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Este livro nos brinda com relevan-

tes e polêmicos combates teóri-


co-políticos sobre fundo público,
políticas sociais e lutas socais em
tempos nos quais no capitalismo,

Fundo Público,
marcado por uma crise estrutural,
se fortalece uma perspectiva he-
gemônica burguesa devastadora,

Orçamento e que abrange ultraliberalismo,


conservadorismo, neofascismo,

Política Social
racismo, rentismo, entre outros
“ismos” tenebrosos.
À luz da crítica da economia polí-
tica, as análises tecidas ao longo
20 Anos do GOPSS / UERJ dos 13 textos contribuem: na
Editora CRV - Proibida a comercialização

apreensão crítica do Estado, do


fundo público, dos direitos sociais
e das lutas sociais na sociedade
capitalista e suas particularida-
des no capitalismo dependente;
na indicação de alguns desafios
estruturais e conjunturais às
classes trabalhadoras, às lutas
sociais e ao projeto socialista;
no enriquecimento do debate te-
órico-político diante de diferen-
ças de interpretação de alguns
fenômenos e processos sociais
presente nos textos, todos elabo-
rados sob perspectivas teóricas
marxiana e marxistas; na conti-
Organizadores nuidade de uma agenda de pes-
Elaine Behring | Juliana Cislaghi quisa/ensino/extensão ousada,
Márcia Cassin | Felipe Demier à esquerda e sem concessões ao
Tainá Caitete | Giselle Souza reformismo sobre fundo público,
políticas sociais e classes sociais,
como desdobramento do frutífe-
ro trabalho de investigação reali-
zado pelo GOPSS/UERJ durante
20 anos.
Convido vocês, leitoras, leitores
e leitoras, a alimentar seus cora-
ções e mentes com reflexões
Editora CRV - Proibida a comercialização
Elaine Behring
Juliana Cislaghi
Márcia Cassin
Felipe Demier
Tainá Souza
Giselle Souza
(Organizadores)
Editora CRV - Proibida a comercialização

FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO


E POLÍTICA SOCIAL – 20
ANOS DO GOPSS / UERJ

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

F979

Editora CRV - Proibida a comercialização


Fundo Público, Orçamento e Política Social - 20 Anos do GOPSS / UERJ / Elaine Behring,
Juliana Cislaghi, Márcia Cassin, Felipe Demier, Tainá Caitete, Giselle Souza – Curitiba: CRV,
2023.
290 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5393-3
ISBN Físico 978-65-251-5394-0
DOI 10.24824/978652515394.0

1. Serviço social 2. Governo - Regime político 3. Política Social 4. Seguridade Social I.


Behring, Elaine, org. II. Cislaghi, Juliana, org. III. Cassin, Márcia, org. IV. Demier, Felipe, org. V.
Caitete, Tainá, org. VI. Souza, Giselle, org. VII. Titulo VIII. Série.

CDU 362 CDD 360


Índice para catálogo sistemático
1. Serviço social - 360

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
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Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Angelo Aparecido Priori (UEM)
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Três de Febrero – Argentina) (Universitat de Barcelona, UB, Espanha)
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Gloria Fariñas León (Universidade Marcos Aurelio Guedes de Oliveira (UFPE)


de La Havana – Cuba) Maria Schirley Luft (UFRR)
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Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO) Suyanne Tolentino de Souza (PUC-PR)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Luciano Rodrigues Costa (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
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Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................ 9

PREFÁCIO ..................................................................................................... 13
Ivanete Boschetti

FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL: 20 anos de


pesquisa .......................................................................................................... 17
Elaine Rossetti Behring
DOI: 10.24824/978652515394.0.17-36

EXPROPRIAÇÃO DOS TRABALHADORES NO CAPITALISMO


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CONTEMPORÂNEO E A TEORIA MARXIANA: retomando o debate ......... 37


Juliana Fiuza Cislaghi
DOI: 10.24824/978652515394.0.37-52

POLÍTICA SOCIAL E DEPENDÊNCIA: a condição do fundo público no


Estado social periférico-tardio ......................................................................... 53
Márcia Pereira da Silva Cassin
DOI: 10.24824/978652515394.0.53-68

DEPOIS DO MAL, A VOLTA DA CONCERTAÇÃO SOCIAL: notas


sobre o processo político brasileiro recente .................................................... 69
Felipe Demier
DOI: 10.24824/978652515394.0.69-80

DILEMAS DO FINANCIAMENTO DA POLÍTICA DE SAÚDE NA


AMÉRICA LATINA: reflexões sobre as experiências do Brasil, Colômbia
e Venezuela ..................................................................................................... 81
Tainá Souza Caitete
DOI: 10.24824/978652515394.0.81-100

FINANCEIRIZAÇÃO DA VIDA E POLÍTICAS SOCIAIS: uma breve


análise do avanço do capital portador de juros sobre os recursos dos
direitos do trabalho ........................................................................................ 101
Giselle Souza
DOI: 10.24824/978652515394.0.101-116
FUNDO PÚBLICO E QUESTÃO TRIBUTÁRIA NO BRASIL .................... 117
Evilasio Salvador
DOI: 10.24824/978652515394.0.117-140

FUNDO PÚBLICO E DEPENDÊNCIA........................................................ 141


Jonathan Henri Sebastião Jaumont
DOI: 10.24824/978652515394.0.141-162

ORÇAMENTO GERAL DO ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS EM


ANGOLA: receitas fósseis e retribuições desiguais ..................................... 163
Juliana Lando Canga
DOI: 10.24824/978652515394.0.163-192

O ORÇAMENTO PÚBLICO DO ESPORTE: aspectos do financiamento


para o setor de Lula a Bolsonaro .................................................................. 193

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Fernando Henrique Silva Carneiro
Fernando Mascarenhas
DOI: 10.24824/978652515394.0.193-214

ORÇAMENTO CRIANÇA E ADOLESCENTE: reflexões sobre as


políticas públicas no Rio de Janeiro .............................................................. 215
Rodrigo Silva Lima
DOI: 10.24824/978652515394.0.215-238

EXPROPRIAÇÃO EXTRATIVISTA, CONSENSOS REGRESSIVOS E


LUTAS SOCIAIS .......................................................................................... 239
Katia Iris Marro
DOI: 10.24824/978652515394.0.239-260

A NOSSA AMÉRICA EM DISPUTA: capitalismo dependente, contra-


insurgência e lutas sociais............................................................................. 261
Juan Pablo S. Tapiro
DOI: 10.24824/978652515394.0.261-276

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 281

SOBRE AS(OS) AUTORAS(OS) ................................................................. 285


APRESENTAÇÃO
Fundado em 2003, o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público
e da Seguridade Social da UERJ completa vinte anos de trabalhos intensos em
2023. Ao longo desse período, o GOPSS se constituiu como uma referência
nacional no debate sobre a relação entre economia e política, a partir da crítica
da economia política, enfatizando a relação entre valor, orçamento público
e política social. Neste passo, vimos também debatendo o papel do Estado e
das formas de dominação política constituintes deste processo, em articulação
com as lutas de classe. Assim, monitoramos a dinâmica do fundo público – sua
formação e alocação via orçamento público, ainda que não exclusivamente – e
impactos no financiamento das políticas públicas e sociais brasileiras.
Durante esses anos, a ênfase maior se deu sobre o orçamento federal no
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contexto do duro ajuste fiscal permanente operado ao longo da redemocrati-


zação do país, com destaque para a seguridade social, mas com estudos sobre
educação, esporte e lazer, ciência e tecnologia, orçamento para políticas para
as mulheres e crianças e adolescentes, habitação, segurança pública, dentre
outras. Também tivemos estudos sobre o Rio de Janeiro e pesquisas compa-
rativas internacionais. A presente publicação reúne trabalhos de algumas(uns)
pesquisadoras(es) que participam hoje ou viveram a experiência do GOPSS/
UERJ realizando suas investigações, e/ou que permanecem se dedicando aos
eixos constitutivos do grupo em suas instituições atuais de trabalho. Temos
nesta coletânea atualizações de teses e investigações de mestrado, doutorado
e pós-doutorado, bem como trabalhos dos docentes que fazem parte do grupo
atualmente. Gostaríamos imensamente de contar com muitos outros trabalhos
e pesquisadores(as) que estiveram nas animadas reuniões da sala 8033-E. No
entanto, tivemos que fazer uma espécie de escolha por representatividade
temática, geracional e de parcerias que constituímos nessa trajetória. Mas
esperamos que em cada linha, os cerca de 112 pesquisadores(as) se sintam
representados(as) e homenageados(as).
A pesquisa na universidade pública brasileira tem sido extremamente
desafiante, destacadamente no quadro do Novo Regime Fiscal implementado
a partir de 2016, com cortes drásticos de recursos para a ciência e tecnologia,
e a educação superior, o que só se agravou com os anos de um governo nega-
cionista e de extrema-direita, entre 2019 e 2022. Mas é importante lembrar
que tivemos momentos muito difíceis na UERJ e no Estado do Rio de Janeiro,
entre 2014 e 2016. Este foi um período de corte de salários dos docentes e
técnicos, de grandes e tensas manifestações nas ruas do Rio de Janeiro e
onde o GOPSS esteve presente, com aulas públicas e na UERJ. Apesar das
intempéries, tivemos estratégias político-acadêmicas que nos fizeram resistir
10

até aqui, e hoje lançar esta coletânea que expressa parte desse grande esforço
coletivo. Neste ano de 2023, já estamos acompanhando os termos da proposta
de Arcabouço Fiscal do terceiro governo de Lula, bem como da proposta da
reforma tributária e seus impactos possíveis para o financiamento das polí-
ticas sociais. O trabalho continua com sete subgrupos articulados em torno
das várias funções e grupos de natureza de despesa do orçamento público
federal, tendo em vista compreender as prioridades e caracterizar a dinâmica
político-econômica do novo governo de frente ampla e coalizão de classes
que sucedeu o neofascismo no poder. Uma investigação que busca extrair da
realidade seu movimento, com rigor científico e compromisso histórico-po-
lítico, pois que no próprio objeto se manifesta o movimento dos sujeitos, os
projetos societários em presença. De forma que se o centro de nossos debates
e busca de dados primários envolve o orçamento público, há inúmeros temas
conexos e categorias que são chamadas à cena para que possamos analisar os

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dados. E esta coletânea expressa isso, pois vários textos tratam de elementos
que vão além do orçamento público e da política social, essenciais para ir
além do imediato dos dados brutos.
Convidamos as(os) leitoras(es) a mergulharem nos conteúdos aqui expos-
tos. Esta coletânea é aberta pelo texto de Elaine Behring, coordenadora do
GOPSS/UERJ nesses vinte anos, e que aponta elementos da história do grupo,
bem como alguns marcadores teórico-metodológicos da pesquisa que vem
sendo desenvolvida. Na sequência temos a reflexão de Juliana Fiúza, coor-
denadora adjunta do GOPSS/UERJ, que nesta publicação realiza importantes
provocações sobre o tema das expropriações, revisitando Marx, e dialogando
com autoras(es) que vem tratando o ataque aos direitos no ambiente neoliberal
do capitalismo em crise e decadência como atuais processos de expropriação.
O texto da professora Márcia Cassin, da FSS/UERJ e pesquisadora do GOPSS,
tematiza a particularidade das políticas sociais no capitalismo periférico, numa
ampla pesquisa sobre o pensamento social brasileiro, e é resultado de sua tese
de doutorado defendida na UFRJ. Felipe Demier, historiador e pesquisador do
GOPSS, analisa as tendências do projeto de frente amplíssima que se formou
em torno de Lula, apontando de forma crítica e aguda os limites deste projeto
do ponto de vista da classe trabalhadora. Tainá Souza, professora da UERJ e
pesquisadora do GOPSS/UERJ, contribui com um texto oriundo de sua tese
de doutorado e que analisa o financiamento da política de saúde na Amé-
rica Latina, destacadamente, Brasil, Colômbia e Venezuela. Giselle Souza,
professora da UNIRIO e pesquisadora do GOPSS/UERJ, realiza um debate
central sobre o capital portador de juros e a financeirização, condottieres do
ataque frontal aos direitos do trabalho no capitalismo em crise e decadência.
Não poderíamos deixar de contar com a contribuição de Evilásio Salvador,
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 11

um analista imprescindível e parceiro de todas as horas nesses anos, e que


realizou seu pós-doutoramento no GOPSS/UERJ. Nesta coletânea ele revisita
o tema quente da questão tributária. Jonathan Jaumont, atualmente professor
da ESS/UFRJ e que realizou seu doutoramento no GOPSS/UERJ, onde per-
manece como pesquisador, atualiza o debate sobre o fundo público no capita-
lismo dependente, à luz da teoria marxista da dependência. Nos preenche de
alegria a presença nesta coletânea do texto de Juliana Canga, professora da
Universidade de Luanda (Angola), que realizou o pós-doutoramento conosco,
onde nos mostra o peso da indústria do petróleo na formação das receitas do
orçamento público naquele país, e as enormes desigualdades na alocação dos
recursos. A coletânea segue com a presença do texto de Fernando Mascare-
nhas e Fernando Carneiro, oriundo do grupo AVANTE/UnB. Vale dizer que
recebemos no GOPSS/UERJ para o pós-doutorado e em missões de estudos
alguns pesquisadores da área de educação física e esportes, advindos da UnB.
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O texto analisa o orçamento público para os esportes de Lula a Bolsonaro.


Temos ainda o texto de Rodrigo Lima, que realizou seu doutoramento no
GOPSS/UERJ e hoje é docente da UFF/Niterói, analisando o orçamento para
políticas voltadas a crianças e adolescentes no Rio de Janeiro, e neste texto
atualiza o debate. Nossa publicação é finalizada com dois textos que enfatizam
as lutas sociais. Kátia Marro, docente da UFF/Rio das Ostras, e que realizou
seu pós-doutorado conosco, retoma o tema das expropriações em sua relação
com o extrativismo. Juan Pablo Tapiro, docente da FSS/UERJ e pesquisador
do GOPSS, encerra a nossa coletânea problematizando a questão do Estado e
das lutas sociais na América Latina, e retomando as categorias de Estado de
contra insurgência e dependência para a análise das nossas particularidades,
as quais impactam a dinâmica do fundo público.
Com esses registros e textos prestamos homenagem a todos, todas e todes
que conosco partilharam e partilham essa jornada. Mesmo sem fazer parte
diretamente da experiência, mas que com ela tem dialogado e contribuído.
Vida longa ao GOPSS/UERJ.

As/os Organizadoras/es
Rio de Janeiro, junho de 2023.
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PREFÁCIO

Que a importância de uma coisa não se mede com fita


métrica nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento
que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros

Receber o convite para prefaciar esse livro me inundou de alegria. Ao


aceitar fazê-lo fui invadida por inúmeras preocupações, tamanha é a responsa-
bilidade de apresentar o longo, intenso e abundante processo de criação desse
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Orçamento Público e Seguridade Social
(GOPSS), que acompanho desde quando ainda era um esboço sem nomeação.
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Mas foi Manoel de Barros que alumiou meu entendimento de que esse prefácio
deveria caminhar por outras trilhas. Não me prenderei a nenhuma apresen-
tação formal, como seria de praxe em um prefácio acadêmico. Preferi seguir
o caminho do encantamento que sua história me provoca desde a gestação.
As primeiras atrações nasceram de trocas por vezes furtivas, ocorridas em
encontros e espaços nada convencionais para o universo acadêmico. Algumas
dessas vezes foram em mesas de bar em Brasília, entre Beirute e Capitu, e as
muitas boas conversas revelavam as afinidades e convergências na política,
na teoria, na música e nas pesquisas, com muito mais força que as poucas e
insignificantes divergências. Os primeiros encantamentos foram acompanhar
o nascer da ideia, do tema, da vontade, do nome, da certeza que o caminho
da pesquisa, da formação e do ensino não poderiam prescindir da articulação
intrínseca, dizia eu, ou da determinação estrutural, dizia Elaine, entre segu-
ridade social e economia política. Antes mesmo de o GOPSS ter registro de
nascimento, a economia, o trabalho e a seguridade social surgiam, assim, como
a primeira confluência de pesquisas e interesses acadêmicos que me encantou,
e abriu, até então incalculáveis e inesperados, caminhos de encontros, trocas
e descobertas investigativas. O encantamento estava no ar, nas letras, nas
ideias, nas palavras, nas proposições, revelando-me a importância que viria
a ter o GOPSS em minha vida profissional e pessoal.
Inúmeros são os grupos de pesquisa cadastrados do CNPq, mas se redu-
zem significativamente quando o filtro é política social, e se afunilam ainda
mais quando o tema é fundo público/orçamento público. Pois desde sua
gênese, o GOPSS está entre os pouquíssimos grupos, e mais do que isso, ouso
dizer, é o primeiro grupo da Área de Serviço Social que traz em sua concepção
molecular, e concretiza em sua designação, a síntese teórico-metodológica que
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lhe dá direção, força, coerência e consistência desde então. Basta uma breve
incursão nas vastas produções de seus pesquisadores/as, docentes e discentes,
para constatar a incorporação de outras políticas sociais, além daquelas que
constitucionalmente compõem a seguridade social, que não declinaram de seus
propósitos iniciais, e perseveraram com êxito na demonstração das determina-
ções incontornáveis da economia política na conformação das políticas sociais
no capitalismo. Manter-se fiel ao difícil desbravamento do fundo público e
do orçamento público, por mais de 20 anos, num país pródigo em ajustes
fiscais, mudanças de legislação e de estrutura orçamentária, que dificultam
enormemente o acesso a dados, é uma proeza de enorme importância. Fazer
isso com a bússola segura do método marxiano é uma realização heroica no
triste cenário de decadência ideológica que paira sobre o mundo acadêmico,
onde a maioria sequer o reconhece como método científico. A luta que o
GESST/UnB e o GOPSS/UERJ, juntamente com outros grupos de pesquisa da

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UFRN, travaram para que a CAPES reconhecesse o método marxiano como
método científico no âmbito de um Edital PROCAD, é uma forte expressão da
importância que o GOPSS assume no universo restrito dos grupos que ousam
assumir sua posição teórica, ética e política classista, marxista, anticapitalista,
encharcando de encanto sua trajetória insurgente.
Talvez seja essa bússola teórico-metodológica a principal força de atração
de discentes, docentes, e pesquisadores/as que buscaram o GOPSS nesses 20
anos. Sua capacidade formativa e investigativa é impressionante, como reve-
lam os dados apresentados por sua Coordenadora no capítulo que abre essa
exitosa coletânea comemorativa. São vários os grupos que recebem muitas
pessoas nas universidades. Mas não é sobre números que me refiro. Aludo aqui
a dois elementos que merecem destaque. O primeiro remete ao conteúdo das
inúmeras produções em seus diversos formatos: artigos, livros, comunicações
em congressos, TCCs, dissertações, teses, relatórios de pós-doutoramento.
Acompanho bem de perto esses trabalhos, e posso afirmar que não conheço
nenhum que “escorregue” em ilações positivistas, funcionalistas, ecléticas ou
pós-modernistas. Isso não significa que sejam pastiches, ou padeçam de “tota-
litarismo” teórico. Ao contrário, se sustentam rigorosamente na tradição mar-
xiana e marxista, incorporando a autonomia crítica, o exercício de abstração
necessário à apreensão da realidade em sua totalidade concreta, bem como a
capacidade de fazer as mediações necessárias para compreender o sentido dos
direitos e políticas sociais no capitalismo. Penso que essa direção do Grupo,
que respeita a liberdade teórica crítica, alimentada no diálogo com as diversas
vertentes marxistas, sem limitar ou engessar as produções em determinados/
as autores/as e/ou correntes, é uma das forças que atrai e mantém docentes e
discentes nesse Grupo, mesmo após terem concluído seus cursos ou projetos.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 15

O segundo elemento que considero determinante nesse processo de atração


é a relação desse coletivo com a militância política em diferentes dimensões.
As produções não são neutras e nem insípidas; ao contrário, se colocam a
serviço do desvelamento das diversas formas de exploração e opressão de
classe, gênero, raça e orientação sexual, particularmente pelas vias de supres-
são de recursos necessários à reprodução social. Não raro, suas descobertas
assessoram movimentos sociais e alguns governos/instituições comprome-
tidos com a democratização do fundo público. E mais, docentes, discentes e
pesquisadores são participantes ativos/as nas lutas da classe trabalhadora e
em manifestações nas ruas e nas praças, demonstrando que seu compromisso
não se enclausura no intramuros universitário. É sempre arrebatador quando
vamos às ruas e nos encontramos com quem já esteve ou está envolvido em
nossos grupos de pesquisa, o que também é revelador do encantamento que
esse grupo me provoca.
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Poderia escrever sobre tantas outras facetas do GOPSS que acompanho


nesses 20 anos, mas o espaço que me foi dedicado está se esgotando... então,
finalizarei afirmando que nenhum grupo de pesquisa se mantém por tão longo
tempo, com tal força coletiva, tantas iniciativas, movimentos e tamanhas con-
quistas sem um catalisador ativo e incansável. Inegavelmente, essa figura é sua
coordenadora Elaine Behring, a quem dedico meu encantamento mais valioso,
porque movido pela admiração que me arrebatou desde que nos conhecemos,
desde que trocamos nossos primeiros diálogos, desde que escrevemos juntas
as primeiras linhas, desde que aprendemos juntas a superar as divergências,
desde as teóricas (que são poucas), até as mais banais e cotidianas sobre frio
e calor. Sua firmeza com doçura cimentou esses 20 anos do GOPSS e espero
que o façam até que outras gerações assumam esse lugar tão especial.
Com meu poeta mais querido, Manoel de Barros, comecei e encerro
esse prefácio, porque “a importância de uma coisa há que ser medida pelo
encantamento que a coisa produza em nós”. Certamente, não tenho o privi-
légio de ser a única a sentir esse encantamento pelo que a universidade tem
de mais valioso, que é a dedicação e labuta cotidiana de docentes e discentes
em prol da formação crítica, autônoma, gratuita, socialmente referenciada que
só a universidade pública pode assegurar. Que cada docente e discente que
se alimentou (e alimenta) do GOPSS se transforme em potente irradiador de
suas aspirações e dos encantamentos que produz.

Ivanete Boschetti
UFRJ
Rio de Janeiro, julho de 2023
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FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E
POLÍTICA SOCIAL: 20 anos de pesquisa
Elaine Rossetti Behring1
DOI: 10.24824/978652515394.0.17-36

Nada é mais gratificante para uma professora que completa trinta e cinco
anos de dedicação à universidade pública, em atividades de ensino, extensão
e, destacadamente, pesquisa, do que celebrar os vinte anos deste coletivo de
pesquisadores – o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da
Seguridade Social (GOPSS/UERJ) –, que hoje é uma referência sobre esses
temas no Brasil, mas com interlocução em alguns países latino-americanos,
africanos e europeus. Este capítulo busca reconstruir essa experiência num
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duplo movimento: socializar elementos dessa história, que é institucional e


acadêmica, mas também pessoal e embebida de afetos; e apresentar de forma
sintética alguns marcadores teórico-metodológicos que orientam a produção
coletiva do grupo, e que foram sendo maturados ao longo deste tempo, o que
se mostra de forma pulsante nesta coletânea de textos, que reúne algumas das
pesquisas desenvolvidas no âmbito do grupo.

1. O começo de tudo

Alguns elementos aqui expostos foram extraídos do Memorial de pro-


moção para a carreira de professora titular da UERJ, defendido e aprovado
em dezembro de 2022, onde dediquei algumas páginas ao GOPSS/UERJ,
pois afinal ele ocupou a maior parte desta trajetória, constituindo-se no meu
principal e prioritário projeto acadêmico. O texto original foi redimensionado
para os objetivos desta publicação.
No Memorial relatava que naqueles primeiros tempos de retorno definitivo
à UERJ – após dois anos de liberação para o doutorado, entre 1999 e 2001, e três
anos de dedicação ao Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), entidade
que presidi entre 1999 e 2002 – chegava a hora de retribuir ao forte investimento
da universidade pública tanto na minha formação continuada, quanto para o
fortalecimento da organização político-profissional da categoria de assistentes
sociais. Por outro lado, colocou-se a necessidade de pensar os desdobramentos
e a continuidade da pesquisa sobre a contrarreforma do Estado (BEHRING,
2003), onde o financiamento da Seguridade Social foi um dos eixos analisados;

1 Coordenadora do GOPSS/UERJ.
18

bem como a inserção nas linhas de pesquisa do PPGSS/UERJ, cujo curso de


Mestrado estava recém-criado (1999) e me convocava à inserção. Contava
naquele período com a inspiração e as referências da rica experiência do Grupo
de Estudos de Seguridade Social e Trabalho (GESST-UnB), coordenado pela
professora Ivanete Boschetti desde 2000, e que acompanhava com atenção, o
que constituiu um grande aprendizado. Trazia a militância no Fórum Brasil
de Orçamento (FBO), da qual participei como dirigente do CFESS, e onde
aprofundei a apreensão do tema do orçamento público e realizei investigações
preliminares para a tese de doutorado defendida em 20022. Por fim, acumulava
uma experiência de pesquisa institucional anterior na UERJ, com o projeto
intitulado “A Restruturação Produtiva, a Crise Fiscal e o Financiamento das
Políticas Sociais no Brasil”, desenvolvido entre 1996 e 1999, no âmbito do Pro-
grama de Trabalho e Reprodução Social (PETRES/UERJ), espaço que abrigou
inúmeros pesquisadores num período em que a pesquisa dava seus primeiros

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passos não só na FSS, mas na própria UERJ. Deste projeto, inclusive, vieram
as indagações para a pesquisa e realização do doutorado, e a experiência nova
de contar com estudantes de iniciação científica. Tive a colaboração de Ivana
Bastos3, que realizou um importante levantamento sobre as isenções fiscais para
a constituição do Distrito Industrial do Município de Queimados; e de Ilma
Doher4, que fez um estudo sobre o orçamento do Estado do Rio de Janeiro e o
lugar das políticas sociais. Ambas as pesquisas de graduação se transformaram
em Trabalhos de Conclusão de Curso finalizados em 1999 e 2000. Então, per-
cebam leitores, esses são os antecedentes do GOPSS/UERJ.
Em 2003 fundei o GOPSS/UERJ, na companhia de três estudantes de
graduação que se tornaram bolsistas FAPERJ e UERJ – Elaine Pelaez5, Gisele
Alcântara6 e Silvia Ladeira7. Assim o GOPSS/UERJ passou a ser o dínamo
do meu esforço acadêmico-investigativo e de formação de quadros. Desde
então, esse espaço só fez crescer e frutificar. O GOPSS completa vinte anos de
existência neste ano de 2023, com registro no Diretório de Grupos de Pesquisa
no Brasil (CNPq) e uma trajetória consolidada de investigação, formação de
quadros acadêmicos, profissionais e políticos, publicações, eventos e inter-
locução nacional e internacional. Hoje somos seis docentes da UERJ, todos
doutores, com algumas que se formaram integral ou parcialmente no grupo – a
exemplo de Juliana Fiúza e Tainá Souza – e outros que foram chegando e se

2 Publicada em 2003 pela Cortez Editora, sob o título Brasil em Contrarreforma – desestruturação do Estado
e perda de direitos.
3 Assistente social e hoje mestranda do PPGSS/UERJ.
4 Assistente Social da Petrobras.
5 Assistente Social do INTO e ex-membro da direção do CFESS.
6 Assistente Social da Petrobras.
7 Assistente Social do INCA.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 19

agregando, como Márcia Cassin, Felipe Demier, e mais recentemente Juan


Pablo Tapiro. Nessa trajetória contamos, durante alguns anos, com a contri-
buição importante e provocativa de Mariela Becher. E incorporamos docentes
de outras universidades que também tiveram sua formação no GOPSS e/
ou fundaram nas suas unidades grupos com preocupações afins. É o caso
de Giselle de Souza (Unirio) e de Jonathan Jaumont e Gênesis de Oliveira
Pereira (UFRJ). Seria extensa a lista de pesquisadores(as) do GOPSS/UERJ
que se tornaram docentes e publicaram suas teses e dissertações em livros,
capítulos e comunicações, de forma que não o farei, mas deixo registrada a
gratidão pela interlocução que tivemos.
Retomemos o fio: no final de 2002, como um desdobramento da tese e
tendo em vista concorrer ao Programa de Incentivo à Produção Científica, Téc-
nica e Artística (Prociência/UERJ) e ao Edital de Bolsa de Produtividade em
Pesquisa do CNPq, apresentei o projeto “Seguridade Social Pública no Brasil:
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É Possível? – a contrarreforma do Estado e o (des)financiamento das políticas


sociais”. Fui aprovada nos dois processos, o que me permitiu o acesso a bolsas
de Iniciação Científica para as estudantes. Este movimento representou um giro
definitivo (ainda que não exclusivo) para o tema do financiamento das políticas
sociais, o orçamento público, e a relação entre política social e políticas econô-
micas e fiscais ao longo da redemocratização brasileira e seus governos. Poste-
riormente, e como uma requisição do objeto, desenvolvi o trato do fundo público
e do Estado a partir da crítica da economia política, e seu comportamento em
tempos de crise e decadência do capitalismo. Vale registrar que tanto ao Prociên-
cia/UERJ quanto ao CNPq, foram apresentados seguidamente novos projetos,
renovando o vínculo e as possibilidades de financiamento da investigação. Se
hoje sou pesquisadora no âmbito do CNPq e do Prociência/UERJ, atualmente
com o projeto Estado e alocação do fundo público no Brasil (2016-2023), essa
trajetória teve e tem como fundamento a interlocução coletiva e de qualidade no
âmbito do GOPSS/UERJ, por meio do qual fui consolidando a minha própria
trajetória de pesquisadora e professora de graduação e pós-graduação.
Foi por meio do GOPSS que desenvolveu-se um projeto de extensão
muito interessante em 2003, em articulação com a Secretaria Estadual que
cuidava à época da política de Assistência Social. Percorremos o Estado do
Rio de Janeiro – nas cidades-polo em suas macrorregiões – realizando uma
formação em orçamento público para gestores(as) e conselheiros(as) no âmbito
desta importante política de seguridade social. Formulamos um material peda-
gógico e ministramos minicursos com o objetivo de ensinar noções básicas
de financiamento e orçamento público, tanto para o acesso aos dados, quanto
para a disputa política de recursos por parte dos sujeitos envolvidos. Num
mesmo movimento, buscávamos qualificar a disputa pelo fundo público pelos
20

gestores e o papel dos conselhos e movimentos sociais, bem como falar do


ajuste fiscal que o governo Lula mantinha em curso, e que retirava recursos
da política social. Foram debates quentes, pois que o novo governo estava
ainda se instalando e havia muita esperança em torno de possíveis mudanças.
E, para o GOPSS, um grande aprendizado na lida com este público e com
os políticos do interior do estado, onde as relações de clientelismo são fla-
grantes e se expressam no orçamento público. Este projeto se desdobrou em
um outro, realizado entre os anos de 2014 e 2015, intitulado Estado e Fundo
Público, que objetivava realizar formações junto aos assistentes sociais, ges-
tores e movimentos sociais, tendo em vista a democratização do acesso às
informações sobre o orçamento público. Foi coordenado por Mariela Becher
e Tainá Souza, e contou com a participação de estudantes de variados níveis
de ensino, e bolsa de extensão da UERJ. Vale dizer que, além da formação
de bolsistas de graduação e pós-graduação no tema do orçamento público

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dentro do GOPSS, passamos a ofertar disciplinas eletivas nos dois níveis
de ensino na UERJ, num intenso processo de socialização do know how que
fomos adquirindo sobre o tema. Essa é uma preocupação central do GOPSS/
UERJ: desbloquear o acesso ao orçamento público, tornando-o de domínio
público, aprofundando o processo de democratização brasileiro a partir da
construção de uma esfera radicalmente pública, comum e democrática, ainda
que reconheçamos os limites da democratização no capitalismo, em tempos
de blindagem (DEMIER, 2017) dos processos decisórios aos “de baixo”.
Como na bela música de Capinam e Roberto Mendes: “Vou aprender a ler, pra
ensinar os meus camaradas”. Neste caso, aprender a ler o orçamento público
para alimentar as lutas sociais.
O GOPSS/UERJ esteve na construção de um importante projeto coletivo
para concorrer ao Edital do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica
– Procad/CAPES 01/2005, sob a liderança de Ivanete Boschetti, do GESST/
UnB. O projeto Características e Tendências Contemporâneas da Política
Social no Brasil e na América Latina: concepção, gestão, controle democrá-
tico e financiamento reuniu grupos de pesquisa da UnB, da UERJ, da UFRN
e da UFSC, numa frenética atividade acadêmica a partir de 2006, quando se
realizou seminários nacionais nas quatro unidades, minicursos, missões de pes-
quisa de professores, eventualmente com bolsa de pós-doutoramento, mesas
coordenadas em Encontros Nacionais de Pesquisadores de Serviço Social
(ENPESS) e no CBAS, além da participação em outros eventos nacionais e
internacionais. Deste projeto, foram produzidas, para além de comunicações
e artigos em periódicos, duas coletâneas reunindo a produção coletiva – Polí-
tica Social no Capitalismo: tendências contemporâneas (2008) e Capitalismo
em Crise, Política Social e Direitos (2010), além de uma terceira intitulada
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 21

Financeirização, Fundo Público e Política Social (2012), que trouxe a par-


ceria com o NEPEM/UFRJ, numa articulação com Sara Granemann (UFRJ),
mas ainda comportou trabalhos decorrentes daquela experiência. Este projeto
integrado coletivo se encerrou em 2010 com muitos frutos e desdobramen-
tos, destacadamente a produção bibliográfica, a formação de quadros e o
fortalecimento dos programas de pós-graduação das unidades envolvidas,
além da infraestrutura dos grupos. Foi um momento de salto qualitativo na
consolidação do GOPSS como coletivo de pesquisadores em vários níveis.
Desde 2006, o GOPSS passou a ser parte do Centro de Estudos Octavio
Ianni (CEOI/UERJ) – fundado naquele ano sob a coordenação de Marilda
Iamamoto, passando a contar com a interlocução com os demais grupos sob
o guarda-chuva do CEOI, e com uma infraestrutura física consistente, a partir
de um importante projeto de financiamento da FAPERJ.
Em 2015, iniciamos um segundo projeto Procad/CAPES, agora com a
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participação da UnB, da UERJ e da UFRN, e que durou até 2019. Era mais um
passo importante na consolidação do GOPSS/UERJ. Ele possuía um escopo
mais amplo que o primeiro, pois permitiu a circulação de estudantes de gradua-
ção, mestrado e doutorado, além de pesquisadores(as) em missões de estudo
e pós-doutorado. Realizamos vinte e duas missões de estudos de graduação,
mestrado e doutorado, o que significa que esses estudantes circularam entre as
três unidades de formação, grupos de pesquisa participantes e programas de
pós-graduação, e cursos de graduação. Esse percurso corroborou para a reali-
zação das pesquisas de tese, dissertação e TCCs e para muitos resultados não
tangíveis na vida dos(as) estudantes e pesquisadores(as), pois temos notícias
da continuidade de estudos enquanto egressos(as), aprovação em concursos,
publicações. Tivemos seminários nacionais nas três universidades com grande
impacto local, já que junto aos seminários foram realizados minicursos pelos
docentes com ampla participação. Houve financiamento para a apresenta-
ção de trabalhos de pesquisadores(as) docentes em eventos nacionais, o que
assegurou nossa participação nos ENPESS de 2016 e 2018, e no CBAS em
2016, algumas vezes com mais de uma mesa coordenada, dentre outros; e
internacionais (Venezuela e Canadá). No caso da UERJ, dois docentes (uma do
GOPSS) realizaram pós-doutorado pelo Procad, o que fortaleceu a produção
acadêmica e o nosso PPGSS/UERJ. Além disso, o CEOI e o GOPSS contaram
com recursos de custeio que foram solidariamente alocados na UERJ, no con-
texto da grande crise que se abateu sobre a universidade entre 2015 e 2017, e
que foram utilizados para manutenção de equipamentos e compra de material
para uso corrente. O grande intercâmbio inter-regional de pesquisadores(as)
das três universidades públicas envolvidas no Procad/CAPES, nos permitiu
elaborar balanços do difícil momento histórico que o Brasil vivia, além de
22

constituir um polo de resistência ao neoconservadorismo e neofascismo que


vinham crescendo após 2016, e que se combinavam às medidas ultraneolibe-
rais do governo golpista de Temer, a exemplo das Emendas Constitucionais
93 (aumento e extensão da DRU) e destacadamente a 95, conhecida como a
PEC do Fim do Mundo, aprovada sob bombas e tropas à cavalo na Esplanada
dos Ministérios, em Brasília.
Os principais resultados desses cinco anos de intenso trabalho acadêmico
no PROCAD/CAPES foram reunidos em duas coletâneas, ambas publicadas
pela Cortez Editora. Na primeira, sob o título Marxismo, Política Social e
Direitos (2018), após o ataque que sofremos em 2014, quando nosso projeto
recebeu um parecer persecutório no âmbito da CAPES e quase foi excluído
do Edital, buscamos mostrar a força da tradição marxista para a análise de
distintos processos em curso na realidade. Este é um livro que reúne abor-
dagens rigorosamente marxistas de vários temas: Estado e fundo público,

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questão tributária, direitos e política social (alguns com recortes setoriais), o
lugar dos serviços na reprodução do capitalismo, diversidade sexual, aborto,
mulheres, as lutas de classes hoje. A segunda coletânea chegou em fins de
2019 sob o título do projeto original – Crise do Capital e Fundo Público –
implicações para o trabalho, os direitos e a política social. Esta produção
dedicou-se aos frutos das pesquisas, destacadamente às características do
ajuste fiscal brasileiro e seus múltiplos impactos sobre as políticas sociais
nos níveis federal e estadual, com as medidas tomadas a partir de 2016, e no
contexto do governo neofascista e ultraneoliberal de Jair Bolsonaro (primeiras
aproximações). Sobre este ambiente neoconservador e de violência, o livro
trouxe corajosamente debates sobre família, população LGBTQIA+, aborto
e assédio sexual e moral sobre as mulheres, todos na contramão do projeto
da extrema direita que ganhou as eleições presidenciais em 2018.
Em 2021, foi lançado o livro Fundo Público, Valor e Política Social,
de minha autoria, onde pude consolidar os estudos da crítica da economia
política, da crise do capitalismo e seus múltiplos desdobramentos, chegando
até o Brasil dos tempos pandêmicos e de pandemônio e sua combinação
explosiva. Em cada linha deste livro, estão os diálogos do GOPSS e a pesquisa
dos últimos vinte anos.
Essas pílulas de alguns momentos-chave e publicações importantes nessa
trajetória, que envolve meu investimento individual e uma ampla interlo-
cução coletiva gerou muitos frutos e produtos, como já disse antes, tangí-
veis e intangíveis. Vejamos o GOPSS/UERJ na Tabela 1, que diz respeito à
inserção de estudantes e pesquisadores(as) com trabalhos concluídos, a partir
das informações em meu currículo Lattes e do Intranet/UERJ, dados estes
que não reúnem, evidentemente, a produção de todos(as) os(as) docentes/
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 23

pesquisadores(as) que atualmente compõem o grupo (da UERJ, UNIRIO e


UFRJ), mas que mostram a abrangência deste trabalho. Se incorporássemos
os dados do conjunto de docentes, certamente os números de PIBIC, TCCs e
de Mestrado cresceriam bastante.

Tabela 1 – Docentes e Discentes do GOPSS/UERJ – 2003 A 2023

MODALIDADE

Iniciação
Monografia
Científica – Pós- Licença
de Mestrado Doutorado Docentes Total
PIBIC/CNPq Doutorado Capacitação
graduação
e UERJ
23 16 19 31 12 4 7 112

Fontes: Lattes Prof. Elaine Rossetti Behring e Intranet/UERJ.


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2. Crítica da economia política: método, história, coragem

O GOPSS/UERJ vem desenvolvendo seu trabalho de pesquisa e exten-


são, a partir de uma perspectiva teórico-metodológica que tem referência na
tradição histórico-crítica e dialética. Trata-se de um posicionamento corajoso
em tempos de “crise dos paradigmas” e crescimento do conservadorismo e
da (des)razão neoliberal com sua naturalização da vida social e do mercado;
e da lógica pós-moderna, que envereda pela fragmentação do social e pela
perda da historicidade.
A análise crítica da crise do capital, do papel do fundo público e seu
impacto sobre a produção e a reprodução social, sua relação com a criação
e realização do valor, envolvendo o mundo do trabalho, dos direitos e das
políticas sociais exige, do nosso ponto de vista, um patamar de observação a
partir da perspectiva da totalidade, tendo em vista trazer à tona as múltiplas
determinações do capitalismo contemporâneo como totalidade histórica con-
creta, a qual envolve um conjunto de mediações e contradições que a colocam
em movimento. O método da crítica da economia política, materialista, histó-
rico e dialético, é, portanto, uma bússola que orienta o conjunto do trabalho
que vem sendo desenvolvido, sem prejuízo do diálogo com autores críticos e
densos e que não fazem parte desta tradição. Nos importa conhecer todos os
achados científicos relevantes em torno dos temas que investigamos e com
eles dialogar criticamente, como é salutar ao ambiente acadêmico e nos ensina
Michael Löwy em seu imprescindível As Aventuras de Karl Marx contra o
Barão de Münchhausen (1987).
24

Tem-se em perspectiva produzir aproximações sucessivas e cada vez


mais profundas acerca do Estado e do fundo público, cuja lógica se revela
principalmente, ainda que não exclusivamente, pela alocação do orçamento
público e pela tributação, na busca de sua reprodução no nível do pensamento,
como concreto pensado. Pois trata-se de partir do concreto e aparente, para
reconstruí-lo no nível do pensamento como um conjunto mais rico de deter-
minações que supera aquele momento primeiro. Busca-se, então, romper
com o claro-escuro de verdade e engano, com a aparência, com o mundo da
pseudoconcreticidade (KOSIK, 1986), que hoje envolve em névoas o debate
da crise capitalista e do fundo público, bem como da política social. Esta
última vem sendo fortemente penalizada pelos orçamentos estreitos em nome
da estabilidade macroeconômica, do ajuste fiscal e da governabilidade polí-
tica, ou redimensionada com a perda da universalidade e baixas coberturas e
valores de benefícios, como nossas investigações vêm apontando. As névoas

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têm sido adensadas pelo fetichismo, a reificação e a alienação, com forte
incidência nas condições históricas e na correlação de forças entre as classes
e seus segmentos, afetando os projetos societários, as classes sociais e seus
segmentos, e a subjetividade, forjando uma espécie de espírito do tempo ou
ambiente intelectual e moral. Este último está subjacente aos projetos socie-
tários conservadores, neofascistas e de extrema direita em voga. Assim, um
marcador central é o reconhecimento de que o capitalismo está em uma crise
estrutural, endêmica e profunda, com várias dimensões que se revezam no
tempo e no espaço com maior ou menor vigor: econômica, política, ecológica/
climática, social, sanitária etc.
Contudo, algumas abordagens acadêmicas ou de teor mais jornalístico,
caracterizaram a crise de 2008/2009 – a mais profunda desde 1929/1932
– como passageira e conjuntural. Este é o caso dos liberais ortodoxos que
permanecem sustentando políticas de austeridade. Porém, paradoxalmente,
o fundo público/Estado socorreu as vítimas da crise e do ajuste inevitável,
melhor dizendo, do “austericídio”: seja no mundo empresarial e financeiro,
salvando bancos e empresas, comprando ativos muitas vezes podres, abrindo
novos nichos de valorização do capital por meio de privatizações com forte
aporte do Estado/fundo público; seja na outra ponta, a dos trabalhadores(as),
por meio de políticas focalizadas para os mais pobres dentre os pobres e com
parcos recursos, considerando os processos de desemprego e pauperização
desencadeados e que ampliaram a desigualdade social no Brasil e em todos os
quadrantes do mundo. Outros apontaram a crise de 2008/2009 como superável
em médio prazo, desde que fossem desencadeados processos de regulação,
particularmente sobre a circulação de capitais na forma de papéis e moeda,
diga-se, a ação dos rentistas e especuladores, regulações e restrições que teriam
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 25

sido descartadas pelos neoliberais, como afirmam muitas das análises de cariz
neokeynesiano. Neste caso, admite-se um aporte maior do fundo público para
políticas públicas e sociais, em tensão com o projeto de austeridade, mas sem
colocar em questão se o capitalismo maduro e decadente comporta tal orien-
tação. Essas são tendências que vimos observando em nossas investigações.
Num caminho distinto dessas abordagens, no GOPSS/UERJ vimos sus-
tentando que a perspectiva da totalidade permite ver a crise do capital como um
elemento interno a sua lógica, relacionado à dinâmica da produção e apropria-
ção do valor, diga-se, da acumulação do capital; bem como à contradição entre
as classes sociais, muitas vezes expressa por seus segmentos, na correlação
de forças política, no solo da história. Assim, a crise em curso não começou
em 2008/2009 com a falência do Lehman Brothers nos EUA e seu efeito
contágio, momento que foi na verdade uma espécie de ápice da onda longa
com tonalidade de estagnação aberta desde o início dos anos 70 (MANDEL,
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1982). Acompanhamos neste debate, de maneira geral, a posição de autores


como Ernest Mandel, István Mészáros, Michael Husson, Michael Lowy, Daniel
Bensaid, François Chesnais, David Harvey, Jaime Osório, Cláudio Katz; e no
Brasil, José Paulo Netto, Marilda Iamamoto e Virginia Fontes, dentre outros
que vêm atualizando a crítica da economia política, quanto à natureza da crise
capitalista contemporânea, em que pese as diferentes angulações dos autores
supracitados. Mas todos(as) vislumbram, a profundidade e extensão, no tempo
e no espaço, da crise atual do capitalismo, e que foi ampliada ainda mais com
a pandemia mundial a partir de 2020 (BEHRING, 2021, cap. 5 e 8).
Falar de uma crise estrutural não implica em uma abordagem estruturalista,
catastrofista ou finalista da história, que por vezes contagiou e ainda contamina
o debate no âmbito da tradição marxista. Se o capitalismo esgotou ou não seu
tempo é um desdobramento que tem a ver com as forças sociais vivas e suas
possibilidades históricas. Mas a convicção é de que hoje, são maiores as possi-
bilidades de barbarização e banalização da vida, e de desastres ecológicos, bem
como de crises econômicas com forte efeito contágio no contexto do capitalismo
mundializado, fundado num mar de endividamento público e privado, e que
beneficia uns poucos. De acordo com o informe da OXFAM, de 2023:

O 1% mais rico do mundo ficou com quase 2/3 de toda riqueza gerada
desde 2020 – cerca de US$ 42 trilhões -, seis vezes mais dinheiro que
90% da população global (7 bilhões de pessoas) conseguiu no mesmo
período. E na última década, esse mesmo 1% ficou com cerca de metade
de toda riqueza criada. Pela primeira vez em 30 anos, a riqueza extrema
e a pobreza extrema cresceram simultaneamente (OXFAM, 2023).8

8 Disponível em https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/a-sobrevivencia-do-mais-rico/. Acesso


em: jun. 2023.
26

O Estado, o fundo público, o orçamento público, e a política social são


processos complexos e multicausais embebidos por essa dinâmica de crise
e de crescimento exponencial da desigualdade social. São amálgamas de
determinações econômicas, políticas e culturais, na particularidade nacional,
regional e mundial. Sob os números do orçamento público sempre há pessoas
e não coisas, num contraponto à lógica do capital fetiche, onde as coisas se
sobrepõem às pessoas (MARX, 1982; IAMAMOTO, 2007). Há ainda a ação
de sujeitos coletivos e individuais diversos, que tem gênero/sexo, raça/etnia,
geração etc. Ou seja, o Estado capitalista, o fundo público e o orçamento
público, que promove parte muito importante da alocação do fundo público
– e sobre o qual incide a dinâmica do valor (BEHRING, 2021) – é um resul-
tado da presença de classes e seus segmentos, da hegemonia de coalizões de
classe em blocos de poder na direção do Estado, e de um conjunto de pressões
objetivas e de conflitos sociais.

