados inteiramente diversos das motivações iniciais
(LUKÁCS, 1979, p. 81). Apesar da impossibilidade de aprofun-
dar esse e outros temas relacionados, julga-se aqui relevante
ao menos indicar que, desse fato fundamental, depreende-se
de imediato que os processos sociais podem ser ditos ao mes-
mo tempo dependentes e independentes dos atos individuais
que os produzem e reproduzem.4
A correta caracterização da teoria aqui defendida exige ain-
da a compreensão de que as dinâmicas e tendências que se
verificam no interior do ser social sustentam sua objetividade,
na medida em que existem e operam independentemente do
conhecimento que se tem sobre elas e a despeito dos juízos
de valor formulados a seu respeito. Em postura perfeitamente
compatível com uma ontologia realista e materialista (válida
para além dos limites das ciências da sociedade), explicita-
-se aqui, em primeiro lugar, o reconhecimento fundamental da
distinção entre a realidade e o conhecimento da realidade (ou
ainda, nos termos de Marx, entre o concreto e o concreto pen-
sado). Mais do que isso, trata-se, na verdade, de reconhecer a

3
Nas palavras de Sánchez-Vázquez (2007, p. 55 e 56): “o progresso histórico é
fruto da atividade coletiva dos homens como seres conscientes, mas não de
uma atividade comum consciente.”
4
Como sintetizado por Marx em mais uma de suas célebres passagens: “Os
homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se de-
frontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 1997, p.
21). Sobre o tema, conferir também Lukács (1979, p. 64; 2007, p. 236).

41
prioridade (ontológica) da primeira (realidade) em relação à
segunda (consciência).5 Nos termos de Lukács:

Quando atribuímos uma prioridade ontológica a de-


terminada categoria com relação a outra, entendemos
simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a
segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impos-
sível. É algo semelhante à tese central de todo o mate-
rialismo, segundo o qual o ser tem prioridade ontológi-
ca com relação à consciência. Do ponto de vista ontoló-
gico, isso significa simplesmente que pode existir o ser
sem a consciência, enquanto toda consciência deve ter
como pressuposto, como fundamento, algo que é. Mas
disso não deriva nenhuma hierarquia de valor entre ser
e consciência. (LUKÁCS, 1979, p. 40).

Obviamente, como o próprio Lukács nos adverte nessa úl-


tima frase, não se pretende com isso negar a importância da
consciência. Embora a consciência seja entendida como um
“produto tardio do desenvolvimento material”, não é jamais
um “produto de menor valor ontológico”. Ao contrário, afirmar
que a consciência, ao refletir a realidade, abre a possibilida-
de de modificá-la, significa dizer que “a consciência tem um
real poder no plano do ser e não – como se supõe a partir das
[...] visões equivocadas – que ela é carente de força” (LUKÁCS,
2007, p. 227).
Além dessa distinção fundamental entre ser e consciência,
resta ainda notar que a forma de apreender a realidade ge-
ralmente não coincide com o processo de gênese da própria

5
Esse é um dos aspectos mais decisivos do materialismo sustentado por
Marx: “Do mesmo modo que em toda ciência histórica e social em geral é
preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias econô-
micas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dado
tanto na realidade efetiva como no cérebro; que as categorias exprimem
portanto formas de modos de ser, determinações de existência, frequente-
mente aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que,
por conseguinte, essa sociedade de maneira nenhuma se inicia, inclusive do
ponto de vista científico, somente a partir do momento em que se trata dela
como tal” (MARX, 1982, p. 18).

42
realidade, ou seja, a leitura da história caminha no sentido
oposto à gênese da própria história. Isso porque se a evolução
do ser social segue a norma do aumento da complexidade in-
terna do ser, o processo histórico efetivo tende a transformar
formas mais simples em formas mais complexas. Quando se
trata de compreender cientificamente as categorias sociais, ao
contrário, temos acesso imediato às suas formas mais comple-
xas e a partir delas procuramos reconstituir as formações mais
simples, momentos anteriores, post festum (MARX, 1982, p. 17).
Esse ponto é particularmente importante, pois, abrindo ca-
minho para o tema do próximo capítulo, ajuda-nos a entender
um dos motivos pelos quais Marx estudou de modo pratica-
mente exclusivo a sociedade capitalista, mesmo quando tinha
a intenção de descobrir propriedades gerais da sociedade. A
questão é que, além de as relações sociais capitalistas consti-
tuírem o material histórico imediatamente disponível (aquele
a que temos acesso de imediato), a partir dessas relações com-
põe-se a forma social na qual a linha geral de desenvolvimento
manifesta-se de modo mais ampliado até o presente. Mas é pre-
ciso prontamente salientar que assumir esse ponto de partida
não implica negar o caráter histórico da sociedade, praticando
assim uma forma qualquer de anacronismo, hipóstase e/ou na-
turalização. Ao contrário, Marx rejeitou explicitamente todas
as análises desse tipo (que fazem desaparecer as diferenças
históricas e projetam características específicas da socieda-
de burguesa para todas as formas de sociedade precedentes),
tendo sempre o cuidado de assinalar seus desdobramentos so-
bre a prática social.6
Ademais, e para concluir as ressalvas, é prudente adver-
tir que o fato de Marx ter assumido o âmbito da economia
como objeto de estudo não significa, como falam os críticos,
que sua imagem de mundo seja fundada sobre o economicis-
mo. A resposta a esse questionamento exige, antes de tudo, o

6
Como veremos adiante, especialmente na Parte II, a naturalização de estru-
turas sociais (historicamente constituídas) é algo recorrente na ciência eco-
nômica, inclusive entre as teorias do desenvolvimento, e as implicações não
são muito diferentes das assinaladas por Marx.

43
entendimento do sentido atribuído por Marx ao termo “econô-
mico”: economia em Marx aparece, em termos extremamente
gerais, como a esfera de produção e reprodução da vida hu-
mana, e as categorias econômicas como categorias dessa pro-
dução e reprodução (e é isso que torna possível uma descri-
ção da sociedade sobre bases materialistas). Concebida dessa
forma, a economia ocupa o posto de determinante em última
instância da vida social e, assim como na relação entre ser e
consciência, aqui também podemos recorrer mais uma vez ao
conceito de prioridade ontológica:

O mesmo vale, no plano ontológico, para a prioridade


da produção e da reprodução do ser humano em rela-
ção a outras funções. Quando Engels, no discurso pro-
nunciado junto à tumba de Marx, fala do “fato elemen-
tar de que os homens devem primeiro de tudo comer,
beber, ter um teto e vestir-se, antes de ocupar-se de po-
lítica, de ciência, de arte, de religião, etc”, está falando
precisamente de uma relação de prioridade ontológica.
(LUKÁCS, 1979, p. 41).

Sobre este ponto, valeriam ao menos duas observações:


afirmar a prioridade ontológica da economia em relação às
outras esferas não significa dizer que a primeira seja necessa-
riamente mais importante (ou seja, não implica qualquer juízo
ou hierarquia de valor); mais do que isso, não significa que as
outras esferas sejam diretamente determinadas pela economia
(LUKÁCS, 1979, p. 155).
É correto, no entanto, afirmar que a peculiaridade históri-
ca da sociedade capitalista está diretamente associada ao fato
de que a sua economia constitua mais do que uma base. No
capitalismo, a economia forma efetivamente o centro da vida
social, a partir do qual emana a dinâmica que subordina todos
os demais momentos e esferas da existência. É por esse motivo
que, respeitando o caráter post festum do pensamento social,
Marx dedica-se ao estudo das relações econômicas que se afir-
mam em seu tempo e que, segundo ele logo percebe, tornam a

44
economia não apenas o momento predominante do ser social,
mas a principal esfera de sociabilidade. Como veremos no pró-
ximo capítulo, esse ponto é extremamente importante para a
compreensão da dinâmica capitalista.

45
Apêndice I
Esclarecimentos sobre a categoria desenvolvimento desigual

Como se tentou demonstrar ao longo do primeiro capítulo,


desde a perspectiva ontológica defendida no presente estudo,
desenvolvimento significa o reconhecimento objetivo de um au-
mento no grau de complexidade dos complexos constitutivos
de um objeto estruturado. Tomando exclusivamente nossa
condição de seres naturais e o critério apresentado, podemos
dizer, por exemplo, que mesmo o mais deplorável dos seres
humanos é mais desenvolvido que um animal de estimação
(por maior que seja a estima por este). Uma vez entendida a so-
ciedade como uma totalidade composta de vários complexos,
complexamente articulados, o mesmo tipo de análise pode ser
a ela aplicado. E, assim como no caso anterior, proferir senten-
ças a respeito do desenvolvimento da sociedade significa falar
sobre o grau de desenvolvimento/complexidade de suas esfe-
ras constitutivas: economia, política, artes, direito, religião etc.
Também desde essa perspectiva, não é possível falar em de-
senvolvimento sem levar em consideração o fato de que todo
desenvolvimento é desenvolvimento desigual. Aqui nos referi-
mos, mais uma vez, à heterogeneidade que se estabelece entre
complexos, que, em seu desenvolvimento, comportam-se de
maneira diferenciada. Portanto, em postura compatível com as
defendidas por Marx e Lukács, entendemos que a categoria de-
senvolvimento desigual diz respeito à relação entre complexos
e, mais especificamente, aos graus diferentes de desenvolvi-
mento dos complexos que compõem uma totalidade.7
Esse não é, no entanto, o emprego mais usual da catego-
ria. Sua versão mais disseminada é aquela difundida, em parte,
por teorias inspiradas nos trabalhos de Lênin, Trotsky, entre

7
Ao longo do capítulo citamos o exemplo, dado por Marx, da desigualdade de
desenvolvimento entre arte e economia. Podemos ainda utilizar o conceito,
como sugere Marx (1982, p. 20), para falar da desigualdade que se estabele-
ce entre direito e economia ou, como sugere Lukács (1979, p. 137), entre mú-
sica e arquitetura. Um tratamento detalhado da categoria desenvolvimento
desigual e a síntese de todos esses casos podem ser encontrados em Lukács
(1979, p. 123-137).

46
outros, e na noção de desenvolvimento desigual e combinado.8
Nesses autores, observamos a utilização do termo tanto para
descrever o processo histórico por meio do qual determina-
dos países realizaram tardiamente a transição para o modo de
produção capitalista, combinando setores “modernos” e “atra-
sados” em seu interior, quanto para tratar da desigualdade de
desenvolvimento (econômico) entre nações.
Embora nem sempre seja feita a devida referência aos tra-
balhos de Lênin e Trotsky (ou se mantenha fidelidade às suas
formulações originais), a utilização da categoria tornou-se mui-
to comum entre autores de orientação marxista, especialmen-
te para abordar a questão da desigualdade entre nações. Isso
pode ser comprovado a partir da síntese formulada por Ernest
Mandel:

No sentido mais geral da expressão, “desenvolvimento


desigual” significa que sociedades, países, nações desen-
volvem-se segundo ritmos diferentes, de tal modo que,
em certos casos, os que começam com uma vantagem
sobre os outros podem aumentar essa vantagem, ao
passo que, em outros casos, por força dessas mesmas
diferenças de ritmo de desenvolvimento, os que haviam
ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dis-
punham de vantagem inicial. Para ter sentido, portanto,
a ideia de “desenvolvimento desigual” deve incluir, em
cada caso específico, a principal força propulsora (ou
forças propulsoras) que determina essas diferenças de
ritmo de desenvolvimento. (MANDEL, 1983, p. 98).

8
Quando se trata de analisar a concepção de desenvolvimento desigual sus-
tentada por Lênin, o texto mais recorrentemente citado é, sem dúvida, o
livro intitulado Imperialismo, etapa superior do capitalismo (1917). Nele, no
entanto, encontram-se poucas e esparsas referências ao termo, e nenhum
tipo de tratamento teórico mais refinado. Trotsky, por outro lado, faz diver-
sas menções ao termo (acrescido do qualificativo combinado), especialmen-
te nos livros Balanços e perspectivas (1906), 1905 (1909), III Internacional
depois de Lênin (1928) e História da Revolução Russa (1930), mas também
não chega a debater o conceito mais extensamente. Essa tarefa coube a al-
guns seguidores, como Mandel (1979) e Novack (2008), por exemplo, que
buscaram dar um tratamento mais sistemático à noção de desenvolvimento
desigual e combinado. Sobre o tema, conferir também Löwy (1998).

47
Não pretendemos aqui fazer uma revisão das teorias que,
de uma maneira ou de outra, trabalham com a categoria de-
senvolvimento desigual no sentido apresentado, mas apenas
chamar a atenção para alguns problemas relacionados a essa
definição. Em primeiro lugar, essas teorias utilizam uma con-
cepção de desenvolvimento (como crescimento da riqueza, ca-
pacidade produtiva, condições de vida da classe trabalhadora
etc.) que em muito difere daquela utilizada por Marx e Lukács
(reconhecimento objetivo da dinâmica de funcionamento da
sociedade).9 Em segundo lugar, ainda que seja possível de-
monstrar que o desenvolvimento desigual entre países é efe-
tivamente um caso de desenvolvimento desigual (no sentido
empregado por Marx e Lukács), esse seria ainda apenas um
caso possível de apresentação do problema. Ou seja, tomar
essa acepção como a definição de desenvolvimento desigual
seria tomar uma instância específica como o caso geral.
Como não consta entre os objetivos do presente estudo de-
monstrar a correção ou incorreção do tratamento convencio-
nalmente dispensado à categoria do desenvolvimento desigual
(isto é, aquele que utiliza a categoria para descrever a relação
entre países capitalistas), limitamo-nos apenas a mostrar, ainda
que brevemente, como o desenvolvimento desigual é mais am-
plo e mais complexo do que sugere a interpretação tradicional
e o reducionismo assim implícito nessa definição da categoria.
Em suma, enfatize-se que desenvolvimento desigual, no regis-
tro marxiano, refere-se a (1) uma disparidade no grau de desen-
volvimento entre complexos integrantes de uma totalidade; e
(2) uma disparidade não acidental, mas provocada pelo próprio
modo de ser da totalidade e dos complexos (isto é, uma de-
sigualdade causalmente determinada). Trata-se, enfim, de uma
determinação ultragenérica e que não pode ser reduzida à rela-
ção econômica (entre setores, classes ou entre nações).

9
Oferecendo um exemplo bastante emblemático, Paul Baran (1986, p. 47) afir-
ma explicitamente: “Definamos crescimento (ou desenvolvimento) econô-
mico como o aumento, ao longo do tempo, da produção per capita de bens
materiais”, descartando ainda na sequência qualquer tentativa de associa-
ção entre desenvolvimento e aumento de bem-estar. Uma definição similar
pode ser vista também em Dobb (1973, p. 14).

48
Capítulo 2
Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica
autoexpansiva, desenvolvimento e estranhamento

Dando continuidade à tarefa proposta inicialmente para a


Parte I deste livro, o presente capítulo busca contribuir para a
construção de uma interpretação de mundo alternativa àquelas
representações tradicionalmente aceitas pela ciência econômi-
ca. Para fazer uma breve recapitulação, vimos no capítulo an-
terior que a sociedade deve ser entendida como uma totalida-
de composta de complexos (partes que também são um todo)
que, em virtude de sua própria constituição, comportam-se de
maneira heterogênea, e é justamente esta heterogeneidade dos
complexos que determina o caráter necessariamente desigual
do desenvolvimento do ser social. Apesar desta heterogeneida-
de, vimos ainda ser possível identificar leis gerais de desenvol-
vimento da sociedade que, apesar de seu caráter tendencial e
desigual, constituem progressos objetivos no interior desse ser.
Seguindo, portanto, o raciocínio iniciado no capítulo ante-
rior, mas diminuindo o nível de abstração, o presente capítulo
tem como principal objetivo apresentar as linhas gerais de de-
senvolvimento da sociedade especificamente capitalista.1 Mais
precisamente, esperamos com isso mostrar como a dinâmica
capitalista também produz resultados contraditórios, ainda
que se reconheçam neles progressos objetivos do tipo descri-
to anteriormente. Para tanto, o capítulo encontra-se dividido
em duas seções: na primeira, discutiremos as principais ten-
dências que caracterizam a dinâmica capitalista, sintetizada
através do famoso enunciado de Marx da lei geral da acumula-
ção capitalista; feito isso, voltaremos à temática do desenvol-
vimento e suas legalidades na segunda seção.
1
Antes de prosseguir, faz-se necessário um esclarecimento a respeito da uti-
lização do qualificativo “geral”. Assim como as tendências expostas no pri-
meiro capítulo, as tendências adiante examinadas são “gerais”, na medida
em que independem da forma concreta como se manifestam. Mas, ao con-
trário das anteriores, não são comuns a todas as épocas da produção: são
válidas para a sociedade capitalista e apenas para ela. Como antecipado na
introdução, as formas distintas de manifestação dessas leis, em condições
históricas específicas, serão objeto do próximo capítulo.

49
Seção 2.1 Leis gerais de desenvolvimento
da sociedade capitalista

Como se sabe, já no Livro I de O capital, Marx cumpre a


tarefa de apresentar as leis gerais de desenvolvimento da so-
ciedade capitalista. Entre as leis identificadas por Marx, inte-
ressa-nos particularmente aquelas por intermédio das quais o
autor procura dar conta do caráter expansivo da acumulação
capitalista. Ou seja, concentramo-nos aqui na demonstração
de que a produção capitalista é caracterizada, por sua própria
organização interna, por um movimento dinâmico necessaria-
mente expansivo. São basicamente três as tendências identi-
ficadas por Marx: (1) a tendência à concentração de capital;
(2) a tendência à centralização do capital; e (3) a tendência ao
aumento da composição do capital.
A primeira delas nada mais é do que outra forma de expres-
sar-se a tendência à acumulação do capital, ou seja, a sua repro-
dução em escala ampliada, ou, ainda, o movimento de reaplica-
ção da mais-valia na esfera da produção. Intitula-se tendência à
concentração, pois implica, em última instância, concentração
crescente de meios de produção e do comando sobre o traba-
lho nas mãos de capitalistas individuais (MARX, 2002, p. 728
e 729). Se capital é valor que se movimenta em busca de sua
valorização, a produção capitalista só pode, por definição, ser
entendida como uma produção que gira em torno do aumento
da mais-valia, da busca por essa valorização. Uma vez acumu-
lada a mais-valia, ampliam-se as bases para a produção de mais
mais-valia, de modo que, ao fim de cada ciclo, fica evidente a
possibilidade de seu recomeço em escala ampliada. Como “a
valorização do valor só existe dentro do movimento sempre
renovado”, conclui Marx (2002, p. 182 e 183), “o movimento
do capital é insaciável”. Na medida em que cada capital perfaz
individualmente esse ciclo e se reproduz em escala ampliada,
tem-se como resultado o aumento do capital para o conjunto
da sociedade.2

2
Como se trata aqui de uma tendência, não significa que não possa existir,
ou que jamais tenha existido, a reprodução simples; significa apenas que a

50
Além da tendência à concentração do capital, que trata do
crescimento do capital social realizado através do crescimento
de muitos capitais individuais, destaca-se outra: a tendência à
centralização do capital. Apesar de aparecer como tendências
articuladas que se retroalimentam, a tendência à centralização
descreve o crescimento dos capitais individuais, obtido atra-
vés da centralização do comando, isto é, da “concentração de
capitais já formados, a supressão de sua autonomia individual,
a expropriação do capitalista pelo capitalista, a transforma-
ção de muitos capitais pequenos em poucos capitais grandes”
(MARX, 2002, p. 729). Como o propósito da centralização é o
aumento da mais-valia, isso pode levar à acumulação, mas, na
medida em que pressupõe apenas alteração na repartição dos
capitais já existentes em funcionamento, seu campo de ação
não está limitado pelo crescimento absoluto da riqueza social
– pode ocorrer, e normalmente ocorre, também em momentos
de crise.
Por fim, a terceira tendência, ao contrário das anteriores, não
se refere ao tamanho do capital, mas à relação entre suas par-
tes constitutivas. Para expressar a dimensão útil (valor de uso)
da composição do capital, Marx introduz a categoria intitulada
composição técnica do capital, determinada pela proporção em
que o capital se divide em meios de produção e força de traba-
lho. Do ponto de vista abstrato (valor), tem-se a composição em
valor do capital determinada pela proporção em que o capital se
divide em constante (montante de capital adiantado em meios
de produção) e variável (montante de capital adiantado em for-
ça de trabalho). A síntese dialética de ambas, chamada de com-
posição orgânica do capital, expressa “a composição do capital
segundo o valor, na medida em que é determinada pela compo-
sição técnica e reflete modificações desta” (MARX, 2002, p. 715).

reprodução em mesma escala não é, e nem poderia ser, a regra do modo de


produção capitalista: “Se a produção tem forma capitalista, também a terá
a reprodução. No modo capitalista de produção, o processo de trabalho é
apenas um meio de criar valor; analogamente, a reprodução é apenas um
meio de reproduzir o valor antecipado como capital, isto é, como valor que
se expande” (MARX, 2002, p. 661).

51
A tendência ao aumento da composição do capital, men-
cionada anteriormente – que se traduz em aumento do capital
constante em relação ao capital variável, aumento na quantida-
de de meios de produção que a força de trabalho é capaz de pôr
em movimento, ou ainda, substituição de trabalho vivo por tra-
balho objetivado –, nada mais é do que a forma de expressar-se
o aumento das forças produtivas do trabalho sob o capitalismo.
Mas, na medida em que o resultado final é, como tendência, que-
da no valor unitário das mercadorias e aumento da mais-valia
relativa, pode-se afirmar a existência de uma motivação exclusi-
vamente capitalista para aumentar a produtividade do trabalho.
Antes de prosseguir com o argumento, é preciso aqui diferen-
ciar essa tendência própria (particular) da sociedade capitalista
da tendência geral (universal) de aumento das forças produti-
vas tratada no capítulo anterior. Vimos que o aumento da pro-
dutividade é condição sine qua non do desenvolvimento social,
porque dele depende, por exemplo, a diversificação das práticas
humanas e o próprio aumento populacional. O capitalismo, con-
tudo, é a única formação social até então existente em que essa
tendência universal de aumento da produtividade apresenta-se
como condição particular indispensável à sua reprodução. Ou
seja, diferentemente das demais formações sociais conhecidas,
a sociedade capitalista tem o aumento da produtividade como
elemento estrutural de sua reprodução e necessariamente entra
em crise caso não se revolucionem periodicamente as condi-
ções de produção. Infere-se daí que a tendência expansiva do
capital, centrada fundamentalmente na busca da valorização,
confere ao aumento das forças produtivas uma potência sem
precedentes na história da humanidade. Ao ingressar na pro-
dução, o capital revoluciona a forma de produzir, revoluciona o
modo de fazer as coisas: transforma a produção para que esta
se transforme num meio de expansão do valor.3

3
Já no Manifesto comunista, Marx e Engels reconheceram que o capital desen-
volve por necessidade as forças produtivas do trabalho: “A burguesia não
pode existir sem revolucionar continuamente o instrumental de produção
e, em consequência, as relações de produção e todas as relações sociais. A
conservação inalterada do modo tradicional de produção era, ao contrário,
a primeira condição de existência de todas as classes industriais preceden-

52
Combinando as três tendências apresentadas, é possível
vislumbrar uma dinâmica inerente à acumulação capitalista.
Em períodos de relativa estabilidade técnica, a acumulação de
capital tende a absorver mais trabalhadores, subordinando-
-os à lógica capitalista e ampliando extensivamente seu raio
de atuação. Mas a dinâmica de acumulação ultrapassa, e tem
de ultrapassar, esta fase: “Dados os fundamentos gerais do sis-
tema capitalista, chega-se, sempre, no curso da acumulação,
a um ponto em que o desenvolvimento da produtividade do
trabalho social se torna a mais poderosa alavanca da acumula-
ção” (MARX, 2002, p. 725). Isso porque o aumento de produtivi-
dade permite superar os limites encontrados pelo capital para
a expansão da mais-valia com composição técnica constante,
especialmente aqueles postos pela impossibilidade de se es-
tender indefinidamente a jornada de trabalho e pelo tamanho
da população imediatamente disponível.
A acumulação de capital ocorre, portanto, combinando
fases de acumulação predominantemente extensiva (acu-
mulação com composição constante) e fases de acumulação
predominantemente intensiva (acumulação com aumento da
produtividade): nesse processo, o capital tende a absorver tra-
balhadores para o campo da produção (crescimento da prole-
tarização) para depois torná-los redundantes. Assim, mesmo
que a demanda por trabalho aumente em termos absolutos,
como tendência, diminui em termos relativos, implicando a
diminuição da participação do capital variável na totalidade
do capital. O resultado é que “a acumulação capitalista sem-
pre produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão,
uma população trabalhadora relativamente supérflua, isto é,
que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capi-
tal, tornando-se, desse modo, excedente” (MARX, 2002, p. 733).
Esta população ficou conhecida como superpopulação relativa
ou exército industrial de reserva.

tes. A contínua transformação da produção, a turbulência ininterrupta de


todas as condições sociais, a incerteza e a agitação permanentes distinguem
a era burguesa de todas as que a precederam” (MARX; ENGELS, 1985, p. 30).
Marx (2002, p. 551), naturalmente, reafirma a importância dessa descoberta
em O capital.

53
Apesar de tratados, no jargão econômico, como “excluí-
dos”, é preciso notar que a existência desses desempregados
e subempregados, de trabalhadores em espera, não é apenas
resultado da dinâmica da acumulação capitalista, mas também
seu requisito objetivo. Isso porque, se essa economia (não co-
ordenada) pode crescer inesperada e rapidamente, é necessá-
rio ter trabalhadores à disposição e em condições de trabalhar
(inclusive no que se refere à qualificação), independentemente
dos limites colocados pelo efetivo incremento populacional:

A expansão súbita e intermitente da escala de produção


é condição para sua contração súbita; esta provoca no-
vamente aquela, mas aquela é impossível sem material
humano disponível, sem aumento dos trabalhadores,
independentemente do crescimento absoluto da popu-
lação. Esse aumento é criado pelo simples processo de
“liberar” continuamente parte dos trabalhadores, com
métodos que diminuem o número dos empregados em
relação à produção aumentada. (MARX, 2002, p. 736).

Se o “processo de liberar continuamente parte dos traba-


lhadores” descrito, tão indispensável à produção de riqueza, é
o mesmo responsável pela produção de pobreza, infere-se que
o pauperismo é tão indispensável à acumulação quanto a pró-
pria produção de riqueza – como diz Marx, “faz parte das des-
pesas extras da produção capitalista” (MARX, 2002, p. 748 et
seq.). E assim chegamos à verdadeira lei geral da acumulação
capitalista: quanto maior a riqueza, maior tem de ser a pobre-
za, “[...] acumulação de riqueza num pólo é, ao mesmo tempo,
acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escra-
vatura, ignorância, brutalização e degradação moral, no pólo
oposto, constituído pela classe cujo produto vira capital”.4

4
Para outros estudos congruentes com a perspectiva aqui apresentada, que
interpretam a pobreza como produto inerente e necessário da dinâmica
capitalista, conferir Mészáros (2002), Cammack (2002), Medeiros (2007) e
Duayer e Medeiros (2003).

54
Para as finalidades deste estudo, basta que recuperemos,
da obra de Marx, a descrição das tendências selecionadas para
representar, no nível de abstração em que nos encontramos, a
dinâmica que caracteriza o desenvolvimento capitalista.5 É cla-
ro que, como pretendemos demonstrar no próximo capítulo,
estas são tendências que dependem de condições históricas
concretas para se manifestar e, conforme o lócus específico,
manifestam-se de maneira diferenciada. Mas antes de transitar
para a análise da dinâmica capitalista neste nível ainda mais
baixo de abstração, seguimos na próxima seção com algumas
conclusões que podem ser extraídas do estudo das leis do de-
senvolvimento capitalista, vistas ainda no plano “geral”.

Seção 2.2 Considerações sobre o desenvolvimento


capitalista e suas contradições

A partir do que foi exposto e do resgate de alguns elementos


apresentados no capítulo anterior, podemos fazer uma série de
afirmações a respeito das leis de desenvolvimento da socieda-
de capitalista. Em primeiro lugar, assim como no caso das leis
gerais de desenvolvimento da sociedade, as leis especificamen-
te capitalistas são não teleológicas, ou seja, os resultados aqui
apresentados não são necessariamente previstos ou intencio-
nados pelos sujeitos em suas ações. Para entender o que está
sendo dito, sem precisar ir muito longe, basta pensar que, se a
combinação dessas leis produz uma deterioração relativa nas
condições de vida da maioria da população, esse é um resultado
indesejável que as pessoas, como regra, consideram lastimável,
mesmo quando não o associam ao desenvolvimento capitalista.
Em segundo lugar, na medida em que “estão em jogo fatores
adversos que estorvam e anulam o efeito da lei geral” (MARX,

5
Ao lado das tendências aqui mencionadas, há outras leis que são fundamen-
tais para reconstituir o modo de funcionamento da economia capitalista, tal
como concebido por Marx. É o caso, por exemplo, da tendência à queda da
taxa de lucro. Aqui nos concentramos, no entanto, em determinações que
caracterizam a natureza expansiva e estranhada da produção capitalista.
Essa análise será, entretanto, enriquecida, à medida que o grau de abstração
for reduzido, no capítulo seguinte e principalmente no terceiro apêndice.

55
1974, p. 266), as leis do desenvolvimento capitalista também
possuem o caráter tendencial. Assim, ainda que a expansão da
pobreza tenha sido apresentada como resultado intrínseco à
dinâmica capitalista, essa mesma dinâmica comporta, em seu
interior, a possibilidade de expansão com absorção acelerada
de força de trabalho, o que cria condições favoráveis para a re-
dução do desemprego, aumentos salariais, melhoras nas con-
dições de trabalho, conquistas sociais etc. Se “as tendências
gerais e necessárias do capital devem ser distinguidas de suas
formas de manifestação” (MARX, 2002, p. 367), um período de
acumulação predominantemente extensiva pode, como com-
provam alguns exemplos históricos, interromper por determi-
nado tempo a manifestação fenomênica da lei geral.6
Em terceiro lugar, tomando o conceito de desenvolvimento/
progresso apresentado também no primeiro capítulo, temos de
reconhecer que, apesar dos resultados nefastos decorrentes
da dinâmica capitalista, esta mesma dinâmica representa um
progresso objetivo na história da humanidade. Ou seja, indepen-
dentemente da forma como os sujeitos interpretam e avaliam
os resultados desse processo, “a crescente socialidade da pro-
dução se manifesta não simplesmente como aumento dos pro-
dutos, mas também como diminuição do trabalho socialmente
necessário para fabricá-los”, e isso representa um “traço obje-
tivamente ontológico da tendência evolutiva interna ao ser so-
cial” (LUKÁCS, 1979, p. 82). Ao conferir ao aumento das forças
produtivas um potencial ímpar, produzindo aumentos significa-
tivos de riqueza e de entrelaçamento entre os povos – e demons-
trar a existência objetiva desta dinâmica é um dos objetivos de

6
Os anos que vão do imediato pós-guerra até meados dos anos 1970, co-
nhecidos como a “era de ouro do capitalismo”, talvez nos ofereçam aqui o
exemplo mais emblemático. Apesar dos significativos aumentos de produ-
tividade, assiste-se durante este período a uma diminuição do desemprego
e melhoria nas condições de vida da população, especialmente nos países
capitalistas mais afortunados (HOBSBAWM, 1995, p. 253). O fato de que mais
trabalhadores estivessem empregados e em melhores condições não signifi-
ca, no entanto, que a subordinação da classe trabalhadora ao capital tenha
diminuído. Ao contrário, o fato de mais trabalhadores estarem submetidos à
relação salarial significa que o domínio do capital aumentou extensivamente,
se revestindo apenas de “formas suportáveis” (MARX, 2002, p. 720 e 721).

56
Marx –, amplia-se substancialmente a possibilidade de controle
coletivo sobre a vida social. O aumento da produtividade cria
a base material indispensável para livrar, ao menos em alguma
medida, a humanidade da escravidão pelo trabalho. Acentua as-
sim a possibilidade de a humanidade afastar-se de sua “prisão”
natural, do reino de suas necessidades (MARX, 1974, p. 941). Ao
exasperar esta dinâmica progressiva, o capitalismo cria e am-
plia as condições materiais de emancipação humana.
A análise não pode, no entanto, esgotar-se neste ponto, pois,
ao mesmo tempo que cria e amplia as condições da emancipa-
ção, o capital obstrui continuamente, ele mesmo, a realização
plena dessa possibilidade. Isso porque, como indicado ante-
riormente, por mais que contenha em si um “desenvolvimento
no sentido de níveis superiores”, a dinâmica capitalista envol-
ve a “ativação de contradições de tipo cada vez mais elevado,
cada vez mais fundamental” (LUKÁCS, 2007, p. 239). Conforme
sintetizado por Marx na passagem a seguir:

A barreira efetiva da produção capitalista é o próprio ca-


pital: o capital e sua autoexpansão se patenteiam ponto
de partida e meta, móvel e fim da produção; a produção
existe para o capital, ao invés de os meios de produção
serem apenas meio de acelerar continuamente o desen-
volvimento do processo vital para a sociedade dos pro-
dutores. Os limites intransponíveis em que se podem
mover a manutenção e a expansão do valor-capital, a
qual se baseia na expropriação e empobrecimento da
grande massa dos produtores, colidem constantemen-
te com os métodos de produção que o capital tem de
empregar para atingir seu objetivo e que visam ao au-
mento ilimitado da produção, à produção como fim
em si mesma, ao desenvolvimento incondicionado das
forças produtivas sociais do trabalho. O meio – desen-
volvimento ilimitado das forças produtivas sociais – em
caráter permanente conflita com o objetivo limitado, a
valorização do capital existente. Por conseguinte, se o
modo capitalista de produção é um meio histórico para

57
desenvolver a força produtiva social e criar o mercado
mundial apropriado, é ele ao mesmo tempo a contradi-
ção permanente entre essa tarefa histórica e as relações
sociais que lhe correspondem. (MARX, 1974, p. 288).

Apesar de não ser a única forma de expressar-se o cará-


ter contraditório do desenvolvimento capitalista, utilizamos
a lei geral, mais uma vez, como ilustração. Ao final da seção
anterior, vimos que o desenvolvimento capitalista, tal como
concebido por Marx, envolve, simultaneamente, empobre-
cimento e enriquecimento, e que, embora o trabalho social
típico da sociedade capitalista suscite um avanço técnico e
científico potencialmente enriquecedor para todos os seres
humanos, isso se dá a expensas do empobrecimento de mui-
tos. Por um lado, analisando a questão objetivamente, desde
o ponto de vista do funcionamento sistêmico, podemos ob-
servar que, se a riqueza no capitalismo tem caráter mercan-
til e, por isso, carece de realização, é contraditório que esse
mesmo sistema prive permanentemente uma parte da popu-
lação da capacidade de consumo (MARX, 2011, p. 343 e 344).
Ademais, a massa de pobres e miseráveis representa uma
ameaça à estabilidade social e política, ao menos em potencial.
Por outro lado, partindo do prisma da humanidade, da preser-
vação da vida, da melhora e desenvolvimento de nossa indi-
vidualidade, também é contraditório que haja pobreza numa
sociedade que cria as condições materiais para eliminá-la.
No caso específico do modo de produção capitalista, essa
contradição foi reconhecida, e corretamente tratada, por di-
versos autores, de maneiras variadas.7 Em comum entre eles,
identificamos o entendimento de que, na análise de Marx, o de-
senvolvimento não pode ser compreendido de forma unilate-
ral, “nem como progresso do conhecimento e da felicidade, ou
como ‘progresso’ da dominação e da destruição” (POSTONE,
1993, p. 35 e 36). Ao contrário, é preciso reconhecer que, no

7
Conferir, por exemplo, Lukács (2007), Hobsbawm (2009), Mészaros (2002, p.
39), Cammack (2002, p. 197), Postone (1993), Medeiros (2007) e Duayer e Me-
deiros (2003).

58
capitalismo, ao mesmo tempo que “a capacidade e o conhe-
cimento da humanidade são acrescidos enormemente”, isso
ocorre “de uma forma alienada que oprime as pessoas e tende
a destruir a natureza” (p. 30).
Esse caráter contraditório (dialético) do desenvolvimen-
to capitalista é certamente um resultado da forma peculiar de
articulação do trabalho nesta sociedade. Como Marx revela
ainda nos primeiros capítulos de O capital, ao contrário de
produção diretamente social, os trabalhos privados, indepen-
dentes uns dos outros, somente atuam como parte constituti-
va do trabalho social por meio da troca. Assim, embora resulte
da interação entre as ações humanas, o trabalho articula-se
socialmente constituindo uma dinâmica semiautônoma com
relação a esses agires e às suas condições objetivas e subje-
tivas. Apesar de não ser essa a leitura convencional, muitos
marxistas julgam, em nosso juízo, acertadamente, que o gran-
de mérito de Marx foi justamente ter reconhecido – e posto em
primeiro plano na sua principal obra – esse caráter estranhado
ou alienado do trabalho que domina a sociedade capitalista.8
Em uma sociedade desse tipo, na qual os produtos do tra-
balho assumem a forma-mercadoria, o esforço de trabalho
aparece, em primeiro lugar, como uma propriedade das coi-
sas, como valor. Além disso, o trabalho humano, materializado
como propriedade das mercadorias, autonomiza-se e subjuga
seus produtores. E, na medida em que as relações sociais entre
as pessoas aparecem como relações entre coisas, o conjunto
das relações humanas aparece aos sujeitos como algo externo
a eles, que os constrange e domina. Daí a centralidade da ca-
tegoria valor para a compreensão dessa formação social. De
acordo com Duayer,

8
Como afirma Postone (1993, p. 30): “[...] uma marca central do capitalismo
é que as pessoas realmente não controlam sua própria atividade produtiva
ou o que elas produzem, mas são, em última instância, dominadas pelos
resultados desta atividade. Esta forma de dominação é expressa como uma
contradição entre indivíduos e sociedade e constituída como uma estrutura
abstrata.”

59
A categoria valor nada mais é [...] do que a expressão
social do fato de que nesta sociedade os sujeitos são
reduzidos a trabalho. O trabalho, se não é a única forma
de socialização, é a fundamental, básica, incondicional,
da qual todas as outras dependem, e sem a qual os su-
jeitos perdem não só a sua sociabilidade, mas também
a sua humanidade e, no limite, sua existência física. O
valor, na teoria de Marx, é esse poder exclusivo da espé-
cie humana, esse notável poder social de associação, o
trabalho social, que, emergindo na história nas circuns-
tâncias em que o fez – e que poderiam ter sido outras,
quem sabe – constitui-se em poder que escapa ao con-
trole dos sujeitos e, mais do que isso, os subordina à
sua lógica. E por isso tem de se apresentar como valor,
como poder das coisas, em lugar de força diretamente
social dos sujeitos. (DUAYER, 2008, p. 16)

Em suma, essa sociedade, mesmo sendo resultado da articu-


lação espontânea entre atos teleológicos, possui uma dinâmica
que escapa ao controle de, enfatize-se, todos os sujeitos. Como
Marx adverte ainda no prefácio de O capital, os capitalistas
também se dobram à lógica de valorização, sendo impelidos,
na condição de representantes do capital, a buscar aumentos
de produtividade (MARX, 2002, p. 18). Por mais curioso que
pareça, também não controlam as relações sociais em que
comparecem como representação subjetiva de uma categoria
objetiva, o capital.9

9
Como afirma Mészáros (2002, p. 96 et seq.), “O capital não é simplesmente
uma ‘entidade material’ [...] mas é, em última análise, uma forma incontrolá-
vel de controle sociometabólico. [...] uma estrutura ‘totalizadora’ de controle à
qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar.” E segue: “O preço
a ser pago por esse incomensurável dinamismo totalizador é, paradoxalmen-
te, a perda de controle sobre os processos de tomada de decisão. Isto não se
aplica apenas aos trabalhadores [...], mas até aos capitalistas mais ricos, pois,
não importa quantas ações controladoras eles possuam na companhia ou nas
companhias de que legalmente são donos como indivíduos particulares, seu
poder de controle no conjunto do sistema do capital é absolutamente insig-
nificante. Eles têm de obedecer aos imperativos objetivos de todo o sistema,
exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências de perder o
negócio.”