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Neste passo, é importante uma breve aproximação sobre a questão do
Estado, categoria que está no núcleo das pesquisas que vimos desenvolvendo.
Engels (2012), nos informa que o Estado precede o capitalismo, e nasce a
partir das disputas em torno do controle das classes pela apropriação do sobre-
produto social ou excedente, na medida em que a humanidade se afasta das
barreiras naturais e supera a escassez que marcava as sociedades primitivas
sem classes e sem Estado, ou comunismo primitivo. Dentro disso, tem-se a
instituição da propriedade privada e da sociedade civil, e a constituição do
Estado com seus mecanismos de poder, jurídicos e de uso da força – o mono-
pólio da violência – para sua manutenção. O Estado é, em síntese, um meio
de dominação de classe tendo em vista a apropriação privada do sobreproduto
social e/ou dominação de sua distribuição em qualquer tempo, em que pese
os trânsitos dos modos de produção – do feudalismo para o capitalismo por
exemplo – ou as formas de exercício do poder político e institucionais – do
Estado Absoluto para o Estado Democrático de Direito – trânsitos esses que
não aconteceram da mesma forma nas experiências particulares. Lembramos
aqui o marxista peruano José Carlos Mariátegui, em suas sete teses sobre a
formação peruana (2016), e porque não dizer latino-americana, quando nos
fala sobre a violência – uma profunda ‘carniceria’ – da Conquista sobre as
populações indígenas e civilizações que tinham uma produção comunal e aqui
viviam. Uma violência descomunal financiada pelos Estados metropolitanos,
no contexto da acumulação primitiva do capital, para instaurar entre nós
a hegemonia do livre-câmbio, expropriando terras e escravizando pessoas,
ao mesmo tempo em constituíam-se classes dominantes desprovidas de um
estado de ânimo revolucionário e de projetos nacionais. Donde se instaura
a marca visceral da dependência, da heteronomia, conceito que será melhor
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 27

desenvolvido posteriormente na teoria marxista da dependência (MARINI,


1973; BAMBIRRA, 2013), e a tendência de Estados pouco republicanos e
regimes políticos autocráticos (FERNANDES, 1987).
A relação entre Estado e capitalismo precede as revoluções burguesas do
final do século XVIII e ao longo do século XIX, quando esta classe assume
a direção do Estado, donde se pode afirmar que o Estado foi uma espécie
de parteiro do capitalismo, como diz Mandel (1982), atuando na expansão
marítima e comercial – para a América Latina, a Conquista – e nos proces-
sos de acumulação primitiva do capital (MARX, 1988), sendo que muitas
monarquias se aburguesaram, já que dispunham de fartos excedentes. Nem
todas as monarquias viram as suas cabeças rolarem, como no exemplo clás-
sico francês (MOORE JR., 1983).
Apesar de parteiro e parceiro do capital desde o início dos tempos, os
liberais de primeira hora viam o Estado como uma espécie de mal necessário,
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já que o liberalismo como visão social de mundo e programática econômica,


nasce em contraponto às amarras do Estado absoluto, que não comportava
as liberdades de movimento que a expansão da produção de mercadorias, do
dinheiro e do processo de valorização do capital requisitavam. Na verdade, o
liberalismo tem para com o Estado, desde os primórdios até hoje, uma relação
ambígua: que o requisita visceralmente e o repele compulsivamente. Para
além do imediato, se trata de uma relação essencialmente pragmática, em
especial após o liberalismo transitar de uma visão social de mundo utópica
para pura ideologia no contexto de sua decadência ideológica (LÖWY, 1987;
NETTO, 2010), quando a burguesia se torna classe econômica e politicamente
dominante e após as insurreições de 1848. Um bom exemplo desse pragma-
tismo é a conhecida rejeição malthusiana de qualquer mecanismo de proteção
social, como era reivindicado pelos reformadores sociais ingleses de sua
época; e, por outro lado, sua defesa visceral das leis do trigo, intervindo no
mercado e contrariando o princípio aparentemente intocável do laissez faire,
como nos mostra o belo estudo de Kenneth Lux (1993). Uma contradição
que se repõe aos nossos olhos, bastando observar que diante da debacle de
2008/2009, uns dormiram neoliberais e acordaram no dia seguinte pedindo
a boia de salvação do fundo público.
No contraponto à perspectiva liberal e sua reedição atual e fortemente
ideológica no neoliberalismo, a tradição marxista interpreta o Estado como
processo social e histórico. O Estado é um elemento central na dinâmica da
totalidade concreta, a sociedade burguesa, sacudida pelas contradições ao longo
da história – da luta de classes –, e ao longo dos ciclos do capitalismo. A tradi-
ção do materialismo histórico e dialético aborda o Estado não a partir de uma
definição genérica – como mal necessário (Smith), como árbitro garantidor do
28

bem comum (contratualistas), ou a encarnação do espírito absoluto (Hegel) –


mas buscando seu modo de ser no processo histórico. E se é história, falamos
em lutas de classes. Trata-se então de reproduzir no nível do pensamento a
lógica do Estado como categoria (NETTO, 2009), numa perspectiva ontológica.
Adotando a periodização mandeliana (1982) do desenvolvimento do
capitalismo, o capitalismo de livre concorrência, o imperialismo clássico e
o capitalismo tardio ou maduro, estes dois últimos períodos marcados pelo
processo de monopolização do capital, observa-se que se altera esse modo de
ser do Estado e do fundo público na totalidade concreta ou, ao menos, suas
ênfases. Na livre concorrência, o Estado assegura os contratos, realiza a inter-
mediação entre os interesses burgueses – hegemonizados pelo capital industrial
nascente – e usa da força para impor esses interesses sobre os trabalhadores,
na perspectiva de assegurar uma força de trabalho “livre como os pássaros”
(MARX, 1988), inteiramente disponível para o processo de valorização e

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acumulação de capital. O Estado controla as primeiras expressões materiais e
políticas da questão social nascente, notadamente após as revoluções de 1848
(NETTO, 2001), bem como sustenta os deslocamentos espaciais na economia
mundo, em especial se estão numa posição hierarquicamente central, para
assegurar a subordinação e exploração da periferia. Para o exercício dessas
funções, os Estados Nacionais já no início do século XX recolhiam entre 10
e 20% do PIB, no máximo, em termos das cargas tributárias nacionais (OLI-
VEIRA, 1998; MANDEL, 1982), ou seja, o fundo público, que materializa
as funções estatais, correspondia a esta média percentual sobre o PIB.
Mas o capitalismo monopolista, a partir do imperialismo clássico de final
do século XIX ao capitalismo maduro pós Segunda Guerra Mundial, com a
classe trabalhadora consolidada como classe em si e para si, aponta novas requi-
sições para o Estado. Pode-se afirmar que Gramsci teve grande sensibilidade
para essas mudanças, a exemplo de sua percepção da ampliação do Estado,
do fordismo como modo de vida total mediado pela presença do Estado, da
hegemonia e da relação do Estado com os aparelhos privados, como parte
constitutiva dos mecanismos de dominação de classe, diluindo fronteiras antes
mais claras entre público e privado. Para esse trânsito, houve o pressuposto
da enorme destruição de forças produtivas da crise de 1929-32, a emersão do
nazifascismo e de duas guerras mundiais. Tratava-se agora, com a recuperação
econômica pós-crise de 1929 e pós-guerra, de disciplinar a classe trabalhadora
– que dispunha de instrumentos de luta e experiências revolucionárias na sua
trajetória – à revolução tecnológica e ao fordismo. Estes processos, combi-
nados ao keynesianismo, ao Estado Social e ao militarismo da guerra fria,
asseguraram uma onda longa expansiva ao capitalismo, tendo como elemento
central nessa lógica um Estado que, além das funções de coerção e integração/
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 29

legitimação, age com intensidade renovada na garantia das condições gerais


de produção e reprodução social, como nos explica Mandel (1982).
A generalização das políticas sociais, como salário indireto, tendo em vista
a reprodução da força de trabalho, mas também como elemento contrariante à
queda das taxas de lucro, anticíclicas, e de aceleração do processo de rotação
do capital, ocorre nesse período (BEHRING, 1998 e 2021; BEHRING; BOS-
CHETTI, 2006). Assim, ergue-se o Estado Social em suas diversas formas
(BOSCHETTI, 2016) como o máximo de reforma social possível no mundo
do capital, ou máxima combinação entre acumulação capitalista, democracia
e igualdade de direitos, resgatando as ideias contratualistas, na contramão do
liberalismo mais exacerbado e sob a condução hegemônica da socialdemocra-
cia. Tratou-se de um Estado interventor em escala muito maior, e indutor do
processo de acumulação. Em algumas partes da periferia, configurou-se um
Estado desenvolvimentista, assumindo eventualmente ares nacional-desen-
Editora CRV - Proibida a comercialização

volvimentistas, e de forte inspiração cepalina na América Latina, mas onde


o Estado Social e o pleno emprego não foram tão abrangentes. Nesse novo
contexto, do capitalismo maduro e em expansão, os Estados passaram a ter uma
capacidade extrativa de carga tributária de 30% a 45% do PIB (OLIVEIRA,
1998) especialmente na Europa Ocidental, produzindo a ilusão socialdemocrata
de que as nacionalizações e este Estado levariam a um “capitalismo mono-
polista de Estado”, e de que se chegaria ao socialismo por meio de reformas
graduais no capitalismo, a partir do Estado. Na verdade, o Estado é convocado
a disponibilizar parte significativa do fundo público para a reprodução ampliada
do capital, para o circuito de produção e realização do valor (BEHRING, 2021),
passando a ser um componente estrutural (OLIVEIRA, 1998) do processo de
acumulação, expressando a forte contradição entre o desenvolvimento das
forças produtivas e as relações sociais de produção no capitalismo maduro. E
não existe um capitalismo de Estado ou monopolista de Estado, mas o Estado
com suas funções na totalidade do capitalismo em movimento, como podemos
depreender de Ianni (1984) e Mandel (1977 e 1982).
A viragem para uma onda longa de estagnação desde fins dos anos 60
do século XX tratou de desfazer aquelas ilusões socialdemocratas, revisio-
nistas e reformistas, acalentadas desde os intensos debates de fins do século
XIX no interior da II Internacional, e que se tornaram projetos de governos
de reconstrução no pós-guerra, com o advento também do eurocomunismo
(MANDEL, 1978). Se houve impactos materiais e melhoria das condições de
vida dos trabalhadores em alguns espaços nacionais no período de expansão,
estas passarão a ser sistematicamente derruídas desde então. Isto porque o
capitalismo, desde fins dos anos 1970, desencadeou uma monumental reação
burguesa frente à crise, na perspectiva da retomada das condições ótimas de
30

exploração da força de trabalho, de expansão da dominação na economia


mundo, e de aprofundamento do desenvolvimento desigual e combinado,
com seu diferencial de produtividade do trabalho, na busca avassaladora da
retomada das taxas de lucro. A partir de então é desencadeada a reestrutu-
ração produtiva, e a adequação da força de trabalho aos novos padrões de
exploração – precarização, terceirização e uberização da força de trabalho
(ANTUNES, 2022), num processo de disciplinamento, fundado na ruptura
das “seguranças” do pacto fordista/keynesiano, o que inclui alterações no
Estado Social com expropriações de direitos (FONTES, 2010; BOSCHETTI,
2018), a recomposição do exército industrial de reserva ou superpopulação
relativa em suas várias faces, e, na periferia, a expansão da superexploração
do trabalho, característica da heteronomia e da dependência desses países
(FLORESTAN, 1987; MARINI, 1973; OSÓRIO, 2014).
Há ainda os deslocamentos espaço-temporais do capital, engendrados

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pela mundialização do capital com dominância financeira, analisados por
Chesnais (1996). E como corolário disso, o neoliberalismo e a contrarre-
forma do Estado (BEHRING, 2003), adequando essa mediação fundamental,
o Estado – o capitalista coletivo (IANNI, 1984) ou capitalista total ideal
(MANDEL, 1982) – aos novos tempos. Na perspectiva do disciplinamento da
força de trabalho às novas condições de oferta cabe também ao Estado conter
os que ficam de fora pelo encarceramento e a violência combinados ao incre-
mento do assistencialismo (WACQUANT, 2007). Outro movimento central
do Estado é realizar processos de atratividade dos capitais, num contexto de
superacumulação, disponíveis na forma dinheiro, por meio das privatizações
e oferta de novos nichos de mercado, o que inclui fortemente as políticas
sociais com destaque para a saúde, a educação e a previdência social. De
outro ângulo, essa atratividade também diz respeito à exploração de bens
naturais, voltando partes da periferia à especialização produtiva, mesmo em
países mais industrializados como Brasil e Argentina.
Numa sociedade monetizada, o fundo público – categoria central para
nossa investigação – é o que materializa as ações do Estado. E sua ênfase hoje
se dá na garantia das condições gerais de produção, na perspectiva de propiciar
as condições de rotação e valorização do capital e assegurar a subsunção do
trabalho ao capital em condições precárias, ou seja, para a máxima exploração. O
lugar estrutural e inarredável do fundo público fica claro por sua destinação num
lugar central para o capital portador de juros na sua forma mais fantasmática,
o capital fictício, e o suporte à produção, nesse contexto de esgotamento das
possibilidades civilizatórias do capital e de desenvolvimento de forças destru-
tivas da humanidade e da natureza (MÉSZAROS, 2002). O Estado se apropria
pela tributação de parte muito significativa do trabalho excedente, diga-se, mais
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 31

valia socialmente produzida, que se transformou em juros, lucros e renda da


terra, e de parte do trabalho necessário, na forma dos salários, para sua parti-
cular intervenção no momento presente (BEHRING, 2021). O neoliberalismo,
portanto, não minimizou a intervenção do Estado, conforme seus anúncios de
primeira hora, pois este permaneceu com forte presença econômica e social, e
intensa capacidade extrativa, já que não diminuiu a carga tributária na maior
parte dos países. Contudo, o Estado redireciona a alocação do fundo público,
que é elemento constitutivo dessa lógica destrutiva das pessoas e da natureza.
Esse é um contexto em que se aprofunda a hegemonia e a direção de
classe burguesas no Estado. Se o Estado é condensação de correlação de forças
(POULANTZAS, 1978, 2013), pois ampliou-se, e inclusive incorporou um
número maior de trabalhadores nas novas funções adquiridas no pós-guerra, os
desdobramentos recentes da intervenção estatal no contexto da crise estrutural
do capital apontam claramente para o aprofundamento da direção burguesa sob
Editora CRV - Proibida a comercialização

hegemonia da financeirização na condução do Estado, apesar da operação de


contradições. Isso significa constatar que o momento presente é de aumento do
poder de decreto, de desdemocraização (DARDOT; LAVAL, 2016; BROWN,
2019), de déficit democrático ou “democracia blindada” (DEMIER, 2017),
de recrudescimento da violência “que vem de cima” e de forte intervenção
econômica por meio da alocação do fundo público in flux, diga-se como
componente da reprodução ampliada do capital (BEHRING, 2021).
É nesse marco que se impõe a nova razão do mundo (DARDOT; LAVAL,
2016), corolário da “razão do capital”, com seu projeto devastador. O neofas-
cismo – como vivemos no Brasil sob o desgoverno de Jair Bolsonaro (2019
a 2022) – e as variadas formas de regimes bonapartistas, são a expressão
política das tendências que vimos apontando, atualizando conceito de auto-
cracia burguesa (MATTOS, 2020). Se o fascismo não é a “normalidade” da
dominação burguesa, não há pudores em lançar mão dele em condições de
crise orgânica burguesa combinada à crise econômica, inclusive mobilizando
a fração enfurecida pequeno-burguesa para esmagar as organizações operá-
rio populares, de mulheres, antirracistas e indígenas, inclusive na forma de
falanges paramilitares (milícias). Este projeto da extrema direita simula o
nacionalismo para entregar o patrimônio público e as riquezas naturais; des-
truir os direitos sociais para que a força de trabalho seja ofertada a qualquer
custo e em quaisquer condições sob pena do pauperismo crônico, processo
que atinge principalmente as mulheres negras, a exemplo do Brasil, e se
apropriar do fundo público pelos mais variados meios lícitos ou ilícitos. Sob
o argumento do terror econômico e do medo, a extrema-direita aprofunda o
ajuste fiscal permanente (BEHRING, 2021), de forma ainda mais deletéria
para a classe trabalhadora.
32

Esses são processos que ocupam o espaço-tempo do social, no con-


texto da fragmentação das lutas e de uma forte ofensiva cultural e ideológica.
Falamos aqui do que Jameson (ano) chamou de a lógica cultural do capita-
lismo tardio (maduro), cujos traços são: o individualismo, o consumismo, a
espetacularização de um presente reificado – ou presenteísmo –, a felicidade
histriônica obrigatória, a perda da historicidade e o esmaecimento dos afetos.
Mas há na cena histórica muitas resistências, e estas também são mar-
cadores para o GOPSS/UERJ, que longe está de desenvolver investigações
ascéticas e orientadas pelo mito da neutralidade científica. Pelo contrário, o
GOPSS/UERJ busca produzir conhecimentos a serviço de um devir histórico
de homens e mulheres emancipados(as) da lógica da valorização do valor, em
especial em suas dramáticas expressões atuais, algumas delas sinalizadas nas
linhas acima. Os movimentos indígenas, das mulheres, de lutas por moradias
e pela terra, estudantil e de juventudes, ecológicos e antirracistas – trazendo

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eventualmente um movimento sindical acuado pelas duras condições econômi-
cas – que inúmeras vezes foram às ruas de forma contundente para denunciar o
neofascismo e a agenda ultraneoliberal no Brasil (e no mundo), têm no GOPSS/
UERJ uma pesquisa aliada, que fornece informações qualificadas para suas lutas.

Vida longa ao GOPSS/UERJ!

Encerro esse texto com duas certezas. Primeiro, a de que o mercado é


incapaz de recompor os laços sociais e o mundo do capital vive uma crise
civilizatória e estrutural sem retorno, requisitando mais que nunca sua supe-
ração. Mantido às suas próprias forças teremos a barbarização cada vez maior
da vida e o risco iminente da catástrofe climática e da guerra, como está em
curso hoje na Ucrânia, mas também em outras partes do mundo. Nosso esforço
de pesquisa no GOPSS/UERJ busca extrair da realidade e trazer à tona as
contradições que estão em curso, tendo em vista somarmo-nos a um devir
bem diferente e distante deste que já está entre nós e insiste em se anunciar
todos os dias como um “museu de grandes novidades” e grandes catástrofes.
E por fim, a de que o GOPSS/UERJ deixou de ser um projeto individual
há algum tempo. Hoje há mãos, braços e abraços, e fortes cabeças pensantes
e brilhantes, que podem ser portadores(as) do seu futuro, para que possa con-
tinuar sua trajetória de formação crítica e de pesquisa de dados primários e
análises que ofereçam à sociedade brasileira condições para as lutas por um país
igualitário e justo, e por um mundo emancipado dos grilhões do capitalismo;
e, ainda, que incrementem a interlocução internacional. Essa é uma aposta, um
desejo, uma esperança. Pois como diz a frase de um belo samba da Mangueira,
“não há futuro sem partilha”: do fundo público, do conhecimento, do afeto.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 33

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Juliana Fiuza Cislaghi
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Introdução
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A publicação no Brasil em 2004 do livro de David Harvey “O novo impe-


rialismo” causou impacto importante nas análises da esquerda marxista. Com
uma proposta ousada de interpretação das particularidades do capitalismo no
início do século XXI, o texto suscitou adesões e divergências. Virgínia Fontes,
historiadora, intelectual e militante marxista fundamental no Brasil, em 2010, em
seu livro “O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história”, retomou o debate
de Harvey e travou com ele polêmicas que influenciaram, e seguem influen-
ciando, intelectuais e pesquisadores que buscam coletivamente uma interpreta-
ção das formas próprias do capitalismo de nosso tempo, para melhor combatê-lo.
No campo do Serviço Social brasileiro, foi Ivanete Boschetti quem pri-
meiro propôs hipóteses interpretativas que traziam a categoria “expropriação”
para o centro dos debates, partindo da análise de Marx (2009)9 e Fontes (2010).
Além de sua interpretação original, Boschetti reuniu diversos pesquisadores
para pensar sobre o tema, culminando na publicação do livro “Expropriação
e direitos no capitalismo” em 2018.
Na minha tese de doutorado, defendida em 2015, apresentei polêmicas
com as hipóteses de Fontes (2010). Tive a chance de contar com Ivanete Bos-
chetti na minha banca, que não só discordou das minhas elaborações sobre as
expropriações, na ocasião ainda muito mais intuitivas e bastante primárias,
como teve a generosidade de citar sua discordância em seu primeiro texto
sobre esse debate, o livro “Assistência Social e trabalho no capitalismo”,
publicado em 2016. Participei ainda, por seu convite, da mesa coordenada
“Expropriação e supressão de direitos no capitalismo: um debate necessário”
no Encontro do NIEPP/Marx de 2017 junto com as professoras Elaine Rossetti
9 Fazemos referência ao Livro 1, Volume 2 d’ O Capital, publicado originalmente em 1867. Para esse trabalho
estamos utilizando a 23ª edição da editora Civilização Brasileira, traduzida por Reginaldo Sant´Anna.
38

Behring e Ana Elizabete Mota. Também fui convidada a participar do supra-


citado livro de 2018, mas não aceitei, porque não conseguia, ainda, sintetizar
a “certa implicância” em uma produção teórica que eu mesma achasse que
podia alcançar o tamanho do trabalho que a autora empreendia.
A retomada desse fio histórico é apenas para registrar o meu imenso
respeito e admiração pelas intelectuais com quem debato nesse capítulo e
revelar, aos leitores, o trajeto da elaboração original do debate e a fonte da
polêmica. A ideia de que existe algo como uma “expropriação de direitos”
teve e tem grande influência no Serviço Social brasileiro desde então, e ao
reler os textos basilares alguns anos depois10 percebi que sigo discordando da
hipótese de que a redução de direitos sociais ou a apropriação do fundo público
pelo capital equivale à expropriação dos trabalhadores, nos termos marxianos,
ainda que essa categoria seja adjetivada como “secundária”, “contemporâ-
nea”, “não clássica” e correlatos. Isso não significa, e vamos demonstrar que

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Marx não negou essa possibilidade, como argumentam alguns autores11, que
as expropriações não sigam em toda a História do capitalismo até os dias
atuais no século XXI, dissociando violentamente os trabalhadores dos meios
de produção em todo o planeta. Irei sistematizar essa argumentação, e peço
paciência com as inúmeras citações necessárias para o raciocínio, além de
levantar preocupações teórico-políticas sobre a extensão da categoria “expro-
priação”, de forma mais segura e amadurecida, anos depois, nesse capítulo12.
Não haveria melhor ocasião que a comemoração dos 20 anos do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS),
fundado e coordenado pela professora Elaine Behring, que me formou e onde
pude trocar, debater e aprender com diversos professores e pesquisadores de
muitas gerações, e que hoje co-lidero junto com ela, na Faculdade de Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 18 anos depois
de meu ingresso como estudante de iniciação científica, ainda na graduação.
Assim, o capítulo retoma, com alguns anos de atraso, o debate no qual
não entrei, sem a pretensão de esgotamento, nem sequer de pleno convenci-
mento, mas retomando o bom diálogo crítico, que espero esteja à altura de
honrar minhas mestras, companheiras e interlocutoras. Vida longa ao GOPSS!

10 Tive a oportunidade de apresentar em agosto de 2022 o texto de Fontes (2010) no Ciclo de Debates do
Centro de Estudos Octavio Ianni na UERJ quando pude contar com a interlocução de diversos colegas
professores e pesquisadores a quem agradeço as provocações e contribuições.
11 “No entanto, Marx era da opinião de que a ‘queda do homem’ fundada no disciplinamento estatal e no – em
parte violento – novo modo de produção, característico do regime de expropriação primitivo, se encerraria
assim que o capitalismo se reproduzisse por conta própria” (DORRE, 2022, p. 79).
12 A isso agradeço o convite para participar da Roda de Conversa sobre O Capital em 2022, grupo de estudos
coordenado pela Professora Marilda Iamamoto, grupo que conta com diversos importantes pesquisadores
do Serviço Social de todo Brasil com debates extremamente qualificados, generosos e de boas polêmicas.
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Expropriações na análise marxiana: algumas polêmicas

O conjunto de autores que retoma a categoria “expropriação” como chave


para a análise do capitalismo nas suas particularidades contemporâneas parte,
em geral, do capítulo 24 de O Capital de Marx “A assim chamada acumulação
primitiva”. Esse capítulo fecha o primeiro livro de sua principal obra, seguido
do capítulo 25 “A teoria moderna da colonização”, também importante para
o debate sobre as expropriações.
O objetivo fundamental do capítulo 24 de Marx é polemizar com uma
hipótese mítica do nascimento histórico do capitalismo como um processo em
que a acumulação de propriedade transformada em capital se deu porque – nas
palavras de Marx: “havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies
de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo, uma população consti-
tuída de vadios trapalhões que gastavam mais do que tinham” (MARX, 2009,
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p. 827). Contra essa “lenda teológica” de origem, Marx queria demonstrar que
a “pré-história do capital e do modo de produção capitalista” se origina de uma
acumulação primitiva sanguinária constituída pela “conquista, pela escraviza-
ção, pela rapina e pelo assassinato, em suma pela violência” (MARX, 2009,
p. 828). Marx cita ainda como parte do processo da acumulação primitiva do
capital, “o roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios
do Estado, a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade
privada e do clã em propriedade privada moderna, levada a cabo com terro-
rismo implacável” (MARX, 2009, p. 847).
Nesse marco, as expropriações são processos fundamentais para Marx.
A fim de sustentar nossa argumentação, iremos citar as definições de expro-
priação conforme elaboradas por Marx nos capítulos 24 e 25 de O Capital:

A que se reduz, em última análise, a acumulação primitiva, a origem


histórica do capital? Quando não é transformação direta de escravos e
servos em assalariados, mera mudança de forma, significa apenas a expro-
priação dos produtores diretos, isto é, a dissolução da propriedade
privada baseada no trabalho pessoal, próprio (MARX, 2009, p. 874)
[grifo nosso].
[...] Demonstra, então, como o desenvolvimento da força produtiva social
do trabalho, a cooperação, a divisão do trabalho, a aplicação da maquinaria
em grande escala etc. são impossíveis sem a expropriação dos traba-
lhadores e a correspondente conversão de seus meios de produção em
capital (MARX, 2009, p. 882) [grifo nosso].
[...] a expropriação da massa do povo, que fica assim sem-terra, forma a
base do modo de produção capitalista (MARX, 2009, p. 884) [grifo nosso].
[...] o modo de produção capitalista de produção e acumulação e,
portanto, a propriedade privada capitalista, exigem, como condição
40

existencial, o aniquilamento da propriedade privada baseada no


trabalho próprio, isto é, a expropriação do trabalhador (MARX,
2009, p. 891) [grifo nosso].

A expropriação das terras da Igreja Católica executada pela, então,


ascendente classe de capitalistas, pode ter significado, historicamente, em
muitos casos, a separação do produtor direto dos meios de produção que ele
cultivava para sua subsistência de forma direta, como arrendatário ou em
outras formas de vassalagem típicas da sociedade feudal europeia. Porém,
essa perda de direito de propriedade ou usufruto direto da terra como meio
de produção, ainda que direito consuetudinário13, não pode ser comparada,
como expropriação, à perda de direitos sociais nas sociedades capitalistas
contemporâneas, como aprofundaremos nas próximas seções. Isso porque
formas de subsistência para os trabalhadores, mediadas seja pelo Estado, pela
Igreja ou qualquer outra instituição privada, como caridade ou salário indireto

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na forma de direito, não podem ser equiparadas a propriedade de meios de
produção, o que é o objeto da expropriação capitalista para Marx, conforme as
citações anteriores evidenciam. Sobre isso, atenta Marx que é “a propriedade
comunal (isto é, as terras comuns), absolutamente diversa da propriedade da
Coroa ou do Estado” (MARX, 2009, p. 838), ainda que ambas tenham sido
igualmente usurpadas pelos capitalistas burgueses que compunham uma nova
aristocracia das terras em aliança com a nova bancocracia da alta finança
(MARX, 2009, p. 838).
Marx cita em diversas passagens dos capítulos 24 e 25 a perda de direi-
tos dos trabalhadores e das condições institucionais da sociedade feudal, que
garantiam sua sobrevivência, como parte da violência da acumulação primi-
tiva. Essa subtração de direitos não corresponde, no entanto, a um sinônimo
do que é a expropriação: a separação dos trabalhadores de seus meios de
trabalho, incluída necessariamente e fundamentalmente a terra14.
Quando Marx afirma que “[...] os que se emanciparam só se tornaram
vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os seus meios de
produção e os privaram de todas as garantias que as velhas instituições feudais
asseguravam à sua existência” (MARX, 2009, p. 829), ele não está equali-
zando as perdas de direitos que garantiam subsistência com a expropriação

13 Direitos consuetudinários são aqueles que se baseiam nos costumes, nas práticas, nos hábitos de uma
sociedade conforme o Dicionário Oxford.
14 Podemos pensar, na sociedade capitalista moderna, outros meios de produção expropriados dos trabalha-
dores como o maquinário fabril ou o aprisionamento do conhecimento necessário à produção, por exemplo,
de medicamentos, por meio de patentes. Todos eles continuam envolvendo, no entanto, a terra, mesmo em
espaços urbanizados. O filme “Fome de Poder” (The founder), dirigido por Hancock em 2016, curiosamente
mostra como a acumulação de riqueza dos fundadores do Mc´Donalds se originou menos da venda de san-
duíches de gosto e origem duvidosa e muito mais da renda da terra onde ficavam as lanchonetes nos EUA.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 41

dos meios de produção, propriamente dita. O mesmo se pode perceber na


passagem em que afirma que “o processo violento de expropriação do povo
recebeu um terrível impulso, no século XVI, com a Reforma e o imenso saque
dos bens da Igreja que o acompanhou” (MARX, 2009, p. 835) [grifo nosso].
O roubo dos bens da Igreja foi uma expropriação de meios de produção
executada pela ascendente classe de detentores de capital sobre as classes
proprietárias dominantes do período feudal europeu como parte da acumulação
primitiva. Isso não significa que não tenha impactado na vida da massa do
povo e nas suas formas de subsistência anteriores, seja por meio de caridades,
seja por formas então vigentes de vassalagem que mantinham os produtores
ligados aos meios de produção.
Na totalidade do texto, Marx considerou as perdas de direitos sofridas pelos
trabalhadores, quando a Igreja foi expropriada pelas novas classes dominantes
burguesas, como elementos importantes que impossibilitavam qualquer forma de
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subsistência, impulsionando a formação de uma classe trabalhadora “livre” para


vender sua própria pele por meio do assalariamento. No entanto, tais perdas não
equivalem à expropriação dos meios de produção porque, efetivamente, redução
de direitos e dissociação dos trabalhadores dos meios de produção são processos
diferentes no desenvolvimento do capitalismo como modo de produção e têm
consequências diferentes na luta de classes e no objetivo de “expropriação dos
expropriadores”, estratégia necessária para a superação da sociedade do capital.
Outro debate necessário sobre os capítulos 24 e 25 de O Capital é que
Marx, ao contrário do que afirmam Harvey (2004) e Dorre (2022), não nega
a permanência das expropriações, na interpretação que aqui defendemos, no
desenvolvimento ulterior do capitalismo. Ao contrário, afirma que: “O sistema
capitalista pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos
meios pelo qual realizam o trabalho. Quando a produção capitalista se torna
independente, não se limita a manter essa dissociação, mas a reproduz em
escala cada vez maior” (MARX, 2009, p. 828).
Um trecho muito citado do capítulo 24 para referendar a hipótese de que
a violência permanente, como ocorrida na acumulação primitiva, seria negada
por Marx, é o seguinte:

Ao progredir a produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalha-


dora que, por educação, tradição e costume, aceita as exigências daquele
modo de produção como leis naturais e evidentes. [...] Ainda se empregará
a violência direta, à margem das leis econômicas, mas doravante apenas
em caráter excepcional (MARX, 2009, p. 851).

Sem condescendência com Marx, a elaboração é bastante otimista, sobre-


tudo da perspectiva de quem conhece a história do breve século XX, conforme
42

batizado por Hobsbawn, e do já longuíssimo século XXI, ainda em sua ter-


ceira década. No entanto, não é em nada equivocado dizer que se ampliaram
os mecanismos de convencimento aos trabalhadores da inevitabilidade da
exploração do trabalho decorrente da expropriação dos meios de produção, e
da ideia de que eles são em larga medida bem-sucedidos.
Entretanto, a violência empreendida não só na expropriação dos traba-
lhadores, mas também na reprodução ampliada de sua exploração, é a mesma
da acumulação primitiva, ainda que possa ser apresentada formalmente como
excepcional, e segue se utilizando do racismo, do sexismo, da força do Estado,
e de roubo e fraude para se perpetuar. Assim, de fato, podemos afirmar que as
formas de violência da acumulação primitiva seguiram não só vigentes, como
também aprofundaram-se no decorrer do desenvolvimento capitalista em sua
totalidade, mas não como uma permanência da acumulação primitiva, descrita
no capítulo 25 como parte histórica apenas de sua constituição. Ao mesmo

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tempo que não há acumulação primitiva permanente, existe uma totalidade na
acumulação primitiva que incluiu a escravização e o tráfico das populações de
África, bem como a colonização e o extermínio das populações originárias de
América, não se restringindo, portanto, aos cercamentos de campos ingleses
desde seu primeiro momento.
Marx não tomou a acumulação primitiva, e a expropriação como seu
elemento mais determinante, como um processo inglês, em uma perspectiva
eurocêntrica estanque: “A história dessa expropriação assume matizes diversos
nos diferentes países, percorre várias fases em sequência diversa e em épocas
diferentes. Encontramos sua forma clássica na Inglaterra, que, por isso nos
servirá de exemplo” (MARX, 2009, p. 830).
Apesar da permanência da violência das expropriações, conforme
defende Fontes (2010), como origem e condição da expansão do capita-
lismo, não concordamos com a perpectiva luxemburguiana, resgatada por
Harvey (2004) e Dorre (2022) em suas elaborações recentes, de que para
isso ocorrer se perpetuaria uma dualidade “dentro” e “fora” da sociedade
capitalista. Há no desenvolvimento do capitalismo uma amálgama “desi-
gual e combinada”, perspectiva desenvolvida por muitos autores marxistas
desde Trotsky, inclusive por Fontes (2010), junto a um conjunto de formas
de subsunção do trabalho ao capital (transitória, formal e real), categorias
desenvolvidas por Marx no capítulo VI inédito do Livro I de O Capital
(1978). Em nossa perspectiva, a teoria do desenvolvimento desigual e com-
binado, associada às múltiplas forças de subsunção do trabalho ao capital
descritas por Marx, apresentam sínteses mais complexas e precisas para
captar as particularidades que compõem a totalidade das relações capita-
listas no seu desenvolvimento histórico.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 43

Todo o “Teorema da expropriação capitalista” de Dorre (2022) está


baseado nessa hipótese dos “lados de fora” que o capitalismo mantém e cria
continuamente. Dorre está entre os autores que expande o conceito de expro-
priação para múltiplos processos contemporâneos, de naturezas diferentes,
como iremos aprofundar a seguir.

Mas como o capitalismo se desenvolve? Nossa tentativa de responder


a essa questão altamente controversa baseia-se na ideia formulada pelo
geógrafo David Harvey, a partir de Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt.
Segundo essa visão, o desenvolvimento do capitalista pode ser compreen-
dido como a sucessão de regimes de expropriação de espaços não capita-
listas (DORRE, 2022, p. 35).
[...] o capitalismo pode de vincular sempre a um ‘externo’, que, em parte,
ele mesmo produz. O capitalismo pode, assim, tanto utilizar um ‘externo’
já existente (sociedades não capitalistas ou uma região determinada no
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interior do capitalismo – como a educação – que ainda não foi capitali-


zada) como produzir um externo [...] (DORRE, 2022, p. 40) [grifo nosso].

Expropriações no capitalismo contemporâneo

Harvey (2004), em “O novo imperialismo”, desenvolve no capítulo 4 o


conceito de “acumulação por espoliação”, que passou a ser muito debatido
entre os marxistas e no campo de conhecimento do Serviço Social no Brasil.
O primeiro de seus pressupostos, com que temos acordo, é de que é necessária
“uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas pre-
datórias da acumulação ’primitiva ou original’ no âmbito da longa geografia
histórica da acumulação do capital [...]” (HARVEY, 2004, p. 120), violência
que pode ter sido subestimada por Marx, como vimos na última seção.
A partir dessa constatação propõe substituir a qualificação de “primitiva”
ou “original” por “acumulação por espoliação”, por se tratar de um processo
em andamento. Acumulação por espoliação e acumulação primitiva seriam,
assim, processos similares, visto que “todas as características da acumulação
primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia
histórica do capitalismo até nossos dias” (HARVEY, 2004, p. 121).
Harvey, na descrição desse fenômeno contínuo da violência capitalista,
irá estender o conceito de expropriação a direitos sociais garantidos pelo
Estado como vemos na citação abaixo:

A corporativização e privatização de bens até agora públicos (como as


universidades), para não mencionar a onda de privatizações (da água e
de utilidades públicas de todo gênero) que tem varrido o mundo, indicam
44

uma nova onda de expropriação das terras comuns. [...] A regressão dos
estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente da
degradação tem envolvido a perda de direitos. A devolução de direitos
comuns de propriedade obtidos graças a anos de dura luta de classes (o
direito à aposentadoria paga pelo Estado, ao bem-estar social, a um sistema
nacional de cuidados médicos) ao domínio provado tem sido uma das
mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da ortodoxia
neoliberal (HARVEY, 2004, p. 123) [grifo nosso].

Mais a frente no texto, o autor, mais uma vez, associa a privatização e a


liberalização do mercado, no período neoliberal a partir da década de 1970,
com a entrega de ativos de propriedade do Estado ou destinados ao uso par-
tilhado da população como “expropriação das terras comuns”. Isso denota
que o autor assume que a perda de direitos garantidos pelo Estado por meio
de políticas sociais, como a previdência, as universidades ou a saúde pública,

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explicitamente citados por ele, é semelhante à expropriação de meios de pro-
dução comuns como a terra ou a água.
Essa compreensão dos bens e serviços, financiados com fundo público,
nos remete às críticas de Behring (2021, p. 99) às compreensões do “fundo
público como antivalor e a possibilidade da ‘retração da base social da explo-
ração’ via fundo público como antivalor alocado nas políticas sociais”. Para
Behring, o fundo publico não pode funcionar como antivalor e seus produtos
e serviços não são antimercadorias uma vez que ele participa de forma direta
e indireta do ciclo de produção e reprodução ampliada do capital. Ele não
gera mais valia, a não ser quando o Estado atua como produtor direto, mas
funciona tencionado pelas contradições entre a socialização da produção e a
apropriação privada do produto social, formando-se por uma punção de parte
da mais valia produzida e parte do trabalho necessário por meio da arrecadação
de impostos e tributos, o que O´Connor chama de “exploração tributária”,
visto que ocorre como uma exploração extraeconômica, posterior ao processo
de produção, sobre os salários dos trabalhadores. Behring afirma, ainda, que
“o crescimento do fundo público como processo contraditório não pode [...]
mitificar a política social como uma espécie de lado de fora do valor” (2021,
p. 108), lado de fora que Harvey chama de “terras comuns”.
Para Behring (2021, p. 107) os salários indiretos (políticas de educação,
aposentadoria e saúde pública garantidas pelo Estado e financiadas por fundo
público) “operam na lógica do valor, e não como espécie de lado de fora,
ainda que existam contradição e disputa pela possibilidade da reprodução
ampliada do capital e do trabalho [...]”. Por esses argumentos de Behring,
não poderiam as políticas sociais, promovidas em resposta a direitos sociais
serem consideradas “terras comuns”.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 45

Harvey defende, ainda, como já apontamos na última seção do capítulo,


que “a acumulação do capital tem de fato caráter dual” (HARVEY, 2004,
p. 144). Ela seria composta por dois aspectos: a reprodução expandida e a
acumulação por espoliação, que se acham “organicamente ligados, entre-
laçados dialeticamente” (2004, p. 144). Se a reprodução expandida corres-
ponde à reprodução ampliada do capital baseada na exploração do trabalho,
e a acumulação por espoliação à reprodução da expropriação e da violência
vigente desde a acumulação primitiva, não se trata de uma relação dual, mas,
de uma relação de determinação na articulação da totalidade do modo de
produção capitalista. A expropriação dos meios de produção dos trabalha-
dores, sejam propriedades individuais para produção direta de subsistência,
sejam propriedades comuns, como a água e as florestas, são condições para a
proletarização e consequente exploração do trabalho, decisivo para a repro-
dução ampliada do capital. Nesses dois processos, igualmente basilares para
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o capital, mas não necessariamente iguais, a violência e a coerção podem ser


igualmente empregadas, quando os mecanismos propriamente econômicos
não são suficientes para a produção de consentimento dos trabalhadores, não
se restringindo às expropriações. Não existe, portanto, um capitalismo “nor-
mal” da reprodução expandida, conforme já criticado por Fontes (2010), ao
lado de uma acumulação por espoliação violenta recentemente generalizada
e hegemônica, como supõe Harvey (2004), a partir de uma visão idílica do
capitalismo no período pós II Guerra Mundial.
Fontes (2010, p. 44) polemiza com Harvey e elabora uma hipótese própria
para igualmente expandir o conceito de expropriação para um conjunto de
fenômenos de perda de direitos no capitalismo contemporâneo. Para a autora,
e nesse ponto temos acordo com Fontes e Harvey, as expropriações violen-
tas que caracterizam a separação dos trabalhadores dos meios de produção
desde a acumulação primitiva do capital permanecem e se aprofundam. Essas
expropriações são por ela chamadas de “primárias”.
As expropriações de meios de produção, sobretudo das populações cam-
pesinas, são, assim, não só condições para a constituição do capitalismo, mas
necessidades permanentes para a expansão de sua base social e não se estabi-
lizam, mas se aprofundam e generalizam no ímpeto permanente de expansão
do capital. Fontes (2010, p. 48) apresenta diversos dados sobre a ampliação
da população urbana em todos os continentes, o que referenda sua hipótese
de que as expropriações são permanentes.
Sua polêmica com Harvey, argumento com o qual temos acordo, é de que
isso não significa que exista “um lado de fora” do capitalismo ou “exclusão”
do mercado, uma vez que a dependência do mercado pode ocorrer de formas
diferenciadas, desiguais, mas inevitáveis para a reprodução da própria vida.
46

Harvey (2004)15 e, na sua esteira, Dorre (2022), chegam a considerar a forma-


ção do exército industrial de reserva uma prova da necessidade de produção
de externalidades do capitalismo, o que é uma aberração na interpretação da
teoria marxiana que o tem como uma necessidade estrutural do funcionamento
do capitalismo em sua totalidade.
Porém, assim como Harvey, a autora propõe uma extensão do que signi-
ficam as expropriações que ela denomina “disponibilizações ou expropriações
secundárias”: “[...] não são, no sentido próprio, uma perda de propriedade de
meios de produção (ou recursos sociais de produção), pois a grande maioria dos
trabalhadores urbanos dela não mais dispunha” (FONTES, 2010, p. 54). Dentro
da expropriação secundária cabem diferentes processos, como perda de direitos
sociais, trabalhistas, ampliação de patentes e conversão de salário em capital,
avançando para a conclusão que Boschetti (2018) retomará com novos argu-
mentos: “de maneira surpreendente, uma verdadeira expropriação de direitos se

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realizou” (FONTES, 2010, p. 55), referindo-se às últimas décadas do século XX.
Boschetti (2018) sintetiza no artigo publicado no livro por ela organizado
“Expropriação e direitos no capitalismo” sua hipótese, já levantada em outras
publicações, “de que a destruição de direitos sociais constitui um avassalador
processo contemporâneo de expropriação social que restringe a participação
do Estado Social na socialização dos custos da reprodução do trabalho e
contribui para a ampliação da acumulação” (p. 132).
Assim, o que Behring chama de novo padrão de financiamento do fundo
público, cuja formação recai cada vez mais sobre o trabalho necessário e cujos
gastos subsidiam cada vez mais a acumulação de capital, Boschetti passa a
caracterizar como expropriação de direitos que criam condições para a supe-
rexploração da força de trabalho em todos os países capitalistas16. Assim,
defende que a “reapropriação, pelo capital, de parte do fundo público antes
destinado aos direitos conquistados pela classe trabalhadora” é expropriação,
por subtrair condições históricas de reprodução da força de trabalho mediadas
pelo Estado Social (BOSCHETTI, 2018, p. 158).

15 “[...] a ideia de que o capitalismo tem de dispor perpetuamente de algo ‘fora de si mesmo’ para estabilizar-
-se merece exame [...] de uma dialética interna do capitalismo forçando-o buscar soluções externas a si.
Considere-se, por exemplo, o argumento de Marx quanto à criação de um exército industrial de reserva”
(HARVEY, 2004, p. 118).
16 Ainda que achemos que há contraditoriedades nas elaborações das duas autoras, Behring afirma que “A
ofensiva burguesa para a retomada das taxas de lucro na crise atual do capital tem recolocado o debate
das expropriações. Assim, se o movimento de expropriação foi originário do modo de produção capitalista, é
também elemento constitutivo permanente, ainda que suas formas e escalas sejam outras para além daquela
clássica separação entre os trabalhadores e os meios de produção. Há um empolgante debate sobre o
tema em Harvey (2004), Fontes (2010), Boschetti (2016) e na coletânea de textos organizada por Boschetti
(2018), onde temos uma contribuição relacionada a dinâmica do fundo público com as expropriações no
tempo presente” (BEHRING, 2021).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 47

A extensão da categoria expropriação, conforme proposta por Bos-


chetti (2018), nos trilhos da “expropriação secundária” proposta por Fontes
(2010), equiparam meios de produção e direitos sociais como objetos de
expropriação: “A destruição dos direitos, portanto, constitui um verdadeiro
processo de expropriação de parcela do fundo público antes acessada pelos
trabalhadores, em benefício do capital e da manutenção das taxas de lucro”
(BOSCHETTI, 2018, p. 148).
Boschetti (2018) sustenta essa hipótese com base em uma interpreta-
ção do capítulo 24 de O Capital distinta da que apresentamos na primeira
seção desse capítulo. Na interpretação da autora, a expropriação inclui per-
das de direitos (inclusive consuetudinários) que garantiam a sobrevivência
dos trabalhadores.
A supressão desses direitos por meio de leis como a Lei de Speenhamland,
citada por Boschetti, era uma necessidade para a formação de uma classe
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trabalhadora que se submetesse às condições impostas pela expropriação


dos seus meios de produção, mas não se confunde, em nossa análise, com a
própria expropriação.

Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das vassalagens


feudais e com a expropriação intermitente e violenta – esse proletariado
sem direitos – não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente com
a mesma rapidez com que se tornavam disponíveis. Bruscamente arranca-
dos das suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se
na disciplina exigida pela nova situação. [...] Daí ter surgido em toda a
Europa Ocidental, no fim do século XV e no decurso do século XVI, uma
legislação sanguinária contra a vadiagem (MARX, 2009, p. 848).

Somando a perda de outras formas de subsistência à expropriação dos


meios de produção propriamente ditos é que Boschetti estende o conceito de
expropriação para explicar toda a redução ou supressão de direitos contem-
porâneos. Entende como expropriação toda a privatização de bens públicos,
a desregulação dos contratos de trabalho pelo Estado, e a redução de direitos
de aposentadoria e licenças que permitem que a classe trabalhadora deixe
de vender sua força de trabalho ao capital em circunstâncias determinadas.
Entendemos, conforme já exposto, que não é possível, a partir da obra
marxiana, tratar esses diferentes fenômenos pelo mesmo conceito de expro-
priação. As alterações na amplitude, na forma e no financiamento dos direitos
sociais e de trabalho, seu desmonte e descaracterização, objetivo do capital e
do Estado capitalista em todo seu período neoliberal desde a década de 1970,
com desigualdades em acordo com a formação social de cada país, ampliam,
de formas em geral violentas, as possibilidades de exploração da força de
48

trabalho, reduzindo controles, subsídios e regulações legais em alguns momen-


tos garantidos pelos Estados no desenvolvimento do capitalismo. Assim como,
promovem processos de favorecimento das condições de exploração, também
promovem por meio de leis, fraudes e roubos processos efetivamente de
expropriação de trabalhadores e de bens comuns permanentemente.
Boschetti (2008, p. 158) alerta que “não se trata, evidentemente, de
considerar os direitos, sobretudo os seguros sociais, como ‘propriedade
social’, nos termos de Castel (1995), ou como antivalor nos termos de Oli-
veira (1998)”. Temos acordo com a autora sobre a caracterização de que há
uma escalada de supressão e redução de direitos para que o fundo público
seja cada vez mais apropriado diretamente pelo capital, no período neolibe-
ral, que se agrava ainda mais no ultraneoliberalismo. Nossa questão é que,
ainda que não seja intencional, utilizar “expropriação” como termo síntese
desse cenário equipara direitos mediados pelo Estado por meio do fundo

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público, formado cada vez mais pela apropriação de trabalho necessário dos
próprios trabalhadores, com a dissociação dos trabalhadores de seus meios
de produção autônomos.
A questão não é meramente formal, mas política. Temos acordo que a dis-
puta por fundo público, seja na sua formação por meio de sistemas tributários
progressivos, seja na forma como são realizados seus gastos, com a expansão
de políticas e serviços sociais, bem como a defesa de regulações nas condições
de trabalho, mediadas pelo Estado para os trabalhadores, são decisivas como
programa transicional para superação do capitalismo, por garantirem melhores
condições para a classe trabalhadora se reproduzir, adquirir consciência, se
organizar e lutar contra o capital. Nos nossos tempos, colocar imediatamente
rédeas, ainda que necessariamente limitadas, na acumulação do capital é deci-
sivo, inclusive, para a sobrevivência da humanidade. No entanto, a recupera-
ção e a ampliação de direitos mediados pelo Estado não podem se confundir
com um horizonte estratégico de ruptura com a sociedade do capital, o que
depende da reapropriação e socialização dos meios de produção. Os direitos
garantidos pelo Estado, pela Igreja ou qualquer representação das classes
dominantes existem para permitir condições de sobrevivência e reprodução
de uma massa da população já total ou parcialmente expropriada dos meios
de produção, mas que segue necessária para a reprodução do capital e das
classes proprietárias por meio do seu trabalho.
Quando Marx afirma que “antes, houve a expropriação da massa do povo
por poucos usurpadores; hoje trata-se da expropriação de poucos usurpadores
pela massa do povo” (MARX, 2009, p. 877) ele não se refere aos direitos
consuetudinários das sociedades feudais europeias ou aos direitos previdenciá-
rios dos Estados Sociais do século XX, mas ao fim da propriedade particular
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 49

capitalista que, ao ser expropriada dos trabalhadores, torna-se capital a serviço


de sua exploração17.
Em síntese, nos quatro textos dos autores que estamos analisando há
uma concordância com a extensão da categoria marxiana de expropriação
para um conjunto de direitos mediados pelo Estado para além da dissociação
dos trabalhadores dos meios de produção com que podem exercer trabalho
direto. Fontes (2010) e Boschetti (2018) discordam, entretanto, das hipóteses
de Harvey (2004), retomadas em Dorre (2022), quando eles apontam essas
expropriações como apropriações de “lados de fora” ou “não-capitalistas” em
referência à proposta analítica de Rosa Luxemburgo.

Considerações finais

No breve espaço desse capítulo, buscamos sistematizar uma argumen-


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tação contrária a algumas perspectivas teóricas no campo do marxismo que


estendem o conceito de expropriação e equalizam a dissociação de meios de
produção com as perdas de direitos.
Para isso, usamos capítulos específicos nas obras chaves dos autores que
tratam desse tema, centralmente Harvey (2004), Fontes (2010) e Boschetti
(2018) que, ainda que apresentem discordância entre si, concordam com per-
tinência na possibilidade de “expropriação de direitos”. Evidente que nossa
análise não esgota a longa obra dos autores, inflexões posteriores e novas
sínteses, nem significa que não tenhamos diversos acordos na caracterização da
imensa destruição de direitos sociais antes conquistados pelos trabalhadores,
com todas as contradições contidas nas políticas sociais.
Nossa intenção é exatamente polemizar com os textos que originaram a
categoria “expropriação de direitos”, que se popularizou generalizadamente
no campo de conhecimento e pesquisa em Serviço Social, nem sempre na
perspectiva formulada pelos autores.
Além da divergência na interpretação do texto marxiano, a preocupação
teórica e política é que ao abarcar uma profusão de diferentes características
que se agudizaram no capitalismo em sua forma contemporânea neolibe-
ral (violência, contrarreformas de direitos sociais mediados pelo Estado,
17 A hegemonia das finanças no capitalismo contemporâneo tem ampliado formas de apropriação de trabalho
necessário para torná-lo indiretamente ou diretamente capital. Exemplos fundamentais são o crescimento dos
juros pagos da dívida pública e transformação da Previdência Social, parte dos salários dos trabalhadores,
em capital por meio dos fundos de pensão. Caso se queira batizar esse processo com um termo síntese,
não deve ser expropriação dado que ocorre em decorrência da exploração, como uma sobre exploração,
ou uma exploração extraeconômica pós-festum, de trabalhadores já explorados e expropriados, com a
mediação dos impostos e tributos estatais. Fontes (2010) afirma, ainda, que nem todo meio de produção
expropriado dos trabalhadores torna-se imediatamente capital, podendo ser utilizado para especulação ou
mesmo usufruto individual do capitalista.
50

privatização de bens comuns como a água e a terra) a “expropriação de


direitos” não traz precisão analítica e confunde os direitos, como mediação
para a reprodução da classe trabalhadora na sociedade capitalista, com a
retomada e a socialização dos meios de produção, horizonte estratégico para
a superação do capitalismo.
Independente das intenções originais, essa equalização pode promover
uma nova forma de fetichismo do Estado, ou análises teóricas social-democra-
tas, viúvas de um idílico “Estado de Bem Estar Social”, que poderia alcançar
o socialismo apenas pela distribuição de fundo público e pela regulação do
trabalho alienado, se favorável à classe trabalhadora. Uma “expropriação dos
expropriadores” que se limite à reapropriação de direitos sociais.
Assim, por maior que seja a barbárie social para a reprodução dos tra-
balhadores no tempo presente, não existe “expropriação de direitos”, mas
supressão, redução, financeirização, reconfiguração de direitos e políticas

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sociais mediados pelo fundo público, pela legislação estatal, pela caridade
de entidades privadas. Isso se configura sobre uma classe trabalhadores já
expropriada de meios de produção e cada vez mais expropriada de condições
minimamente autônomas de produção para sua própria subsistência, o que
amplia as condições de exploração do trabalho cada vez mais degradantes a
que trabalhadores “livres” precisam se submeter para sobreviver.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 51

REFERÊNCIAS
BEHRING, Elaine Rossetti. Fundo público, valor, política social. São Paulo:
Cortez, 2021.

BOSCHETTI, Ivanete. Assistência Social e trabalho no Capitalismo. São


Paulo: Cortez, 2016.

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talismo. São Paulo: Cortez, 2018.