60
Para encerrar o argumento, gostaríamos de enfatizar uma
importante característica das leis até o momento apresenta-
das, fundamental para a compreensão da crítica que se pre-
tende fazer às teorias do desenvolvimento. Como mencionado
na seção de encerramento do primeiro capítulo, na medida
em que são sociais, as leis de que tratamos aqui não são to-
talmente independentes da atividade humana e não podem,
ao mesmo tempo, ser diretamente criadas por ela. Assim, por
aparecerem como pressuposto da sua atividade, na forma de
estruturas que condicionam a sua prática, os sujeitos perce-
bem essas leis como elementos da natureza, e as tomam, na
consciência, como condições naturais do seu agir. Ao assim
fazê-lo, assumem necessariamente uma postura conservadora
diante do mundo, confirmando e reproduzindo na sua prática
corrente as leis pelas quais são dominados.
Essa não é, no entanto, uma exclusividade das formas de cons-
ciência cotidianas: reflete-se também em formas científicas de
consciência. Isso porque, como vimos também no capítulo
anterior, analisar cientificamente determinado objeto significa
seguir caminho oposto ao desenvolvimento histórico real: “co-
meça-se depois do fato consumado, quando já estão concluídos
os resultados do processo de desenvolvimento” (MARX, 2002,
p. 97 et seq.). Quando a ciência econômica se empenha em
apreender o sentido das “formas que convertem os produtos
do trabalho em mercadorias”, estas já possuem a consistência
de “formas naturais da vida social”, transistóricas e imutáveis.
Assim, “fórmulas que pertencem, claramente, a uma formação
social em que o processo de produção domina o homem, e não
o homem o processo de produção, são consideradas pela cons-
ciência burguesa uma necessidade tão natural quanto o próprio
trabalho produtivo” (MARX, 2002, p. 102 e 103).
Quando tratarmos especificamente das teorias do desen-
volvimento ao longo da próxima parte deste livro, veremos
que, ainda que sejam de diversos tipos e incorporem de ma-
neira diferenciada os fundamentos teóricos que antecedem o
nascimento desse ramo específico, as teorias do desenvolvi-
mento compartilham essa visão de mundo. Como esperamos

61
demonstrar, mesmo aquelas teorias que por vezes reconhe-
cem o caráter histórico, e portanto passageiro, do modo de
produção capitalista tomam essa forma de sociabilidade, e
as possibilidades postas por ela, como pressuposto de suas
formulações.
Antes de realizar a inspeção das teorias do desenvolvimen-
to, no entanto, faz-se necessário analisar o funcionamento da
dinâmica capitalista em um nível ainda mais baixo de abstra-
ção. Por isso, dedicamos o próximo capítulo à apresentação de
alguns exemplos históricos que nos permitam mostrar como,
além das tendências gerais, o desenvolvimento capitalista é
marcado por particularidades que influenciam a forma concre-
ta de manifestação dessas leis gerais (ainda que, no fundo, as
características mais gerais sejam mantidas).

62
Apêndice II
Desenvolvimento capitalista e mercado mundial

Dedicamos este segundo apêndice da Parte I ao tratamento


de uma importante tendência da dinâmica capitalista, mencio-
nada ao longo dos primeiros capítulos, mas não suficientemen-
te tratada: a tendência à formação do mercado mundial. Ainda
que envolva uma série de temáticas e suscite discussões que
fogem ao escopo do presente estudo, julgamos necessário res-
gatá-la por tratar-se de uma das tendências que distinguem de
modo mais universal a produção capitalista e por dela depen-
der a própria operação da dinâmica capitalista em nível global.
Como pretendemos demonstrar de modo bastante sucinto,
essa tendência decorre da (e contribui para a) expansão in-
cessante de riqueza (característica da produção capitalista) e
pode ser apresentada recorrendo-se a categorias simples, tam-
bém enunciadas por Marx no Livro I de O capital.
Para cumprir com esse objetivo, é fundamental reconhecer, em
primeiro lugar, que as trocas e, portanto, o mercado (lócus no qual
se realiza a circulação – compra e venda – de mercadorias) são pres-
supostos do capital e do capitalismo, tanto em termos históri-
cos, quanto (e por consequência) em termos teórico-formais
(MARX, 2002, p. 177). Ao contrário do que afirmam os econo-
mistas políticos, no entanto, as trocas (e a consequente trans-
formação do produto do trabalho em mercadoria) também são
resultado de um processo histórico, que certamente envolve o
contato entre sociedades não mercantis, pois a troca não pode-
ria emergir na prática social de indivíduos imersos em relações
de produção nas quais o produto não tivesse a troca como meio
de distribuição. Apenas posteriormente, com o desenvolvimen-
to das relações de comércio, as trocas penetram no seio das
comunidades e se transformam na forma dominante de articula-
ção entre os produtores. Por isso, podemos intuir que o comér-
cio de longa distância põe as condições para o surgimento do
comércio local e o precede historicamente.10

10
Não por acaso, as formas primitivas (ou, para usar a expressão de Marx,
“antediluvianas”) de capital são justamente aquelas que surgem na esfera

63
Do ponto de vista analítico é possível mostrar ainda que a
simples articulação de unidades produtivas pela troca coloca
a necessidade da produção de riqueza material e valor em es-
cala crescente. Isso porque a participação na riqueza social a
que se tem acesso é uma alíquota que depende, ao menos po-
tencialmente, da magnitude da produção: a porção de riqueza
que se pode retirar do mercado é sempre proporcional à que
nele se lança, e quanto maior a parcela da riqueza que se tem
em mãos, maiores são as chances de acessar a riqueza social. E
uma vez estabelecida essa dinâmica, cada produtor tem neces-
sariamente de buscar uma produção crescente, sob pena de
ver cair sua parcela da riqueza social (isto é, de empobrecer re-
lativamente à riqueza total e aos outros produtores) (DUAYER;
MEDEIROS, 2008). Esse impulso para o aumento da riqueza,
que consiste em uma das determinações mais importantes da
dinâmica capitalista e já pode ser percebido (embora não de-
vidamente caracterizado, claro) a partir da análise da esfera
da circulação e do caráter mercantil da sociedade, ganha novo
ímpeto com o ingresso do capital na esfera da produção.
Nesse sentido, é preciso reconhecer, em segundo lugar, que
a colonização da esfera produtiva pelo capital e o consequente
advento da produção capitalista representam um salto qualita-
tivo, tanto em termos do desenvolvimento das forças produti-
vas, quanto do desenvolvimento das relações mercantis.11 Se

da circulação, pertencem a essa esfera e nela permanecem confinadas: capi-


tal de comércio de mercadoria (capital mercantil) e capital de comércio de
dinheiro (capital usurário). Em capítulo dedicado a “observações históricas
sobre o capital mercantil”, forma mais antiga de existência do capital, Marx
(1974, p. 372) mostra justamente (1) como este atua, nos seus primórdios,
mediando a relação entre modos de produção diversos, voltados essencial-
mente à produção de valores-de-uso, (2) como contribui para que a produ-
ção seja crescentemente orientada para a troca e (3) como o seu desenvol-
vimento é pressuposto necessário (ainda que não suficiente) da emergência
e consolidação do modo capitalista de produção.
11
Tomando como referência a produção capitalista no lócus clássico de sua
emergência (a Inglaterra), observamos, por exemplo, o papel desempenha-
do pelo capital como elemento socializador de uma produção fracionada
no campo (produção camponesa) e na cidade (produção artesanal). Tendo
em vista que a produção fracionada é limitada, por natureza, e incompatí-
vel com o impulso que emerge da simples articulação pela troca, essa so-
cialização se mostra indispensável ao aumento de produtividade e contri-

64
capital é valor que se movimenta em busca de sua valorização,
valor que procura acrescer ao seu corpo mais-valor, e a socie-
dade capitalista é a que possui esse impulso como determina-
ção geral (produção moldada desde a raiz para o imperativo do
crescimento da riqueza na dupla forma que ela adquire quando
destinada à troca), não fica difícil perceber como aquilo que é
inicialmente um pressuposto também se põe como resultado do
próprio desenvolvimento das relações de produção capitalistas.
Partindo, portanto, do conceito de capital, observamos,
por um lado, que mercado, comércio, circulação, relações de
troca e troca são pressupostos, pois ainda que a extração de
mais-valia (trabalho excedente) ocorra na esfera da produção,
ela não dispensa, em nenhum sentido, a esfera da circulação
(MARX, 2002, p. 196). Isso porque, em primeiro lugar, é na es-
fera da circulação que se encontram os elementos materiais
(meios de produção e força de trabalho) necessários à produ-
ção de mais-valor; e, em segundo lugar, é na esfera da circula-
ção que o valor produzido realiza-se como valor que se con-
serva e se expande. De acordo com os termos utilizados por
Marx (2011, p. 328) nos rascunhos que antecedem a redação
de O capital, é como se o capital, no momento em que deixa a
forma-dinheiro e assume a forma-mercadoria, passasse por um
processo de desvalorização: caso o circuito interrompa-se sem
a venda do produto final (transformação de mercadoria em di-
nheiro), não apenas um valor novo deixa de ser acrescido, mas
também se perde com isso o valor original.
Por outro lado, a circulação é posta pelo capital como re-
sultado, sempre de modo ampliado, pois a produção de valor
em escala crescente também exige circulação em escala cres-
cente, fazendo com que a tendência do capital à ampliação
do trabalho excedente venha acompanhada da tendência à
ampliação dos mercados. Como explicitado por Marx, nova-
mente, “o modo capitalista de produção supõe produção em
grande escala e necessariamente venda em grande escala [de
tal forma que] o comércio de mercadorias [...] é condição do

bui, em grande medida, para tornar a produção compatível com o aumento


de riqueza. Sobre o tema, conferir Marx (2002, p. 876; 2011, p. 485).

65
desenvolvimento da produção capitalista e com ela se desen-
volve cada vez mais” (MARX, 2000, p. 125).12
Sendo, portanto, dotado de uma tendência à expansão ima-
nente, o capital precisa incorporar áreas cada vez mais exten-
sas ao seu limite de operação; pela sua própria natureza, preci-
sa ir além de qualquer barreira espacial, criar condições objeti-
vas para ampliação das trocas e conquistar o mundo como seu
mercado (MARX, 2011, p. 445 et seq.). E faz isso, em parte, por
meio do desenvolvimento dos meios de comunicação e trans-
porte, realizando o que Marx chamou de aniquilação do espaço
pelo tempo. Nas palavras do autor: “Quanto mais desenvolvido
o capital, quanto mais distendido, portanto, o mercado em que
circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma
maior expansão especial do mercado e para uma maior des-
truição do espaço pelo tempo.”13
Nesse processo, o contato comercial de regiões nas quais
o capital comanda a produção com regiões onde ele ainda não
havia penetrado abre o caminho para a subordinação dessas
últimas às primeiras. Essa expropriação dos modos de produ-
ção pré-capitalistas ocorre, fundamentalmente, devido à maior
capacidade produtiva do capital e à operação de suas leis ima-
nentes, e mostra como, embora não dispense outros métodos
(extraeconômicos) de subordinação, o capital contém uma
arma própria, muitíssimo potente, típica da expansão capita-
lista e da competição mercantil: o preço (isto é, a maior pro-
dutividade). Na medida, portanto, em que o desenvolvimento
do comércio (e do capital mercantil) cria sobre esses modos
de produção a necessidade de aumento das forças produtivas
e estimula a ampliação da produção orientada para a troca (e
pelo valor-de-troca), desagrega as antigas relações sociais e
“exerce sempre ação mais ou menos dissolvente sobre as orga-
nizações anteriores da produção” (MARX, 1974, p. 382).

12
Cf., MARX, 2011, p. 332 e 333; 1974, p. 272; 384.
13
Um tratamento minucioso da tendência à aniquilação do espaço pelo tempo
e da discussão relacionada à produção capitalista do espaço pode ser encon-
trado nos trabalhos de David Harvey (1990, 2006).

66
Em suma, mesmo que ainda hoje se discuta o efetivo alcan-
ce da produção capitalista no mundo, não há dúvidas de que,
“pela primeira vez na história, o capitalismo cria uma efetiva
economia mundial, a ligação econômica de todas as comuni-
dades humanas entre si” (LUKÁCS, 1979, p. 148). De fato, não é
preciso ir muito longe para perceber como o planeta “outrora
povoado por inúmeras pequenas tribos, que frequentemente
não sabiam quase nada uma da outra, ainda que fossem vizi-
nhas”, hoje caminha para uma unidade econômica, “uma plena
e completa interdependência mesmo entre os povos mais afas-
tados entre si” (p. 147). Mais uma vez, essa ligação e interde-
pendência entre os povos representam um desenvolvimento/
progresso objetivo e ampliam as possibilidades da emancipa-
ção humana (que apenas sob o modo de produção capitalis-
ta adquire consciência genérica). Como já havia sido dito em
outro momento, no entanto, esse desenvolvimento vem acom-
panhado da ativação de contradições de tipo cada vez mais
elevado e/ou da operação das contradições inerentes ao modo
capitalista de produção em escala ampliada.

67
Capítulo 3
O desenvolvimento capitalista e suas
particularidades

No capítulo anterior, apresentamos algumas das principais


tendências que caracterizam o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, tomando como base a descrição feita por
Marx, especialmente em O capital. Considerando os objetivos
do presente estudo e a impossibilidade de recompor todos os
passos do argumento elaborado pelo autor, dedicamos especial
atenção àquelas tendências que, quando articuladas, determi-
nam o caráter necessariamente expansivo dessa formação so-
cial. Além disso, esperamos ter demonstrado como essa dinâ-
mica subordina crescentemente os demais momentos da vida
social e envolve uma série de contradições (como, por exem-
plo, aquela explicitada no enunciado da lei geral da acumulação
capitalista).
Ainda que essa análise situe-se em um nível relativamen-
te elevado de abstração, os elementos de que dispomos até o
presente momento já permitem perceber uma diferença subs-
tantiva entre a perspectiva aqui defendida e aquela propala-
da pelas teorias do desenvolvimento. Ao proferir sentenças a
respeito do desenvolvimento capitalista, fazemos referência
à sua dinâmica objetiva de funcionamento, às tendências que
regulam sua transformação ao longo do tempo, a seu decurso
histórico causalmente determinado. Ou seja, ao contrário do
que normalmente se afirma, o desenvolvimento capitalista não
é entendido aqui como a passagem de um estágio de priva-
ção material (países pobres, periféricos, Terceiro Mundo) para
o estado de pletora material (países ricos, centrais, Primeiro
Mundo), seja lá como for medida essa transição (pelo produ-
to per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.).
Falar sobre o desenvolvimento da produção capitalista signifi-
ca falar sobre a operação de suas leis em escala global. O fato
de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais ape-
nas comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista,
em lugar de negá-la.
É claro que, como indicado anteriormente, essas tendências
manifestam-se de maneiras distintas em condições históricas
específicas, o que explicaria o fato, por exemplo, de que o capita-
lismo, ao instalar-se em localidades distintas, desenvolve-se de
maneira diferenciada. Como sustentado nos capítulos preceden-
tes, isso não exclui a possibilidade de formular uma teoria geral
do desenvolvimento da sociedade, abstratamente considerada.
Mas, à medida que variam as condições históricas específicas,
as características nacionais, regionais, locais etc., tendências
particulares se formam, e tais particularidades têm de ser le-
vadas em conta quando se trata de analisar o desenvolvimento
dessa formação social. Mais do que isso, estas particularidades
precisam ser levadas em consideração quando se trata de ana-
lisar criticamente as formas de consciência produzidas sobre
esse desenvolvimento no interior da ciência econômica, pois,
se as teorias sobre desenvolvimento remetem a algum contexto
particular, devem ser examinadas a partir da relação com seu
referente histórico.
Nesse sentido, dedicamos este capítulo de encerramento
da Parte I à demonstração de que, além das tendências gerais
indicadas nos capítulos anteriores, a produção capitalista é
caracterizada por tendências particulares, circunscritas his-
toricamente a condições específicas de reprodução sistêmica,
que permitem delimitar fases de seu desenvolvimento. Não se
trata, com isso, de investigar a pertinência das alegadas fases,
mas apenas mostrar, através de alguns exemplos, que o desen-
volvimento capitalista é marcado por particularidades e que
estas particularidades suscitam entendimentos teóricos.
A título de ilustração, começaremos tratando aqui de um
período no qual o desenvolvimento capitalista foi claramente
atravessado por determinações particulares: o quarto de sécu-
lo posterior à Segunda Guerra Mundial, mais conhecido como
a “Era de Ouro do capitalismo”. É claro que não se pretende
com isso recompor detalhadamente todas as características
desta época ou retratar a forma específica como suas prin-
cipais tendências atuam sobre as diferentes nações. Para os
propósitos do presente estudo, basta que sejam resgatadas

70
especialmente aquelas particularidades relacionadas à mani-
festação fenomênica das leis gerais apresentadas no capítulo
anterior. Feito isso, dedicamos a segunda seção do capítulo ao
contraste entre a “Era de Ouro” e o período posterior à crise
dos anos 1970.

Seção 3.1 A assim chamada “Era de Ouro do


capitalismo”

Muitos analistas, de diversas procedências teóricas, em


diversos campos do pensamento, científico ou não, reconhe-
ceram a peculiaridade do desenvolvimento capitalista nas
aproximadamente três décadas que sucederam o pós-guerra.
E a característica desse período que imediatamente salta aos
olhos, responsável em grande medida pela invocação de um
metal tão sublime como o ouro, é, sem dúvida, a forma como
a economia capitalista mundial passava por um período ímpar
de expansão e prosperidade. Como ilustram os dados abaixo:

Entre 1950 e 1975 a renda per capita nos países em de-


senvolvimento teve um aumento médio de 3% ao ano,
acelerando-se de 2% na década de 1950 para 3,4% na
década de 1960. Essa taxa de crescimento foi historica-
mente sem precedentes nesses países e ultrapassou a
que fora alcançada pelos países desenvolvidos em sua
fase de industrialização (Banco Mundial, 1978). Nos pró-
prios países desenvolvidos [...] o PIB e o PIB per capita
cresceram quase duas vezes mais depressa do que em
qualquer período anterior desde 1820. A produtividade
do trabalho aumentou duas vezes mais depressa do que
em qualquer época, e houve uma aceleração extraordi-
nária na taxa de crescimento do estoque de capital. O
aumento desse estoque representou uma explosão de
investimentos de duração e vigor sem precedentes his-
tóricos. (GLYN et al., 1990, p. 41 e 42).

71
Diante desses resultados, alguns chegaram a acreditar
que o capitalismo havia finalmente entrado em uma nova era
de expansão ininterrupta. Como ressalta o historiador Eric
Hobsbawm (1995, p. 262), em sua consagrada análise sobre o
século XX: “todos os problemas que perseguiam o capitalismo
em sua era da catástrofe pareceram dissolver-se e desapare-
cer” e vozes mais otimistas “começaram a supor que, de algum
modo, tudo na economia iria para a frente e para o alto eterna-
mente” (p. 254). Segundo as previsões feitas por um destacado
político britânico em 1956, tudo levava a crer que, em cerca de
50 anos, a economia inglesa teria triplicado sua produção na-
cional (CROSLAND apud HOBSBAWM, 1995, p. 263). Ou ainda,
segundo relatório da ONU publicado em 1972: “Não há motivo
especial para duvidar que as tendências subjacentes de cres-
cimento no início e meados da década de 1970 continuarão em
grande parte como nas de 1960” (GLYN et al., 1990, p. 39). E
sobre esta crença na possibilidade de uma expansão contínua
e sustentada, David Landes (1994, p. 554) declara: “essa é uma
expressão de fé, revestida da aparência de uma previsão. Mas
é esse tipo de fé que ajuda a fazer com que as previsões se
realizem”.
As afirmações sobre a natureza deste período não são, no
entanto, de todo consensuais. Giovanni Arrighi (1996, p. 307),
por exemplo, faz a seguinte avaliação: “Não há dúvida de que,
nessa época, o ritmo de expansão da economia mundial ca-
pitalista como um todo foi excepcional, segundo os padrões
históricos. Se foi também a melhor de todas as épocas para o
capitalismo histórico, de modo a justificar sua denominação
de ‘a idade de ouro do capitalismo’, é uma outra questão”.
Mais do que isso, em poucos anos, aquelas grandes expecta-
tivas tornaram-se verdadeiras frustrações, pois, fosse ou não
a melhor de todas as épocas, por detrás da nova roupagem, o
capitalismo ainda continuava sendo o mesmo, regulado pelas
mesmas determinações gerais, que “necessariamente impli-
cam crises, exploração, pobreza, desemprego, destruição do
meio ambiente e da natureza, entre tantas formas destrutivas”
(ANTUNES, 2003, p. 34).

72
Conforme se entende aqui, é precisamente essa convicção,
a certeza de que se trata ainda do modo de produção capita-
lista, que permite observar esse período a partir da operação
das leis gerais identificadas anteriormente e, ao mesmo tem-
po, enxergar a existência de particularidades. Dizer que não há
qualquer diferença, como afirma David Harvey, é o mesmo que

[...] dar ao capitalismo um tratamento anistórico,


considerando-o um modo de produção desprovido de
dinâmica, quando todas as evidências (incluindo-se aí
as explicitamente arroladas por Marx) apontam para
o fato de ser o capitalismo uma força constantemente
revolucionária da história mundial, uma força que refor-
mula de maneira perpétua o mundo, criando configura-
ções novas e, com frequência, sobremodo inesperadas.
(HARVEY, 2005, p. 176).

De fato, o modo de produção capitalista experimenta subs-


tantivas reorientações no período posterior à Segunda Guerra
Mundial, cujas linhas gerais se definem aproximadamente en-
tre 1929 e 1948. Estas reorientações que, em seu conjunto, fica-
ram conhecidas como fordista-keynesianas incluem mudanças
que vão da estrutura produtiva ao plano político-ideológico e,
quando articuladas, produzem uma curiosa combinação de
crescimento da produção, da capacidade de consumo da clas-
se trabalhadora e manutenção de lucros altos, influenciando
decisivamente a manifestação fenomênica da lei geral da acu-
mulação capitalista.1
Considerando os objetivos desta seção, organizaremos nos-
sa exposição em torno desses dois eixos fundamentais, come-
çando pelas mudanças no plano político-ideológico e seguindo
para as mudanças ocorridas na estrutura produtiva. Esperamos
com isso poder finalmente esclarecer os impactos dessas refor-
mas sobre as tendências gerais do desenvolvimento capitalista.

1
Esse mesmo argumento pode ser visto, ainda que com algumas nuanças,
em Harvey (2005, p. 117), Bihr (1998, p. 35) e Hobsbawm (1995, p. 253), por
exemplo.

73
Sobre as mudanças no plano político-ideológico, pode-se
afirmar que o primeiro aspecto digno de nota está relacionado à
substantiva perda de espaço do liberalismo econômico e ascen-
são do ideário intervencionista. Essa ruptura com o liberalismo
e posterior consolidação de um “novo padrão de gerenciamento
da sociedade do capital”, no entanto, não podem ser compreen-
didas sem que se faça uma referência àquela que talvez tenha
sido a maior crise do modo de produção capitalista: a Grande
Depressão do entreguerras.2 Não pretendemos, e nem mesmo
seria possível, recompor o conjunto de fatores que conduziram
à crise ou apresentá-la em todos os seus detalhes, mas apenas
chamar a atenção para a sua profundidade e “sua incrível capa-
cidade de abalar os valores, crenças e estruturas sociais do sé-
culo XIX de forma praticamente instantânea e tão intensamente
a ponto de torná-los todos uma lembrança ameaçadora e inde-
sejável por cerca de cinquenta anos” (MEDEIROS, 2007, p. 154).
Observando as estatísticas do período, percebemos que,
apesar do indiscutível impacto sobre a produção e sobre os
“homens de negócios”, a crise tem uma capacidade particular
de afetar aqueles que, por pressuposto, não possuem o con-
trole sobre os meios de produção: a classe trabalhadora. Para
estes, ou seja, para a maior parcela da população, o principal e
primeiro significado da Grande Depressão foi o desemprego em
massa, “em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais
tempo do que qualquer um já experimentara” (HOBSBAWM,
1995, p. 97 et seq.). Como mostram os assustadores dados
sobre o comportamento do emprego: “no pior período da
Depressão (1932-1933), 22% a 23% da força de trabalho britâni-
ca e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da austríaca,
31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa e nada menos que
44% da alemã não tinha emprego. [...] Não houvera nada seme-
lhante a essa catástrofe econômica na vida dos trabalhadores
até onde qualquer um pudesse lembrar”.

2
Hobsbawm (1995, p. 99) chega a caracterizar este como “[...] o mais trágico
episódio da história do capitalismo.” Como afirma o autor: “[...] entre as
guerras, a economia mundial capitalista parecia desmoronar e ninguém sa-
bia exatamente como se poderia recuperá-la” (p. 91).

74
No que diz respeito especificamente ao papel desempe-
nhado pela crise no descrédito sofrido pela ideologia libe-
ral, Hobsbawm (1995, p. 99) sintetiza em uma única frase: “a
Grande Depressão destruiu o liberalismo econômico por meio
século”, e isso se deve a pelo menos dois motivos fundamen-
tais. Em primeiro lugar, depois de certo tempo, já não havia
mais dúvidas de que a Grande Depressão fora em parte resul-
tado do fracasso das políticas de livre mercado. Voltaremos
a este argumento mais adiante, ainda nesta seção. Por ora,
basta ressaltar que, independentemente do grau de responsa-
bilidade sobre a crise, a aplicação do receituário tipicamente
liberal também não se mostrou capaz de oferecer uma saída à
Depressão.3
Em segundo lugar, como já havia sido mencionado no ca-
pítulo anterior, é preciso lembrar que o desemprego em larga
escala e o consequente aumento da quantidade de pobres e
miseráveis representavam uma ameaça à estabilidade social
e política. Por um lado, havia a possibilidade de radicaliza-
ção à direita, cujo exemplo mais emblemático talvez fosse a
Alemanha nazista, que conseguiu superar a Grande Depressão
de maneira mais rápida e mais bem-sucedida que qualquer ou-
tro país. Por outro lado, havia a possibilidade de radicalização
à esquerda: “afinal, as previsões do próprio Marx pareciam es-
tar concretizando-se [...] e, de maneira ainda mais impressio-
nante, a URSS parecia imune à catástrofe” (HOBSBAWM, 1995,
p. 111).4 Por fim, é preciso lembrar que o relativo sucesso da

3
Como propõe Hobsbawm (1995, p. 106 e 107): “Até onde se podia confiar
nos economistas, por mais brilhantes que fossem, quando demonstravam,
com grande lucidez, que a Depressão em que eles mesmos viviam não podia
acontecer numa sociedade de livre mercado propriamente conduzida, pois
(segundo uma lei econômica com o nome de um francês do início do século
XIX) não era possível nenhuma superprodução que logo não se corrigisse?”
4
Ainda sobre o desempenho da URSS durante esse período, afirma Hobsbawm
(1995, p. 100): “O trauma da Grande Depressão foi realçado pelo fato de que
um país que rompera clamorosamente com o capitalismo pareceu imune a
ela: a União Soviética. Enquanto o resto do mundo, ou pelo menos o capi-
talismo liberal ocidental, estagnava, a URSS entrava numa industrialização
ultrarrápida e maciça sob seus novos Planos Quinquenais. De 1929 a 1940, a
produção industrial soviética triplicou, no mínimo dos mínimos. Subiu de 5%
dos produtos manufaturados do mundo em 1929 para 18% em 1938, enquanto

75
resposta à crise, alcançado nesses dois modelos alternativos
de sociedade, estava ancorado no planejamento e na aberta in-
tervenção do Estado na economia, contribuindo, também por
esse motivo, para o descrédito do liberalismo e a crença na
virtude do planejamento.
Assim, fosse para afastar o perigo de retorno à Grande
Depressão, ou para conter o avanço do comunismo ou do na-
zifacismo, consolidava-se a convicção de que um retorno ao
laisser-faire estava fora de questão. Como ressalta Hobsbawm:

É um engano supor que as pessoas jamais aprendem


com a história. A experiência do entreguerras e, sobre-
tudo, a Grande Depressão tinham sido tão catastróficas
que ninguém podia sonhar [...] em retornar à época
anterior [...]. E se a memória econômica da década de
1930 não fosse o bastante para aguçar seu apetite por
reformar o capitalismo, os riscos políticos de não fazê-
-lo eram patentes para todos os que acabavam de com-
bater a Alemanha de Hitler, filha da Grande Depressão,
e enfrentavam a perspectiva do comunismo e do poder
soviético avançando para oeste sobre as ruínas de eco-
nomias capitalistas que não funcionavam. (HOBSBAWM,
1995, p. 266).

É nesse contexto que, com base em argumentos tanto eco-


nômicos quanto políticos, o mercado livre é substituído pela
maior intervenção do Estado na economia. A consequência
disso, na prática, é a emergência de um “capitalismo reforma-
do”, tanto no âmbito nacional, quanto internacional, com o
propósito central de manter o crescimento, o pleno emprego,
evitar flutuações bruscas e minimizar as incertezas inerentes
ao funcionamento dos diversos mercados.
No plano internacional, a regulação do capitalismo visa-
va basicamente estabelecer uma nova ordem mundial que
evitasse as fortes instabilidades econômicas ocorridas no

no mesmo período a fatia conjunta dos EUA, Grã-Bretanha e França caía de


59% para 52% do total do mundo. E mais, não havia desemprego.”

76
período precedente, promovendo um crescimento controla-
do do comércio internacional. Os termos dessa nova ordem
supranacional, estabelecidos, em linhas gerais, na confe-
rência de Bretton Woods (1944), eram basicamente os se-
guintes: (1) criação do padrão dólar-ouro, que transforma a
moeda norte-americana em moeda de curso internacional e
conversível em ouro; (2) instituição de um regime de câmbios
fixos atrelados ao padrão dólar; e (3) criação de organismos
multilaterais como o Banco Mundial (originalmente chamado
Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento)
e o Fundo Monetário Internacional (COGGIOLA, 2002, p. 371).
No âmbito nacional, testemunha-se a emergência e a disse-
minação dos primeiros Estados de bem-estar social, preocu-
pados fundamentalmente com a administração keynesiana da
demanda agregada, a provisão de serviços públicos essenciais
(como educação, saúde, transportes etc.) e a universalização
da seguridade social (garantindo ao cidadão benefícios como
aposentadoria, auxílio-desemprego, entre outros).5 O resulta-
do, como confirmam diversos analistas, foi a “incomum com-
binação keynesiana de crescimento econômico numa econo-
mia capitalista baseada no consumo de massa de uma força de
trabalho plenamente empregada e cada vez mais bem paga e
protegida” (HOBSBAWM, 1995, p. 276).
Sobre as mudanças na estrutura produtiva, observamos
que o pós-guerra foi marcado pela disseminação de dois prin-
cípios gerais de organização do trabalho, princípios estes que
começaram a ser introduzidos ainda no final do século XIX e
início do século XX. O primeiro deles, conhecido como taylo-
rista, baseia-se na nítida separação entre “as tarefas de con-
cepção e execução, acompanhadas de uma parcelização das
últimas, devendo cada operário, em última análise, executar
apenas alguns gestos elementares” (BIHR, 1998, p. 39 et seq.).
O segundo, conhecido como fordista, define-se essencialmente

5
Apesar de trabalharmos aqui com uma definição bastante ampla de Estado
de bem-estar, existem inúmeras controvérsias a respeito de sua origem, pe-
riodização e principais características. Para uma exposição detalhada das
diferentes interpretações, conferir Gough (1989) e Esping-Andersen (1990).

77
pela mecanização do processo de trabalho, ou seja, pela cria-
ção de “um verdadeiro sistema de máquinas que garante a
unidade (a recomposição) do processo de trabalho parcelado,
ditando a cada operário seus gestos e sua cadência (sendo
sempre a cadeia de montagem a forma extrema desse princí-
pio)”. A combinação desses dois princípios acentua as seguin-
tes tendências: (1) a perda do controle direto sobre o processo
de produção pelo trabalhador e (2) o aumento da intensidade
e produtividade do trabalho.6
Como visto no capítulo anterior, essas seriam característi-
cas de um período de acumulação predominantemente inten-
siva, no qual diminui a participação relativa do capital variável
na totalidade do capital. Esse mecanismo seria ainda responsá-
vel pela produção de uma superpopulação relativa e, ao privar
parte da população da capacidade de consumo, salienta o ca-
ráter contraditório da dinâmica capitalista. Para muitos auto-
res, um dos elementos importantes para explicar a eclosão da
crise em 1929 seria justamente a inexistência de um aumento
da demanda compatível com a expansão da produção durante
a década de 1920. Segundo Bihr (1998, p. 41), nessa primeira
onda de expansão dos métodos tayloristas e fordistas, a pro-
dutividade do trabalho cresceu, nas economias capitalistas
ocidentais, em média 6% ao ano, os lucros chegaram a atingir
picos históricos de 35%, enquanto o crescimento médio dos
salários não ultrapassou os 2% ao ano. Ou seja:

[...] o que acontecia, como muitas vezes acontece nos


booms de mercados livres, era que, com os salários

6
Uma caracterização semelhante pode ser vista em Antunes (2006, p. 25), que
entende o fordismo, fundamentalmente, “como a forma pela qual a indústria
e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos ele-
mentos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através
da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle
dos tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção em
série fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das
funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de tra-
balho; pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e
pela constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo
fabril, entre outras dimensões”.

78
ficando para trás, os lucros cresceram desproporcio-
nalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do
bolo nacional. Mas como a demanda de massa não podia
acompanhar a produtividade em rápido crescimento do
sistema industrial nos grandes dias de Henry Ford, o re-
sultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua
vez, provocou o colapso. (HOBSBAWM, 1995, p. 104).

No período que tratamos aqui, ao contrário, apesar dos


significativos aumentos de produtividade e utilização de téc-
nicas cada vez mais intensivas em capital, a velocidade de
expansão da economia foi suficiente para aumentar o nível
de emprego, em termos absolutos e relativos (ao menos no
“centro” do sistema capitalista e em parte da “periferia”). Em
diversos países, inclusive, o esgotamento do contingente de
trabalhadores disponíveis teve de ser compensado pela in-
corporação crescente de mulheres ao mercado de trabalho,
pela migração interna (da zona rural para as cidades) e até
mesmo pela migração estrangeira (HOBSBAWM, 1995, p. 262).
Além disso, o crescimento do emprego foi acompanhado por
contínuos aumentos de salário real, obtidos, em grande medi-
da, por meio das profundas transformações na própria relação
salarial. Estas transformações incluíram o estabelecimento de
salários mínimos atrelados aos níveis de preços e produtividade
da empresa, instituição de práticas e procedimentos de nego-
ciação coletiva e crescimento dos salários indiretos (benefícios
sociais) (BIHR, 1998, p. 43). O resultado, em muitos países, foi
uma melhoria geral nas condições de vida da classe trabalhado-
ra e a ampliação do seu poder de compra, criando exatamente
aquela compatibilidade entre produção ampliada e a necessida-
de de consumo crescente não conseguida no período anterior:
à produção em massa um correspondente consumo em massa.7

7
Esse aumento na capacidade de consumo estendia-se, muitas vezes, inclu-
sive para os bens de luxo: “[...] o compromisso político de governos com
o pleno emprego e – em menor medida – com a redução da desigualdade
econômica, isto é, um compromisso com a seguridade social e previden-
ciária, pela primeira vez proporcionou um mercado de consumo de massa
para bens de luxo que agora podiam passar a ser aceitos como necessida-

79
É claro que a realização de lucros altos durante esse perí-
odo foi essencial à manutenção desse arranjo. Como mostram
os dados apresentados por Brenner (2003, p. 46), a taxa mé-
dia de lucro líquido do grupo de países conhecido como G7
(Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália
e Canadá) foi de 26,2% durante o período 1950-1970, em com-
paração com a taxa de 15,7% no período posterior (1970-1973).
Ou seja, o aumento dos salários não chegou a comprometer os
lucros presentes ou afetar as perspectivas futuras de lucros,
pois era com base nessas expectativas que se efetuavam os
“enormes investimentos, sem os quais o espetacular cresci-
mento da produtividade da mão-de-obra da Era de Ouro não
poderia ter ocorrido” (HOBSBAWM, 1995, p. 276).8
Vale notar, no entanto, que as condições do problema são
relativamente mais complexas. Apesar de depender, em parte,
da manutenção de taxas elevadas de lucro, as possibilidades
de expansão da economia capitalista não podem ser concebi-
das exclusivamente em termos de uma única determinação.
Partindo dos motivos anteriormente explicitados e da análise
desenvolvida por Marx, especialmente nos Livros II e III de O
capital, percebemos que a capacidade de expansão do capital
depende de inúmeros outros fatores. Voltaremos a tratar mais
detalhadamente desse assunto adiante, em Apêndice deste ca-
pítulo. Por ora, basta ressaltar que, assim como o progresso do
capital na “Era de Ouro” não pode ser explicado somente pela
taxa de lucro, também a crise da década de 1970 não pode ser
entendida somente por sua queda, como será mostrado na pró-
xima seção.

des. Quanto mais pobres as pessoas, maior a proporção da renda que têm
de gastar em produtos essenciais, como comida (uma observação sensata
conhecida como ‘Lei de Engel’). Na década de 1930, mesmo nos ricos Esta-
dos Unidos, cerca de um terço dos gastos domésticos ainda se destinava à
comida, mas no início da década de 1980 esse índice era de apenas 13%. O
resto ficava disponível para outras despesas. A Era de Ouro democratizou o
mercado” (HOBSBAWM, 1995, p. 264).
8
O historiador Robert Brenner (2003, p. 47) chega mesmo a afirmar que “[...] a
chave para o longo boom pós-guerra do final da década de 1940 até inícios da
de 1970 foi a trajetória da taxa de lucro. O que propiciou a expansão econô-
mica sem precedentes do período pós-guerra foi a capacidade das economias
capitalistas avançadas de realizarem e sustentarem altas taxas de lucro.”