DORRE, Klaus. Teorema da expropriação capitalista. São Paulo: Boi-


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lização Brasileira, 2009. 23. ed.
Editora CRV - Proibida a comercialização
POLÍTICA SOCIAL E DEPENDÊNCIA:
a condição do fundo público no
Estado social periférico-tardio
Márcia Pereira da Silva Cassin
DOI: 10.24824/978652515394.0.53-68

Introdução

O Brasil que adentra a terceira década do século XXI é o retrato de uma


nação edificada sobre os pilares da enorme concentração de renda e riqueza, e
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da histórica marginalização de um amplo contingente da população dos ganhos


civilizatórios atinentes aos processos de modernização social. Marcas indelé-
veis de nossa formação social que se reatualizaram no quadro de regresso do
país ao mapa da fome, no aumento do desemprego e miséria, e no desmonte
de direitos e políticas sociais. O brutal número de vidas ceifadas durante a
pandemia de covid-19 e a tragédia sanitária que se instalou no país pela falta
de leitos, equipamentos, medicamentos, oxigênio e vacina trouxeram à tona a
profunda corrosão do sistema público de saúde, enquanto reflexo dos efeitos
perversos do ajuste neoliberal sobre um país periférico nos marcos da crise
estrutural do capital.
Com o intuito de desvendar as determinações mais gerais deste cenário de
redução de direitos, o presente artigo busca apresentar uma síntese de nossas
pesquisas bibliográficas sobre a política social no capitalismo dependente
brasileiro18. Parte-se do suposto metodológico de que a análise concreta de
situações concretas deve, necessariamente, contemplar a complexa teia de
mediações que articulam as dimensões do universal, do particular e do singu-
lar. O estudo sobre a política social na realidade brasileira, em tal perspectiva,
não pode ser dissociado das particularidades da nossa formação social e da
natureza específica do capitalismo dependente que aqui se desenvolveu.
O percurso teórico desenvolvido neste texto está organizado em duas
partes. Na primeira, buscamos reconstituir a gênese e o desenvolvimento
histórico da dependência em diferentes ciclos da nossa formação social, a
fim de capturar as determinações concretas, estruturais e conjunturais, que

18 Parte significativa deste artigo consiste nas considerações finais da tese de doutorado defendida em 2021
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ, intitulada “Política social no capitalismo
dependente brasileiro”.
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estiveram na base do desenvolvimento do capitalismo dependente no Brasil.


Na segunda, procuramos identificar as implicações do desenvolvimento desi-
gual e combinado deste capitalismo sobre a constituição do Estado social no
Brasil, bem como suas atuais configurações no ambiente ultraneoliberal, em
que predomina a espoliação do fundo público e o acirramento da superexplo-
ração da força de trabalho.

A dependência como fio condutor do desenvolvimento capitalista


no Brasil

A condição periférica do Brasil se delineia ainda na fase original do modo


de produção capitalista, quando o país se integra ao circuito da acumulação
primitiva, na condição de colônia, para favorecer a concentração de capital
na metrópole e garantir um mercado de escoamento para as manufaturas que

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então começavam a ser produzidas no continente europeu (PRADO JR., 2000;
FERNANDES, 2005). A colonização, ao se fundar sobre esse objetivo exterior,
voltado para fora, introduziu os pilares da enorme concentração de renda e
riqueza e da desigualdade social, que atravessarão de modo intransponível
todos os ciclos de nossa história até o tempo presente. O caráter mercantil da
colônia estabeleceu a exploração agrícola e a organização das terras na forma
de grandes propriedades monocultoras – que mais tarde se converteriam nos
latifúndios, substância da insolúvel questão agrária –, bem como a exploração
do trabalho escravizado, da qual derivou o racismo estrutural e a marginali-
zação de um amplo contingente de força de trabalho que se metamorfoseou
em exército industrial de reserva. Ao fim e ao cabo, a colonização preparou o
terreno para o estabelecimento das relações capitalistas de produção, ao ins-
tituir, de um lado, a propriedade privada sob o domínio da oligarquia agrária
e, de outro, a liberação de uma massa de trabalhadores livres para vender sua
força de trabalho.
A independência política não rompeu com a dependência econômica,
e sim conservou o substrato material do período colonial e a condição de
uma economia voltada para a exportação de produtos primários. O Brasil
se livrou das amarras de Portugal para prender-se, mais tarde, às amarras do
imperialismo. A inserção subordinada do Brasil na divisão internacional do
trabalho preservou o sentido da colonização, enquanto economia formada
para subsidiar o desenvolvimento do capitalismo nos países avançados. Com a
integração do Brasil ao mercado mundial consolida-se a condição dependente
e todas as implicações que dela derivam: a especialização produtiva, a troca
desigual, a superexploração da força de trabalho e a cisão no ciclo do capital
(MARINI, 2011). A exportação de capitais dos países imperialistas para o
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 55

Brasil atuou, ao mesmo tempo, dinamizando o desenvolvimento dos setores


ligados à produção de matérias-primas e alimentos e dificultando o avanço
de um parque industrial robusto e autossuficiente. A industrialização retar-
datária no Brasil (MELLO, 1998) processou-se já na época do imperialismo,
período no qual as economias centrais exerciam o controle monopolístico
dos capitais e da tecnologia necessária para a consolidação da indústria de
bens de produção. Em tais circunstâncias, o Estado assume o papel de agente
extraeconômico do capital19, promovendo os investimentos básicos para a
instauração do setor de indústrias de bens de produção, de modo a alavancar
um período desenvolvimentista pautado na substituição de importações.
O desenvolvimento do capitalismo no Brasil realizou-se por meio de
uma combinação entre o moderno e o arcaico. Longe de qualquer dualidade,
o que se operou foi uma integração dialética entre agricultura e indústria
(OLIVEIRA, 2013). As estruturas agrárias herdadas do período colonial
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foram conservadas e adaptadas à dinâmica industrial, que delas se abasteceu


em seu desenvolvimento. Nesse sentido, a agricultura sustentou e financiou
a produção industrial, seja fornecendo os contingentes de força de traba-
lho, seja produzindo os alimentos e rebaixando o custo da reprodução social
dos trabalhadores.
Conforme Fernandes (2005), a economia brasileira se relacionou com a
expansão do capitalismo monopolista segundo a forma típica assumida pelas
formações sociais periféricas. As grandes corporações não se empenharam em
irradiar o capitalismo monopolista a partir de dentro do país. Ao contrário, “as
matérias-primas e as parcelas do excedente econômico drenadas para fora se
polarizam na expansão do capitalismo monopolista nas próprias economias
centrais” (FERNANDES, 2005, p. 299). A aceleração do desenvolvimento
industrial processada nos “cinquenta anos em cinco” se deu com o recurso
ao capital estrangeiro, em um período de grande liquidez internacional que
impulsionou a exportação de capitais para as periferias na forma do inves-
timento externo direto. O resultado deste processo foi o aprofundamento da
dependência em virtude da desnacionalização do parque industrial brasileiro
e do crescimento exponencial da dívida externa.
No bojo das particularidades de uma tal formação social periférica e
dependente, emerge um Estado altamente centralizado, com fortes traços
prussianos e autocráticos. A revolução burguesa brasileira foi conduzida pelo
alto, por intermédio de uma aliança, ao nível do Estado, entre os setores
dominantes e sem uma efetiva participação dos “de baixo” nesse processo
(FERNANDES, 2005). Os sujeitos dessa revolução burguesa no Brasil – isto

19 Nos termos de Ianni (2004, p. 263), “na história da formação do capitalismo no Brasil, o Estado se torna o
lugar privilegiado do capital”.
56

é, de uma “revolução sem revolução”, de uma “revolução-restauração” ou


de uma “revolução passiva”, segundo o léxico gramsciano – eram desprovi-
dos de uma orientação democrática e nacional e, por isso, não tinham como
meta a construção de um desenvolvimento capitalista interno autônomo. Em
virtude disso, o legado da transição ao capitalismo foi um grande déficit nos
marcos civilizatórios e políticos conquistados pelas clássicas revoluções demo-
crático-burguesas. O caráter restrito da democracia demandou uma postura
preventiva por parte de nossa burguesia em face da ameaça sempre premente
de um levante dos “de baixo”.
Diante da instabilidade política que se abriu na primeira metade da década
de 1960 e da iminência de implementação das reformas de base que poderiam
interferir nos interesses imperialistas, as frações da classe dominante, com a
tutela das forças armadas e de organizações de direita, articularam o golpe
que deu início à ditadura do grande capital (IANNI, 1981). Em sua essência,

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o golpe constituiu uma contrarrevolução preventiva (FERNANDES, 2005),
isto é, uma reação da classe dominante frente ao avanço das lutas sociais e à
possibilidade de reversão da dependência e da subsunção ao imperialismo. O
modelo econômico instituído pelos militares, pautado na superexploração da
força de trabalho e na associação ao capital estrangeiro, consolidou a concen-
tração e centralização monopolista, alavancando a acumulação capitalista e o
desenvolvimento das empresas multinacionais, no período que ficou conhecido
como “milagre brasileiro”. O saldo desse surto desenvolvimentista ancorado
no investimento externo direto foi o agravamento da dívida externa20. No
momento em que a conjuntura internacional apresenta um quadro de estag-
nação, em virtude dos desdobramentos da crise que eclodiu em meados dos
anos 1970, as bases econômicas do “milagre” são desfeitas e a elevação nas
taxas de juros no mercado internacional de crédito afunda o Brasil, juntamente
com outros países da América Latina, na crise da dívida.
A solução para o impasse do endividamento latino-americano foi dada
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o representante universal do capi-
tal portador de juros, por meio dos chamados “programas de ajustamento”.
Entre as exigências prescritas em tais programas, estava a implementação de
um pacote de reformas voltadas para a desregulamentação, a liberalização,
as privatizações e o aumento das exportações, as quais, em seu conjunto,
ampliaram o grau de dependência e a transferência de valor para os países

20 Segundo o levantamento de Netto (2014, p. 148): “[...] o endividamento externo do Brasil cresceu vertigino-
samente: a dívida externa, que era de 3,7 bilhões de dólares em 1968, ascendeu a 12,5 bilhões de dólares
em 1973 – em outros números: se, em 1968, a dívida externa correspondia a 7% das reservas do país,
em 1973 já chegava a 51%. Por outro lado, o crescimento da dívida pública interna foi notável: saltou (em
milhões de cruzeiros) de 5.881 em 1969 para 38.394 em 1973 – noutros números: em 1969, ela correspondia
a 3,6% do PIB; em 1973, a 7,9%”.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 57

imperialistas. Sob o controle do FMI, “instala-se uma nova forma de coloni-


zação. Já nem é necessário manter uma administração e um exército de ocu-
pação local como na era do colonialismo; a dívida por si só cria as condições
de uma nova dependência” (MILLET; TOUSSAINT, 2006).
Com isso, o Brasil se inseria na nova configuração do mercado mundial,
marcada pelas transformações societárias que conformaram a reação burguesa
à crise estrutural do capital, a saber: a mundialização do capital (CHESNAIS,
1996), a reestruturação produtiva e o advento do ajuste neoliberal – cujas
diretrizes foram impostas aos países latino-americanos pelo Consenso de
Washington. Iniciada por Collor de Mello e consolidada por Fernando Hen-
rique Cardoso, a implementação do ajuste neoliberal no Brasil conduziu a um
processo de contrarreforma do Estado (BEHRING, 2008), do qual derivou um
conjunto de medidas destinadas a promover um “enxugamento do Estado”. A
contrarreforma do Estado aprofundou a dependência, na medida em que ins-
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tituiu um programa de privatizações e ampliou a vulnerabilidade externa por


meio da desregulamentação e abertura comercial e financeira. Com a Lei de
Responsabilidade Fiscal, instituída no âmbito da contrarreforma, a geração de
superávit primário para o pagamento dos credores da dívida pública tornou-se
a prioridade dos governos neoliberais, que passaram a adotar mecanismos de
ajuste fiscal voltados para o corte dos gastos sociais.
A chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência da República
não representou uma mudança brusca de rota na implementação do ajuste
neoliberal e das contrarreformas, embora tenha se registrado, durante os dez
primeiros anos de governo, uma melhoria nos indicadores econômicos e sociais.
Esta melhoria esteve relacionada à presença de uma conjuntura internacional
favorável, assentada na elevação do preço das commodities e em uma consi-
derável entrada de capital externo, o que possibilitou o controle da inflação e o
acúmulo de reservas internacionais (CARCANHOLO, 2018). Em tal contexto,
os governos do PT combinaram o investimento público em infraestrutura,
transferência de renda e acesso ao crédito com a manutenção do receituário
neoliberal e o aprofundamento da especialização produtiva. Aliada a outros
elementos como a redução do desemprego, o aumento do salário mínimo e a
expansão do crédito ao consumidor, a ampliação do programa Bolsa Família
possibilitou uma mudança nas condições materiais de vida dos trabalhadores
mais pobres, que passaram à condição de consumidores e a constituir uma nova
base eleitoral de apoio para o PT a partir de 2006 (SINGER, 2012).
Além do apoio obtido por parte dos beneficiários dos programas de
transferência de renda, o pacto social operado pelos governos do PT também
contou com a anuência do grande capital monopolista e de determinadas
organizações sindicais, o que viabilizou uma forma de dominação burguesa
58

fundada no apassivamento da classe trabalhadora: a democracia de cooptação


(FERNANDES, 2005; IASI, 2017). O longo período de estabilidade política
decorrente deste pacto social foi rompido quando os efeitos da crise de 2008
começaram a se abater sobre a economia brasileira. Desde então, as manifes-
tações de massa deflagradas pela juventude do Movimento Passe Livre a partir
de junho de 2013 evidenciaram o descontentamento geral com os rumos do
país e o esgotamento das bases políticas da democracia de cooptação. A opo-
sição de direita, com o apoio da grande imprensa, passou a fomentar uma dura
campanha contra o PT, a qual esteve amparada nos escândalos de corrupção
descobertos pela Operação Lava Jato. A vitória eleitoral apertada de Dilma
Rousseff em 2014 foi seguida por numerosas manifestações encabeçadas por
organizações de direita, que forneceram o suporte político e ideológico para
a escalada golpista (DEMIER, 2017).
Em sintonia com o movimento mais amplo da acumulação capitalista em

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nível mundial, o golpe jurídico-parlamentar de 2016 foi a solução encontrada
pela burguesia brasileira para tentar deter a instabilidade política e conter a
recessão econômica, por meio da imposição de uma agenda ultraneoliberal
de ataques às políticas sociais e aos direitos trabalhistas. O novo regime fiscal
e a contrarreforma trabalhista, instituídos pelo governo ilegítimo de Michel
Temer, constituíram os pilares da estratégia ultraneoliberal de recomposição
das taxas de lucro, através do aumento da superexploração da força de trabalho
e da espoliação ainda mais radical do fundo público. O propósito original do
golpe foi concluído com a prisão de Lula e o impedimento de sua candidatura,
o que possibilitou a vitória do candidato neofascista que, embora não fosse a
opção prioritária da burguesia brasileira naquele momento, havia se compro-
metido a dar plena continuidade ao projeto ultraneoliberal de seu antecessor.
Uma vez no poder, Bolsonaro deu início ao programa de austeridade
engendrado pelo arremedo de “Chicago boy” Paulo Guedes e tratou de levar
a cabo a contrarreforma da previdência que Temer não havia tido força para
implementar. Na sequência, deu continuidade à contrarreforma trabalhista por
meio da instituição do contrato de trabalho “verde e amarelo”; aprofundou a
Lei de Responsabilidade Fiscal com a proposta do Plano Mais Brasil; colocou
em marcha um plano de privatização de diversas empresas estatais; flexibi-
lizou as legislações ambientais em benefício do agronegócio, entre vários
outros retrocessos que não cabe aqui recuperar. No fundamental, a agenda
econômica do governo Bolsonaro centrou-se no rebaixamento do custo da
força de trabalho; na ampliação dos espaços de valorização do capital por
meio da privatização de empresas estatais e da mercantilização de direitos e
políticas sociais; e na intensificação do ajuste fiscal e das contrarreformas, a
fim de favorecer a pilhagem do fundo público.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 59

O conjunto de retrocessos promovidos pelos governos ultraneoliberais


pós-golpe de 2016 se orientaram pela necessidade de adequar o país à condição
de economia exportadora de produtos primários, haja vista que o rebaixamento
do custo da força de trabalho é uma das vantagens comparativas do atual
padrão de reprodução do capital em face da concorrência do mercado mundial
(OSÓRIO, 2012). Em tal contexto, prevalece as expropriações de direitos e
políticas sociais como estratégia para converter os meios de vida em capital
e ampliar os espaços de valorização dos capitais superacumulados, de modo
a forçar os trabalhadores a se submeterem às relações de trabalho superex-
ploradoras e, assim, aumentar a massa de mais-valia extraída e incrementar
a transferência de valor para os países imperialistas.
Em suma, são estas as linhas de força da nossa formação social que repro-
duziram a dependência como um fio condutor do desenvolvimento das forças
produtivas. A condição dependente do capitalismo brasileiro é consequência
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do desenvolvimento desigual e combinado21 do capitalismo enquanto sistema


mundial que, ao integrar todas as partes do globo, reproduz continuamente uma
relação hierárquica entre centro e periferia, definida a partir de diferentes níveis
de produtividade do trabalho (MARINI, 2011; MANDEL, 1982). O mercado
mundial capitalista universaliza a circulação de mercadorias, mas não a produção
capitalista de mercadorias – esta última, como se sabe, é o momento crucial da
acumulação em que ocorre a apropriação do trabalho excedente não pago e a
produção do valor – e é essa assimetria nos níveis de produtividade e explora-
ção – a qual, por sua vez, deriva dos diferentes níveis de composição orgânica
do capital – que possibilita a transferência de valor dos países periféricos para
os países centrais. Nesse sentido, há uma impossibilidade estrutural de equa-
lização das taxas de lucro, crescimento e desenvolvimento em todos os países
inseridos no mercado mundial capitalista. Disso decorre distintos padrões de
regulação social e, portanto, diferentes condições de reprodução social da classe
trabalhadora, haja vista a necessidade de as economias dependentes compen-
sarem a transferência de valor para o centro por meio de uma maior extração
de excedente, isto é, lançando mão da superexploração da força de trabalho.

21 Segundo Leon Trotsky: “[...] o desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se
revela, em parte alguma, com a evidência e a complexidade com que marca o destino dos países atrasados.
Confrontados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se veem obrigados a avançar por
saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura se deriva outra que, na falta de um nome mais
adequado, qualificaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas
do caminho e a confusão de distintas fases, à fusão de formas arcaicas e modernas (TROTSKY, 1982, p. 15).
60

Implicações da dependência sobre a formação do Estado social


no Brasil e a espoliação do fundo público

A generalização das políticas sociais na fase dos monopólios, enquanto


respostas do Estado às reivindicações do movimento operário, se deu em
conformidade com a lei do desenvolvimento desigual e combinado, por-
quanto esteve determinada pelas particularidades de cada formação social.
Se o trânsito do capital à idade dos monopólios exige do Estado uma inter-
venção mais direta no processo econômico (NETTO, 2011), tal interven-
ção se dá mediatizada pela luta de classes e pelo grau de desenvolvimento
das forças produtivas. Nesse sentido, o componente legitimador do Estado
variou de acordo com os determinantes estruturais e conjunturais presentes
em cada espaço nacional.
Assim é que se explica o fenômeno ocorrido nos países da Europa oci-

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dental durante os anos do segundo pós-guerra, quando houve, com variações
consideráveis, a consolidação de um Estado social22 e a instituição de políti-
cas sociais abrangentes e universalizadas (BEHRING; BOSCHETTI, 2008).
Tratava-se de uma conjuntura histórica muito específica, em que a classe tra-
balhadora, enfraquecida pelo fascismo e pela intensa exploração nos anos da
Segunda Guerra Mundial, se submeteu ao pacto social-democrata em torno dos
ganhos de produtividade, no ambiente de pleno emprego fordista/keynesiano.
Tal conjuntura foi proporcionada, ademais, pelo crescimento econômico que
deu origem à onda longa com tonalidade expansionista (MANDEL, 1982) nos
países imperialistas, a qual esteve ancorada também nos superlucros obtidos
com a troca desigual e com a superexploração da força de trabalho na periferia.
Nesse sentido, os mecanismos que viabilizaram a expansão do Estado social
nos “anos dourados” permaneceram restritos a um pequeno grupo de países
do continente europeu e a um tempo histórico delimitado.
A condição dependente imprimiu um ritmo particular ao curso dos pro-
cessos de desenvolvimento capitalista no Brasil. Enquanto as economias cen-
trais vivenciavam a consolidação dos monopólios e o advento da segunda
revolução tecnológica, no final do século XIX e início do século XX, o Brasil
ainda se configurava como uma economia de base primário-exportadora,

22 Assim como Boschetti (2016), adotamos o uso da expressão Estado social no intuito de evitar mistificações
e atribuir ao Estado capitalista suas determinações objetivas, de modo que sua natureza essencialmente
capitalista não seja encoberta pela incorporação de feições sociais ligadas ao termo “bem-estar social”.
Nessa perspectiva, “o que se denomina aqui de Estado social capitalista, portanto, é o Estado que, no
capitalismo tardio (MANDEL, 1982), assume importante papel na regulação das relações econômicas e
sociais, tendo por base a constituição de um sistema de proteção social de natureza capitalista, assentado
em políticas sociais destinadas a assegurar trabalho, educação, saúde, previdência, habitação, transporte
e assistência social (BOSCHETTI, 2016, p. 28)”.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 61

recém-egressa da escravidão e que caminhava tardiamente a passos lentos


rumo ao processo de industrialização. Vale reiterar que “o ‘atraso’ dos paí-
ses dependentes foi uma consequência do desenvolvimento do capitalismo
mundial e, ao mesmo tempo, a condição desse desenvolvimento nas grandes
potências capitalistas mundiais” (BAMBIRRA, 2015, p. 44).
Esse descompasso histórico com relação aos países centrais impactou
decisivamente a evolução dos processos de modernização capitalista no Bra-
sil, ora frustrando seu desenvolvimento, ora provocando saltos. Isso porque,
destinadas a suprir as necessidades de reprodução do capitalismo no centro,
as periferias operam como economias satélites, cujo desenvolvimento interno
é uma espécie de reflexo do movimento global da acumulação capitalista.
Assim, “o ascenso ou o declínio da taxa média de lucro nas regiões centrais,
sob a perspectiva de longa duração, propicia condições tanto para arrastar
como para frear os processos de reprodução do capital nas regiões periféricas
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e semiperiféricas” (OSÓRIO, 2012, p. 81).


O surgimento e consolidação do Estado social no Brasil acompanham
as tendências próprias de uma formação social periférica. Coutinho (2008)
observa que o Brasil sempre experimentou processos de tipo eminentemente
“não clássicos” quando teve de enfrentar determinadas tarefas de transfor-
mação social, dado o caráter autocrático ou “prussiano” de nosso Estado e
a debilidade da burguesia brasileira em levar a cabo as tarefas civilizatórias
típicas das sociedades “ocidentais”, liberal-democráticas. Se a intervenção do
Estado na idade monopólios se dá mediatizada pela luta de classes (NETTO,
2011) – isto é, se o enfrentamento da “questão social” por meio de políticas
sociais em uma sociedade está condicionado ao nível de socialização da polí-
tica, sendo a luta dos trabalhadores o principal motor na conquista por novos
direitos –, no Brasil a cultura autocrática e o caráter antidemocrático de nossa
burguesia reprimiram durante décadas as reivindicações dos trabalhadores por
melhores condições de vida.
Assim, enquanto nos países centrais a passagem ao capitalismo mono-
polista ocorre em concomitância com o ascenso das lutas sociais, no Brasil o
trânsito aos monopólios se concretiza de forma tardia, no período da ditadura
militar. Nesse sentido, a consolidação do capitalismo monopolista no país
ocorre sob forte repressão das lutas sociais, haja vista que a violência de
Estado era o mecanismo garantidor da superexploração da força de trabalho
e dos superlucros do capital (IANNI, 1981). O “cariz coesionador”, típico
do paradigma euro-ocidental, foi aqui substituído pela coerção. Da mesma
forma, enquanto a consolidação do Estado social nos países do centro é pro-
cessada na fase ascendente da onda longa do segundo pós-guerra, no Brasil
a efetivação jurídico-formal do Estado social ocorre já na fase descendente
62

desta onda longa, nos marcos de uma crise estrutural que impunha aos
Estados latino-americanos os ajustes estruturais contrarreformistas.
Desse modo, o Estado social se consolida no Brasil numa quadra histórica
em que o advento do neoliberalismo impunha formas de dominação política
que Demier (2017) qualificou como “democracias blindadas”23. Tendo se
iniciado no país durante a redemocratização, após um “longo bonapartismo”,
este regime político se encarregou de remover os “inconvenientes expedientes
reformistas [...] o mais rápido possível para que a formatação política brasi-
leira entrasse em sintonia com os novos padrões da acumulação capitalista à
escala mundial” (DEMIER, 2017, p. 60). Assim sendo, o sistema de proteção
social instituído pela Constituição Federal de 1988 é erguido sobre as bases
materiais de sua própria ruína. Daí a natureza ontologicamente débil do Estado
social brasileiro que, por este conjunto de especificidades que o distinguem
dos modelos desenvolvidos no continente europeu, podemos sugerir, como

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síntese provisória, a designação de Estado social periférico-tardio.
Como produto das lutas sociais que se forjaram no âmago da transição
democrática, o conceito de seguridade social foi inscrito na carta constituinte
de 1988 e, a partir de então, o acesso às políticas de assistência social, saúde,
previdência social, entre outras, foi instituído como direito de cidadania e
dever do Estado. Esta conquista inédita da classe trabalhadora brasileira,
no entanto, foi auferida na contramão da tendência mundial de desmonte
dos direitos sociais, no ambiente de crise estrutural do capital e predomínio
do ajuste neoliberal. Nesse período, os países do centro do capitalismo que
haviam experimentado a consolidação de um Estado social abrangente já
presenciavam uma agressiva corrosão de seus sistemas de proteção social
(BOSCHETTI, 2012). Sob a contrarreforma do Estado, as políticas sociais
no Brasil passaram a ser orientadas pelo trinômio: focalização, privatização e
descentralização. Com a instituição dos mecanismos de ajuste fiscal formata-
dos para drenar os recursos do fundo público para o serviço da dívida pública,
o sistema de proteção social, tal como inscrito no texto constitucional, se
converteu em mera abstração jurídico-formal, posto que destituído das fontes
de seu financiamento e das bases para sua efetiva materialização.
No primeiro decênio do século XXI, a crise que eclodiu em 2008 exigiu
a intensificação da exploração do trabalho e a ampliação das porções do fundo
público destinadas aos capitais. No elo fraco do sistema mundial, a margem
de manobra da política econômica frente às crises é muito restrita, dado que

23 Nos termos do autor: “Distintamente das democracias welfareanas, nas quais os movimentos sociais organizados
conseguiam penetrar de forma mediada (por meio de representações políticas socialdemocráticas e congêneres)
nas instâncias institucionais do regime e pressionar pela implementação de suas reivindicações reformistas,
as democracias blindadas têm seus núcleos políticos decisórios (ministérios, secretarias, parlamentos, etc.)
praticamente impermeáveis às demandas populares” (DEMIER, 2017, p. 39-40) [grifos do autor].
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 63

a taxa de juros e a taxa de câmbio são determinadas por fatores externos, em


face da vulnerabilidade induzida pela liberalização e desregulamentação neo-
liberais. Assim, o país se torna prisioneiro de uma dinâmica em que deve se
manter permanentemente atrativo aos capitais internacionais a fim de assegurar
o equilíbrio das contas internas. O efeito da crise foi uma fuga dos capitais
estrangeiros investidos, seja pela via especulativa ou por meio do investimento
externo direto, bem como uma queda no volume das exportações de produtos
primários, o que implicou a adoção de um ajuste recessivo para reequilibrar
as contas internas e garantir a estabilização macroeconômica.
Não por acaso, uma das primeiras medidas do governo Temer foi apre-
sentar ao Congresso Nacional a PEC do Teto de Gastos, convertida na Emenda
Constitucional 95/2016, que instituiu um Novo Regime Fiscal e congelou as
despesas primárias por 20 anos. A EC 95, enquanto medida pioneira e prio-
ritária do governo ilegítimo, revelou a essência do golpe de 2016: promover
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um desmonte dos direitos e das políticas sociais sem precedentes na história


do país, corroendo, ano após ano, a parcela do fundo público destinada aos
trabalhadores e, ao mesmo tempo, garantindo o superávit primário para a
remuneração do capital portador de juros. Esta ofensiva ao fundo público
foi complementada com a aprovação da EC 93/2016, que elevou a Desvin-
culação das Receitas da União (DRU) a 30% e prorrogou sua vigência até o
ano de 2023. Tais medidas impactaram fortemente a alocação de recursos do
orçamento público nas políticas sociais, caracterizando uma tendência geral
de desfinanciamento.
O serviço da dívida pública se manteve nos últimos anos como o maior
gasto do Orçamento Geral da União (OGU). Segundo a recente análise de
Behring (2021, p. 171), nos dezenove primeiros anos deste novo milênio, que
passaram por quatro governos de matizes diferentes, “a dívida pública foi
um mecanismo de punção violenta do fundo público”. Neste período (2000-
2019), “o gasto com remuneração dos detentores dos papeis do Estado brasi-
leiro sempre esteve acima dos 20% e algumas vezes ultrapassou os 30% do
OGU – chegando a 35,19% em 2009, por ocasião da debacle mundial –, com
exceção de 2013, quando ficou em 19,62%”. Com a ampliação do percentual
drenado da seguridade social pela DRU e sob a vigência da EC 95, houve um
crescimento do montante pago em juros aos credores da dívida pública. De
acordo com a ANFIP (2020, p. 33), no período entre 2005 e 2015, as receitas
da Seguridade Social desvinculadas pela DRU somaram, em média, R$ 79
bilhões ao ano. Com o aumento da alíquota para 30%, em 2016 esse valor
subiu para R$ 112 bilhões e, “entre 2017 e 2019, a desvinculação foi em
média de R$ 123,7 bilhões”.
64

No ambiente ultraneoliberal pós-golpe de 2016, em que os óbices encon-


trados pelo capital ao seu processo de valorização pressionam as economias
dependentes por um incremento nas taxas de mais-valia, o papel do Estado
social concentra-se cada vez mais na manutenção de uma massa de trabalha-
dores disponíveis para vender sua força de trabalho a qualquer custo, dina-
mizando os mecanismos de superexploração da força de trabalho. Para tanto,
o Estado social atua reduzindo o acesso às políticas de previdência, saúde,
habitação, educação etc. – de modo a expandir os espaços para a iniciativa
privada e converter os meios de vida em capital – bem como regulando e
rebaixando as condições de oferta da força de trabalho por meio das contrar-
reformas trabalhistas e da instituição de um valor irrisório do salário mínimo.
Ao mesmo tempo, para conter a ameaça socialmente explosiva deste quadro
e garantir as condições mínimas necessárias à reposição física da força de
trabalho, converte a assistência social em uma política de enfrentamento à

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pobreza extrema, com centralidade na oferta de programas monetarizados de
transferência de renda.
A este Estado social débil que se desenvolveu de forma tardia no Brasil
periférico corresponde o necessário recrudescimento da autocracia burguesa,
na esteira do fenômeno identificado por Netto (2013) como a “repressão às
classes perigosas”. Diante da brutal desigualdade social produzida no contexto
ultraneoliberal, o Estado precisou intensificar os mecanismos coercitivos de
criminalização da pobreza, o que explica, em larga medida, a ascensão do neo-
fascismo no Brasil. No atual estágio de crise estrutural do capitalismo, em que
o desenvolvimento de suas contradições parece ter atingido o nível máximo, a
perspectiva é de aprofundamento da barbárie e reversão dos marcos civilizató-
rios, especialmente nos países que compõem o elo fraco da cadeia imperialista.

Considerações finais

O conjunto das reflexões empreendidas ao longo deste artigo con-


duziu-nos à compreensão de que a dependência, enquanto forma de
capitalismo “sui generis” que se estabelece a partir de uma integração
subordinada ao mercado mundial, é um traço estrutural e permanente
em nossa formação social. Desde a colonização, o Brasil se configurou
como um país voltado para fora, de modo a reproduzir continuamente um
divórcio entre desenvolvimento capitalista e as necessidades da maioria
da população. A independência política não rompeu com a dependência
econômica, e sim conservou aspectos da forma colonial que implicaram
uma inserção subalterna do Brasil na divisão internacional do trabalho,
enquanto país exportador de produtos primários. A condição heteronômica
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 65

seguiu ditando o compasso da industrialização tardia, do trânsito aos mono-


pólios e, posteriormente, da abertura do país ao mercado de capitais com a
liberalização e desregulamentação impostas pela mundialização do capital.
O desenvolvimento desigual da lei do valor no mercado mundial incidiu
sobre a constituição de diferentes padrões de políticas sociais, na medida em
que estas são resultado de particularidades que envolvem o grau de desen-
volvimento das forças produtivas, o papel do Estado e a luta de classes em
cada formação social. O atraso no desenvolvimento do capitalismo no Brasil
gerou um descompasso com relação aos processos de modernização social
transcorridos nos países que primeiro desenvolveram o modo de produção
capitalista. Enquanto a expansão do Estado social no centro ocorreu, por
diversas circunstâncias estruturais e conjunturais, na fase ascendente de uma
onda longa no segundo pós-guerra, a consolidação do Estado social no Brasil
periférico se dá já na fase de estagnação desta onda longa, o que impactou
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decisivamente o padrão de proteção social que aqui se desenvolveu.


Forjado no âmago da crise estrutural do capital, o Estado social peri-
férico-tardio foi alvo de numerosas contrarreformas que reduziram direitos,
ampliaram os espaços de atuação da iniciativa privada e dilapidaram o fundo
público por meio dos mecanismos de ajustes fiscal. No contexto ultraneolibe-
ral, o papel do Estado social no capitalismo dependente brasileiro se restringe,
cada vez mais, à manutenção das condições mínimas de reposição física da
superpopulação relativa, via programas assistenciais de transferência mone-
tária, bem como à gestão do processo de privatização das políticas sociais e
de apropriação do fundo público pelo capital portador de juros.
Cabe considerar, por fim, que os problemas estruturais da sociedade bra-
sileira derivados da herança colonial e da condição periférica e dependente não
se resolvem com soluções “desenvolvimentistas”, pois, do desenvolvimento
de um capitalismo dependente só resulta o aprofundamento da própria depen-
dência. A solução, portanto, passa por uma ruptura radical com este modo
de produção e pela construção de uma forma de sociabilidade alternativa à
barbárie capitalista. O tamanho deste desafio é proporcional à sua urgência.
Contudo, não se deve perder de vista que, conforme a sentença do pensador
alemão que inspirou estas linhas, a humanidade só se propõe os problemas
que pode resolver.
66

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Brasil. Análise da Seguridade Social 2019. Brasília: ANFIP, 2020.

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DEPOIS DO MAL, A VOLTA DA
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Felipe Demier
DOI: 10.24824/978652515394.0.69-80

Introdução

Interromper a destruição e retornar à conciliação. Este parece ter sido o


desejo de dezenas de milhões de brasileiros depois de quase quatro anos de
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um governo neofascista no Brasil. E é esta também a proposta ofertada por


Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) não só àqueles milhões, dentre os
quais muitos desempregados, mal pagos, famélicos, precarizados, adoecidos
e oprimidos, como também à responsável última por toda a hecatombe nacio-
nal, a classe dominante brasileira. A proposta, evidentemente, não é nova, e
um renomado intelectual crítico chegou a considerar que a “coalizão” e a
“negociação” constituíam o “DNA” da esquerda brasileira – afirmação um
tanto exagerada, e que tive a oportunidade de problematizar em um pequeno
artigo (DEMIER, 2020).
O fato, contudo, é que, uma vez mais, o PT se apresenta como o partido
da conciliação, e seu líder, como o negociador par excellence. Nada de novo
no front, salvo, é claro, o próprio front. Se um pré-socrático dissera que alguém
nunca se banha duas vezes nas mesmas águas de um mesmo rio, e se um
velho teutônico, valendo-se dos dizeres de um filósofo conterrâneo, afirmou
que a história só se repete como farsa, talvez não seja inapropriado vaticinar
que, no Brasil, jamais se conciliará duas vezes do mesmo jeito, e que a farsa
de uma nova conciliação poderá ter consequências verdadeiramente trágicas
para a vasta maioria de nossa população. “Um dia é todo para a esperança, o
seguinte para a desconsolação”, sentenciou um jagunço n’alguma vereda do
sertão – de Guimarães Rosa.
A secular colaboração de classes volta à tona e, agora, no cenário de
uma luta contra o neofascismo, ganha ares de “unidade nacional”. Lula e o
PT fariam, segundo os adeptos de fórmulas um tanto a-históricas, o papel de
representantes dos trabalhadores em uma coalizão com frações do capital,
então contrárias à permanência de Bolsonaro no poder. Tratar-se-ia, então, de
uma “reconstrução nacional” pós-fascismo, e a mobilização dos trabalhadores
70

cumpriria um papel importante nesse processo, segundo algumas alas de


esquerda do petismo e satélites. Ocorre que, entre várias consequências do tal
“modo petista de governar”, em especial quando o partido esteve à frente do
governo federal, destaca-se uma educação desmobilizatória e um profundo
rebaixamento da consciência de classe da parte dos explorados, de modo que
à suposta “frente popular” que chegou à presidência talvez falte nem mais
nem menos do que uma classe trabalhadora que se veja como tal.
A cidadania pelo consumo promovida anteriormente pelo lulismo no
poder associada às ideologias empreendedorísticas e neopentecostais que
medraram sem peias (e sem contestação – pra não dizer com um certo estí-
mulo – da parte das conciliações governamentais petistas) contribuíram, entre
outros fatores (que vão da reestruturação do mundo do trabalho ao caráter
mercadológico unidimensional da nossa tétrica indústria cultural), para que
sequer possamos falar hoje de uma classe trabalhadora que, mobilizada e orga-

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nizada, estaria sendo, como outrora, conduzida traiçoeiramente pelo caminho
da conciliação. É como se, depois de anos e anos de “traição”, no sentido de
uma recusa estratégica da parte do reformismo brasileiro a qualquer reforma
que pudesse vir a elevar minimamente o grau de conscientização classista das
massas populares, acabássemos por chegar a uma situação tal em que nem
mesmo uma “traição” propriamente dita se mostre necessária, na medida em
que o suposto sujeito social “traído” já nem se vê como sujeito.
Diferentemente do que talvez possa ter ocorrido há vinte anos, não
se vislumbra hoje o quadro em que o ex-metalúrgico seja tomado por
milhões de trabalhadores e por amplas parcelas plebeias da juventude como
o representante de um partido “diferente”, cujo projeto aponta, senão para
a superação do capitalismo, ao menos para a ruptura com o neoliberalismo
e por reformas estruturais na formação social brasileira. Há cerca de vinte
anos, excetuadas as pequenas organizações marxistas existentes no movi-
mento dos trabalhadores, já então em forte refluxo, e a burguesia realista,
o voto em Lula em 2002 era alimentado por uma esperança de transfor-
mações expressivas não apenas na “forma de se fazer política” no país,
como também nos fundamentos do perverso modelo de desenvolvimento
econômico nacional, caracterizado pela aguda dependência externa e pela
reprodução de índices obscenos de desigualdade social. Milhões apostaram
nisso duas décadas atrás.
Depois da destruição iniciada com o Golpe de 2016 e levada ao paro-
xismo sob o governo neofascista de Bolsonaro, o voto em Lula ano passado
assumiu, para a imensa maioria dos seus eleitores, o sentido de uma busca
desesperada da volta da conciliação social que vigeu sob os pretéritos governos
petistas, pelo menos até as jornadas de 2013. Vivendo um longo pesadelo,
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 71

cuja trama macabra inclui genocídio, fome e queimadas, as amplas massas,


formatadas subjetivamente pela “nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL,
2016), temperadas pela “cultura da crise” (MOTA, 1995) e saudosistas da
inclusão mercantil pela via da cidadania pelo consumo de tempos nem tão
remotos, enxergam em Lula não mais o expoente de um projeto coletivo ges-
tado nas lutas e experiência política dos trabalhadores, capaz de levar a cabo
reformas radicais no tecido social do país. Assim, se relacionam individual-
mente com o atual presidente na qualidade de “simples adição de grandezas
homólogas” (MARX, 1978, p. 115), de meros indivíduos adicionados uns ao
outros diante da tela de seu smartphone, todos eles desejosos de que, sem luta
e sem mobilização, o sapiente líder lhes traga de volta um emprego (mesmo
que precário e com baixo salário), um crédito consignado (mesmo que com
provável endividamento), uma vaga na universidade, uma bolsa de sobrevi-
vência, três refeições diárias “ou, mesmo, uma esperança de dias melhores”
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(WEFFORT, 2003, p. 82).


De um jeito ou de outro, quase todos, humilhados e exasperados nesses
últimos anos desleais, não anseiam muito mais do que o retorno ao refor-
mismo “fraco” (SINGER, 2012) ou “quase sem reformas” (ARCARY, 2011),
à hegemonia “às avessas” (OLIVEIRA, 2010) ou à da “pequena política”
(COUTINHO, 2010), à “revolução passiva” (BIANCHI; BRAGA, 2005) ou
ao “antirreformismo” (CHAGAS, 2019) dos anos do petismo no poder. Não
se parece almejar, assim, muito mais do que um novo período de “inclusão”,
a saber, de incorporação da “escala mais baixa dos despossuídos ao mercado,
mas sem realizar grandes transformações na estrutura econômica da repro-
dução dos interesses neoliberais”, processo que, segundo Chagas, permitiu
com que “as contradições do pacto petista de conciliação com a burguesia”
tivessem se equilibrado, conferindo “relativa estabilidade político-institucional
e massivo consenso dos trabalhadores” (CHAGAS, 2019).
Se é verdade que, para algumas poucas organizações socialistas, a elei-
ção de Lula foi anelada como o único veio viável de apear o neofascismo
bolsonarista do poder, e que, portanto, antecederia uma nova etapa de lutas
contra a colaboração de classes lulista, não se pode nublar o fato de que,
por motivos vários (que vão da indigência teórica até um certo imediatismo
eleitoralista), mesmo no interior destas organizações vigora um fetichismo
pueril em relação ao líder petista. Finalmente encontrando-se com as massas
no plano da consciência, mas apenas no nível “empírico” ou “psicológico”
destas (LUKÁCS, 2018), essa “vanguarda” tem se enredado facilmente no
sonho de retorno ao idílico paraíso perdido da concertação social lulista, na
qual a subida da maré “desenvolvimentista” teria feito todos os barcos boiarem
(“a rising tide lifts all boats”), permitindo que o grande timoneiro tropical
72

ofertasse, a todos, um nababesco churrasco de picanha regado a muita cerveja


de uma grande “campeã nacional”.
Durante o processo eleitoral, conquanto houvesse, decerto, uma “redução
de expectativas” – para me valer aqui de um jargão sociológico –, parecia
grassar entre os ditos setores progressistas (a começar pela direção do PT)
um certo otimismo no tocante ao país pós-Bolsonaro, tanto no que se referia
à melhoria das condições de vida das massas, quanto no que dizia respeito à
eliminação do neofascismo bolsonarista enquanto força política presente na
cena nacional. E talvez não seja escusado lembrar que, como asseverou Oscar
Wilde, “a base do otimismo é um temor profundo” (WILDE, s.d., p. 91). A
tentativa golpista no 8 de janeiro possivelmente alterou tal percepção – ou
ao menos deveria tê-lo feito.

A burguesia diante de Bolsonaro

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Adversário mortal da classe trabalhadora, o bolsonarismo também minou
significativamente as forças políticas da classe dominante e, por conseguinte,
as expectativas desta de reaver seu controle político direto sobre o Estado no
curto prazo. O enfraquecimento político da burguesia em função da elevação
das tendências bonapartistas do regime democrático-blindado, sintetizadas pelo
bolsonarismo, já havia sido verificado no processo eleitoral de 2018. Ao longo
dos últimos quatro anos, vale frisar, tal dinâmica só fez se intensificar, sobretudo
devido à opção política da burguesia brasileira diante do governo neofascista.
Mesmo em face de um genocídio, nossos senhores da Casa Grande acha-
ram que ainda não era o caso de levar a cabo um impeachment, afinal, não
tratar-se-ia de algo tão letal quanto uma ou outra pedalada fiscal. Aos olhos
da Faria Lima, a responsabilidade criminosa de Bolsonaro não chegava a ser
propriamente um crime de responsabilidade. “Em vez de se deixar intimidar
pelo poder executivo com a perspectiva de novos distúrbios”, poderia ela, a
burguesia, “ter dado à luta de classes uma pequena oportunidade, a fim de
manter o poder executivo na dependência. Não se sentiu, porém, capaz de
brincar com fogo” (MARX, 1978, p. 87).
Temendo mais a queda de Bolsonaro do que a sua permanência, a classe
dominante brasileira manteve, no fundamental, durante os últimos quatro anos,
a mesma conduta ambígua, e essencialmente marcada pela tibieza, diante de
um governo que, sem pudores, promoveu uma destruição inaudita no país.
A cada crítica, quase sempre bem econômica, aos “excessos políticos” do
governo, seguia-se um elogio a sua política econômica; a cada repressão às
aspirações golpistas daquele, tinha lugar um apoio a sua retirada de direitos
trabalhistas; a cada condenação a sua pusilanimidade, vinha em sequência
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 73

o apoio a sua austeridade; a cada queixa altissonante quanto a sua forma,


notava-se, contudo, um apoio tácito ao seu conteúdo.
Ao tentar domá-lo ao invés de castrá-lo, ao preferir persuadi-lo ao invés
de derrubá-lo – e Marx já alertara que “quando se tenta persuadir alguém é
porque se reconhece ser ele o dono da situação” (MARX, 1978, p. 83) –, a
burguesia não fez senão enfraquecer politicamente a si mesma, e não é de se
estranhar que a sua última tentativa de uma “terceira via” no pleito eleitoral,
não obstante toda a propaganda midiática dos “dois demônios”,24 não tenha
conseguido chegar à marca de 5%. Durante o governo neofascista, o espírito
da nossa burguesia esteve sempre cheio de ardor, mas a carne é fraca e, se
a taça bolsonarista não podia passar sem que ela a bebesse, foi feita então a
sua vontade, tal qual em Mateus.
Mesmo quando iniciado o processo eleitoral, a postura da burguesia não
se alterou significativamente, e a entrevista concedida por Bolsonaro ao Jornal
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Nacional (Globo) a 22 de agosto do ano passado (2022) foi exemplar quanto a


isso. Algumas respostas do ex-presidente bufão ao teatral Willian Bonner no
episódio em questão podem ajudar a ilustrar o que queremos assinalar. Numa
delas, quando questionado sobre a economia nacional, Bolsonaro coligiu
um punhado de contrarreformas neoliberais, as quais o jornalista não pôde
questionar, fosse para não desagradar seus superiores, fosse porque talvez seja
ele próprio um quadro mais orgânico do grande capital do que qualquer um
dos que por ele seriam depois entrevistados naquela série de candidatos ao
pleito. Em outra resposta, quando perguntado sobre sua aliança com o “cen-
trão”, Bolsonaro foi mais preciso e didático do que boa parte da nossa ciência
política mainstream. “Você está me estimulando a ser um ditador. A enorme
maioria do Parlamento é composta pelos partidos de centro, pejorativamente
24 Sem nunca ter saído de cena, volta novamente ao proscênio durante a corrida eleitoral a velha litania liberal sobre
“os dois inimigos da liberdade”. Com suas adoentadas democracias blindadas gestando cada vez mais proles
neofascistas, os ideólogos liberais costumam recorrer à cínica simetria entre comunismo e nazismo. Como as
condições mudam, mas o dogma, pela sua própria natureza, deve seguir sempre o mesmo, o clero liberal, há
muito já guiado pela encíclica neoliberal, não hesita em lançar mão da antiga “teoria do totalitarismo”, tão cara
à ciência e filosofia políticas “cold warrior”. Na prática, quando o demônio fascista dá as caras, conjurado e
acarinhado pelos próprios liberais, estes tratam logo de alertar para a terrificante existência de outro, este sim
perigoso, vermelho e que, mesmo que adormecido, deve ser prontamente esconjurado. Sim, é verdade que
tanto o nazismo (fascismo) quanto o comunismo (marxismo) são adversários da democracia liberal. Porém,
se o primeiro, ardoroso defensor da propriedade privada, à democracia liberal se opõe por considerá-la por
demais democrática, o segundo, do contrário, a crítica por ser esta, na verdade, falsamente democrática, no
sentido etimológico do termo (de “soberania popular”, “governo do povo”). Se os fascistas querem aniquilar os
direitos democráticos ainda existentes nas democracias liberais, os marxistas querem ampliá-los e torná-los
efetivos, considerando que só a abolição da propriedade privada é que pode, de fato, colocar o “kratos” nas
mãos do “demos”. Ocorre, contudo, que o “demônio vermelho” que hoje é igualado ao fascismo pela lógica
ultraneoliberal não é sequer a alternativa socialista, e sim qualquer força política que, por mais respeitosa à
ordem que seja, se mostre minimamente reformista no plano social, sendo às vezes tal reformismo algo não
muito além de um punhado de políticas sociais compensatórias prescritas pelo Banco Mundial.
74

chamados de ‘centrão’, e os outros deputados são da oposição, do PT, Par-


tido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),
Rede Sustentabilidade etc., com os quais não dá nem pra (sic) conversar, e,
ainda que desse, eles não têm votos suficientes para aprovar qualquer projeto
de lei. Você quer que eu governe como? Você está me estimulando a ser um
ditador” – foram mais ou menos essas as palavras do candidato a ditador ao
apresentador. Abrindo mão de conceitos eufemísticos como “presidencialismo
de coalizão” e congêneres, o líder neofascista de aspirações bonapartistas
exibiu em poucas palavras e com didatismo exemplar – a César o que é de
César, e a Bonaparte o que é de Bonaparte – a natureza política do regime
democrático-liberal blindado, cuja origem remete às elaborações dos teóricos
e aos atos dos artífices da nossa transição pelo alto do bonapartismo militar
para a democracia eleitoral (LEMOS, 2014; MACIEL, 2008).
Desde seu início, a blindagem à participação popular e à penetração de

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ideias reformistas no plano dos direitos esteve presente enquanto meta precí-
pua dos construtores da nossa ordem democrática (DEMIER, 2017). Em um
congresso com uma longa plêiade de partidos institucionais, pouco ou quase
nada “ideológicos”, e cujo sustento depende sobretudo das boas relações com
o Executivo, o extremismo da “esquerda ideológica” – o que, em tempos
neoliberais, inclui qualquer variante de reformismo social-democrático –
seria facilmente isolado e incapacitado de se colocar como pilar solitário de
qualquer eventual governo mais progressista; destarte, até mesmo este não
teria como governar senão compondo “maiorias conservadoras” por meio de
práticas fisiológicas com os parlamentares.
O fato de o PT, por limites ético-discursivos, não ter respondido aos
antigos inquisidores do Mensalão da mesma forma que Bolsonaro respon-
deu a Bonner (“você queria que eu governasse como?”) apenas atesta o
respeito maior do partido de Lula ao regime de 1988, mas em nada altera
o conteúdo político deste: um arranjo institucional feito sob medida para
o grande capital, de modo que até os inconvenientes aditamentos sociais
(em especial, os direitos) puderam ser, por meio do próprio funcionamento
democrático, eliminados sem muitos óbices internos assim que a blindagem
se completou. Dito de outro modo: Bonner e a burguesia, agora republicana,
se incomodam com o trato clientelista de Bolsonaro com o “centrão”, mas
não se incomodaram nem um pouco quando o mesmo centrão serviu de
sustentáculo institucional ao Golpe de 2016, e quando o mesmo “centrão”,
antes e durante o governo Bolsonaro, foi fundamental para a aprovação
das contrarreformas que retiraram direitos dos trabalhadores. Bolsonaro
jogou limpo o seu jogo sujo, e com isso expôs limpidamente a sujeira do
liberalismo político burguês. “Faz, mas não fala...” – foi entreouvido, na
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 75

noite de tal entrevista, na redação do Jornal Nacional, no Country Club e


em alguns departamentos de Ciência Política.
O neofascismo, dispensando o verniz civilizatório do neoliberalismo,
acaba por revelar a verdade última deste, do qual, aliás, é um produto his-
tórico, e, nesse sentido, o bolsonarismo, fruto indesejado da crise orgânica
da classe dominante, se mostrou, ao fim e ao cabo, como a nossa burguesia
sem superego.

Burguesia e crise de hegemonia

Não obstante a histórica e estrutural debilidade hegemônica de nossa


classe dominante, é um tanto surpreendente como ela, desde a crise orgânica
que adentrou no pós-Golpe de 2016, não logrou construir uma só liderança
capaz de representá-la com peso nas últimas eleições presidenciais. É difícil
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não dar risadas ao lembrarmos que, antes de Tebet, um dissoluto João Dória,
um inexpressivo Rodrigo Maia e um parvenus Sérgio Moro foram pela grande
imprensa alçados à condição de grandes “quadros” da burguesia liberal. O
seu partido de confiança, orgânico e seguro, o Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), acabou por decretar seu fim quando, então liderado por
Aécio Neves, iniciou ele mesmo o movimento que poria termo à normalidade
do regime de 1988.
A sua sanha golpista contribuiu em muito para levedar o bolsonarismo,
que o penetraria, desfiguraria e, finalmente, dele faria troça com os resultados
eleitorais do primeiro turno de 2018; de lá pra cá, os tucanos tradicionais, tanto
os intelectuais quanto os caipiras, não passaram de caricaturas coadjuvantes
na cena política, a ponto de um deles, já não mais trazendo consigo sua base
social e seus votos de outrora, ter se convertido rapidamente em lulista, com-
pondo a chapa vencedora em 2022, cujo objetivo parece ter sido o de salvar
o regime democrático-burguês da própria burguesia.

Uma nova “hegemonia às avessas”?

O pífio desempenho de Geraldo Alckmin no pleito presidencial de 2018


já havia se constituído em uma expressão eleitoral da mencionada crise
de hegemonia que vem afligindo a burguesia brasileira nos últimos anos,
e a opção pelo nome do golpista tucano como vice-presidente na chapa de
Lula, mais do que uma questão de busca de votos, teve por objetivo sim-
bolizar o que o novo governo petista pretendia (pretende) ser. Assim, uma
aliança petisto-tucana (e Alckmin, não importa em que legenda estiver, será
sempre muito mais tucano do que Dória e outros subprodutos rebeldes do
76

bolsonarismo) pareceu (parece) ser uma tentativa de reconstruir a hege-


monia burguesa que trouxe relativa estabilidade – enquanto essa própria
estabilidade contribuía para produzir aquela hegemonia – política ao país
entre 1995 e 2013.
Em uma palavra, a chapa Lula-Alckmin teve por fito acenar com a pos-
sibilidade de recuperação dos tempos áureos da democracia blindada, como
que fazendo o relógio da história retroagir ao l’âge d’ôr das instituições,
quando a ala direita e esquerda do neoliberalismo davam a impressão de que
poderiam se alternar no poder ad eternum, relegando para o museu da política
a própria política, isto é, a própria possibilidade de transformação radical da
ordem (“houve história, mas não há mais”).25
Esta aliança dos antigos adversários do outrora estável regime contrar-
reformista de 1988 não é senão um sintoma gritante da crise deste, da qual
o bolsonarismo, que havia humilhado nas urnas Alckmin e a burguesia há

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aproximadamente quatro anos, foi (é) a manifestação mais cabal e letal. Ao
tentar eliminar o “campo popular” da democracia de 1988 (MIGUEL, 2022),
o Golpe de 2016 solapou as bases daquela, e desde então nenhuma força
genuinamente burguesa parece poder reerguê-la por conta própria. A contra-
dição da coisa – e aqui vale lembrar a provocativa análise de Francisco de
Oliveira quando da primeira vitória de Lula, em 2002 (OLIVEIRA, 2010) – é
que parece caber justamente ao maior líder da classe trabalhadora brasileira,
atacado, odiado e aprisionado pela burguesia brasileira, o papel de, flertando
com seus carrascos de ontem, tentar recuperar hoje a hegemonia dessa própria
burguesia, a despeito dela.

25 Durante décadas, as tais instituições democráticas foram sendo blindadas em relação às demandas
populares por direitos. Reivindicações por reformas sociais praticamente não conseguiam adentrá-las. A
democracia se tornava, assim, um espaço de debate apenas entre os que não duvidavam da infalibilidade
da austeridade fiscal, fazendo da política um apanágio dos cidadãos da pólis neoliberal. Só eles, por mais
numericamente reduzidos que fossem, tinham voz, e só eles poderiam ser representados. Sua política
não seria política, e sim técnica, e sua opção de exclusão não seria senão gestão. A política era sempre
o Outro. E de tanto se afirmar como antipolítica, de tanto se autoemular como sendo aquilo que não é, a
política neoliberal produziu sua suposta negação, isto é, a sua afirmação “radical”, uma versão extremista da
ideologia da antipolítica que, justamente em nome dos mesmos interesses do capital, pretende defendê-los
não mais por meio da democracia blindada e sua “política”, mas contra ela, que, por mais neoliberal que
seja, ainda possui a mediação do sufrágio universal. De tanto serem estimulados pela política do sistema
capitalista, os fascistas decidiram que era hora da política de salvar os capitalistas do “sistema” e sua
“corrupta política”. Assim, chegamos ao dia 8 de janeiro de 2023, quando os golpistas “antipolíticos” de
ontem tiveram de, depois de terem seus palácios invadidos, finalmente chamar de golpistas os baluarte
da antipolítica de hoje. Depois de anos sendo alimentados do lado de fora com ideias e dinheiro vindos
de dentro, os filhos rebeldes resolveram adentrar os palácios pra lá fazerem seu almoço de domingo. A
porta estava entreaberta, e se a primeira placa dizia “favor não mexer”, a seguinte a complementava com
o singelo pedido: “não deixe sujeira no local”. Porém, sabe como são essas crianças da antipolítica de
hoje, não prestam atenção em nada, e às vezes exageram; mas onde estavam mesmo seus pais que
nesse tempo todo nunca lhes ensinaram os limites?
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 77

Assim, ironicamente, o protagonismo e a iniciativa de tal empreitada


de recuperação hegemônica cabem agora à figura e ao partido que, ao serem
proscritos pela democracia burguesa, deixaram-na manietada, sem sua mão
esquerda, sempre secundária, mas sempre necessária para o equilíbrio do
corpo institucional democrático-blindado. Assim, depois de amputada, é a
mão esquerda que, contrariando as Escrituras, tenta ela mesma salvar seu
corpo inteiro da geena, para onde foi atirado por seu próprio cérebro burguês,
movido por uma ganância orgásmica e por um incontrolável e secular desejo
autocrático. Encarcerado pela própria burguesia “em nome da democracia”,
é Lula quem estendeu àquela a sua mão direita, a de Alckmin, e tenta com ele
agora salvar o que ainda resta de tal democracia – para a própria burguesia,
não é escusado ressaltar.
Mais uma vez, é a esquerda quem, em nome da classe trabalhadora,
oferece a conciliação de classes como forma de preservar o regime que, da
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melhor maneira, garante os interesses fundamentais da classe dominante.


Desta vez, contudo, a burguesia, seja por força do hábito ou da conjuntura
de crise econômica, não parece mais tão disposta a conciliar, como naqueles
pretéritos e um tanto excepcionais anos de fastígio petista. Sua conciliação,
em termos econômicos, tem muito menos a oferecer. O apoio eleitoral a Lula,
ou melhor, o reconhecimento de sua vitória nas urnas, e mesmo a defesa de
seu governo contra as investidas dos neofascistas bolsonaristas, não parece
significar que os direitos voltarão a ser reconhecidos – se é que um dia o foram
de verdade. Por isso, a conciliação eleitoral, por assim dizer, não se traduzirá
facilmente, pensamos, em uma estável conciliação social. Mas Lula insistirá
até o fim de que somente ele, um ex-operário, é quem poderá salvar a burguesia
dela mesma, retirando a espada bolsonarista de Dâmocles suspensa sobre ela
e suas instituições liberais, conferindo, assim, estabilidade ao regime destes
e, portanto, aos seus vultosos negócios.
Se é historicamente possível ao atual e periférico capitalismo brasi-
leiro se preservar politicamente por meio de uma democracia cada vez mais
blindada e com traços bonapartistas, sem ter assim que recorrer a formas
políticas de exceção e a estroinas neofascistas, não sabemos. A burguesia,
ou pelo menos uma parte dela, a sua fração antes dirigente (nos tempos
hegemônicos), já parece inclinada a tentar tal solução; porém, como não
ousa abrir mão do seu monopólio sobre o fundo público, não esboça ir muito
além de uma tépida coadunação de austeridade e retirada de direitos com
“representatividade” e “inclusão”, de modo a construir um ambiente político
mais adequado para gerir o seu ambiente de negócios – e que, aliás, não se
furta de devastar o meio ambiente.
78

Tal qual ocorrera com Nádia depois da morte de Sasha n’A Noiva de
Tchekhov, para a fração burguesa antes dirigente, delineia-se, depois da bar-
bárie bolsonarista, a possibilidade de “uma vida nova, ampla, vasta, e essa
vida, ainda obscura, repleta de mistérios” já começa, mesmo que timidamente,
a seduzi-la (TCHEKHOV, 1991, p. 77) – em especial depois das investidas
golpistas dos bolsonaristas em Brasília. Depois de ter, como um livre Passa-
rinho, mandado às favas seus escrúpulos e seu superego, e ter se refestelado
com Bolsonaro, a Casa Grande, ou ao menos uma parte mais ilustrada desta,
parece agora sonhar em viver sem ele, assim como toda noiva, depois de con-
vertida em esposa e de uns anos de regozijo da carne e especulação – muita
especulação –, sonha em viver sem o seu marido, um bíblico fardo difícil de
carregar. Ocorre, contudo, que nessa vida nova, nessa nova conciliação, ela
pouco se dispõe a ceder, o que pode vir a contribuir, claro, para que o novo
pacto venha a fracassar, sobretudo quando se tem cada vez mais almas mortas

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e quando a carne está bem difícil de comprar.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 79

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LATINA: reflexões sobre as experiências
do Brasil, Colômbia e Venezuela26
Tainá Souza Caitete27
DOI: 10.24824/978652515394.0.81-100

Introdução
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Este capítulo apresenta brevemente algumas das conclusões da tese apre-


sentada em 2021, em especial no que se refere ao financiamento da política
de saúde. Nela buscávamos compreender as escolhas realizadas por governos
mais a direita e mais à esquerda do espectro político na América Latina, no
que tange à política de saúde, por isso, a escolha por estudar o período dos
governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011), Álvaro Uribe (2002-2010)
e Hugo Chávez (1999-2013) e a partir daí apresentar as principais tendências
da política de saúde no Brasil, Colômbia e Venezuela.
No capitalismo contemporâneo, indubitavelmente, a política social tem sido
alvo de inúmeros ataques, por meio das chamadas contrarreformas; se transfor-
mando em campo propício a processos de privatização, seja por meio de sua
mercantilização ou refilantropização. Assim, a chamada “crise fiscal” do Estado
foi o argumento utilizado para gestionar uma defesa de princípios neoliberais,
que buscava maior liberdade de ação para a acumulação e valorização do capital.
Desse modo, a política social em tempos neoliberais torna-se cada vez
mais uma alavanca para o desenvolvimento capitalista, principalmente no
que se refere ao tempo de rotação do capital, uma vez que induz e mesmo
assegura o consumo da classe trabalhadora em tempos de crise estrutural por
meio dos programas de transferências de renda, e por outro lado, acaba por
atacar e enfraquecer as políticas universalistas via “processos de expropriação,

26 Este trabalho é fruto dos resultados da tese de doutorado “Tendências da política de saúde na América
latina: Brasil, Colômbia e Venezuela”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), defendida em 2021 sob a orientação da professora Dra.
Elaine Rossetti Behring.
27 Assistente Social. Professora adjunta do departamento de Política Social da faculdade de Serviço Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do
Orçamento Público da Seguridade Social (GOPSS).
82

via apropriação do fundo público pelas políticas de ajuste fiscal, em nome da


‘austeridade econômica” (BEHRING, 2018, p. 197).
A discussão do fundo público é um eixo estruturante deste trabalho, e
entendida como elemento crucial tanto para a acumulação, quanto para as polí-
ticas sociais. Não é novidade que diante de seu papel central na relação capital
versus trabalho, o fundo público seja objeto de disputas cada vez mais intensas.
Sendo assim, pensar o financiamento das políticas sociais implica na
compreensão de que o fundo público tem uma função preponderante para
se pensar as políticas macroeconômicas, e as políticas sociais, sendo o
orçamento público a expressão desses interesses em jogo, e o que temos
observado é que diversos têm sido os mecanismos para a ampliação da
acumulação, em detrimento de uma avassaladora pauperização relativa e
por vezes absoluta da classe trabalhadora, em especial nos países de capi-
talismo periférico-dependente.

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Destarte, o que se observa é um aprofundamento de uma lógica de finan-
ciamento das políticas sociais feito com base em impostos indiretos e uma
estrutura tributária regressiva que penaliza os trabalhadores e privilegia a
acumulação capitalista, principalmente na figura dos rentistas. Nesse sentido
é que Behring (2018) caracteriza esse processo como “exploração tributária”
que juntamente com processos de expropriação acaba por: desfinanciar as polí-
ticas sociais e a supercapitalização, que se trata da mercantilização direta de
serviços antes públicos, ou mesmo via inúmeros mecanismos de privatização,
fazendo que trabalhadores tenham que adquiri-los via mercado.
São esses alguns dos quadros analíticos que ancoram nossa discussão
para pensar alguns dos principais dilemas do financiamento da política de
saúde nos países estudados e que apresentaremos neste artigo de forma sumá-
ria, tendo em vista o espaço que dispomos para tratar de questões comple-
xas em países distintos, mas que acreditamos possam contribuir para futuras
reflexões. Para tanto, este artigo está estruturado em duas partes. A primeira
delas trata de algumas características do financiamento da política de saúde
no Brasil, Colômbia e Venezuela. A segunda e última parte indica alguns dos
dilemas que se apresentam para o financiamento, e consequentemente, para a
política de saúde nestes países no período dos governos Lula, Uribe e Chávez.
Decerto, em que pese as transformações ocorridas em períodos pos-
teriores, acreditamos que muito dessas tendências não foram revertidas, ao
contrário, foram aprofundadas, por isso, buscamos nos concentrar neste artigo
a desvelar àqueles elementos que já estavam em curso, para quem sabe, à
luz desses processos possamos avançar nas análises que se colocam, hoje,
como tarefas urgentes diante do abismo social, econômico, político que nos
encontramos após tantos anos de refluxo nas lutas sociais, porém que acenam
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 83

com possibilidades de deslocamentos à medida que estamos, hoje, diante de


governos nesses países de perfil progressista.

Alguns elementos para pensar o financiamento da política de


saúde no Brasil, Colômbia e Venezuela

Neste tópico apresentaremos alguns elementos que caracterizam o finan-


ciamento das políticas de saúde nos países estudados, a partir da década de
1990, momento em que o ideário neoliberal se espalha e aprofunda por toda
a América Latina, influenciando as políticas públicas, em específico as de
saúde por meio dos organismos internacionais que constroem dossiês sobre
os sistemas de saúde e buscam implementar agendas mínimas de atendimento
às necessidades da classe trabalhadora nos países periférico-dependentes.
É nesse cenário, que no Brasil se inicia o processo de implementação
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do SUS, conquista da Constituição de 1988, e que vem sendo ameaçado


diuturnamente pelos governos de plantão, variando em sua intensidade, mas
seguindo uma trilha de descaracterização do que propunha o movimento de
Reforma Sanitária.
Mendes e Marques (2010) apontam que o financiamento do SUS foi um
dos temas mais controversos da agenda de saúde desde sua implementação,
sendo fundamental observar um “duplo movimento em seu caminho”, em
virtude de uma ação permanente e contraditória decorrente de dois princí-
pios, que se imbricam: o princípio da universalidade, que afirma o direito à
cidadania, as ações e aos serviços de saúde e o seu acesso à todos; de outro o
princípio da contenção de gastos, que seria uma espécie de “reação defensiva”,
articulada em torno da defesa da racionalidade econômica baseada numa visão
contábil-financeira de que a diminuição das despesas públicas seria a chave
para combater o déficit público, por meio de uma política fiscal “contracio-
nista”, a manutenção do superávit primário para todas as áreas da ação estatal.
Todavia, esse modelo atrelado à uma certa política econômica desen-
volvida por todos os governos do pós-redemocratização, se colocam na con-
tramão dos direitos introduzidos na Carta Magna de 1988. E nem mesmo
um governo historicamente aliado a luta dos trabalhadores rompeu com esse
percurso. Ao contrário, a política macroeconômica do governo Lula, ao dar
continuidade à tensão entre a área econômica e a área social, de certo modo
evidencia um processo contínuo de condições que fragilizam o financiamento
da Seguridade Social, pois as seguidas metas de superávit primário e inflação,
e ainda a persistência de mecanismos como a Desvinculação de Receitas da
84

União28 (DRU), que permite a desvinculação de até 20% de todos os tributos


federais, formado em grande medida pelas contribuições sociais, e tornou-se
fundamental na composição do superávit primário resultaram na diminuição
dos gastos públicos e no contingenciamento dos recursos para as políticas
sociais, e especialmente para a política de saúde; o que mostra a real face
do governo Lula, no bojo da predominância das políticas neoliberais e do
favorecimento ao capitalismo financeiro.
Sobre as fontes de financiamento da seguridade social é importante res-
saltar que estas foram previstas constitucionalmente, com intuito de garantir
estabilidade e suficiência ao sistema de seguridade, por meio de recursos
provenientes dos orçamentos da União, Estados, Municípios e Distrito Fede-
ral, das contribuições dos empregadores – por meio da Confins, Pis/Pasep
e sobre o lucro, CLSS –, das contribuições dos trabalhadores, receitas de
concursos prognósticos da loteria. Desse modo, o legislador deu garantias ao

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seu financiamento ao instituir a diversidade das bases de financiamento como
princípio constitucional, que deveria ser assegurada com contribuições sociais
exclusivas. Entretanto, as fontes de financiamento da seguridade social têm um
papel de destaque para a política econômica e social no país, principalmente
a partir de 1994, pois por meio destes recursos retidos no orçamento fiscal da
União são cumpridas as metas de superávit primário, o pagamento de juros e
as amortizações da dívida pública, para além de sua função de financiamento
das políticas de seguridade social (SALVADOR, 2010a).
No texto de Piola et al. (2013) intitulado “Estrutura de financiamento
e gasto do sistema público de saúde”, os autores analisam o financiamento
público da saúde, o volume de recursos e como esse dinheiro é gasto. Por isso,
fazem uma discussão sobre o financiamento público da saúde que é destinado
ao setor privado, sob a forma de renúncia fiscal e o ressarcimento devido aos
SUS por parte do setor privado, bem como sobre o financiamento do SUS,
ou seja, o gasto do SUS.
De modo geral, o Brasil tem um gasto total em saúde muito baixo,
segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
o Brasil tinha um dispêndio total (público e privado) em saúde equivalente a
8,8% do PIB (IBGE, 2012). Esse é um percentual considerado baixo quando
comparado com o observado nos Estados Unidos (15,7%), mas é bastante pró-
ximo ao de outros países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento

28 Em 2016, foi aprovada a PEC 31/2016 que além de prorrogar a DRU até dezembro 2023, também ampliou
a fatia de recursos a serem retirados para 30%. Foi aprovado em 2016 pelo então presidente Temer, mas
já havia sido enviado ao Congresso Nacional pelo governo Dilma Rousseff. E ainda teve o agravante de
criar um mecanismo semelhante para estados e municípios, sendo que neste caso, não permite que sejam
utilizadas em receitas destinadas à educação e saúde.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 85

Econômico (OCDE). Segundo os autores Piola et al. (2013), a questão central


é que o gasto público é muito baixo para o país ter, efetivamente, um sistema
de cobertura universal e atendimento integral.
Por conseguinte, o subfinanciamento da saúde pública, por um lado, e o
excesso de incentivos governamentais para o mercado privado de saúde, por
outro, contribuem para que a participação do gasto público com o gasto total
com saúde seja menor que o gasto privado, transformando o Brasil no único
país com sistema universal de saúde onde o gasto privado supera o público.
O financiamento público, ao contrário do que possa parecer, perpassa
não apenas o setor público (SUS), como também – planos e seguros privados,
assistência a servidores públicos e privados autônomos. No caso do setor
público, principalmente em relação aos serviços de acesso universal, esse
financiamento ocorre de forma mais direta e preponderante. No setor privado,
o financiamento público ocorre de forma indireta, por meio de renúncias
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fiscais, da utilização de serviços públicos para os quais poderia caber ressar-


cimento de planos e seguros de saúde e de outros mecanismos de incentivos
públicos ao setor privado. As renúncias incluem as isenções concedidas às
instituições sem fins lucrativos, as deduções do imposto de renda concedidas
às pessoas físicas e jurídicas devido a gastos com médicos, dentistas, labora-
tórios, hospitais e planos de saúde e a desoneração tributária de determinados
medicamentos outros produtos e serviços.
No caso colombiano partimos da Ley 100/1993 para pensar o finan-
ciamento e o gasto do sistema público de saúde. Ao mesmo tempo em que
escancarou as portas para o mercado, também inscreveu alguns direitos civis
e sociais. No entanto, não há dúvidas quanto ao caráter neoliberal desta Cons-
tituição. Ela se situa no contexto da década de 1990, que inaugura uma série
de contrarreformas, possibilitadas pelo cenário de ajuste estrutural à medida
que a participação do capital portador de juros passa a ter uma incidência cada
vez maior na economia do país, tendo em vista o aumento do investimento
estrangeiro direto (IED), a partir da abertura comercial do país, que envolveu
a eliminação das tarifas alfandegárias, a desregulamentação, autonomização
do Banco Central, descentralizações e as privatizações.
O governo Gaviria, precursor dos ajustes estruturais promovidos na
Colômbia e aprofundados por Álvaro Uribe posteriormente, apresentou em
seu primeiro ano, de acordo com Misas (2002) resultados medíocres, com
uma queda de 50% da taxa de crescimento do PIB, além de alta inflação.
Com a abertura do mercado ao capital e o aumento das taxas de juros,
ampliaram-se as reservas internacionais, o que significou a partir de 1992
uma ruptura com a política de substituição de importações, de um lado,
reduzindo drasticamente as tarifas alfandegárias ainda existentes, de outro,
86

expandindo o gasto público mais alinhado com a nova Constituição, que


possuía uma “face mais social”, no entanto, com a ampliação massiva das
importações entre 1992/1994 resultou numa elevação da inflação. Como
consequência dos ajustes estruturais a partir da ampliação das terceirizações
e flexibilização do trabalho resultou em aumento do desemprego, subem-
prego, pobreza, e piora no indicador de Gini, instaurando um processo de
crise, ao mesmo tempo que aprofundou as privatizações no setor público e
uma maior participação do capital externo no país.
No sistema de saúde público da Colômbia dois tipos de regimes foram
estabelecidos, o contributivo e o subsidiado. Faz parte do primeiro, aqueles
com capacidade de pagamento, enquanto o segundo, aquela população que
demonstra ser incapaz de pagar. Dependendo do regime em que as pessoas
estejam inscritas têm acesso a determinado pacote de serviços. Contando com
avanços nas condições socioeconômicas, tinha-se como meta, ao longo de

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sete anos, a progressiva ampliação do atendimento. Para isso, empregariam
mecanismos de solidariedade com os quais se financiaria o incremento na
cobertura nos serviços de saúde para as pessoas mais pobres e o incentivo a
expansão da participação de instituições privadas no sistema.
A divisão entre as funções do sistema e sua organização29 se deu da
seguinte forma: administração financeira (administradores de fundos, vendedo-
res de planos de saúde); regulação do sistema (representantes de seguradoras,
prestadores de serviço, usuários e o Estado); prestação de serviços, por meio
das Instituições Prestadoras de Serviços de Saúde (IPS), podendo ser públicas
ou privadas; de outro descentraliza-se o sistema público em nível local para
a execução de Planos de Atendimento Básico, e convertem-se os hospitais
públicos em empresas autônomas que precisam demonstrar a sua sustentabili-
dade financeira. Com esta base delegou-se às Empresas Promotoras de Saúde
(EPS) a tarefa de gerir e buscar o progressivo aumento da população atendida.
Além disso, foi estabelecida uma forma de pagamento per capita determi-
nado a partir do “risco de saúde” do segurado, decorrente de parâmetros epide-
miológicos, expressos num valor denominado Unidad de Pago por Capitación
(UPC). Esta deveria cobrir o custo médio de um Plan Obligatorio de Salud
(POS), que nada mais é do que um pacote mínimo de serviços, estabelecidos a
partir de critérios de custo-efetividade. Assim sendo, tanto a UPC quanto o POS

29 Rodríguez (2015, p. 79), vai dizer que com base no modelo de pluralismo estruturado, que foi referência
para contrarreforma do sistema de saúde colombiano Ley 100/1993, a estruturação dos serviços deviam
observar quatro funções cruciais: modulação (regras de jogo claras e justas, de responsabilidade estatal
de dar a direção estratégica), financiamento (enquanto responsabilidade da seguridade social, com vistas
a universalidade e com subsídio a oferta e não à demanda), articulação (de responsabilidade das empresas
articuladoras, que seriam as seguradoras e que, portanto, receberiam os pagamentos e gerenciaria os ser-
viços), prestação (a prestação de serviços, podendo ser ofertada pela multiplicidade de atores existentes).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 87

deveriam ser construídos e atualizados pelo Consejo Nacional de Seguridad


Social en Salud, composto por uma representação não paritária, tripartite, de
representação majoritária do governo, empresários, incluindo aí a ACEMI e uma
representação minoritária de usuários e trabalhadores (RODRÍGUEZ, 2015).
A organização dos recursos se daria em um fundo financeiro de soli-
dariedade entre os regimes, denominado Fondo de Solidariedad y Garantia
(FOSYGA), composto por recursos do regime contributivo (de 1,75 pontos
das contribuições sociais do regime contributivo) além de outras contribuições,
como do seguro obrigatório de acidentes de trânsito. Estas são receitas que
deveriam financiar o regime subsidiado e funções secundárias como vítimas
de acidentes de trânsito e de deslocamento forçado interno. No entanto, o que
se verificou ao longo dos anos foi uma progressiva utilização deste fundo para
financiar o déficit fiscal, além de apropriação pelas EPS por meio de corrupção.
A gestão da FOSYGA foi designada a uma entidade financeira privada, por
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meio da figura de encargo fiduciário (BARÓN apud RODRÍGUEZ, 2015).


Deste modo, à cargo das EPS ficou a responsabilidade pela arrecadação
das contribuições sociais e a contratação de IPS para a prestação dos serviços
de saúde designados pelo POS. Além disso, em tese deveriam ser os respon-
sáveis também por realizar a gestão do risco financeiro dos usuários, por meio
da articulação do financiamento e da prestação dos serviços de saúde, dentro
dos critérios de qualidade e custo versus eficiência.
O que se verificou ao longo dos anos é que tributariamente o sistema
cresceu, alocando diferentes fontes de financiamento destinado a subsetores
pré-existentes. As fontes30 de financiamento foram formadas em sua grande
maioria de recursos para-fiscais, com destinação específica, impostos gerais
e fundos da receita nacional. Desde 1993 foi aprovado um incremento de
8% a 12% das contribuições para-fiscais para a seguridade social (sendo 8%
pago por empregadores, 4% pelo empregado e 100% pago pelos empregados
autônomos), sobre a folha de pagamento dos trabalhadores formais ou receitas
dos trabalhadores autônomos e aposentados, além disso, 50% do prêmio anual
do Seguro Obrigatório de Acidentes de Tráfego (SOAT). Também se criam
dois impostos sobre compra e venda de porte de armas de fogo. No âmbito
nacional, foi criada a figura do “situado fiscal”, que depois foi transformado
em “transferencias y regalias”, que resultaram de repasses de recursos espe-
cíficos para saúde a entidades subnacionais. No caso dos entes subnacionais,
foram criados impostos gerais para financiamento da saúde como impostos
sobre jogos de azar, tabaco e álcool (BÁRON apud RODRÍGUEZ, 2015).

30 Báron (apud RODRÍGUEZ, 2015) também sinaliza que outras fontes foram designadas ao FOSYGA, como:
Fundo de Acidentes de Tráfego (FONSAT), aportes das Caixas de Compensação Familiar (5% das receitas
totais) e recursos de empresas petroleiras dos campos de Cudiana e Cupiaga.
88

Na Venezuela, uma das principais características de seu sistema de saúde


público decorre de sua segmentação, da regressividade do financiamento e
exclusão no concerne o acesso e prestação dos serviços. O sistema de saúde
é conformado por três subsistemas: o assistencial ou estatal, o contributivo
e o especial que cumprem ao mesmo tempo as funções de administração,
regulação, financiamento e prestação dos serviços, sem, no entanto, haver
nenhuma integração entre eles. A maior parte da população está excluída do
sistema contributivo e dos seguros privados.
O primeiro subsistema é público, no qual os gastos são assumidos pelos
Estado, proveniente do orçamento público e se financiam tanto com impostos
dos contribuintes via imposto de renda (ISLR) de pessoas físicas e jurídicas e
com o IVA, sendo este último o mais importante na composição do gasto social
do Estado. O Ministério da Saúde cumpre funções de administração, controle
sanitário e regulação. Suas ações passam por serviços de prevenção, saneamento,

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além disso, gere os serviços de saúde de estados que não estão descentralizados.
O segundo subsistema é a Seguridade Social, representado pelo Instituto
Venezuelano de Seguro Social (IVSS) prestando serviços aos trabalhadores
com trabalho formal e sua família. Também podem participar os trabalhadores
informais ou autônomos, caso estes se registrem e cotizem para o fundo. Este
sistema é financiado de forma tripartite, por cotizações dos próprios traba-
lhadores (entre 2% e 4% do salário), pelos empregadores (entre 11% e 13%
do salário) e pelo Estado, por meio de transferências do governo central com
recursos provenientes do Tesouro Nacional (o mínimo é o equivalente a 1,5%
do salário dos contribuintes cobertos). Todavia, nos últimos anos, devido à
grande descapitalização pela qual passa, por estar muito associado a economia,
esse subsetor vem sendo financiado em grande parte pelo Tesouro Nacional.
A filiação ao sistema é obrigatória, embora muitos servidores não estejam
incorporados (SOLVATO, 2006; ROA, 2018; CROCE, 2002).
Croce (2002) chama ainda atenção para o fato de que em algumas regiões
do país, em especial as zonas rurais, estão excluídas dos serviços e por isso
não cotizam e não participam. Além disso, muitas empresas não pagam as
obrigações referentes a seus trabalhadores, ainda que sigam retendo o dinheiro
na folha de pagamento, e mesmo aqueles que pagam, muitos não utilizam os
serviços médicos oferecidos pelo Seguro Social porque tem planos pré-pagos
de saúde para Hospitalización, Cirurgía y Maternidad (HCM) e consultas
contratadas por seguradoras.
O terceiro subsistema, é o especial, que a nova Lei denomina “Regí-
menes Especiales de Cotización Obligatória”, que presta serviços de saúde
e são financiados com recursos públicos e contribuições próprias dos segu-
rados, como é o caso, do IPASME que presta serviços aos trabalhadores do
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 89

magistério e da universidade, o IPSFA, as forças armadas e seus dependentes,


instituições que prestam serviços aos trabalhadores da PDVSA.
Isso se explica, segundo Solvato (2006), porque no passado os funcionários
públicos não estavam assegurados pelo IVSS, somente cotizando para fins de
pensões, em caso de núpcias, viuvez, velhice, invalidez e morte. Possibilitando,
com isso, o aparecimento de inúmeros institutos, de caráter público ou privado
que desse conta da necessidade de saúde dessa parcela da população. E mais a
frente, com os acordos coletivos de trabalho, inclusive, com o Estado, puderam
ter acesso a seguros privados de Hospitalización, Cirurgía y Maternidad (HCM),
de modo que se criou uma miríade de subsistemas no interior do sistema de
saúde. Dessa forma, observa-se, que principalmente os funcionários públicos
são cobertos por vários serviços, inversamente com o que ocorre com o restante
da população que tem um acesso muito limitados aos serviços de saúde.
Além desses subsistemas, ainda existem o privado, conformado por todas
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aquelas instituições que recebem o financiamento de fontes privadas, princi-


palmente por meio dos planos de “pré-pago”, de forma direta ou os planos de
apólices coletivas ou individuais de Hospitalización, Cirurgía y Maternidad
(HCM), pagos por patrões e empregados. O afiliado paga um prêmio por ele
e por seus familiares declarados, cujo montante depende do plano escolhido,
da seguradora, e da idade dos assegurados. O empregador, em caso de apó-
lices coletivas, paga geralmente uma parte, às vezes a totalidade do prêmio.
De acordo com critérios tributários e de contabilidade social, o montante do
prêmio é parte integrante da remuneração do trabalhador. Sendo que o valor do
prêmio pode aumentar de acordo com a idade do assegurado. Uma característica
da Venezuela é que esses seguros privados, geralmente somente tem planos
de HCM, e não custeiam serviços de consulta externa, enquanto os planos de
sistema pré-pago para serviços de consulta externa, apenas no início dos anos
2000 passaram a se desenvolver, sendo mais comuns esses tipos em sistema de
economia informal. Outro elemento importante relaciona-se com o preço dos
medicamentos, isso porque seu alto custo se dá devido estes estarem incluídos
nos pacotes oferecidos pelos subsistemas de proteção (CROCE, 2002).
Segundo Gava e Oliveira (2015), os anos 2000, com a chegada do governo
de Hugo Chávez trouxeram consigo processos transformadores, pois a classe
trabalhadora venezuelana passa de um sentimento geral de exclusão e segue
rumo a um protagonismo histórico. É nessa conjuntura permeada por tensões,
que se inicia a implementação do programa Misión Bairro Adentro, modificando
o sistema que até então tinha um perfil hospitalocêntrico e centralizado, para
um modelo social-comunitário. A estrutura do programa conta com consultórios
com dois médicos, que referenciam e acompanham 250 famílias por cada pro-
fissional, em que os profissionais realizam consultas médicas, acompanhamento
90

nutricional, exames, vacinação, visitas domiciliares e acompanhamentos às


gestantes. Assim, o programa Misión Barrio Adentro é a primeira alternativa ao
modelo neoliberal de saúde implementado anteriormente. O programa possibi-
litou uma série de transformações, descontruindo o projeto anterior de políticas
focalizadas, mas que, no entanto, concorre também para ser mais um subsetor
no interior da SPNS. O governo Chávez promoveu, de acordo com os autores,
uma verdadeira descentralização da assistência, aproximando as comunidades do
cuidado à saúde e uma maior participação popular na formulação das políticas
públicas, seja por meio dos conselhos de saúde, nos quais os moradores dos
bairros juntamente com as equipes de saúde trocam experiências e formulam
políticas de promoção e prevenção à saúde.
Para viabilizar a Misión Barrio Adentro foi necessária uma recentralização
de recursos e uma coordenação política, à medida que o programa e sua estrutura
são financiados por recursos extraordinários provenientes do Petróleo, junto a

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PDVSA, gerida por um conselho diretamente ligado à presidência da República
(ROA; CANTÓN; FERREIRA, 2016). Roa (2018), assinala que entre 2005 e
2014 foram investidos no Misión Barrio Adentro US$ 29.768 bilhões, dos quais
93% vieram dos Fundos da PDVSA. Enquanto por outro lado, parte do gasto
público em saúde, da mesma forma que na década de 1990 segue destinado
ao financiamento da saúde privada, por meio da compra de seguros31 de HCM
para os empregados públicos e seus familiares. Além disso, entre os anos 2000
e 2013 o país teve pífia arrecadação tributária, registrando uma redução na
participação dos impostos diretos (6,4% para 4,0% do PIB) e um aumento dos
impostos indiretos (6,5% a 8,9% do PIB), indicando um aprofundamento do
caráter regressivo da estrutura tributária, limitando em muito a capacidade de
financiamento do Estado para garantir um sistema universal de saúde.
Buscamos até aqui apresentar de forma breve alguns dos principais
elementos que estruturam o financiamento da política de saúde a partir da
conformação dos sistemas de saúde dos países estudados, agora passaremos
para alguns dos dilemas do financiamento nos países.

Sobre alguns dos dilemas do financiamento da saúde no Brasil,


Colômbia e Venezuela

No caso brasileiro, o fato de termos um financiamento inadequado ao


desenvolvimento e implementação do SUS desde seus primórdios, resul-
tando em subfinanciamento crônico, e atualmente cada vez mais avançando

31 Embora não faça parte do período estudado por essa Tese, a autora informa que em 2015, o gasto na
compra de seguros de HCM representou em torno de 20% do gasto público em saúde.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 91

num processo de desfinanciamento32, certamente é o principal catalisador do


sucateamento do sistema de saúde público no país, juntamente com a regres-
sividade do financiamento e os processos de privatização em curso.
Para Marques, Piola e Ocké-Reis (2016), é somente com a Emenda Cons-
titucional no 29 de 2000 que o financiamento do SUS ganha maior estabilidade,
na medida em que a insuficiência de recursos desde sua criação tornava difícil
o cumprimento de seus objetivos constitucionais. A EC-29 possibilitou com
que estados e munícipios participassem mais ativamente no financiamento do
SUS. Contudo, prosseguem: há ainda os mecanismos de renúncia fiscal que
traz consigo efeitos perversos, quais sejam: i) parte da população acaba tendo
uma dupla cobertura subsidiada a partir de recursos públicos; ii) afasta do SUS
justamente a parcela da população com mais poder de barganha e de maior
exigência na prestação de serviços; iii) reforça a mercantilização de ações e
serviços, que ao contrário não deveriam funcionar sob a lógica do mercado.
Editora CRV - Proibida a comercialização

Outro dilema trata-se da regressividade do financiamento da política de


saúde. No Brasil, de acordo com estudo realizado por Ugá e Santos (2016),
com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE/2002-2003)
as autoras separaram em grupos de natureza de recursos. Os tributos diretos
com maior peso no financiamento da saúde são: IRPF, IPVA, IPTU e ante-
riormente a CPMF. Já os tributos indiretos foram: IPI, ICMS, ISS, COFINS
e parte da extinta CPMF, pois estes incidem sobre várias fases de produção
e comercialização de serviços e produtos.
O ICMS por ser um tributo indireto, incidindo sobre o valor dos bens e
serviços comercializados é entre os tributos o mais regressivo dos que com-
põem os recursos do SUS. Por fim, as autoras informam que o financiamento
do SUS corresponde a um “sistema quase proporcional que onera proporcio-
nalmente a renda”. Entretanto, quando considerado o fato de o SUS ser um
sistema universal, de atendimento integral, com base num sistema redistri-
butivo, não se observou nas últimas décadas a provisão das políticas sociais
sendo vistas como um dos principais instrumentos redistributivos, ao contrário,
desde os anos 1990, passou a ser compreendida como instrumento de ajuste
macroeconômico e, portanto, objeto do corte público. E o que se evidencia
é a prioridade no pagamento com juros, encargos e amortizações das dívi-
das interna e externas, a DRU, renúncia fiscal praticada historicamente pelo
Estado, a receita que o Estado deixa de arrecadar por meio do IR de pessoas
físicas e jurídicas, seja por meio de rendimentos considerado não-tributáveis,

32 Com a aprovação da EC 95/2016, também conhecida como Emenda Constitucional do teto de gastos, alterou
a Constituição de 1988, instituindo um novo regime fiscal e que congelou investimentos em saúde e demais
áreas sociais por 20 anos, ou seja, até 2036, com a justificativa de sanear as contas governamentais, mas
que na realidade tem resultado no desfinanciamento das diversas políticas, e consequentemente na piora
das condições de vida da população.
92

ou deduções de gastos privados em saúde, educação, o pagamento de planos de


saúde para servidores da União etc., então esses outros elementos certamente
o financiamento seria mais regressivo (UGÁ; SANTOS, 2006).
Além do crônico subfinanciamento do SUS, a regressividade de seu finan-
ciamento, alia-se a processos privatistas entrelaçados com a própria construção do
sistema público de saúde brasileiro e que vai ao longo das décadas se travestindo
em novos formatos, às vezes aberto, muitas vezes velado e segue ampliando.
Sabe-se que na Constituição de 1988 a construção do SUS foi uma vitória do
movimento de Reforma Sanitária, porém, ele veio acompanhado de uma derrota,
que foi a aprovação do sistema suplementar de saúde. Cislaghi (2015) informa
que historicamente há diversas formas de privatização da política de saúde.
Podendo ser, diretamente pelos serviços oferecido pelo capital privado, por meio
de equipamentos de saúde, medicamentos, prestação de serviços, e que sempre
houve um entrelaçamento com o Estado subsidiando de forma indireta a apropria-

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ção do fundo público. De outro lado, existe o setor privado “sem fins lucrativos”,
que são consideradas pela legislação vigentes como “entidades beneficentes de
assistência social”, que são aquelas entidades que podem ser entidades benefi-
centes de assistência social, com a finalidade de prestar serviços de assistência,
educação e saúde. No caso das entidades beneficentes na área da saúde, essas
entidades teriam prioridade sobre as iniciativas privadas com fins lucrativos para
participar do SUS de forma complementar, por meio de convênios e contratos.
A autora informa ainda que, no governo Lula pelo decreto 5895/06,
também podem ter direito ao certificado de beneficentes, instituições que ofe-
reçam projetos de “apoio ao desenvolvimento do SUS, para incorporação de
tecnologias, capacitação de recursos humanos, além de pesquisas de interesse
público, desenvolvimento de técnicas e operação de gestão em serviços de
saúde” (CISLAGHI, 2015, p. 100), beneficiando, inclusive o Hospital Albert
Einstein, que deixou de pagar em tributos, em 2013, na ordem de 220 milhões.
Outro mecanismo é por meio do Serviço Social autônomo, criado em 1922,
pela Lei 8246 é a Fundação das Pioneiras Sociais, criada e atualmente admi-
nistrada pela Rede Sarah de hospitais, considerada uma entidade paraestatal
sem fins lucrativos. Ou seja, não são recentes, porém com o neoliberalismo e
a agenda de contrarreformas do Estado trouxe nova modalidade de apropria-
ção do fundo público “os novos modelos de gestão”, ou “privatizações não
clássicas”, “privatizações por dentro” (CISLAGHI, 2015).

Além disso, há um elemento diferencial no modelo da empresa pública,


que permite que a consideremos um modelo de gestão de “segunda gera-
ção” que aprofunda e sofistica a privatização da saúde: a possibilidade de
abertura de capital por ações, quando seu modelo jurídico é a sociedade
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 93

de economia mista. Colocadas no mercado, essas ações podem ser com-


pradas por planos de saúde ou pelos fundos de aplicação, que, assim,
podem dirigir as ações das unidades de saúde geridas pela empresa para
seus interesses (CISLAGHI, 2015, p. 110).

No caso colombiano, Rodríguez (2015) apresenta resultados valiosís-


simos no que se refere ao processo da dinâmica financeira das EPS, ela se
articula diretamente com um dos objetivos da pesquisa sobre a análise dos
processos de privatizantes dos serviços de saúde na América Latina, no sentido
de compreensão sobre as formas de apropriação do fundo público, da criação
e aprofundamento de novos nichos de mercado para a valorização do capital
em países de capitalismo periférico-dependente. Dito isto, em sua análise, ele
mostra que a reforma sanitária na Colômbia “introduziu um ator financeiro
inexistente, as EPS, que se tornaram dominantes no sistema de saúde pelo
Editora CRV - Proibida a comercialização

poder econômico e político desenvolvido, adquiriram capacidade de modelar


o próprio sistema de saúde” (p. 83).
O modelo sob o qual está baseado o sistema de saúde implementado na
Colômbia com a Lei 100 é no Pluralismo Estruturado, inspirado no modelo
de Managed Competition (MCa). Apresentando suas premissas de modo
bastante sintético, tem-se que este, entende os serviços de saúde enquanto
mercadorias, bens de consumo individual, devendo ser pago pelos usuários
e enquanto mercadorias, os serviços de saúde podem e devem ser negociados
no mercado, de acordo com interesse racional dos atores.
A Colômbia acabou sendo uma “espécie de laboratório regional”, onde
esta intencionalidade foi melhor alcançada, sendo que, efetivamente, os agen-
tes financeiros privados, as EPS, são hoje os agentes dominantes do sistema de
saúde (HERNÁNDEZ et al. apud RODRÍGUEZ, 2015, p. 87). As Empresas
Promotoras de Salud (EPS) são seguros de saúde, portanto, essas empresas
seguradoras fazem parte dos agentes financeiros captadores de capital, como
são os Fundos de Investimentos, os Fundos de Pensões etc. O que garantiria,
segundo o modelo proposto, a regulação para as seguradoras é dado: pela
padronização do benefício prometido ao comprador, ou seja, ao pacote de
serviços prometidos, no caso o Plan Obligatorio de Salud (POS); na padro-
nização do valor do prêmio a ser pago em relação ao risco de saúde, ou seja
Unidad de Pago por Capitación (UPC); na padronização de preços de alguns
serviços; na proibição de seleção adversa; e na obrigatoriedade da continuidade
da atenção, entre outros que se destinem a regular a concorrência.
O lucro das EPS deveria, em tese, ser determinado exclusivamente pela
quantidade de usuários segurados, uma vez que como são empresas, elas
lucram, inclusive como é permitido na regulação do sistema. Deste modo,
94

deveriam ser pagas por exercerem a “função de articulação”. Nesse sentido,


de acordo com o “sistema de concorrência regulada” nem os recursos per
capita, o pacote de serviços, são mecanismos nem de competição e nem de
lucro para as EPS. Teoricamente o mecanismo de competição seria a quali-
dade do serviço, com base na liberdade de escolha da EPS pelo usuário, que
tenderia a escolher aquela que melhor qualidade dos serviços possa oferecer.
Entretanto, não é o que tem ocorrido, Rodríguez (2015) aponta que as
EPS têm apresentado um comportamento “fora do esperado”, tanto no que
se refere a gestão dos serviços de saúde, que cada vez mais atua na função
de contenção de custos, como na gestão financeira, ao apresentar um cres-
cimento patrimonial acelerado, acima do que seria de se esperar com bases
nas regulamentações dadas pelo sistema. Inclusive muitas delas estão sendo
processadas. E tem atuado de modo a negar o acesso à saúde da população
colombiana, o que tem resultado em alguns controles por parte do Estado,

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contudo, insuficientes para aplacar a sanha desenfreada pelo lucro, pela acu-
mulação de capital, como foi o caso da sentença T-760 de 2008 da Corte
Constitucional do país, conforme apontamos no item 3.3, diante de um maior
tensionamento da luta de classe no país pelo acesso a saúde.
Ao longo dos anos, com o crescimento de investimentos financeiros das
EPS, que se articulam com o mercado financeiro, foi gerando um aumento do
valor de ativos no mercado de ações, possibilitando o incremento de capital das
EPS que, depois com a crise financeira das IPS que decretaram falência entre
os primeiros anos dos anos 2000, aproveitaram a oportunidade adquiriram
essas instituições, avançando no processo de concentração e centralização de
capital, tornando as EPS as “verdadeiras donas” do sistema de saúde colom-
biano e, inclusive, ajudando a Colômbia avançar no processo de financeiriza-
ção, se entrelaçando com outros setores da economia (RODRÍGUEZ, 2015).
Ademais, verificou-se a participação de investimento em ativos securi-
tizados em títulos da dívida pública colombiana por meio das EPS, a partir
de seus informes financeiros de 2011 e 2014, ainda que o autor julgue ser
necessário mais estudos para dimensionar a magnitude desses investimentos,
fortalecendo a “endogenização da dívida pública observada globalmente”, e
o entrelaçamento do Estado colombiano com o capital portador de juros, o
que é observado também no orçamento público que dedica mais da metade
da receita para o pagamento da dívida e juras da dívida, ao mesmo tempo em
que financia os agentes financeiros com os recursos públicos do FOSYGA.
De modo que o fundo público é abocanhado duplamente.
No caso venezuelano, Polanco (2001) por sua vez, vai dizer que segue
em curso um paulatino processo de privatização da saúde, e dá-se também
pela baixa capacidade resolutiva e de qualidade dos serviços oferecidos pelo
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 95

setor público, de modo que essa participação cada vez maior do setor privado
na saúde, contribui para um aumento da inequidade. Isto porque exclui setores
que não tem acesso pela falta de recursos financeiros, restringindo-se àqueles
que tem condições de realizar pagamentos via seguros privados, e pagamento
direto, apontando para a regressividade do financiamento do sistema. Croce
(2002, p. 34) revela outras distorções ao sistema de saúde que ocorrem.

[...] muchos de los cotizantes del Seguro Social – procurando mejor calidad
de atención – tienen dobre afiliación y no usan los servicios de los hospi-
tales del IVSS, lo que ha convertido al sistema contributivo, paradojicá-
mente, en un sistema regressivo: se paga, pero no se usa, las contibuiciones
no son compensadas mediante la prestación de servicios.