80
Seção 3.2 A crise dos anos 1970
e a contrarrevolução conservadora

Findada a Segunda Guerra Mundial, a economia capitalis-


ta passa por um grande ciclo expansivo fundado sobre um
arranjo histórico peculiar que impediu, por certo período, a
manifestação de determinadas contradições e tendências ca-
racterísticas desse modo de produção. Apenas para recordar,
estas contradições, que tornam as crises inerentes à dinâmi-
ca de funcionamento do capitalismo, podem ser rapidamente
apreendidas a partir da já mencionada lei geral da acumulação
capitalista. Vimos ali que, ao mesmo tempo que produz riqueza
em escala crescente, a própria dinâmica capitalista cria obstá-
culos à realização dessa riqueza, à medida que priva parcela
significativa da população da capacidade de consumo. No pe-
ríodo tomado aqui como objeto de estudo, no entanto, a ca-
pacidade de realização dos valores produzidos foi garantida
pela transferência de parte do excedente para a classe traba-
lhadora (na forma de salários diretos e indiretos), sem que isso
comprometesse a lucratividade e as condições de valorização
do valor. Nos termos de Coggiola:

Nos primeiros 20 anos de pós-guerra, apesar de uma


forte expansão da produção, a reconstituição contínua
do exército de reserva industrial permitiu a manuten-
ção de uma taxa de mais-valia bastante elevada. Os salá-
rios reais aumentaram com mais lentidão que a produti-
vidade física. Os lucros seguiam sendo elevados apesar
do aumento da composição orgânica do capital. Tudo
parecia caminhar no melhor dos mundos. (COGGIOLA,
2002, p. 385).

Como dito anteriormente, não era difícil encontrar os que,


durante os “anos gloriosos”, chegaram a pensar que aquele
estado de coisas seria uma tendência estrutural do capitalis-
mo, bastando, para tanto, que fosse garantida a aplicação das
políticas “corretas”. Economistas de orientação keynesiana e

81
tomadores de decisão em geral vangloriavam-se por finalmen-
te se haver encontrado a forma adequada de gerenciamento
da sociedade do capital. Mas, não tardou muito, a história en-
carregou-se de demonstrar o equívoco dessa interpretação. A
partir da década de 1970, a economia mundial entra inegavel-
mente em uma longa fase de recessão e, na tentativa de ofere-
cer respostas à crise, observa-se uma série de reorientações
importantes, tanto no plano político-ideológico quanto na es-
trutura produtiva. Assim como no caso da “Era de Ouro”, acre-
dita-se aqui que essas reorientações influenciaram a forma de
manifestação das principais tendências da dinâmica capitalis-
ta e não podem ser entendidas sem que se faça uma referência
aos motivos que conduziram a economia a esse longo período
de recessão.
Em retrospectiva, é possível afirmar que os primeiros si-
nais de crise já começam a manifestar-se em meados da déca-
da de 1960, mas “até a década de 1980 não estava claro como
as fundações da Era de Ouro haviam desmoronado irrecupe-
ravelmente” (HOBSBAWM, 1995, p. 393 et seq.). Durante certo
período, não havia sinais claros de catástrofe, pois “o cresci-
mento no mundo capitalista desenvolvido continuou, embora
num ritmo visivelmente mais lento do que durante a Era de
Ouro.” Como nos dados apresentados por Brenner (2003, p.
93): a média de crescimento do produto interno bruto (PIB)
no “grupo dos sete” passou de 5,1%, no intervalo entre 1960-
1969, para 3,6% em 1969-1979, 3,0% em 1979-1990 e 2,5% em
1990-1995.
Parecia, portanto, apenas uma onda de leves recessões
temporárias, nada comparáveis à Grande Depressão dos anos
1930, decorrentes, em grande medida, da inusitada conjunção
de fatores exógenos e inesperados. Ou seja, para os mais oti-
mistas, a economia havia saído dos trilhos devido ao “inco-
mum acúmulo de perturbações infelizes, sem probabilidade
de se repetir na mesma escala, cujo impacto foi agravado por
alguns erros inevitáveis” (MCCRACKEN, 1977, p. 14). E a mais
mencionada das “perturbações infelizes”, que normalmente
ocupa papel de destaque nas explicações sobre a crise, foi, sem

82
dúvidas, a elevação no preço do barril de petróleo, que passou
de aproximadamente US$ 3,5 para US$ 11,5 em 1973-1974.
É claro que não duvidamos aqui do importante papel de-
sempenhado pelo aumento no preço do petróleo no aprofun-
damento da crise (e, para compreender este ponto, basta lem-
brar que durante a “Era de Ouro” houve uma explosão no uso
do petróleo e derivados e que este representa ainda hoje um
dos principais componentes da matriz energética de vários pa-
íses). Mais do que o aumento nos preços de um produto espe-
cífico, esse período também foi marcado por uma inflação ge-
neralizada que, quando combinada com o baixo crescimento
do produto, produziu um fenômeno que se tornou quase uma
marca registrada dessa crise: a estagflação.9
No entanto, diferentemente das explicações que privilegiam
os choques exógenos, entendemos que a crise é resultado do
desenvolvimento das próprias tensões internas ao modo de
produção capitalista, do desenvolvimento de suas próprias
contradições; “não resulta da negação das tendências do pe-
ríodo de expansão, mas do seu desenvolvimento exacerbado”
(COGGIOLA, 2002, p. 385). Como indicado anteriormente, essas
contradições acabam gerando uma produção excessiva de ca-
pital ante as suas possibilidades de valorização, e é por esse
motivo que as “duas formas clássicas de manifestação desse
fenômeno no capitalismo” são “reduções das taxas de lucro e
superacumulação/superprodução de capital” (CARCANHOLO,
2010, p. 2).
Vale notar que não são poucas as teorias, dentro e fora da
tradição marxista, que enxergam a queda na lucratividade e a
9
Como mostram os dados sistematizados por Carcanholo (2010, p. 3): “A in-
flação mundial média, medida pelos preços ao consumidor, é de 10% ao ano
no período 1973-1979 e 8,1% no período 1979-1984, sendo que em 1950-1973
havia sido de apenas 4%.” Se observarmos atentamente as médias anuais
de crescimento dos preços e do produto nos Estados Unidos e Reino Unido,
por exemplo, vemos ainda que os períodos de inflação mais acentuada coin-
cidiram com os períodos de queda mais acentuada no produto: 1974-1975
e 1980-1981 (BANCO MUNDIAL, 2010). Analisando também a relação entre
inflação e desemprego, percebemos que, para o período 1961-1987, tanto
nos Estados Unidos quanto nos países da Europa, os anos de aumentos mais
significativos da inflação foram precisamente os anos de aumento mais sig-
nificativo do desemprego (HARVEY, 2005, p. 141).

83
superprodução como manifestações mais gerais da incapacida-
de do capitalismo em manter o padrão de acumulação respon-
sável pelo crescimento do período anterior.10 Por vezes, no en-
tanto, parte dessas teorias acaba, em suas explicações sobre
a dinâmica capitalista, reduzindo a complexidade do problema
ao movimento da taxa de lucro, especialmente em momentos
de crise. Uma análise mais detalhada do papel efetivo da taxa
de lucro, bem como dos diversos outros fatores que podem
influenciar as condições de acumulação, será realizada adian-
te, em Apêndice. Por ora, interessa-nos particularmente fazer
dois registros. Em primeiro lugar, a despeito das diferenças
pontuais, concorda-se no geral que os primeiros sinais da crise
começam a manifestar-se antes mesmo de 1973 (o que nos per-
mite com alguma facilidade descaracterizar as explicações que
tomam o choque do petróleo como ponto de partida).
Em segundo lugar, ainda que haja divergências sobre a pro-
fundidade das reorientações experimentadas após a crise e a
dimensão de suas consequências, não há dúvidas de que as
reorientações existiram e geraram impactos sobre a dinâmica
capitalista. À medida que a crise aparecia fundamentalmente
como uma crise do “compromisso fordista-keynesiano”, teste-
munha-se o declínio do keynesianismo e a ascensão do neoli-
beralismo e a substituição dos métodos de trabalho fordistas
por métodos mais flexíveis. Como afirma Carcanholo (2008a, p.
252), “reestruturação produtiva e neoliberalismo são duas in-
terfaces de uma mesma resposta do capital à sua própria crise
nos anos 1970” e, em linhas gerais, essas duas reorientações
atuaram da seguinte maneira:

[...] enquanto o processo de reestruturação produtiva


se encarregou da rotação do capital, o neoliberalismo,
como aspecto político, ideológico e econômico, teve o
papel de garantir as condições de lucratividade interna

10
No caso específico da crise dos anos 1970, destacam-se, por exemplo, aque-
las interpretações veiculadas pela Escola da Regulação (GLYN et al., 1990),
por Brenner (1999; 2003), Arrighi (1996), Harvey (2005; 2010), Antunes
(2003), entre outros. Um apanhado crítico de algumas dessas teorias sobre o
mundo contemporâneo pode ser visto em Postone (2008).

84
(desregulamentação e flexibilização dos mercados –
principalmente o de trabalho) e externa (pressão por
desregulamentação e abertura dos mercados comer-
ciais e financeiros). (CARCANHOLO, 2008a, p. 252).

No que tange às mudanças no plano político-ideológico, é


preciso deixar claro de antemão que o neoliberalismo surge,
ainda no imediato pós-guerra, como reação teórica e política
contra o Estado intervencionista (seja em sua versão social-
-democrata ou “comunista”).11 Mas como as aproximadamente
três décadas da “Era de Ouro” não ofereceram condições fa-
voráveis à disseminação desses ideais (afinal de contas, o ca-
pitalismo passava por uma fase de auge sem precedentes, tor-
nando muito pouco críveis as advertências neoliberais), “esse
movimento permaneceu à margem tanto da política, quanto da
influência acadêmica até os conturbados anos da década de
1970” (HARVEY, 2008, p. 31).
De acordo com o argumento neoliberal, as raízes da crise
estavam evidentemente

[...] localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindi-


catos e, de maneira geral, no movimento operário, que
havia corroído as bases da acumulação capitalista com
suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua
pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada
vez mais os gastos sociais. (ANDERSON, 1995, p. 10).

Para recompor as condições de acumulação, seria neces-


sário, portanto, reverter este quadro, principalmente através
da implementação de reformas “pró-mercado”. Sobretudo era
necessário criar um ambiente favorável aos investimentos e à

11
Vale notar que este movimento foi formado, inicialmente, por um grupo
seleto de economistas, historiadores e filósofos, defensores fervorosos do
liberalismo, que se agruparam em torno de Friedrich von Hayek para criar a
Sociedade Mont Pèlerin. O nome do grupo é uma referência ao local na Suíça
onde ocorreu a primeira reunião (em 1947), e entre os mais notáveis mem-
bros destacam-se Ludwig von Mises, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel
Robbins, Michael Polanyi, entre outros.

85
lucratividade do setor privado através da estabilização da eco-
nomia, do saneamento das contas públicas (por meio de corte
de impostos e gastos, privatizações etc.) e das já mencionadas
flexibilização do mercado de trabalho, abertura comercial e
desregulamentação e liberalização do mercado financeiro.
Diante da crise, portanto, os neoliberais viram não apenas
o que julgavam ser a comprovação de suas profecias, mas tam-
bém encontraram terreno fértil para a disseminação de suas
ideias e práticas. Como afirma explicitamente Milton Friedman,
definindo, ainda em 1962, as linhas gerais da agenda neocon-
servadora no seu consagrado Capitalismo e liberdade:

Somente uma crise – atual ou previsível – provoca uma


real mudança. Quando ocorre tal crise, as decisões
tomadas dependem das ideias existentes no momen-
to. Esta, creio eu, é nossa função fundamental: de-
senvolver alternativas para os programas existentes,
conservá-las vivas e disponíveis, até que o politica-
mente impossível se torne politicamente inevitável.
(FRIEDMAN, 1988, p. 7).

Segundo os registros de Naomi Klein (2008), assim poderia


se resumir quase toda a história de implementação do recei-
tuário neoliberal nas mais distintas e distantes regiões do glo-
bo ao longo das últimas décadas. Como comprovam inúmeras
experiências posteriores à crise dos 1970, a perspectiva neo-
liberal encara os momentos de crise (inclusive as grandes ca-
tástrofes) como oportunidades para atacar a esfera pública e
impor as reformas pró-mercado. Assim, argumenta a autora,
enquanto “algumas pessoas costumam estocar alimentos enla-
tados e água para enfrentar grandes desastres, os seguidores
de Friedman (1988, p. 16 et seq.) estocam ideias em defesa do
livre mercado”. Perante a instalação de uma crise, “era essen-
cial agir rapidamente, impondo mudanças súbitas e irreversí-
veis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar
à ‘tirania do status quo’”. É precisamente essa tática que Klein
denomina doutrina do choque.

86
Ainda que os países latino-americanos tenham oferecido,
durante os anos 1970, os primeiros “laboratórios” para a apli-
cação dessa doutrina,12 a efetiva consagração do programa ne-
oliberal demoraria aproximadamente uma década e não pode
ser compreendida sem que se faça referência a ao menos três
eventos significativos. O primeiro foi a eleição quase simultâ-
nea de dois governos declaradamente empenhados em pôr
em prática o programa neoliberal, em duas grandes potências
mundiais: Reino Unido e Estados Unidos. De fato, as vitórias
de Margareth Thatcher, em 1979, e de Ronald Reagan, no ano
seguinte, cumpriram um papel fundamental na penetração do
neoliberalismo na América do Norte e em quase toda a Europa
ocidental. Como afirma Anderson (1995, p. 12), “os anos 1980
viram o triunfo mais ou menos incontrastado da ideologia neo-
liberal nessa região do capitalismo avançado”.
O segundo evento digno de nota, particularmente importante
para compreender a consolidação do neoliberalismo nas regiões
“menos afortunadas”, foi a construção, no final dos anos 1980, da-
quilo que ficou conhecido como Consenso de Washington. Após
o fracasso das experiências neoliberais nos países da América
Latina (que ainda não haviam conseguido conter o processo in-
flacionário e estavam mergulhados em gigantescas dívidas ex-
ternas), membros dos organismos multilaterais, funcionários do
governo americano e economistas desses países reuniram-se
para discutir e redefinir os rumos de sua estratégia. Como re-
sultado dessa conferência, o economista John Williamson (1990)
apresenta, de maneira bastante didática, uma lista com dez ins-
trumentos de política econômica considerados indispensáveis

12
Entre as primeiras experiências de implementação do receituário neoliberal
na América Latina, destacam-se particularmente os casos chileno e bolivia-
no. O primeiro é bastante emblemático não apenas pelo pioneirismo, mas
também pelo fato de comprovar que “a democracia em si mesma – como
explicava incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do
neoliberalismo” (ANDERSON, 1995, p. 19 e 20 et seq.). O segundo, por sua
vez, nos mostra que “há um equivalente funcional ao trauma da ditadura
militar como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente
um povo a aceitar políticas neoliberais das mais drásticas. Este equivalente
é a hiperinflação.” Para mais informações sobre estas experiências, conferir
Klein (2008).

87
à saúde daquelas economias e que, como disse o autor alguns
anos depois, constituem “o núcleo comum de sabedoria aceito
por todos os economistas sérios” (WILLIAMSON, 1994, p. 18).
A partir de então, os organismos multilaterais (especial-
mente FMI e Banco Mundial) são explicitamente transformados
em “centros de propagação de implementação do ‘fundamen-
talismo do livre mercado’ e da ortodoxia neoliberal”, (HARVEY,
2008, p. 38) oficialmente colonizados pela Escola de Chicago.
Ou seja, aquelas instituições que haviam sido criadas como
parte do acordo de Bretton Woods, baseadas na convicção de
que a regulação da economia deveria ir além do plano nacio-
nal, condicionavam agora a concessão de auxílio financeiro à
aplicação das reformas pró-mercado, ampliando significativa-
mente o poder de expansão do receituário neoliberal, não ape-
nas na América Latina, mas também sobre o continente africa-
no.13 Como sintetiza Klein:

Friedman pode ter sido contrário às duas instituições,


em termos filosóficos, mas na prática, não havia orga-
nizações mais bem posicionadas para implementar sua
teoria das crises. Quando os países mergulharam em
graves desequilíbrios nos anos 1980, não havia a quem
recorrer a não ser ao Banco Mundial e ao FMI. Ao chega-
rem lá, esses países deram de cara com o muro de orto-
doxia dos Garotos de Chicago, que tinham sido treina-
dos para encarar aquelas catástrofes econômicas não
como problemas a serem resolvidos, mas como oportu-
nidades preciosas a serem aproveitadas para expandir
as fronteiras do livre mercado. Agora, o oportunismo
das crises estava embasando a lógica das instituições
financeiras mais poderosas do mundo. Isso representa-
va uma traição fundamental de seus princípios fundado-
res. (KLEIN, 2008, p. 196).

13
“O princípio era simples: os países que estavam em crise precisavam deses-
peradamente de ajuda emergencial para estabilizar suas moedas. Quando
a privatização e as políticas de livre-comércio são empacotadas junto com
o socorro financeiro, os países têm pouca escolha além de aceitar o pacote
completo” (KLEIN, 2008, p. 198).

88
Por fim, mas não menos importante, destaca-se a sequên-
cia de eventos históricos que se inicia com a queda do Muro
de Berlim, em 1989, e se encerra com a dissolução da União
Soviética, em 1991, marcando o fim do socialismo real no
Leste Europeu. Esse episódio é particularmente importan-
te, em primeiro lugar, pois abriu um novo e promissor cam-
po para a expansão da doutrina neoliberal.14 Como ressalta
Anderson (1995),

os novos arquitetos das economias pós-comunistas do


Leste [...] eram e são seguidores convictos de Hayek e
Friedman, com um menosprezo total pelo keynesianis-
mo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e,
em geral, por todo modelo dominante do capitalismo
ocidental do período pós-guerra. (ANDERSON, 1995, p.
18 et seq.).

Seguras de seus ideais, as novas lideranças realizaram re-


formas ainda mais amplas do que as feitas no Ocidente, fazen-
do com que se chegasse à conclusão de que “não há neolibe-
rais mais intransigentes no mundo do que os ‘reformadores’
do Leste”.
Além disso, embora de muitas formas as crises do Leste e
do Oeste corressem paralelas e estivessem ligadas a uma úni-
ca crise global, pode-se dizer que o impacto sobre a parcela
capitalista e não capitalista do mundo foi significativamente
diferente: enquanto, para os primeiros, a crise representava
o triunfo do neoliberalismo sobre o keynesianismo, para os
14
Esse entusiasmo com as oportunidades abertas pelo fim do socialismo real
pode ser vista, por exemplo, no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial
publicado em 1996, inteiramente dedicado aos países que estavam, durante
aquele período, “fazendo a transição do planejamento central [...] para a
economia de mercado” (BANCO MUNDIAL, 1996: iii). Além de realizar um
primeiro balanço dos resultados dessa transição, o relatório insiste no ca-
ráter inevitável e necessário das reformas, argumentando que, se os benefí-
cios não foram sentidos de imediato, tratava-se de uma questão de tempo:
os resultados finais seriam necessariamente positivos. Como afirmado ex-
plicitamente: “a clara lição das reformas executadas nos últimos anos é a de
que, independentemente do seu ponto de partida, uma reforma decisiva e
consistente dá bons resultados” (Ibid: 9).

89
segundos, parecia confirmar o triunfo do capitalismo (em sua
versão liberal) sobre qualquer possibilidade de um projeto
alternativo de sociedade.15 Não por acaso, é desse período a
disseminação das teses conservadoras sobre o fim da história,
que enxergavam na derrota do socialismo as condições para a
eternização do capitalismo.16 A partir de então, pode-se dizer
que, no plano político-ideológico,

[...] o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o


qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam,
disseminando a simples ideia de que não há alternati-
vas para os seus princípios, que todos, seja confes-
sando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.
Provavelmente nenhuma sabedoria convencional con-
seguiu um predomínio tão abrangente desde o início do
século como o neoliberal hoje. (ANDERSON, 1995, p. 18).

As consequências desse predomínio sobre a dinâmica capi-


talista serão analisadas mais adiante. Por ora, vejamos como
a ascensão do neoliberalismo combina-se com as transforma-
ções na estrutura produtiva.
De acordo com a sistematização feita por Bihr (1998, p. 87),
essa reestruturação envolveu a incorporação de novas tecno-
logias, novos métodos de organização do processo de trabalho,
novos tipos de contrato de trabalho e, consequentemente, no-
vas formas de envolvimento e integração da força de trabalho

15
Um interessante contraponto a essa perspectiva é apresentado, por exem-
plo, por Robert Kurz (1993). Partindo da análise do sistema mundial de pro-
dução de mercadorias em seu conjunto, sistema do qual os países do Leste
eram parte constitutiva, Kurz entende que, ao contrário de marcar a vitória
do capitalismo sobre o socialismo, a derrocada do Leste Europeu foi parte
da própria crise do capitalismo em escala global, que se iniciou no Terceiro
Mundo, atingiu de maneira avassaladora os países do Leste Europeu e, final-
mente, penetrou no centro do “sistema mundial produtor de mercadorias”.
Para mais informações sobre este argumento, conferir também Antunes
(2006, p. 107).
16
Essa tese foi disseminada, sobretudo, a partir do trabalho de Francis Fukuya-
ma, cujas ideias centrais foram apresentadas pela primeira vez, em 1989, em
palestra proferida na Universidade de Chicago, e aprofundadas três anos
depois no livro O fim da história e o último homem.

90
na atividade produtiva. Em seu conjunto, essas reestrutura-
ções deram origem a uma “nova ordem produtiva”, cujas ca-
racterísticas básicas seriam difusão, fluidez e flexibilidade.
A primeira característica está relacionada à inversão do
processo de concentração produtiva originado pelo fordismo
que, depois de ultrapassado certo limite, ao contrário de ga-
rantir as economias de escala previstas, passou a gerar custos
excedentes.17 Assim, assiste-se ao “enxugamento” das unida-
des produtivas e ao surgimento de fábricas mais difusas, que
externalizam parte das funções produtivas e/ou administra-
tivas, mantendo apenas uma “unidade central que coordena,
planifica, organiza a produção de toda uma rede de unidades
periféricas, que podem atingir o número de várias centenas, e
até de vários milhares” (BIHR, 1998, p. 88).18
Por um lado, aproveitando a já mencionada flexibilização
do mercado de trabalho e do desmantelamento do sistema de
benefícios conquistados pela classe trabalhadora no período
anterior, o esquema de “subcontratação” ou “terceirização”
possibilita a utilização de formas precarizadas de trabalho,
como, por exemplo, o trabalho em domicílio, o trabalho clan-
destino, o trabalho temporário, em tempo parcial etc. Como
destaca Harvey (2005),

17
Vale notar que a “inversão do processo de concentração” aqui mencionada
não significa uma inversão da tendência à concentração de capital identifi-
cada por Marx e apresentada no capítulo anterior. Ao contrário, os proces-
sos de difusão, fluidez e flexibilização reforçaram, em conjunto, as tendên-
cias à concentração e centralização do capital, ainda que isso ocorra, por
vezes, por meio da descentralização das operações. Sobre o tema conferir,
por exemplo, Chesnais (1996). Também é importante ressaltar que esta “in-
versão” é apenas parcial, pois os processos de produção do tipo fordista
continuaram a existir em determinados setores.
18
De acordo com Antunes (2003, p. 50; 54 e 55), este processo também ficou
conhecido na literatura econômica como liofilização e, em termos quanti-
tativos, pode ser apresentado da seguinte maneira: “enquanto na fábrica
fordista aproximadamente 75% da produção era realizada no seu interior”, a
nova fábrica difusa “é responsável por somente 25% da produção, tendência
que vem se intensificando ainda mais. Essa última prioriza o que é central
em sua especialidade do processo produtivo (a chamada ‘teoria do foco’)
e transfere a ‘terceiros’ grande parte do que antes era produzido dentro de
seu espaço produtivo”.

91
a subcontratação organizada abre oportunidades para
a formação de pequenos negócios e, em alguns casos,
permite que sistemas mais antigos de trabalho domés-
tico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista [...]
revivam e floresçam, mas agora como peças centrais,
e não mais apêndices do sistema produtivo. (HARVEY,
2005, p. 145).19

E esse, evidentemente, é um processo que se retroalimen-


ta: ao mesmo tempo que “[...] os patrões tiraram proveito do
enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de
mão-de-obra excedente (desempregados e subempregados)
para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis”, a
“redução do emprego regular em favor do crescente uso do
trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado” di-
minuiu significativamente a capacidade de mobilização e resis-
tência da classe trabalhadora (HARVEY, 2005, p. 143 et seq.).
Por outro lado, beneficiando-se do processo de abertura co-
mercial e financeira e da rápida redução dos custos de transpor-
te e comunicação, a “indústria, que tradicionalmente dependia
de restrições locais no tocante a fontes de matérias-primas e a
mercados, pôde se tornar muito mais independente”. Com isso,
algumas das atividades “externalizadas” puderam ser transfe-
ridas para as regiões onde as legislações são mais “frouxas” e
a mão de obra mais barata, criando condições ainda mais fa-
voráveis à acumulação capitalista. De acordo com o argumen-
to desenvolvido por Chesnais (1996), a intensificação desse
processo marcaria uma fase específica da internacionalização
do capital, chamada por ele de mundialização. Nessa fase, o
investimento direto externo teria suplantado o comércio exte-
rior como vetor principal do processo de internacionalização,
aumentando significativamente a “importância do intercâmbio

19
Segundo as estatísticas apresentados por Harvey (2005, p. 144), “na Ingla-
terra, os ‘trabalhadores flexíveis’ aumentaram em 16 por cento, alcançando
8,1 milhões entre 1981 e 1985, enquanto os empregos permanentes caíram
em 6 por cento, ficando em 15,6 milhões. Mais ou menos no mesmo período,
cerca de um terço dos dez milhões de novos empregos criados nos EUA
estavam na categoria ‘temporário’.”

92
intracorporativo (40% do comércio dos Estados Unidos e do
Japão), e sobretudo do nível dos suprimentos internacionais
em produtos semielaborados e produtos acabados, organi-
zados com base em terceirização internacional” (CHESNAIS,
1996, p. 26). Oferecendo um contraponto à perspectiva veicu-
lada pelos ideólogos da globalização, que acreditam que esse
processo é tanto inevitável quanto bom, Chesnais argumenta
ainda que essas mudanças na forma de internacionalização
são fruto das próprias políticas de abertura comercial, libera-
lização e desregulamentação financeira e das transformações
no modo predominante de organização do trabalho, e geram
consequências trágicas sobre a classe trabalhadora, especial-
mente dos países pobres, como veremos adiante.
O segundo processo, de aumento da fluidez, está ligado ao
crescimento da “gestão informatizada dos fluxos produtivos”,
cujo objetivo central é “otimizar a combinação, no espaço e
no tempo, das matérias-primas, das energias, dos equipamen-
tos, dos homens, da informação etc., reduzindo ao mínimo os
tempos mortos no encadeamento das operações produtivas”.
Isso assegura ao capital, “além de novos ganhos de intensida-
de e de produtividade, economia de capital constante (tanto
fixo quanto circulante) por unidade produzida” (BIHR, 1998, p.
89 et seq.). Mas a introdução desse tipo de tecnologia avança-
da depende, em parte, também de mudanças significativas na
organização do trabalho, com o “abandono da organização do
trabalho em postos fixos e especializados”. Assim, em lugar da
“relação operário especializado/máquina especializada, célula
da organização fordista”, predomina na fábrica fluida “a rela-
ção equipe polivalente/sistema de máquinas automatizadas
(e, portanto, também polivalentes)”, em que cada trabalhador
deve ser capaz de intervir em várias máquinas diferentes ao
mesmo tempo. As “responsabilidades de elaboração e controle
de qualidade da produção, anteriormente realizadas pela ge-
rência científica” são agora “interiorizadas na própria ação dos
trabalhadores” (ANTUNES, 2003, p. 56).
Como ressalta Antunes (2003, p. 48; 52; 56), à medida que
este tipo de organização exige um “trabalhador mais qualificado,

93
participativo, polivalente, dotado de maior realização no espaço
de trabalho”, algumas leituras mais otimistas chegaram a enca-
rar esta como uma superação da própria contradição capital-
-trabalho. Esse envolvimento maior do trabalhador no processo
de trabalho, no entanto, “preserva, na essência, as condições do
trabalho alienado e estranhado”. Mais do que isso, o processo
de produção fluido vem acompanhado de uma “intensificação da
exploração do trabalho, quer pelo fato de os operários trabalha-
rem simultaneamente com várias máquinas diversificadas, quer
pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva”.
Por fim, assiste-se ao processo de flexibilização da unidade
produtiva, com a substituição das economias de escala (gran-
de marca da produção fordista de massa) pelas economias de
escopo: produção de uma variedade crescente de bens em
uma mesma linha, a preços baixos e em pequenos lotes, ajus-
táveis às variações na demanda, mais flutuante e diversificada
(HARVEY, 2005, p. 148). Essa maior flexibilidade dependia, em
grande medida, da própria existência de difusão que, como vis-
to anteriormente, está associada ao “afrouxamento das con-
dições jurídicas que regem contrato de trabalho, implicando
especialmente a possibilidade de se recorrer facilmente ao tra-
balho em tempo parcial e ao trabalho temporário” (BIHR, 1998,
p. 92). Como reforça Bihr (1998, p. 92): “aqui, flexibilidade rima
diretamente com instabilidade”. Além disso, o sucesso desse
tipo de produção dependia da organização mais flexível do tra-
balho, associada diretamente ao aumento da fluidez também
mencionado anteriormente. Por fim, a utilização de métodos
mais flexíveis esteve significativamente articulada às próprias
mudanças no mercado consumidor. Como destaca Harvey:

[...] a acumulação flexível foi acompanhada na ponta


do consumo, portanto, por uma atenção muito maior
às modas fugazes e pela mobilização de todos os arti-
fícios de indução de necessidades e de transformação
cultural que isso implica. A estética relativamente está-
vel do modernismo fordista cedeu lugar a todo fermen-
to, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética

94
pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o
espetáculo, a moda e a mercadificação de formas cultu-
rais. (HARVEY, 2005, p. 148).

Em linhas gerais, muitas dessas características da “nova


ordem produtiva” são encaradas como assimilação e incor-
poração no Ocidente de características próprias ao modelo
japonês de produção (também conhecido como toyotismo).20
Em seu conjunto, essas mudanças permitiram, em certa medi-
da, recompor as condições de acumulação capitalista, agora
apoiada fundamentalmente na “flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões
de consumo, [...] no surgimento de setores de produção intei-
ramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços
financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente in-
tensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacio-
nal” (HARVEY, 2005, p. 140).
De fato, através de todos esses mecanismos, neoliberalismo e
reestruturação produtiva criaram as condições para o surgi-
mento de uma combinação particular das estratégias de ex-
tração de mais-valia absoluta e relativa, fosse pelo aumento
da jornada de trabalho, da intensidade, da produtividade (ob-
tidos através das mudanças tecnológicas ou organizacionais),
fosse pelo rebaixamento do valor da força de trabalho ou pela
transferência do capital para regiões onde os salários são mais
baixos (HARVEY, 2005, p. 174 e 175). Aliado a isso, o tempo de
rotação do capital – uma das variáveis-chave da lucratividade
capitalista, como pode ser visto em mais detalhes no Apêndice
– foi reduzido substancialmente.
Importante também para a acumulação de capital foi o cres-
cimento da esfera financeira, absorvendo grande parte do ex-
cesso de capital incapaz de se valorizar através da produção e
realização de mercadorias. Por um lado, pode-se dizer que este
20
Como ressalta Antunes (2003, p. 57), “o processo de ocidentalização do
toyotismo mescla, portanto, elementos presentes no Japão com práticas
existentes nos novos países receptores, decorrendo daí um processo dife-
renciado, particularizado e mesmo singularizado de adaptação desse recei-
tuário.”

95
processo foi funcional para a acumulação de capital, à medi-
da que possibilitou uma aceleração das atividades produtivas,
permitindo a maior acumulação global de capital, a redução do
tempo de rotação e, portanto, o aumento da taxa de lucro por
período (CARCANHOLO, 2008a, p. 260). Por outro lado, no en-
tanto, a expansão desenfreada de sua lógica gerou uma série de
disfuncionalidades e aumento da instabilidade, que explicam
em parte, por exemplo, o fato de a recomposição nas condições
de acumulação não ter sido acompanhada por uma recupera-
ção no ritmo de crescimento das economias. Como ressalta
Anderson (1995, p. 16), “a desregulamentação financeira, que
foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou
condições muito mais propícias para a inversão especulativa
do que produtiva”, de modo que,

[...] apesar de todas as novas condições institucionais


criadas em favor do capital – a taxa de acumulação,
ou seja, da efetiva inversão em um parque de equipa-
mentos produtivos, não apenas não cresceu durante os
anos 80, como caiu em relação a seus níveis – já médios
– dos anos 70. No conjunto dos países de capitalismo
avançado, as cifras são de um incremento anual de 5,5%
nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que
2,9% nos anos 1980. Uma curva absolutamente descen-
dente. (ANDERSON, 1995, p. 15 e 16).

Nesse quesito, portanto, os resultados foram particular-


mente desanimadores. Como ressalta Anderson (1995, p. 15),
“no final das contas, todas essas medidas haviam sido conce-
bidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a
reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando
taxas altas de crescimento estáveis, como existiam antes da
crise dos anos 1970”. No entanto,

entre os anos 1970 e 1980 não houve nenhuma mudan-


ça – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa
nos países da OCDE [Organização para Cooperação e

96
Desenvolvimento Econômico]. Dos ritmos apresentados
durante o longo auge, nos anos 1950 e 1960, resta somen-
te uma lembrança distante. (ANDERSON, 1995, p. 15).

No que diz respeito aos impactos sobre a classe trabalhado-


ra, pode-se dizer que os resultados são efetivamente nefastos
e não podem ser de modo algum desprezados. Em primeiro lu-
gar, destacam-se as já mencionadas transformações na relação
salarial e suas principais consequências:

[...] instabilidade de emprego e, portanto, de renda; des-


regulamentação mais ou menos forçada de suas condi-
ções jurídicas de emprego e de trabalho (em relação às
normas legais ou convencionais); conquistas e direitos
sociais em regressão; com frequência, ausência de qual-
quer benefício convencional; a maior parte do tempo,
ausência de qualquer proteção e expressão sindicais.
(BIHR, 1998, p. 86)

Além disso, como ressalta Hobsbawm (1995, p. 403), “as


décadas de crise começaram a dispensar mão de obra em
ritmo espetacular, mesmo nas indústrias visivelmente em ex-
pansão”, de forma que o aumento do desemprego, a princípio
visto como uma questão conjuntural, “anomalia passageira”,
rapidamente se mostrou situação estrutural. De acordo com
os dados disponíveis em Brenner (2003, p. 93), a taxa média
de desemprego no “grupo dos sete” passou de 3,1%, no perío-
do 1960-1973, para 4,9%, em 1973-1979, e 6,8%, em 1979-1990.
Tomando a média dos países da Europa, a situação se mostra
ainda mais crítica, com a taxa de desemprego subindo de 2,3%,
em 1960-69, para 4,6%, em 1969-1979, e 9,1%, em 1979-1990.
Em uma sociedade capitalista, fundada no trabalho assa-
lariado, essas mudanças no “mundo do trabalho” vêm acom-
panhadas de uma inegável e persistente deterioração nas
condições de vida da população, que se expressa diretamen-
te em aumento da desigualdade de renda, pobreza, “exclusão
social”, deterioração do meio ambiente etc., fenômenos estes

97
reconhecidos, em alguma medida, dentro e fora do âmbito
acadêmico, por diversos comentadores, dos mais aos menos
críticos.21 Conforme entendemos aqui, tais fenômenos são um
reflexo das próprias contradições inerentes ao desenvolvimen-
to capitalista, apresentadas no capítulo anterior e sintetizadas
no enunciado da lei geral. Ou seja, enquanto durante a “Era de
Ouro” a manifestação empírica de tendências gerais foi obsta-
da por determinações particulares (discutidas ao longo da pri-
meira seção), mudanças nas próprias condições particulares
no período posterior aos anos 1970 abriram o caminho para
que essas mesmas tendências gerais predominassem na pro-
dução de eventos.

Seção 3.3 O desenvolvimento capitalista


e suas particularidades: considerações finais

A partir do exposto acima, podemos extrair algumas con-


clusões importantes para o argumento do presente estudo. Em
primeiro lugar, observamos que, se as tendências gerais con-
tinuam em ação (ainda que atravessadas por arranjos sociais
diversos), recompor a dinâmica do desenvolvimento capita-
lista na transição entre períodos distintos significa recompor
as mudanças, mas também as permanências, demonstrando
como o capital modifica-se num determinado momento para
preservar sua lógica geral. Nos termos sugeridos por Postone
(2008, p. 94 et seq.), trata-se de compreender que a própria
dinâmica capitalista produz variadas configurações históricas,
que o capitalismo “não pode ser identificado completamente
com nenhuma das suas configurações” e que a “emergência de

21
No caso específico do pensamento conservador, a preocupação crescente
com as chamadas “mazelas sociais” se evidencia, por exemplo, na prolife-
ração de estudos e relatórios publicados pelos organismos multilaterais,
preocupados em encontrar a melhor estratégia para “atacar a pobreza” e
minimizar os crescentes danos causados ao meio ambiente, respeitando
o status quo. Como ressalta Medeiros (2007, p. 179), “não seria exagero,
de fato, retratar a circulação de estudos econômicos do ‘bem-estar’ social
entre instituições e autores assumidamente conservadores no último quar-
to de século como uma febre compulsiva, uma verdadeira fixação com o
altruísmo”.

98
uma nova configuração [...] envolve um processo de mudança
(nova configuração) e de continuidade (capitalismo)”. Mais do
que isso, a “dialética complexa, de mudança e reprodução, pela
qual os elementos centrais do capitalismo produzem mudança
e, ao mesmo tempo, reproduzem-se” baseia-se “na distinção
entre superfície e estrutura profunda no capitalismo e torna
acessível a possibilidade de um futuro para além do capital,
mesmo ao reproduzir o núcleo básico do presente e, por meio
disso, obstruir a realização do futuro”.
Em segundo lugar, a análise aqui sugerida nos permite
afirmar, mais uma vez, que estudar o desenvolvimento capi-
talista, a partir de uma perspectiva marxista, significa (1) ter
consciência da processualidade que caracteriza esse sistema,
(2) apreender as leis gerais de movimento da sociedade e (3)
conhecer as condições concretas de manifestação de tais leis.
Nesse sentido, independentemente das consequências dessas
leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestá-
veis ou adoráveis), o que importa para a análise do desenvol-
vimento em si é saber se, na passagem de um período a outro,
o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos ade-
quado à lógica interna do capital.
Dentro dessa perspectiva, portanto, podemos dizer que o
capital é tanto mais desenvolvido, quanto mais ampla a sua
atuação. Ou seja, por mais contraintuitivo que pareça, o fato
de o capital ampliar seu alcance territorial (tendência à forma-
ção do mercado mundial), penetrar nas mais distintas esferas
da vida social (como, por exemplo, as artes, esportes, relações
familiares, de afeto etc.) e atuar em um número maior de se-
tores (como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos
pelo Estado, nos quais a lucratividade é relativamente diminu-
ta e o retorno é mais demorado), imprimindo, em todos esses
casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o capital se
desenvolveu (MARX, 2011, p. 438).
Por fim, temos clareza de que essa não é a forma como as
teorias do desenvolvimento analisam o capitalismo. Em lugar
do desenvolvimento em si da sociedade, tais teorias em geral
se atêm a determinadas expressões empíricas, utilizadas como

99
critério para julgar o desenvolvimento capitalista como bom ou
ruim. No primeiro caso, de julgamento positivo, as teorias apa-
recem não raramente como apologia do capital. No segundo,
de julgamento negativo, as teorias soam como uma denúncia
sobre o caráter desumano do capital (esquecendo, por vezes,
que o capitalismo não tem sentido humano!). Como as teorias
não são inócuas, mas, ao contrário, são formas refinadas de
conceber a vida humana, formas que movem a prática social,
que têm efeitos práticos, a questão que se coloca é: como e por
que tais teorias adquiriram ou perderam legitimidade? É preci-
samente esta a pergunta que pretendemos responder ao longo
da próxima parte que compõe o presente estudo.

100
Apêndice III
Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista

Neste terceiro e último apêndice da Parte I, esperamos


acrescentar alguns elementos à análise da dinâmica do de-
senvolvimento capitalista, especialmente relacionados à sua
complexidade. Como buscamos demonstrar ao longo do capí-
tulo, o desenvolvimento capitalista é permeado por tendências
particulares que influenciam a forma concreta de manifestação
das leis gerais de movimento da sociedade. Assim, além das
determinações gerais, em si complexas e por vezes contraditó-
rias, os eventos causados por essas determinações dependem
ainda de tendências particulares, fatores institucionais, his-
tória de cada local e cada época, tradições, costumes etc. De
modo que tomar o desenvolvimento capitalista como objeto
de estudo significa, em última instância, reconhecer a comple-
xidade de sua dinâmica.
Essa complexidade, no entanto, nem sempre é reconhecida
e corretamente trabalhada, não sendo difícil encontrar aque-
les que, independentemente de orientação político-ideológica,
analisam o desenvolvimento capitalista de maneira unidimen-
sional. Ao longo da próxima parte que compõe o presente li-
vro, teremos a oportunidade de verificar como esse tipo de
equívoco está presente em grande parte das teorias do desen-
volvimento. Por ora, interessa-nos particularmente registrar o
equívoco cometido por aquelas teorias que tentam explicar a
dinâmica capitalista, seja em seus momentos de auge ou declí-
nio, exclusivamente a partir da taxa de lucro.
Não pretendemos, com isso, negar a relevância da catego-
ria. Como se sabe, a taxa de lucro é um importante indicador
de rentabilidade, revelando o grau de valorização do capital
em relação ao total antecipado, e de fato ocupa um lugar de
destaque na determinação da dinâmica capitalista, centrada
fundamentalmente na necessidade incessante de valorização
do valor. No entanto, qualquer tentativa de explicar a capaci-
dade de expansão do capital a partir de uma relação direta e
exclusiva com a taxa de lucro é necessariamente reducionista.

101
A expansão do valor depende de inúmeros fatores, dos quais
citaremos apenas alguns mais evidentes.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar, como advertido por
Marx (2002, p. 657) ainda no Livro I de O capital, que o lucro
é apenas uma fração da mais-valia e que a fragmentação da
mais-valia em lucro, juros, ganhos comerciais, aluguéis, impos-
tos etc. influencia as condições de desenvolvimento do capital.
Essa relação entre lucro e mais-valia vai depender, entre outros
fatores, da relação entre os diferentes capitalistas que exercem
diferentes funções no conjunto da produção social (represen-
tantes do capital produtivo, capital mercantil, capital usurário,
proprietários de terra etc.) e da relação desses capitalistas
com o Estado, como explorado mais sistematicamente pelo
autor ao longo do Livro III.
Em segundo lugar, também devemos recordar que, além da
taxa de lucro, importa para a dinâmica capitalista a sua massa.
Dessa forma, assim como um decréscimo na taxa de mais-valia
pode ser compensado pelo aumento na massa de mais-valia
(possibilitado por uma expansão extensiva do capital que su-
pere a lógica de acumulação intensiva), também um decrésci-
mo na taxa de lucro pode ser compensado por um acréscimo
na massa de lucro, bastando, para tanto, que o decréscimo re-
lativo da parcela variável do capital total venha acompanhado
de um acréscimo em termos absolutos (MARX, 1974, p. 219).
Em terceiro lugar, além das massas de mais-valia e lucro
produzidas por período de rotação, importa sua massa anual,
isto é, o quanto um capital é capaz de gerar de lucro nos suces-
sivos períodos de rotação em que é empregado. Esse tempo
de rotação do capital, por sua vez, depende tanto do tempo de
produção (determinado por fatores organizacionais e tecnoló-
gicos) quanto do tempo de circulação (determinado por con-
dições de oferta e demanda, pelo tamanho dos mercados, grau
de desenvolvimento dos meios de comunicação, de transporte
etc.). Assim, quanto maior a velocidade de rotação do capital,
ou seja, quanto menor o tempo entre o adiantamento do ca-
pital em forma-dinheiro e seu retorno à figura primitiva, mais
favoráveis as condições de acumulação (MARX, 2000, p. 337).

102
Por fim, além dos fatores “econômicos”, ligados fundamen-
talmente à produção e circulação, há ainda a influência de fa-
tores “extraeconômicos” sobre a acumulação de capital, pois,
como as determinações “econômicas” não existem fora do con-
texto social mais amplo, as tendências que lhes são próprias
em meio a esse contexto necessariamente são atravessadas
por determinações particulares e mesmo gerais não ligadas
ao campo econômico propriamente dito. Assim, além da in-
fluência de determinações próprias à esfera econômica sobre
as tendências e suas formas de manifestação, é preciso consi-
derar que, apesar de Marx ter centrado as atenções nos pro-
cessos de produção e circulação (abstração necessária para
estudar uma sociedade cuja dinâmica emana da economia), o
fato de a economia, no capitalismo, adquirir uma hipertrofia
não significa que não possa ser decisivamente atravessada por
determinações “extraeconômicas”.
Partindo ainda da análise da questão tal como apresentada
por Marx, é preciso deixar claro que, assim como a taxa de
lucro não figura como a única categoria na explicação da dinâ-
mica capitalista, a sua queda não deve, tampouco, ser imedia-
tamente identificada com a necessidade de crises. Como Marx
adverte diversas vezes ao longo do capítulo em que trata da
tendência à queda na taxa de lucro, esta queda decorre do de-
créscimo relativo (e não absoluto!) da parte variável do capital
em relação à parte constante. Isso significa que

o número de trabalhadores que o capital emprega, ou


seja, a massa absoluta de trabalho que mobiliza e por
conseguinte a massa absoluta de trabalho excedente
que suga, ou de mais-valia ou de lucro que produz po-
dem portanto crescer, e crescer de maneira contínua,
apesar da queda progressiva da taxa de lucro.

Não só podem, como tendem a crescer: “no regime de pro-


dução capitalista, isto é mais que uma possibilidade, é uma ne-
cessidade, se abstraímos das flutuações temporárias” (MARX,
1974, p. 219).

103
Assim, tomando como exemplo o período posterior à cri-
se dos anos 1970 e o comportamento decrescente da taxa de
lucro nas últimas três ou quatro décadas (em contraponto às
décadas posteriores à crise de 1929, marcadas pelo cresci-
mento significativo da taxa média de lucro), poderíamos ser
levados a concluir (não sem propósito) que o capitalismo vem
passando por uma longa fase de estagnação. No entanto, con-
siderando tudo o que foi dito até o momento, também temos
motivos para acreditar que, apesar da possível compressão
das taxas de lucro, as particularidades desse período (extensa-
mente analisadas ao longo do capítulo terceiro) possibilitaram
a redução significativa dos tempos de produção e circulação,
aumentando a velocidade de rotação do capital e, portanto,
a valorização anual por unidade de capital aplicado. Também
não podemos ignorar os processos de concentração e centrali-
zação do capital e o papel desempenhado pelo crédito durante
esse período.
Enfim, não pretendemos transformar esta em uma lista
interminável de particularidades ou realizar uma análise mi-
nuciosa de todas elas. Considerando os propósitos do presen-
te estudo, esperamos apenas ter chamado a atenção para a
complexidade da dinâmica capitalista, mostrando, a partir do
estudo desses casos concretos, como, além da taxa de lucro,
são inúmeros os fatores que podem influenciar o desenvolvi-
mento capitalista e que as condições específicas desse desen-
volvimento vão depender de determinações particulares, que
favorecem algumas causas em detrimento de outras.

104
Parte II
Teorias do desenvolvimento:
por uma crítica ontológica

Uma vez apresentado o sentido geral da teoria ontológica do


desenvolvimento aqui defendida, dedicamos a Parte II do pre-
sente livro à inspeção crítica daquelas formulações que, no âm-
bito da ciência econômica, buscaram dar um tratamento mais
refinado à temática: as chamadas teorias do desenvolvimento.
Ainda que, passando em revista a evolução do pensamento
econômico, seja possível encontrar incontáveis referências à
questão do desenvolvimento, tomamos como ponto de partida
as formulações produzidas nos anos 1940/1950, momento no
qual se registra o nascimento da Economia do Desenvolvimento
como uma disciplina relativamente autônoma e especificamen-
te dedicada à temática.
Como retratado anteriormente,1 esse período, que coincide
com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi marcado por uma sé-
rie de reorientações (especialmente no plano político-ideoló-
gico) e transformações significativas na configuração mundial
(em virtude das inúmeras descolonizações e revoluções), que
oferecem importante auxílio à compreensão das principais ca-
racterísticas daquele conjunto teórico. Um aspecto comumen-
te ressaltado, e recorrentemente utilizado como critério para
reunião dessas teorias em um mesmo grupo, diz respeito ao
fato de compartilharem todas uma mesma preocupação: dian-
te do reconhecimento de que os diferentes países sustentam
trajetórias históricas de crescimento distintas, as teorias do
desenvolvimento são identificadas como aquelas que se ocu-
pam de explicar a existência dessas trajetórias particulares e
sugerir possíveis soluções para os “menos favorecidos” (ou
subdesenvolvidos).
O aspecto geralmente utilizado para distinguir essas te-
orias, portanto, é a preocupação com a ausência de desen-
volvimento, ou seja, com o subdesenvolvimento – termo que,
como indica a própria etimologia da palavra, é normalmente
1
Ver Capítulo 3, Seção 1.

105
utilizado para designar uma condição de baixo grau (ou mes-
mo ausência) de desenvolvimento. Nesse período, passaram a
ser chamadas de subdesenvolvidas aquelas regiões material-
mente menos favorecidas (também conhecidas como Terceiro
Mundo), que não foram capazes de acompanhar determinado
padrão de desenvolvimento socioeconômico, atribuído aos
países capitalistas pioneiros no processo de industrialização
(também conhecidos como Primeiro Mundo).
Apesar da diversidade de teorias que marca esse período
de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento,
algumas características gerais ainda podem ser identificadas.
Em primeiro lugar, ainda que a origem do subdesenvolvimen-
to fosse explicada de maneiras distintas, o desenvolvimento
foi entendido predominantemente como sinônimo de cresci-
mento do produto (per capita), associado à crença de que o
crescimento do produto é também capaz de gerar melhores
condições de vida para a população, em geral. Em segundo lu-
gar, ainda que não tenha havido de fato um consenso em tor-
no da estratégia para a superação do subdesenvolvimento (se
capitaneada pelo Estado ou deixada ao sabor das forças do
mercado), a ênfase recaía, também de forma predominante, na
necessidade de industrialização das economias ainda agrárias
ou mercantis.
Naquele contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento
surgem como formulação científica de compreensão e admi-
nistração da dinâmica social capitalista, consolidando o ar-
gumento segundo o qual, somente através deste expediente,
seria possível promover uma convergência (ou, no mínimo,
uma aproximação) entre as trajetórias de crescimento das di-
ferentes nações (ou conjunto de nações). Como se pretende
argumentar, tratava-se de transformar o progresso presumida-
mente automático que caracteriza esta sociedade num projeto
presumidamente dirigido (pelo Estado).
Pode-se dizer que esta foi a visão dominante até meados
dos anos 1970, quando, acompanhando a crise econômica que
se espalhou pelo mundo durante essa década e a seguinte, a
pretensão de dirigir o capitalismo entrou em colapso. Além

106
disso, assiste-se durante esse período à proliferação de de-
núncias sobre a devastação do meio ambiente, resultante do
processo de industrialização e crescentes exigências de que
os benefícios do aumento da riqueza sejam apropriados e dis-
tribuídos de modo mais equitativo. Nesse contexto, portanto,
as teorias do desenvolvimento vestem uma nova roupagem,
geralmente associada à incorporação de novos critérios à de-
finição do desenvolvimento e a redefinições estratégicas. Que
se trata de novas teorias, no sentido de teorias diversas, não
resta qualquer dúvida. Mas é possível e necessário indagar se
essas teorias, a despeito de sua diversidade interna e com re-
lação ao conjunto teórico que lhes antecede, constituem, de
fato, uma novidade. Ou seja, se são novas teorias, no sentido
de delinear de fato uma nova visão de desenvolvimento (isto é,
uma imagem efetivamente diferente da sociedade em seu está-
gio “desenvolvido”).
Na tentativa de responder a essas questões, a Parte II en-
contra-se dividida em quatro capítulos. Considerando a estrei-
ta relação entre as temáticas do desenvolvimento e do cres-
cimento (especialmente no período que antecede a crise dos
anos 1970), inicia-se, no quarto capítulo, com um panorama
geral dos modelos de crescimento econômico no período pré-
1970. Para tanto, utiliza-se como ilustração as formulações pio-
neiras de Harrod e Domar, seguidas do contraponto sugerido
por Solow. O exame das teorias “clássicas” do desenvolvimen-
to, produzidas no mesmo período, encontra-se no quinto capí-
tulo, que resgata algumas formulações (especialmente aquelas
produzidas por Rosenstein-Rodan, Nurkse, Myrdal, Hirschman
e Rostow) que tratam das regiões subdesenvolvidas, em geral;
o sexto capítulo resgata, ainda, formulações que tratam espe-
cificamente do caso latino-americano (especialmente gestadas
no âmbito da Cepal). O sétimo capítulo, por fim, busca apre-
sentar as principais reorientações observadas no debate sobre
desenvolvimento no período posterior à década de 1970.
Em linhas gerais, espera-se ao longo desses capítulos reunir
elementos comuns que permitam comprovar que tais teorias
geralmente abordam a questão do desenvolvimento de forma

107
maniqueísta e positiva porque a temática do desenvolvimento é
lida como algo necessariamente bom e o subdesenvolvimento
(ou seja, a ausência de desenvolvimento) como algo necessa-
riamente ruim, clivagem esta que pressupõe a eleição ad hoc
de determinados critérios (crescimento da renda per capita,
expectativa de vida, nível de escolaridade etc.); e positiva por-
que a temática do desenvolvimento sempre se refere às con-
dições imediatamente dadas e às possibilidades que podem
se pôr (também imediatamente) a partir dessas condições (a
crítica das condições e das possibilidades não é realizada).

108
Capítulo 4
Os modelos “prototípicos” de crescimento
econômico: Harrod, Domar e Solow

Quando observamos os desenvolvimentos teóricos mais


significativos do imediato pós-guerra, salta aos olhos o grande
interesse dos cientistas em geral pela temática do crescimen-
to econômico. Isso não significa, evidentemente, que a busca
pelos determinantes do crescimento da riqueza tenha sido um
tema ausente em formulações teóricas de épocas anteriores. Se
nos voltamos, por exemplo, para o período de nascimento da
ciência econômica, observamos que os primeiros economistas
clássicos estavam particularmente preocupados em compre-
ender os principais mecanismos de funcionamento da socie-
dade emergente (capitalista), que conduziam ao nunca antes
visto crescimento da riqueza e avanço das forças produtivas
do trabalho. Foram os primeiros, mas não os únicos: passan-
do em revista a evolução da análise econômica, encontramos
inúmeras e distintas interpretações sobre os determinantes do
crescimento da riqueza (como, por exemplo, aquelas ofereci-
das por Marshall, Keynes e Schumpeter), algumas das quais
serviram posteriormente como fundamento para as teorias do
crescimento e do desenvolvimento econômico, stricto sensu.
No entanto, ainda que tenham buscado amparo em teoriza-
ções anteriores, as formulações sobre crescimento caracterís-
ticas do século XX estão mais intimamente associadas, pelos
motivos já apresentados, à necessidade de explicar por que
os diferentes países possuem trajetórias de crescimento dis-
tintas. Assim, ainda que não tenham sido formuladas com o
propósito de explicar as particularidades por detrás do baixo
crescimento do produto nos países pobres (ou subdesenvol-
vidos) – tarefa reservada para as teorias do desenvolvimento,
analisadas nos próximos capítulos –, as teorias do crescimento
também são capazes de oferecer uma resposta para a desigual-
dade de renda no plano mundial.
Em segundo lugar, não podemos deixar de notar que as teo-
rias do crescimento produzidas durante esse período ficaram

109
conhecidas pela formalização matemática, de inspiração neo-
clássica. Assim, mesmo quando buscam inspiração em fontes
diversas (isto é, seja em Keynes ou em Ricardo), os modelos de
crescimento pressupõem um modo particular de se fazer ciên-
cia, que se tornou hegemônico na ciência econômica apenas
depois da chamada “revolução marginalista”, no final do sécu-
lo XIX.
Por fim, observamos que, seguindo o mesmo critério de cien-
tificidade, os modelos de crescimento pretendem ser um “cor-
po de conhecimento sistematizado referente ao que é”, e não
um “corpo de conhecimento sistematizado relativo ao critério
do que deveria ser e referido, portanto, ao ideal como algo dis-
tinto do atual” (KEYNES, 1999, p. 22). No entanto, mesmo que
não tenham sido formulados com conteúdo explicitamente
normativo, os modelos de crescimento podem ser (e são, ge-
ralmente) utilizados como base para prescrições e formulação
de políticas econômicas.
Na tentativa de oferecer um panorama geral dos modelos de
crescimento econômico no período pré-1970, o presente capítu-
lo encontra-se dividido em três seções. Na primeira, apresenta-
mos as linhas gerais dos modelos pioneiros de Harrod e Domar,
formulados em 1939 e 1946, respectivamente. Considerando
que são ambos modelos de inspiração keynesiana, dedicamos
a segunda seção à exposição do modelo de Solow, construído
em 1956 como contraponto aos modelos anteriores e tomado
aqui como representante dos modelos de inspiração neoclássi-
ca. Por fim, encerramos o capítulo com algumas considerações
gerais sobre os modelos discutidos.
Vale destacar, desde já, que não pretendemos com isso
analisar os pormenores dos modelos em questão, discutir o
modo como o grau de sofisticação foi aumentando ao longo do
tempo, que hipóteses foram “relaxadas” ou abandonadas etc.
Considerando os objetivos do presente estudo, interessa-nos
mostrar, em primeiro lugar, como esses modelos acabam por
dar inteligibilidade científica a um dos principais elementos da
dinâmica capitalista (seu caráter inerentemente expansivo). Em
segundo lugar, pretendemos explicar também como, naquele

110
contexto histórico específico, os modelos de crescimento termi-
nam por responder a questões levantadas pela própria dinâmica
de acumulação de capital em nível global e oferecer, a despeito
da sua pretensa neutralidade, um instrumental útil à reprodução
desta dinâmica.

111
Seção 4.1 Crescimento equilibrado e instabilidade
nos modelos de Harrod e Domar

Como indicado anteriormente, com a presente seção busca-


mos apresentar as linhas gerais dos modelos de crescimento
de Harrod e Domar, cujas características centrais encontram-
-se delineadas já nos artigos de 1939 (An essay in dynamic the-
ory) e 1946 (Capital expansion, rate of growth and employment),
respectivamente, considerados precursores nesse campo.1
Além do pioneirismo, os modelos de Harrod e Domar ficaram
conhecidos pela orientação teórica explicitamente keynesiana
e pelo fato de terem chegado a conclusões semelhantes, ainda
que por caminhos diferentes e relativamente independentes,
como esperamos mostrar adiante.2
Começando com o modelo proposto por Harrod, observa-
mos que seu objetivo inicial era dar um tratamento dinâmico
a alguns conceitos básicos e ideias-chave da macroeconomia
inaugurada por Keynes. Mais especificamente, as preocupa-
ções de Harrod podem ser resumidas em três questões funda-
mentais: qual a taxa de crescimento da renda capaz de manter
a igualdade entre os planos de investimento e os planos de
poupança (condição de um equilíbrio estático) ao longo do
tempo? Este equilíbrio é necessariamente um equilíbrio a ple-
no emprego dos fatores? Existe alguma garantia de que esta
taxa de crescimento, uma vez atingida, se sustente no longo
prazo?
Para responder a essas questões, Harrod (1939, p. 14) toma
como ponto de partida três hipóteses básicas: (1) “o nível de
renda de uma comunidade é o determinante mais importante
de sua oferta de poupança”; (2) “a taxa de crescimento dessa
renda é um determinante importante da demanda por poupan-
ça”; e (3) “a demanda é igual à oferta”. Em termos formais:

1
Para a apresentação das concepções de Harrod e Domar nos valemos, além
dos textos originais, das sistematizações elaboradas por Jones (1979) e
Thirlwall (2005).
2
Em virtude das semelhanças entre os modelos, é bastante comum encon-
trar nos livros-texto de Economia a referência a um único modelo “Harrod-
-Domar”.

112
(1) S = sY
(2) I = C∆Y
(3) S=I

Onde S é a poupança; s, a propensão marginal a poupar;


Y, o nível de renda; I, o investimento; C, o incremento “de ca-
pital requerido para a produção de uma unidade de produto
adicional”.3 A partir de uma manipulação simples das equações
apresentadas, chegamos à “equação fundamental” do modelo
de Harrod (1939, p. 16 e 17), que apresenta a taxa garantida de
crescimento (warranted rate of growth) como:
s
GW =
C
Segundo o autor, a taxa garantida (GW) deve ser entendida
como “[...] a taxa de crescimento que, caso aconteça, satisfa-
rá todas as partes envolvidas, de maneira que não produzirão
nem mais nem menos do que o montante correto” (HARROD,
1939, p. 16). Em outras palavras, a taxa garantida é aquela ca-
paz de colocar os empresários “em um estado de espírito que
os levará a tomar decisões no sentido da manutenção do mes-
mo ritmo de crescimento”. No entanto, não necessariamente
será esta a taxa verdadeira de crescimento (actual rate of gro-
wth), isto é, a taxa efetivamente verificada. Utilizando o mesmo
conjunto de equações anteriormente apresentadas, Harrod de-
fine a taxa verdadeira de crescimento (GA) como:

s
GA =
Cp

Onde s é a propensão marginal a poupar; Cp, o incremen-


to do estoque de capital no período dividido pelo incremento
3
De acordo com Jones (1979, p. 58), haveria ainda no modelo de Harrod uma
hipótese sobre o comportamento da função de produção (“do tipo propor-
ções fixas”), a partir da qual o autor buscava registrar a existência de cer-
ta rigidez tecnológica limitando as possibilidades de substituição entre os
fatores de produção (capital e trabalho). Em última instância, essa rigidez
da relação capital-trabalho levaria a uma rigidez da relação capital-produto
“efetiva” (Cp), que, como veremos adiante, será um dos pontos centrais da
crítica de Solow ao modelo “Harrod-Domar”.

113
total do produto (∆K/∆Y), ou ainda, o incremento de capital
por unidade adicional de produto efetivamente produzido.
De acordo com essa formulação, portanto, só seria possí-
vel alcançar uma trajetória de crescimento equilibrado quando
a taxa verdadeira coincidisse com a taxa garantida de cresci-
mento (GA = GW).4 Como sintetizado por Jones (1979),

se o produto na verdade cresce à taxa garantida, então


o verdadeiro estoque de capital vai ser igual ao estoque
de capital desejado e uma grande gama de hipóteses so-
bre as respostas comportamentais dos empresários im-
plica que, assim sendo, eles estariam preparados para
continuar a implementar a mesma taxa de crescimento
no futuro. (JONES, 1979, p. 62 e 63)

No que tange à segunda questão, Harrod afirma que a tra-


jetória de crescimento equilibrado não necessariamente cor-
responde ao pleno emprego dos fatores de produção. Segundo
Harrod (1939, p. 30), para que isso aconteça, é preciso não só
que a taxa verdadeira iguale-se à taxa garantida, mas também
que ambas igualem-se à taxa natural de crescimento (GN), de-
finida como “a taxa máxima de crescimento permitida pelo
crescimento populacional, acumulação de capital, progresso
tecnológico e pela alocação das preferências entre trabalho
e lazer, supondo sempre a existência de algum tipo de pleno
emprego”. Portanto, a condição para que haja um crescimento
equilibrado com pleno emprego é:
GA = GW = GN
No entanto, ainda que a igualdade entre as taxas de cresci-
mento verdadeira, garantida e natural fosse possível, ela seria
pouco provável. Isso porque as variáveis que determinam as
diferentes taxas de crescimento seriam reguladas por fatores
4
Como advertido por Harrod (1939, p. 16), é preciso aqui tomar cuidado com a
utilização da palavra “equilíbrio”, pois, “ainda que cada ponto da trajetória do
produto descrita por Gw seja um ponto de equilíbrio no sentido de que os pro-
dutores, permanecendo nela, estarão satisfeitos e serão induzidos a manter
a mesma taxa de crescimento em curso, o equilíbrio é, pelas razões a serem
explicadas, altamente instável”.

114
distintos, não havendo qualquer mecanismo que garantisse
essa coincidência – se ela de fato se verificasse, seria por ques-
tões meramente casuais. De acordo com Jones (1979, p. 65),
esta conclusão, também conhecida como primeiro problema
de Harrod, pode ser entendida como “uma versão dinâmica da
alegação central keynesiana de que o equilíbrio com desem-
prego é possível numa economia capitalista”.
Dando sequência ao argumento, Harrod (1939, p. 22) bus-
ca mostrar como, além de pouco provável, o crescimento
equilibrado a pleno emprego dos fatores é altamente instável.
Isso porque desvios da trajetória de equilíbrio (dinâmico), ao
contrário de “autocorretivos”, são “autoagravantes” (conclu-
são também conhecida como segundo problema de Harrod).
De acordo com o autor, se a taxa verdadeira for menor que a
taxa garantida (GA < GW), a relação capital-produto efetiva será
maior que a requerida (Cp > C), induzindo os empresários a re-
duzir os investimentos, reduzindo ainda mais a taxa de cres-
cimento. Por outro lado, se a taxa verdadeira for maior que a
taxa garantida (GA > GW), a relação capital-produto efetiva será
menor que a requerida (Cp < C), induzindo os empresários a
aumentar os investimentos, aumentando ainda mais a taxa de
crescimento. Assim, no que tange à terceira questão, em vez
da reaproximação entre as taxas GA e GW, o que se verifica é o
crescente distanciamento entre elas.

Como indicado anteriormente, Domar também chegou a


conclusões similares àquelas encontradas por Harrod, ainda
que por caminhos ligeiramente diferentes. Tomando como
ponto de partida a afirmação de que determinada economia
estará em equilíbrio quando sua capacidade produtiva igualar-
-se à renda nacional, Domar (1946, p. 138) está particularmente
preocupado em, aplicando os princípios da análise dinâmica,
“descobrir as condições sobre as quais esse equilíbrio pode
ser mantido”, ou ainda, “a taxa de crescimento à qual a eco-
nomia deve se expandir para que se mantenha em um estado
contínuo de pleno emprego”.
Em linhas gerais, para que o nível verdadeiro da renda ou
produto (Y) e o nível máximo potencial da renda ou produto

115
(P) permaneçam em igualdade é preciso que ambos cresçam
com as mesmas taxas (∆Y e ∆P, respectivamente), definidas
pelo autor da seguinte maneira:

⎛ 1 ⎞
ΔY = ⎜ ⎟ΔI
⎝ s ⎠
ΔP = σI  
Onde s é a propensão marginal a poupar; I, o fluxo de inves-
timento; σ, a “produtividade social potencial média do inves-
timento” (que, como veremos adiante, aproxima-se, em certo
sentido, da relação capital-produto requerida (C) de Harrod).
Combinando de maneira simples as equações acima apresen-
tadas, temos que:

⎛ 1 ⎞
σI = ⎜ ⎟ΔI
⎝ s ⎠  
Ou ainda:
ΔI
= sσ
I  

Tem-se aí a “equação fundamental” do modelo de Domar.


Segundo Jones (1979, p. 74 et seq.), “se s e σ são considera-
dos constantes, a taxa de crescimento do investimento que vai
manter a renda verdadeira igual ao nível de renda máximo po-
tencial é a taxa constante proporcional sσ”. Ora, se σ (∆P/I) é o
crescimento potencial do produto por unidade de investimen-
to, enquanto C é o número de unidades de novos investimen-
tos necessários para produzir uma unidade extra de produto, σ
= 1/C, e a substituição demonstra que as equações fundamen-
tais de Harrod e Domar são formalmente iguais, considerando
também os termos propostos por Domar, ainda que seja possí-
vel, não há qualquer garantia de que os investimentos cresçam
efetivamente a essa taxa.
Em suma, os modelos de Harrod e Domar ficaram conheci-
dos (especialmente o primeiro) por descreverem uma dinâmica

116
tumultuada de crescimento econômico. Elaborados sob a at-
mosfera de duas guerras entremeadas por uma grande depres-
são, suas conclusões mostravam-se razoavelmente compatí-
veis com as próprias evidências do período. Por outro lado, as
experiências bem-sucedidas de crescimento econômico que
teriam lugar nas décadas posteriores seriam igualmente utili-
zadas por parte dos críticos como prova da incompatibilidade
entre o modelo Harrod-Domar e os “fatos”.5
Assim, como geralmente observado nas disputas teóricas
internas à ciência econômica, o critério de adequação empí-
rica foi determinante na reorientação dos modelos de cresci-
mento econômico. Construídos como contraponto direto aos
trabalhos de Harrod e Domar, os principais desenvolvimentos
teóricos posteriores caminharam justamente no sentido de
demonstrar que o crescimento econômico estável com pleno
emprego era não apenas possível, mas também provável.
No campo keynesiano, os esforços constituídos especial-
mente através dos trabalhos de Robinson, Kaldor, Pasinetti,
entre outros, concentraram-se na análise dos fatores deter-
minantes da formação de poupança, do ponto de vista da di-
nâmica econômica. Sugeria-se que, por um lado, a poupança
dependia mais dos lucros que dos salários e que, por outro,
os lucros variavam na mesma direção da renda nacional (cres-
ciam em período de expansão econômica e decresciam duran-
te as recessões). O resultado era que se, por exemplo, a taxa
de crescimento fosse superior à garantida, a própria expansão,
à medida que permitisse lucros maiores, favoreceria a eleva-
ção da taxa de poupança e mudaria a própria taxa garantida
de crescimento, aproximando novamente as duas – o inverso
ocorrendo caso a taxa natural se encontrasse aquém da taxa
garantida (THIRLWALL, 2005, p. 26 e 27).
Alternativamente, no campo neoclássico, um dos princi-
pais problemas apontados pelos críticos foi a já mencionada

5
De acordo com Jones, esse tipo de crítica poderia ser rebatido pela utili-
zação do seguinte argumento: “os problemas de Harrod não emergiram no
período do pós-guerra por causa da aplicação sistemática das políticas key-
nesianas de estabilização econômica” (JONES, 1979, p. 79).

117
hipótese de uma relação capital-produto constante (que indi-
caria a impossibilidade de substituir os fatores de produção,
capital e trabalho). De acordo com este argumento, levantado
inicialmente por Solow e Swan, a hipótese das “proporções fi-
xas” seria não apenas incompatível com um modelo que pre-
tende realizar análises de longo prazo, como também seria fa-
tor determinante na conclusão a respeito da instabilidade do
crescimento. Portanto, como pretendemos mostrar na seção
seguinte, é tomando como ponto de partida a flexibilização des-
sa hipótese que os modelos neoclássicos pretendem demons-
trar a existência de estabilidade no crescimento econômico.

Seção 4.2 A estabilidade do crescimento


no modelo de Solow

Para tratar dos desenvolvimentos teóricos no campo neo-


clássico, tomamos como referência a versão mais simples do
modelo de Solow, apresentada em 1956 no artigo A contribu-
tion to the theory of economic growth.6 Como indicamos ao final
da seção anterior, este modelo toma como ponto de partida
uma crítica ao modelo Harrod-Domar, focada principalmente
na hipótese das “proporções fixas”. Mesmo deixando de lado
a discussão a respeito da correção ou incorreção desta hipó-
tese – sob a justificativa de que “toda teoria depende de hi-
póteses que não são totalmente verdadeiras” –, Solow (1956,
p. 65 et seq.) acredita que o modelo em questão também não
está de acordo com a “arte de bem teorizar” (entendida por
ele como a arte de “fazer as inevitáveis hipóteses simplifica-
doras de tal maneira que os resultados finais não sejam muito
sensíveis”). Segundo o autor, “a oposição fundamental entre as
taxas garantida e natural de crescimento deriva da hipótese
crucial de que a produção acontece sob condições de propor-
ções fixas”, de tal modo que, “se essa hipótese é abandonada,

6
No intuito de facilitar a apresentação deste modelo, utilizamos também as
sínteses realizadas por Jones (1979) e Jones (2000).

118
a noção de ‘fio da navalha’ de crescimento instável parece ter
o mesmo destino”.7

Assim, tratando do mesmo conjunto de problemas levanta-


dos pelos modelos anteriores (a busca da condição de equilí-
brio dinâmico e dos mecanismos que conduziriam a economia
a tal estado), Solow (1956) pretende formular um “modelo de
crescimento de longo prazo que aceita todas as hipóteses de
Harrod-Domar, exceto aquela de proporções fixas”. Para tanto,
o modelo é construído a partir de duas equações fundamen-
tais: (1) uma função de produção, que apresenta os diferentes
níveis de produto compatíveis com diferentes combinações
dos fatores de produção (capital e trabalho) e (2) uma equação
que descreve a dinâmica da acumulação de capital, determi-
nada pelo investimento bruto e pelo montante da depreciação
ocorrido durante o processo produtivo. Em termos formais:

(1) Y = F ( K , L) = K α L1−α
(2) •
K = sY − dK
Onde Y é a renda; K, o capital; L, o trabalho; α é qualquer

número entre 0 e 1; K é a variação no estoque de capital; s,
a propensão marginal a poupar; d, a taxa de depreciação do
capital. Na primeira equação, um α maior ou menor nos diz se
a tecnologia utilizada é mais ou menos intensiva em capital. Na
segunda equação, observamos que, quanto maior o nível de
investimento e quanto menor a depreciação, maior a taxa de
variação do capital.
Como os fatos que o modelo de Solow busca explicar en-
volvem também o produto por trabalhador ou o produto per

7
A noção de “fio da navalha”, utilizada por Solow (1956, p. 65) para descrever
“a conclusão característica e poderosa da linha de pensamento Harrod-Do-
mar”, foi explicitamente rejeitada por Harrod (1973, p. 33; 32) anos depois.
Segundo o autor, esta nomenclatura “soa profundamente irrealista e, mes-
mo, um tanto ridícula”, sendo mais apropriada a comparação do sistema
econômico com “uma bola sobre uma declividade gramada. É necessário
um chute forte para movê-la. Mas, uma vez movida, ela pode ir bem mais
longe – especialmente se a encosta é abrupta – do que um chute inicial de
igual força a faria ir sobre um campo plano”.

119
capita (y = Y/L), podemos dividir ambos os lados das equações
(1) e (2) por L e obter os seguintes resultados:
(3) y = kα
(4) •
k = sy − (n + d )k
Onde n representa a taxa de crescimento da população
(considerada, por hipótese, igual à taxa de crescimento da for-
ça de trabalho), que também passa a atuar como fator redutor
da taxa de variação do estoque de capital.
Uma vez apresentadas as “equações fundamentais” do
modelo, Solow afirma que uma economia qualquer estará em
equilíbrio quando o investimento per capita for do tamanho ne-
cessário para manter constante o montante de capital por tra-
balhador, compensando os efeitos negativos da depreciação e
do crescimento da força de trabalho – situação na qual a taxa
de crescimento do capital per capita iguala-se a zero. Assim,
combinando as equações (3) e (4), e supondo a condição de
equilíbrio, temos que:

(5) 1
* � s �1�a
k =� ÷
�n + d �

Substituindo (5) na função de produção por trabalhador


(3), chegamos, finalmente, ao produto por trabalhador na situ-
ação de equilíbrio, y*:

(6) a
* � s �1�a
y =� ÷
�n + d �

Assim construído, o modelo conduz à conclusão de que


o produto per capita no equilíbrio de longo prazo depende
apenas das variáveis s, n e d e do parâmetro α. Esta situação
de equilíbrio, na qual o montante de capital por trabalhador
permanece constante, será chamada por Solow de estado

120
estacionário.8 A Figura 1, baseada em Solow (1956, p. 70), sin-
tetiza as conclusões até aqui apresentadas. Sendo as curvas
expressões dos dois termos da equação (4), o ponto (y*, k*) de-
nota a situação de equilíbrio, que anula a taxa de crescimento
do capital per capita.

Figura 1 - Gráfico de Solow  


Uma vez definida a condição de equilíbrio, Solow busca de-
monstrar a existência de mecanismos geradores de uma ten-
dência ao crescimento equilibrado. Analisando graficamente,
fica fácil observar que em qualquer ponto à esquerda de k* o
montante de investimento por trabalhador (representado pela
curva sy) supera o decréscimo de capital por trabalhador ad-
vindo da depreciação e do crescimento populacional (repre-
sentado pela curva (n+d)k). Essa situação implicaria, portanto,
o crescimento do capital por trabalhador (k), até o ponto em
que k = k*. A situação seria inversa em qualquer ponto à direita
de k*, em que o investimento está aquém do necessário para
compensar o decréscimo de capital, determinando a redução
de k novamente até o ponto k*. Em suma, quaisquer que sejam
os valores iniciais das variáveis básicas do modelo, a econo-
mia sempre se move em direção ao estado estacionário – único
ponto capaz de manter a estabilidade do crescimento.

8
Vale enfatizar: a situação descrita como estado estacionário não implica a
inexistência de crescimento econômico. Implica, sim, que o produto cresça
à mesma taxa que a população, garantindo uma relação “produto/trabalho”
estável.