Croce (2002) aponta que devido a debilidade da arrecadação tributária


na Venezuela torna-se difícil a construção de um sistema de saúde baseado
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nas receitas fiscais como alternativa à fragilidade do sistema contributivo da


seguridade social. Sendo assim, o imposto de renda da pessoa física (ISRL),
por si só, é insuficiente para cobrir o gasto social em saúde. Outros impostos
especiais como sob licores, cigarros e jogos possuem um baixo valor em rela-
ção ao PIB. Sendo então o gasto público em saúde financiado com as receitas
petroleiras e outras receitas fiscais distintas do imposto de renda de pessoa
física, como o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), imposto alfandegário
e impostos ao consumo (combustíveis, cigarros e licores). Sinaliza ainda
para o fato de as receitas fiscais estarem bastante comprometidos em virtude
do pagamento do serviço da dívida, e isso tem impactado negativamente o
orçamento público da saúde, ocasionando a perda de dinamismo ao longo da
década de 1990. Caracteriza o financiamento atual da saúde como altamente
regressivo, com o avanço dos seguros privados e, ademais, permite que nos
prêmios dos seguros HCM, gastos médicos sejam deduzíveis do ISLR, tor-
nando-se urgente a aprovação da Lei Orgânica da Saúde.
Pode-se dizer que a política de saúde na Venezuela e principalmente a
aprovação da necessária Lei Orgânica da Saúde, sofre com os mesmos entra-
ves do processo bolivariano no país. Tornando o sistema de saúde, altamente
fragmentado, segmentado, iníquo. Desse modo, observa-se também na Vene-
zuela um enraizado processo de privatização, tanto por meio do desembolso
direto, via pagamento de planos de saúde, mas principalmente pelo regime
especial, que garante o pagamento de seguros de saúde para algumas carreiras
do serviço público e existem desde a década de 1960 quando funcionários
públicos não eram assegurados pelo Instituto Venezuelano de Seguros Sociais
(IVSS). Além dos seguros privados de Hospitalización, Cirurgía y Materni-
dad (HCM), que são apólices individuais e/ou coletivas que fazem parte de
96

acordos trabalhistas. De modo que essa miríade de sistemas, juntamente com


o elevado gasto das famílias com pagamento direto em saúde e com os planos
privados, configuram um processo crônico de privatização da saúde, e que
tem inviabilizado os esforços de unificação dos sistemas em torno do SPNS.
Cabe ainda assinalar a pífia arrecadação tributária em impostos diretos e uma
ampliação dos impostos indiretos, a possibilidade de dedução dos seguros e
gastos médicos privados no Imposto de Renda, tornando o financiamento da
saúde altamente regressivo. Importante notar também a ampliação da partici-
pação popular, na construção do Programa Missión Barrio Adentro, por meio
dos Consejos Comunales e a luta pela unificação e universalização do direito
à saúde, com a implementação da Lei Orgânica da Saúde, em que pese todas
as resistências a esse processo.
Em síntese, a despeito do que foi chamado por “onda progressista
sul-americana” por (SANTOS, 2018), com chegada ao poder de governos mais

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progressistas no final da década de 1990, o que se observou é que este processo
foi insuficiente para levar a cabo transformações necessárias ao subcontinente.
Deste modo, a reação às políticas neoliberais na América Latina instaurou
uma dinâmica de lutas de classes e de resistência da classe trabalhadora, com
momentos de vitórias e capítulos inteiros de derrotas, que ao longo de todo
esse período seguem sendo centrais para pensar os caminhos e descaminhos
das lutas sociais e da conformação da seguridade social na América Latina
no sentido de frear, em alguma medida, a sanha do capital. Ainda que nos
anos posteriores a esses governos, e pavimentados, no caso brasileiro, pelo
pacto de concertação social dos governos do PT, que chegou ao fim com o
golpe de 2016, e seguiu o caminho de destruição no governo de Bolsonaro
promovido pelo encontro entre o ultraneoliberalismo e o neofascismo no país
agravados por um dos momentos mais difíceis da história mundial com a
pandemia de covid-19; na Colômbia as trilhas seguiram nefastas, no governo
de Iván Duque, uribista, que criminalizou protestos, resultado de uma grande
onda de insatisfação e de mobilização popular entre 2019 e 2021, além de
seguir um caminho recrudescimento da violência como estratégia frente aos
grupos armados e também a toda a população diante da luta por direitos; na
Venezuela, Nicolás Maduro, segue um caminho controverso, e enfrenta, desde
que substituiu Chávez uma situação política e econômica delicada e quem
vem se agravando com o bloqueio econômico imposta pelos Estados Unidos
que vem tendo efeitos devastadores para a classe trabalhadora do país, em
especial no auge da pandemia de coronavírus. Por fim, com aquilo que vem
sendo chamado de uma retomada da “onda rosa” em países latino-americanos,
temos com a vitória de Gustavo Petro e Lula em seu terceiro mandato novos
e pujantes desafios diante do quadro de profunda regressão de direitos.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 97

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FINANCEIRIZAÇÃO DA VIDA E
POLÍTICAS SOCIAIS: uma breve análise
do avanço do capital portador de juros
sobre os recursos dos direitos do trabalho
Giselle Souza
DOI: 10.24824/978652515394.0.101-116

Introdução
Editora CRV - Proibida a comercialização

As configurações das políticas sociais nos dias atuais apresentam um


retrato no tempo presente. Em tempos ultraneoliberais vimos a realização de
sucessivas contrarreformas para garantir ao grande capital a retomada das
taxas médias de lucro e novos espaços de acumulação, e a financeirização
da vida parece o caminho mais rápido e lucrativo. As formas de obter lucro
sem produzir mercadorias se renovam e nos últimos anos empurram cada vez
mais o fundo público ao circuito das finanças, atingindo as políticas voltadas
à classe trabalhadora de todos os lados.
O artigo que segue tem como objetivo apresentar os elementos funda-
mentais do processo de financeirização no Brasil e os recursos destinados
às instituições bancário-financeiras para operar com benefícios das políticas
sociais. Pretendemos apresentar como a lógica das finanças torna-se perversa
e expansível no capitalismo maduro.
Iniciaremos pelo debate teórico sobre capital portador de juros, capital
financeiro e bases fundamentais do que chamamos financeirização. Partimos
para análise desse processo no Brasil trazendo dados concretos dos recursos
destinados ao capital portador de juros em detrimento das políticas sociais.
Finalizaremos com a síntese deste debate e alguns desafios colocados no
tempo presente.
Nossa perspectiva parte do método materialista dialético e intentaremos
dialogar com os autores fundamentais da tradição marxista, além do próprio
Marx para compreender este processo ao longo da história em relação com
os dias atuais. A pesquisa de dados foi realizada nas plataformas virtuais de
consulta ao orçamento público, especialmente o Siga Brasil.
As mudanças metodológicas na apresentação do orçamento ao longo
dos últimos 10 anos trouxeram dificuldades na computação dos dados, nos
102

permitindo a apresentação de dados mais gerais sobre as remunerações aos


bancos (e não o detalhamento para cada política). Ainda assim conseguimos
seguir coma hipótese: uma hipertrofia e espraiamento da finaceirização em
todas as políticas sociais, que trazem inúmeros limites e desafios na garantia
dos direitos existentes e do avanço de tantos outros.

Capital financeiro e financeirização no Brasil

A análise da dinâmica capitalista contemporânea e os rebatimentos na


sociedade brasileira nos coloca o desafio de compreendermos os determinantes
sócio-históricos que configuram o processo de financeirização no Brasil. A
hegemonia do capital financeiro, embora não seja inédita (Lênin sobre isso
nos alerta que desde o último quartel do século XX esta forma-capital passa
a ser preponderante), assume contornos inéditos com o projeto neoliberal.

Editora CRV - Proibida a comercialização


E é nesse momento histórico, de largo avanço das forças produtivas, que tal
capital se financeiriza, autonomiza e determina de forma irremediável todas as
relações sociais ao redor do globo. O fetiche de que tratava Marx se corporifica
e ganha status de entidade. Um Deus mercado financeiro se apresenta como
acima de todos (os demais capitais) e torna-se inquestionável e intocável.
Vejamos como se dá e em que consiste a financeirização.
Iniciaremos pelo que deu origem a formação do capital financeiro: o
capital portador de juros. O capital portador de juros constitui-se na forma
capital que vive da remuneração a juros. É a forma mais alienada e fetichista
do capital por fazer desaparecer as mediações dos processos de produção e
circulação. No capital industrial, fica mais evidente a relação que origina o
lucro, embora a diferença entre lucro e mais-valia ainda apareça como obscura
e misteriosa. Mas no capital a juros, o fetiche se exacerba, pois aparece como
valor que valoriza a si mesmo, como dinheiro que em si faz mais dinheiro, que
não traz nenhuma marca de seu nascimento e a relação social se torna relação
da coisa (dinheiro, mercadoria) consigo mesma (MARX, 1982).
O juro aparece como criação própria, separada do processo de produção
e se completa então a representação do fetiche do capital.

No capital portador de juros está, no entanto, consumada a concepção do


fetiche-capital, a concepção que atribui ao produto acumulado do trabalho,
e ainda fixado na forma de dinheiro, o poder de produzir, em virtude de
uma qualidade inata e secreta, como um puro autômato em progressão
geométrica, mais-valia, de modo que esse produto acumulado [...], já há
muito tempo descontou toda riqueza do mundo, para todo sempre, como
algo que lhe pertence e lhe cabe de direito (MARX, 1983, p. 299).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 103

Conforme avança a concentração de capital monetário nas mãos de capi-


talistas que terão a sua disposição as poupanças de outros milhares de capitalis-
tas dispersos, estes montantes passam a ser disponibilizados para empréstimo.
Desenvolve-se assim em ampla escala o sistema de crédito (SOUZA, 2012,
p. 212-213). À época de Marx não estava ainda desenvolvido o sistema finan-
ceiro internacional que vemos hoje. Mas a estrutura do sistema de crédito está
posta e seu desenvolvimento complexificará as possibilidades de extração de
lucro pela via não produtiva.
Cabe lembrar dois fatores: a relação dos juros com a produção de riqueza.
Marx (1983) nos alertava que as taxas de juros expressam parte da taxa de
lucro global. Mas esta só existe enquanto tendência33. A taxa de juros não
pode ser determinada pelas taxas específicas de lucro muito menos pelo lucro
extraordinário obtido pelo capitalista individual. Assim, como bem define o
autor “não existe taxa ‘natural’ de juros [...] se trata apenas de repartição do
Editora CRV - Proibida a comercialização

lucro entre dois possuidores do capital sob diferentes títulos” (1983, p. 273).
O segundo fator importante é que o desenvolvimento do capital portador
de juros e do sistema de crédito fazem parte das demandas postas à acumu-
lação de capital em determinado momento histórico, sendo, como afirmam
Soto e Mello, ao mesmo tempo produto e pressuposto da produção capitalista.

Se o capital possui uma fome insaciável por mais-valia; se ele busca a maior
mobilidade possível tendo como campo de atuação o mercado mundial; se
ele precisa se manter em constante movimento, procurando diminuir ao
mínimo o tempo em que se encontra imobilizado em alguma de suas formas
e acelerar ao máximo o seu tempo de rotação; se ele busca subordinar e
explorar infinitamente os recursos naturais e a força de trabalho, na maior
escala possível, ele precisa, necessariamente, desenvolver a forma capital
portador de juros e o sistema de crédito (SOTO; MELLO, 2021, p. 73).

Os bancos tornam-se, com o sistema de crédito, instituições que possuem


a finalidade de facilitar os negócios e “tudo que facilita o negócio facilita tam-
bém a especulação, e, em muitos casos, ambas se entrelaçam tão estreitamente
que é difícil dizer onde termina o negócio e onde começa a especulação”
(GILBART apud MARX, 1983, p. 307). Facilita os negócios ao permitir
a redução do tempo de circulação das mercadorias como na exportação de
mercadorias – já fabricadas ou não.

33 Segundo Marx a taxa geral de lucro é determinada “1) pela mais-valia que o capital global produz, 2) pela
relação entre essa mais-valia e o valor do capital global, e 3) pela concorrência, mas apenas na medida em que
esta é movimento por meio do qual os capitais investidos em esferas particulares de produção procuram extrair
dividendos iguais dessa mais-valia, proporcionalmente a suas grandezas relativas” (MARX, 1983, p. 275).
104

O avanço das operações do capital portador de juros e da especulação,


faz com que este capital opere com a acumulação futura, não necessaria-
mente (e cada vez menos) pautada numa base material. Os títulos e papéis
que especulam com acumulação futura, sem base material, são considerados
capital fictício. O capital fictício constitui-se na forma ilusória que adquire
os rendimentos que parecem provir do capital portador de juros. Neste caso,
a emissão de papéis, como nas sociedades por ações e os títulos da dívida
pública, são a forma ilusória, fictícia que assume o capital ao especular com
o que Marx chama de valores imaginários34. A forma fictícia do capital cris-
talizada na dívida pública será determinante no processo de financeirização
dos países dependentes e periféricos no final do século XX.
No último quartel do século XIX, Lênin (2005), traz à luz o desenvolvi-
mento exponencial dos monopólios e das associações monopolistas (cartéis,
trustes, consórcios), que faz com que se desenvolvam o capital bancário e

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industrial de tal forma que permite a fusão entre ambos, o qual o autor chama
de capital financeiro. Assim para Lênin, capital financeiro é a fusão do grande
capital industrial com o grande capital bancário, em elevado grau de desen-
volvimento do capital no qual a concentração e centralização conduz aos
monopólios capitalistas.
O capital portador de juros passa a assumir um novo papel no sis-
tema monetário, pois está organicamente associado ao capital industrial.
Ao fundir-se com o capital industrial altamente concentrado e centralizado,
submete-o a sua dinâmica de atuação, na qual ganha destaque o capital fic-
tício. O capital financeiro cria a chamada oligarquia financeira, uma classe
de capitalistas que vive dos rendimentos desta forma de capital. Está assim
demarcada a nova fase do capitalismo, a era dos monopólios, cuja forma
capital hegemônica será o capital financeiro.
Ainda que o capital financeiro tenha avançado ao longo do século XX,
sua financeirização completa se dará somente no final do século. Segundo
Chesnais (2010), por mais ou menos cinquenta anos em meados do século
passado a dominação financeira desaparece. Embora o poder dos grandes
conglomerados tenha se elevado enormemente, sua valorização na esfera
financeira sobressairá a partir dos anos 1970. Foi a crise desta década que
impulsionou a alavancagem dos investimentos especulativos, bem como rear-
ranjos institucionais e legais para ampliar sua valorização.

34 Para Hilferding “Os títulos de dívida pública não precisam de forma alguma representar nenhum capital
existente. O dinheiro emprestado pelos credores do Estado pode ter virado fumaça há muito tempo. Esses
títulos nada mais são do que o preço pago por uma participação nos impostos anuais que representam
o rendimento de um capital inteiramente diferente do que foi gasto na época de uma forma improdutiva”
(HILFERDING, 1985, p. 114).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 105

A quebra do acordo de Bretton Woods marca o desmantelamento dos


mecanismos de regulação das transações financeiras e abriu caminho para uma
onda crescente de movimentos especulativos de capitais (BRETTAS, 2020).
A partir de meados da década de 1970, Chesnais (2005) vai identificar uma
transformação no capitalismo que denomina “mundialização financeira”, que
apresenta três elementos constitutivos da era da mundialização financeira –
os três “D”: a desregulamentação: liberalização dos mercados de câmbio e
capitais; a descompartimentalização: flexibilização no escopo de atuação dos
bancos; e desintermediação: liberação da atuação de instituições não-bancá-
rias – fundos mútuos, companhias de seguro, fundos de pensão – ao mercado
como emprestadores (LINS, 2019, p. 4).
Após a crise dos anos 1970, houve uma corrida para intensificar a autono-
mização e dinamização dos fluxos financeiros, destituindo progressivamente
às amarras a eles impostas pelos Estados-nação. O setor financeiro – e aqui
Editora CRV - Proibida a comercialização

já se tratando do grande capital financeiro (industrial + bancário) altamente


centralizado – passa a demandar instrumentos legais de geração de lucro e
valorização. Segundo Brettas

Propagou-se, cada vez mais, um entendimento de que a atividade financeira


deve ser marcada pelo caráter transnacional, competitivo e deve gerar
lucro como forma de estimular a abertura dos mercados, em especial o de
capital, ao mercado internacional (BRETTAS, 2020, p. 72).

Tais mudanças, ainda segundo a autora, inauguram a passagem de um


sistema financeiro pautado no crédito bancário para um financiamento por
meio do mercado de capitais, especialmente nos países centrais. “Créditos
e títulos que representam capital, sejam eles públicos ou privados, trans-
formam-se, de forma crescente, em mercadorias de onde podem ser tirados
lucros “parasitários” (BRETTAS, 2020, p. 73). E daí decorrem as sucessivas
crises especulativas.
Chesnais (2005) chamará essa nova quadra histórica de mundialização
do capital, um regime de acumulação de dominância financeira que caracte-
riza uma nova etapa do capitalismo monopolista e que traz duas inovações
financeiras, a securitização e os derivativos. A primeira corresponde a junção
de passivos financeiros de diferentes naturezas, formando um novo produto
financeiro que serão negociados no mercado de capitais. Os derivativos são
contratos que prometem pagamentos futuros a partir de ativos, a depender da
variação da cotação destes. Ambas são formas elaboradas de capital fictício
e ampliam o distanciamento entre valores reais (matérias) e valores imaginá-
rios. São algum dos elementos que financeirizam a forma capital-financeiro
já existente. A alta lucratividade desses papéis, embora carregada de fetiche,
106

depende em última instância da alta extração de mais-valia e quando deste


elemento se afasta gera crises.

A financeirização, portanto, carrega em si não somente uma intensificação


dos fluxos financeiros sem precedentes, mas uma pressão para aumentar as
bases de extração de mais-valia que dê conta de alimentar a rentabilidade
financeira. A grande contradição que este processo encerra é que, mesmo
estando nas finanças a rentabilidade mais atraente – o que mobiliza parte
mais significativa de recursos nessa direção –, é somente o investimento
produtivo que pode sustentar esta dinâmica. Ao mesmo tempo, as priori-
dades adotadas na indústria estão cada vez mais moldadas às finanças e
impondo exigências de uma rentabilidade rápida, que altera as decisões
no interior das empresas (BRETTAS, 2020, p. 77).

Se tal diversificação, desregulamentação e desintermediação ampliaram

Editora CRV - Proibida a comercialização


exponencialmente as possibilidades de valorização no campo das finanças, as
consequências desse processo geral atingiram os países dependentes, tanto de
capital quanto de mercadorias, a partir da virada dos anos 1970 para 1980. A
alta dos juros praticada pelos Federal Reserve (FED) nos EUA fez com que
este país se beneficiasse enormemente dados os empréstimos contraídos a
taxas flutuantes, favorecendo os credores, especialmente os norte-americanos.
A securitização das dívidas trouxe à cena os novos investidores finan-
ceiros prontos para comprar, a taxas de juros altíssimas, os títulos dos países
“emergentes”. As consequências para os países dependentes foi a elevação
astronômica dos passivos da dívida e igualmente elevadas remunerações com
seus gastos, aprofundando a dependência e subordinação desses países. Ches-
nais (2010) classifica como impagável e injusta35 a dívida pública dos países
dependentes, que subtrai somas expressivas do sobretrabalho (e a depender do
sistema tributário, também o trabalho necessário), impondo ajustes estruturais
e elevando a dominação financeira dos países credores.
A dívida pública, portanto, torna-se a principal remuneradora do capital
portador de juros nos países dependentes. Se nos países centrais o mercado
de capitais é o grande espaço de valorização do capital com base nas finanças,
nos países periféricos o advento da dívida (remunerada a altas taxas de juros)
torna-se a mola propulsora da acumulação financeira, escoando recursos do
mundo do trabalho para os grandes rentistas ao redor do globo. E é nesse
movimento ininterrupto de valorizar o capital financeiro financeirizado via

35 Behring (2021), revisitando a literatura sobre o tema também apresenta conceitos como dívida “ilegítima”,
“ilegal”, “odiosa” e “insustentável”. Todas as adjetivações apontadas pelo campo da teoria crítica destacam
a perversidade de um sistema financeiro usurário que alimenta as oligarquias financeiras (não só nacionais)
às custas do mundo do trabalho.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 107

dívida pública que se ampliam os processos de redução aos direitos sociais,


para capitalizar mais fundo público. De forma direta ou indireta, os fundos
públicos têm sido expropriados e financeirizados para alimentar os fluxos
financeiros de toda ordem. Trataremos a seguir da particularidade dessa finan-
ceirização do fundo público sob as políticas sociais brasileiras.

Epidemia das finanças: valorização financeira no interior das


políticas sociais de previdência e assistência social

A financeirização, como vimos, não se trata de um conceito em abstrato


que nada tem a ver com o cotidiano da nossa vida. Todos os processos que
nos envolvem, desde o nosso deslocamento ao trabalho, nosso consumo de
mercadorias e serviços ao longo do dia, nossos salários na conta bancária,
nossas transações e transferências, das mais simples às mais complexas, per-
Editora CRV - Proibida a comercialização

passam o circuito das finanças. A preponderância dessa forma de valorização


é tanta em nossos dias que até mesmo os recursos mais limitados, destinados
à classe trabalhadora, têm sido perseguidos como fonte de lucro.
O entendimento desse processo requer compreender a relação dívida
e fundo público na realidade brasileira ao longo, pelo menos, das últimas 3
décadas. O fundo público historicamente sempre foi elemento central para
contrarrestar a queda da taxa média de lucro e ampliar as possibilidades de
acumulação do capital, sendo estrutural, insubstituível, partícipe de todo ciclo
do capital (OLIVEIRA, 1998; BEHRING, 2021).
No Brasil a centralidade de dívida pública (essencialmente a interna) assume
um caráter estrutural no processo de expropriação da riqueza em tempos de
“hipertrofia das finanças” (CHESNAIS, 2005). E sua viabilidade se dá de forma
legal e institucional com a criação de diversos instrumentos que permitem a
sucção de recursos das políticas sociais para alimentar os detentores dos títulos.
Aliada a uma política monetária conservadora, a política fiscal do modelo
macroeconômico pós plano Real estará voltada para uma contenção de gastos
públicos no âmbito social e ampliação das despesas com a dívida. A Desvincu-
lação de Receitas da União – que direciona 30% recursos da Seguridade Social
para o Orçamento Fiscal (e lá em grande parte para a dívida) é uma das principais
medidas de expropriação dos recursos das políticas sociais em favor do rentismo.
Scoralich (2017) demonstra que a DRU gerou ao Tesouro Nacional valo-
res em torno de 749 bilhões de reais (nominais) entre 2005 e 2015. Ao longo
desses mesmos anos a autora mostra que em média os recursos da DRU repre-
sentam 60% do total das metas de superávit primário. A manutenção desse
instrumento ao longo de tantos anos (desde 1994) evidencia o ajuste fiscal
permanente da política econômica neoliberal no Brasil (BEHRING, 2021).
108

Mais recentemente uma nova medida a aprovação do Novo Regime Fiscal


(Emenda Constitucional n° 95) caracteriza a consolidação do que chamamos
de ultraneoliberalismo no Brasil (BEHRING; CISLAGHI; SOUZA, 2020).
O congelamento dos gastos primários por 20 anos (em contexto de drenagem
de recursos e contingenciamentos sucessivos) permitirá o desvio de somas
ainda maiores para os gastos com a dívida pública, em especial, com juros.
Tais elementos evidenciam o papel do fundo público como estrutural para
o desenvolvimento capitalista, que em tempos atuais, sobrevive enormemente
das transações financeiras. Tais transações, pela necessidade de espaços segu-
ros de lucratividade – o que em si já é contrassenso dada a forma insegura
e instável do capital que porta juros no capitalismo avançado – para manter
e ampliar sua valorização. O Estado e suas receitas são o espaço perfeito de
reprodução do capital financeiro via capital fictício; é sempre mais atrativo
emprestar dinheiro ao Estado.

Editora CRV - Proibida a comercialização


Quando tratamos de financeirização das políticas sociais, nos referimos
ao processo de alimentar o capital que vive de juros com recursos que
deveriam ser destinados à classe trabalhadora. Significa garantir a lucrati-
vidade do capital na esfera financeira a partir de fundo público, de forma
que agrava nossa condição de dependência e usurpa recursos oriundos dos
trabalhadores que deveriam a eles retornar por meio de serviços e bens
disponibilizados pelo Estado (SOUZA, 2018, p. 106).

Curiosamente isso acontece de forma mais abrangente nos governos do


Partido dos Trabalhadores (2003-2016). Diversas políticas sociais passaram
a repassar, direta ou indiretamente, via Estado ou via contribuição dos tra-
balhadores, grandes somas de recursos para valorização no mercado finan-
ceiro. Trataremos aqui das políticas de assistência e previdência social como
exemplos emblemáticos de financeirização, posto que ambas se caracterizam
também pelo seu alto grau de monetarização: seus recursos são centrados
em transferências monetárias diretamente aos beneficiários via instituições
bancárias. Mas os dados da financeirização perpassam ainda outras políticas.
No âmbito da educação a financeirização se apresenta claramente no
FIES36. Oferecendo crédito a médio prazo, com juros menores do que a car-
teira de produtos dos bancos, O Fies inseriu a classe trabalhadora que dese-
java cursar o nível superior neste mercado (promissor) e no endividamento
pessoal. Lavinas e Gentil (2018) afirmam que foi durante os governos do
PT que as universidades abriram seus capitais e tornaram-se conglomerados
altamente lucrativos no mercado financeiro. Da primeira década para segunda

36 Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, criado em 1999, mas que terá grande aporte
de recursos no primeiro governo Lula em diante.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 109

do século XXI o número de estudantes financiados pelo FIES sobem de 11%


para mais de 40% do total dos matriculados. Concomitantemente crescem a
valorização das ações como a Kroton (769%) e Estácio (238%) (LAVINAS;
GENTIL, 2018, p. 200).
No campo da saúde também se percebe a abertura capitais da rede de
assistência médica e hospitalar, das redes de laboratórios, a ampliação da
lucratividade a partir de “clínicas populares”, a internacionalização desse
setor, com abertura ao capital estrangeiro, ampliação das fusões e aquisições
e as novas formas de gestão que levam à privatização (Organizações Sociais,
Ebserh), tudo isso também sinaliza uma financeirização da saúde.
A previdência social é uma das políticas sociais mais financeirizadas.
Por ser uma rubrica de robustos recursos (perdendo apenas para dívida
pública), esta política vem sofrendo sucessivos ataques ao longo dos últi-
mos 30 anos. As contrarreformas são justificadas pela velha retórica da
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existência de um déficit previdenciário, alegando-se o perigo de quebra


deste sistema. Tal argumento é falacioso, dado que não leva em conta
o texto constitucional e mecanismos como a DRU que retiram recursos
da Seguridade37.
Ainda que haja muito de falácia, conforme Lavinas e Gentil, “a campa-
nha do ‘déficit’ acabou se tornando uma profecia que se autorrealiza” (2018,
p. 207), dado os números crescentes de desonerações e sonegações ao paga-
mento de empresas sob folha de pagamento. As desonerações corresponderam
a cifra de R$ 350,7 bilhões entre 2009 e 2016 e as sonegações atingiram a
média de R$ 103 bilhões ao ano. Além dos efeitos da contrarreforma traba-
lhista de 2016 na redução da arrecadação para previdência com estímulo ao
trabalho informal.
As limitações ao acesso às aposentadorias e pensões tem um propósito:
estimular a busca por previdência privada, tanto abertas como fechadas. De
acordo com Brettas, a rentabilidade de 2018 era 900 bilhões de reais e a maior
parte dos investimentos desta política são em renda fixa – dívida pública,
chegando a concentrar 71% do total (BRETTAS, 2020, p. 246-247).
Por se tratar de um regime de capitalização, a previdência complementar
torna mais evidente a financeirização. Os fundos de pensão (regime fechado de
previdência) e a previdência complementar aberta (operada em grande medida

37 Como afirmamos em outro texto: “Se olharmos as peças orçamentárias, veremos que a Seguridade Social
é superavitária, ou seja, sobram recursos. O que acontece na prática é que a DRU retira recursos para o
Orçamento Fiscal, que se destina majoritariamente a financiar o superávit primário. Além disso, o discurso
de que a previdência apresenta déficit usa como dados apenas a arrecadação sobre folha de salários
(empregado e empregador) comparando-a aos benefícios a serem disponibilizados. No entanto, conforme
prevê a Constituição, a Previdência poderá utilizar os demais recursos da Seguridade, e isto faz com que
ela jamais apresente déficit” (SOUZA, 2018, p. 107).
110

pelos bancos) operam com a valorização dos recursos na esfera financeira,


recursos esses oriundos dos salários. Tais instituições são algumas das maiores
detentoras dos títulos da dívida pública. Conforme Granemann (2012), esta
modalidade de “previdência” transforma aposentadorias em capital fictício
sob a forma de dívida pública, o que quer dizer que são remunerados com
recursos do fundo público.

Ou seja, os recursos do trabalho necessário, o salário direto, são mobili-


zados para retirar recursos das políticas sociais, do salário indireto, com
objetivo de alimentar o capital portador de juros. Num mesmo movimento
continuo e dialético, a classe trabalhadora perde duas vezes: quando tem
seus salários utilizados para compra de títulos da dívida pública e quando
esta reduz as políticas [sociais] que lhes são fundamentais (SOUZA,
2018, p. 110).

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O ganho anual aproximado de R$ 99,7 bilhões em juros da dívida pública
se for tomado como referência o ano de 2016. Ocorre, portanto, a transfor-
mação de salários em renda de juros, estendendo à classe trabalhadora das
camadas médias a financeirização dos recursos do trabalho.
No âmbito regime geral, ou seja, público, a transferência de recursos às
instituições bancário-financeiro, responsáveis pelo repasse dos benefícios,
permite que as mesmas se apropriem de parte do orçamento público para
inseri-los na esfera das finanças. Entre os anos 2006 e 2010, a previdência
gastou 372,8 milhões de reais com esses serviços bancários, dinheiro que
circula pela esfera financeira nas diversas operações das quais vivem estas
instituições (SOUZA, 2012).
É preciso reforçar que os serviços bancários (inúmeros) ofertados ao
Estado para intermediar as transações monetárias referentes às políticas
públicas em geral são remunerados com fundo público e ao adentrarem o
montante de recursos dos bancos, participam do circuito da financeirização
destas instituições.
Dados atualizados (tabela 1) mostram que de 2013 a 2022 cerca de 8,35
bilhões de reais foram destinados a este tipo de remuneração a bancos. Tais
recursos são bem maiores que alguns importantes programas da Seguridade
como é o caso do programa de Segurança Alimentar, da Assistência Social
que em 2019 recebeu 172,2 milhões de reais e o programa Saneamento
Básico, da Saúde que recebeu 226,9 milhões de reais. Juntos esses dois
programas não alcançam a marca de 809,5 milhões destinados aos bancos
neste mesmo ano.
Os gastos com despesas administrativas da previdência que englobam
“capacitação de servidores para disseminação do conhecimento”, “capacitação
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 111

de servidores públicos federais em processo de qualificação e requalificação”,


“funcionamento das unidades descentralizadas da previdência social”, “moder-
nização e sustentação dos processos e sistemas de fiscalização e autorização
de planos de benefícios e entidades fechadas de previdência complementar”,
“modernização tecnológica para a qualidade do atendimento” e “reformas e
adaptações das unidades do INSS” entre 2013 e 2022 custaram 8,26 bilhões
de reais, menos do que foi repassado aos bancos.

Tabela 1 – Remuneração de agentes financeiros (instituições


bancárias) entre 2013 e 2022 (valores deflacionados pelo IPCA)
Ano Remuneração em reais
2013 R$ 708.428.277
2014 R$ 95.652.530
2015 R$ 341.760.197
Editora CRV - Proibida a comercialização

2016 R$ 2.800.549.307
2017 R$ 868.088.346
2018 R$ 821.616.230
2019 R$ 809.558.764
2020 R$ 642.138.726
2021 R$ 469.399.240
2022 R$ 799.031.375
Total R$ 8.356.222.992
Fonte: SIGA BRASIL. Acesso em: 17 jan. 2023. Elaboração própria.

A Assistência Social também se tornou altamente financeirizada, dada


sua monetarização e bancarização crescente. Apresentamos em 2012 os dados
de remuneração dos bancos para operar com as transferências de renda, pro-
gramas esses favorecedores da lógica da financeirização por deixarem às
instituições bancário-financeiras o repasse dos recursos, inserindo a classe
trabalhadora no circuito do capital portador de juros (SOUZA, 2012).
Os dados abaixo atualizados mostram que juntando os recursos des-
tinados aos bancos do antigo Ministério do Desenvolvimento Social e do
subsequente Ministério da Cidadania (criado em substituição ao anterior)
foram de 3,69 bilhões de reais (tabela 2). Os gastos com programas relativos
a proteção, promoção da criança e adolescente e combate ao abuso sexual38

38 Os programas referidos são: Combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes; Enfrenta-
mento da violência sexual contra crianças e adolescentes; Promoção dos direitos de crianças e adolescentes;
Promoção, proteção e defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes; Sistema de garantia dos
direitos da criança e do adolescente. Alguns deles (como acontece nas outras políticas) foram descontinuados
para a criação de outros.
112

foi de 202 milhões de reais entre 2016 e 2022, enquanto os bancos receberam
mais de dez vezes esse valor.

Tabela 2 – Remuneração de agentes financeiros (instituições bancárias) da área


da Assistência Social entre 2016 e 2022 (valores deflacionados pelo IPCA)
Ano Remuneração de agentes financeiros – MDS Remuneração de agentes financeiros -cidadania
2016 R$ 1.218.281.805 -
2017 R$ 476.526.630 -
2018 R$ 458.965.226 -
2019 R$ 475.353.826 -
2020 R$ 301.193.774 -
2021 - R$ 282.486.810
2022 - R$ 479.837.231

Editora CRV - Proibida a comercialização


Total R$ 2.930.321.262 R$ 762.324.042
Total geral R$ 3.692.645.304
Fonte: SIGA BRASIL. Acesso em: 17 jan. 2023. Elaboração própria.

Sabemos a monetarização destas políticas (assistência social e previ-


dência) exige a intermediação dos bancos para realização das operações de
repasses de benefícios e, obviamente, eles não o farão gratuitamente. Mas os
dados demonstram que para além de um simples pagamento pela prestação de
serviços, tais recursos tornaram-se fonte importante de expropriação de parte
do fundo público para remunerar o capital portador de juros. Considerando
que mais de 85% do total dos recursos da Assistência Social e mais de 80%
dos recursos da Previdência39 correspondem à benefícios monetarizados, os
volumes de recursos que circula entre as instituições bancário-financeiras é
enorme. Daí o interesse destas em monetarizar e capitalizar cada vez mais
as políticas sociais.
E mais: tornam-se a porta de entrada para que a classe trabalhadora
mais pauperizada seja sugada e seduzida pelo circuito financeiro, aumen-
tando seu endividamento e, na mesma proporção, enriquecendo os rentistas.
A prova disso é que a Caixa Econômica (que já centralizava os recursos do
Bolsa Família), criou o banco virtual Caixa Tem para disponibilizar o Auxílio
Emergencial em 2020 e este tornou-se um dos maiores bancos digitais do
mundo, com mais de 100 milhões de contas criadas em tempo recorde, maior
bancarização da história brasileira40.

39 Fonte: Siga Brasil.


40 Fonte: https://extra.globo.com/economia-e-financas/caixa-ja-abriu-100-milhoes-de-contas-digitais-pelo-cai-
xa-tem-24728645.html. Acesso em: 21 jan. 2023.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 113

Tais dados, portanto, nos mostram que a luta por direitos sociais, por mais
orçamento para políticas públicas e pela redução da dívida pública, embora
centrais, ainda não atacam outros pontos como o processo de financeirização
da vida que vivemos em nossos dias, grande fonte de expropriação de fundo
público. As instituições bancário-financeiras e suas relações com Estado ten-
cionam para que as reivindicações anteriores sejam sempre atravancadas ou
reduzidas, em nome da institucionalidade e da governabilidade. Vivemos numa
realidade onde existir exige pagar juros, e cada vez mais altos.

Considerações finais

Os tempos ultraneoliberais, de exacerbação das características neoliberais,


nos ensinam que a função do Estado não é reduzir seu poder político, econô-
mico e interventivo, mas reorientar o fundo público tornando-o mecanismo
Editora CRV - Proibida a comercialização

fundamental de valorização do capital em geral e em especial o capital portador


de juros. Ao lado da desregulamentação monetária e financeira, da abertura
dos mercados e manutenção de índices elevados das taxas de juros, ocorre uma
desconstrução gradativa, ora acelerada ora mais paulatina (pela correlação
de forças) aos equipamentos públicos e, ao mesmo tempo, uma expansão da
financeirização dos serviços, abrindo novos espaços de acumulação e valo-
rização para resolver a superacumulação e a crise do capital nos dias atuais.
O capital portador de juros, grande privilegiado deste processo, reafir-
ma-se como forma mais fetichizada e alienante do capital por esconder o
processo real social de produção da riqueza material. Oculta a exploração do
trabalho alheio e, assim dificulta a tomada de consciência da classe trabalha-
dora para atuar na luta contra a ordem burguesa. Dificulta, mas de maneira
alguma impossibilita. Precisamos desvendar o movimento do real na atua-
lidade para retirarmos o véu que nos encobre as retinas e embaça a visão da
realidade concreta.
No tempo presente, mais especificamente desde 2016, assistimos a uma
onda avassaladora e acelerada de contrarreformas tocadas de forma aligeirada
para garantir a retomada de fôlego ao grande capital financeiro em tempos
de crise. Desde o ingresso do governo golpista de Michel Temer no poder,
passando pelo longo pesadelo do governo Bolsonaro, o capital viu-se na tarefa
urgente de intensificar a criação de instrumentos legais e normativos que
ampliem a parte do fundo público voltada à alimentação do capital portador
de juros. A dívida pública, que se constitui em capital fictício para Marx,
será a remuneradora fundamental da elite rentista. Portanto, ampliar a fatia o
montante destinado a ela é uma necessidade constante para o capital.
114

Mas não só usurpar recursos para dívida pública garante a satisfação da


oligarquia financeira – e aqui falamos de uma burguesia financeira articulada
na extração de mais-valor na esfera improdutiva e produtiva. Subtrair somas
cada vez maiores de parte dos recursos das políticas públicas para remune-
rar o capital portador de juros é também mais um caminho de lucratividade
desta forma-capital.
Dívida pública, remuneração de instituições bancário-financeiras para
prestação de serviços (monetarizados), subtração de parte do salário (trabalho
necessário) para compra de planos capitalização e serviços privados (estes já
ofertados por instituições de capital aberto) são formas de cercar a riqueza pro-
duzida pela classe trabalhadora de todos os lados de modo que sobre somente o
indispensável (e que garanta mínimo consenso) para aqueles que a produzem.
O Estado, portanto, comporta-se como capitalista total ideal (MANDEL,
1982), garantindo os negócios do capital portador de juros. Diversificando

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as possibilidades de valorização via financeirização. Criando instrumentos
legais e normativos para sua acumulação. As contrarreformas recentes são
a materialização desse processo. A Emenda Constitucional n° 95, de 2016,
congela os gastos para liberar recursos para pagamento da dívida pública, que
já estavam garantidos pela DRU e pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
A contrarreforma da previdência de 2019 também serve de mola propulsora
para a adesão à capitalização da previdência. Para o capital financeiro, de base
financeirizada (ou seja, o grande capital bancário e industrial que se alimenta
essencialmente de ganhos improdutivos) não há como perder.
Nos dias que se seguem derrotamos nas urnas o neofascismo. Fato a
ser comemorado e enaltecido numa quadra histórica de ascensão do neocon-
servadorismo das massas, expresso no governo de Bolsonaro. Mas a roda
permanece girando. Os mercados se agitam a qualquer hipótese de redução
dos seus ganhos para atender às necessidades sociais.
As reivindicações da classe trabalhadora passam pela revogação das
contrarreformas empreendidas, todas. Mas também pela limitação dos pro-
cessos de financeirização, pela substituição ou redução gradativa de políticas
monetarizadas, por equipamentos públicos universais de acesso a direitos, pela
alta taxação das instituições financeiras, revertida para políticas de Seguridade
Social. Se o combate ao neofascismo é imprescindível, a reapropriação da
riqueza produzida pela classe trabalhadora, que se encontra em poder dos
capitalistas financeiros especuladores é inadiável para a sobrevivência da
classe trabalhadora.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 115

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FUNDO PÚBLICO E QUESTÃO
TRIBUTÁRIA NO BRASIL
Evilasio Salvador
DOI: 10.24824/978652515394.0.117-140

Introdução

Este texto41 busca atualizar com dados mais recentes a questão tributária
no Brasil no contexto da disputa do fundo público. O tema da reforma tribu-
tária tem sido recorrente na agenda pública do país. Nas últimas três décadas,
diversos projetos com emendas à Constituição Federal de 1988 vêm sendo
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apresentados e alguns ganharam maior relevância e espaço na imprensa. Con-


tudo, a questão central do sistema tributário brasileiro – sua enorme regressi-
vidade fiscal –, que onera pesadamente a classe trabalhadora, seja por meio de
impostos que incidem diretamente sobre a renda ou de forma mais agravante
com a pesada tributação indireta sobre o consumo dos mais pobres, não vem
sendo o objeto central das chamadas propostas de reformas tributárias.
Este capítulo, para além desta breve introdução, está organizado em três
partes. A primeira recupera, no âmbito do debate do fundo público, alguns con-
ceitos fundamentais para o entendimento da questão tributária: regressividade,
progressividade, impostos diretos, impostos indiretos e bases econômicas para
a tributação. A segunda seção apresenta e analisa os dados da carga tributária,
com informações da arrecadação tributária de 202142 da União, dos Estados,
do DF e municípios, por bases de incidência econômica: renda, patrimônio e
consumo. Por fim, a terceira seção traz o debate atual das principais propostas
de reformas tributárias no Congresso Nacional, que vêm ganhando espaço
na agenda pública neste início do terceiro governo do presidente Lula. Para
tanto, apresenta os principais pontos das Propostas de Emendas à Constitui-
ção (PECs): 45/2019 e 110/2019; destacando que, além de não resolverem a
elevada carga tributária indireta no Brasil, ainda corroboram para sepultar a
diversidade das fontes de financiamento da seguridade social brasileira.

41 Este texto foi produzido a convite da Profa. Dra. Elaine Behring para coletânea comemorativa de 20 anos do
Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS-UERJ). Expresso
meus agradecimentos à professora Elaine Behring, uma importante interlocutora no intenso e produtivo
debate político e acadêmico, nos últimos anos, no campo do fundo público e das políticas sociais.
42 Optou-se pelo ano de 2021, o último com a arrecadação tributária de todos os entes da federação de forma
desagregada e disponível na base de dados da Secretaria da Receita Federal do Brasil, em fevereiro de 2023.
118

Conceitos importantes para a compreensão da estrutura


tributária

Um dos aspectos fundamentais para o estudo do fundo público é a com-


preensão da estrutura tributária que forma a principal base de financiamento do
Estado capitalista contemporâneo. Partindo da compreensão da categoria fundo
público desenvolvida por Behring (2021, p. 91), “um compósito de mais-valia –
incidindo sobre o lucro/juro e a renda da terra – e sobre o trabalho necessário, haja
vista a crescente tributação sobre os rendimentos da classe trabalhadora e também
sobre as mercadorias que compõe sua cesta básica de reprodução (tributação
indireta)”, investigam-se as bases econômicas da arrecadação tributária visando
a identificar sobre quem recai o ônus do financiamento do Estado brasileiro.
Nessa trilha, destaca-se a instigante tese de Rezende (2021), ao demons-
trar que, no modo de produção capitalista, a tributação ocorre sobre a forma

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de manifestação do valor, como a expressão monetária do valor de troca sobre
o preço e o dinheiro. Para o autor, o moderno sistema tributário é o produto,
em determinado estágio, da expressão da luta de classes, indicando a forma de
articulação de cada Estado-nação com o mercado mundial e da subordinação
do fundo público ao processo de valorização do capital e do desenvolvimento
das relações entre capital e trabalho de cada país.
Para a compreensão da questão tributária e a sua relação com as classes
sociais, ou seja, o entendimento sobre quem financia o Estado e os possíveis
efeitos redistributivos de renda e riqueza do sistema de impostos de um país, é
importante a compreensão de alguns conceitos-chaves de finanças públicas43.
Os estudos clássicos de finanças públicas realizam a classificação dos tri-
butos em função de sua incidência e da sua relação com a renda dos contribuin-
tes, podendo assim ser considerados: progressivos, regressivos e proporcionais
(MUSGRAVE; MUSGRAVE, 1980). Um tributo é progressivo à medida que
tem uma relação mais que proporcional com o nível de renda e riqueza do con-
tribuinte, assim, quando cresce a renda ou patrimônio do contribuinte, a carga
tributária aumenta proporcionalmente mais. Isso significa mais progressividade e
justiça fiscal, pois arcam com maior ônus da tributação os cidadãos em condições
mais favoráveis de suportá-la, ou seja, aqueles que têm maior renda e riqueza.
O inverso na regressividade ̶ que, como será visto na próxima seção, é o caso
do sistema tributário brasileiro ̶ , à medida que tem uma relação inversa com o
nível de renda do contribuinte, ou seja, a regressão ocorre porque prejudica mais
os contribuintes de menor poder aquisitivo. No caso dos tributos proporcionais44,

43 Cabe destacar que estamos nesta passagem resgatando conceitos que trabalhamos em (SALVADOR, 2010a).
44 Esse é o caso do chamado imposto único, em que a mesma alíquota do tributo prevalece independentemente
do nível de riqueza ou de renda do contribuinte e o sistema tributário atua assim para manter o status quo
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 119

não ocorre alteração em relação às alterações da renda e da riqueza do contri-


buinte, mantendo-se, de forma igual, a alíquota tributária entre pobres e ricos
em uma sociedade.
Para compreender a regressividade e a progressividade, é necessário
avaliar as bases de incidência, que são: a renda, a propriedade, a produção, a
circulação e o consumo de bens e serviços. Conforme a base de incidência,
os tributos são considerados diretos ou indiretos. Os tributos diretos incidem
sobre a renda e o patrimônio, porque, em tese, não são passíveis de transfe-
rência para terceiros. Esses são considerados impostos mais adequados para
a questão da progressividade. Os indiretos incidem sobre a produção e o con-
sumo de bens e serviços, sendo passíveis de transferência para terceiros, em
outras palavras, para os preços dos produtos adquiridos pelos consumidores.
Eles é que acabam pagando de fato o tributo, mediado pelo contribuinte legal:
empresário produtor ou vendedor (SALVADOR, 2010a).
Editora CRV - Proibida a comercialização

Na chamada tributação indireta, ocorre aquilo que Oliveira (2009) deno-


mina de fetiche do imposto: o empresário nutre a ilusão de que recai sobre
seus ombros o ônus do tributo, mas se sabe que ele integra a estrutura de
custos da empresa, terminando, geralmente, sendo repassado aos preços. Os
tributos indiretos são regressivos.
A correlação das forças sociais é importante para compreender a composi-
ção do fundo público no Brasil. A partir do momento da definição do montante
de recursos que o Estado terá de contar para o desempenho de suas tarefas,
que são determinadas historicamente, a questão central passa a ser a distribui-
ção desse ônus entre os membros da sociedade (SALVADOR, 2010a). Nessa
perspectiva, O’Connor (1977, p. 203) considera as finanças tributárias como
uma forma de exploração econômica que requer, por isso, análise de classe.
Para o autor “cada mudança importante no equilíbrio das forças políticas e
classistas é registrada pela estrutura tributária. Dizendo-o de outro modo, os
sistemas tributários são apenas formas particulares dos sistemas de classes”.
Para Oliveira (2009), o gravame é definido na área política da luta de
classes, pois, caso a correlação seja desfavorável aos trabalhadores, tenderão
a predominar, no sistema tributário, os tributos indiretos, que são regressivos
e contribuem para piorar a distribuição de renda, com baixas incidências sobre
a renda, os lucros e o patrimônio. Ao contrário, em situações em que a luta
de classes seja mais favorável à redução das desigualdades na sociedade, os
impostos diretos ganham maior relevância na estrutura tributária.
Em síntese, as diferentes gradações da tributação (direta, indireta, pro-
porcional) permitem a compreensão da progressividade e da regressividade do
sistema tributário. Como destaca Rezende (2021, p. 26): “os tributos diretos

da sociedade e não corroborando para maior justiça fiscal.


120

incidem de maneira efetiva sobre o contribuinte, permitindo a identificação de


quem realmente arca com o ônus econômico da tributação, quem realmente
é afetado monetariamente pelo pagamento”. Enquanto, no caso dos impostos
ou tributos indiretos, ocorre um repasse do contribuinte formal, em geral da
empresa (pessoa jurídica) para o contribuinte de fato, que, na prática, arca
com o ônus tributário. De acordo com Rezende (2021, p. 26-27) “para além
desta noção jurídico-econômica aparente, está a relação fundamental entre
capital e trabalho, uma vez que são os indivíduos com menor poder aquisitivo
que mais arcam com o ônus da tributação indireta, os quais geralmente são
aqueles que sobrevivem por meio da remuneração da venda de sua força de
trabalho, mediante o salário”. De forma que são classificados como impostos
diretos aqueles que são incidentes sobre a renda e o patrimônio (propriedade)
e como indiretos os tributos que incidem sobre às relações de consumo.
A origem da arrecadação tributária no capitalismo, como demonstrado

Editora CRV - Proibida a comercialização


por Marx (2011), só é possível a partir da extração da mais-valia. Portanto, a
origem do financiamento das atividades estatais está na exploração da força
de trabalho pelos proprietários dos meios de produção, sendo a renda dos
trabalhadores tributadas diretamente via imposto de renda, o que reduz a
renda disponível desses e, indiretamente, via os tributos que incidem sobre
os produtos consumidos pela classe trabalhadora.
Em que pesem os vários arranjos institucionais e econômicos para clas-
sificar os tributos (SALVADOR, 2010a), a composição do fundo público tem
sua origem na exploração da força de trabalho, sem a força de trabalho, os
meios de produção seriam inúteis. Ela é que possui uma qualidade única, que
a distingue de todas a outras mercadorias: a criação do valor, pois a força de
trabalho produz mais valor que o necessário para reproduzi-la e, assim, gera
um valor superior ao que custa (NETTO; BRAZ, 2006; MARX, 2011).
Com base nessa perspectiva teórica, e, a partir da compreensão dos con-
ceitos apresentados sobre a estrutura tributária, a seção a seguir analisa a carga
tributária brasileira por base de incidência econômica.

A carga tributária no Brasil: análise por base de incidência


econômica

As pesquisas sobre a regressividade da Carga Tributária brasileira aumen-


taram de forma expressiva nos últimos anos45, incluindo os movimentos orga-

45 Apenas para citar algumas, destacam-se a importante coletânea organizada por Fagnani (2018) no âmbito da
campanha liderada pelas Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) e
pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (FENAFISCO); a tese de doutorado de Rezende (2021);
o livro de Pires (2022) e diversos textos para discussão do IPEA, como por exemplo, Gobetti e Orair (2016a).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 121

nizados na sociedade civil brasileira, que buscam a maior progressividade


no sistema tributário, como é o caso da campanha “tributar os super-ricos”,
liderada pelo Instituto de Justiça Fiscal (IJF),46 que defende a cobrança de
impostos sobre mais ricos e a diminuição da tributação sobre os mais pobres
na sociedade brasileira. Contudo, essas proposições não vêm conseguindo
lograr êxito na correlação das lutas de classes no Brasil e, assim, não sendo
pautada como agenda pública prioritária na questão tributária, em que pesem
os dados, como se seguem, demonstrarem a elevada regressividade da carga
tributária no país.
A tabela 1 mostra a arrecadação tributária de 2021 das três esferas de
governo, por base de incidência econômica dos tributos (renda, patrimô-
nio e consumo). A carga tributária é um indicador que expressa a relação
entre o volume de recursos que o Estado extrai da sociedade sob a forma
de impostos, taxas e contribuições, sob a responsabilidade de todos os
Editora CRV - Proibida a comercialização

entes da federação (União, estados, DF e municípios), para financiar as


atividades que se encontram sob sua responsabilidade e o Produto Interno
Bruto (PIB). A carga tributária brasileira tem oscilado entre 32,29% do
PIB (2010) a 32,90% do PIB (2021), conforme os dados da Secretaria do
Tesouro Nacional (STN, 2022).
Os dados apresentados na tabela 1 mostram que a carga tributária no
Brasil, a partir da arrecadação dos tributos (impostos, contribuições sociais,
contribuições econômicas e taxas) da União, dos estados, do DF e dos muni-
cípios, por bases de incidências econômicas (renda, patrimônio e consumo),
em 2021, alcançou 31,40% do PIB.
Aqui cabe uma explicação da metodologia adotada neste texto, con-
forme já desenvolvida em Salvador (2010a). Como explicado na primeira
seção, interessa-nos identificar sobre quem recai o ônus do pagamento do
tributo, pois nem sempre aquele que está legalmente a pagar o tributo arca
com este ônus, principalmente as empresas que repassam para os preços de
bens e serviços, incluindo a contribuição previdenciária (parte patronal) sobre
folha de pagamentos47. Nesse sentido, Siqueira; Nogueira e Souza (2001)
corroboram a hipótese aqui adotada de translação total, isto é, de repasse aos
preços de bens e serviços dos encargos tributários de responsabilidade das
empresas. Assim, tem-se nesta metodologia uma diferença essencial para
diversos autores, que, ao classificar base de incidência, incluem a categoria
“folha de pagamento” ou “salários e mão de obra”, que não colabora na

46 Informações sobre a campanha em https://ijf.org.br/tributar-os-super-ricos/


47 As informações foram extraídas no banco de dados abertos da RFB (https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/
acesso-a-informacao/dados-abertos) e foram adequados a metodologia aqui adotada com parte da chamada
“tributação sobre folha de pagamento” sendo realocada nas bases tributárias: renda, consumo e outros.
122

identificação do ônus da carga tributária48. Adota-se aqui a classificação do


estudo clássico de Musgrave e Musgrave (1980).
Além disso, a tabela 1 não inclui a arrecadação do Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço (FGTS), como o usual nos dados oficiais (RFB, 2022a;
STN, 2022)49, pois, no nosso entendimento, o FGTS compõe a remuneração do
trabalhador. Conforme DIEESE (2006), trata-se de uma renda diferida que o
trabalhador tem o direito de sacar quando de sua aposentadoria (e não apenas
na eventualidade de uma demissão sem justa causa), isto é, um patrimônio
individual do trabalhador.
Os dados da tabela 1 revelam que a tributação sobre a renda alcançou
9,92% do PIB em 2021, representando 31,6% do total de tributos arrecadados
no país. Do montante de R$ 883,19 bilhões de tributos diretos sobre a renda,
R$ 447,10 bilhões (50,62%) são originários da carga sobre os rendimentos
dos trabalhadores. Pode-se afirmar que são três grandes grupos de tributos

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que incidem de forma direta na renda dos trabalhadores:

• O Imposto de Renda – Pessoa Física (IRPF), que alcançou o mon-


tante de 53,79 bilhões, em 2021, e refere-se, em geral, ao ajuste
do imposto de renda feito anualmente pelos contribuintes à RFB.
• Os descontos das contribuições sociais previdenciárias de traba-
lhadores vinculados ao Regime Geral da Previdência Social e dos
Regimes Próprios de previdência dos servidores públicos de todos os
entes da federação; somente a contribuição para o Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS) representou 4,82% do montante tributário
arrecadado em 2021, com R$ 134, 6 bilhões.
• O Imposto de Renda Retido na Fonte – Trabalho é a principal carga
tributária incidente diretamente sobre os salários dos trabalhado-
res no Brasil tanto daqueles do setor privado da economia, como
dos servidores públicos, alcançando R$ 208,22 bilhões, em 2021,
conforme a tabela 1.