121
Seção 4.3 Considerações finais

A partir da inspeção dos modelos de Harrod, Domar e


Solow, buscamos com as seções anteriores apresentar os prin-
cipais elementos constitutivos dos modelos de crescimento
econômico formulados no período pré-1970. Este exercício faz-
-se necessário, pois, apesar das diferenças nada desprezíveis
existentes entre os modelos de crescimento aqui apresentados
e as teorias do desenvolvimento discutidas nos três próximos
capítulos, essas formulações têm em comum o fato de serem
dirigidas à compreensão dos fatores determinantes da dispa-
ridade de renda entre os diferentes países. Uma vez que, du-
rante o período pré-1970, o desenvolvimento das nações foi
entendido, predominantemente, como sinônimo de crescimen-
to da renda (per capita), os modelos de crescimento podem
ser enquadrados no conjunto mais amplo de formulações que,
no âmbito da ciência econômica, buscaram dar tratamento
à temática do desenvolvimento naquele contexto histórico
específico.
Considerando ainda que este consiste no primeiro dos três
capítulos destinados à inspeção crítica das concepções sobre
o desenvolvimento dominantes no período pré-1970, talvez
seja prudente chamar a atenção, mais uma vez, para o tipo de
crítica que pretendemos realizar aqui. Dados os diferentes ru-
mos possíveis de uma análise crítica e o conteúdo das formula-
ções apresentadas, o leitor talvez seja induzido, por exemplo,
a acreditar que temos a pretensão de partir para uma discus-
são sobre o caráter restritivo das hipóteses utilizadas como
fundamento dos modelos, ou ainda, sobre o tipo de método
por eles empregado no estudo das relações econômicas.
Ainda que a importância de considerações desse tipo não
esteja sendo colocada em questionamento, não é esse o ca-
minho que buscamos trilhar. Partindo da concepção de que a
autêntica crítica científica deve dirigir-se não apenas às ideias
em si, mas também às formas de existência que tornam aque-
las ideias correntes e necessárias, interessa-nos aqui fornecer
elementos que permitam explicar por que, apesar de todos os
problemas relacionados à descrição da dinâmica de funciona-
mento da economia sugerida pelos modelos de crescimento,
aquelas são concepções atrativas, de ampla circulação e acei-
tação. Para tanto, faz-se imperativo olhar não apenas para as
formulações teóricas em si, mas também para a relação dessas
teorias com o modo de produção capitalista, em geral, e com o
contexto histórico em que são produzidas, em particular.
Falando mais diretamente sobre os modelos de crescimen-
to, vimos nas seções anteriores que um dos seus principais
objetivos era explicar, com recurso à lógica formal ou mate-
mática, os fatores determinantes do crescimento da riqueza
(medida pelo crescimento do produto ou produto per capita).
Isso é, indubitavelmente, apropriado (útil até) à descrição de
um modo de produção que possui como determinante cen-
tral o impulso ao aumento da riqueza (ou seja, que tem o não
crescimento como um problema), riqueza esta homogeneizada
em termos de valor (pressuposto fundamental que torna pos-
sível o tratamento exclusivamente quantitativo das relações
econômicas).
Em que pese essa nítida “adequação empírica”, a aceitação
automática do crescimento, como critério central ao juízo das
condições socioeconômicas dos países e regiões, deixa de lado
uma questão fundamental, levantada por críticos de diversos
matizes teóricos: qual o sentido humano de tal crescimento?
Como veremos no último capítulo, a partir da crise dos anos
1970 e do reconhecimento de problemas associados ao padrão
de crescimento/desenvolvimento defendido ao longo das dé-
cadas anteriores, questionamentos desse tipo tornaram-se
ainda mais frequentes, da esquerda à direita. E mesmo quan-
do levantado no campo conservador – como, por exemplo, no
trabalho de Amartya Sen (2000), Desenvolvimento como liber-
dade, tal questionamento tem o mérito de despertar a atenção
para a possibilidade de uma existência social na qual normali-
dade ou crises econômicas não sejam sinônimo de aumento ou
diminuição do produto.
Quando observamos os modelos de Harrod-Domar e Solow
em conjunto, no entanto, percebemos que ambos reduzem a

123
condição da economia (e, por seu intermédio, da sociedade)
ao crescimento do produto; ambos concebem o crescimento
como dependente da poupança; ambos associam o crescimen-
to do produto ao crescimento populacional (numa reedição
da lógica de Malthus e Ricardo), entre outras semelhanças. As
principais diferenças entre estas formulações residem basica-
mente nas conclusões sobre o caráter estável ou não do cresci-
mento e sobre a possibilidade de que a economia equilibre-se
ou não em condições de pleno emprego.
Em termos mais amplos, essa distinção pode ser entendida
como resultado da filiação a uma de duas posições: a posição
liberal clássica, que considera que o mercado é capaz de atin-
gir, por si mesmo, uma situação econômica não apenas orde-
nada como produtiva, e a posição identificada com a crítica de
Keynes, que nega esta possibilidade e reclama uma participa-
ção mais ativa do Estado na vida econômica. O discurso oscila,
então, entre a defesa, em geral implícita, do capitalismo liberal
e a defesa, em geral aberta, do capitalismo “regulado”. Livre
ou “regulado”, é sempre o capitalismo que se projeta para o
futuro. Veremos nos capítulos seguintes como as teorias do
desenvolvimento reeditam, de algum modo, esse debate pen-
dular entre configurações diversas da mesma formação social.

124
Capítulo 5
Teorias clássicas do desenvolvimento (I):
estratégias de industrialização
para as regiões subdesenvolvidas, em geral

Realizada a análise crítica dos principais modelos de cres-


cimento, passamos agora ao estudo das teorias clássicas do
desenvolvimento, produzidas no período imediatamente poste-
rior à Segunda Guerra Mundial. Como indicado anteriormente,
esse período marca o nascimento de um campo relativamente
autônomo dentro da ciência econômica, também conhecido
como Economia do Desenvolvimento, que, diferentemente dos
modelos de crescimento, tem por objetivo central explicar os
determinantes do subdesenvolvimento e apontar saídas para
esta condição. Para além desse aspecto geral, algumas caracte-
rísticas particulares podem ainda ser identificadas nesse perío-
do de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento.
Como pretendemos deixar claro ao longo do presente ca-
pítulo, em primeiro lugar, o desenvolvimento é tomado como
sinônimo de aumento da riqueza, medida pela renda per capita
(acompanhado, em alguns casos, da noção de que este aumen-
to de riqueza deve ser capaz de gerar melhorias nas condições
de vida da população). Consequentemente, por contraposição,
o subdesenvolvimento é associado à baixa renda per capita (e,
por vezes, à incapacidade de garantir condições dignas de vida
para a população). Além disso, o que se observa nesse período
é a predominância da ideia de que o desenvolvimento deve ser
promovido através da industrialização. Assim, utilizando uma
combinação de argumentos teóricos (de inspiração clássica,
keynesiana e/ou schumpeteriana) e históricos (amparados nas
experiências bem-sucedidas de industrialização da Europa oci-
dental, Estados Unidos e União Soviética), essas teorias pro-
curam defender e justificar a necessidade da industrialização.
Por outro lado, as principais divergências entre as teorias
clássicas do desenvolvimento giram em torno de dois pon-
tos fundamentais. O primeiro diz respeito aos determinantes
do subdesenvolvimento e, portanto, à tentativa de explicar a
baixa renda per capita – nesse caso, veremos que, enquanto
algumas teorias apontam a baixa poupança e a ausência de re-
cursos como determinantes em última instância do subdesen-
volvimento, outras acreditam que se trata apenas de uma má
utilização dos recursos disponíveis. O segundo ponto refere-se
à estratégia de industrialização defendida pelas diferentes te-
orias (mais ou menos intensiva em capital, com ou sem inter-
venção do Estado, equilibrada ou desequilibrada etc.).
Para dar conta de todos esses aspectos, o capítulo encon-
tra-se divido em quatro seções. Na primeira, tratamos de al-
gumas teorias que explicam o subdesenvolvimento a partir
da inexistência de recursos e/ou defendem uma estratégia de
crescimento equilibrado.1 Na segunda, serão analisadas as
críticas à noção de crescimento equilibrado realizadas por
Gunnar Myrdal e Albert Hirschman. A terceira seção será de-
dicada exclusivamente ao trabalho de Walt Rostow, que, como
pretendemos argumentar, melhor simboliza toda essa geração
de estudos. Por fim, dedicamos a seção de encerramento do ca-
pítulo ao apontamento de algumas conclusões críticas que po-
dem ser extraídas da análise das teorias do desenvolvimento.

Seção 5.1 Círculo vicioso da pobreza


e estratégia de crescimento equilibrado

Como indicado anteriormente, a caracterização do desen-


volvimento como crescimento da riqueza (medida pelo produ-
to per capita) e a noção de que esse objetivo só pode ser alcan-
çado por meio da industrialização são algumas das principais
marcas das teorias do desenvolvimento produzidas no perío-
do anterior à crise dos anos 1970. Entre as contribuições mais
significativas desse período, destaca-se Problemas de industria-
lização da Europa do leste e do sudeste, trabalho de Rosenstein-
Rodan, publicado em 1943. Compartilhando a definição de

1
A seleção dos textos a serem analisados nesta primeira seção tomou como
base a famosa coletânea de artigos organizada por Agarwala e Singh (2010),
A economia do subdesenvolvimento, publicada pela primeira vez em 1958 e
que se tornou referência mundial para o debate sobre desenvolvimento.

126
desenvolvimento acima apresentada (com ênfase, inclusive,
no debate sobre a convergência da riqueza mundial), Rodan
afirma que, além de interessar às “áreas deprimidas” em geral,
a industrialização desses países é conveniente para o mundo
como um todo, visto ser o único “meio para que se alcance
uma distribuição de renda mais equitativa entre diferentes
partes do mundo pela elevação da renda nas regiões deprimi-
das a uma taxa mais alta que nas regiões ricas” (ROSENSTEIN-
RODAN, 2010, p. 265 et seq.).
Além do pioneirismo e do fato de ser um dos representantes
fiéis da perspectiva dominante do período, resgatamos aqui o
trabalho de Rodan por diversos outros motivos. Em primeiro
lugar, Rodan inaugura uma série de teorias que, partindo do
arcabouço teórico clássico ou keynesiano, irão caracterizar o
subdesenvolvimento (e explicar as baixas taxas de crescimen-
to nessas regiões) a partir do “excesso de população agrária”
e consequente subemprego rural. Diante dessa constatação,2
Rodan apresenta duas soluções alternativas: (1) levar a mão de
obra excedente até o capital através da emigração ou (2) levar
o capital, por meio da industrialização, até onde há excesso de
trabalho. Considerando que ambas são equivalentes “do ponto
de vista da maximização da renda mundial” e que a primeira é
difícil de realizar-se em grande escala, “em sua maior parte o
problema terá de ser resolvido pela industrialização”.
Em segundo lugar, no que diz respeito à estratégia de indus-
trialização, é bastante emblemático que Rodan tenha escrito,
ainda durante a Segunda Guerra Mundial, especificamente so-
bre aqueles países situados entre a União Soviética e a Europa
Ocidental e que posteriormente passariam a compor o conjun-
to de “países socialistas” (também conhecidos como Segundo
Mundo). Nesse contexto, Rodan foi um dos autores a defender

2
Constatação empírica, tomada como hipótese inicial do trabalho. Nas pa-
lavras do autor: “As hipóteses no caso em estudo são as seguintes: existe
um ‘excesso de população agrária’ na Europa do Leste e do Sudeste, que
corresponde de 20 a 25 milhões de habitantes para uma população total
de 100 a 110 milhões; ou seja, cerca de 25% da população se encontra total
ou parcialmente desempregada (‘desemprego disfarçado’)” (ROSENSTEIN-
-RODAN, 2010, p. 265).

127
explicitamente uma estratégia de desenvolvimento que se
contrapõe diretamente ao chamado “modelo russo” (ou “au-
tárquico”) de industrialização.3 De acordo com o autor, essa
modalidade de industrialização caracteriza-se pela busca da
autossuficiência (por meio da integração vertical), envolven-
do uma série de sacrifícios que poderiam ser evitados caso os
países optassem por uma industrialização “ajustada” à econo-
mia mundial. Nesse caso, os países deveriam seguir os “sólidos
princípios da divisão internacional do trabalho [que] postulam
técnicas intensivas de mão-de-obra – isto é, indústrias leves
para as regiões subdesenvolvidas”, suprindo o restante das
necessidades (especialmente daqueles bens produzidos por
“indústrias pesadas”) através da importação. Segundo o autor,
esta estratégia de industrialização “preservaria as vantagens
da divisão internacional do trabalho, produzindo, portanto,
mais riqueza para todos ao final do processo”.
Assim, para Rodan, a superação do subemprego rural (ca-
racterístico das economias subdesenvolvidas) deve passar
pela adoção de uma estratégia de industrialização integrada,
que insira a região na economia mundial, preservando as van-
tagens da divisão internacional do trabalho. Além do respeito
aos desígnios das vantagens comparativas, o sucesso da estra-
tégia depende, em primeiro lugar, do treinamento e habilitação
da mão de obra (que permita transformar camponeses em tra-
balhadores industriais), e, em segundo lugar, do planejamento
em grande escala que possibilite a criação de um sistema de
indústrias complementares (especialmente aquelas que pro-
duzem a maioria dos bens adquiridos com salários).
Essa estratégia de industrialização, posteriormente conhe-
cida como estratégia de crescimento equilibrado, teria ainda
outra grande vantagem: “a criação planejada de um sistema
de indústrias complementares desse tipo reduziria o risco de
insuficiência de procura e, visto que o risco pode ser conside-
rado um custo, reduziria os custos. É, nesse sentido, um caso

3
Veremos adiante o exemplo mais emblemático e explícito: Rostow e seu ma-
nifesto não-comunista.

128
especial de ‘economias externas’”.4 Considerando que os tra-
balhadores não gastam seus salários em um único produto, o
emprego de toda a mão de obra excedente em uma única in-
dústria produziria um desequilíbrio nesse setor e nos demais
(excesso de oferta no primeiro e de demanda nos demais).
Tais desequilíbrios poderiam, eventualmente, ser corrigi-
dos pelo mecanismo de mercado (por meio do movimento de
preços, como previsto pela Lei de Say), mas poderiam ser evi-
tados através do investimento maciço em diversas indústrias
complementares, de modo coordenado.5 Essa coordenação fa-
ria com que o aumento da oferta em diversas indústrias crias-
se sua própria demanda, promovendo “uma expansão da pro-
dução mundial com um mínimo de perturbação do mercado in-
ternacional”. Como, para Rodan, nos países subdesenvolvidos
é mais fácil prever a demanda da população, o planejamento
em larga escala também seria facilitado.
Uma abordagem bastante similar, e, em grande medida, ins-
pirada no antecessor, também pode ser vista nos trabalhos de
Ragnar Nurkse, que apresenta a formação de capital como o
fator capaz de diferenciar países desenvolvidos e subdesen-
volvidos.6 Segundo o autor, esta formação de capital estaria
4
Rosenstein-Rodan (2010, p. 269 et seq.) cita ainda dois outros tipos de “eco-
nomias externas” que podem surgir a partir da criação de um sistema de
indústrias complementares: (1) as economias externas à firma e internas à
indústria e (2) as economias externas à indústria. Por esse motivo, o autor
ficou conhecido como um dos primeiros a utilizar a divergência entre “re-
torno privado” e “retorno social” dos investimentos como justificativa para
a coordenação de projetos integrados de industrialização. Mais adiante, no
entanto, veremos como o mesmo argumento será utilizado para defender a
estratégia de crescimento desequilibrado. Uma síntese do debate pode ain-
da ser vista nos textos de Fleming (As economias externas e a doutrina do
crescimento equilibrado) e Scitovsky (Dois conceitos de economias externas),
também presentes na coletânea de Agarwala e Singh (2010).
5
Como aparece na sistematização realizada por Scitovsky (2010, p. 324): “Daí
a ideia de que falta um planejamento centralizado do investimento ou al-
gum sistema de comunicação adicional que suplemente o sistema de preços
como dispositivo de sinalização.”
6
Ou seja, “as chamadas ‘áreas subdesenvolvidas’, em confronto com as avan-
çadas, são aquelas que se encontram subequiparadas de capital em relação
à sua população e recursos naturais” (NURKSE, 1957, p. 3 et seq.). Vale notar
que a palavra capital comparece na frase, e na concepção do autor em geral,
no sentido limitado (e mistificador, como demonstrou Marx) de máquinas,
equipamentos e materiais indispensáveis à produção.

129
sujeita à ação de forças circulares (tanto do lado da oferta,
quanto do lado da demanda) que manteriam as economias em
um “estado de equilíbrio de subdesenvolvimento”.7 Este meca-
nismo, também conhecido como círculo vicioso da pobreza, foi
exemplificado por Nurkse da seguinte maneira:

Um homem pobre não tem o bastante para comer; sen-


do subalimentado, sua saúde é fraca; sendo fisicamente
fraco, sua capacidade de trabalho é baixa, o que significa
que ele é pobre, o que, por sua vez, quer dizer que não
tem o bastante para comer; e assim por diante. Tal si-
tuação, transposta para o plano mais largo de um país,
pode ser resumida nesta proposição simplória: um país é
pobre porque é pobre. (NURKSE, 1957, p. 7)

Deixando de lado a excentricidade desse raciocínio ímpar


(que, aplicado à medicina, resultaria no diagnóstico de que um
homem doente tem uma doença ou na constatação de que um
morto não está vivo!), o que efetivamente importa são as re-
lações de causalidade aludidas na explicação da escassez de
capital. No caso de um país, Nurkse observa que, por um lado,
há baixa oferta de capital, em virtude da “pequena capacidade
de poupar, resultante do baixo nível da renda real”. Por outro,
a baixa demanda por capital, reflexo do baixo estímulo para
investir, seria derivada “do pequeno poder de compra da po-
pulação, consequência de reduzida renda real”. Em síntese, “o
ponto em comum em ambos os círculos é o baixo nível de ren-
da real” (NURKSE, 1957, p. 8).
Ainda assim, para o autor, nem tudo estaria perdido: “a cons-
telação circular do sistema estacionário é bastante real, mas,
felizmente, o círculo não é intransponível” (NURKSE, 1957, p.
14). Exatamente como na formulação de Rodan, o rompimento
com o círculo vicioso da pobreza dependeria de uma estratégia

7
Em relação aos fundamentos teóricos dessa formulação, o próprio Nurkse
(1957, p. 14) faz questão de enfatizar que o estado de equilíbrio de subde-
senvolvimento seria “um tanto análogo ao ‘equilíbrio de subemprego’, cuja
possibilidade nos países industrialmente avançados nos foi apontada por
Keynes”.

130
de crescimento equilibrado, também conhecida como “grande
impulso” (ou big push), possível apenas através “de uma aplica-
ção de capital mais ou menos sincronizada numa ampla gama
de indústrias diferentes” (NURKSE, 2010, p. 278). O resultado
desse investimento “sincronizado” também seria mais ou me-
nos o mesmo:

[...] ampliação geral do mercado e, portanto, uma saída


para o impasse. Os indivíduos que trabalham com mais
e melhores equipamentos em certo número de projetos
complementares se tornam clientes mútuos. As indús-
trias que abastecem o consumo das massas são em sua
maioria complementares, no sentido de que ao mes-
mo tempo proporcionam um mercado e se sustentam
mutuamente. Essa complementação básica resulta da
diversidade dos desejos humanos. No caso do “cresci-
mento equilibrado”, baseia-se, em última análise, na ne-
cessidade de uma “dieta equilibrada”. (NURKSE, 2010,
p. 278 et seq.).

Ainda que semelhante na proposta, Nurkse, por um lado,


acredita que a defesa do crescimento equilibrado, ao implicar
diversificação da economia doméstica, rompe em parte com
a teoria das vantagens comparativas. Por outro, este autor é
bem menos definitivo a respeito dos meios para atingir o de-
senvolvimento (se obtido através da participação do Estado
ou deixado ao sabor das forças do mercado, ou seja, dos em-
presários). Em suas palavras: “seja o crescimento equilibrado
sustentado por planejamento governamental ou levado a cabo
espontaneamente pela iniciativa privada trata-se, no fim das
contas, de uma questão de método”. Mais que isso, segundo
Nurkse (1957, p. 20), “O economista, como técnico, não tem
imperativos categóricos a levantar sobre o assunto”.
Apesar da repercussão que tiveram esses primeiros traba-
lhos, pode-se dizer que a ênfase no subemprego rural como
característica principal do subdesenvolvimento encontrou sua
expressão mais efetiva no trabalho de Arthur Lewis, intitulado

131
Desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-
-obra, de 1954.8 Diferentemente dos teóricos anteriores, no en-
tanto, Lewis é mais explícito ao afirmar que, enquanto uma te-
oria inspirada no arcabouço teórico keynesiano prevê a possi-
bilidade de equilíbrio com subemprego dos diversos fatores de
produção, em uma situação de subdesenvolvimento somente a
mão de obra é excedente.9 Se o contingente populacional não
oferece, portanto, nenhuma restrição objetiva ao crescimento,
o “problema do desenvolvimento econômico” estaria na “escas-
sez de capital”.
Tomando como ponto de partida a análise de uma “econo-
mia fechada”, Lewis procura demonstrar como o desenvolvi-
mento, na medida em que está sujeito à quantidade de capital
disponível, depende, em última instância, da quantidade de
poupança (aceitando, em grande medida, um dos postulados
que sustentam a Lei de Say, ou seja, a ideia de que a poupança
deve preceder o investimento). Nesse sentido, Lewis define o
“problema central da teoria do desenvolvimento econômico”
da seguinte maneira:

O problema central da teoria do desenvolvimento eco-


nômico é a compreensão do processo pelo qual uma co-
munidade que anteriormente não poupava nem investia
mais que 4 ou 5% de sua renda nacional, ou ainda menos,
transforma-se numa economia em que a poupança volun-
tária se situa por volta de 12 ou 15% da renda nacional,

8
Assim como outros teóricos do desenvolvimento, Lewis viria a receber (25
anos após essa publicação) o prêmio Nobel de Economia, “pela pesquisa
pioneira sobre desenvolvimento econômico com particular atenção
aos problemas dos países em desenvolvimento”. Disponível em: <www.
nobelprize.org>.
9
Por esse motivo, como o próprio Lewis faz questão de enfatizar nas páginas
iniciais de seu artigo, a perspectiva por ele defendida estaria mais próxima
da teoria clássica, utilizada explicitamente como fundamento da sua for-
mulação. Nas palavras do autor: “Este artigo foi escrito segundo a tradição
clássica, aceitando suas suposições e formulando suas questões” (LEWIS,
2010, p. 413 et seq.). E mais adiante: “O propósito desse artigo é, portanto,
descobrir o que se pode aproveitar do marco clássico para resolver os pro-
blemas da distribuição, acumulação e crescimento, em primeiro lugar numa
economia fechada e, depois, numa economia aberta.”

132
ou mais. Este é o problema central porque a questão
principal do desenvolvimento econômico é a rápida
acumulação de capital (incluindo aí os conhecimentos e
especializações). Nenhuma revolução “industrial” pode
ser explicada (como pretendiam alguns historiadores
econômicos) enquanto não se puder explicar por que
aumentou relativamente a poupança em relação à renda
nacional. (LEWIS, 2010, p. 428).

Para que a poupança aumente, no entanto, não basta haver


um aumento da renda nacional per capita (p. 429). Isso porque,
como se sabe, pouca ou nenhuma poupança é feita pelos tra-
balhadores assalariados, sendo esta tarefa exclusiva dos capi-
talistas (e proprietários, em geral), remunerados por lucros e
rendas e retratados como verdadeiros heróis sociais. Sem muita
cerimônia, Lewis extrai desse ponto a seguinte conclusão: para
que o problema do desenvolvimento seja resolvido, é preciso
haver uma alteração na distribuição da renda em benefício da
classe poupadora (isto é, da classe capitalista), e isso é tanto
mais possível quanto menores os salários (ou seja, quanto mais
os níveis salariais de subsistência se estenderem para a totali-
dade do sistema).
Apresentando ainda um argumento muitíssimo similar
àquele defendido por Ricardo,10 Lewis (2010) tenta mostrar
como esse processo não pode prosseguir indefinidamente. Em
determinado momento, a demanda crescente por mão de obra
(ainda que não chegue a superar a oferta) gera uma pressão
positiva sobre os salários e uma pressão negativa sobre os lu-
cros, ou seja, “os salários começam a subir acima do nível de
subsistência e o excedente capitalista vê-se afetado de modo

10
Estamos nos referindo aqui, mais especificamente, à noção ricardiana de es-
tado estacionário, descrita pelo autor como a situação na qual deixa de haver
incentivo a novos investimentos. No caso de Ricardo (1996), no entanto, essa
tendência está associada a duas premissas básicas: (1) a teoria malthusiana
do crescimento populacional e (2) a ideia de que o preço dos produtos agríco-
las é regulado pelo trabalho necessário à produção nas terras menos férteis.
Assim, à medida que o crescimento populacional fosse tornando necessária a
produção em terras menos férteis, geraria um aumento no preço dos alimen-
tos com consequente aumento de salários e queda dos lucros.

133
desfavorável” (p. 448), e isso, à medida que diminui o incentivo
a novos investimentos, gera problemas para o desenvolvimen-
to da economia.
No entanto, é precisamente nesse ponto que a análise da
“economia fechada” deve, segundo Lewis (2010), ser substitu-
ída pela “economia aberta”, a partir da qual se torna possível
vislumbrar uma saída para o problema. Isso porque “os países
que atingiram a escassez de trabalho se veem cercados por
outros que têm trabalho em abundância”, e enquanto conti-
nuar a existir excedente de mão de obra disponível a salário
de subsistência, em outros países, o problema pode ser resol-
vido de duas formas diferentes: incentivando-se a imigração
ou exportando o capital. Após analisar as duas alternativas,
Lewis (2010) chega a uma conclusão similar àquela defendida
por Rosenstein-Rodan: a segunda solução (exportação de ca-
pital) é muito mais factível que a primeira, “visto que os sin-
dicatos trabalham eficientemente contra a imigração, sendo,
no entanto, muito menos eficazes no controle à exportação
de capital” (p. 449).
Antecipando possíveis críticas, Lewis se apressa em afir-
mar que esse não é o único fator que explica a exportação de
capital:

O que dá origem à exportação de capital não são, inevi-


tavelmente, os lucros descendentes dentro do país, ou
os salários em elevação, mas simplesmente o fato de
que os países estrangeiros possuem diferentes recursos
em diferentes graus de utilização, havendo, portanto,
algumas oportunidades rentáveis para o investimento
no exterior. (LEWIS, 2010, p. 452 et seq.)

No entanto, naqueles países em que existe escassez de tra-


balho, “o efeito será a redução da demanda por trabalho, im-
pedindo, assim, que os salários aumentem tanto como aumen-
tariam de outro modo”.

134
Seção 5.2 Causação circular acumulativa
e estratégia de crescimento desequilibrado

A teoria do desenvolvimento acima apresentada recebeu


inúmeras críticas, entre as quais obtiveram grande repercus-
são as oferecidas por Gunnar Myrdal (1957 – Teoria econômica
e regiões subdesenvolvidas) e Albert Hirschman (1958 – A estra-
tégia de desenvolvimento econômico). O primeiro, ganhador do
Nobel de Economia em 1974 “pela análise penetrante da inter-
dependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucio-
nais”, estava particularmente interessado em oferecer um con-
traponto à concepção de círculo vicioso da pobreza formulada
por Nurkse, criticando especialmente a ideia de equilíbrio por
detrás dessa formulação. Nesse sentido, Myrdal (1972, p. 33)
apresenta a tese da causação circular acumulativa, buscando
mostrar que, se não controlado, o processo de mudanças so-
ciais tende a provocar desequilíbrios crescentes.11
Começando com a defesa do caráter circular dos processos
sociais, o autor utiliza como ilustração um estudo seu sobre a
situação dos negros norte-americanos. Os leitores, naturalmen-
te, não devem se prender aqui à explicação superficial e mani-
queísta da condição de vida dos “negros norte-americanos”,12
mas à lógica da analogia pretendida por Myrdal:

Em sua forma mais simples, o modelo explanatório se


reduz a dois fatores: “o preconceito do branco”, que
causa a discriminação contra os negros em vários as-
pectos, e o “baixo padrão de vida da população negra”.
Esses dois fatores se relacionam mutuamente; o baixo
padrão de vida dos negros é mantido pela discrimina-
ção dos brancos, enquanto, por outro lado, a pobreza,
11
Segundo o autor, “essa ideia contém em poucas palavras o método mais ob-
jetivo de análise da mudança social, portanto, uma visão da teoria geral do
desenvolvimento e do subdesenvolvimento pela qual todos estamos esperan-
do” (MYRDAL, 1972, p. 33).
12
Como ignorar, por exemplo, o passado escravocrata dos Estados Unidos e
as escassas possibilidades de ascensão social no capitalismo, mesmo num
país conhecido por difundir ideologicamente a esperança de enriquecimen-
to como um de seus valores fundantes?

135
a ignorância, a superstição, as más condições de habi-
tação, as deficiências sanitárias, a sujeira, o mau cheiro
[sic], a indisciplina, a instabilidade das relações familia-
res e a criminalidade dos negros estimulam e alimentam
a antipatia dos brancos. (MYRDAL, 1972, p. 38).

Nesse aspecto, portanto, a “causação circular” não se di-


ferencia muito da noção de “círculo vicioso” apresentada por
Nurkse: ambas explicam, no máximo, um aspecto do proces-
so de reprodução de condições previamente causadas (caso
contrário, seria preciso imaginar que os brancos e negros en-
contram-se em disparidade de condições por sua constituição
genética, isto é, brancos teriam nascido ricos e cheirosos, e
os negros, pobres e malcheirosos). No entanto, diferentemente
do que foi defendido por Nurkse, Myrdal (1972, p. 39) afirma
que “essa ‘acomodação’ estática é inteiramente fortuita, e não
provoca, absolutamente, uma posição de equilíbrio estável”.
Isso porque,

Se qualquer um dos dois fatores se modificasse, have-


ria mudança no outro e, também, desencadearia um
processo acumulativo de interação mútua, no qual a
mudança em determinado fator seria continuamente
apoiada pela reação do outro. Assim, sucessivamente,
[...] todo o sistema se moveria na direção da mudança
primária, de maneira cada vez mais ampla. Mesmo que
o impulso original cessasse, depois de algum tempo,
ambos os fatores se teriam alterado para sempre, ou, o
que também poderia suceder, o processo de mudanças
recíprocas persistiria, sem possibilidade de neutraliza-
ção imediata. (MYRDAL, 1972, p. 39).

Assim, enquanto Nurkse oferece uma imagem circular do


funcionamento da economia, a imagem oferecida por Myrdal
estaria mais próxima de uma espiral, para cima ou para baixo,
dependendo do caráter da “mudança primária” (se positiva
ou negativa). Segundo o autor, a noção de que o processo de

136
mudança social é acumulativo e opera em ambas as direções
faz parte da própria sabedoria popular e é utilizada, ainda que
de modo implícito, por “todo homem de negócio bem sucedi-
do [...] na sua forma de resolver problemas práticos; de outro
modo não obteria êxito” (MYRDAL, 1972, p. 44).
Também no campo da política econômica, os “efeitos cumu-
lativos” deveriam ser levados em conta e poderiam ser apro-
veitados em benefício público caso houvesse um bom conhe-
cimento da relação entre as variáveis.13 Para tanto, partindo de
uma concepção particular de “ideal científico”, Myrdal (1972,
p. 42) defende que esse conhecimento deva assumir a forma
“de um conjunto de equações quantitativas interdependentes,
que descrevessem o movimento do sistema estudado sob as
várias influências em jogo, e as mudanças internas”, ainda que
uma formulação desse tipo, “completamente quantitativa e
verdadeira”, esteja além de suas pretensões.
Para dar fundamento à sua formulação, Myrdal recorre ain-
da aos estudos empíricos realizados pela Comissão Econômica
das Nações Unidas para a Europa durante a década de 1950,
que extraem das análises dos dados as seguintes conclusões:
(1) as desigualdades são maiores nos países ricos do que nos
países pobres e (2) as desigualdades tendem a se tornar me-
nores nos países ricos e maiores nos países pobres (MYRDAL,
1972, p. 61 e 62). Segundo o autor, esse fenômeno explica-se,
pois, quanto mais alto o nível de desenvolvimento de um país,
mais fortes são os “efeitos positivos” e maior a capacidade de
neutralizar os “efeitos negativos”, enquanto nos países subde-
senvolvidos observa-se o contrário. Assim, a afirmação tau-
tológica de Nurkse de que “um país é pobre porque é pobre”
teria de ser substituída pelas seguintes proposições: (1) um
país rico tende a tornar-se mais rico e (2) um país pobre tende
a tornar-se cada vez mais pobre.

13
“Quanto mais conhecermos a maneira pela qual os diferentes fatores se
inter-relacionam – os efeitos que a mudança primária de cada fator provoca-
rá em todos os outros – mais seremos capazes de estabelecer os meios de
obter a maximização dos resultados de determinado esforço político, desti-
nado a mover e alterar o sistema social” (MYRDAL, 1972, p. 43).

137
Para impedir, ainda que temporariamente, a continuidade
dessa tendência, o Estado deveria atuar através da coordena-
ção e planejamento, proteção do mercado interno e das indús-
trias nascentes etc. Além disso, os países deveriam trabalhar,
sempre que possível, para transformar seus Estados nacionais
em Estados de bem-estar social. Nas palavras do autor:

Quanto mais um Estado Nacional se transforma, efetiva-


mente, em um “Estado de Bem-Estar” – quanto mais se
aproxima de uma democracia perfeita, tendo à sua dis-
posição recursos nacionais, em tal magnitude, que seja
possível o emprego, em grande escala, de políticas igua-
litárias, como sacrifícios toleráveis pelas regiões e gru-
pos cujos padrões de vida são relativamente melhores
– tanto mais fortes serão a necessidade e a capacidade
de combater as forças cegas de mercado que tendem
a provocar desigualdades regionais. Esse fato por sua
vez impulsionará o desenvolvimento econômico e as-
sim, sucessivamente, em processo de causação circular.
(MYRDAL, 1972, p. 72).

Uma ideia semelhante pode ser encontrada no trabalho de


Hirschman (1961, p. 87 e 88), que constrói seu argumento como
contraponto direto à noção de crescimento equilibrado. Para o
autor, em primeiro lugar, essa perspectiva seria marcada por
uma espécie de esquizofrenia, visto que “combina uma atitu-
de derrotista acerca das possibilidades das economias subde-
senvolvidas com esperanças inteiramente fictícias sobre o seu
poder de criação”. Em outras palavras, “se um país estivesse
em condições de aplicar a doutrina do desenvolvimento equi-
librado”, investindo em uma grande quantidade de indústrias
novas ao mesmo tempo, “então, preliminarmente, não seria
um país subdesenvolvido”.
Em segundo lugar, a teoria do crescimento equilibrado po-
deria ser vista, na melhor das hipóteses, como um exercício de
“estática comparativa retrospectiva”, que, ao observar a exis-
tência de certo equilíbrio entre os diferentes setores em uma

138
economia desenvolvida, supõe que os setores cresceram efeti-
vamente na mesma proporção durante o período revisto. Para
o autor, ao contrário, “o desenvolvimento equilibrado, que se
revela nos dois instantes fotográficos, tirados em dois perío-
dos de tempo diferentes, representa o resultado final de uma
série de avanços desiguais de um setor, seguido pelos outros
setores que o procuram alcançar” (HIRSCHMAN, 1961, p. 102).
Assim, essa teoria não seria capaz de explicar o proces-
so através do qual as economias transitam do estado inicial
de “equilíbrio do subdesenvolvimento” ao “equilíbrio de de-
senvolvimento” nem de oferecer uma solução prática para o
problema. Como comprova a experiência (empírica), a “so-
lução simultânea” se mostraria “especialmente inaplicável
pelo fomentador de decisões, nos países subdesenvolvidos”
(HIRSCHMAN, 1961, p. 9), impraticável e antieconômica, quer
ou não o governo viesse em auxílio. Sobre esse ponto, ressalta
o autor:

A última cláusula é importante, pois a doutrina do


desenvolvimento equilibrado é geralmente invocada
como justificativa para o sentido de governo centrali-
zado e coordenador do processo de desenvolvimento.
Mas tal justificativa dificilmente convence. Uma tarefa
que o empreendimento privado ou que os valores do
mercado sejam incapazes de realizar não se torna,
ipso facto, idealmente adequada à execução pelas au-
toridades públicas. Temos de reconhecer que obras
há que simplesmente excedem a capacidade de um
grupo social, não importa a quem sejam confiadas. O
desenvolvimento equilibrado, no sentido de desenvol-
vimento simultâneo, múltiplo, parece ser uma delas.
(HIRSCHMAN, 1961, p. 90)

Na tentativa de dar fundamento a sua formulação, Hirschman


(1982, p. 11) procura, em primeiro lugar, generalizar o diagnós-
tico do subemprego como traço característico do subdesenvol-
vimento, argumentando que, ao contrário do que normalmente

139
afirmam os teóricos do desenvolvimento, “os países subdesen-
volvidos [possuem] efetivamente reservas ocultas [...] não ape-
nas de mão de obra, mas de poupanças, capacidade empresarial
e outros recursos”. Assim, se o problema não consiste na falta
de recursos, a solução não deve ser procurada na “importação”
dos recursos faltantes (seja capital, conhecimento técnico, es-
pírito empreendedor etc.): trata-se, na verdade, de “provocar e
mobilizar, com propósito desenvolvimentista, os recursos e as
aptidões, que se acham ocultos, dispersos ou mal empregados”
(HIRSCHMAN, 1961, p. 19).
Para mobilizar esses recursos de forma “eficiente”, Hirschman
(1961, p. 9; 102) defende, ao contrário de Rodan e Nurkse, uma
estratégia de crescimento desequilibrado, que determine “pon-
tos estratégicos básicos”, assinalando “prioridades de áreas ou
setores ou a modalidade de esforço de industrialização a ser
conseguido”. E, assim como sugerido por Myrdal em sua tese
da causação acumulativa, Hirschman acredita que um impulso
inicial em determinados setores tenderia a se espalhar para os
demais, produzindo “progressos adicionais”.

Seção 5.3 Rostow e o manifesto não comunista:


uma síntese do debate?

Como indicado anteriormente, reservamos a terceira seção


do presente capítulo ao tratamento da teoria do desenvolvi-
mento formulada por Rostow, especialmente em seu clássico
As etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-
-comunista, publicado em 1952. Esta opção justifica-se, em pri-
meiro lugar, pelo grande número de polêmicas suscitadas pelo
seu trabalho, não apenas entre economistas, mas também en-
tre historiadores e cientistas sociais, em geral.14 Em segundo
lugar, entendemos que, apesar das inúmeras críticas, a teoria
de Rostow não dista muito das anteriormente apresentadas:
sustentando uma mesma concepção de desenvolvimento, o

14
Parte das polêmicas foi sistematizada e respondida pelo autor no prefácio e
no apêndice (Os críticos e as evidências) incorporados à segunda edição do
livro, dez anos depois.