Uma das principais razões da forte incidência do Imposto de Renda (IR)


nos rendimentos dos trabalhadores brasileiros é a defasagem na correção da

48 Esse é o caso, por exemplo, Afonso e Meirelles (2006) e Siqueira e Ramos (2004). Além dos estudos dos
órgão oficiais como a Secretaria do Tesouro Nacional (STN, 2022) e a Secretaria especial da Receita Federal
do Brasil (RFB, 2022a).
49 Santos, Ribeiro e Gobetti (2008, p. 15), apesar de considerarem o recolhimento do FGTS na carga tributária,
ressalvam que “o FGTS é de propriedade dos trabalhadores, as contribuições para esse fundo não são formal-
mente receitas do governo e, portanto, não podem ser usadas para financiar gastos públicos correntes. O único
motivo pelo qual essas contribuições são contabilizadas como ‘carga tributária’ pelo IBGE – e pela metodologia
da Organização das Nações Unidas (ONU) – é o fato de o governo obrigar o setor privado a pagá-las”.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 123

tabela do IR. Estudo do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita do


Brasil (Sindifisco Nacional) demonstra que a não correção da Tabela do IRPF
pelo índice de inflação faz com que os trabalhadores paguem mais impostos,
sendo que a defasagem média acumulada da tabela do IRPF, em comparação
ao Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), é de 134,52%,
no período de 199650 a 2021 (COELHO; MOTA, 2022). A ausência de corre-
ção da tabela, principalmente, a partir de 2016, ano marcado pelo golpe que
derrubou a presidenta Dilma Roussef, leva a uma situação que trabalhadores
com renda de 1,73 salário-mínimo, em dezembro de 2021, a terem descontados
nos seus salários o IR. Há uma queda exponencial na isenção do IR no Brasil,
que já foi igual a 9 salários mínimos, em 1996 (COELHO; MOTA, 2022).
Por outro lado, a renda incidente sobre o capital na forma de tributação
da Pessoa Jurídica no Brasil representou apenas 11,54% do Carga Tributária
em 2021, conforme os dados da tabela 1. Sendo R$ 201,06 bilhões advindo
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do Imposto de Renda – Pessoa Jurídica (IRPJ) e R$ 112, 47 bilhões de Con-


tribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). A CSLL é o único tributo
sobre a renda do capital a financiar a seguridade social no Brasil. Em 2021, as
entidades financeiras, por exemplo, pagaram somente R$ 1,1 bilhão de IRPJ
e R$ 820 milhões de CSLL, conforme dados RFB (2022b).

Tabela 1 – Carga tributária por incidência econômica –


arrecadação tributária União, Estados, DF e municípios por Base
tributárias, em 2021, Ano-Calendário, em R$ milhões
% Participação
Base de incidência econômica R$ milhões Em % do PIB
sobre Total
Renda 883.194,30 31,60% 9,92%
Trabalhadores 447.103,78 16,00% 5,02%
IRPF 53.788,34 1,92% 0,60%
IRRF – Trabalho União 208.219,48 7,45% 2,34%
Contrib. s/ Concursos e Prognósticos 3.085,00 0,11% 0,03%
Contrib. para o INSS – Empregado 134.619,88 4,82% 1,51%
CPSS – Parcela Servidor 17.944,11 0,64% 0,20%
Previd. dos Estados – Servidor 15.092,20 0,54% 0,17%
Previd. dos Municípios – Servidor 5.895,14 0,21% 0,07%

continua...

50 O ano de 1996 é a referência, pois até 1995 a tabela do IR era corrigida periodicamente. Assim, foi durante
o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) que a tabela do IR deixou de ser corrigida periodicamente
pela inflação, sendo reajustada somente em 2002, no contexto das contrarreformas neoliberais e de políticas
de ajuste fiscal permanente. No período de 2005 a 2015 (anos dos governos liderados pelo Partido dos
Trabalhadores), a tabela foi corrigida periodicamente, mas sem a reposição integral da inflação passada.
Após o golpe de 2016, que derrubou a presidente Dilma Roussef, a tabela deixou de ser corrigida.
124

continuação
% Participação
Base de incidência econômica R$ milhões Em % do PIB
sobre Total
Contrib. p/ Custeio das Pensões Militares 8.459,51 0,30% 0,10%
Contribuição Voluntária Montepio Civil 0,11 0,00% 0,00%
Capital 322.526,84 11,54% 3,62%
IRPJ 210.058,03 7,52% 2,36%
CSLL 112.468,81 4,02% 1,26%
Outros 113.563,68 4,06% 1,28%
Patrimônio 142.732,71 5,11% 1,60%
Propriedade Imobiliária (urbana e rural) 58.065,72 2,08% 0,65%
ITR 2.166,93 0,08% 0,02%
IPTU 55.898,79 2,00% 0,63%
Propriedade de Veículos Automotores 51.761,55 1,85% 0,58%

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IPVA 51.761,55 1,85% 0,58%
Transferências Patrimoniais 32.905,44 1,18% 0,37%
ITCMD 12.329,59 0,44% 0,14%
ITBI 20.575,85 0,74% 0,23%
Consumo 1.654.353,69 59,20% 18,59%
Gerais 947.308,33 33,90% 10,65%
ICMS – Exceto Seletivos 473.407,13 16,94% 5,32%
IPI – Exceto Seletivos 58.702,77 2,10% 0,66%
Cofins 269.704,78 9,65% 3,03%
PIS 56.799,60 2,03% 0,64%
Imposto sobre Serviços (ISS) 88.694,06 3,17% 1,00%
Seletivos 192.511,57 6,89% 2,16%
IPI – Automóveis 3.446,69 0,12% 0,04%
IPI – Bebidas 2.687,42 0,10% 0,03%
Combustíveis 114.429,06 4,09% 1,29%
ICMS – Energia Elétrica 66.371,72 2,38% 0,75%
Tabaco 5.576,67 0,20% 0,06%
Comércio Exterior 62.036,13 2,22% 0,70%
Imposto sobre Importação 61.876,26 2,21% 0,70%
Imposto sobre Exportação 159,86 0,01% 0,00%
Taxas – Prest. Serviços e Poder Polícia 50.204,90 1,80% 0,56%
Outras Contrib. Sociais e Econômicas 25.017,50 0,90% 0,28%
Contribuições Previdenciárias – Faturamento 13.505,24 0,48% 0,15%
Contrib. Previdenciária sobre Faturamento 13.206,40 0,47% 0,15%
continua...
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 125

continuação
% Participação
Base de incidência econômica R$ milhões Em % do PIB
sobre Total
Adicional à Contribuição Previdenciária 298,84 0,01% 0,00%
Contrib. para o INSS – Patronal 297.059,63 10,63% 3,34%
Outras contribuições sobre folha de pagamento 66.710,40 2,39% 0,75%
Outros tributos 114.293,70 4,09% 1,28%
Contribuições previdenciárias União, estados e municípios 65.107,94 2,33% 0,73%
IOF + resíduo da CPMF 49.023,81 1,75% 0,55%
Outros 161,95 0,01% 0,00%
Total da arrecadação 2.794.574,40 100,00% 31,40%
Fonte: RFB – Dados Abertos e IBGE – SCNT. Elaboração própria.

No bojo das modificações sorrateiras na legislação que alteraram a estru-


tura do sistema tributário no governo FHC (SALVADOR 2010a), em contexto
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de contrarreforma do Estado (BEHRING, 2003), ocorreram as reduções nas


alíquotas do IRPJ de forma a reduzir substancialmente a alíquotas pagas
pelas empresas51, além da instituição dos “juros sobre capital próprio”, que é
a possibilidade de remunerar com juros o capital próprio das empresas, isto é,
os juros pagos e creditados aos sócios, e deduzi-los como despesa (FARIAS
et al., 2006). Na prática, isso significa uma redução da base tributária do IR
e da CSLL das empresas, constituindo, assim, uma forma secundária de dis-
tribuição de lucros e dividendos.52
Cabe observar que “parte da tributação incidente sobre os lucros das
pessoas jurídicas pode, em tese, ser repassada aos preços e teremos uma carga
ainda maior sobre o consumo de bens e serviços, com reflexos regressivos,
uma vez que os mais pobres gastam toda a sua renda no consumo familiar”,
conforme destacam Introíni et al. (2018, p. 268).
Os donos do capital também não são tributados enquanto pessoas físi-
cas, pois, desde 1996, vigora no país a isenção do Imposto de Renda sobre
Lucros Dividendos53, incluindo a remessa para o exterior, o que agrava
ainda país a condição de país dependente do Brasil. Como destaca Luce

51 Conforme Farias et al. (2006), a tributação do lucro das empresas teve uma redução da alíquota do
Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) de 25% para 15% e da redução do adicional sobre os
lucros. Antes dessa mudança, a alíquota nominal era de 12% do lucro real que excedesse R$ 180 mil
até R$ 780 mil; de 18% para parcela do lucro real acima de R$ 780 mil; e de 10% sobre parcela do lucro
real, presumido ou arbitrado, que excedesse R$ 240 mil ao ano ou R$ 20 mil/mês (Lei nº 9.249/95, art.
3º, e Lei n° 8.981/95). A legislação acabou com a progressividade e reduziu a tributação dos lucros da
empresa para uma alíquota única de 15%.
52 Lei n° 9.294/95, art. 9º.
53 Observe que somente Brasil e Estônia na lista de países da OCDE não tributam lucros e dividendos (INTROÍNI
et al., 2018).
126

(2018), o intercâmbio desigual de transferência de valor entre os países


centrais e a periferia do capitalismo opera no sentido de uma captura de
renda pelo comércio internacional, pela dívida, pelas remessas de lucros,
royalties e dividendos.
Assim, a Lei n° 9.294/95, art. 10º, concedeu a isenção de imposto de
renda à distribuição de lucros a pessoas físicas, eliminando o imposto de
renda na fonte sobre os lucros e dividendos distribuídos para os resultados
apurados a partir de 1/1/96, seja o sócio capitalista residentes no país ou no
exterior. Antes dessa mudança, a alíquota era de 15%, assim como ocorreu a
eliminação da alíquota de 35% do IRPF, reduzindo a progressividade do IR
(Lei n° 9.250/95).
Essa situação revela que mesmo a tributação direta acaba sendo limitada
no Brasil, pois restringe-se basicamente à renda dos trabalhadores assalariados
e dos servidores públicos. Uma característica peculiar do imposto sobre a

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renda no Brasil é que nem todos os rendimentos tributáveis de pessoas físicas
são levados obrigatoriamente à tabela progressiva do IR e estão sujeitos ao
ajuste anual de declaração de renda (SALVADOR, 2016).
A legislação tributária atual opera na contramão do estabelecido na Cons-
tituição, que não permite discriminação em razão da ocupação profissional
ou da função exercida pelos contribuintes, não submete à tabela progressiva
do IR os rendimentos de capital e de outras rendas da economia, que são
tributados com alíquotas inferiores à do Imposto de Renda incidente sobre a
renda do trabalho renda (SALVADOR, 2016).
Pesquisas realizadas (MEDEIROS; SOUZA; CASTRO, 2015; SALVA-
DOR, 2016; GOBETTI; ORAIR, 2016b) com base nos “Grandes Números
das Declarações do Imposto de Renda das Pessoas Físicas” disponibilizados
pela RFB revelam uma perda da progressividade do IR para os contribuintes
com rendimentos acima de 40 salários-mínimos por mês. De acordo com
Salvador (2016), as alíquotas médias do IR (no ano de 2013) apresentam uma
progressividade nas faixas de 3 a 40 salários-mínimos, sendo que, a partir da
faixa de 40 a 80 salários-mínimos, o Imposto de Renda começa a perder a sua
progressividade. Nesta faixa, a alíquota é rebaixada para 10,09%; na faixa e
80 a 160 salários-mínimos, é reduzida para 6,65%; e, na faixa acima de 160
salários-mínimos, a 3,33%, ou seja, uma alíquota de IR similar à existente na
faixa de 5 a 10 salários-mínimos. Portanto, os contribuintes com rendimentos
acima de 40 salários-mínimos passam a pagar proporcionalmente menos IR
do que os contribuintes nas faixas salariais inferiores. Em conclusão, quanto
maior for a renda recebida pelo contribuinte, menor vai ser a alíquota do IR
devido, o que revela uma regressividade do Imposto de Renda para os con-
tribuintes de maior remuneração.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 127

No Brasil, são basicamente 5 tributos sobre patrimônio ou propriedade54, que


juntos arrecadaram R$ 142,73 bilhões, em 2021, representando somente 5,11%
do total da Carga Tributária, o que equivale a 1,6% do PIB, conforme os dados
da tabela 1. Cabe destacar que o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto
na CF de 1988, não foi regulamentado. Esses são os tributos de fato existentes:

• Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU);


• Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR);
• Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA);
• Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);
• Imposto Sobre Herança e Doações (ITCMD);

Essa situação de baixa carga tributária sobre o patrimônio é bem diferente


dos países centrais, em que os impostos sobre o patrimônio representam mais
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de 10% da arrecadação tributária, como, por exemplo, no Canadá (10%),


no Japão (10,3%), na Coreia (11,8%), na Grã-Bretanha (11,9%) e nos EUA
(12,15%), conforme (OWENS, 2005).
A tributação recorrente sobre bens imóveis no Brasil revela que a arrecada-
ção (ITR e IPTU) é de apenas 0,65% do PIB, em 2021 (tabela 1), o que é cerca
de 4 vezes menos que a experiência internacional, que ultrapassa 2,5% do PIB
em diversos países (Reino Unido, Canadá, Estados Unidos e França); próxima
de 2% do PIB em Israel, Japão e Nova Zelândia (CESARE, 2018). O Brasil,
inclusive, tem arrecadação inferior ao observado em alguns países da América
do Sul, como a Colômbia, o Uruguai e o Chile, conforme Cesare (2018).
O IPTU é o principal tributo sobre propriedade no Brasil, sendo de respon-
sabilidade dos municípios, e teve uma arrecadação de R$ 55,90 bilhões, em 2021,
o que equivale a 2% da carga tributária (tabela 1). De acordo com Carvalho Jr.
(2018a, p. 414 ), “as receitas do IPTU no Brasil, além de estarem abaixo do seu
potencial são bastante heterogêneas, regionalmente e conforme o tamanho do
município”. A pesquisa do autor revela que, em 2016, somente “o Município
de São Paulo concentrou 24% de toda a arrecadação nacional do IPTU e mais
outros 13 municípios concentraram 50% da arrecadação nacional” (CARVALHO
JR., 2018a, p. 414). A arrecadação deste tributo tem sido marcada pela falta de
atualização e modernização dos cadastros imobiliários municipais, elevadas isen-
ções, não atualização das plantas genéricas de valores e elevada inadimplência.
O IPVA é o segundo tributo sobre patrimônio no Brasil, com arreca-
dação de R$ 51,77 bilhões, o que equivale a 0,58% do PIB, em 2021, con-
forme a tabela 1. Esse imposto, de responsabilidade dos estados, incide sobre

54 Um detalhamento sobre a questão tributária sobre o patrimônio no Brasil pode ser vista no capitulo 5 da
coletânea organizada por Fagnani (2018).
128

automóveis, sendo que veículos suntuosos como jatos, helicópteros, iates e


lanchas são isentos do IPVA (SALVADOR, 2014).
O IPVA, em que pese características de um imposto direto sobre o patri-
mônio, acaba sendo regressivo no Brasil, onerando as famílias com menores
rendas, em que o imposto chega a representar 2,79% da renda mensal, enquanto
nas famílias com maiores rendimentos essa participação cai para 0,56, indicando
uma ausência de progressividade de alíquotas, as quais são sempre proporcio-
nais, o que colabora para a incidência regressiva do imposto (REZENDE, 2021).
O ITBI e ITCMD são dois impostos sobre transferências patrimoniais. O
ITBI é de competência municipal, sendo baseado no artigo 156 da Constituição
Federal e cobrado em transferências não gratuitas de imóveis entre pessoas vivas
(ou inter vivos). O ITCMD, incidente sobre heranças e doações, é um tributo de
competência impositiva dos estados e do Distrito Federal. Esses dois impostos
sobre patrimônio tem a irrisória arrecadação de 0,36% do PIB, conforme tabela 1.

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Em um país de enorme concentração de renda e de riqueza, o único
tributo sobre heranças e doações (ITCMD) está limitado à alíquota de 8%,
conforme Resolução nº 9, de 1992, do Senador Federal. Ainda que a resolu-
ção permita aos “Estados estabelecer a sua progressividade, embora o texto
constitucional já fosse suficiente para assegurar as alíquotas progressivas”
(REZENDE, 2021, p. 285), isso praticamente não ocorre na maioria das uni-
dades da federação, conforme revela Carvalho Jr. (2018b).
Os dados do Carvalho Jr. (2018b) demonstram que nas 27 unidades da
federação, em 2017, apenas 10 estados praticavam a alíquota máxima permitida
de 8%, ainda assim sem o critério da progressividade. De acordo com o autor,
“o Rio Grande do Sul e Distrito Federal são exemplos de unidades da federa-
ção que aplicam alíquotas progressivas até 6%, enquanto o Tocantins, Ceará,
Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato
Grosso e Goiás aplicam a alíquota máxima de 8%” (CARVALHO JR., 2018,
p. 466). Assevera Carvalho Jr. (2018, p. 466) que “apesar da sua representativi-
dade no PIB nacional, os estados de São Paulo e Paraná ainda aplicam alíquota
proporcional de 4%, enquanto Minas Gerais aplica alíquota de 5%”. Ou seja,
os dados são evidentes para demonstrar que, além da baixa arrecadação do
imposto, há um claro favorecimento, no Brasil, das classes proprietárias, com
subtributação patrimonial, agravando a concentração de renda e riqueza no país.
Rezende (2021) chama atenção para insignificante arrecadação do ITBI
(0,23% do PIB, conforme tabela 1) que oscila em conformidade com a especula-
ção imobiliária no país. O autor detalha as polêmicas jurídicas da “Súmula nº 656
do STF, aprovada em 2003, que diz ser inconstitucional lei que estabelece alíquo-
tas progressivas para o ITBI com base no valor venal do imóvel” (REZENDE,
2021, p. 335). Embora, em 2013, no julgamento do Recurso Extraordinário
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 129

562.045/RS, a suprema corte tenha reconhecido a possibilidade da adoção de


alíquota progressiva para o imposto, o que tem prevalecido é uma insegurança
jurídica, conforme Rezende (2021), levando os municípios a adotar baixas alí-
quotas do ITBI, tendo em vista a impossibilidade da sua progressividade.
Apesar da enorme concentração fundiária no país, o único tributo sobre a
propriedade rural, o ITR, arrecadou o insignificante valor de R$ 2,17 bilhões em
2021, o que equivale a 0,08% da carga tributária no Brasil. O ITR é de compe-
tência da União, conforme o art. 153 da CF de 198855, sendo que foi instituído
pela Lei nº 9.393/96 e regulamentado pelo Decreto Federal nº 4.382/02. O
imposto é cobrado dos proprietários rurais e a receita obtida pela arrecadação é
dividida de forma igual entre a União e o município onde se localiza a proprie-
dade. Ademais, nos casos em que os municípios firmem convênio com a União
para fiscalizar os tributos, podem ficar integralmente com a arrecadação do ITR.
Leão e Frias (2016) apontam uma “série de equívocos” na política tri-
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butação da terra, que, na prática, contribui para sonegação do tributo e a


subtributação do latifúndio no Brasil. A começar que “o montante do tributo
é calculado apenas com base em declaração do proprietário contribuinte, não
havendo uma base de dados estatal, abrangente de todo o território, que possa
ser usada em contraponto às informações fornecidas pelos donos das terras”
(LEÃO; FRIAS, 2016, p. 108). Tal situação, favorece a evasão fiscal e, assim,
o tributo sobre propriedade rural, criado no século XIX, segue sendo lançado
por declaração. Leão e Frias (2016) destacam que historicamente nunca houve
a fiscalização do Estado no sentido de averiguar a integralidade e veracidade
das informações dos proprietários para fins do recolhimento do ITR.
De acordo com os autores, “a sonegação do tributo ocorre por meio de
declaração que informa números falsos do valor da terra, do grau de utilização
do solo e também por meio da declaração de porcentagem de área de preserva-
ção, que é área não tributável, maior que a real” (LEÃO; FRIAS, 2016, p. 108).
Na realidade, como destacam Farias, Silva e Leite (2018, p. 408), o ITR
nunca teve seu “potencial plenamente aproveitado, por razões diversas, desde
a chamada falta de ‘vontade política’ (arranjo entre os interesses das elites
rurais e o governo); ausência de fiscalização adequada; e precário sistema de
arrecadação (ausência de cadastro público unificado), que ampliou a evasão
fiscal [...]”. Para os autores, essas razões têm raízes no processo histórico de
constituição do Estado Nacional, marcadas pelo patrimonialismo, a não reali-
zação da reforma agrária e o pacto agrário de hegemonia política. E apontam

55 Na realidade ITR tem sua origem na República de 1891 e, ao longo de sua história, “foi competência dos
Estados e depois dos municípios, sendo atribuídas finalidades extrafiscais desde o Estatuto da Terra de
1964 e a competência de sua instituição e arrecadação pela União, a partir da CF/88, teve por finalidade
permitir sua atuação como instrumento de reforma agrária no nível nacional” (LEÃO; FRIAS, 2016, p. 103).
130

que a “a persistência da pobreza, o avanço dos bolsões de miséria, a perpetua-


ção das desigualdades sociais, assim como as condições de trabalho, ampliam
as tensões agrárias e impõem restruturação do tributo rural” (FARIAS; SILVA;
LEITE, 2018, p. 408). Com essa perspectiva é que o debate do ITR deve estar
diretamente relacionado à reforma agrária, como instrumento fundamental
para inibir e onerar o latifúndio no país.
A tributação sobre bens e serviços, ou seja, sobre a base econômica do
consumo, é a que melhor expressa a regressividade do sistema tributário
brasileiro e sua enorme carga de tributos indiretos, que compromete de forma
considerável o fundo de consumo em contexto de superexploração da força
de trabalho no Brasil. De acordo com a tabela 1, os tributos incidentes sobre
bens e serviços ou que possam ser repassados ao consumo respondem por
59,2% da arrecadação tributária brasileira.
A tabela 1 revela que o Imposto sobre Operações relativas à Circulação

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de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) é o tributo de maior arrecadação
no país, sendo de competência dos Estados e do DF. O ICMS foi responsável
por 19,52% do montante da arrecadação tributária no país, em 2021, sendo
uma peculiaridade do sistema tributário brasileiro em relação aos sistemas de
outros países, visto não ser comum o principal imposto de um país pertencer
a uma esfera subnacional em países organizados em forma de federação.
Como já destacado em estudos anteriores (SALVADOR, 2014), o ICMS
é essencialmente um tributo regressivo, que incide diretamente sobre bens
e serviços, onerando a população mais pobre do país. Uma das principais
questões sobre este imposto diz respeito às inúmeras alíquotas envolvidas
e à falta de harmonização da legislação no país. As alíquotas das operações
internas são estabelecidas pelos Estados e pelo DF, podendo ser seletivas em
relação à essencialidade do bem, isto é, produtos básicos deveriam ter alíquota
menores, enquanto os supérfluos deveriam ter alíquotas maiores, conferindo
assim maior justiça fiscal.
Contudo, a situação que predomina no país é exatamente o inverso, com
os bens supérfluos sendo menos tributados do que os bens essenciais (LIMA,
2009). O ICMS responde por 45% dos tributos que incidem sobre os alimentos
(SALVADOR, 2014). Não há harmonização entre as normas desse imposto
e, na prática, o ICMS é regulamentado por 27 legislações. Ademais, é prática
usual no Brasil a cobrança por dentro, isto é, os tributos incidem sobre eles
mesmos, de tal forma que as alíquotas nominais são menores do que as efetivas
(BRASIL, 2009). Sem falar dos problemas federativos vinculados ao ICMS
devido à Lei Kandir (Lei complementar nº 87, de 1996), que desonerou o
ICMS nas operações de produtos primários e semielaborados destinados ao
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exterior. Essa lei implicou perdas de receitas estaduais e municipais para os


entes que possuíam expressiva arrecadação de ICMS sobre as exportações de
produtos primários e semielaborados e beneficiou a agroindústria.
A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) entrou
em vigência em 1992, substituindo o Fundo de Investimento Social (Finsocial).
A Cofins está prevista no art. 195 da Constituição Federal e é regulamentada pela
Lei Complementar nº 70/91. Essa contribuição federal tem como fato gerador a
venda de mercadorias ou serviços de qualquer natureza, a percepção de rendas
ou receitas operacionais e não operacionais e de receitas patrimoniais das pessoas
jurídicas. Em decorrência da Lei nº 10.833/03, a Cofins teve sua alíquota majo-
rada de 3% para 7,25%, passando a ser não cumulativa (SALVADOR, 2010).56
Cabe ressaltar que a Cofins é um dos principais tributos vinculados ao
financiamento da Seguridade Social no Brasil (previdência, assistência social
e saúde), arrecadando em 2021, R$ 269,71 bilhões (ver tabela 1), o que signi-
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ficou 22,78% do Orçamento da Seguridade Social pago naquele ano57. Este é


um tributo de elevada regressividade tributária, que é transferido ao preço de
bens e serviços, o que limita os efeitos redistributivos das políticas da segu-
ridade social no Brasil, pois são os mais pobres que financiam seus próprios
programas sociais (SALVADOR, 2010a).
Na tributação sobre consumo, tem-se a contribuição patronal para o
INSS, que, em 2021, respondeu por 10,63% da carga tributária. Trata-se do
principal encargo dos empregadores para o financiamento da previdência
social e corresponde a 20% sobre o total das remunerações pagas ou credita-
das, a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados empregados que lhes
prestem serviços, acrescidos de alíquota de 1% a 3% para o financiamento
das prestações por acidentes de trabalho, conforme o índice de risco. Ainda
que nos últimos anos, no país, venha ocorrendo um processo de “desonera-
ção da folha de pagamento”, corroborando o desmonte do financiamento da
Seguridade Social (SALVADOR, 2017).
Em síntese, a análise da carga tributária brasileira revela a brutal regres-
sividade do sistema tributário do país, que onera fortemente a classe tra-
balhadora, em particular, a mais pauperizada. Um estudo do IPEA (2011)
destaca a concentração da carga tributária em tributos indiretos e cumula-
tivos, pois mais da metade da arrecadação provém de tributos que incidem
sobre bens e serviços, havendo baixa tributação sobre a renda e o patrimônio.

56 Um tributo cumulativo é aquele que incide em todas as etapas intermediárias dos processos produtivos
ou de comercialização de determinado bem, isto é, incide sobre o próprio tributo anteriormente pago, da
origem até o consumidor final, ou seja, um tributo sobre o valor adicionado. Este sistema difere-se do tributo
sobre o valor adicionado, que é não cumulativo, pois é um tributo que, na etapa subsequente dos processos
produtivos ou de comercialização, não incide sobre o mesmo tributo recolhido na etapa anterior.
57 Dados extraídos do Sistema Siga Brasil.
132

Segundo informações extraídas da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de


2008/2009 pelo Ipea, estima-se que 10% das famílias mais pobres do Brasil
destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto
10% das famílias mais ricas gastam 21% da renda em tributos (IPEA, 2011).
Como destaca Rezende (2021), a estrutura tributária do Brasil demonstra
o caráter subordinado e dependente das classes dominantes, que historicamente
estão associadas aos pólos hegemônicos do imperialismo, com exploração
exacerbada do força de trabalho e com a exclusão da participação popular
das decisões políticas e econômicas da nação.

O debate tributário no (novo) Governo Lula

No tempo presente, já sob o terceiro governo do presidente Lula (2023-


2026), vêm sendo destacadas duas Propostas de Emendas à Constituição (PECs):

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45/2019 (Câmara dos Deputados) e 110/2019 (Senado Federal)58. Ambas as pro-
postas retomam discussões anteriores e que já analisamos criticamente59 (SAL-
VADOR, 2010b), pois têm como essência a chamada simplificação tributária
com a unificação de um conjuntos de tributos e não enfrentamento da principal
questão do sistema tributário brasileiro, que é a sua elevada regressividade.
Convém lembrar que não há nada de inovador nas duas PECs em discus-
são no parlamento brasileiro. Introíni (2023) lembra que as atuais propostas
de mudanças no sistema tributário brasileiro são variações das tentativas de
aplicação das recomendações do Consenso de Washington às reformas fis-
cais dos países periféricos. A questão da simplificação tributação é impulsio-
nada a partir de meados da década de 1990, no contexto das transformações
estruturais do capitalismo, destacando a combinação da abertura comercial
e sobrevalorização do real frente ao dólar, que expôs a indústria nacional a
condições ainda mais adversas na competição internacional.
O autor destaca que as propostas de simplificação no sistema tributário
vão ao encontro dos interesses da burguesia no Brasil. Introíni (2023) aponta
como marco a reunião ocorrida na sede da Confederação Nacional da Indústria
(CNI), em maio de 1995, na qual “elegeram o tema do aumento da competi-
tividade como norteador de sua estratégia e a redução do ‘custo-Brasil’ como

58 Um comparativo entre as duas PECs pode ser visto em Neto et al. (2019). Cabe destacar que a PEC 45 de
2019, tem como “mentor intelectual” Bernard Appy, atual secretário extraordinário para Reforma Tributária do
Ministério da Fazenda. A PEC 45 foi iniciativa do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) que tem com parceiros
institucionais Itaú, Natura, Coca-Cola Huawei, Souza Cruz, Votorantim, Braskem, Vale e Ambev, conforme pode
ser conferido em https://ccif.com.br/parceiros/. Ainda que o Centro se intitule “uma think tank independente”.
59 Como foi o caso da famigerada PEC 233/2008 que desmontava por completo a estrutura de financiamento
das políticas sociais engendrada na CF de 1988, ao extinguir as contribuições sociais exclusivas de finan-
ciamento das políticas sociais, em particular da Seguridade Social.
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a ideia síntese em torno da qual iriam compor a sua pauta de reivindicações”


(INTROÍNI, 2023, p. 10). Nesse diapasão, encontra-se a gênese das propos-
tas que visam à simplificação do sistema tributário e que atualmente estão
expressas nas PECs 45 e 110 de 2019.
O autor lembra que, em agosto de 1995, o presidente Fernando Henrique
Cardoso apresentou a PEC 175 e elencou, na Exposição de Motivos, que o
objetivo da PEC era o de simplificar o sistema tributário brasileiro, “diminuir
o Custo-Brasil e ampliar a competitividade de nossa economia”. O debate
público na questão tributária brasileira passa, desde então, pela priorização dos
tributos indiretos e de tratar apenas secundariamente dos tributos sobre a renda
e o patrimônio. Assim, “nessa linha de continuidade, não interrompida pela
mudança de governo, foram apresentadas a PEC 383/2001 (governo FHC) e
as PEC 41/2003 e 233/2008 (governo Lula)”, conforme Introíni (2023, p. 11).
Na prática, as duas PECs em anáslise extinguem uma série de tributos para
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criação de uma espécie de Imposto sobre Valor Adicionado ou Agregado (IVA)


denominado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), além de um imposto especí-
fico sobre alguns bens e serviços (Imposto Seletivo), uma espécie excise taxes.
Conforme Neto et al. (2019):

PEC 110: são substituídos nove tributos, IPI, IOF, PIS, Pasep, Cofins,
CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS, ISS;
PEC 45: são substituídos cinco tributos, IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS.

Pela PEC 45/2019, seria criado um único IBS ou Imposto sobre Valor
Agregado (IVA), para governos federal, estaduais e municipais, enquanto, de
acordo com PEC 110/2019, a proposta seria de um IVA dual, sendo um para a
União e outro para entes subnacionais. A “cereja do bolo” em ambas as pro-
postas é a criação de cashback para devolução de imposto para as famílias de
baixa renda, a ser definido por Lei Complementar, após aprovação das PECs.
O chamado imposto seletivo na PEC 110/2019 seria arrecadatório e
cobrado sobre operações com petróleo e seus derivados, combustíveis e
lubrificantes de qualquer origem, gás natural, cigarros e outros produtos do
fumo, energia elétrica, serviços de telecomunicações, bebidas alcoólicas e
não alcoólicas, e veículos automotores novos, terrestres, aquáticos e aéreos.
Enquanto na PEC 45/2019, este imposto teria uma característica extrafiscal e
seria cobrado sobre determinados bens, serviços ou direitos, com o objetivo
de desestimular o consumo, cabendo à lei ou medida provisória instituidora
definir os bens, serviços ou direitos tributados (NETO et al., 2019).
As modificações apontadas nas respectivas propostas, além de não resol-
verem a elevada carga tributária indireta no Brasil, caso sejam aprovadas,
sepultam a cambaleante diversidade das fontes de financiamento da seguridade
134

social, ainda inscritas no artigo 195 da CF e uma parcela importante do finan-


ciamento da educação básica (salário-educação). As alterações não asseguram,
de forma explicita, os recursos para o financiamento das políticas sociais
no Brasil, que passam a disputar com os interesses dos donos do capital no
orçamento fiscal as fatias dos recursos do fundo público.
A CCiF, mentora da PEC 45/2019, divulgou no seu site uma nota técnica
afirmando que a reforma tributária poderia gerar um aumento, em 15 anos, de
20,2% no PIB do Brasil. Esse posicionamento mereceu críticas de Afonso;
Ardeo e Biasoto (2020), que à luz dos fundamentos da economia e da eco-
nometria, desmontaram as hipóteses do modelo, a metodologia utilizada e a
forma como são mensurados e falaciosos os resultados econômicos apontados
na nota técnica divulgada pela CCiF, em defesa da PEC 45/2019.
Além disso, na dimensão econômica “os estudos têm mostrado que não
há relação empírica entre crescimento econômico e a redução dos impostos

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praticada sobre os mais ricos e sobre as empresas [...] não existe relação
empírica sistemática entre carga tributária, nos níveis observados ao redor
do mundo, e crescimento econômico” (PIRES, 2022, p. 5).
Para além de não tratarem das questões centrais da regressividade do
sistema tributário, em particular, as necessárias modificações na tabela do
imposto de renda, que deveria sujeitar ao pagamento de tributos todos os
rendimentos recebidos pelos capitalistas no Brasil, principalmente aqueles
originários do pagamento de lucros, dividendos e juros e não tomar as devidas
iniciativas no sentido da regulamentação do Imposto sobre Grande Fortunas
(IGF), a questão tributária no Brasil também não vem sendo pautada por
temas fundamentais como a tributação dos produtos vinculados à esfera da
financeirização e o chamado “imposto verde”.
De forma simplificada, o único tributo que tem alguma incidência sobre
movimentação financeira diretamente é o Imposto sobre Operação Financei-
ras (IOF), que arrecada somente 0,55% do PIB (ver tabela 1) e ainda com
parcela expressiva das receitas advindas da tributação sobre operações de
crédito. Chama atenção, no relatório sobre a arrecadação de tributos da Receita
Federal, o baixo impacto do imposto de renda sobre produtos oriundos do
mercado financeiro. Em 2022, o Imposto de Renda recolhido sobre as ope-
rações de SWAP, no mercado financeiro, não alcançou R$ 2 bilhões e o IR
sobre os fundos de renda fixa foi de apenas R$ 33,4 bilhões (RFB, 2022b).
Portanto, apesar de parte importante da economia estar diretamente vinculada
à financeirização e à criação de novos produtos financeiros pelas instituições
bancárias, esses ainda não foram devidamente alcançados pela tributação.
Em nosso país, em que pese uma legislação ambiental bastante avançada,
a existência de tributos que incidam, favoravelmente, sobre meio ambiente
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é insignificante. Na área federal, a Contribuição de Intervenção no Domínio


Econômico (Cide-combustíveis) poderia ser utilizada nesse sentido, assim
como a adoção da seletividade no Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI) e no ICMS, de competência dos estados.
A questão tributária e o fundo público no Brasil são expressões de país
dependente no capitalismo mundial. A partir de aportes marxianos, Behring
(2021) destaca que o fundo público assume tarefas e proporções cada vez
maiores no capitalismo contemporâneo, em que predominam o neoliberalismo
e a financeirização, em que pesem todas as odes puramente ideológicas em
defesa do estado mínimo, que vêm sendo amplamente difundidas desde década
de 1980. Para autora, o fundo público, no capitalismo maduro, busca garantir
“as condições de rotação e valorização do capital e assegurar a subsunção do
trabalho ao capital em condições precárias, ou seja, para a máxima exploração”
(BEHRING, 2021, p. 117).
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O Brasil, segundo Marini (2011), um dos ideólogos da Teoria Marxista


da Dependência (TMD), enquanto país economicamente dependente e, com
histórico colonial, vai precisar de se submeter aos interesses do capital estran-
geiro. Com isso, na divisão internacional do trabalho (DIT), a troca não é
igualitária, sendo assim, para compensar a diferença de valorização do capital
externo e do capital brasileiro, que responde à exportação de commodities,
torna-se uma disputa injusta, em que o subdesenvolvimentismo não poderá vir
a ser superado. Nesse contexto é que pode ser compreendida a conformação
do sistema tributário brasileiro e sua “preferência” pela tributação indireta
sobre os mais pobres e os impostos diretos sobre a renda dos trabalhadores,
desonerando os “produtores” de commodities.
Para Marini (2011), são três os mecanismos da superexploração da força
de trabalho: a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho
e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua
força de trabalho. Essa situação configura um modo de produção fundado
exclusivamente na maior exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento
da capacidade produtiva, o que se agrava diante de uma elevada tributação
sobre o salário necessário dos trabalhadores via consumo.
Osorio (2014) destaca a dimensão subsoberana do Estado no capita-
lismo dependente, o que implica a subordinação e associação do capital e das
classes dominantes locais frente ao capital e às classes soberanas dos países
centrais. As debilidades estruturais do capitalismo dependente são compen-
sadas pelo peso das dimensões autoritárias do Estado e do governo. A outra
particularidade está relacionada à superexploração da força de trabalho, em
conformidade com Marini (2011).
136

A superexploração da força de trabalho gera processos produtivos que


tendencialmente ignoram as necessidades da maioria da classe trabalhadora,
direcionando a produção para mercados estrangeiros e/ou para estreitas cama-
das sociais que conformam os reduzidos mercados internos, gerados em meio
à aguda concentração da riqueza (OSÓRIO, 2014).
Carcanholo (2013) elenca os principais componentes teóricos da TMD:
a superexploração da força de trabalho; a troca desigual no comércio interna-
cional; a remessa de renda para economias centrais; a elevada concentração
de renda e riqueza; e o agravamento dos problemas sociais.
Luce (2018) destaca que a dependência, como forma de transferência de
valor, ocorre nas esferas comercial, financeira e tecnológica, que se encontram
imbricadas na produção capitalista contemporânea. O autor destaca como
exemplos de transferências de valor como intercâmbio desigual: a deteriora-
ção dos termos de intercâmbio, que expressa as mais diferentes dependências

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comerciais nas relações de troca entre os países centrais e periféricos; o serviço
da dívida, que, por meio das remessas de juros, expressa mais diretamente
a dependência financeira; as remessas de lucros, royalties e dividendos, que
expressam a dependência tecnológica dos países centrais; e a apropriação da
renda diferenciadas e da renda absoluta dos monopólios dos recursos naturais.
A superexploração da força de trabalho, como destaca Carcanholo (2013),
é uma categoria específica do capitalismo dependente, resultante da inserção
dos países periféricos na lógica mundial da acumulação capitalista. Para autor,
com base na TMD, esses são estruturantes da transferência de valor produ-
zido nos países dependentes, mas que são acumulados no ciclo do capital
das economias centrais, o que requer a superexploração da força de trabalho.
Como explica Marini (2011), isso é uma condição necessária para a corre-
ção do desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas,
tendo como recurso uma maior exploração do trabalhador. Acentua-se a dis-
tribuição regressiva tanto da renda quanto da riqueza e com suas implicações
no financiamento das políticas sociais.
O fundo público, devido às características do capitalismo dependente
brasileiro, é limitado na sua possibilidade de redistribuição de renda e riqueza,
o financiamento, em termos tributários, é regressivo, cobrando proporcional-
mente mais impostos sobre a classe trabalhadora mais pobre, sendo também
mais restritivo no destino dos recursos orçamentários, não universalizando e
ampliando direitos sociais.
As políticas sociais, no Estado dependente brasileiro, são submetidas de
forma estrutural ao ajuste fiscal permanente, que impõe restrições aos gastos
sociais, drenando recursos do fundo público ao capital portador de juros e
fictício, cujos proprietários são credores dos títulos da dívida pública brasileira.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 137

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FUNDO PÚBLICO E DEPENDÊNCIA
Jonathan Henri Sebastião Jaumont
DOI: 10.24824/978652515394.0.141-162

Introdução

No geral, estamos acostumados a sublinhar imediatamente as particula-


ridades latinoamericanas que delineiam a dependência em nosso continente.
Nessa direção, talvez por excesso, parcela importante do debate crítico sobre
nossa formação social acabe por cair em essencialismos sobre nossas especi-
ficidades60. Optamos, então, nesse início, pelo sentido oposto: por explicitar
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aquilo que, fundamentalmente, nos une ao restante do mundo – o que há de


universal nas sociedades contemporâneas.
Do nosso ponto de vista, trata-se do caráter capitalista das sociedades
latinoamericanas. Aqui – como na Ásia, na África, na Europa, na Oceania ou
na América do Norte – é a valorização, acumulação e reprodução do capital
em escala mundial, por meio da produção de mercadorias e mais-valia, que
subjaz o que há de decisivo para o rumo atual de nossas sociedades. Neste
traço encontramos aquilo que define o objetivo central das classes domi-
nantes locais e imperialistas em nosso território e aquilo que funcionaliza o
conjunto das relações sociais em nossas latitudes. É diante da generalização
e do aprofundamento deste movimento societário que se explicam também as
lutas sociais em curso em Nuestra América, e na tentativa de superá-lo, que
se conjugam os sujeitos e projetos rebeldes de nossa história.
Nesse sentido, a produção do grande arsenal de mercadorias latinoame-
ricanas persegue também o excedente de trabalho resultante do assalariamento
nas condições capitalistas – a mais-valia. Tais condições, no entanto, foram
gestadas num longo processo histórico no bojo da acumulação primitiva,
que, na América Latina, coincide com a invasão europeia e a consolidação
do colonialismo no continente61. Se o feudalismo antecedeu o capitalismo na
Europa, o antepassado do capitalismo na América Latina foi colonial. Estes
movimentos foram de uma violência permanente e constitutiva, ao ponto de

60 Refiro-me aqui em especial à parcelas do campo pós-colonial e decolonial em voga na atualidade.


61 “Se a colonização da América Latina está relacionada com algum movimento fundamental da história, esse
movimento é a acumulação primitiva em escala mundial, entendida como um processo que, além de implicar
a acumulação sem precedentes em um dos polos do sistema, supõe necessariamente a desacumulação,
também sem precedentes, no outro extremo (CUEVA, 1983, p. 24)”.
142

Marx lhe conferir o papel principal nos acontecimentos que forjaram o modo
de produção capitalista (MARX, 2013, p. 786).
Isto posto, se o mundo contemporâneo é, segundo Ellen Wood, “um
mundo de capitalismo mais ou menos universal (WOOD, 2014, p. 99)”, a
dinâmica mundial que gerou esta realidade não é apenas homogeneizadora.
Na realidade, a unidade existente é assegurada através da constituição de
formas particulares de reprodução do capital e as formações imperialistas e
dependentes são exemplos emblemáticos da distância possível entre facetas
deste mesmo processo de expansão e acumulação que universalizou o capi-
talismo no mundo. Nas palavras de Jaime Osorio:

El universal capitalismo, en su despliegue histórico, reclama ser pensado


en la realidad efectiva de los particulares que han tomado forma en su
despliegue, como la conformación del capitalismo en un sistema mundial

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y con diversos capitalismos operando de manera diversa en la acumulación
mundial, economias centrales o imperialistas, economías periféricas o
dependientes. El capitalismo se constituye así en universalidad diferen-
ciada, lo que exige de nuevos conceptos y categorias para ser aprehendido,
en la medida que en dicho hacerse se integran procesos y relaciones que
redefinen el universal, y porque los particulares generan diversidad real,
novedad efectiva de lo distinto, haciendo del capitalismo unidad de lo
diverso (OSORIO, 2013, p. 20).

Esse artigo discute as características e o papel do fundo público nas socie-


dades dependentes. Ou seja, os traços próprios da operação do fundo na reali-
dade periférica latinoamericana. Destacamos a seguir três aspectos fundamentais
que nos parecem decisivos. Primeiro, explicitamos, a subsoberania do fundo
público na América Latina; depois, sua articulação com os padrões de reprodu-
ção do capital; e, por fim, as relações entre racismo, superexploração e fundo
público. Cada um desses pontos merece um apartado nas próximas páginas.

Fundo público, transferências de valor e subsoberania

Herdamos do processo de expansão do capitalismo pelo globo, relações


sociais capitalistas, agora sim, particulares. Por um lado, a subordinação própria
de nossas classes dominantes no sistema mundial capitalista gestou um horizonte
burguês intrinsecamente ligado à reprodução de tal subordinação. A transição
do colonialismo ao capitalismo dependente, no fundo, acontece sem rupturas
estruturais com o estatuto colonial (FERNANDES, 2005). Este é um elemento
decisivo, pois apesar de estarmos agora diante de nações formalmente indepen-
dentes, estas permanecem subordinadas às nações centrais (MARINI, 2005).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 143

Se tomarmos o Brasil, por exemplo, o fundamento por trás disto se


encontra nas relações sociais que, apesar da Independência, permaneceram
intactas. Neste sentido, as classes dominantes do Império são as mesmas do
período colonial, enquanto, na ausência da abolição da escravatura, a classe
trabalhadora segue escravizada. Não há, portanto, qualquer surpresa nas per-
manências societárias que marcam este momento. A subordinação brasileira é
fruto da reprodução burguesa do horizonte dominante moldado por séculos de
colonialismo. As classes dominantes do Brasil surgiram, se consolidaram – e
seguem se reproduzindo até hoje – lucrando muito, subordinadas às classes
dominantes imperialistas e, mesmo que de maneira conflituosa por vezes,
estas classes vinculam seu horizonte às necessidades imperialistas, já que
fazendo-o concentram poder e riqueza.
A subordinação, no entanto, é acompanhada no âmbito de nossas forma-
ções sociais de diversos mecanismos de transferência de valor das economias
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dependentes para os centros imperialistas. As trocas desiguais no mercado


internacional, o repatriamento de lucros e dividendos, a eternização do paga-
mento de dívidas são apenas alguns exemplos das modalidades incorporadas
pela sangria de riquezas para fora de nossas sociedades. Tais procedimentos,
dado o entreguismo de nossas classes dominantes, é facilitada pela legislação
favorável e a ausência de taxação adequada. Neste sentido, as transferências
de valor configuram também uma destituição de recursos decisivos para o
fundo público das sociedades dependentes.
O Estado dependente, de sua parte, se erige sobre estas relações sociais
e sobre este horizonte dominante. Não é de se estranhar, portanto, que clas-
ses dominantes subordinadas no sistema capitalista mundial fundem um
Estado subsoberano (OSORIO, 2014). Para Beatriz Paiva, Mirella Rocha
e Dilceane Carraro, “O Estado, portanto, historicamente constituiu-se como
protagonista do projeto de (sub) desenvolvimento na periferia (2010, p.
164)”. Este é um elemento fundamental para enquadrar a compreensão do
fundo público no capitalismo dependente. Contamos, na América Latina,
com menos margem soberana para a orientação de nosso fundo público. Na
ausência de um bloco no poder revolucionário – disposto a romper com o
capitalismo dependente – o fundo público se vê estruturalmente compro-
metido com a reprodução da dependência.
O ambiente de ajuste fiscal permanente vigente (BEHRING, 2008)
demonstra a dimensão da subserviência desde a qual opera o fundo público
dependente. Com efeito, nos últimos 30 anos, independente do matiz dos
governos brasileiros, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma, Temer e
Bolsonaro atuaram sob esse signo. A situação brasileira não é exceção,
mas a regra na América Latina. Apenas governos, francamente, populares e
144

dispostos a levar adiante rupturas com o capitalismo dependente enfrentaram


o tema da austeridade fiscal.
Para o Brasil, isso significou que saíram do Orçamento Público R$ 7,7
trilhões no período 2011-2022 para o pagamento de juros, encargos e amor-
tizações da dívida. Ou seja, praticamente 1/4 do orçamento total brasileiro
desse período – 24% dos quase R$ 32 trilhões entre 2011-2022 – foi gasto
para a remuneração de capital financeiro. Num momento de crise econômica,
política e social aguda, como o vigente no período, fica nítido o grau de
sangria de nossos recursos que significa a subsoberania para o fundo público
brasileiro. Sangria esta que, em grande medida, só representa um mecanismo
fiscal financeirizado de transferência de valor para os centros imperialistas.
Recursos absolutamente fundamentais para as sociedades dependentes
são, portanto, direcionados anualmente para a valorização do capital finan-
ceirizado. São recursos que poderiam conformar patamares superiores para

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sistemas de proteção social, políticas de emprego e renda, moradia, crédito
ou segurança alimentar que são simplesmente expropriados do povo lati-
noamericano pela soberania que nos falta. A pressão imperialista ao longo
das décadas de 1980-90 para o ajuste neoliberal das economias e do Estado
latinoamericano viabilizou, justamente, como uma de suas dimensões funda-
mentais, as medidas necessárias à pilhagem pelo grande capital de recursos
do fundo público através das dívidas públicas.
Tal subsoberania fica ainda mais nítida se levarmos em conta que países
imperialistas ostentam dívidas maiores que as dívidas latinoamericanas, mas
não comprometem parcelas tão significativas de seu fundo público com o
pagamento das mesmas. Este é um traço de sua soberania que permite definir
que o fundo público das sociedades centrais seja destinado para a reprodução
de sua hegemonia no sistema capitalista mundial e que tal posição seja par-
cialmente revertida para o bem-estar das populações centrais. Tatiana Brettas
(2020) confirma que:

[…] o Japão, por exemplo, país que tinha uma dívida equivalente a mais
de duas vezes o seu PIB em 2011 (209,20%), gastou menos de 1% com
o pagamento de juros. O Brasil, que estava em 12º lugar no ranking dos
países mais endividados, foi o segundo país que mais gastou com os juros
da dívida em relação ao PIB […]. Segundo dados da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2017 a dívida
pública bruta brasileira estava em 74%, e as despesas com juros, 6,1%
do PIB (ODCE, 2018). Estes dados mostram que, embora seja possível
observar uma tendência nos países capitalistas como um todo de buscar
transferir os prejuízos do setor privado para os Estados e, mais do que isso,
de usar o recurso à dívida para realizar este objetivo, existem contornos
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 145

diferenciados em cada país. Nos Estados que ocupam uma posição, em


alguma medida, mais dependente frente ao imperialismo e em que há
maiores fragilidades, inclusive do ponto de vista da organização dos tra-
balhadores, a sangria de recursos para o pagamento de juros é maior em
relação ao orçamento total (p. 90).