140
autor incorpora elementos da teoria do crescimento equili-
brado e antecipa argumentos posteriormente defendidos pe-
los teóricos do crescimento desequilibrado. Mais do que isso,
entendemos que o tratamento dado por Rostow à temática do
desenvolvimento é bastante emblemático e sintetiza a noção
de toda essa geração de trabalhos produzidos no período an-
terior à crise dos anos 1970.15
Em termos bastante sumários, Rostow (1974, p. 16 et seq.)
busca nesse trabalho oferecer uma teoria geral da história, to-
mando como ponto de partida a observação e generalização
de diversos casos e experiências nacionais de industrializa-
ção. Com isso, o autor chega a um conjunto de cinco etapas de
desenvolvimento, dentro das quais qualquer formação social
poderia ser enquadrada: a sociedade tradicional, as precondi-
ções para o arranco, o arranco, a marcha para a maturidade,
e, por fim, a era de consumo em massa.16 De acordo com esta
formulação, o subdesenvolvimento seria uma simples imagem
do passado das economias desenvolvidas, sendo o trânsito de
uma etapa a outra acessível a qualquer país que reunisse as
condições necessárias para tanto.17
Começando com a primeira etapa, Rostow define a socieda-
de tradicional como “aquela cuja estrutura se expande dentro
de funções de produção limitadas, baseadas em uma ciência

15
Como pretendemos mostrar no Capítulo 7, alguns aspectos da noção de
desenvolvimento aqui apresentada foram, inclusive, recentemente resga-
tados como base para a formulação de alternativas à estratégia neoliberal
de desenvolvimento, dominante no período pós-1970, sendo uma das mais
conhecidas tentativas de resgate aquela proposta por Ha-Joon Chang (2004)
no livro Chutando a escada.
16
Com essa formulação, Rostow (1974, p. 14) pretende oferecer “uma alternativa à
teoria de Karl Marx sobre a História”, dividida em quatro etapas: o feudalismo,
o capitalismo burguês, o socialismo e o comunismo. Uma apresentação siste-
mática das semelhanças e diferenças entre as duas perspectivas foi realizada
pelo autor e pode ser vista no capítulo intitulado “Marxismo, comunismo e
etapas do desenvolvimento”.
17
Embora essa supersimplificação do processo histórico, característica do
etapismo defendido por Rostow, tenha sido negada por grande parte dos
teóricos do período, uma versão mais branda do etapismo encontra-se pre-
sente, ainda que não explicitamente, em toda a teoria clássica do desenvol-
vimento (à medida que o subdesenvolvimento é encarado, em última instân-
cia, como uma etapa prévia ao desenvolvimento). Uma apresentação crítica
desse argumento pode ser vista, por exemplo, em Marini (1992, p. 72).

141
e tecnologia pré-newtonianas, assim como em atitudes pré-
-newtonianas diante do mundo físico”. Porém, o ponto central
capaz de caracterizar qualquer uma destas sociedades tradi-
cionais é o fato de estarem todas sujeitas a um teto máximo de
produção per capita – e isto se justifica pelo não conhecimento
das potencialidades que ciência e tecnologia viriam desvendar
mais tarde.18
As precondições para o arranco são definidas como “a era
de transição em que a sociedade se prepara – ou é prepara-
da por forças externas – para o desenvolvimento sistemático”
(ROSTOW, 1974, p. 30). As mudanças que então operam sobre
as economias decorrem fundamentalmente da influência sobre
o processo produtivo da ciência moderna em avanço, em para-
lelo à expansão do mercado mundial e, consequentemente, da
concorrência internacional. Nas palavras do autor:

Dissemina-se a ideia de que não só é possível o progresso


econômico, mas também que ele é condição indispensá-
vel para uma outra finalidade considerada benéfica: seja
ela a dignidade nacional, o lucro privado, o bem-estar
geral, ou uma vida melhor para os filhos. Aparecem no-
vos tipos de homens de empresa – na economia privada,
no governo ou em ambos – dispostos a mobilizar econo-
mias ou a correr riscos visando ao lucro ou à moderni-
zação. Despontam bancos e outras instituições destina-
das à mobilização de capital. Crescem os investimentos,
notadamente em transportes, comunicações e matérias-
-primas em que outras nações possam ter um interesse
econômico. Alarga-se a órbita do comércio interna e ex-
ternamente. (ROSTOW, 1974, p. 19 et seq.)

18
“Em termos de História, pois, com o nome ‘sociedade tradicional’ nós englo-
bamos todo o mundo pré-newtoniano; as dinastias da China; a civilização
do Oriente Médio e do Mediterrâneo; o mundo da Europa medieval. E ainda
adicionamos as sociedades pós-newtonianas que, por certo tempo, perma-
neceram intatas ou indiferentes à nova capacidade do homem para manipu-
lar regularmente o meio ambiente tendo em vista seu proveito econômico”
(ROSTOW, 1974, p. 18). Nessa definição de “sociedade tradicional”, podemos
observar um exemplo claro de anacronismo, comum a diversas teorias do
período, do qual falaremos mais detalhadamente na próxima seção.

142
Porém, ressalta Rostow, muito tempo se passa até que es-
tejam postas estas condições, e essa lentidão deve-se ao fato
de as economias permanecerem limitadas pelos métodos tra-
dicionais, pela estrutura social, valores e instituições políticas
ainda remanescentes do período anterior. Principalmente so-
bre esse aspecto político, Rostow afirma ser imprescindível
ao arranco a constituição de um Estado nacional centralizado,
“aspecto decisivo do período das precondições”.
Terminado este estado transitório, estaria posto, portanto,
o arranco, momento “decisivo da história de uma sociedade
em que o desenvolvimento passa a ser sua condição normal”
(ROSTOW, 1974, p. 52).19 Apresentando uma noção de desen-
volvimento plenamente compatível com aquela defendida
pelos demais autores do período, Rostow (2010) define esta
fase como

o intervalo durante o qual a taxa de investimento cresce


de tal modo que aumenta o produto real per capita, pro-
porcionando esse aumento inicial transformações radi-
cais nas técnicas de produção e na disposição dos fluxos
de renda que perpetuam a nova escala de investimentos
e, assim, perpetuam também a tendência crescente do
produto per capita. (ROSTOW, 2010, p. 181)

Seria, portanto, uma espécie de “revolução industrial ligada


diretamente a transformações radicais nos métodos de produ-
ção e que obtém resultados decisivos num prazo relativamen-
te curto” (ROSTOW, 2010, p. 205).20
Observamos, portanto, que, assim como defendido por
Lewis, Rostow (1974, p. 65) acredita que o sucesso da estratégia

19
Note-se que esta etapa, também conhecida como decolagem (ou take-off), é
bastante similar ao grande impulso (ou big push) de Nurkse: enquanto, para
Nurkse, uma economia, ao libertar-se das amarras do círculo vicioso da po-
breza, ingressa em uma situação de crescimento equilibrado, para Rostow,
o estímulo que detona o arranco faz com que o crescimento passe a ser o
estado normal da economia.
20
Um quadro com os registros dos períodos de decolagem de alguns países
que chegaram à etapa do crescimento autossustentado pode ser visto em Ros-
tow (2010, p. 187; 1974, p. 54).

143
depende não apenas do aumento da renda per capita, mas tam-
bém de uma mudança na “disposição dos fluxos de renda” em
favor da “classe poupadora”, sendo esta “uma das ideias mais
antigas e básicas da Economia”. Além disso, defendendo uma
estratégia de desenvolvimento um tanto similar à estratégia de
crescimento desequilibrado, Rostow (1974, p. 55 e 56) insiste
que o aumento expressivo da taxa de investimento com rela-
ção ao produto nacional (até 10% do produto nacional líquido,
aproximadamente) deve ser direcionado especialmente para
alguns setores manufatureiros básicos, com elevados índices
de crescimento, capazes de gerar estímulos sobre os demais
setores da economia. Estes setores, chamados pelo autor de
“líderes”, “devem ser tais que sua expansão e sua transforma-
ção técnica induzam, para o aumento de sua capacidade, uma
cadeia de necessidades [...] e o potencial de novas funções de
produção em outros setores, ao que a sociedade deve respon-
der progressiva e eficazmente” (ROSTOW, 2010, p. 205 et seq.).
Em síntese:

[...] o crescimento rápido de um ou mais novos seto-


res manufatureiros é uma força poderosa e essencial
de transformação econômica. Sua potência deriva da
multiplicidade de formas que seu impacto pode ter,
desde que a sociedade esteja disposta a responder po-
sitivamente a ele. O crescimento nesses setores, com
novas funções de produção de elevada produtividade,
tende, por si mesmo, a aumentar o produto per capita,
colocando rendas em poder de gente que não só poupa
uma porção mais elevada da renda crescente como tam-
bém a empregará em investimentos altamente produ-
tivos; estabelece uma cadeia de demanda efetiva para
outros produtos manufaturados; provoca a necessida-
de de maiores áreas urbanas, que podem ter custos de
capital elevados, mas cuja população e organização de
mercado contribuem para fazer da industrialização um
processo continuamente em marcha; e, finalmente, abre
um conjunto de economias externas que contribuem,

144
em última análise, para criar novos setores líderes
quando começa a diminuir o impulso inicial dos setores
líderes na decolagem.

Passado esse momento, a capacidade de expansão da ri-


queza produzida se tornaria mais ou menos automática, e as
economias poderiam seguir uma trajetória quase natural rumo
aos limites de suas potencialidades produtivas, até chegar à
era do consumo em massa: “uma fase de que os norte-ameri-
canos estão principiando a sair; cujas alegrias, nem sempre
nítidas, a Europa ocidental e o Japão estão começando a ex-
perimentar, e com a qual a sociedade soviética está flertando
meio contrafeita” (ROSTOW, 1974, p. 23). Nessa etapa, possível
apenas depois de atingida a maturidade tecnológica, as socie-
dades poderiam reconsiderar suas finalidades, valores etc., e
transferir sua atenção da “oferta para a procura, dos proble-
mas de produção para os de consumo e para os do bem-estar,
na mais ampla acepção” (ROSTOW, 1974, p. 96 et seq.).
Em primeiro lugar, as nações poderiam aproveitar o nível
elevado de recursos para aumentar, política e/ou militarmente,
seu “poderio e influência no exterior”. Em segundo lugar, pode-
riam empregar os “poderes do Estado, inclusive o de redistri-
buir a renda por meio de impostos progressivos, para alcançar
objetivos humanos e sociais (abrangendo, nisso, o lazer cres-
cente) que o processo do mercado livre, em sua forma menos
adulterada, não conseguiu”. Por fim, “a expansão dos níveis de
consumo para além das necessidades fundamentais de alimen-
tação, habitação e vestuário” permitiria que essas sociedades
chegassem “à órbita do consumo em massa de bens duráveis
de consumo e serviços, que as economias amadurecidas do
século XX podem proporcionar”.
A partir daí, a questão levantada por Rostow (1974, p. 114 et
seq.) é a seguinte: o que esperar para além do consumo em mas-
sa? O que aconteceria no momento em que os indivíduos tives-
sem acesso a literalmente tudo o que poderiam desejar com a
renda que possuem? Que sentido dariam a suas próprias vidas?
Será que a humanidade cairia “em uma estagnação espiritual,

145
não encontrando nenhuma aplicação digna para suas energias,
talentos, e o instinto para atingir a imortalidade?”.
Tomando por referência a última questão, a resposta de
Rostow é não, por enquanto. Antes que os “habitantes de paí-
ses bem governados e bem administrados” sejam acometidos
pelo tédio, os países desenvolvidos deveriam se empenhar na
resolução de dois problemas diferentes: o primeiro, relaciona-
do à “existência de armas modernas de destruição em massa
que, se não forem domadas e controladas, poderão solucionar
este e todos os outros problemas da raça humana, de uma vez
por todas”, e o segundo, relacionado ao “fato de que toda a me-
tade austral do globo, mais a China, está envolvida ativamente
na etapa das precondições para o arranco ou no arranco pro-
priamente dito”. Assim,

Estes dois problemas – o da corrida armamentista e o


das novas nações cheias de aspirações –, intimamente
relacionados no mundo da diplomacia contemporânea,
apresentam, para as sociedades setentrionais tecnica-
mente mais amadurecidas, uma ordem do dia das mais
trabalhosas, para o que, a despeito das doçuras dos
bens duráveis de consumo dos serviços, e até mesmo
das famílias maiores, devemos voltar nossa atenção se
quisermos ter uma oportunidade de ver se poderá ser
vencida a estagnação espiritual secular – ou o tédio.

Observamos, portanto, que, levadas ao extremo, as proje-


ções feitas por Rostow (1974, p. 198) para o futuro do capi-
talismo se aproximam significativamente daquelas realizadas
por Smith: uma vez que as nações mais pródigas são agracia-
das com os benefícios do desenvolvimento, este se espalha
progressivamente para as demais, “até o dia em que [toda a
humanidade possa] partilhar as opções abertas na etapa do
consumo em massa e além dela, mas também no processo da
marcha para aquela etapa”.21 Aqui, novamente, Rostow oferece

21
Mesmo não havendo uma referência explícita ao trabalho de Smith, o ca-
ráter marcadamente etapista da teoria de Rostow também pode ser visto

146
uma versão radicalizada do ideal de desenvolvimento compar-
tilhado por grande parte das teorias do pós-guerra.
Como veremos no Capítulo 7, a possibilidade de realiza-
ção desse ideal de sociedade e consequente expansão do pa-
drão de consumo norte-americano para as demais regiões do
globo foram questionadas no próprio âmbito das teorias do
desenvolvimento (que, particularmente preocupadas com a
evidente degradação ambiental decorrente desse modelo de
desenvolvimento, passaram a dar tratamento mais sistemático
a questões de cunho ecológico). Mas, antes de falar sobre o
surgimento dessa e de outras novas perspectivas, encerramos
o capítulo com algumas conclusões que podem ser extraídas
da análise das teorias clássicas do desenvolvimento.

Seção 5.4 Considerações finais

Vale notar de antemão que, assim como nos demais capítu-


los, as proposições desta seção conclusiva não pretendem es-
gotar o conjunto de considerações críticas dirigidas às teorias
aqui examinadas, sequer no que diz respeito ao argumento do
próprio estudo. O principal, neste momento, é demonstrar que
as teorias sob análise neste capítulo encontram-se no interior do
amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma
crítica conjunta, fundamentada no desenvolvimento teórico da
Parte I e apresentada ao final deste livro. Neste sentido, o que
importa são os elementos destacados a seguir, identificáveis, de
modo diverso, nas interpretações anteriormente apresentadas.
Em primeiro lugar, observamos que essas teorias compartilham
uma mesma concepção de desenvolvimento, entendido como si-
nônimo de crescimento do produto (per capita). Considerando
que o produto só adquire homogeneidade, tornando-se pas-
sível de agregação, quando considerado em termos de va-
lor, o desenvolvimento significa porções crescentes de valor

como uma herança dos autores clássicos. Em A riqueza das nações, por
exemplo, tratando das despesas com a defesa nacional, Smith (1996, p. 173)
apresenta e compara a sociedade de caçadores, de pastores, de agricultores
e, finalmente, a sociedade comercial. Para mais informações sobre o tema,
conferir ainda Brewer (2008).

147
produzido. Como só mercadoria tem valor, esta noção de de-
senvolvimento pressupõe que o produto tenha forma mercan-
til, ou seja, pressupõe a mercadoria como forma elementar da
riqueza.
Mais do que isso, como destacado no Apêndice do Capítulo
2, a generalização da forma-mercadoria e, consequentemente,
da articulação de unidades produtivas por meio da troca co-
loca a necessidade da produção de riqueza material e valor
em escala crescente. As teorias do desenvolvimento, portanto,
terminam por projetar sobre toda a história e sociedades as
formas de riqueza e trabalho que são historicamente específi-
cas do capitalismo, dando inteligibilidade científica ao impulso
ao aumento da riqueza (uma das determinações mais impor-
tantes da dinâmica capitalista).
Em segundo lugar, observamos que essas teorias comparti-
lham um mesmo ideal de desenvolvimento (isto é, de crescimen-
to do produto, associado ao aumento da capacidade de consu-
mo e do bem-estar da população), profundamente influenciado
pelo período de prosperidade e expansão posterior à Segunda
Guerra Mundial, também conhecido como “Era de Ouro do ca-
pitalismo”. Como discutido na primeira seção do Capítulo 3, as
particularidades deste período (associadas a reorientações de
cunho político-ideológico e no âmbito da estrutura produtiva,
posteriormente conhecidas como fordista-keynesianas) permiti-
ram aos países capitalistas desenvolvidos manter índices eleva-
dos de crescimento do produto, da produtividade, do emprego,
dos salários etc., garantindo melhorias nas condições de vida
da população, em geral. Não é estranho, portanto, que, diante
desse contexto, tenha se disseminado entre a opinião pública,
em geral, e entre os cientistas, em particular, a crença na pos-
sibilidade de levar as condições privilegiadas das nações mais
ricas para as nações mais pobres (e que a própria condição de
pobreza tenha sido associada não ao capitalismo em si, mas a
um momento ainda não desenvolvido desse sistema).
Por fim, também não causa estranheza que o anúncio das
práticas “corretas” necessárias à realização de tal projeto fosse
plenamente compatível com o (e, por vezes, uma cópia fiel do)

148
padrão de intervenção e planejamento adotado pelos países
“bem-sucedidos”. Por mais difícil que a tarefa tenha parecido
a alguns, a convicção de que seria possível levar o conjunto
de práticas “corretas” (juntamente com os recursos, em alguns
casos) para os países subdesenvolvidos pode ainda ser explica-
da, em parte, pelo evidente sucesso do Plano Marshall no que
tange à reconstrução da Europa ocidental arrasada pelas guer-
ras.22 Ainda que o esforço de reconstrução fosse evidentemente
reconhecido como uma situação particular, acreditava-se que
os países subdesenvolvidos poderiam, ao menos, aproveitar o
aparato institucional disponível e, combinando ajuda externa e
planejamento, obter o almejado crescimento da riqueza – assim
como se fez, em muitos casos. Esta tarefa mostrava-se ainda
mais urgente por causa da “ameaça” (suposta ou concreta, pou-
co importa) de avanço do “bloco comunista” sobre os países
que seriam objeto das políticas de desenvolvimento.
Como, de fato, a disparidade entre os níveis de desenvolvi-
mento (tal como definido anteriormente) das nações capitalistas
tem o potencial de provocar contraditórios e não raramente per-
niciosos efeitos econômicos e políticos – tais como crises eco-
nômicas internacionais, acirramento da competição, guerras,
ocupação colonialista –­ , seria surpreendente se a consciência
científica permanecesse alheia aos problemas trazidos por tal
disparidade. Num mundo em que há países considerados pobres
e outros considerados ricos, a ciência não pode se furtar a dis-
cutir por que uns são pobres e outros, ricos, nem deixar de lado
a pergunta a respeito da melhor maneira de fazer dos pobres,
ricos. E como visto ao longo do capítulo, a resposta oferecida pe-
las teorias em análise – exatamente como a resposta das teorias
apresentadas no capítulo anterior e no que se segue – foi basica-
mente a seguinte: a recriação nos países pobres das estruturas
das sociedades afluentes, seja lá como elas forem concebidas.

22
Sem falar no verdadeiro espanto provocado pela acelerada modernização
da Rússia e dos demais países que compuseram a União Soviética.

149
Capítulo 6
Teorias clássicas do desenvolvimento (II):
em defesa da industrialização na América Latina

Além das teorias do desenvolvimento que tratam das re-


giões subdesenvolvidas em geral, apresentadas no capítulo
anterior, também se destacam no período pré-1970 aquelas
teorias que se dedicaram especificamente ao estudo do caso
latino-americano, gestadas, em sua maioria, no âmbito da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Fundada em 1948 como uma agência regional da Organização
das Nações Unidas (ONU),1 a Cepal tem como principal objeti-
vo “contribuir para o desenvolvimento econômico da América
Latina, coordenar as ações destinadas a sua promoção e refor-
çar as relações econômicas dos países entre si e com as demais
nações do mundo”.2 Assim, apesar do foco na formulação de
propostas que orientem os policy-makers da região, a Cepal ter-
minou por produzir um entendimento particular a respeito das
causas do subdesenvolvimento, consolidado e refinado duran-
te as décadas seguintes, mas cujas características gerais são
reveladas no seu primeiro documento de grande repercussão:
Estudio económico de la America Latina, publicado em 1949.3
Como explicitado já nas páginas iniciais desse documento,
a teoria do desenvolvimento produzida pela Cepal, diferente-
mente das anteriormente apresentadas, toma como ponto de
partida uma crítica explícita à teoria ricardiana das vantagens
comparativas – utilizada, ainda hoje, como base do entendimen-
to convencional sobre as relações de comércio entre países.
Amparada em evidências empíricas, a Cepal procurou demons-
trar como, ao contrário de gerar benefícios para todos, a troca

1
Que no mesmo período criou Comissões Econômicas para a Europa, Ásia,
Extremo Oriente e, posteriormente, para a África.
2
Para mais informações sobre os propósitos e atividades realizados pela Ce-
pal, conferir o sítio da instituição (www.eclac.org).
3
A seção introdutória do documento, escrita por Raúl Prebisch (2000), que
ganhou circulação independente sob o título O desenvolvimento econômico
da América Latina e alguns de seus problemas principais, tornou-se uma re-
ferência do pensamento cepalino do período e também será aqui utilizada
como base para a exposição do argumento.

151
entre países desenvolvidos (exportadores de manufaturas) e
subdesenvolvidos (exportadores de produtos primários) gera-
va resultados positivos para os primeiros e negativos para os úl-
timos. Nesse sentido, tanto em virtude das diferenças na estru-
tura produtiva, quanto em função dos diferentes papéis desem-
penhados na divisão internacional do trabalho, a Cepal passou a
chamar esses países de centrais e periféricos, respectivamente.
Apesar das inegáveis peculiaridades da teoria cepalina,
destrinçadas adiante, é possível também identificar algumas
semelhanças entre o entendimento veiculado pela institui-
ção e aquele encontrado nas demais teorias do desenvolvi-
mento produzidas no imediato pós-guerra. Em primeiro lu-
gar, observamos que a noção de desenvolvimento compar-
tilhada (embora nem sempre explicitada) por essas teorias
é essencialmente a mesma: aumento da renda per capita,
na medida em que contribui para o aumento do “padrão de
vida das massas”, ou ainda, do “bem-estar mensurável da
coletividade” (PREBISCH, 2000, p. 72; p. 110). Também na
teoria cepalina veremos como, ainda que por motivos distin-
tos, a promoção do desenvolvimento deve necessariamente
passar pela industrialização (tida, nesse caso, como o único
mecanismo através do qual seria possível alterar a estrutura
da divisão internacional do trabalho, responsável pela per-
petuação do estado de subdesenvolvimento).
Voltado exclusivamente à apreciação crítica da teoria do
desenvolvimento formulada pela Cepal no período pré-1970, o
presente capítulo encontra-se dividido em três seções. A seção
a seguir busca esclarecer como o subdesenvolvimento é carac-
terizado a partir do “sistema centro-periferia” e da tendência
à “deterioração dos termos de troca”. Na segunda, trataremos
do papel desempenhado pela industrialização na estratégia de
superação do subdesenvolvimento proposta pela Cepal. Na
terceira e última seção, resgatamos alguns pontos indispensá-
veis à compreensão do argumento aqui defendido, chamando
a atenção, mais uma vez, para o vínculo existente entre as teo-
rias do desenvolvimento, o modo de produção capitalista em
geral e o contexto histórico em particular.

152
Seção 6.1 O “sistema centro-periferia”
e a deterioração dos termos de troca

Como indicado anteriormente, o principal objetivo dos


estudos pioneiros produzidos pela Cepal é encontrar explica-
ções para o atraso dos países latino-americanos, e, consequen-
temente, apontar a melhor forma de superá-lo. Nesse sentido,
utilizando uma metodologia de análise posteriormente conhe-
cida como “histórico-estruturalista”,4 a Cepal busca explicar o
subdesenvolvimento fundamentalmente a partir do “sistema
centro-periferia”, capaz de revelar não apenas as diferenças
nas estruturas socioeconômicas, mas também a sua perpetu-
ação ao longo do tempo (determinada, basicamente, pelo me-
canismo de difusão do progresso técnico e de distribuição dos
ganhos desse progresso entre os diferentes países).
De acordo com essa formulação, a diferença entre econo-
mias centrais e periféricas teria sua origem, antes de tudo,
no longo processo de consolidação e expansão do modo de
produção capitalista, ocorrido, fundamentalmente, a partir da
Revolução Industrial.5 Assim, os países centrais seriam aque-
les pioneiros no processo de industrialização e incorporação
das técnicas capitalistas de produção, em torno dos quais vai
se formando, progressivamente, uma periferia “vasta e hete-
rogênea”, com “participação escassa no aperfeiçoamento da
produtividade” (CEPAL, 2000a, p. 139 et seq.). Além disso, en-
quanto os países centrais seriam caracterizados pela grande
capacidade de absorção e difusão do progresso técnico para
as mais distintas atividades, na periferia, ao contrário, “o

4
Segundo Bielschowsky (2000, p. 21), este método de análise tornar-se-ia uma
das marcas distintivas do pensamento da Cepal. Uma descrição minucio-
sa do estruturalismo latino-americano pode ser vista ainda em Rodríguez
(1981; 2009).
5
Como consta no documento de 1949, a formação dos grandes centros indus-
triais teria sido resultado de um movimento que se iniciou “na Grã-Bretanha,
prosseguiu com graus variáveis de intensidade no continente europeu, ad-
quiriu um impulso extraordinário nos Estados Unidos e finalmente abrangeu
o Japão, quando este país se empenhou em assimilar rapidamente os modos
de produção ocidentais” (CEPAL, 2000a, p. 139). Uma análise similar sobre
o marco histórico do processo desenvolvimento-subdesenvolvimento também
pode ser vista em Sunkel (1973).

153
progresso técnico só se dá em setores exíguos de sua imen-
sa população, pois, em geral, penetra unicamente onde se faz
necessário para produzir alimentos e matérias-primas a custo
baixo, com destino aos grandes centros industrializados”.
Tanto em função da posição relativamente privilegiada
de que partem os países centrais, quanto em função do me-
canismo de difusão do progresso técnico no interior dos paí-
ses, consolidam-se estruturas produtivas bastante diferentes
nos países centrais e periféricos: diversificadas e homogêneas
nos primeiros e especializadas e heterogêneas nos últimos.6
Associado a isso, assiste-se também à consolidação de uma
estrutura de divisão internacional do trabalho dentro da qual
caberia “à América Latina, como parte da periferia do sistema
econômico mundial, o papel específico de produzir alimen-
tos e matérias-primas para os grandes centros industriais”
(PREBISCH, 2000, p. 71).
De acordo com a interpretação dominante, compartilhada
por grande parte das teorias do desenvolvimento e amparada,
ainda que nem sempre de modo explícito, na teoria ricardiana
das vantagens comparativas, essa especialização seria benéfi-
ca para todas as partes envolvidas. Isso porque, se cada país
se especializasse naquela atividade em que possui vantagens
relativas, o comércio internacional terminaria por distribuir os
frutos do progresso técnico pelos diferentes países, de manei-
ra equitativa, através da queda dos preços (e correspondente
aumento do poder de compra), promovendo uma convergên-
cia da riqueza das nações.

6
Apenas para enfatizar, a estrutura produtiva periférica era entendida como
especializada porque se amparava, quase que exclusivamente, no setor li-
gado aos produtos de exportação, “com baixo grau de diversificação e com
complementaridade intersetorial e integração vertical extremamente redu-
zidas” (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 32). Uma vez que apenas aquele setor (e
alguns poucos a ele associados) conseguia absorver tecnologias modernas,
configurava-se igualmente uma fratura da estrutura produtiva, marcada pela
coexistência de setores modernos e atrasados, conformando a chamada he-
terogeneidade estrutural. Como observam Bielschowsky (2000) e Rodríguez
(1981, p. 50), no entanto, ainda que se aplique à formulação cepalina dos
anos 1950, o conceito de “heterogeneidade estrutural” só seria utilizado
pela primeira vez por Aníbal Pinto, na década de 1960.

154
Assim, se as variações nos preços efetivamente acompa-
nhassem as variações de produtividade, um aumento de pro-
dutividade mais intenso nas indústrias dos países centrais do
que nos setores primários periféricos deveria vir acompanha-
do de uma queda nos preços dos produtos manufaturados
superior à queda nos preços dos produtos primários. Nesse
caso, “a relação de preços entre ambos teria melhorado persis-
tentemente em favor dos países da periferia, à medida que se
desenvolvesse a disparidade das produtividades” (PREBISCH,
2000, p. 80 e 81 et seq.), indicando que, com a mesma quanti-
dade de produtos primários, seria possível adquirir uma quan-
tidade maior de produtos manufaturados. Não haveria, portan-
to, qualquer incentivo à industrialização na América Latina:
“antes, haveria uma perda efetiva, enquanto não se alcançasse
uma eficiência produtiva igual à dos países industrializados”.
No entanto, não era esse o comportamento revelado pelos
dados sobre a relação entre os preços dos produtos primários
e os dos artigos finais da indústria, divulgados em um dos re-
latórios publicados pela ONU, também em 1949, extensamen-
te utilizados pela Cepal. Ao contrário da variação de preços
em favor da periferia, os dados mostraram que, entre o final
do século XIX e meados do século XX, houve uma variação de
preços em benefício dos países centrais – fenômeno também
conhecido como deterioração dos termos de troca.7 Assim, além
de não receber parte do fruto da maior produtividade dos pa-
íses centrais, os países periféricos não teriam sido capazes de
“reter para si todo o benefício do seu próprio progresso técni-
co, por terem tido que ceder uma parte dele aos produtores
industriais” (CEPAL, 2000a, p. 143 e 144). De acordo com argu-
mento defendido pela instituição, portanto, o que se observa
ao longo do tempo é uma transferência dos ganhos de produti-
vidade das regiões periféricas para as regiões centrais, promo-
vendo disparidades crescentes, em vez da homogeneização da
riqueza mundial.

7
Uma ideia muito similar foi apresentada de modo independente, também em
1949, por Hans Singer no artigo The distribution of gains between investing
and borrowing countries.

155
Apesar da tendência geral à deterioração dos termos de tro-
ca, também era possível perceber que o movimento de cessão
dos benefícios do progresso técnico não seguia um padrão uni-
forme, mudando de direção e intensidade, em função de diver-
sos fatores explorados pela Cepal ao longo do relatório. Para
compreender esse ponto, no entanto, é preciso ter em mente
as já mencionadas diferenças das estruturas produtivas cen-
trais e periféricas, os diferentes papéis desempenhados por
essas economias na divisão internacional do trabalho e, a par-
tir disso, observar a forma como cada uma delas se comporta
diante das flutuações cíclicas.
Como visto anteriormente, os países centrais seriam aque-
les dotados de estruturas produtivas diversificadas e homogê-
neas, exportadores de produtos industrializados, e os países
periféricos, caracterizados pela estrutura produtiva especiali-
zada e heterogênea e pela exportação de produtos primários.
Considerando ainda que produção industrial e primária pos-
sui efeitos dinâmicos bastante distintos – ou seja, que o au-
mento da atividade industrial é capaz de fomentar a atividade
primária, enquanto o inverso não se verifica (argumento que
também será utilizado na defesa da industrialização), as fases
ascendentes do ciclo, de aquecimento das atividades econômi-
cas no centro terminariam por aumentar a demanda por pro-
dutos primários (alimentos e matérias-primas). Durante essa
fase, portanto, o crescimento da demanda em relação à oferta
geraria uma pressão “altista” sobre preços, lucros e salários,
tanto no centro, quanto na periferia. Quando, nesse processo,
o aumento dos preços dos produtos primários superasse o au-
mento dos preços dos produtos finais (tendência que, de acor-
do com a Cepal, poderia ser efetivamente observada nas fases
cíclicas ascendentes), teríamos uma transferência de lucros do
centro para a periferia (PREBISCH, 2000, p. 86 et seq.).
Ainda segundo esse argumento, os desajustes nos termos
de intercâmbio aconteceriam no momento de reversão do
ciclo. Isso porque, se os “preços primários sobem com mais
rapidez do que os finais na fase ascendente, [...] também des-
cem mais do que estes na fase descendente, de tal forma que

156
os preços finais vão se distanciando progressivamente dos
primários através dos ciclos”. Tal fenômeno seria, em termos
gerais, um reflexo da rigidez em relação à baixa dos preços dos
produtos industrializados nas fases descendentes dos ciclos,
determinada, fundamentalmente, pela resistência à queda dos
salários. Essa resistência à queda dos salários, por sua vez,
seria resultado do maior poder de organização da classe traba-
lhadora nos países centrais, capaz não só de conseguir ganhos
salariais significativos nas fases ascendentes, mas também de
impedir a queda do seu padrão de vida nas fases descendentes.
Na periferia, ao contrário, “a desorganização característi-
ca das massas trabalhadoras na produção primária, especial-
mente na agricultura [...], impede-as de conseguirem aumentos
salariais comparáveis com os que vigoram nos países indus-
trializados, ou de mantê-los com amplitude similar”. Assim,
considerando a menor resistência à contração de renda (sejam
lucros ou salários) nos países periféricos e o fato de ser a pró-
pria demanda por produtos primários dependente da deman-
da por produtos industrializados, os países centrais acabariam
encontrando maior facilidade para “deslocar a pressão cíclica
para a periferia, obrigando-a a contrair sua renda mais acen-
tuadamente do que nos centros”. Em suma:

[...] durante os ciclos, as relações de preços deslocam-


-se em favor dos produtos primários, nas fases crescen-
tes; mas, em geral, nas fases decrescentes, perdem mais
do que tinham ganhado durante o curso das primeiras.
Assim, ao cair a relação de preços a cada depressão,
mais do que havia melhorado na prosperidade, de-
senvolve-se através dos ciclos a tendência contínua
ao agravamento dos termos de intercâmbio. (CEPAL,
2000a, p. 157 e 158).

Com isso, a Cepal acredita ter mostrado como a dinâmi-


ca do capitalismo no plano internacional seria responsável
não apenas pela produção de países ricos e países pobres,
centrais e periféricos, mas também pela perpetuação dessa

157
desigualdade. Como esperamos mostrar na próxima seção, no
entanto, essa não seria, para a Cepal, uma situação de todo
irremediável: a superação do subdesenvolvimento e da condi-
ção periférica poderia, a despeito de todas as dificuldades, ser
alcançada por meio da industrialização.

Seção 6.2 Em defesa da industrialização


na América Latina

Como procuramos mostrar ao longo da seção anterior, além


de ressaltar os fatores socioeconômicos inerentes às econo-
mias subdesenvolvidas, a interpretação proposta pela Cepal
sugeria que a forma específica de inserção dessas economias
no sistema de trocas internacionais, como exportadoras de
produtos primários, determinava, em última instância, sua in-
capacidade de reter e acumular internamente os frutos de seu
progresso técnico mantendo, assim, esses países em uma con-
dição periférica. Diante dessa caracterização geral, a estratégia
de superação do subdesenvolvimento deveria passar, necessa-
riamente, pela mudança da inserção latino-americana na divi-
são internacional do trabalho, e a única forma de operar essa
alteração, segundo a Cepal, seria através da industrialização.
Nos termos de Prebisch (2000, p. 72): “Daí a importância funda-
mental da industrialização dos novos países. Ela não constitui
um fim em si, mas é o único meio de que estes dispõem para ir
captando uma parte do fruto do progresso técnico e elevando
progressivamente o padrão de vida das massas.”
Na verdade, como afirmado explicitamente pelo próprio
Prebisch (1983, p. 1079), anos depois, as análises realizadas
durante aquele período tratavam de apresentar justificativa
teórica para o processo de industrialização já em curso em al-
guns países da América Latina, estimular aqueles que ainda
não haviam iniciado tal processo e oferecer a todos um plano
de ação. E esses esforços de reflexão e proposição (que da-
vam sentido à existência da própria Cepal) mostravam-se tan-
to mais necessários, pois, ao mesmo tempo que a industriali-
zação apresentava-se como uma alternativa para a promoção

158
do desenvolvimento na América Latina, tornavam-se cada vez
mais evidentes as dificuldades envolvidas nesse processo.
Sobre os primeiros passos no caminho da industrialização
trilhados pelos países latino-americanos, é preciso chamar a
atenção, em primeiro lugar, para o fato de terem sido impulsio-
nados, grosso modo, pelas restrições ao comércio internacional
impostas pelas duas Grandes Guerras e pela Grande Depressão
dos anos 1930. Diante desses eventos, portanto, países até en-
tão marcados por uma dinâmica de desenvolvimento voltada
para fora, isto é, estimulada predominantemente pelo cresci-
mento das exportações, foram impelidos a adotar um novo
padrão de desenvolvimento voltado para dentro, ou seja, mar-
cado pela ampliação e diversificação da atividade industrial e
pelo fortalecimento do mercado interno. Essa primeira etapa
de industrialização espontânea, resultado da reação das eco-
nomias periféricas aos sucessivos desequilíbrios no balanço
de pagamentos, também ficaria conhecida como industrializa-
ção via substituição de importações (expressão presente já nos
primeiros documentos produzidos pela Cepal, mas consagra-
da a partir da publicação do trabalho de Maria da Conceição
Tavares (1973), no início dos anos 1960).
Em segundo lugar, a industrialização via substituição de im-
portações não deve ser confundida com um ataque à produção
primária, com a busca da autossuficiência ou repúdio ao co-
mércio internacional. Ao contrário, na medida em que o cres-
cimento da produção primária voltada para a exportação era
responsável pelo fornecimento de parte dos recursos neces-
sários ao crescimento da indústria, em um contexto de escas-
sez de divisas internacionais, o aperfeiçoamento desse setor
deveria ser visto, nos termos de Prebisch (1983, p. 73), como
“uma das condições essenciais para que o desenvolvimento da
indústria [pudesse] ir cumprindo o objetivo social de elevar
o padrão de vida.” Apenas para reforçar o entendimento da
perspectiva acima apresentada: “a solução não está em cres-
cer à custa do comércio exterior, mas em saber extrair, de um
comércio exterior cada vez maior, os elementos propulsores
do desenvolvimento”.

159
Na formulação proposta por Tavares (1973, p. 34 e 35), a
mesma questão poderia ser colocada nos seguintes termos:
ainda que o processo de industrialização tenha sido respon-
sável por um deslocamento do eixo dinâmico da economia –
da variável exógena “exportação”, para a variável endógena
“investimento” –, setor exportador e comércio internacional
continuariam a desempenhar um papel relevante, contribuin-
do para a diversificação da estrutura produtiva através das
importações. No entanto, de acordo com Tavares (1973), seria
preciso ainda chamar a atenção para o caráter parcial e fecha-
do das transformações operadas nos países periféricos duran-
te esse período: parcial, pois a sobrevivência de uma “base
exportadora precária e sem dinamismo” foi responsável, em
grande medida, pela manutenção do estrangulamento exter-
no; e fechado, pois as mudanças na divisão social do trabalho
não foram em absoluto acompanhadas por simultânea trans-
formação na divisão internacional do trabalho. Nos termos da
autora, o processo de substituição de importações deve ser
entendido, portanto, “como um processo de desenvolvimento
‘parcial’ e ‘fechado’ que, respondendo às restrições do comér-
cio exterior, procurou repetir aceleradamente, em condições
históricas distintas, a experiência de industrialização dos pa-
íses desenvolvidos”.
Sobre esse último ponto, é importante ressaltar que o re-
conhecimento dos contrastes e disparidades entre o proces-
so tardio de industrialização na América Latina e aquele ex-
perimentado pelos países hoje centrais, quando consolidaram
suas indústrias no final do século XIX, desempenhou um papel
central na definição da estratégia de industrialização e serviu,
em conjunto com outros motivos, como amparo para a defesa
da intervenção do Estado na economia proposta pela Cepal.
Apenas para oferecer um panorama geral, os principais
contrastes e disparidades poderiam ser agrupados em torno
de um problema fundamental: a dificuldade de incorporação
das técnicas modernas de produção pelos países latino-ame-
ricanos. Entre as dificuldades mais ressaltadas nos documen-
tos produzidos pela instituição, destaca-se, em primeiro lugar,

160
aquela relacionada à escassez de poupança.8 Isso porque, en-
quanto no período inicial do processo de industrialização dos
países centrais a pouca disponibilidade de recursos (deter-
minada pela baixa renda per capita) mostrava-se compatível
com a quantidade (também baixa) de capital exigida para o
emprego das técnicas existentes, a incorporação das técnicas
modernas pelos países da América Latina, à medida que exigia
uma quantidade considerável de recursos, tropeçava constan-
temente na escassez de poupança (decorrente do baixo nível
de renda per capita) (CEPAL, 2000a, p. 163).
Além disso, no caso dos países periféricos, a produção em
grande escala também esbarraria em limites impostos pelo lado
da demanda. Isso porque, enquanto nos países centrais “a renda
originalmente exígua coincidiu com formas de produção de es-
cala proporcionalmente reduzida” – havendo tempo para que o
aumento da renda acompanhasse o aumento de produtividade
e garantisse a absorção do aumento de produção –, nos países
que incorporam tardiamente as técnicas industriais modernas,
“a demanda é baixa porque a produtividade é pequena, e esta
o é porque a demanda exígua se opõe, por sua vez, juntamente
com outros fatores à utilização de elementos de técnica mais
avançada” (CEPAL, 2000a, p. 164).9 Sobre o lado da demanda,
poderia ser mencionado ainda o conhecido “efeito demonstra-
ção”, que produz na população periférica o desejo de manter
um padrão de consumo equivalente ao padrão de consumo dos
países centrais e gera impactos negativos sobre a poupança e o
balanço de pagamentos.

8
Não poderia deixar de notar com certa estranheza o fato de a Cepal ter in-
corporado em sua formulação, nesse ponto particular, um dos axiomas fun-
damentais de toda teoria ortodoxa: a ideia de que o investimento tem por
pressuposto a poupança. Vale ressaltar, inclusive, que este talvez tenha sido
um dos pontos centrais da crítica dirigida por Tavares e Serra (1973, p. 159)
a Celso Furtado, evidenciada quando afirmam que “Furtado parece ter ves-
tido a ‘camisa de força’ de um modelo neoclássico de equilíbrio geral – ele-
gante, mas ineficaz para explicar a dinâmica de uma economia capitalista”.
9
Essa é uma tese muito difundida a partir do trabalho clássico de Alexander
Gerschenkron (1962) sobre o perfil diferenciado dos países de industrializa-
ção retardatária. No caso da industrialização brasileira, um estudo clássico
sobre a especificidade que explica e provoca o “atraso” no processo de in-
dustrialização é aquele oferecido por João Manuel Cardoso de Mello (1982).

161
Por fim, a incorporação de técnicas modernas também es-
barraria, no caso dos países periféricos, no excesso de popula-
ção. Como se sabe, o progresso técnico implica normalmente
a substituição de técnicas mais intensivas em mão de obra por
técnicas mais intensivas em capital (e poupadoras de mão de
obra), tanto nos países centrais, quanto nos países periféricos.
Nos países centrais, no entanto, o florescimento das indústrias
de bens de capital acabaria servindo como “poderoso elemen-
to de absorção da mão-de-obra desempregada”. Como nos pa-
íses periféricos geralmente o setor de bens de capital é inci-
piente (ou inexistente), não apenas o mecanismo de absorção
de mão de obra deixaria de funcionar, mas também a demanda
por bens de capital “passa a provocar efeitos na economia dos
centros industrializados, onde esses bens de capital são pro-
duzidos”. Além disso, considerando o nível baixo de salários
encontrado nos países periféricos, nem sempre a introdução
de novas tecnologias se mostraria economicamente interes-
sante (CEPAL, 2000a, p. 167 e 168).
Nesse sentido, ainda que a Cepal (2000a, p. 164) tenha re-
conhecido as vantagens de “encontrar nos grandes centros
uma técnica que custou a estes muito tempo e sacrifício”, as
inúmeras “desvantagens inerentes ao fato de acompanharem
tardiamente a evolução dos acontecimentos” tornavam a atu-
ação deliberada do Estado na promoção do desenvolvimento
ainda mais importante no caso dos países periféricos. Além de
produzir a já mencionada deterioração dos termos de troca
(responsável pela manutenção da condição periférica), no pla-
no internacional, o livre jogo das forças de mercado também
não seria capaz de corrigir os problemas acima enunciados.
Nos termos de Prebisch (1983, p. 1083),
as mudanças estruturais inerentes à industrialização re-
querem racionalidade e visão de uma política governa-
mental e investimento em infraestrutura para acelerar
o crescimento econômico, obter uma relação adequada
entre a indústria e a agricultura e outras atividades, e
reduzir a vulnerabilidade externa. Portanto, [há] fortes
razões em favor do planejamento.

162
Seção 6.3 Considerações finais

Uma vez apresentadas as linhas gerais da teoria do desen-


volvimento produzida no âmbito da Cepal, dedicamos esta
seção de encerramento do capítulo à indicação de alguns ele-
mentos que permitam reunir a formulação cepalina no conjun-
to mais amplo de concepções que encaram o desenvolvimento
exclusivamente em termos da reprodução, em escala universal,
das relações sociais capitalistas. Iniciamos, portanto, resga-
tando alguns pressupostos fundamentais compartilhados pela
teoria cepalina e as demais teorias do desenvolvimento formula-
das no período: a despeito das particularidades, compartilham
todas uma mesma noção de desenvolvimento (que toma como
pressuposto a forma elementar de riqueza característica do capi-
talismo), uma mesma estratégia de desenvolvimento (que toma
como pressuposto o modo industrial de produzir) e um mesmo
ideal de desenvolvimento (espelhado nos países capitalistas
desenvolvidos).
Com a indicação desses elementos comuns às teorias ana-
lisadas nos três últimos capítulos, não pretendemos, no entan-
to, negar a existência de especificidades – sejam elas determi-
nadas por fatores de origem histórica, geográfica, teórica, ide-
ológica etc. No que diz respeito ao referente histórico-geográ-
fico, por exemplo, vale recordar que as reflexões produzidas
pela Cepal estavam particularmente direcionadas para a situ-
ação dos países latino-americanos. Do mesmo modo, no que
tange aos fatores teórico-ideológicos, também não podemos
deixar de reconhecer o fato de que todo o conjunto de teorias
associadas à Cepal, ou ao estruturalismo de modo mais am-
plo, é construído como crítica do ideário liberal-conservador.
Nesse sentido, é preciso perceber que o ideal de desenvol-
vimento projetado pela Cepal efetivamente difere, em certos
aspectos, da imagem veiculada pelas teorias de inspiração li-
beral – basta lembrar, por exemplo, a visão cepalina sobre o
funcionamento do mercado no plano internacional ou sobre a
necessidade do planejamento, cientificamente amparado – e,
por esse motivo, reclama o estatuto de “teoria crítica”.

163
Considerando, no entanto, que a Cepal articulava uma ima-
gem de futuro que tinha também como contraponto o ideal
construído em torno do “socialismo realmente existente”, não
fica difícil concluir que se trata de mais uma instância de uma
visão de mundo conservadora. Enquadrando essas ideias no
contexto mais amplo do mundo bipolarizado do pós-guerra,
não fica difícil perceber o papel desempenhado por parte das
comissões regionais (criadas todas naquele mesmo período)
na “domesticação ideológica” do Terceiro Mundo (MARINI,
1992, p. 73 e 74). Como já havíamos indicado, o objetivo da
Cepal e das demais comissões era estudar os problemas es-
pecíficos de cada uma das regiões e propor políticas para a
promoção do desenvolvimento capitalista, respondendo, com
isso, às inquietações provocadas pela emergência de inúmeros
novos Estados nacionais e à percepção das enormes desigual-
dades de renda no plano internacional.
Portanto, o fato de se constituir como crítica do ideário li-
beral-conservador não deve levar à conclusão de que as ideias
cepalinas conformam uma crítica da sociedade capitalista en-
quanto tal. Como já ressaltado, a crítica científica pode assu-
mir diversas feições e se expressar em diversos planos – sen-
do possível até mesmo afirmar que todas as teorias, inclusive
as mais conservadoras, constroem-se como críticas (seja do
senso comum formado sobre um determinado objeto, seja de
interpretações científicas concorrentes). No entanto, quando
nos referimos a alguma perspectiva autenticamente “crítica”
neste estudo, tomamos por referência teorias que dirigem suas
colocações explicitamente não apenas contra outras ideias,
mas também contra as formas de existência objetiva que as
reclamam como ideias correntes, necessárias.10
Se a teoria cepalina atende ao primeiro critério, pois recusa
as concepções econômicas ortodoxas e procura demonstrar sua
falsidade, não se pode afirmar que atende ao segundo, porque
10
O melhor exemplo de crítica científica autêntica, tomada como referência
no presente estudo, é certamente aquela dirigida por Marx à ciência econô-
mica, que aparece em diversos dos seus trabalhos, mas ganha forma mais
bem-acabada em O capital. Uma explicação sintética do caráter peculiar da
crítica de Marx pode ser encontrada em Duayer (2001).

164
jamais se pergunta se as concepções ortodoxas são ou foram
concepções necessárias à reprodução do capitalismo num pe-
ríodo determinado. Não é por outra razão que os autores ins-
pirados nas ideias cepalinas tomam as teorias ortodoxas como
produção científica de menor valor, mesmo quando a ortodoxia
demonstra-se de fato ortodoxa, isto é, hegemônica.
Para quem observa os dois conjuntos teóricos desde uma
perspectiva externa, entretanto, suas divergências no plano te-
órico, e mesmo no plano político-ideológico, podem ser toma-
das como a expressão de condições concretas da reprodução
sistêmica, que se alteram ao longo do tempo. Por isso, podem
ser minimizadas, ainda que não negligenciadas, na compreen-
são do processo de desenvolvimento das próprias ideias. Essa
é justamente a perspectiva assumida neste estudo, razão pela
qual julgamos pertinente dirigir à Cepal e ao seu antagonista
direto (a explicação convencional do desenvolvimento) uma
única e mesma crítica.

165
Capítulo 7
As tendências do debate sobre desenvolvimento
no pós-1970

Apresentadas as principais contribuições à teoria do desen-


volvimento produzidas em seu período de nascimento e pro-
liferação (isto é, entre as décadas de 1940 e 1960), dedicamos
o presente capítulo à indicação das mudanças mais substan-
tivas sofridas pela temática do desenvolvimento no período
posterior à década de 1970. Esse recorte justifica-se, como já
indicado, pois a crise dos anos 1970 – conhecida pela “inusita-
da” combinação de estagnação (baixo crescimento) e inflação
– marca uma série de profundas transformações na economia
mundial que não poderiam deixar de refletir-se no estudo sobre
desenvolvimento econômico. Como reconhecido por diversos
comentadores (e mesmo por alguns teóricos do desenvolvi-
mento) (HIRSCHMAN, 1982), a crise dos anos 1970, aliada à pos-
terior ruína do socialismo real, refletiu-se inicialmente em uma
crise para a disciplina, seguida de substantivas reorientações.
Em primeiro lugar, a crise na disciplina assume a forma de
um crescente ceticismo quanto à possibilidade de superação
do subdesenvolvimento e promoção da tão almejada con-
vergência da riqueza das nações. Assim, as décadas de 1960
e 1970 são marcadas pelo surgimento de inúmeros trabalhos
questionando a possibilidade de realização do ideal de de-
senvolvimento compartilhado pelas concepções “clássicas”
do desenvolvimento, mesmo entre autores profundamente
identificados com as teorias já mencionadas. No caso latino-
-americano, por exemplo, são bastante emblemáticos a infle-
xão ocorrida no âmbito da Cepal e o aparecimento do conjunto
de formulações conhecido como teorias da dependência – que,
apesar da não homogeneidade, compartilham o entendimento
de que o sistema econômico mundial, por sua própria consti-
tuição, produz desenvolvimento de alguns à custa do subde-
senvolvimento de outros.1

1
Além da saída de Prebisch, em 1963, a inflexão ocorrida no âmbito da Cepal
se faz sentir, especialmente, nos trabalhos de Anibal Pinto (Chile, um caso
Por outro lado, observa-se o surgimento de toda uma nova
literatura decidida a provar que o fracasso na promoção do
desenvolvimento não deriva da impossibilidade de realização
do projeto em si, mas das estratégias adotadas para promovê-
-lo (especialmente aquelas focadas na industrialização com
intervenção do Estado na economia). Na verdade, esse expe-
diente crítico pode ser visto como reflexo de uma mudança
mais ampla no plano político-ideológico, marcada pelo enfra-
quecimento do keynesianismo e ressurgimento da ideologia
liberal (renovada sob a roupagem do neoliberalismo). Nesse
sentido, além da tentativa de demonstrar os equívocos das
estratégias de desenvolvimento baseadas na intervenção e no
planejamento, as principais contribuições nesse campo enten-
dem que a resolução de problemas característicos dos países
subdesenvolvidos depende, fundamentalmente, da ampliação
da liberdade de mercado.
Finalmente, esse contexto também é marcado pelo surgi-
mento de teorias que acreditam que o problema do desenvol-
vimento não está no seu caráter “mitológico” ou nos equívocos
estratégicos, mas na própria definição de desenvolvimento.
Assim, embora diversos autores continuem a tratar o desenvol-
vimento econômico como sinônimo de crescimento do produ-
to – como pode ser visto, por exemplo, nos novos modelos de

de desenvolvimento frustrado, de 1962), Celso Furtado (Subdesenvolvimento


e estagnação, de 1966) e Oswaldo Sunkel (Mudança social e frustração no
Chile, de 1965), considerados representantes do debate sobre dependência
realizado no seio da instituição. Para além dessas contribuições, as teorias
da dependência podem ser divididas em duas grandes vertentes: a primeira,
de declarada orientação marxista, descendente direta da tradição leninista
da teoria do imperialismo, é inaugurada com os trabalhos de André Gunder
Frank (Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina, de 1967), The-
otonio dos Santos (A estrutura da dependência, 1970) e Ruy Mauro Marini
(Dialética da dependência, de 1972); e a segunda, comumente caracteriza-
da como a vertente weberiana da teoria da dependência, foi elaborada a
partir do trabalho pioneiro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto
(Dependência e desenvolvimento na América Latina, de 1970). As teorias da
dependência, no entanto, não serão aqui tomadas como objeto de estudo
por se proporem, ao menos na sua vertente marxista, como crítica externa
das teorias de desenvolvimento convencionais (isto é, daquelas formuladas
no interior da ciência econômica). Investigar se essa alegação de externali-
dade é justificada exigiria um estudo à parte.

168
crescimento que utilizam aparatos matemáticos e estatísticos
cada vez mais sofisticados –, ganha força durante esse período
a perspectiva segundo a qual o desenvolvimento não pode ser
entendido como sinônimo de crescimento do produto.
Uma reorientação bastante significativa no debate sobre
desenvolvimento, portanto, está relacionada à alteração mais
profunda na noção de desenvolvimento. Com a constatação
de que o processo de intensa industrialização do período an-
terior, além de produzir evidentes danos ambientais, não foi
capaz de conduzir a uma situação considerada suficientemen-
te igualitária e promover a desejada convergência da riqueza
das nações, novas dimensões foram sendo progressivamente
incorporadas à ideia de desenvolvimento, que se torna mais
“fragmentada”: não bastaria mais falar naquele “desenvolvi-
mento econômico” medido somente em termos da produção
nacional (preferencialmente a produção per capita, incapaz de
revelar as desigualdades distributivas) e que teria como meta
diminuir as disparidades de renda entre as nações, mas de um
desenvolvimento que é sustentável em sentido amplo, ou seja,
baseado em uma sustentabilidade física (ecológica), econômi-
ca (de durabilidade ao longo do tempo) e social (inclusiva).
Além da incorporação das novas temáticas (especialmente
da equidade e da sustentabilidade) no debate sobre desenvol-
vimento, é possível perceber também que a derrocada do “so-
cialismo” real fez praticamente desaparecerem as discussões
sobre o caráter histórico do capitalismo e as possibilidades de
pensar o desenvolvimento para além dos marcos desse modo
de produção. O resultado é que, nas formulações mais recen-
tes, o grau de confiança no poder dos mercados e do Estado
passa a ser o alvo exclusivo das disputas. Ou seja, enquanto as
teorias dominantes sustentam a precedência do irrestrito fun-
cionamento do mercado sobre o dirigismo estatal (sem ignorar
a eventual necessidade do Estado, especialmente na garantia
do bom funcionamento dos mercados), as teorias heterodoxas
defendem uma participação mais ativa do Estado (sem negar,
no entanto, a importância do mercado forte). O debate, enfim,
gira em torno do grau de intervenção do Estado necessário

169
para objetivar a sociedade projetada pelas diferentes teorias
do desenvolvimento.
Na tentativa de oferecer um panorama geral da forma como
o desenvolvimento é tratado a partir da década de 1970, o pre-
sente capítulo divide-se em duas seções. Na primeira, serão
apresentadas algumas das principais temáticas incorporadas
ao debate sobre desenvolvimento, com especial ênfase na
contribuição de Amartya Sen para a redefinição do conceito.
Na segunda, trataremos das tentativas de redefinição das es-
tratégias de desenvolvimento centradas no debate Estado x
Mercado. Para tanto, começamos com a ofensiva neoliberal sis-
tematizada na agenda do Consenso de Washington, seguida de
perspectivas mais “conciliadoras”, como aquelas contidas na
agenda do Pós-Consenso e da Nova Cepal, por exemplo. Feito
isso, utilizamos a contribuição de Ha-Joon Chang como ilustra-
ção de um movimento mais recente de surgimento de perspec-
tivas que, partindo de uma crítica às “boas políticas” prescritas
pelo Consenso de Washington, resgatam as teorias “clássicas”
do desenvolvimento e, junto com elas, a velha noção de desen-
volvimento (associada ao planejamento e industrialização).

Seção 7.1 A requalificação do debate sobre


desenvolvimento

Como visto nos três capítulos anteriores, uma das principais


semelhanças entre as teorias do desenvolvimento produzidas
no período pré-1970 é o fato de tomarem o desenvolvimento
como sinônimo de aumento da riqueza (medida pelo cresci-
mento do produto per capita) e compartilharem, de modo qua-
se unânime, o entendimento de que a realização desse objetivo
deve passar pela industrialização das economias subdesenvol-
vidas, o que quer dizer que todas aquelas colocações, a des-
peito de sua diversidade, projetam para o futuro de todas as
nações uma sociedade capitalista num formato determinado.
Isso não significa, evidentemente, que as teorias “clássicas”
do desenvolvimento tenham desprezado a necessidade de o
crescimento econômico ser acompanhado por uma melhoria

170
nas condições de vida da população, por vezes explicitamente
mencionada como o objetivo último do desenvolvimento. No
entanto, considerando as experiências “bem-sucedidas” dos
chamados países desenvolvidos e a disseminação da crença
segundo a qual o aumento na qualidade de vida seria um resul-
tado quase inexorável do crescimento do produto, a renda per
capita serviu durante aqueles anos como o principal critério
de mensuração e avaliação dos diferentes graus de desenvol-
vimento das nações.
Diante dos resultados pouco animadores decorrentes da
implementação de estratégias de superação do subdesenvol-
vimento, das inúmeras denúncias sobre a devastação do meio
ambiente resultante do processo de industrialização e da cons-
tatação de que esse processo não havia se traduzido em uma
distribuição mais equitativa da renda, assiste-se à proliferação
de questionamentos sobre o caráter positivo do processo de
desenvolvimento, tal como concebido até então. Assim, espe-
cialmente durante as décadas de 1980 e 1990, entram subita-
mente em cena novas formulações argumentando que o de-
senvolvimento deve envolver a realização de objetivos mais
amplos, como, por exemplo, equidade, sustentabilidade, me-
lhoria no acesso a bens como saúde, educação etc. Estas for-
mulações não chegam a negar a importância do crescimento
econômico para o desenvolvimento, mas tratam o primeiro
como apenas um aspecto do último (ou ainda, como condição
necessária, mas não suficiente).
Uma das tentativas mais emblemáticas de redefinir a noção
de desenvolvimento, utilizada aqui para ilustrar essa impor-
tante tendência do debate no período pós-1970, talvez tenha
sido aquela promovida por Amartya Sen, laureado Nobel de
Economia em 1998. Isso porque, além da significativa produção
teórica voltada à exposição do seu enfoque das capacidades e
à defesa do desenvolvimento como liberdade (cujos contornos
pretendemos delinear adiante), Sen atuou como colaborador
direto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), sendo um dos responsáveis pela elaboração do índice
de desenvolvimento humano (IDH).

171
Construído com base na convicção de que desenvolvimen-
to deve ir além do simples aumento da renda per capita, o ín-
dice foi apresentado no primeiro Relatório de Desenvolvimento
Humano (RDH) em 1990, cuja mensagem central representa
fielmente a mudança de perspectiva característica do período:
“enquanto o crescimento da produção nacional (PIB) é absolu-
tamente necessário para alcançar todos os objetivos humanos
essenciais, o importante é estudar como esse crescimento se
traduz – ou falha em se traduzir – em desenvolvimento huma-
no em várias sociedades” (PNUD, 1990, iii). Nesse sentido, na
tentativa de oferecer uma forma de mensuração do desenvolvi-
mento que não se restrinja apenas ao rendimento nacional per
capita, mas que também incorpore elementos relacionados às
condições de vida da população, o IDH conjuga indicadores de
renda, esperança de vida e nível de escolaridade, cujos dados
se encontram disponíveis para a maioria dos países.
Como explicitamente reconhecido pelos formuladores do
IDH já no momento de sua criação, e reafirmado no balanço
realizado no vigésimo RDH, publicado em 2010, a simplicidade
do novo indicador poderia ser vista, ao mesmo tempo, como
uma virtude e um defeito. Por um lado, a simplicidade do IDH
poderia ser encarada como um “ponto forte”, pois permitiria
que o indicador fosse utilizado como uma alternativa ao PIB
per capita e despertasse o interesse do público em geral pe-
las outras variáveis analisadas ao longo do relatório. Por ou-
tro lado, o fato de basear-se em médias nacionais tornava o
indicador insensível às assimetrias distributivas, não havendo
também uma “medida quantitativa de liberdade humana” que
pudesse ser a ele incorporada (PNUD, 2010, p. 4). Nos termos
de Sen (2010, p. 6), portanto, “os limites estreitos do IDH” não
devem ser confundidos com a “enorme amplitude da aborda-
gem do desenvolvimento humano” ou com a reorientação por
ele proposta (ainda que, carregado de méritos, o indicador sir-
va como uma boa aproximação).
Como pode ser visto, por exemplo, no artigo publicado por
Sen no início dos anos 1980 e intitulado Development: which
way now?, o autor busca, por um lado, oferecer um contraponto

172
ao ceticismo que naquele momento declarava morta e enterra-
da a discussão sobre desenvolvimento e, por outro, opor-se
àquelas perspectivas preocupadas em retomar o debate sobre
desenvolvimento exclusivamente com base em reformulações
estratégicas. Diferentemente de ambas, a formulação propos-
ta por Sen toma como ponto de partida uma reafirmação das
principais teses e estratégias defendidas pelas teorias “clássi-
cas” do desenvolvimento (exercício realizado pelo autor por
meio da análise de algumas experiências concretas), acompa-
nhada da tentativa de agregar a essas teorias novas dimensões
e responder, com isso, aos anseios de ampliação da noção de
desenvolvimento.
Nesse sentido, assim como a perspectiva defendida no RDH
reafirma a importância do crescimento econômico para o de-
senvolvimento (refletida na própria manutenção da renda per
capita como um dos elementos componentes do IDH), o pon-
to central do argumento de Sen não consiste na negação do
crescimento ou na rejeição dos meios propostos pelas teorias
“clássicas” do desenvolvimento com vistas a esse objetivo. A
“real limitação da economia do desenvolvimento tradicional”
residiria, segundo Sen (1983, p. 753 et seq.), no “reconhecimen-
to insuficiente de que o crescimento econômico não é mais que
um meio para outros objetivos”. Ou seja, “o ponto não é dizer
que o crescimento não importa. Ele pode ter grande relevân-
cia, mas, se tem, é por causa de alguns benefícios a ele associa-
dos, que se realizam no processo de crescimento econômico”.
De acordo com Sen (1983), portanto, ao contrário do foco
na “produção nacional, renda agregada ou oferta de determi-
nados produtos”, as teorias do desenvolvimento deveriam
preocupar-se com os intitulamentos [entitlements] e com as ca-
pacidades [capabilities] geradas por tais intitulamentos. Estes
devem ser entendidos como o “conjunto de diferentes paco-
tes de mercadorias que uma pessoa pode comandar em uma
sociedade, utilizando a totalidade de direitos e oportunidades
que estão diante dela”. O conceito de funcionamento, por sua
vez, expande o campo da avaliação do bem-estar para além
dos limites da reprodução material (economia), refletindo “as

173
várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer
ou ter. Os funcionamentos valorizados podem variar dos ele-
mentares, como ser adequadamente nutrido e livre de doenças
evitáveis, a atividades ou estados pessoais muito complexos,
como poder participar da vida da comunidade e ter respeito
próprio” (SEN, 2000, p. 95).
As capacidades, finalmente, são entendidas como o conjun-
to de funcionamentos disponíveis aos indivíduos dada a tota-
lidade de seus recursos, ou seja, a capacidade de uma pessoa
“consiste nas combinações alternativas de funcionamentos
cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um
tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combina-
ções alternativas de funcionamentos (ou, menos formalmen-
te expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos)”. A
ideia é que, se se considerar todo o conjunto de combinações
de funcionamentos disponíveis aos indivíduos (o que Sen de-
nomina “conjunto capacitário”), pode-se formar um juízo dos
estilos de vida à sua disposição e da liberdade que alcançaram
para escolher a vida que se deseja levar (SEN, 2001, p. 80).
Em linhas gerais, portanto, a teoria do desenvolvimento
proposta por Sen defende que, ao contrário do crescimento do
produto, o processo de desenvolvimento deve envolver a am-
pliação das liberdades individuais (capacidades). Considerando
ainda a “relação funcional entre os intitulamentos das pessoas
sobre bens e suas capacidades, uma caracterização útil – ainda
que derivada – do desenvolvimento econômico é em termos da
expansão dos intitulamentos” (SEN, 1983, p. 755). Como siste-
matizado, sobretudo, no ciclo de palestras proferido no Banco
Mundial nos anos de 1996/1997 e posteriormente publicado no
livro Desenvolvimento como liberdade, a “expansão da liberda-
de é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o prin-
cipal meio do desenvolvimento” (SEN, 2000, p. 10).
Ainda que tenham sido poucas as categorias aqui recolhidas
do trabalho de Sen, acredita-se que já são suficientes para de-
linear sua concepção de desenvolvimento e, portanto, deixar
clara a sua diferença em relação às teorias do desenvolvimento
do período anterior. Já as convergências entre a teoria seniana

174
e todas as demais (abordadas neste capítulo e nos últimos) se-
rão tratadas no momento oportuno (isto é, na conclusão deste
capítulo e na conclusão geral do livro). Seria um desperdício,
no entanto, se não fossem indicados de pronto os elementos
de seu raciocínio que expõem de modo relativamente claro a
perspectiva político-ideológica a que se filia.
Em primeiro lugar, no que diz respeito à forma como Sen
trata a relação entre as liberdades substantivas (fins) e instru-
mentais (meios), é preciso notar que, assim como os intitula-
mentos não significam apenas as rendas reais disponíveis para
os sujeitos, a expansão dos intitulamentos, entendida pelo au-
tor como um dos meios para alcançar o desenvolvimento, não
deve ser confundida com a simples melhoria na distribuição
de renda.2 Isso porque os usos que os indivíduos podem “dar
a um dado pacote de mercadorias ou, de um modo mais geral,
a um dado nível de renda” são bastante distintos e “dependem
crucialmente de várias circunstâncias contingentes, tanto pes-
soais como sociais” (SEN, 2000, p. 90).
De acordo com Sen, portanto, existiriam ao menos “cinco
fontes distintas de variação entre nossas rendas reais e as van-
tagens – o bem-estar e a liberdade – que delas obtemos”: (1)
heterogeneidades pessoais, (2) diversidades ambientais, (3)
variações no clima social, (4) diferenças de perspectivas rela-
tivas, e (5) distribuição na família. Em primeiro lugar, as “hete-
rogeneidades pessoais” seriam aquelas “características físicas
díspares relacionadas a incapacidade, doença, idade ou sexo”
que fazem com que as necessidades dos indivíduos sejam dife-
renciadas. As “diversidades ambientais” incluiriam, por exem-
plo, “circunstâncias climáticas (variações de temperatura,
níveis pluviométricos, inundações etc.)” que também “podem
influenciar o que uma pessoa obtém de determinado nível de
renda”. As “variações no clima social”, por sua vez, incluiriam
“os serviços públicos de educação” e/ou a “prevalência ou
2
Ainda que reconheça méritos nas tentativas, bastante comuns no período
pós-1970, de mudar o foco para as questões distributivas, Sen (1983, p. 760)
entende que “suplementar dados sobre o PNB per capita com informação
sobre distribuição de renda é bastante inadequado para dar conta dos re-
querimentos da análise do desenvolvimento”.

175
ausência de crime e violência na localidade específica”. No que
diz respeito às “diferenças de perspectivas relativas”, Sen afir-
ma que “as necessidades de mercadorias associadas a padrões
de comportamento estabelecidos podem variar entre comuni-
dades, dependendo de convenções e costumes”. Finalmente, a
“distribuição na família” trataria do fato de que “as rendas au-
feridas por um ou mais membros de uma família são compar-
tilhadas por todos – tanto por quem a ganha como por quem
não a ganha” (SEN, 2000, p. 90 e 91).
Considerando os propósitos do presente estudo, a análise
da forma como Sen refere-se às “características distintivas dos
seres humanos” (misturando diferenças individuais e sociais) é
particularmente importante, pois, como sugere Medeiros (2007,
p. 72 et seq.), é nesse momento que “Sen fornece os primeiros
indícios para revelar um aspecto marcante – e raramente expli-
citado – de sua abordagem: o seu caráter aistórico, restrito ao
âmbito da ordem social vigente”. Isso porque, na medida em que
“características pessoais irredutíveis (genotípicas e fenotípicas)”
e “aspectos históricos (resultantes do desenvolvimento social)”
são colocados no mesmo plano (“o das diversidades dos seres
humanos, [...] como se a diversidade entre estas diversidades
inexistisse ou fosse absolutamente irrelevante”), características
inerentemente sociais como, por exemplo, a divisão de classes
são naturalizadas “e a crítica dirigida a qualquer distinção her-
dada da história (entre escravos e libertos, por exemplo) passa
a ter o mesmo estatuto de ataques criminosos à diversidade hu-
mana (como o nazismo e o racismo)”.
No que diz respeito ao caráter instrumental da liberdade
(ou seja, ao fato de que a liberdade em uma determinada di-
mensão, digamos política, seja meio para ampliar a liberdade
em outra dimensão, digamos econômica), Sen (2000, p. 55) lis-
ta cinco tipos diferentes de liberdade que teriam esse caráter
pronunciado: (1) liberdades políticas, (2) facilidades econômi-
cas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência
e (5) segurança protetora. Para os propósitos do presente ar-
gumento, concentremos as atenções nas “facilidades econô-
micas”, que, segundo o autor, são “as oportunidades que os

176
indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propó-
sitos de consumo, produção ou troca”. Trata-se, enfim, para
dizê-lo resumidamente, da “liberdade de participar irrestrita-
mente de todos os mercados” (MEDEIROS, 2007, p. 219).
Mesmo de um leitor distraído chamaria a atenção o fato de
que a liberdade de mercados seja considerada não apenas cons-
titutiva do desenvolvimento (liberdade), mas um meio poderoso
para alcançá-lo. Essa é sem dúvida uma defesa do livre merca-
do não apenas explícita, mas talvez ainda mais contundente do
que a realizada por autores de renome do pensamento liberal,
inclusive Smith, pois, embora muitos liberais tenham afirmado
que o laissez-faire é condição para alcançar o desenvolvimento
(instrumento), poucos chegaram a afirmar que ele é por si mes-
mo um atributo definidor da nação desenvolvida. Trata-se, em
suma, não apenas de uma proposição conservadora, mas, em
tempos neoliberais, de uma proposição radicalmente conserva-
dora, como o autor parece fazer questão de deixar claro na pas-
sagem seguinte:

Ser genericamente contra os mercados seria quase tão


estapafúrdio quanto ser genericamente contra a conver-
sa entre as pessoas (ainda que certas conversas sejam
claramente infames e causem problemas a terceiros –
ou até mesmo aos próprios interlocutores). A liberdade
de trocar palavras, bens ou presentes não necessita de
justificação defensiva com relação a seus efeitos favorá-
veis mais distantes; essas trocas fazem parte do modo
como os seres humanos vivem e interagem na socieda-
de (a menos que sejam impedidos por regulamentação
ou decreto). A contribuição do mecanismo de mercado
para o crescimento econômico é obviamente importan-
te, mas vem depois do reconhecimento da importância
direta da liberdade de troca – de palavras, bens, presen-
tes. (SEN, 2000, p. 21).

177
Seção 7.2 O dilema “Estado x Mercado”

Além da tentativa de incorporar novas temáticas ao deba-


te sobre desenvolvimento, a década de 1970 foi marcada pela
retomada da hegemonia neoliberal nos planos teórico, políti-
co e ideológico. Como retratado anteriormente,3 o projeto ne-
oliberal ganha força com base no argumento de que a crise
vivenciada por diversos países nos anos 1970 tinha origem
no excesso de intervenção do Estado na economia. Assim, en-
quanto nos países “desenvolvidos” essa concepção traduziu-
-se especialmente em um ataque ao Estado de bem-estar so-
cial e das instâncias de organização e representação da classe
trabalhadora (sindicatos e partidos de esquerda), no caso dos
países “subdesenvolvidos” o diagnóstico neoliberal entendia a
crise como manifestação da suposta falência do modelo de de-
senvolvimento implementado nesses países durante os anos
anteriores.
À medida que o debate sobre política econômica passou a
ser dominado, predominantemente, por questões de curto pra-
zo (particularmente voltadas para a necessidade de estabiliza-
ção macroeconômica), a virada neoliberal foi repetidamente
rotulada como o “fim do debate sobre desenvolvimento”. No
entanto, apesar de aparecer inicialmente de maneira dispersa,
como um simples conjunto de políticas de curto prazo, é pos-
sível identificar no projeto neoliberal tanto um ideal de desen-
volvimento, quanto uma estratégia para alcançá-lo. Do ponto
de vista do ideal de desenvolvimento, pode-se dizer que as mu-
danças não foram muito significativas: assim como no caso das
teorias “clássicas”, o desenvolvimento seguia sendo encarado
fundamentalmente como sinônimo de crescimento do produto.
Do ponto de vista da estratégia, no entanto, tratava-se de resga-
tar “velhos” argumentos clássicos e neoclássicos em favor da
liberdade de mercado.
De modo geral, a estratégia de desenvolvimento neolibe-
ral pode ser dividida em três momentos de uma mesma lógi-
ca: o ponto de partida seria a estabilização macroeconômica
3
Ver Capítulo 3, Seção 2.

178
(primeiro momento), precondição para as reformas estruturais
(segundo momento) necessárias à retomada do investimento e
crescimento (terceiro momento). A estabilização seria, assim,
um dos pilares da estratégia (mas não o maior, conforme co-
mumente se afirma), e a forma de se alcançar a estabilidade e
operar a sequência das reformas dependeria das especificida-
des de cada país. No entanto, a lógica seria sempre a mesma: a
estabilidade aparece como uma precondição para as reformas
e as reformas como uma precondição para a retomada do in-
vestimento e do crescimento.
Esse projeto de desenvolvimento foi sistematizado, sobre-
tudo, na agenda do chamado Consenso de Washington – resul-
tado de um encontro realizado no fim da década de 1980 que
buscava averiguar o andamento das reformas neoliberais já em
curso na América Latina e, mesmo diante dos resultados pou-
co animadores, enfatizar a necessidade de dar prosseguimen-
to a sua implementação. Embora tenha sido construído com
vistas especificamente às circunstâncias latino-americanas, o
Consenso apresentava um conjunto de reformas que se supu-
nha necessário a quaisquer países e amplamente aceito por
todos os “economistas sérios”4 (WILLIAMSON, 1994, p. 18). As
reformas assim propostas deveriam, de modo geral, estar vol-
tadas para a abertura comercial, a desregulamentação e libera-
lização do sistema financeiro e a mudança do papel do Estado
na economia. Em suma, tratava-se de implementar reformas
“pró-mercado” que garantissem a esta instituição o papel prin-
cipal na alocação dos recursos econômicos. Por isso seria ne-
cessário garantir o saneamento das contas públicas (por meio
de corte de gastos, privatizações etc.) para criar um ambiente
favorável aos investimentos e à lucratividade do setor privado
(WILLIAMSON, 1990).
4
Diante das controvérsias suscitadas pelo caráter pretensioso da expressão
Consenso de Washington, Williamson (2004b, p. 285) observa ainda que:
“Um dos debatedores de meu trabalho, Richard Feinberg, argumentou que
ela deveria ter sido chamada ‘convergência universal’, porque (1) a mudan-
ça no pensamento econômico que ela resumia era de âmbito mundial, em
lugar de confinada a Washington; e (2) a extensão do acordo ficava muito
aquém do consenso. É claro que Feinberg estava correto em ambos os pon-
tos, mas era tarde demais para mudar o nome de marca.”

179
No que diz respeito ao debate sobre desenvolvimento, essa
proposta recebeu inúmeras (e acertadas) críticas, especialmen-
te após a avaliação do desempenho econômico dos países sub-
desenvolvidos na década de 1990 (conhecida, no caso latino-
-americano, como a “década mais que perdida”). De um lado,
parte dos críticos tentava ressaltar a necessidade de resgatar
o Estado como agente promotor do desenvolvimento, sem com
isso negar a relevância do mercado. De outro, os defensores da
agenda neoliberal tratavam de afirmar (1) a necessidade de com-
pletar as “reformas de primeira geração” (especialmente pro-
movendo a desregulamentação do mercado de trabalho), (2) a
necessidade de implementar as “reformas de segunda geração”
(voltadas especialmente para o fortalecimento das instituições)
e (3) a necessidade de combinar crescimento e equidade social.
Em linhas gerais, portanto, a agenda focada especialmente
nos pontos (2) e (3) (também conhecida na literatura econô-
mica sob o título de Pós-Consenso de Washington) não propõe
a reversão das reformas, mas uma espécie de gerenciamento
e direcionamento dos efeitos da abertura comercial e da libe-
ralização financeira externa, obtidos particularmente através
do fortalecimento das instituições, necessário à retomada do
crescimento acelerado e de melhorias na distribuição de ren-
da.5 Nas palavras de Williamson:

Um papel importante para as instituições é perfeita-


mente consistente com o mainstream econômico que
coloca o papel crucial do Estado para a criação e ma-
nutenção da infraestrutura institucional de uma econo-
mia de mercado, na provisão de bens públicos, inter-
nalizando as externalidades e, dependendo de visões
políticas, corrigindo a distribuição de renda (observe
que nenhum desses papéis serve para racionalizar uma
responsabilidade governamental a fim de movimentar
usinas siderúrgicas, geradoras de eletricidade, ou ban-
cos). (WILLIAMSON, 2004a, p. 10).