Elaine Behring chega a conclusões muito parecidas no estudo compara-


tivo do fundo público francês com o brasileiro:

A relação dívida/PIB da França, em 2010, encontrava-se na marca de 82,3%


e saltou para 86%, em 2011 (Eurostat, 11/6/2012). Esse mesmo indicador
para o Brasil foi, segundo o Relatório do TCU sobre o ano-exercício de
2010, de 55%, considerando o conceito de Dívida Bruta do Governo-Geral
(envolvendo União, estados e municípios, mas excluindo estatais e o Banco
Central) […]. Porém, a questão central é: apesar de a saúde econômica
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brasileira apresentar-se, segundo todos os índices, aparentemente melhor,


o país canaliza 38,6% de seus recursos orçamentários para o pagamento de
juros, encargos e amortizações da dívida pública […].
A França realizou um dispêndio de 5,6% de seu orçamento público quanto
aos seus compromissos com a dívida no mesmo ano de 2010, o que repre-
sentou 2,09% do PIB. No Brasil, os encargos com a dívida são o primeiro
item do gasto público, estando à frente da seguridade social. Na França, estes
passaram a ser o segundo maior item no gasto fiscal (Orçamento do Estado),
depois da educação nacional. Se incluímos a Sécurité Sociale — Regime
General, os encargos com a dívida caem para o quinto lugar […].
A França, ao que tudo indica, realiza uma gestão com maior soberania de sua
dívida, dispondo de margens de manobra diferenciadas e maiores, inclusive
porque compõe os núcleos decisórios das instituições multilaterais, com
relações viscerais com os credores. Outro aspecto que possivelmente corro-
bora para essa margem maior de manobra é a natureza da dívida francesa,
de médio e longo prazo, e menos sensível à especulação, em que pese as
agências de notação de risco desferirem duros golpes sobre o país no último
período, amplamente divulgados na imprensa. Um registro fundamental é
o de que a França não pratica taxas de juros escorchantes: as taxas de juros
estiveram em 2010 fixadas em 0,75% em curto prazo, e em 3,11% em longo
prazo. Essa mesma orientação não se aplica aos países periféricos, dentre
os quais o Brasil, que vem mantendo taxas anuais de juros em patamares
elevadíssimos para manter seus níveis de atratividade dos capitais, com forte
impacto na dívida pública e privada. As taxas de juros oscilaram, em 2010,
entre 8,65% (janeiro de 2010) e 10,66% (dezembro de 2010) (2013, p. 23-26).
146

Fundo público e padrão de reprodução do capital

O Estado subsoberano dependente, como vimos, exerce seu papel sobre esta
imbricação subordinada particular da dominação da burguesia local com as bur-
guesias imperialistas. Nesse sentido, esse Estado reflete e fortalece a dependência
como projeto dominante e é produto e produtor das relações de dependência vigen-
tes. A centralidade do Estado no capitalismo dependente é, aliás agigantado pelas
debilidades da própria burguesia local, que requer do Estado um protagonismo
central no desenvolvimento capitalista em nossas sociedades (IANNI, 2004).
Isto posto, é preciso compreender que nossa subordinação no sistema
capitalista mundial nos dá tarefas concretas na divisão internacional do traba-
lho. A reestruturação dos monopólios imperialistas, apoiados por seus Estados
nacionais, viabilizou uma nova fase da internacionalização do capital, baseada
na mundialização do processo de produção e na nova capacidade de atribuir

Editora CRV - Proibida a comercialização


globalmente etapas do processo produtivo em função de suas particularidades
concretas, das necessidades de valorização do capital e das vantagens socioe-
conômicas, políticas e geográficas existentes nos diferentes países do globo.
Ao associarem – impositiva e/ou consensualmente – uma plêiade de
burguesias locais aos seus interesses, as classes dominantes imperialistas –
principalmente, estadunidense, alemã e japonesa, na atualidade – asseguram
posições dominantes no seio do sistema capitalista. Como o encaramos, por-
tanto, esta estrutura se organiza de maneira conflituosa em torno de classes
dominantes imperialistas. E estas classes disputam a hegemonia deste sistema
para estruturar e reproduzir uma divisão internacional do trabalho que atenda
seus interesses societários.
Nestes termos, não existe sistema mundial capitalista em abstrato. O
que se quer expressar com este termo é, na realidade, o resultado da luta de
classes mundializada desde o avanço das forças produtivas em determinado
momento da História humana. Ou seja, desde a Revolução Industrial inglesa
do século XIX até a atual era dos monopólios e suas cadeias de produção
mundializadas, o modo de produção especificamente capitalista exigiu que
as complexas e conflituosas formas de acomodação e imposição de interes-
ses sociais, políticos e econômicos ganhassem dimensões mundiais e, ao se
constituírem a partir de necessidades produtivas e reprodutivas do conjunto
das classes sociais envolvidas, conformaram uma divisão internacional do
trabalho mais ou menos proveitosa para estas mesmas classes como síntese
da correlação de forças e do desenvolvimento capitalista vigentes.
Do ponto de vista das formações sociais, a divisão internacional do traba-
lho se apresenta como um conjunto de oportunidades e exigências comerciais e
produtivas que, ao serem assumidas, moldam distintos padrões de reprodução
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 147

do capital. Neste sentido, estes padrões são o resultado do esforço produtivo


societário que, em certa medida, se especializa para responder às demandas
colocadas pela divisão internacional do trabalho. A distância entre imperia-
lismo e dependência demonstra apenas o abismo existente entre as tarefas
assumidas por cada formação social. Historicamente, no entanto, a divisão
internacional do trabalho não surge de escolhas autônomas das formações
sociais, mas, da expansão do capitalismo a partir de seus centros imperialistas.
Isto nos leva portanto a interrogar os critérios que levam certas formações a
assumir determinadas tarefas e não outras. Para reformular em termos mais
realistas, é preciso compreender o que leva as classes dominantes imperia-
listas a monopolizar certas tarefas produtivas enquanto relega outras às suas
semelhantes periféricas e subordinadas. Haveria que se perguntar, então, que
tipo de interesses dominantes estão em jogo e como é possível garanti-los.
Bem, a disputa pela hegemonia mundial tem lugar em muitos campos –
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político, diplomático ou militar, por exemplo – mas nos interessa particularmente


por sua centralidade o terreno econômico. Neste âmbito, as classes dominantes
imperialistas lutam para direcionar para si lucros extraordinários. Estes se afir-
mam aqui como principal finalidade e alicerce da liderança econômica mundial.
A busca por tais lucros está envolta, portanto, numa acirrada concorrência
intercapitalista e acontece, principalmente, mas não somente, em torno da redu-
ção do valor das mercadorias produzidas e de sua alavanca decisiva: o aumento
da produtividade do trabalho. Como sabemos, desde Marx, “dados os funda-
mentos gerais do sistema capitalista, no curso da acumulação chega-se sempre
a um ponto em que o desenvolvimento da produtividade do trabalho social se
converte na mais poderosa alavanca da acumulação” (MARX, 2013, p. 698).
O empenho para aumentar a produtividade do trabalho no bojo de suas
empresas leva aquelas burguesias a direcionar seus esforços para três elementos
fundamentais: o valor da força de trabalho empregada, a capacidade técnica
do instrumento de trabalho adotado e a disponibilidade do objeto de trabalho
necessário (ECHEVERRÍA, 2017). A combinação destas três determinantes gera
produtividades desiguais e, com isto, os capitalistas cuja produtividade é maior
que a média social se apropriam de um lucro adicional, advindo da perda sofrida
por aqueles capitalistas que operam abaixo da produtividade social média.
As causas que propiciam tal superioridade produtiva são portanto abso-
lutamente estratégicas para as classes dominantes em disputa e as condições
para o acesso às mesmas passam por mediações que extrapolam o terreno
estritamente econômico e o âmbito dos capitalistas individuais. Com efeito,
a busca por tais requisitos, tendo por base o tema da produtividade daqueles
capitais individuais, na realidade, encontra nos Estados nacionais – e mesmo
em articulações interestatais – as capacidades necessárias ao seu acesso, mas
148

também ao seu monopólio, impedindo, assim, que os mesmos se generalizem


na produção social. Disto decorre a importância de entender o problema de
maneira ampla, já que os dilemas da concorrência intercapitalista com suas
requisições pelo acesso e monopólio de matérias-primas, fontes de energia,
força de trabalho e maquinário perpassam a atuação política, diplomática,
militar e cultural dos Estados nacionais.
Para Bolívar Echeverría, no entanto, a história do conflito intercapitalista
em torno da apropriação de lucros extraordinários demonstra que “la renta
tecnológica ha vencido ya a la renta de la tierra, y la explotación de fuerza de
trabajo excepcionalmente barata o explotable nos es ya monopolio de ningún
conglomerado particular de capitalistas” (2017, p. 190). Nesse sentido, as
burguesias imperialistas centram seus esforços na descoberta, na produção e
no monopólio destes avanços tecnológicos que lhes conferem a dianteira na
concorrência interimperialista pela hegemonia mundial.

Editora CRV - Proibida a comercialização


Para além do acesso aos lucros extraordinários que o monopólio desta
produção estratégica (BARREDA; CECEÑA, 1995) concede às burguesias
imperialistas, a forma privada de sua generalização na produção social é também
altamente lucrativa para as mesmas. Com efeito, ao redefinir as bases técnicas
da modalidade produtiva vigente, estes setores definem padrões tecnológicos
dificilmente contornáveis pelo conjunto das empresas capitalistas. A liderança
econômica, nestes termos, significa portanto também a capacidade de definir
como norma ou modelo – e com isso de gerenciar de maneira lucrativa – o
padrão tecnológico vigente, cuja produção estratégica monopoliza. A relação
fundamental entre produção estratégica e hegemonia mundial concentra, assim,
historicamente os setores estratégicos nos países imperialistas centrais enquanto
os outros países se mantêm subordinados à base técnica dos primeiros, transfe-
rindo-lhes valor para produzir nos níveis técnicos estabelecidos e sustentando
com isso sua liderança e hegemonia econômica mundial.
O novo paradigma eletroinformático atual (BREDA, 2020) não supera
estas determinações. Na realidade, ao transformar a organização capitalista
internacional reafirma estas características fundantes da divisão internacional
do trabalho. Nesta nova modalidade da internacionalização do capital, as
grandes multinacionais dos países imperialistas, ao se reestruturarem pro-
dutivamente, puderam, a partir dos avanços das forças produtivas, espraiar
mundialmente o processo produtivo, sem abrir mão do monopólio da produção
estratégica e do controle sobre as cadeias produtivas mundiais que surgiram
de sua reestruturação. A produção, neste sentido, se mundializou, mantendo
os critérios da valorização imperialista diante da crise em curso.
A reestruturação produtiva se dirige, portanto, para a repartição mun-
dial da produção em cadeias globais, cujo controle decisório permanece em
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 149

mãos imperialistas. Assim, as multinacionais são capazes de aproveitar as


vantagens espalhadas globalmente para sua valorização e reprodução. Com
efeito, as novas possibilidades advindas dos avanços das forças produtivas
permitem um distanciamento dos centros produtivos diretos em relação aos
seus mercados consumidores prioritários, sem significar um alargamento dos
tempos e custos logísticos ligados à circulação. As grandes multinacionais
impulsionam, com isso, a deslocalização de suas etapas produtivas diretas
menos intensivas em conhecimento para mercados de trabalhos periféricos,
nos quais os níveis exploração potencializam a extração. No outro polo, os
maiores mercados consumidores permanecem nos países centrais europeus
e nas altas esferas de consumo dos países dependentes.
A nova modalidade de internacionalização produtiva gera, portanto,
cadeias produtivas fragmentadas/integradas mundialmente. Este elemento
é fundamental, pois demarca um importante contraste com a fase fordista
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anterior. Com efeito, naquele período a internacionalização do capital levou


à instalação de filiais produtivas no seio das economias dependentes e ges-
taram, com isso, possibilidades de industrialização minimamente integradas
nacionalmente nestes países. Não é o caso atual. A dispersão mundial das
etapas da produção e o monopólio decisório central sobre a organização
destas etapas impacta decisivamente as possibilidades soberanas de desen-
volvimento capitalista na periferia. Se esta já não era uma realidade, como
demonstrou a experiência desenvolvimentista latinoamericana, os limites
materiais para sustentar tal ilusão se estreitaram radicalmente na atual fase
da acumulação capitalista.
As sociedades dependentes, nesta etapa, sofrem uma redefinição drástica
de seus padrões de reprodução do capital para assumir tarefas, obviamente,
secundárias do ponto de vista da apropriação de lucros extraordinários no
sistema capitalista mundial, apesar de absolutamente necessárias para a repro-
dução da hegemonia econômica mundial das burguesias imperialistas centrais.
É assim que os setores estratégicos da economia brasileira atual giram em
torno da produção de soja, carne e minério de ferro, para citar, apenas, as
maiores empresas ligadas ao mercado internacional.
Estamos, assim, concretamente, diante de outra forma do nosso fundo
público se ligar à reprodução da dependência. No caso, o seu papel na via-
bilização do padrão de reprodução vigente. De fato, assegurar as condições
de determinado padrão, seus ciclos e metamorfoses impõe ao capital a reso-
lução de uma infinidade das mais variadas questões concretas – desde reunir
os investimentos necessários à escolha até fortalecimento dos mercados que
as mercadorias se realizarão. O mecanismo fundamental que dá respostas a
estas questões, num plano geral e de fundo, mas também de maneira bastante
150

imediata, são o Estado, o fundo público e as políticas econômicas. O Estado


e o fundo público, por seu papel decisivo no campo destas políticas, incidem,
incontestavelmente, sobre o sucesso ou refreamento de determinado padrão
de reprodução. Como escreve Osório:

No todas las políticas ecónomicas se llevan de igual forma con patrones


de reproducción determinados. Las políticas económicas pueden operar
como carreteras de seis carriles para el avance del capital. Otras reducen
carriles y la reproducción se hace menos expedita. El que ocurra una u
outra cosa da cuenta de la lucha de clases y de las disputas interburguesas.
Las políticas económicas son operaciones estatales, lo que nos ayuda a
comprender el peso de determinados interesses de fracciones y sectores
de las clases dominantes en el Estado, así como de las disputas que lo
atraviesan (2014, p. 24).

Editora CRV - Proibida a comercialização


Com efeito, o direcionamento do fundo público expressa a mudança de
direção do padrão atual para uma especialização produtiva de matérias-primas
e alimentares para exportação. Se acompanharmos a Função Agricultura no
Orçamento Público brasileiro, percebe-se uma relativa estabilidade. Começa
em 2010 com R$ 17,6 bilhões e chega em 2021 com R$ 16,8 bilhões. Uma leve
diminuição de -4,5% ao longo do intervalo e um pico significativo no biênio
2015-2016 em que o recurso pago chega a R$ 25,6 bilhões, significando um
aumento de 45,6% em relação a 2010. Do outro lado, se encontra a Função
Indústria que, ao longo do período, perde simplesmente 44% de seu orçamento
pago. A Função inicia numa tendência de alta entre 2010 e 2014, no entanto,
a partir daí, a queda acentuada dos recursos reverte completamente o quadro.
Além disso, impressiona o volume de recursos destinados à Agricultura
em relação à Indústria. No início da nossa série, em 2010, o orçamento pago
para a Agricultura foi 6,19 vezes maior que o orçamento pago para a Indústria.
Esta relação vinha diminuindo e chegou ao seu menor nível em 2014 – ano
em que a Agricultura recebeu 4,83 vezes mais recursos que a Indústria. No
entanto, já em 2015, esta relação voltou a aumentar e, em 2021, o orçamento
pago para a Agricultura foi 10,56 vezes maior que o da Indústria. Se expressa
com nitidez portanto o papel do fundo público na garantia de condições gerais
para o setor estratégico do padrão atual de reprodução do capital brasileiro.

Fundo público, racismo e superexploração

Se até o momento enfocamos prioritariamente nossa análise nas classes


dominantes das sociedades dependentes e no seu Estado, é preciso agora
orientá-la para a classe trabalhadora. Este movimento é fundamental para
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 151

compreender outro pilar decisivo do capitalismo em nossa formação social e,


portanto, para destrinchar outros aspectos do papel do fundo público por aqui.
Bem, como vimos, tendo no mercado mundial o eixo central de sua
economia, mas, principalmente, encontrando-se em posição subalterna nesta
estrutura, as burguesias latinoamericanas veem o valor transferido às nações
centrais exacerbar sua necessidade pela extração de mais-valor. A particu-
laridade é que estas burguesias baseiam tal extração, prioritariamente, no
aumento da exploração do trabalhador e não precisam recorrer ao desenvol-
vimento das suas forças produtivas. Fazem-no recorrendo àquilo que Marini
denominou superexploração.
A superexploração é, para Marini (2005), o recurso generalizado pelas
burguesias latino-americanas diante de sua subordinação na divisão interna-
cional do trabalho. Permite, assim – através da intensificação do trabalho; da
prolongação da jornada de trabalho; e da redução da capacidade de consumo
Editora CRV - Proibida a comercialização

do trabalhador –, conformar taxas de extração de mais-valor que suportem a


evasão posterior de valor para os países imperialistas. O autor a define nos
seguintes termos:

[...] a característica essencial está dada pelo fato de que são negadas ao
trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de
trabalho: nos dois primeiros casos [a intensificação do trabalho e o pro-
longamento da jornada de trabalho do trabalhador], porque lhe é obrigado
um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar
normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; no último
[redução da capacidade de consumo do trabalhador], porque lhe é retirada
inclusive a possibilidade de consumo do estritamente indispensável para
conservar sua força de trabalho em estado normal. Em termos capitalistas,
esses mecanismos (que ademais podem se apresentar, e normalmente se
apresentam, de forma combinada) significam que o trabalho é remunerado
abaixo de seu valor e correspondem, portanto, a uma superexploração [da
força] do trabalho (MARINI, 2005, p. 156).

Neste sentido, a superexploração, é, na realidade, uma forma particular de


exploração que se assenta na seguinte característica fundamental: a violação
do valor da força de trabalho. Nas palavras de Jaime Osorio:

A superexploração dá conta das formas assumidas pela violação do con-


junto de condições necessárias para a produção e reprodução da força de
trabalho, nos processos de produção e circulação. Dá conta, então, das
formas de violação do valor da força de trabalho. Quando a exploração
capitalista adquire características que implicam a desconformidade do
152

valor de troca da força de trabalho, estamos falando de uma exploração


capitalista que assume um caráter superexplorador (OSORIO, 1975 apud
LUCE, 2012, p. 121).

O tema que nos parece central, no entanto, é que as condições para a


generalização da superexploração no continente remontam ao colonialismo.
Para entender o percurso, iniciemos lembrando que, para Clóvis Moura (2014),
a escravização conforma o próprio ethos das relações sociais brasileiras –
afirmação esta que, nos parece, poderia se estender ao conjunto da América
Latina. Com efeito, seria impossível apreender a conformação da classe tra-
balhadora em nosso continente sem entender o impacto decisivo destes quase
400 anos em que, por um lado, o trabalho – forçado – foi destinado às pessoas
africanas e originárias escravizadas, enquanto o controle e a propriedade de
sua produção estavam centralizados nas mãos de pessoas brancas metropolita-
nas, primeiro, e locais, mais tarde. As classes trabalhadoras latinoamericanas

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foram majoritariamente negras e indígenas e as classes dominantes – o poder
econômico e político – foram monopólio branco. Decorre disto, a étnico-ra-
cialização da própria divisão social do trabalho, das relações de produção,
da constituição das classes sociais e da luta de classes na América Latina.
As desigualdades no bojo das relações étnico-raciais nas sociedades
dependentes se vinculam, entretanto, com a consequente produção de uma
ideologia racista. Com efeito, foi preciso, desde tão cedo quanto a Conquista,
justificar, legitimar e naturalizar a violência e a superexploração, primeiro,
colonial e, depois, capitalista contra imensos contingentes humanos. Isto pas-
sou por um largo processo de racialização do mundo. Europeu, por exemplo,
passou de um identificador geográfico específico para um indicador socio-
político e racial bastante distinto do original e termos novos, como índios,
mulatos, negros, surgiram para dar conta dos gradientes raciais necessários à
hierarquia nascente. Nas palavras do peruano Aníbal Quijano:

A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida


antes da América […]. [Esta] foi uma maneira de outorgar legitimidade
às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constitui-
ção da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão
do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da
perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica
da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de domina-
ção entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma
nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então
demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social
universal […]: os povos conquistados e dominados foram postos numa
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 153

situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços


fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo,
raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da
população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da
nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social
universal da população mundial (QUIJANO, 2005, p. 117).

A racialização do mundo foi, por sua vez, respaldada científica e teologi-


camente e, no campo do pensamento social, se consolidou na América Latina
uma tradição eugenista hegemônica no trato da temática racial. A ideia de
que a presença indígena e negra condenava as sociedades nacionais ao atraso
vigente foi hegemônica na totalidade do continente latino-americano por longo
período e, no Brasil, teve representantes do porte de Silvio Romero, Nina
Rodrigues e Oliveira Viana. Esta hegemonia ideológica só seria substituída
por aqui no bojo da derrota do nazifascismo e do desenvolvimentismo pelo
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mito da democracia racial brasileira.


Disto decorreu uma estigmatização do negro e do indígena brasileiro,
profundamente enraizado em todos os âmbitos da vida social. Como afirma
Cristiane Sabino,

[...] o processo de enfrentamento da insurreição escrava pelas classes


dominantes perpassou também pelo campo ideológico, resultando num
constructo no imaginário social do que é o negro, a partir das rebeldias e
da contestação da ordem realizada pelo escravizado. Se as rebeldias eram
ativas, o negro era informado como perigoso, inimigo, animal, bruto,
violento, etc. Se passivas, era preguiçoso, incapaz, sem intelecto, etc.
(SABINO, 2020, p. 150).

Esta realidade brutal foi combatida permanentemente pelo povo escra-


vizado (MOURA, 2014). Com efeito, a rebeldia ao escravismo se manifes-
tou de maneira constante através de fugas, sabotagens, roubos, assassinatos,
quilombos, guerrilhas, insurreições, suicídios e inaugura a dinâmica da luta
de classes no Brasil. Por isso é que, para Florestan Fernandes (2017), a luta
de classes se liga à luta de raças e que a matriz de resistência surgida neste
confronto é incontornável até a atualidade. Com efeito, data deste período,
segundo Lélia Gonzalez (1981), a primeira experiência brasileira de efetiva
democracia racial – os quilombos.
Por outro lado, a Independência brasileira e, portanto, a passagem do
colonialismo à dependência acontece sem rupturas estruturais. Nas palavras
de Dennis de Oliveira, o racismo é “elemento estruturante das divisões de
classe, uma vez que o processo transitório do modo de produção do escravismo
154

colonial para o capitalista aconteceu sem rupturas e protagonizado pelas mes-


mas elites dirigentes do período anterior” (DE OLIVEIRA, 2016, p. 34). No
momento da abolição, esta era, portanto a perspectiva dominante e a importa-
ção de mão de obra livre europeia como política estatal para substituir a mão
de obra escravizada surge, assim, inclusive, como uma solução para o que
Abdias Nascimento (2017) denomina de a mancha negra na sociedade brasi-
leira. De fato, diante do trabalhador negro recém-liberto, o imigrante europeu
chegava com aura de progresso, de disciplina e de trabalho. A priorização
de seu emprego nos centros produtivos da economia brasileira relegou, com
isso, os trabalhadores negros ao subemprego e ao desemprego, nas palavras
de Florestan Fernandes, “como se eles fossem um simples bagaço do antigo
sistema de produção” (FERNANDES, 2017, p. 29).
Estamos diante do processo histórico que conformou na classe trabalha-
dora brasileira as cisões raciais decisivas para a reprodução do racismo como

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mecanismo necessário à superexploração. A expulsão, após a abolição, dos tra-
balhadores negros dos centros produtivos conforma uma superpopulação relativa
negra, relegada às franjas marginais do exército industrial de reserva (MOURA,
2014; SABINO, 2020). Conforma-se, portanto, uma massa trabalhadora negra
cuja maior utilidade, diante da estreiteza da economia dependente, é pressionar
os salários para baixo e possibilitar a generalização da superexploração da força
de trabalho. Cristiane Sabino (2021) explica isto da seguinte forma:

A enorme oferta de força de trabalho é a tônica do desenvolvimento depen-


dente e expressa as possibilidades da superexploração. Esta é a condição
que demarca o curso da história do trabalho e da classe trabalhadora no
pós-abolição: a criação de uma imensa franja marginal de trabalhadores,
muito além de um exército industrial de reserva, a qual jamais pôde ser
incorporada à dinâmica econômica restritiva do capitalismo dependente.
Esta será formada de maneira esmagadora pelos trabalhadores e trabalha-
doras negros e negras, os quais, deixam de ocupar o centro da atividade
produtiva que lhes fora imposto pela escravidão e passam a ocupar as mar-
gens da produção e do acesso à riqueza produzida, dados os mecanismos
de imobilização dos/as trabalhadores negros/as criados em concomitância
com o nascimento e expansão do trabalho livre no Brasil. Do ponto de vista
de uma análise dialética, o que cumpre evidenciar é que, estar à margem
dos processos produtivos não significa não exercer sobre ele nenhuma
determinação, ao contrário, a marginalização racializada passa a ser um
mecanismo fundamental à extração da mais-valia (SABINO, 2021).

Nestes termos, entende-se melhor, por um lado, o racismo como esta


forma das relações sociais brasileiras se (re)produzirem de maneira étnico-ra-
cializadas – ou seja, produzindo e reproduzindo desigualdades étnico-raciais
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 155

– e suas consequências ideológicas, políticas, sociais e econômicas. Por outro


lado, compreende-se a vinculação fundante do racismo e da superexploração
na formação social brasileira, tanto para a generalização da superexploração,
quanto, como quer Silvio Almeida (2018), para sua normalização.
Isto posto, o Estado dependente, por sua vez, é edificado sobre estas
relações sociais racializadas, imbuído de um horizonte produtor e reprodutor
do racismo estrutural imperante. Não deveria causar surpresa, portanto, a
afirmação de que as classes dominantes brasileiras ou latinoamericanas e suas
estruturas societárias – que, como vimos, tem no racismo um de seus pilares
para a reprodução da superexploração e, por conseguinte, do capitalismo em
nossa região – fundem um Estado racista.
Por outro lado, é bastante óbvio que as instituições que compõem o apa-
rato estatal e o sistema de dominação deste Estado, também, sejam, em geral,
hegemonizadas por projetos perpetuadores de padrões racistas. A institucio-
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nalização do racismo não é nenhuma novidade para nós, assistentes sociais.


Com efeito, é comum presenciarmos condutas racialmente discriminatórias
nos espaços sócio-ocupacionais nos quais atuamos. Na realidade, para além
de práticas individuais condenáveis, o que se percebe é que as mesmas estão
amplamente respaldadas pela estigmatização da população trabalhadora negra
e indígena em nosso continente. No fundo, estamos diante de um mecanismo
altamente eficaz de seletividade e restrição de direitos sociais. É assim que o
acesso e a qualidade dos serviços sociais – mesmo quando universais – podem
ser desigualmente disponibilizados racialmente. Para isto, no entanto, não
é preciso qualquer regra ou critério formal, já que, nas palavras de Silvio
Almeida (2018), “em uma sociedade em que o racismo está presente na vida
cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um pro-
blema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já
tidas como ‘normais’ em toda sociedade (p. 48)”.
O fundo público, obviamente, não está isento desta problemática. Pelo con-
trário, é um instrumento fundamental da reprodução da superexploração e do
racismo estrutural. Com efeito, diante de suas tarefas na reprodução capitalista
dependente, não está em pauta o direcionamento do fundo público para a reversão
de tal situação. Pelo contrário, a orientação hegemônica do fundo público, no
campo da Seguridade Social, por exemplo, apenas, demonstra isso cabalmente.
Não se trata da constituição de sistemas de proteção social capazes de
garantir condições dignas de reprodução para as classes trabalhadoras latinoa-
mericanas. O patamar da qualidade e da extensão de nossas políticas sociais
está colocado pelas condições de reprodução da superexploração. Não se
trata de engessar a compreensão das políticas sociais em nosso continente,
já que a luta de classes joga um papel decisivo para conformar as condições
156

de reprodução da classe trabalhadora em nossas sociedades. Estamos apenas


afirmando que em condições “normais” – de estabilidade de uma correlação
de forças favorável às classes dominantes – o fundo público e a política social
não são instrumentos de superação das condições de superexploração, mas
uma das dimensões que conformam tal condição.
A austeridade fiscal, como regime fiscal hegemônico no continente nas
últimas décadas, representa justamente uma orientação em consonância com
a situação societária vigente na América Latina. A destituição de recursos do
fundo público das áreas responsáveis por garantir direitos sociais e a reposi-
ções de condições dignas de reprodução da classe trabalhadora, nesse regime
fiscal, se articula ao redirecionamento destes recursos para a remuneração
de juros e encargos da dívida e para a reprodução das condições gerais da
acumulação dependente.
Neste sentido, a possibilidade do consenso burguês latinoamericano

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assentar-se – como naquele Estado de Bem Estar Social – no reconhecimento
e na satisfação das carências objetivas e subjetivas das classes trabalhadoras
– carências, inclusive, aprofundadas pela superexploração – encontra graves
limites estruturais para sua realização. As classes dominantes compensam
tal restrição “pelo peso das dimensões autoritárias do Estado e do governo,
mesmo sob feições democráticas” (OSÓRIO, 2014b, p. 207).
Esta característica brutal das formações dependentes impõe condições
de vida bárbaras para as maiorias e gera, portanto, sociedades atravessadas
por antagonismos de uma agudez impetuosa. A situação é perpassada, ainda,
pelas desigualdades raciais, já mencionadas, relegando, portanto, as piores
condições de existência e as respostas violentas, prioritariamente, para os
setores negros e indígenas da classe trabalhadora latinoamericana.
A consequência histórica é uma questão social altamente conflituosa
e a atualidade que a revolução, permanentemente, recobra nos países lati-
noamericanos. A luta de classes nos países dependentes tem, por isso, uma
explosividade latente permanente e o Estado dependente e as políticas sociais
enfrentam sérios problemas para conformar um sentido de comunidade com
base naquele ideário cidadão vigente no centro. De fato, como demonstra
Alcira Argumedo, a história latino-americana está repleta de

[...] diversas formas de rebeldía abierta, insurrecciones y movimientos de


protesta ante condiciones de expoliación que las masas de estos territorios
nunca aceptaron pasivamente. Evidencias de la férrea decisión de afirmar
su dignidad como pueblos, como comunidades, como hombres y mujeres,
no obstante los periodos de aparente sometimiento, cuando el genocidio o
la derrota obligaban a replegarse hasta recobrar fuerzas o encontrar nuevas
oportunidades de insurrección (ARGUMEDO, 1993, p. 16-17).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 157

Ao vislumbrar a situação recente, percebe-se que, mesmo após a ins-


titucionalização da contrainsurgência (MARINI, 1978), do terrorismo de
estado (OSPINA, 2010) através das ditaduras civis-militares e das demo-
cracias restringidas (CUEVA, 2016), a organização e a mobilização popular
segue ressurgindo, teimosamente, no continente. A viabilidade da ordem e do
consenso social, nestes termos, só é possível “sobre a base de um exercício
férreo do poder político, o que requer um Estado no qual os mecanismos
coercivos operam de forma frequente” (OSÓRIO, 2014, p. 209). Assim é
que se explicam as taxas genocidas de mortalidade da juventude negra, no
Brasil, por exemplo, assim como, o encarceramento em massa da população
pobre, majoritariamente, negra, no mesmo país. A seletividade étnico-racial
da resposta estatal só atesta novamente o racismo estrutural como um dos
pilares fundamentais das sociedades dependentes.
A perversidade societária da situação se encontra, justamente, na forma
Editora CRV - Proibida a comercialização

como o fundo público é composto para viabilizar seu papel na reprodução


da dependência, da superexploração e do racismo estrutural. Nas palavras de
Elaine Behring,

[…] o trabalho excedente se reparte em lucros, juros, renda da terra e fundo


público, por meio da tributação sobre o capital e sua personas. Porém,
cabe sublinhar que o Estado se apropria também do trabalho necessário,
diga-se, de parte dos salários, via tributação com o que o fundo público
é um compósito de tempo de trabalho excedente e tempo de trabalho
necessário (2020, p. 42).

Nas sociedades dependentes, no entanto, os sistemas tributários são


altamente regressivos. Ou seja, o fundo público se sustenta fortemente sobre
a renda e o consumo da classe trabalhadora. Neste sentido é que podemos
afirmar que a punção compulsória para constituição do fundo público sobre
os salários dos trabalhadores configura, na realidade um mecanismo fiscal
da superexploração, já que avança sobre o fundo de subsistência necessário
à reprodução desta classe, privando-a de uma nova fatia de seus recursos.
Em suma, os trabalhadores financiam a própria reprodução da dependên-
cia, de sua superexploração e das desigualdades étnico-raciais vigentes. Será
preciso reverter a correlação de forças vigente em torno de um bloco histó-
rico revolucionário para romper com a perversidade dominante do capita-
lismo latinoamericano.
158

Considerações finais

Este artigo é um convite à reflexão e ao debate em torno do fundo público


em nossas sociedades dependentes. É ainda um pontapé inicial, já que diversos
aspectos da análise precisariam ser adensados e outros precisariam aparecer
para termos um contorno mais rigoroso deste traço societário central das
sociedades contemporâneas. No fundo, situação de crise aguda e generalizada
na qual se encontra o capitalismo mundial, nos parece que o fundo público
das sociedades dependentes contribui, fundamentalmente, em restabelecer
condições de reprodução para o capital. Neste sentido, seria útil encarar os
fundos públicos nacionais, viabilizando, mundialmente, causas contra-arres-
tantes à queda tendencial da taxa de lucro.
Com efeito, o nível de integração monopólica do processo produtivo
capitalista na atualidade nos parece permitir resposta neste nível de atuação.

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O aumento do grau de exploração do trabalho, a compressão do salário abaixo
de seu valor, o barateamento dos elementos do capital constante, a superpopu-
lação relativa, o comércio exterior e o aumento do capital acionário – citados
por Marx (2017) como tais causas – não são hoje generalizados, apenas, no
interior de cada país. Pelo contrário, o sistema capitalista mundial conforma
estas contratendências mundialmente.
As classes dominantes na América Latina se incorporam a este movi-
mento colocando todas suas forças societárias neste esforço. Ao garantir a
superexploração da classe trabalhadora latinoamericana está, no fundo, colo-
cando-a a disposição dos grandes monopólios – e sendo muito bem remune-
rada para tanto. O fato dos setores estratégicos dos padrões de reprodução de
nosso continente estarem centrados nas mercadorias que estão, só nos parece
mais um traço do barateamento dos elementos do capital para contratendenciar
a crise em curso. Enfim, estes exemplos denotam, apenas, a mundialização
atual do capitalismo e a hegemonia imperialista vigente na América Latina.
Não podemos perdê-lo de vista para a constituição de uma outra sociedade.
Sociedade esta, em que o fundo público de um novo Estado estará finalmente
a serviço da dignidade e soberania popular latinoamericana. Oxalá estejamos
à altura de tão urgente e necessária tarefa.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 159

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ORÇAMENTO GERAL DO ESTADO E
POLÍTICAS PÚBLICAS EM ANGOLA:
receitas fósseis e retribuições desiguais
Juliana Lando Canga62
DOI: 10.24824/978652515394.0.163-192

Introdução

Angola é um país exuberante, cujas potencialidades e riquezas naturais


são reconhecidas em nível nacional e internacional. Possui uma rede hidro-
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gráfica extensa, o que lhe garante solo fértil na maioria das regiões. É em
Angola, mais exatamente na província de Cabinda, que se encontra parte da
maior floresta tropical do continente africano, a floresta do Mayombe, que
integra a Reserva Florestal de Kakongo, cuja notável biodiversidade abriga
espécies de grande interesse econômico (CANGA, 2011).
De maneira geral, o país apresenta ecossistemas ricos em recursos natu-
rais e oferece vias alternativas para a promoção de desenvolvimento susten-
tável, inclusive com possibilidades de ecoturismo.
Com uma superfície de 1.246.700 km2, Angola faz fronteiras com a
República Democrática do Congo, Congo Brazaville, Namíbia e Zâmbia
(CANGA, 2007) e tem, ainda, uma extensa costa banhada pelo Oceano Atlân-
tico. A Figura – 1 apresenta a distribuição administrativa e geográfica do país,
composto por dezoito províncias, com uma população estimada em 31.127.674
habitantes, segundo dados do INE (2020).

62 PhD em Ciências Sociais, Professora Associada na Faculdade de Serviço Social (FSS) da Universidade de
Luanda (UniLuanda), Presidente da Assembleia e do Conselho Científico da FSS. Foi Presidente do Conselho
Geral da UniLuanda e Conselheira no Consulado Geral da República de Angola, no Rio de Janeiro, onde
desempenhou as funções de Chefe do Setor de Apoio aos Estudantes Angolanos no Brasil. Pós-Doutoranda
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
sob a supervisão da Professora Dra. Elaine Rossetti Behring, líder do Grupo de Estudos e Pesquisas do
Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS/UERJ/CNPq).
164

Figura 1 – Mapa das fronteiras administrativas e geográficas de Angola

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Fonte: Ministério da Administração e Território, 2021.

Também, a diversidade etnolinguística e cultural é marca indelével de


Angola (COELHO, 2015), tendo a língua portuguesa como idioma abrangente
e mais de onze línguas nacionais. Angola é uma potência inconteste, porém,
quando o assunto é a construção de instituições fortes, que possam atender às
demandas da sociedade e sustentar os direitos consagrados na Constituição, o
país ainda não encontrou seu caminho para uma real autonomia econômica.
Fato que podemos perceber na dificuldade de Angola para a execução do
Plano Nacional de Desenvolvimento – PDN2018-2022, que consigna entre
seus objetivos, os seguintes:

[...] reestruturar a estabilidade macroeconómica e projectar para Angola


um futuro com confiança e previsibilidade em termos de crescimento
económico inclusivo, diversificação económica sustentável e melhoriado
bem-estar dos Angolanos, através da redução da pobreza e da desigualdade
(ANGOLA, 2020, p. 7.061).

A dificuldade da execução do PDN se deve, em termos gerais, à ineficá-


cia das diretrizes existentes para a exploração de todas as potencialidades de
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 165

Angola, com vistas a possibilitar um crescimento econômico de fato inclusivo


e a equidade na distribuição da renda, visando à paz social e ao desenvol-
vimento humano concreto. Cabe frisar que os objetivos do Plano de Desen-
volvimento Nacional são indissociáveis da remoção de todas as formas de
privação dos direitos constitucionais e implicam a eliminação da pobreza e
das desigualdades sociais. Nesse sentido, seria necessário que os objetivos do
Plano de Desenvolvimento Nacional se traduzissem em Políticas públicas que
atendessem às necessidades básicas da sociedade, proporcionando felicidade
e a consolidação da democracia e da justiça social.
Buza (2020), Salvador e Teixeira (2014), e Saravia e Ferrarezi (2006),
se alinham no pensamento de que políticas públicas são o conjunto de ações
e estratégias de decisões públicas organizadas pelos Estados, governos ou
iniciativas privadas para o alcance do bem-estar da sociedade. Para se alcançar
esse bem é necessário e imprescindível a alocação de recursos para atingir os
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objetivos preconizados.
Para que esse escopo não se perca por mais tempo, um novo plano diretor
precisa e deve contemplar a locação de recursos à altura dos desafios reais da
sociedade angolana. Desde os recursos humanos qualificados e conscientes, com
base na formação de homens e mulheres, buscando proporcionar uma gama
de possibilidades de conhecimento tanto através da escolarização, quanto pela
valorização, recuperação e disseminação dos saberes locais. E, ao mesmo tempo,
é desejável um realinhamento das diretrizes nacionais, levando em conta a valo-
rização de setores que sustentam uma vindoura economia de conhecimento,
“incluindo a alta tecnologia, educação e treinamento, pesquisa e desenvolvimento,
bem como o setor financeiro e de investimentos” (GIDDENS, 2012, p. 648).
Nessa linha, torna-se importante considerar os tecnólogos existentes,
investindo em sua continuada formação, para que melhor possam contribuir
para a reorganização e execução do plano diretor, de modo a contemplar as
necessidades emergenciais, bem como propiciar bases para a estabilidade social.
No âmbito do conhecimento científico, o fomento à investigação em
todas as áreas de aprendizagem é urgente, para se estruturar a capacidade de
transformação de matéria-prima. Nesta vertente, é necessário que haja arti-
culação entre Estado, universidade, indústria e sociedade, evitando, assim, a
importação de quase 90% dos bens de consumo demandados pelo mercado
interno. Isso vale até mesmo para o combustível, já que Angola ainda não
tem uma refinaria que garanta a cobertura nacional, beneficiando apenas de
uma pequena parte do petróleo que extrai.
Tal circunstância mantém o país dependente de outras nações, já que
exporta matéria-prima a preços baixos e, em contrapartida, adquire, super
faturados, bens de necessidades básicas que foram transformados por seus
166

parceiros comerciais, submetendo-se continuamente em relações econômicas


desiguais e pouco proveitosas para suas populações. Nesse âmbito é necessário
que haja interligação entre Estado, universidade, indústria e saberes regionais
ou populares, em busca da autonomia de produção e transformação de maté-
ria-prima internamente, para diminuir as relações de exploração existentes
na atual geopolítica mundial.

À medida que o mercado mundial alcança formas mais desenvolvidas, o


uso da violência política e militar para explorar as noções débeis se torna
cada vez mais supérfluo, e a exploração internacional pode descansar
progressivamente na reprodução de relações econômicas que perpetuam
e ampliam o atraso e a debilidade dessas nações [...] o que aparece cla-
ramente, portanto, é que as nações desprovidas pela troca desigual não
buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas
mercadorias e a capacidade produtiva do trabalho, mais procuram com-

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pensar a perda de renda gerada pelo comercio (MARINI, 1983, p. 8-9).

Entre 2002 e 2013, aconteceram eventos que sinalizavam a possibilidade


aparente de correção de desequilíbrios, que tornaram o país débil. Uma vez
calada as armas, urge buscar a paz social, em termos da remoção das profundas
desigualdades provocadas pela herança do colonialismo e pela Guerra Civil.
A primeira herança advinda da colonização em nome do processo canô-
nico da “civilização” foi a destruição do patrimônio material e imaterial, com
o objetivo de substituí-lo pelos ditames efetivos da “civilização”que visavam
a saída dos países que se encontravam em estágio primitivo, ou melhor, saindo
das trevas para a Luz (CANGA, 2022 apud COMTE, s/d.).
Em consequência desta herança após a independência, em novembro
de 1975, Angola registou um alto nível de analfabetismo na faixa de 85%
(CANDUMBO; CANGA 2022), alto índice de desemprego, miséria e fome,
e um índice de desenvolvimento humano péssimo.
A segunda herança está intrinsecamente ligada a questões militares e
políticas, que devastaram o país por aproximadamente três décadas após
a Independência. O beligerísmo agonizou o desequilíbrio e as debilidades
vindas da herança do colonialismo, com a morte de muitos Angolanos e a
mutilação de outros. Cerca de 70% da população se encontrava abaixo do
nível da pobreza e 26% sobreviviam na extrema pobreza, em condições de
desnutrição, ocupando o país o 162º lugar em relação ao IDH, calculado em
0,438 (CANGA, 2011, p. 57).
No início do período pós-independência, embora houvesse a tentativa
ainda que teórica na busca da correção de desequilíbrios fruto da prosperidade,
em consequência da exploração e exportação de recursos naturais, notadamente
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 167

do petróleo, cuja cotação, à época, rondava acima de USD100/barril, Angola


registrou um crescimento econômico na casa dos 26%, decaindo, porém, até
marcar 15% ao ano.
Desde a Independência até o momento atual, a comercialização do petró-
leo teve participação relevante na composição do PIB nacional, com índices
entre 75% e 89% das fontes de receita do Orçamento Geral do Estado (OGE),
sendo que houve complementação vinda de outros recursos naturais como
diamante, exploração florestal e outros. Contudo, não se alcançou arrecadação
nem receitas suficientes, recorrendo-se aos empréstimos, o que tem aumentado
a dívida externa angolana (CANGA, 2011, p. 84).
De fato, a comercialização do petróleo tem sido a maior fonte de receita
para a elaboração do OGE. Criado com o nascimento da nova República, há
47 anos, ele vem sinalizando que o país se mantém por meio de um orçamento
com forte pendor fóssil, sem uma sinalização concreta da correção dos dese-
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quilíbrios nas fontes e receitas.


É mais compensatório manter a perda de renda gerada pelo comércio
e pelas crises, e continuar a dar conta da dívida pública que ronda 110% do
PIB – com uma considerável queda no início da guerra na Ucrânia que, como
se observou, também favoreceu a subida do preço do barril do petróleo acima
dos USD100/barril – e assim favorecer a amortização da dívida.
Ponto assente é que, após a libertação do país do jugo colonial, em 1975,
ano da independência do país, esperava-se uma transição pacífica entre os
três movimentos que lutaram pela libertação colonial, nomeadamente FNLA,
MPLA e a UNITA. Porém, as diferenças ideológicas e políticas os levaram à
materialização de um conflito armado, no qual as grandes perdas foram para
os próprios angolanos, cujos desequilíbrios ainda são visíveis depois de 20
anos do calar das armas.
Uma das diferenças expressivas entre os três movimentos estava no
alinhamento de que bloco dos contendores da guerra fria buscava o enquadra-
mento. Enquanto UNITA e FNLA se perfilaram para a tendência do ocidente,
o MPLA, que proclamou a independência do país em Luanda, buscou o seu
enquadramento no bloco do Leste.
Na perspectiva de uma economia planejada e uma configuração de par-
tido único, o Estado da República Popular de Angola, por meio do governo
do MPLA, era considerado o único responsável pelo planejamento e pela
elaboração de políticas públicas e sua execução em todas as instituições, e
em todos os níveis.
Dito isso, na República Popular de Angola uma das palavras de ordem
foi, “O mais importante é resolver os problemas do povo”. Frase lapidar,
expressa por António Agostinho Neto, primeiro presidente do país.
168

Nesta frase, podemos entender o sentido que impunha para que a


gratuidade de acesso aos serviços básicos como educação, saúde, moradia,
água e outros deviam ser uma realidade, obrigando que os preços da cesta
básica fossem controlados e o acesso à mesma fosse fortemente formali-
zado e controlado.
As lojas eram distintas entre as classes obedecendo ao critério do extrato
social, com base na estratificação em função do enquadramento profissional.
Assim, existiam os estabelecimentos comerciais para os dirigentes, responsá-
veis técnicos superiores, técnicos médios, e para a população no geral.
Na perspectiva de ajudar o país no aprofundamento do regime socialista,
em termos de uma nova ordem social e econômica, e na cobertura de serviços,
assistiu-se a forte presença de cooperantes, de nacionalistas cubanos, que
estavam engajados na frente de combate na saúde e na educação; observou-se
a presença de soviéticos, vietnamitas e alemães engajados na socialização de

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conhecimentos rumo a um regime marxista-socialista.
Neste período, muitos angolanos na faixa etária estudantil, sem distinção
de posição social, puderam estudar no exterior do país com auxílio de bolsas
de estudos para Cuba, União Soviética, Alemanha Oriental e outros países do
Leste Europeu, a fim de se formarem. Ao se tornarem quadros seriam novos
homens, como era o slogan, prontos para colocar o seu saber e profissiona-
lismo em prol do desenvolvimento da pátria, e simultaneamente suprirem as
demandas da época, já que o país era carente de quase de tudo.
O processo da Perestroika63 e a posterior queda do muro de Berlim,
em 9 de novembro de 1998,foram dois marcos importantes que sinalizaram
o prenúncio da mudança de regime. Para Angola, resultaram em mudan-
ças impostas para que fosse possível ocorrer as primeiras eleições de 1991,
que implicaram a aprovação da Lei Constitucional, coincidindo assim com a
aprovação da primeira constituição multipartidária, conforme se observa nos
artigos 2º, 4º, 9º e 10º, que afirmam:

A República popular de Angola é um Estado democrático de direitos que


tem fundamentos a unidade nacional, a dignidade da pessoa humana, o
pluralismo de expressão e de organização política e respeito e garantia dos
direitos e liberdades do homem, quer como indivíduo, quer como membro
de grupos sociais organizados. [...] os partidos políticos, no quadro da
presente Lei e das leis Ordinárias; concorreram, em torno de um projeto
de sociedade e de um programa político, para a organização e para expres-
são da vontade dos cidadãos, participando na vida política e na expressão
do sufrágio universal, por meios democráticos e pacíficos. [...] O Estado

63 Política de reforma governamental e reorganização do sistema econômico iniciada por Mikhail Gorbatchov,
em 1985, na União Soviética.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 169

orienta o desenvolvimento da economia nacional, com vista a garantir o


crescimento harmonioso e equilibrado de todos os sectores e regiões do
país, a utilização racional e eficiente de todas as capacidades produtivas
e recursos nacionais, bem-estar e da qualidade de vida dos cidadãos. [...]
O econômico assenta na coexistência de diversos tipos de propriedade,
pública, privada, mista, cooperativa e familiar, gozando todos de igual
proteção. O Estado estimula a participação, no processo econômico, de
todos os agentes e de todas as formas de propriedade, criando as condições
para o seu funcionamento eficaz no interesse do desenvolvimento econô-
mico nacional e da satisfação das necessidades dos cidadãos (ANGOLA,
1991, p. 3-4, 9-10).

Diante dos artigos expostos é visível que os marcos da democratização


do país e do mercado aberto foram estabelecidos oficialmente na constituição
de 1991. O processo foi concluído em 1992, com as primeiras eleições em
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Angola e a alteração da designação do país, como reparasse pode observar


nas linhas a seguir.

[...] Como consequência da consagração constitucional da implementação


da democracia pluripartidária e da assinatura a 31 de maio de 1991 dos
acordos de paz para Angola. Realizar-se-ão em setembro de 1992 e pela
primeira vez na história do país eleições gerais multipartidárias assentes
no sufrágio universal directo e secreto para escolha do Presidente da Repú-
blica e dos deputados do futuro parlamento [...] A presente Lei de revisão
constitucional introduz, genericamente, as seguintes alterações – altera a
designação do Estado para República de Angola do órgão legislativo para
Assembléia Nacional e retira a designação Popular da denominação dos
tribunais (ANGOLA, 1992, p. 1).