5
Um detalhamento das “reformas de segunda geração” constitutivas do Pós-
-Consenso pode ser visto em Williamson e Kuczynski (2004).

180
Uma postura que se pretende alternativa à proposta neoli-
beral foi defendida no âmbito da Cepal explicitamente a partir
da década de 1990. Esse período ficou conhecido por uma mu-
dança de rumos no pensamento cepalino, desde então identifi-
cado com a postura neoestruturalista, e que tem como marco a
publicação do documento Transformação produtiva com equi-
dade: a tarefa prioritária do desenvolvimento da América Latina
e do Caribe nos anos noventa. Tomando como ponto de partida
a constatação de que os anos 1980 não foram muito generosos
com as economias latino-americanas e os desafios postos para
a década de 1990,6 a perspectiva neoestruturalista busca defi-
nir uma nova estratégia de desenvolvimento para a região que
se situe no meio-termo entre os argumentos neoclássicos, em
favor dos benefícios advindos de uma economia de mercado, e
o argumento das teorias “clássicas” do desenvolvimento, par-
ticularmente da teoria “clássica” cepalina, em favor da adoção
de uma estratégia de desenvolvimento com recurso à interven-
ção do Estado na economia.
Assim, a postura adotada pela Cepal após a década de 1990
pode ser encarada como um exemplo de propostas conciliado-
ras, bastante em voga nos dias de hoje, e que se apoiam sobre
um diagnóstico de que os “novos tempos de abertura e glo-
balização” não deixam espaço para pensar o desenvolvimento
fora de uma economia de mercado.7 Não obstante, o mercado é

6
Como consta no documento: “o produto real per capita no final de 1989 não
retrocedeu ao que fora registrado dez anos antes, mas ao nível de treze anos
antes, e até mais do que isso, no caso de algumas economias. Por conse-
guinte, os países da região estão iniciando a década de 1990 com o peso
da inércia recessiva dos anos 1980, com o passivo representado por sua
dívida externa, e com a presença de uma inadequação fundamental entre es-
truturas da demanda internacional e a composição das exportações latino-
-americanas e caribenhas” (CEPAL, 2000b, p. 889).
7
Essa seria, em parte, uma das características de inúmeras intervenções
identificadas como novo-desenvolvimentistas, que têm como fundamento a
tentativa de atribuir novamente um papel mais ativo do Estado nas estraté-
gias de desenvolvimento, mas que, por outro lado, não consegue se desven-
cilhar da retórica pró-mercado. Como pode ser visto, por exemplo, no texto
de apresentação do livro Novo-desenvolvimentismo – um projeto nacional
de crescimento com equidade social: “Os termos novo-desenvolvimentismo e
neo-estruturalismo retomam a ideia da necessidade de um desenvolvimento
endógeno, mas não deixam de lado a necessidade do livre comércio para al-

181
também enxergado como uma instituição que, mesmo quando
funcionando em completa liberdade, pode ser pouco sensível
aos chamados “problemas sociais” (e também ambientais),
sobretudo no curto prazo. Dessa forma, as propostas neoes-
truturalistas (e correlatas) passam a defender a ideia de que
o Estado deveria atuar como gerenciador de políticas e refor-
mas pró-mercado, de modo a ampliar a concorrência, garantir
a eficiência econômica e estimular a incorporação de novas
tecnologias (isto é, realizar uma transformação produtiva),
e atuar como instância responsável pela distribuição mais
equitativa (e ambientalmente responsável) dos frutos dessa
transformação.
Apesar de se pretender alternativa, portanto, essa postura
guarda diversas semelhanças com a proposta neoliberal, parti-
cularmente na versão do Pós-Consenso de Washington – quan-
do se torna clara, mesmo para certas alas mais conservadoras,
a necessidade da atuação do Estado no gerenciamento e admi-
nistração das condições de reprodução sistêmica.8
Para encerrar a presente seção, gostaríamos de mencionar
ainda um tipo de intervenção relativamente recente que, par-
tindo de uma crítica às “boas políticas” prescritas pelo chama-
do Consenso de Washington, busca construir uma estratégia
de desenvolvimento alternativa ao projeto neoliberal através
de um resgate mais incisivo das teorias do desenvolvimento
formuladas nos anos 1940/1950. Como indicado na introdução,
um exemplo bastante emblemático de reorientação nesse sen-
tido é oferecido pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang,
especialmente no livro Chutando a escada: a estratégia de de-
senvolvimento em perspectiva histórica – um título que alude à

cançar competitividade internacional e, assim, um crescimento sustentado.


Da mesma forma que a economia social de mercado, o novo-desenvolvimen-
tismo é um caminho do meio entre dois extremos, este entre o livre comércio
incondicional e o protecionismo econômico, aquele entre o liberalismo e o
socialismo” (SICSU; PAULA; MICHEL, 2005, p. 31).
8
Para mais informações sobre a relação entre a também chamada Nova Cepal
e as proposições neoliberais (geralmente negada pelos membros da insti-
tuição), conferir, por exemplo, Almeida Filho (2003), Carcanholo (2008b) e
Corrêa (2007).

182
expressão utilizada por Friedrich List, economista alemão do
século XIX, defensor da proteção à indústria nascente.
Com o debate pautado, mais uma vez, em evidências empí-
ricas, autores como Chang questionam o sucesso das políticas
neoliberais na promoção do desenvolvimento e, em movimen-
to semelhante ao da década de 1970, atribuem aos adversários
a culpa pelo desempenho econômico pífio de parte das econo-
mias subdesenvolvidas nas últimas décadas. Particularmente
no caso de Chang, o argumento utilizado no ataque ao libera-
lismo e defesa do intervencionismo também toma como base
o resgate histórico das políticas e instituições efetivamente
adotadas pelos “países atualmente desenvolvidos”, “quando
se achavam em processo de desenvolvimento” (CHANG, 2004,
p. 13 et seq.) – expediente analítico que, segundo Chang, se-
ria bastante comum entre os teóricos do desenvolvimento dos
anos 1940/1950.9
De acordo com o autor, portanto, ao observar historica-
mente a forma como os “países ricos enriqueceram de fato”, é
possível chegar à conclusão de que “eles não seriam o que são
hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que ago-
ra recomendam às nações em desenvolvimento”. Ou seja, ao
contrário do que normalmente se afirma, “o fomento à indús-
tria nascente [especialmente por meio de políticas industrial,
comercial e tecnológica intervencionistas] foi a chave do de-
senvolvimento da maioria das nações” – constatação esta que
leva o autor a acreditar que os “países atualmente desenvolvi-
dos” estariam agora “‘chutando a escada’ pela qual subiram ao
topo, impedindo as nações em desenvolvimento de adotarem
as políticas e instituições que eles próprios adotaram”.

9
Citando autores como Lewis, Rostow, Kuznets, Gerschenkron e Hirschman,
que “formularam suas teorias dos ‘estágios’ do desenvolvimento econômico
com base num conhecimento profundo da história da industrialização nos
países desenvolvidos”, Chang (2004, p. 20 e 21) procura mostrar como uma
das marcas distintivas do período de “auge da economia do desenvolvimen-
to” foi a proliferação de “ensaios explicitamente destinados a transmitir aos
países em desenvolvimento as lições extraídas da experiência histórica das
nações desenvolvidas” – perspectivas essas “abafadas pela predominância
da economia neoclássica, que rejeita categoricamente esse tipo de raciocí-
nio indutivo”.

183
Para utilizar a própria metáfora sugerida por Chang (2004,
p. 210; 24), não se trata de (1) questionar a existência de uma
escada (ou seja, questionar a possibilidade de se reproduzir
nos países subdesenvolvidos os padrões de desenvolvimen-
to dos países desenvolvidos, como presente nas formulações
mais céticas) ou (2) perguntar para onde leva a escada (ou
seja, questionar o próprio padrão de desenvolvimento dos paí-
ses desenvolvidos, movimento característico das tentativas de
requalificação do debate sobre desenvolvimento, apresenta-
das na seção anterior). Ao contrário, parte-se do pressuposto
de que a escada existe (“intervenção direta do Estado, sobre-
tudo na forma de políticas industrial, comercial e tecnológi-
ca”, ainda que não seja negada a importância, por exemplo, de
políticas para a manutenção da estabilidade macroeconômica)
e leva ao caminho correto (“crescimento econômico”, entendi-
do como “a chave do desenvolvimento econômico mais ampla-
mente definido”), restando aos teóricos do desenvolvimento
apenas a tarefa de colocá-la em pé novamente.

Seção 7.3 Considerações finais

Como viemos enfatizando ao longo dos capítulos que com-


põem a Parte II do presente livro, a análise das teorias do de-
senvolvimento aqui realizada não tem como objetivo avaliar
os graus de correção ou incorreção dessas formulações. Mais
distante ainda de nossos objetivos está o questionamento so-
bre a adequação das diferentes estratégias de desenvolvimento
à realização dos ideais de desenvolvimento carregados por es-
sas teorias, seja nos anos 1950 ou nos dias atuais. Trata-se, na
verdade, de indicar como tanto as estratégias (meios) quanto
os ideais (fins) veiculados pelas teorias do desenvolvimento,
corretos ou equivocados, respondem, em cada contexto his-
tórico específico, às necessidades de reprodução das relações
capitalistas em nível global.
Ao longo dos três capítulos anteriores, tratamos mais deti-
damente das teorias do crescimento/desenvolvimento formu-
ladas no período de nascimento e auge da chamada Economia

184
do Desenvolvimento, da relação existente entre essas formu-
lações e o contexto no qual foram formuladas e, finalmente,
da relação dessas teorias com o modo de produção capitalista
em geral. Nessa investigação, vimos que o desenvolvimento
foi tratado durante aquele período fundamentalmente como
sinônimo de crescimento do produto, que a estratégia de de-
senvolvimento foi associada à industrialização das economias
subdesenvolvidas, e o ideal de desenvolvimento, inspirado nas
experiências das economias capitalistas ditas desenvolvidas.
No presente capítulo, buscamos mostrar, através de alguns
exemplos, como o período posterior à crise dos anos 1970 foi
marcado por inúmeras tentativas de redefinição dos objetivos
e estratégias de desenvolvimento. Do ponto de vista dos obje-
tivos, a constatação de que o crescimento do produto vinha,
não raramente, acompanhado de efeitos perniciosos (como,
por exemplo, a má distribuição de renda e a degradação do
meio ambiente) lançou sobre as teorias do desenvolvimento
a necessidade de incorporar novos critérios à definição de
desenvolvimento (que permitissem ir além do simples cresci-
mento da renda). Ou seja, ainda que o fim da experiência do
socialismo real tenha sido entendido como a prova definitiva
de superioridade do capitalismo em relação a projetos alterna-
tivos de sociedade, as teorias do desenvolvimento permane-
cem desempenhando um papel importante na sustentação da
crença na possibilidade de que o desenvolvimento capitalista
não submeta a maioria da população a condições subumanas
de vida e (contrariando as previsões mais catastróficas) seja
compatível com a própria manutenção da vida no planeta.
Interessante também é notar como essas mudanças na con-
cepção de desenvolvimento se refletem nas distintas tentati-
vas de redefinição das estratégias de desenvolvimento, resumi-
damente expressas no debate liberalismo x intervencionismo.
Ou seja, salvo raríssimas exceções, é possível perceber como
as diferentes estratégias de promoção do desenvolvimento e/
ou superação do subdesenvolvimento, com maior ou menor
intervenção do Estado, com maior ou menor liberdade de
mercados, acabam por incorporar as temáticas da equidade

185
e sustentabilidade. Como já indicado, portanto, o debate ter-
mina girando em torno do grau de liberdade de mercado e
intervenção do Estado necessário para objetivar a sociedade
projetada pelas teorias do desenvolvimento.
Quando observamos mais atentamente os pressupostos
por detrás das formulações aqui apresentadas, no entanto,
percebemos que as mudanças são menos significativas do
que parecem à primeira vista. Mesmo no caso de propostas
de reorientação consideradas “radicais”, como, por exemplo,
a sugerida por Sen em seu Desenvolvimento como liberdade, as
teorias do desenvolvimento não abandonam o critério cresci-
mento do produto e não deixam de tratar o desenvolvimento ex-
clusivamente em termos da reprodução, em escala universal,
das relações sociais capitalistas. Socialmente justo, ambien-
talmente responsável, livre ou regulado: trata-se apenas de
projetar para o futuro configurações diversas de uma mesma
formação social (o capitalismo).

186
Conclusão

Em uma passagem pouco citada do Grundrisse, Marx exami-


na as condições histórica e logicamente necessárias para que o
capital encarregue-se de investimentos de vulto na construção
de estradas, canais, pontes etc. (obras de infraestrutura em ge-
ral), que exigiam, até o período moderno, um esforço coletivo
usualmente capitaneado pelo Estado. Trata-se de um momento
do texto, portanto, no qual Marx aborda explicitamente a oposi-
ção entre Estado e mercado no que tange ao provimento dos as-
sim chamados (atualmente) bens públicos. Tal argumento não
teria nenhuma relação com o conteúdo deste estudo, não fosse
o fato de Marx – numa colocação que certamente surpreenderia
os desavisados e despertaria a ira de posições pseudodogmáti-
cas à esquerda – ter tratado a situação em que o capital atinge
condições para dar conta do investimento em infraestrutura
como uma condição de “máximo desenvolvimento do capital”.
Em suas palavras,

O máximo desenvolvimento do capital se dá quando as


condições gerais do processo de produção social não
são criadas a partir da dedução da renda social, dos im-
postos do Estado – em que a renda, e não o capital, apa-
rece como fundo de trabalho e o trabalhador, embora
seja trabalhador assalariado livre como qualquer outro,
economicamente se encontra em uma outra relação –,
mas pelo capital como capital. Isso mostra, de um lado,
o grau em que o capital já submeteu a si todas as con-
dições da produção social e, por essa razão, de outro
lado, a extensão com que a riqueza reprodutiva social
está capitalizada e todas as necessidades são satisfeitas
sob a forma da troca.1 (MARX, 2011, p. 439).

1
Um pouco antes, no mesmo parágrafo, Marx (2011, p. 438) afirma ainda: “To-
das as condições gerais de produção, tais como estradas, canais etc., seja
as que facilitam a circulação ou as que a tornam possível, seja igualmen-
te as que aumentam a força produtiva (como irrigações etc. realizadas pe-
los governos na Ásia e, de resto, também na Europa), tais condições, para
serem levadas a cabo pelo capital, em lugar do governo, que representa a

187
É nítido nesta passagem que Marx emprega o termo desen-
volvimento não para designar uma situação em que a socieda-
de capitalista atinge uma condição “mais humana” ou “melhor”
em qualquer sentido, mas sim para caracterizar um momento
da história dessa formação social no qual o capital adquiriu
extensão e força suficientes para dominar todos os momen-
tos da existência social, inclusive, no caso, o provimento de
infraestrutura. Ainda que fosse – como parece ser – possível
demonstrar que o monopólio privado, capitalista, do forneci-
mento de bens e serviços públicos essenciais cria toda sorte
de infortúnios àqueles que não podem dispensar o seu uso,
ainda assim tal situação poderia ser tida como um indício do
caráter desenvolvido do capitalismo.
Nessa passagem, como em muitas outras em sua obra, Marx
utiliza a categoria desenvolvimento para tratar tanto de uma for-
ma específica de sociedade (o capitalismo, por exemplo), quan-
to de qualquer objeto portador de um processo de mudança e
permanência (ou permanência na mudança, como diria Lukács),
incluindo o ser em geral. Falar em desenvolvimento, portanto,
significa antes e acima de tudo reconhecer o processo de trans-
formação de determinado objeto ao longo do tempo, seu movi-
mento para adiante, sua dinâmica de funcionamento.
Esse “movimento para adiante”, como se procurou demons-
trar, é governado por leis/tendências que regulam a dinâmica
de funcionamento do objeto e podem ser apreendidas cienti-
ficamente, de maneira objetiva. No caso da nossa existência
como seres naturais, por exemplo, sabe-se que (a despeito das
fábulas que descrevem um mundo no qual se pode ser eterna-
mente jovem ou dos próprios avanços na ciência que possibi-
litaram à humanidade aumentar significativamente sua expec-
tativa de vida) ela é regulada por ao menos uma determinação
geral: independentemente de classe, credo ou cor, todos deve-
mos nascer, crescer e morrer. Por menor que seja o desejo dos

comunidade enquanto tal, supõem um elevado desenvolvimento da produ-


ção fundada no capital. A desvinculação das obras públicas do Estado e sua
passagem ao domínio dos trabalhos executados pelo próprio capital indica
o grau em que se constituiu a comunidade real na forma do capital.”

188
sujeitos de se renderem a esta determinação geral, esta é uma
lei/tendência que regula o nosso desenvolvimento como seres
naturais e que pode ser objetivamente reconhecida, a despeito
das particularidades que fazem com que a vida de um sujeito A
seja diferente (melhor ou pior) da vida de um B qualquer.
Essa não é, no entanto, a dinâmica que regula a nossa exis-
tência como seres sociais. Para fazer uma brevíssima recapi-
tulação, identificamos ao menos três tendências que regulam
o desenvolvimento da sociedade, abstratamente considerada:
a crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho
necessário à produção e reprodução das condições de vida
humana e a constituição da consciência genérica. No caso da
sociedade em forma especificamente capitalista, destacamos
especialmente aquelas tendências que, quando articuladas,
determinam o caráter expansivo e contraditório dessa forma-
ção social. Com isso, procuramos mostrar que, no modo de
produção capitalista, a esfera econômica (do trabalho) apre-
senta-se como a principal esfera de sociabilidade, a partir da
qual emana a dinâmica (de ampliação do trabalho) que subor-
dina os demais momentos e esferas da existência.
Por fim, buscamos mostrar como essas tendências gerais
manifestam-se de maneira distinta, em condições históricas
distintas, tomando como exemplo dois períodos nos quais o
desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por
determinações particulares: as quase três décadas posteriores
à Segunda Guerra Mundial e os anos posteriores à década de
1970. A opção por resgatar elementos dessas duas conjunturas
não foi meramente casual: esteve também relacionada ao fato
de serem esses os períodos nos quais se registram as produ-
ções no campo das teorias do desenvolvimento econômico (ser-
vindo, em ambos os sentidos, como bons contrastes).
Em suma, esperamos ter demonstrado, nos capítulos que
conformaram a Parte I deste estudo, que, desde uma perspec-
tiva marxista, estudar o desenvolvimento capitalista significa,
em primeiro lugar, ter consciência da historicidade e proces-
sualidade que caracterizam a sociedade; em segundo lugar,
apreender as leis de movimento da sociedade em geral e em

189
sua forma especificamente capitalista; e, em terceiro lugar, co-
nhecer as condições concretas de manifestação dessas leis.
Na análise do desenvolvimento em-si, portanto, o importante
é saber se (e de que forma), na passagem de um período a ou-
tro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos
adequado à lógica interna do capital. Pode-se dizer, então, que
uma sociedade capitalista é tanto mais desenvolvida quanto
mais ampla – e, considerando a sua lógica interna de funciona-
mento, mais bem-sucedida – for a atuação do capital (seja em
termos setoriais, territoriais, ou em sua capacidade de pene-
trar nas mais distintas esferas da vida social).
Em contraponto a essa perspectiva, buscamos, ao longo da
Parte II, traçar um panorama geral do modo como a questão
é encarada no campo da ciência econômica, especialmente no
interior das chamadas teorias do desenvolvimento. Nesse caso,
observamos que a análise do “desenvolvimento” envolve, re-
correntemente, a eleição de determinados critérios e parâme-
tros (“empiricamente observáveis”) que permitam quantificar
a condição de países ou regiões em momentos diversos de sua
história. Além disso, é normalmente com base na extrapolação
de um desses critérios que se afirma ou nega a superioridade
de povos e/ou países com relação a outros. Por fim, o conceito
de “desenvolvimento” é tratado, via de regra, como um juízo de
valor subjetivo: ou seja, o “desenvolvimento” é visto como algo
bom, viável e desejável (e que, portanto, deve ser promovido) e
a sua ausência como algo ruim (e que, seguindo a mesma lógica,
deve ser superado).
Tomando como ponto de partida o período de surgimento
e proliferação das teorias do desenvolvimento, vimos como o
critério central utilizado na comparação entre distintos graus
de “desenvolvimento” (ou “subdesenvolvimento”, por contra-
posição) foi predominantemente o aumento da riqueza, medi-
do pelo crescimento do produto per capita. Por esse motivo,
a análise crítica desse conjunto de teorias iniciou-se pelos
chamados modelos de crescimento, que, a seu modo, estiveram
preocupados com os determinantes do crescimento do pro-
duto ou da renda (oferecendo uma explicação possível para

190
a desigualdade de renda no plano mundial), expressando de
maneira bastante emblemática a orientação geral do período.
No caso das teorias do desenvolvimento propriamente di-
tas, mais focadas na tentativa de explicar as particularidades
por detrás do baixo crescimento do produto nos países subde-
senvolvidos e mais explicitamente propositivas, vimos como,
além da associação do “desenvolvimento” ao crescimento do
produto, as estratégias para a promoção do “desenvolvimen-
to” (ou superação do “subdesenvolvimento”) estiveram asso-
ciadas predominantemente à industrialização. A despeito das
especificidades – que impuseram, inclusive, a divisão dessas
teorias “clássicas” do desenvolvimento em dois grandes gru-
pos (aquelas que tratam das regiões “subdesenvolvidas” em
geral e aquelas que tratam particularmente do caso latino-
-americano) –, podemos perceber que todas compartilham, em
linhas gerais, as características acima apresentadas.
Já no período posterior à década de 1970, vimos como, dian-
te da crise e do reconhecimento cada vez mais amplo de “efei-
tos colaterais” (sobre a natureza ou sobre os seres humanos)
associados ao crescimento do produto, as teorias reagiram
pela incorporação de novos critérios à definição de “desen-
volvimento” (ainda que o crescimento do produto não tenha
sido totalmente abandonado). Essa “mudança” na concepção
de desenvolvimento (que talvez fique mais bem caracterizada
como “ampliação”) também se refletiu nas tentativas de rede-
finição de estratégias para a promoção do “desenvolvimento”
(ainda que o centro das controvérsias tenha sido a participa-
ção do Estado na economia).
Diante dessa caracterização geral, portanto, não podemos
deixar de reconhecer que uma das dificuldades de tomar as
teorias do desenvolvimento como objeto de estudo reside jus-
tamente na diversidade de formulações, seja essa diversidade
determinada pelo fato de terem sido produzidas em contextos
históricos muito distintos ou pelo fato de carregarem consigo
orientações teóricas diversas (liberal, keynesiana, schumpe-
teriana etc.). Essa diversidade, como se buscou ressaltar ao
longo da Parte II, também se manifesta de variadas maneiras,

191
seja (1) na noção de desenvolvimento, (2) no ideal de desen-
volvimento ou (3) na estratégia de desenvolvimento.
No entanto, a análise crítica dessas teorias demonstrou-
-se capaz de revelar que todas, sem qualquer exceção digna de
nota, tomam o capitalismo como pressuposto de suas formula-
ções. Considerando, por exemplo, a convergência em torno da
redução do desenvolvimento ao “crescimento do produto”, só
episodicamente rompida, fica bastante nítido o modo como as
teorias do desenvolvimento projetam sobre o passado e sobre
o futuro as formas de riqueza e trabalho que são específicas
do capitalismo, sem jamais indagar quais são os pressupostos
objetivos de um trabalho que adquire esse caráter de perma-
nente expansão. Com isso, as teorias não apenas naturalizam
processos históricos altamente complexos, não apenas se
apresentam como instrumentos a serviço dessa história “natu-
ralizada”, mas também, ao lhe fornecer inteligibilidade, compa-
recem objetivamente como formas de consciência indispensá-
veis à sua reprodução. Comparecem, portanto, como a ciência
deste desenvolvimento.
Mesmo as teorias usualmente encaradas como teorias
“críticas” (ou seja, aquelas capazes de reconhecer problemas
associados à dinâmica capitalista, especialmente seu caráter
“desumano”) acabam por admitir acriticamente os limites im-
postos ao exercício teórico e prático pelo objeto, em sua forma
imediatamente dada. Nesse caso, percebemos que, apesar de
a preocupação “humanitária” assegurar um acento crítico, es-
sas teorias hipostasiam a forma de trabalho correspondente
a essa forma de sociedade e podem, na melhor das hipóteses,
almejar uma “organização mais ‘humana’ do trabalho no ca-
pitalismo” (DUAYER, 2010, p. 2). Em síntese, para empregar a
expressão difundida por Duayer, podemos dizer que se trata,
quando muito, de uma crítica positiva. Nas palavras do autor:

A crítica positiva, como se sabe, toma o mundo tal como


ele se apresenta como um dado insuperável, incontor-
nável. E é nesse quadro de um mundo por princípio inal-
terável em sua estrutura e constituição essencial que

192
a crítica positiva comparece, primeiro descrevendo o
mundo – positivamente – e, segundo, em conformidade
com tal descrição, prescrevendo as atitudes e práticas
possíveis dos sujeitos. E a crítica positiva, é preciso não
se iludir, pode ser de fato crítica à sua maneira. Pode
se insurgir sinceramente contra as infâmias desse mun-
do incontornável. E mobiliza instrumentos teóricos
sempre mais sofisticados para consertar os erros do
mundo, ou para desentortar o mundo, como imaginava
fazer Quixote. E arregimenta paixões, sinceras paixões,
sem as quais tais instrumentos restariam inertes, para
a reparação do mundo. Todavia, recorde-se, a crítica
positiva e as práticas que alimenta são sempre prisio-
neiras desse mundo, do mundo imediato, anistórico.
(DUAYER, 2010, p. 7).

No caso de Marx, bem ao contrário, percebemos que a crí-


tica dirigida ao capitalismo pode ser mais bem caracterizada
como uma crítica negativa: “crítica do trabalho no capitalismo,
crítica do trabalho como atividade socialmente mediadora, ou
seja, crítica da sociabilidade fundada no trabalho”2 (DUAYER,
2010, p. 7). Em outras palavras, trata-se de uma crítica que re-
conhece, desde o início, o caráter histórico do seu objeto de
estudo; de uma crítica que indaga sobre as condições históri-
cas que fizeram emergir esse objeto. Uma crítica que procura,
na organização interna do objeto, na forma como ele veio a
se constituir estruturalmente, as condições do seu desenvol-
vimento no tempo e no espaço. Uma crítica que, por fim, ex-
pressa esse movimento causalmente determinado em leis de
tendência.

2
Postone (1993, p. 63 e 64) também reconheceu e salientou a negatividade da
crítica de Marx: “Ao formular uma crítica do trabalho no capitalismo toman-
do como base da análise sua especificidade histórica, Marx transformou a
natureza da crítica social baseada na teoria do valor trabalho de uma crítica
‘positiva’ em uma crítica ‘negativa’ [...] – aquela que critica o que é sob as
bases do que poderia ser – que aponta para a possibilidade de outra forma-
ção social.”

193
Uma crítica como essa não tem qualquer compromisso a prio-
ri com o seu objeto de estudo, a sociedade capitalista, pois não
o toma por antecipação como uma forma de existência insupe-
rável, que, portanto, deve ser reparada ou amparada a qualquer
custo quando sua linha evolutiva geral demonstra-se desumana
(ou ameaçadora em termos ecológicos). Ao contrário, justamen-
te por não perder de vista a transitoriedade histórica possível
dessa formação social, por um lado, e por demonstrar o caráter
necessário de sua desumanidade, por outro, é que pode conver-
ter o conhecimento de suas leis de tendência numa proposta de
práxis orientada em favor da transição concreta para uma socie-
dade dotada de outra dinâmica evolutiva, de outra linha de de-
senvolvimento interno. Esse nexo entre a crítica social de Marx e
a sua proposta de práxis transformadora é enfatizado na passa-
gem de Postone, que nos permitimos citar extensamente abaixo:

[...] a análise de Marx implica uma ideia de superação


do capitalismo que não acarreta nem a afirmação sem
crítica de que a produção industrial seja condição de
progresso humano, nem a rejeição romântica do pro-
gresso tecnológico per si. Ao sugerir que o potencial do
sistema de produção desenvolvido sob o capitalismo
poderia ser usado para transformar o próprio sistema,
a análise de Marx supera a oposição entre essas instân-
cias e mostra que cada uma significa um momento de
um desenvolvimento histórico muito mais complexo
para se constituir a totalidade. Isto é, a abordagem de
Marx abrange a oposição entre a fé no progresso linear
e sua rejeição romântica, como expressando uma anti-
nomia histórica que, em ambos os termos, é caracterís-
tica da época capitalista. Mais abrangentemente, sua
teoria crítica não defende nem a simples conservação,
nem a destruição daquilo que foi historicamente cons-
tituído no capitalismo. Ao contrário, sua teoria mostra
a possibilidade de que o que foi constituído de forma
alienada seja apropriado e, em consequência disso, fun-
damentalmente transformado. (POSTONE, 1993, p. 36)

194
Se, enfim, o esforço empreendido neste estudo é capaz de
confirmar a hipótese de que as concepções autointituladas
“teorias do desenvolvimento” constituem a ciência da preser-
vação do desenvolvimento capitalista, por outro lado, o mes-
mo esforço parece ser capaz de demonstrar que a intervenção
crítica de Marx rompe com o vínculo entre produção teórica
e prática conservadora não por se tornar mais “ideológica”,
menos científica. Justo ao contrário, esse vínculo é rompido
porque a teoria marxiana consegue projetar seu olhar para
além dos determinantes imediatos de seu objeto e encarar seu
desenvolvimento como aquilo que efetivamente é: a expressão
do modo de funcionamento de um objeto dinâmico.
Por isso, podemos concluir este estudo com uma constata-
ção que, embora evidente, raramente é trazida à consciência e/
ou devidamente enfatizada: se há um autor que escreveu uma
autêntica teoria do desenvolvimento capitalista, este autor foi
Marx; se há uma obra que fala do desenvolvimento capitalista,
esta obra é O capital. Isso, aliás, Marx fez questão de patentear
já no prefácio da primeira edição, que citamos na introdução
e recordamos novamente neste encerramento: “o objetivo final
desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da socie-
dade moderna” (MARX, 2002, p. 18). Se Marx descobriu ou não
essa lei, isso é uma questão que estará sempre em aberto. Mas
que Marx procurou descobri-la, não é, de fato, possível negar.

195
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WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a reno-
vação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2003.

204
Agradecimentos

É com muita satisfação que entrego ao público o presen-


te trabalho, resultado de uma longa pesquisa que teve início
há aproximadamente uma década, quando principiava minha
trajetória acadêmica, ao longo da qual venho perseguindo um
entendimento mais amplo da temática do desenvolvimento.
Apesar dos inúmeros contratempos e das questões deixadas
em aberto, creio que, neste produto em particular, apresen-
tado em agosto de 2011 ao Programa de Pós-graduação em
Economia da Universidade Federal Fluminense como requisito
para a obtenção do doutorado em Economia, e agora publi-
cado pela EdUFF, consegui sistematizar de maneira mais bem
acabada o material da pesquisa e reunir as principais conclu-
sões a respeito do tema. A todos aqueles que contribuíram, di-
reta ou indiretamente, para que isso fosse possível, deixo aqui
registrados os meus sinceros agradecimentos.
Em especial, agradeço ao amigo João Leonardo Medeiros,
orientador na ocasião e hoje colega de trabalho, que abraçou
esse projeto com empenho admirável, que esteve sempre dispo-
nível (apesar das distâncias que separam Niterói de Uberlândia,
Campos e/ou Vitória), sabendo ser duro e afável nos momen-
tos certos. Além da orientação dedicada, do trabalho árduo de
revisão e das incontáveis sugestões, João aceitou gentilmente
minha intimação e agora nos presenteia com o excelente texto
de apresentação deste livro (confirmando apenas minha con-
vicção de que não poderia ter feito escolha mais acertada!).
Agradeço aos professores e amigos: Marcelo Carcanholo,
que carregou durante muito tempo parte da responsabilidade
por este trabalho, respondendo formalmente como meu orien-
tador, sempre disposto a dialogar sobre o tema e a fazer valio-
sas críticas e sugestões; Niemeyer Almeida Filho, que colabo-
rou com este projeto durante todo o período do mestrado, mas
especialmente como orientador da minha dissertação; e André
Guimarães, o primeiro a ter coragem de me acompanhar nesta
empreitada, ainda no período da graduação, sendo peça fun-
damental no meu retorno a Niterói para o início do doutorado.
Apesar da impossibilidade de prestar os devidos agradeci-
mentos aos demais professores que contribuíram para minha
formação, gostaria de agradecer ainda a duas pessoas mui-
to especiais, sem as quais nada disso teria sido possível. Em

205
primeiro lugar, ao professor Mario Duayer, por ter “iluminado
meus caminhos” e me apresentado às discussões no campo da
filosofia da ciência, que serviram como fundamento para a rea-
lização deste trabalho; e também gostaria de deixar registrados
meus agradecimentos póstumos à professora Alice Werner, com
quem tive a primeira oportunidade de conhecer a obra de Marx.
Agradeço ainda ao professor Paulo Nakatani, pela leitura
atenta e pelos comentários ao trabalho; a todos os profes-
sores, funcionários e colegas do Programa de Pós-gradução
em Economia da UFF, além das queridas funcionárias da BEC
(Biblioteca da Faculdade de Economia).
A todos os colegas e amigos do Departamento de Economia
da UFF/Campos (sempre generosos e extremamente compreen-
sivos diante da minha necessidade de dedicar muito das qua-
renta horas semanais à redação deste trabalho), do Instituto de
Economia da UFU (onde fiquei por um período breve, mas muito
feliz), do Grupo de Pesquisa Teoria Social e Crítica Ontológica
e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre
Marx e o marxismo (espaços de diálogo e aprendizado cons-
tantes). Mais uma vez, apesar da impossibilidade de mencionar
os nomes de todos aqueles que estiveram ao meu lado e con-
tribuíram com a realização deste projeto, gostaria de prestar
um agradecimento especial à amiga de todas as horas Lérida
Povoleri e, com enorme pesar, um agradecimento póstumo à
amiga Paula Nabuco, de quem sentirei muita saudade.
Por fim, agradeço a toda a minha família (avô, avós, tios, tias,
primos e primas), em especial ao meu pai Humberto (apoio e
presença constantes), à minha mãe Thereza Lucia (exemplo de
mãe, mulher e profissional, que ainda encarou, nos momentos
finais, a árdua tarefa de revisar todo o trabalho), à minha irmã
Luciana (minha luz) e ao meu sobrinho Theo (menino adorá-
vel). À família que adotei nos últimos anos (Eduardo, Madelaine,
Creuza, Elisa e demais membros da família Figueira), especial-
mente ao meu companheiro durante toda essa jornada, Hugo
Figueira, que esteve ao meu lado nos últimos 13 anos, me apoian-
do nos momentos mais difíceis, abrindo mão das suas próprias
questões para me auxiliar com as minhas, algo que só uma pes-
soa com coração tão grande e generoso é capaz de fazer. Com
ele, hoje divido o prazer de ver crescer o doce Benjamim, fruto
mais saboroso da nossa relação. Muito obrigada!
Niterói, setembro de 2015.

206
Título: Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica
negativa do desenvolvimento capitalista
Autora: Bianca Imbiriba Bonente
Série: Coleção Biblioteca, 78
Edição: 1ª
Editor responsável: Aníbal Bragança

Equipe de realização

Coordenadora de produção: Mariana Simões


Revisão: Icéia Freixinho, Sônia Peçanha, Graça Carvalho
Normalização: Fátima Corrêa
Diagramação e capa: Marcos Antonio de Jesus

Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: ITC Cheltenhan, corpo 10
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)
Número de páginas: 208
Tiragem: 500 exemplares

Impresso e acabado na
Nova Aliança - Av. Almirante Frontin, 381, Ramos, Rio de Janeiro, RJ
CEP 21030-040, em abril de 2016

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP


B712 Bonente, Bianca Imbiriba.
Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do
desenvolvimento capitalista / Bianca Imbiriba Bonente. – Niterói : Eduff, 2016.
– 208 p.; 23 cm. – (Coleção Biblioteca 78).
Inclui Bibliografia.
ISBN 978-85-228-0944-8
BISAC BUS068000 BUSINESS & ECONOMICS / Development / Economic
Development
1. Economia marxista. 2. Marx, Karl, 1818-1883. 3. Desenvolvimento econômico.
I. Título. II. Série.
CDD 330.1594
Sendo uma formação social históri-

Bianca Imbiriba Bonente |


Bianca Imbiriba Bonente ca, o capitalismo pode ser parteira
de um desenvolvimento não capi-
talista, pós-capitalista, o que torna
sempre pertinente a indagação so-
bre a necessidade ou possibilidade
O objetivo deste livro é demonstrar que as teorias do desenvol-
de conter a História em sua forma
vimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento processual presente. Uma indaga-
capitalista, tanto no sentido de que o limite teórico e prático da ção como essa aponta para um pla-
sua intervenção é o capitalismo, e apenas ele, quanto no sentido no mais abstrato de análise no qual
de que, ao fazê-lo, projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao o desenvolvimento capitalista não

Desenvolvimento em Marx
é previamente ajuizado como algo
menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para, pri-
positivo (ou inexorável), mas sim
meiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econô-

Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica


como expressão da relação entre
micas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, a norma de funcionamento (ten-
empreende-se um contraste entre os termos comuns dessas teo-
rias e os elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento
em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx.
e na teoria econômica dencial) interna do capitalismo e
os constrangimentos externos que
atuam sobre ela. Isso requer uma
reconstrução crítica da ideia mesma
Bianca Imbiriba Bonente por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista de desenvolvimento que restaure o
sentido mais geral apontado pela
etimologia do termo.
Considerando o que foi dito, é pos-
sível agora confessar: esta lição so-
bre desenvolvimento não saiu da
cartola a partir da leitura de um
dicionário ou obra qualquer acerca
da etimologia das palavras. Na ver-
dade, trata-se de uma entre as vá-
rias lições aprendidas na leitura do
livro que o presente texto propõe-
Bianca Imbiriba Bonente possui -se a apresentar: Desenvolvimento
graduação em Ciências Econômicas em Marx e na teoria econômica:
pela Universidade Federal Flumi- por uma crítica negativa do desen-
nense (2004), mestrado em Econo- volvimento capitalista, de Bianca
mia pela Universidade Federal de Imbiriba Bonente. Aqueles que se
Uberlândia (2007) e doutorado em dedicarem ao exame atento dos ca-
Economia pela UFF (2011). Hoje é pítulos do livro, com o mínimo de
interesse e humildade necessários
professora adjunta do Departamen-
para aprender, certamente tomarão
to de Economia da Universidade
dele esta e outras lições.
Federal Fluminense e pesquisadora
do Núcleo Interdisciplinar de Estudos João Leonardo Medeiros
e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo Professor do Departamento de
(NIEP-Marx). Economia da Universidade
Federal Fluminense

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