Embora os discursos apontem para a implementação da democracia e o


estimulo da participação de vários agentes no processo econômico, Angola
ainda tateia para concretizar de forma eficaz o que foi legislado desde 1991
e 1992, por não existir ainda projetos estruturantes que definem de forma
concreta as modalidades da criação de bom ambiente de negócios, no que
tange a criação de condições de base, como fornecimento de água e energia
elétrica de qualidade, um eficiente sistema de transporte público, um excelente
sistema de saúde para garantir a cobertura sanitária aos funcionários públicos
e demais cidadãos.
Com a tendência de aderir à economia aberta, não clarificada, e de forte
tendência neoliberal, Angola desvencilhou-se de muitos modelos sustentáveis
de produção, como atividades de agricultura ou pesca, sejam elas artesanais
ou em escala semi-industrial, “um mercado aberto ˮ que era chamado de um
170

sistema misto confuso, circunscrito na exploração e exportação de recursos


naturais com incidência no petróleo e importação de bens consumo.
O país, ao priorizar uma política econômica com tendência fóssil, minimi-
zou a exploração de formas alternativas de produção que, consequentemente,
participam de maneira tímida no OGE. Com esse alinhamento, o Orçamento é
elaborado consoante a avaliação do preço do petróleo no mercado. Tomando
como exemplo o caso do exercício de 2021, teve por base um valor de 39,00
USD/barril (ANGOLA, 2020, p. 7.049).
A Lei n° 42/20, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento Geral do
Estado para o ano de 2021, afirma que:

O Orçamento Geral do Estado é o principal instrumento da política eco-


nômica e financeira do Estado Angolano que, expresso em termos de
valores, para um período de tempo definido, prevê as despesas a realizar e
determina as respectivas fontes de financiamento. O Orçamento Geral do

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Estado para o exercício econômico de 2021 é elaborado em conformidade
com o artigo 104º da Constituição da República de Angola (ANGOLA,
2020, p. 7.018).

Diz o artigo supracitado que o OGE constitui o plano financeiro anual


ou plurianual consolidado do Estado e deve refletir os objetivos, as metas e
as ações contidos nos instrumentos de planejamento nacional. Assim sendo,
o Executivo elabora o Orçamento e encaminha para Assembleia Nacional,
que aprova, por mandato do povo e nos termos da disposição combinada com
o artigo 161°, “Da competência política e legislativa”, em que uma delas é
aprovar o OGE. Evilasio e Texeira (2014, p. 17) ao citarem Piscitelli, Timbo
e Rosa afirmam:

O orçamento pode ser definido como instrumento de que dispõe o poder


público (qualquer de suas esferas) para expressar, em determinado período,
seu programa de atuação, discriminando a origem e o montante dos recur-
sos a serem obtidos, bem como a natureza e o montante dos dispêndios.

Como já referenciado, a partir de momento que o orçamento é elaborado


consoante a avaliação do preço do petróleo no mercado, e o montante de recur-
sos em grande escala é proveniente da exploração e exportação do petróleo, é
com essa característica que o Orçamento do Estado é considerado de receitas
fósseis. Porém, com despesas ou retribuição desigual. Ainda na perspectiva
de Oliveira, citado por Evilasio e Teixeira (2014, p. 17), este afirma:

Que o orçamento não se limita a uma peça técnica e formal ou a um ins-


trumento de planejamento, ele é, desde suas origens, uma peça de cunho
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 171

político. Portanto, ele serve para orientar as negociações sobre quotas de


sacrifício, sobre os membros da sociedade no tocante ao financiamento
do Estado e é utilizado como instrumento de controle e direcionamento
dos gastos. Assim, a decisão sobre os objetivos dos gastos do Estado
e a fonte dos recursos para financiá-lo não é somente econômica, mas
principalmente são escolhas políticas, refletindo a correlação de forças
sociais e políticas, atuantes e que e que tem hegemonia na sociedade. Os
gastos orçamentários definem a direção e a forma do estado nas suas prio-
ridades de políticas públicas, o orçamento deve ser visto como o espelho
da vida política de uma sociedade, à medida que se registra e revela, em
sua estrutura de gastos e receitas, sobre que classe ou fração de classe
recai o maior ou o menor ônus da tributação e as que se beneficiam com
os seus gastos. Por meio do orçamento público, o poder executivo pro-
cura cumprir determinado programa do governo ou viabilizar objetivos
macroeconômicos. A escolha do programa ser implementado pelo estado
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e dos objetivos de política econômica e social reflete os interesses das


classes, envolvendo negociações de seus representantes políticos, na qual
o orçamento e expressão das suas reivindicações [...]o orçamento deve
ser visto como o espelho da vida política de uma sociedade, à medida que
registra e revela, em sua estrutura de gastos e receitas, sobre que classe ou
fração de classe recai o maior ou o menor ônus da distribuição e as que
mais se beneficiam com os seus gastos. Por maio do orçamento público,
o poder executivo procura cumprir determinado programa de governo ou
viabilizar os objetivos macroeconômicos.

Angola vive grandes problemas no que tange o cumprimento dos pro-


gramas estabelecidos, principalmente no setor social, dada a insuficiência
dos recursos alocados numa nítida desigualdade de despesas, cuja política
macroeconômica volta-se para a exploração e exportação e para a amor-
tização da dívida pública, com as questões asfixiantes já anunciadas, e o
orçamento deixa de jogar o papel preponderante de arcar com os programas
e a viabilização macroeconômica.
O que se espera é que a Assembleia Nacional, ao aprovar o Orçamento
como instrumento político-econômico e financeiro do Estado, leve em con-
sideração as políticas públicas principalmente no espectro social, que visem
garantir o acesso aos direitos dos angolanos plasmados na constituição. Espe-
ra-se, que as receitas advindas dos recursos explorados e exportados sejam
distribuídas proporcionalmente, conforme os impactos ambientais resultantes
desde a prospecção até a exploração e as consequentes restrições das ativi-
dades endógenas, sobretudo nas áreas de exploração. De modo contrário, a
desigualdade de despesas será a tônica constante, questões como impacto
ambiental e restrições de atividades – por exemplo, pesca artesanal, agricultura
172

familiar e extrativismo – acabam não sendo levadas em consideração, fazendo


com que se perpetue a desigualdade na distribuição do fundo público.

O fundo público envolve toda capacidade de mobilização de recursos que


o Estado tem para intervir na economia, além do próprio orçamento das
empresas estatais, a política monetária, comandada pelo Banco Central
para socorrer as instituições financeiras etc. A expressão mais visível do
fundo público é o orçamento estatal (BEHRING, 2021, p. 47-51).

No caso de angola, trata-se do Banco Nacional de Angola, assim sendo,


o Orçamento Geral do Estado 2021, publicado no Diário da República
em 31 de dezembro de 2020, aponta que as receitas utilizadas para sua
elaboração são oriundas de várias fontes, a saber: Financiamento Externo,
Financiamento Interno, Recursos Consignados-Diversos, Recursos Con-
signados-Local, Recursos Consignados-Petróleo, Recursos Ordinários do

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Tesouro e Recursos Próprios (ANGOLA, 2020, p. 7.096). Contudo, apesar
de haver diversas fontes de receitas, o petróleo é considerado o carro-chefe
na sustentação do OGE.
Por outro lado, é importante observar que o Relatório de Fundamen-
tação da proposta do OGE para 2021 afirma que a atividade econômica
do país registrou novo declínio, prolongando a recessão econômica para
cinco anos consecutivos. Esse enfraquecimento foi, entre 2016 e 2019,
assim como em anos anteriores, atribuído a sucessivas baixas nas recei-
tas advindas das atividades petrolíferas, em decorrência das flutuações
de mercado. Contudo, a partir de 2020, pode ser associado também aos
impactos da pandemia do covid-19 nas economias mundiais (ANGOLA,
2020a, p. 57). Significa dizer que, embora todas as atividades produtivas
consignadas participem nas receitas do Orçamento Geral do Estado, fica
evidente a presença efetiva da exploração petrolífera na constituição e
manutenção da política econômica de Angola.

Alocação de recursos e desigualdades sociais e regionais

Fatores como demografia e índice de pobreza são determinantes para se


ter em contas se a distribuição da renda está sendo feita de forma equitativa
e igualitária em um determinado país. No caso de Angola, a exploração de
recursos naturais é distinta entre as áreas. Levando-se em consideração esse
aspecto, também deveriam ser levadas em conta as políticas de concessão,
a exemplo de outros países nos quais há exploração de recursos naturais,
como minérios de ferro, diamante, madeira, petróleo, ouro, cobalto, bau-
xita, entre outros.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 173

Tais recursos geralmente são considerados primordiais para a organiza-


ção das políticas econômicas locais, portanto, se faz necessário que haja o
estabelecimento de políticas de concessão que privilegiem o equilíbrio entre
o que se explora e o retorno econômico para o desenvolvimento social, a fim
de evitar ao máximo possível os danos ambientais e compensar as restrições
impostas aos habitantes das áreas de exploração. Isso significa dizer que o
governo precisa ter ciência de que, ao conceder as áreas de exploração, exis-
tem danos tangíveis e não tangíveis, para posteriormente destinar as receitas
arrecadas da exploração e exportação e as verbas de concessão (royalties)64
de maneira a favorecer a paz social e o equilíbrio ambiental.
Olhando para Orçamento Geral do Estado de Angola, entre 2019 e 2022,
percebe-se de forma nítida que os critérios utilizados para a distribuição dos
recursos não levam em consideração as questões ambientais e os impactos na
vida dos habitantes das áreas exploradas, especialmente em termos de restri-
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ções à prática das atividades endógenas, como pesca, agricultura familiar e


extrativismo (CANGA; BUZA, 2011).
No que concerne à exploração do petróleo, embora o histórico geológico
de Angola apresente grandes potencialidades nas costas de Luanda, Benguela,
Namibe, Cabinda e Zaire, até o momento, a atividade de exploração do ouro
negro tem priorizado as províncias de Cabinda e Zaire, onde a exploração e
exportação do petróleo participam significativamente na composição do PIB
do país. Assim sendo, as áreas petrolíferas deveriam ser consideradas estra-
tégicas na organização da política econômica nacional, de forma a receberem
atenção quanto às suas demandas de desenvolvimento social e tornando-se
sustentáveis, ao menos nesse setor, já que a diversificação da economia ainda
é uma miragem.
Olhando para o histórico de exploração de recursos naturais em Angola,
notadamente o petróleo, não se tem percebido que finalidade concreta vem
sendo dada às compensações geradas nesse ramo, já que receitas usadas são
intrínsecas às fontes previstas no OGE 2021, já mencionadas.
Assim sendo, para o exercício de 2021, conforme a Lei que aprova o
Orçamento (ANGOLA, 2020, p. 7.075-7.076), a distribuição territorial da
despesa por província representa cerca de 16,6% do OGE (2.451,17 bilhões
de kwanzas, equivalentes à USD 3.784.538.661,06); essa distribuição exclui
as despesas com a estrutura central (30% do OGE, cerca de 4.552, 21 bilhões
de kwanzas, equivalentes à USD 7.028.486.289,53), operações de dívida
pública (52% do OGE, cerca de 7.756,69 bilhões de kwanzas, equivalentes
à USD 11.976.114.748,02), e ainda a despesa com exterior para atendimento

64 São uma compensação financeira que as empresas exploradoras revertem à administração local de onde
exploram os recursos naturais.
174

das missões diplomáticas (0,2% do OGE, cerca de 25,13 bilhões de kwanzas,


equivalentes à USD 38.800.024,7).65
Dentre os fatores que concorrem para a distribuição das despesas por
província destacam-se a concentração populacional e o volume da ativi-
dade econômica, segundo (ANGOLA, 2020, p. 7.076). Desse modo, 25,1%
do total de despesas do território nacional foram alocadas à província de
Luanda, seguindo-se de Benguela, Malanje, Bié, Huíla e Huambo, com
8,4%,7,5%,7,3%,6,1%e 5,4%, respectivamente, conforme a Tabela – 1.

Tabela 1 – Distribuição da despesa territorial por províncias


Cuando Cubango 2,1%
Namibe 2,6%
Bengo 2,8%
Lunda Sul 2,8%

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Moxico 2,9%
Cunene 2,9%
Uige 3,7%
Lunda Norte 3,8%
Cabinda 3,9%
Cuanza Sul 4,0 %
Cuanza Norte 4,3%
Zaire 4,4%
Huambo 5,4%
Huíla 6,1%
Bié 7,3%
Malanje 7,5%
Benguela 8,4%
Luanda 25,1%
Fonte: Adapt. Diário da República (ANGOLA, 2020, p. 7.076).

É bem evidente que a distribuição/alocação de recursos obedece aos fatores


volume da população e atividades econômicas. Esses dois fatores inviabilizam
outros que deveriam ser levados em consideração para estabelecer a equidade
e a igualdade na distribuição de recursos, fazendo com que muitas áreas de
exploração sejam excluídas. Entre estes fatores pode-se incluir o percentual
de contribuição ao OGE e a densidade populacional. O Gráfico 1, a seguir,
demonstra a distribuição percentual da população por província em Angola.

65 A conversão dos valores da moeda Kwanzas (AKZ) para dólares americanos (USD) seguiu a cotação de
21 ago. 2021.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 175

Gráfico 1 – Distribuição da população por província

Distribuição da população
Luanda 27,10%
Huíla 9,70%
Benguela 8,60%
Huambo 7,90%
Cuanza Sul 7,30%
Uige 5,70%
Bié 5,60%
Cunene 3,80%
Malanje 3,80%
Lunda Norte 3,30%
Moxico 2,90%
Cabinda 2,80%
Zaire 2,30%
Cuando Cubango 2,10%
Lunda Sul 2,10%
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Cuanza Norte 1,70%


Namibe 1,60%
Bengo 1,40%
0 0,05 0,1 0,15 0,2 0,25 0,3

Fonte: Adapt. Inquérito de Indicadores Múltiplos e de Saúde (IIMS) 2015-2016 (INE, 2020, passim).

O elevado índice de pobreza nas zonas rurais, como afirma o INE 2020
(p. 15), tem levado, nos últimos anos, a uma frenética escalada do êxodo rural de
adultos, jovens, adolescentes e inclusive crianças em busca de melhores condi-
ções de vida nos grandes centros urbanos, sendo Luanda o epicentro desse afluxo
populacional, e também uma das províncias com os maiores índices de pobreza.
Estatísticas atualizadas indicam que 68,1% da população de Angola
se encontra na cidade, e por ano, 4,04% fazem a migração urbana. Como
resultado, cerca de 30% da população angolana se encontra na capital. Isso
ocorre principalmente porque os fatores colocados para a distribuição nacional
da renda são limitantes ao desenvolvimento de outras províncias, inclusive
aquelas que geram receitas da exploração de seus recursos naturais. Como
consequência, não há diversificação das atividades produtivas, fato que, aliado
à distribuição desigual da renda, tem restringido as opções de trabalho, e,
portanto, de sobrevivência nessas localidades, impelindo suas populações
aos deslocamentos e criando grandes faixas de ocupação desordenada nas
periferias das cidades de destino.
Para sanar esse grave descompasso, mesmo que não preenchendo os
requisitos estabelecidos, dever-se-ia fazer ao menos a aplicação efetiva dos
royalties para favorecer a elaboração de projetos sociais, tais como melhora-
mento do sistema educacional, saúde, saneamento básico, água potável, luz
elétrica, estradas, transporte público de qualidade, como contrapartida aos
176

danos tangíveis e não tangíveis causados desde a prospecção até a exploração


dos recursos naturais, principalmente o petróleo.

Cooperação desigual: paz social, um bem ainda por alcançar

Mesmo antes da recessão provocada pela queda drástica do preço do


barril de petróleo, deflagrada em 2014, que se acentuou com a crise sanitária
mundial, já era possível perceber a distribuição desigual das receitas advin-
das da exploração e exportação de recursos naturais, com preponderância
do petróleo em Angola. Essa commodity é atualmente o principal item na
composição do Produto Interno Bruto – PIB angolano e, com efeito, deveria
ter reflexo direto no desenvolvimento social do país e no usufruto, por seus
habitantes, dos direitos consagrados na Constituição.
Ocorre que, no contexto de um amplo programa de reconstrução nacio-

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nal, com o lema “Faremos de Angola um canteiro de obras”, divulgado e
publicitado em 2002, as receitas vindas do petróleo e da dívida externa foram,
em sua maior parte, direcionadas para a construção de mega estruturas, sem
planejamento estratégico de curto, médio e longo prazos. O lema converteu-se,
então, no surgimento de edifícios muito bem estruturados externamente, mas
cujos fundamentos se mostram efêmeros. Esse direcionamento intencional
de construção foi acompanhado, na maioria das vezes, de super faturamento
e dilapidação do fundo público.
Canga (2011, p. 89) afirma que a maioria dos projetos envolviam altos
custos monetários, frutos da sua magnitude e da escolha do material utilizado,
quase todo importado e de qualidade duvidosa.
As políticas de cooperação no âmbito da construção e aquisição de maté-
ria-prima para a construção se mostraram pouco eficazes e na sua maioria
desiguais. No âmbito da construção civil, vale aqui destacar a cooperação
com o Brasil, por meio da Odebrecht, e, a partir de 2002, com o advento da
paz de forma mais expressiva, com as empresas chinesas.
A Odebrecht chegou em Angola em 1980, no período da guerra civil, e
sua presença foi marcante após assinatura dos acordos de Bicesse, em 2002.
A empresa esteve envolvida em todos os projetos de reconstrução de Angola,
anunciados pelo governo (ALENCASTRO, 2020). O mesmo autor afirma que:

Em 2015, pouco antes colapso da economia angolana, a Odebrecht era a


maior empregadora [...], a principal beneficiária de créditos do ministé-
rio das obras públicas e receptora de financiamento público brasileiro. A
empresa estava envolvida em um número incontável de Setores, desde a
gestão de uma cadeia de supermercados até a exploração de diamantes
(ALENCASTRO, 2020, p. 1).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 177

Práticas nefastas internas e externas são analisadas pela forma como


se processavam as relações de negócios, a produção e reprodução do capi-
tal, Angola/Brasil, principalmente no governo Luiz Inácio Lula da Silva, no
período de 2003 a 2010, pois, associada à elite angolana, a Odebrecht produziu
lucros exorbitantes estendendo-se em todo território nacional numa tímida
ação de rotação e circulação de capital, como Behring afirma ser:

Uma condição decisiva para que o ciclo do capital ocorra como produ-
ção e reprodução é a de que existe metamorfose permanente da forma
capital-mercadoria em capital-dinheiro mediada pela reprodução e pela
circulação como processos mercadorias, dinheiro, capital variável, capi-
tal fixo, capital circulante —, no tempo e no espaço, na produção e na
circulação. Esse todo processo pouco tem a ver com necessidades reais
e move-se com demanda por pagamento (solvente), pela necessidade
inadiável da metamorfose em dinheiro (BEHRING, 2021, p. 47-50).
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As variadas formas que o capital assumiu serviram para aprofundar e


perpetuar a manutenção de uma elite, numa perspectiva mercantilista, com
fim único de pilhagem e capitalização do bem comum. A rotação do capital se
materializou na subfaturação, e ampliou os negócios com lucros palpáveis. O
capital circulante abriu espaços para a terceirização de atividades que deveriam
ser unicamente do Estado e criou voos para investimento externo fora do país.
Essa perspectiva parece ser reforçada na quinta república angolana com
a seguinte afirmação do Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço: “No
plano econômico, acreditamos que se o Estado cumprir bem com seu papel
de fiscalizador e regulador da actividade económica, passando a ser cada vez
menos interventivo, com isso vamos impulsionar a iniciativa privada levando-a
a ocupar o espaço que merece e lhe compete realizar.ˮ66
Com forte ênfase na continuação de implementação de um sistema
neoliberal, muito evidente nos discursos, o Estado através do seu execu-
tivo delega as responsabilidades do setor público ao setor privado e passa
a comportar-se como mero fiscalizador das atividades do setor privado. A
história já tem demonstrado que este percurso é perigoso e nefasto. Como
consequência, passa para a esfera privada, para grupos cujos interesses são
única e exclusivamente particulares, o controle de empresas estatais, erguidas
com fundos públicos.
Buza, Leher e Canga (2022, p. 2), apresentam o exemplo prático na
terceirização do ensino superior para instituições privadas, ao afirmarem:

66 Disponível em: https://simplifica.gov.ao/artigo/mensagem-do-presidente-da-republica-de-angola.


178

No que tange ao ensino superior, em nome da democratização e da maior


qualidade e eficiência, o governo estabeleceu incentivos favoráveis à priva-
tização e à mercantilização da educação a partir do final da década de 2000,
como o sistema de bolsas nacionais abrangendo as instituições privadas e,
não menos importante, revogando a gratuidade nas instituições públicas.
Resultam dessas medidas uma acentuada descentralização, diversificação
e diferenciação das instituições de ensino.

Se por um lado a mercantilização do ensino superior tem trazido os resul-


tados mencionados, nos últimos 20 anos, de forma muito marcante, Angola
tem se alinhado cada vez mais na perspectiva de terceirização das atividades
públicas para o setor privado.
No âmbito da reconstrução do país com o lema “Faremos de Angola um
canteiro de obras”, a iniciativa se tornou efêmera, ao terceirizar as respon-
sabilidades para o setor privado sem uma fiscalização eficaz e permanente.

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Como resultado, o país convive com um cenário de crise, desde o ordenamento
territorial até o saneamento básico, ao mesmo tempo que os equipamentos
públicos de funções básicas, como saúde, transporte, educação, áreas verde
e de lazer se mostram deficitárias. Tal cenário é ainda mais desolador quando
se recorre ao discurso de investidura do candidato reeleito para continuar a
presidir o país nos próximos cinco anos, o presidente João Manuel Gonçalves
Lourenço (SIAC, 2022, p. 3) quando afirmou o seguinte:

Vamos priorizar o sector social, com uma séria aposta nos recur-
sos humanos. Esta é a única via, se pretendemos realmente tirar o
país do lugar em que se encontra no que respeita a vários indicado-
res de desenvolvimento humano e de desenvolvimento econômico.
A adopção de práticas correctas, sejam no exercício público, seja no
âmbito da sociedade, vai exigir das famílias, das escolas, das igrejas
e das demais organizações da sociedade civil, o reforço de valores
morais, da coesão social e do patriotismo. Para além da erradicação
da fome e do combate à pobreza através de um programa integrado,
vamos lutar pelo empoderamento e apoio às famílias desfavorecidas
, tendo em vista a ascensão social de um bom número de famílias ango-
lanas, tanto no meio urbano e rural [...] O nosso objectivo será, para
os próximos cinco anos, reduzir consideravelmente as actuais taxas de
mortalidade e de mortalidade infantil, com o concurso das unidades
sanitárias públicas e privadas, bem como com a reactivação do programa
de educação para saúde.

Olhando para o sistema implementado, o setor social passou a ser não


prioritário, a aposta no ser humano passou a ser terceirizada tornando-se ensino
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 179

mercantil e sem qualidade. Essa realidade descarrilou toda estrutura social


angolana, o que elevou o discurso do presidente a um apelo.
O apelo à ascensão social de um bom número de famílias no meio rural
e urbano faz eco, visto que, embora a reconstrução do país tivesse por pres-
suposto que os investimentos atendessem a todas as províncias, o “vistoso”
crescimento no setor imobiliário, que se assistiu depois do calar das armas,
privilegiou cidades de destaque como Luanda, Benguela, Huambo e Lubango,
isto é, grandes centros urbanos.
No início da quinta república é bem visível os epicentros da concentração
de renda para satisfazer os interesses de uma pequena elite. Em contrapartida,
percebe-se em distintas províncias não privilegiadas e outras localidades o sur-
gimento de obras inacabadas em disputa pelo fundo público nos últimos cinco
anos, com permanente autorização de alocação de verbas para sua conclusão.
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A Odebrecht, porém, é diferente de outras empresas estrangeiras que inves-


tiram em Angola durante o período, sobretudo pelo nível incomum de sua
integração ao meio político e econômico angolano. Essa integração teve qua-
tro níveis [...] no primeiro nível a Odebrecht deixou de depender unicamente
do financiamento público Brasileiro, passando a captar fundos do governo
angolano. Suas atividades de pequeno e médio porte eram quase sustentadas
pelo Ministério das Obras Públicas angolano, que alocava cerca de 10%
de seu orçamento entre 2003 e 2015 (Capai e Viana, 2016). Em 2012, a
empresa chegou a criar a Odebrecht Africa Fund (OAF) para financiar seus
investimentos no mercado angolano em sectores tão diversos como cons-
trução e engenharia, bioenergia, distribuição alimentícia, entretenimento,
petróleo e diamantes. O fundo foi rapidamente descontinuado por problemas
operacionais. Porém, sua própria concepção e as parcerias crescentes com
o Estado angolano indicam que a empresa brasileira caminhava para, em
médio prazo, tornar-se autônoma dos financiamentos do Estado brasileiro,
que sustentaram todos os seus projectos no país africano na década ante-
rior. O segundo nível é a transversalidade das atividades da Odebrecht em
Angola. O Estado angolano, diante de sua falta de capacidade de liderar a
construção da infraestrutura básica, passou a atribuir ao setor privado tarefas
habitualmente associadas ao poder público. Coube à Odebrecht construir
todo tipo de infraestrutura: de aeroportos a escolas, passando pela rede de
estradas. Algumas dessas tarefas dificilmente eram compatíveis com o obje-
tivo declarado da empresa de, no exterior, atuar exclusivamente em sectores
estratégicos. Mas todas cumpriam uma função específica. [...] para tanto,
a Odebrecht passou a incluir empresas angolanas controladas por quadros
políticos locais. O terceiro nível da incorporação é o aumento do número de
funcionários angolanos na empresa. A partir de 2002, a Odebrecht passou a
reivindicar o estatuto de maior empregadora de Angola depois do Estado,
180

Com 95% dos 15mil postos de trabalho preenchidos por mão de obra local.
A sede da empresa em Luanda, ainda comandada por Brasileiros, passou a
responder diretamente ao governo angolano. Ela podia tomar decisões sobre
projectos sem necessitar do aval das decisões dos dirigentes baseados em
Salvador. O quarto e último é a importação de modelos de projectos habi-
tacionais como minha casa minha vida (ALENCASTRO, 2020, p. 9-10).

Nesses quatros níveis que Alencastro coloca é possível perceber também


quatro tendências, a saber:

1. o processo neocolonial e imperialista que integra a empresa ao


meio político e econômico, visando à ampliação do monopólio e à
expansão das ideias de um capitalismo periférico e selvagem com
grande controle econômico-político na vida do país, para tirar maior
vantagem e manter a sua hegemonia.

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2. enviesada na implementação de princípios neoliberais, há a restri-
ção da intervenção do Estado, delegando à empresas tais como a
Odebrecht tarefas do poder público, numa nítida terceirização de
atividades públicas.
3. abertura de espaços para vínculo empregatício precário à custa do
fundo público.
4. apresentação de um tipo ideal de política habitacional sem levar em
consideração o contexto e as restrições de água potável, transporte
público e energia elétrica.

Em síntese, o credor converteu-se em usurpador de fundos públicos locais,


numa atuação extra imperialista e abusiva. Importa aqui destacar que muito do que
observa teve a sua influência nas relações que Angola desenvolveu com a Repú-
blica Popular da China (RPC), com destaque para o início da década de 1980.
O grande impulso no âmbito da cooperação econômico na área da cons-
trução civil China/Angola ganha mais ênfase com o estabelecimento da paz,
em abril de 2022, com o início do processo de reconstrução nacional. Por isso
Sousa (2020, p. 3) afirma:

Na verdade, nos meses subsequentes à pacificação do território nacional,


o governo angolano procurou organizar uma conferência de doadores
internacionais capazes de contribuírem generosamente para reconstru-
ção de um país dilacerado por uma guerra que havia consumido a maior
parte das suas infraestruturas, isolando mesmo largas parcelas do interior
rural. O governo não receberia, porém, mais do que exigências políticas
de democratização total e transformação abrupta das estruturas do Estado
como condição imperativa para a obtenção de fundos entre os grandes
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 181

países industrializados ocidentais. A excepção foi precisamente a RPC que,


continuando a vazar, ontem como hoje, a sua política externa nos cinco
princípios de coexistência pacífica, remontando ainda 1954, se prontificou
a ajudar a reconstrução de Angola. País que oferecia recursos naturais
abundantes para alimentar o acelerado crescimento da China. Um grande
plano de reconstrução urgente de infraestruturas rodoviárias e ferroviárias,
equipamentos administrativos, de assistência social e educativa, a RPC
ofereceu de imediato empréstimos sem condições políticas e com prazos
muito favoráveis. A seguir, em 2004, o banco chinês EXIM abriu uma linha
de credito de 2 bilhões de dólares concedidos ao Ministério das Finanças
angolano para a realização de 150 projectos prioritários de reconstrução
de infraestruturas várias, produção e distribuição de energia, reabilitação
de estruturas e equipamentos nas áreas da saúde e da educação. Em 2007,
dois novos acordos no valor respectivo de 500 milhões e 2 bilhões de
dólares foram assinados entre os dois países para reconstrução de várias
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infraestruturas, incluindo a continuação da reabilitação do vital caminho


de ferro de Benguela e da ferrovia de serviço a Luanda e arredores. [...]
Angola, sob o paradigma crítico final de todos os defeitos e contradições
imputados à cooperação entre China e África, que mais não seriam afinal
do que elemento estratégico de um modelo econômico-comercial de voraz
rapina dos inocentes recursos naturais e energéticos do continente africano,
viu surgir a nova cidade do Kilamba. Quando nos finais de 2011, a gigante
estatal CITIC deu por concluída a construção dessa enorme cidade projec-
tada para 500 mil habitantes, as reportagens críticas nos mais diferentes
media europeus e norte-americanos sucederam-se sem piedade.

A cooperação com a China, segundo críticos, não fugiu dos ditames da


exploração e ampliação do monopólio chinês em Angola. Desde o forneci-
mento de bens de consumo até a expropriação de recursos naturais no processo
de reconstrução, a China para além dos bens de consumos forneceu a mão de
obra para construção civil. Os angolanos eram contratados como mão de obra
barata. Várias eram as denúncias de maus-tratos dos angolanos nas empresas
chinesas. Houve ainda cooperação, bem caracterizada pelos críticos, entre
parceiros econômicos e comerciais de voraz rapina dos recursos naturais e
energéticos de Angola, com aval dos grupos de decisão e execução. Por con-
seguinte, Angola se tornou nos últimos anos um espaço de apropriação do bem
público não só pela elite, mas também pelos estrangeiros com a permissão de
angolanos e angolanas sem compromisso com a Constituição e com a pátria.
Neste contexto, o Orçamento Geral do Estado deixou de garantir os
direitos constitucionais. A reconstrução se converteu em exploração e apro-
priação do fundo público. Os recursos naturais se tornaram a moeda de troca
182

para alimentar um capitalismo selvagem. Os créditos da dívida externa con-


centram-se em empreendimentos que beneficiavam grupos empresariais e
políticos. Ou seja, o petróleo, principal matéria-prima, deixou de exercer o
papel primordial de manutenção dos interesses dos angolanos e perdeu sua
finalidade de garantir uma distribuição de renda equitativa.
Alinhados a esse fato, os programas elaborados, no que concerne as polí-
ticas públicas, tendem a satisfazer ainda os requisitos básicos do capitalismo
e do desenvolvimento moderno, que, na sua essência, são excludentes por si
só, uma vez que não garantem as liberdades substantivas e a paz social, o que
Canga (2011, p. 110) chamou de “modernizar em lógica perversa”.
O capitalismo contemporâneo e selvagem não se importa coma paz social
por estar preocupado com a produção de bens de consumo. O agravante no
cenário de Angola é que 90% dos bens de consumo são importados. Angola
paga a dívida externa com a matéria-prima e importa os derivados com a

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agregação de valores (CANGA, 2011, p. 110).
Mesmo com o discurso atual da diversificação da economia, o país con-
tinua a apostar numa política econômica baseada na exploração e exportação
de recursos naturais como madeira, diamante e, principalmente, petróleo, a
principal fonte de receita para o Orçamento Geral do Estado. Grande parte
desta receita serve de moeda de troca para o pagamento da dívida externa.
De um modo geral, pode-se dizer que essa foi a tônica da gestão pública
desde a Independência de Angola e, em consequência, direitos sociais básicos
foram sequestrados durante praticamente 45 anos, fortalecendo cada vez mais
uma elite econômica que se apropriou das receitas oriundas da exploração e
exportação dos recursos naturais, aproveitando-se do status quo e da máquina
estatal para pilhagem e usurpação do fundo público, levando acabo a rotação de
capital através da terceirização e privatização de determinados setores, a exem-
plo de várias empresas,sejam elas do ramos de construção civil, telecomunica-
ções ou comércio em geral, que disputavam o fundo público através do OGE.

O fundo público participa diretamente do processo de rotação do capital,


tendo em perspectiva o processo de reprodução capitalista como um todo;
isso ocorre especialmente no contexto de crise. Assim sendo, o fundo
público é um elemento fundamental, constituindo em causa contraria-
mente da queda tendencial da taxa de lucros, tendência intermitente do
capitalismo e que está na origem do advento das crises. Uma condição
decisiva para que o ciclo do capital ocorra como produção e reprodução é
a de que exista metamorfose permanente da forma capital-mercadoria em
capital-dinheiro mediada pela reprodução e pela circulação como processos
ininterruptos (BEHRING, 2021, p. 47-51).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 183

Enquanto se processa a metamorfose permanente da forma capital- mer-


cadoria em capital-dinheiro, mediada pela reprodução e pela circulação como
processo ininterruptos, o país vive problemas estruturais que, se não equacio-
nados,serão responsáveis no processo em que a paz social continuará a ser
uma miragem, destacando-se: a ausência de outras formas de produtividade
desvencilhadas da rotação de capital através do fundo público; a ausência de
bom ambiente de negócios; a falta de eficiência e eficácia nos processos da admi-
nistração pública; a debilidade dos recursos humanos; a taxa de desemprego67
acima de 34%, levando em consideração a população economicamente ativa; a
dívida pública que ronda acima dos 110% do PIB; a economia que ainda vive
os efeitos da recessão desde 2014, fruto da queda na cotação do petróleo; a taxa
de inflação na ordem de 18,7%; o PIB negativo com crescimento na ordem de
1,4%;68 o índice de corrupção numa posição de 142º em 2020,69 entre outros.
Diante desse cenário, já em 2020, o Executivo, ao encaminhar o OGE
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para aprovação na Assembleia Nacional, reconheceu o quadro nebuloso em


que o país vivia em termos da paz social:

[...] para reverter esse quadro, o Executivo continuará engajado na imple-


mentação das reformas econômicas iniciadas em 2018, com a Estabilização
Macroeconômica (PEM), pela via de um programa anual alinhado com o
plano de desenvolvimento nacional 2018-2022 (ANGOLA, 2020, p. 7.043).

Especificamente no que se refere ao combate e à prevenção da corrupção,


foi estabelecido que:

[...] de modo a tornar o país mais atrativo para investimento, o Execu-


tivo continua empenhado em melhorar o ambiente de negócios, adotando
uma governação mais aberta e transparente. O Executivo reafirma o seu
compromisso de combate a corrupção e a outros crimes econômicos e
financeiros (ANGOLA, 2020, p. 7.043).

Esse empenho só será materializado se a disputa pelo fundo público


deixar de favorecer objetivos escusos, quando fora par da dívida pública, que
é o calcanhar de Aquiles que corroí, até antes da guerra na Ucrânia, mais de
80% do OGE.
Por isto, para além da reforma econômica é urgente uma reforma adminis-
trativa do Estado, que coloque em prática o princípio do respeito das instituições
públicas para conformar os deveres aos direitos do cidadão (CANGA, 2022).

67 Taxa de Desemprego (TD) % = (População desempregada /população economicamente ativa) x 100%.


68 Instituto Nacional de Estatística (INE) – 2020.
69 Transparency International (2021, p. 3).
184

Observa-se que algumas instituições, se convertem em práticas que retar-


dam a garantia dos direitos do cidadão; com a corrupção em grande escala se
testemunha com grande incidência a dilapidação do fundo público.
Neste sentido, o Presidente da República de Angola, no discurso de posse
para o segundo e último mandato, 2022-2027, afirmava o seguinte:

[...] A necessidade de transparência na actuação dos serviços e dos servidores


públicos, bem como o combate ao crime económico e a corrupção que grassa
em algumas instituições, em diferentes níveis, constitui uma importante frente
de luta a ter seriamente em conta, na qual todos temos o dever de participar.
A corrupção e a impunidade têm um impacto negativo directo na capacidade
do Estado e dos seus agentes executarem qualquer programa de gover-
nação. Exorto, por isso, todo o nosso povo a trabalhar em conjunto para
extirpar esse mal que ameaça seriamente os alicerces da nossa sociedade.
O combate à pobreza é uma prioridade incontornável. Vamos, por isso,

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apostar na criação de emprego estável e na distribuição meritória dos recur-
sos disponíveis, garantindo a adopção de políticas de inclusão económica
e social, o que passa necessariamente pela protecção dos trabalhadores
(SIAC, 2022, p. 4).

Olhando para o artigo 21º da Constituição, revista em 2021, pode-se


identificar as tarefas fundamentais do Estado nas alíneas a), b),c),d),e),f)a
fim de assegurar a paz social:

a) Garantir a independência nacional a integridade territorial e a


soberania nacional;
b) Assegurar os direitos, liberdades e garantias fundamentais;
c) Criar progressivamente as condições necessárias para tornar efetivas
os direitos econômicos, sociais e culturais do cidadão;
d) Promover o bem-estar, a solidariedade social e a elevação da quali-
dade de vida do povo angolano, designadamente dos grupos popu-
lacionais mais desfavorecidos;
e) Promover a erradicação da fome;
f) Efetuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no
capital humano, com destaque para desenvolvimento integral das
crianças e dos jovens, bem como na educação, na saúde, sem levar
em consideração local de nascimento, religião, convicções políticas,
ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condições econômicas
ou social ou profissional (ANGOLA, 2021, p. 11).

A garantia da independência nacional, a integridade territorial e a sobera-


nia nacional são indiscutíveis, e, é de consenso nacional que elas precisam ser
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 185

salvaguardadas permanentemente. Porém, à ausência da maioria das garantias


fundamentais e dos direitos, plasmados na constituição, no que concerne a dig-
nidade da pessoa humana, após o termino da guerra civil e o calar das armas,
são objetivos que precisam ser perseguidos com afinco através de políticas
públicas robustas, densas e concretas, sem ilusões e acompanhadas de ações,
de diminuição do alto índice do desemprego, redução da informalidade que
atinge da população ativa e ameaça a dignidade humana.
É necessário ultrapassar a falta de condições de acesso a habitação,
saúde, educação de qualidade, água potável, saneamento básico, luz elétrica,
segurança alimentar, entre outros que fazem com que Angola e os angolanos
se mantenham entre os países com baixa qualidade de vida.
Importa aqui destacar que a alocação do OGE para o setor social, para
os anos 2019, 2020, 2021 e 2022, não alcançaram os níveis desejáveis para
enfrentar os desafios das necessidades reais e melhorar o quadro já referen-
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ciado, apesar da ênfase de alinhamento com o cumprimento do Plano de


Desenvolvimento Nacional 2018-2022, sinalizando o reforço necessário para
melhorar o setor social especificamente a educação, saúde, combate à pobreza
bem como o programa de estabilização macroeconômico.
Ao revisitar as quatro leis que aprovaram os OGE nos anos de 2019,
2020, 2021 e 2022, conforme a tabela – 2 percebemos que as verbas alocadas
para o setor social apresentam-se abaixo de 50%, nomeadamente: 39%, 5%,
40,9%, 40,1% e 38,8%.

Tabela 2 – Demonstrativo da alocação de verbas do OGE dos anos de 2019,


2020, 2021 e 2022 para o Setor Social, a Educação e o Ensino Superior
Valor total do orçamento geral do Estado (OGE) – Angola – 2019 – 2022

Ano 2019 2020 2021 2022

Autorizado 11.345,50 15.970.826.135,00 14.785.200.967.825,00 18.745.388.200.030,00

Pago 11.345,50 15.970.826.135,00 14.785.200.967.825,00 18.745.388.200.030,00

Função-sector social

2019 2020 2021 2022

Autorizado 2.381,30 2.564,00 2.775,50 3.564,90 -50%

Pago 2.381,30 2.564,00 2.775,50 3.564,90 -50%

Subfunção

Autorizado 677,2 845,9 1.009,20 1.244,8


Educação
Pago 677,2 845,9 1.009,20 1.244,8

Autorizado 749 797,3 841,6 905,5


Saúde
Pago 749 797,3 841,6 905,5

continua...
186

continuação
Autorizado 526,7 531,5 560,4 639,2
Proteção Social
Pago 526,7 531,5 560,4 639,2
Habitação Autorizado 369,7 344,5 309,7 684,6
e Serviçoes
Comunitarios Pago 369,7 344,5 309,7 684,6

Recreação Autorizado 47,7 28,6 44,3 77


Cultura e
Religião Pago 47,7 28,6 44,3 77

Proteção Autorizado 11,9 16,2 10,3 13,9


Ambiental Pago 11,9 16,2 10,3 13,9

Função- Ensino Superior

Autorizado 77.866.759.734,00 83.274.547.641,00 103.133.318.755,00 212.476.887.636,00 -1%

Pago 77.866.759.734,00 83.274.547.641,00 103.133.318.755,00 212.476.887.636,00 -1%

Subfunção

Autorizado 77.866.759.734,00 75.753.111.999,00 102.593.767.600,00 208.052.279.778,00

Editora CRV - Proibida a comercialização


Ensino Superior
de Graduação Pago 77.866.759.734,00 75.753.111.999,00 102 593.767.600,00 208.052.279.778,00
Ensino Autorizado 69.780.686,00 7.521.435.642,00 539.551.155,00 4.424.607.858,00
Superior de
Pós-Graduação Pago 69.780.686,00 7.521.435.642,00 539.551.155,00 4.424.607.858,00

Autorizado 3.517.043,00 0,00 7.062.268.804,00 12.147.579.439,00


Investigação e
desenvolvimento
em educação
Pago 3.517.043,00 0,00 7.062.268.804,00 12.147.579.439,00
Outros Autorizado 1 548 735 654,00 7.255.320.075,00 7.883.483.059,00
Servições de
Educação Pago 0,00 1 548 735 654,00 7.255.320.075,00 7.883.483.059,00

Educação Autorizado 420.443.314,00 0,00 4.183.834.380,00 3.573.617.091,00


Especial Pago 420.443.314,00 4.183.834.380,00 3.573.617.091,00

Embora o discurso teórico e documental se alinhem numa mesma direção,


na perspectiva do contexto de uma Angola real, porém, a realidade social não
corresponde à riqueza do seu subsolo e os valores embolsados pelos governos
na exportação da matéria-prima.
Por outro lado, a realidade material indica um reconhecimento e um
consenso dos estudiosos e da população em geral de que as políticas públi-
cas, principalmente no setor social, ainda não respondem às demandas da
sociedade. O fosso entre os discursos e as leis aprovadas, com destaque para
as garantias Constitucionais, ainda são abismais.
O governo reconhece que as políticas públicas implementadas, precisa-
mente no setor social ao longo dos últimos 20 anos, ainda não dão respostas
às assimetrias persistentes e às desigualdades sociais, assim como se mantém
ainda a distribuição desigual, tal como referenciado no discurso de investidura
do Presidente João Manuel Gonçalves Lourenço.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 187

A redução das desigualdades sociais passa por uma maior aposta no


sector social, nomeadamente no acesso à educação e ao conhecimento,
à assistência de base para todos, à segurança social e à assistência aos
mais vulneráveis e desfavorecidos. Para além das tarefas prioritárias já
mencionadas, temos pois de promover o Estado social, com políticas de
inclusão económica e social e de redução das desigualdades, apostando
num desenvolvimento com grande ênfase no meio rural e no aumento da
produção interna, agrícola e industrial. No decurso dos próximos cinco
anos, vamos procurar fixar a taxa de inflação em limites aceitáveis e con-
troláveis (SIAC, 2022, p. 4).

No que tange as políticas públicas no setor da educação, por exemplo,


Candumbo e Canga (2022, p. 230) demonstraram a ineficácia da segunda
reforma educativa, que hoje se encontra em processo de reformulação.
São identificadas dificuldades com a falta de salas de aulas e más condi-
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ções infraestruturais das escolas existentes, o que faz com que ainda haja em
muitas localidades lotação de salas de aulas, com35 alunos acima dos estabe-
lecidos por turma. Ainda observam-se situações em que as turmas possuem o
dobro de alunos, tendo como consequência a baixa qualidade no processo de
ensino-aprendizagem. O número elevado de crianças e jovens fora do sistema
de ensino, violando o direito a uma educação de qualidade para crianças e
jovens, são também um grave problema.
No que tange o setor da saúde, os grandes males que atingem a sociedade
ainda são evidentes e vividos no cotidiano, apesar da construção de alguns
hospitais de grande porte em alguns pontos do país. Os grandes desafios são
a falta de especialistas, equipamento tecnológico e pessoal capacitado para
o manuseio, assim como a quase inexistência de assistência medicamentosa.
A ausência de um hospital universitário em um país que se apresenta
como detentor de ao menos seis Faculdades de Medicina de instituições públi-
cas é o grande indicativo da lacuna em uma das áreas mais importantes da
saúde – a pesquisa científica.
A razão médico por número de habitantes também está fora das exi-
gências de OMS. Em Janeiro de 2022, Angola contava com 6.019 médicos,
quando necessitava, pelos habitantes que possuía, de cerca de 30mil médicos
para responder às exigências da OMS (ANGOLA, OAVPR, 2022). Neste
sentido, a razão estabelece 1médico para cada 5 mil habitantes.
Para os angolanos, a malária é a primeira causa da morte. Segundo dados
epidemiológicos apresentados no Relatório de 2019 e na errata de 2020 do
Ministério da Saúde – cenário que mudou nos anos subsequentes – a malária
tem representado mais de 90% de novos casos e de óbitos, em relação às
doenças mais frequentes como a tuberculose e muito recentemente, a covid-19.
188

Quanto à pobreza monetária, os indicadores apontam que a incidência


é de 40%, o que significa que 41 em cada 100 angolanos têm um nível de
consumo abaixo da linha da pobreza, estimada em kz 12.181/mês.70
A incidência nas zonas rurais é maior, representando quase o dobro com-
parativamente as áreas “urbanas”. Acredita-se que essa porcentagem tenha
aumentado nos últimos dois anos, quando ocorreu a crise sanitária que assolou
o mundo. Se antes da crise sanitária era possível perceber as incidências da
pobreza pela quantidade de crianças, jovens e adultos perambulando pela
cidade de Luanda em condição de mendicância, com a crise da covid-19 a
situação se torna cada vez mais grave.
Na cidade do Kilamba, centro urbano de classe média, é comum iden-
tificar famílias inteiras vindo das áreas periféricas fazerem dos contentores
de lixo o espaço de sobrevivência. A tabela – 3 faz menção dos corrosivos
do PIB, ou seja, aquelas variáveis que de forma significativa corroem o PIB.

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Tabela 3 – Demonstrativo de Corrosivos do PIB, 2019 – 2022
Anos
Corrosivos do PIB
2019 2020 2021 2022
Estoque da divida pública 113% 123% 82,10% -80%
Inflação 17,24% 25% 26,56% 18%
Taxa de crescimento 1,40% 1,80% 2,10% 2,40%
Rancking de corrupção 146º 142º 136º -136

Para além dos corrosivos do PIB (Estoque da dívida pública, Inflação,


Taxa de crescimento, rancking de corrupção) apresentados na tabela – 3 pode-se
mencionar as fundações, Unidades ou Comissões Técnicas e outras “institui-
ções” que se apresentam como parceiros do governo no enfrentamento das
desigualdades sociais, ou são criadas para uma estudos “temporário” tornando-se
depois “permanentes”, mas na realidade muitos deles surgem para se apropriam
do fundo público para implementar projetos que são objeto social de alguns
Departamentos Ministeriais.

Considerações finais

Angola, apesar de ser considerado um país potencialmente rico e com


20 anos de paz efetiva desde o calar da armas, não alcançou a paz social, que
ainda é uma miragem.

70 Equivalente a 0,025 Dólares no câmbio do dia 31 de outubro de 2022.


FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 189

Mesmo considerando que as receitas para a composição do OGE sejam


advindas de várias fontes, a sua composição ainda se baseia no preço do barril
do petróleo e por isso é considerado um orçamento predominantemente de
receitas fósseis.
Para além do volume da atividade econômica por província e o número
da população, a distribuição da renda por províncias não leva em conta outros
indicadores, como o peso percentual das províncias na receitas do OGE, o
que devia ser considerado para o retorno à estas províncias a retribuição
das suas riquezas. Outrossim, a densidade populacional que acentua as desi-
gualdades sociais entre as províncias, também não é observada, favorecendo
despesas desiguais.
A ausência de políticas públicas claras quanto às receitas de concessão
nas áreas de exploração de recursos naturais penaliza as populações dessas
áreas em todas as dimensões: ambiental, social, cultural e econômica.
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Ao longo dos 20 anos, a cooperação entre Angola e demais parceiros eco-


nômicos e comerciais se mostrou abusiva e vertical na medida em que alguns
credores aproveitaram de sua hegemonia, com a anuência das elites angolanas,
e exerceram uma colaboração favorável a si próprios e às elites angolanas.
190

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o artigo 215º e o nº 1 do artigo 242º, adita os artigos 107ºA, 116ºA, 132ºA,
198ºA, 200ºA, 212ºA e 241ºA e republica a Constituição da República de
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para o setor de Lula a Bolsonaro
Fernando Henrique Silva Carneiro71
Fernando Mascarenhas72
DOI: 10.24824/978652515394.0.193-214

Introdução

O orçamento público é um dos principais instrumentos que o Estado


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tem para materializar sua atuação junto a sociedade, ele “[...] garante con-
cretude à ação planejada do Estado e espelha as prioridades das políti-
cas públicas que serão priorizadas pelo governo” (SALVADOR, 2012a).
Embora o orçamento público tenha uma dimensão técnica, ele é um ins-
trumento de cunho político, já que expressa “[...] a correlação de forças
sociais e os interesses envolvidos na apropriação dos recursos públicos,
bem como a definição de quem vai arcar com o ônus do financiamento
dos gastos orçamentários” (SALVADOR, 2012b). Assim, as definições
do orçamento público se dão no contexto da disputa entre os interesses
antagônicos das classes sociais.
Os poderes Executivo e Legislativo estão diretamente envolvidos no
processo de planejamento e execução orçamentária, sendo que o primeiro
realiza sua elaboração a partir dos programas de governos presente no
Plano Plurianual (PPA), enquanto o segundo tem o dever de avaliar o
orçamento, podendo aprová-lo, rejeitá-lo ou modificá-lo (CARNEIRO et
al., 2019). Todo esse processo é permeado pelas influências das classes
e frações de classe presentes no Estado (ATHAYDE; MASCARENHAS;
SALVADOR, 2015).
Neste contexto, o orçamento público é atravessado por diferentes
interesses e disputado também por diferentes setores, sendo o esporte um
deles. O setor esportivo tem ocupado lugar marginal frente a outros seto-
res, como demonstrado nos estudos sobre o orçamento público do esporte

71 Professor de Educação Física no Instituto Federal de Goiás (IFG); Pesquisador do Grupo de Pesquisa e
Formação Sociocrítica em Educação Física, Esporte e Lazer (AVANTE-UnB).
72 Professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (FEF/UnB); Pesquisador do Grupo
de Pesquisa e Formação Sociocrítica em Educação Física, Esporte e Lazer (AVANTE-UnB).
194

(MASCARENHAS, 2016; GUIMARÃES, 2017; CARNEIRO, 2018). Linha-


les (1996) aponta que isto se dá em função de um ordenamento de prioridades
sociais e em função do potencial mobilizatório de cada setor. Bracht (2011)
aponta que quando o esporte é colocado como prioridade do Estado brasi-
leiro, isto se deve a razões corporativas, o que se expressa pela agenda dos
megaeventos esportivos no Brasil.
Cabe registrar que o financiamento do esporte no governo federal bra-
sileiro se dá a partir de três fontes de financiamento: orçamento, extraorça-
mento e gastos tributários (CARNEIRO; MASCARENHAS, 2018); sendo
a primeira a fonte mais relevante e visível da matriz de financiamento do
esporte. Essa centralidade da fonte orçamentária se deu principalmente nos
governos Lula (CARNEIRO, 2018). Por sua vez, estudos mais recentes,
como os de Athayde, Araújo e Pereira Filho (2021) e Matias (2021a; 2021b),
demonstram que nos governos Temer e Bolsonaro a fonte orçamentária

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passou a ser a mais diminuta frente às fontes extraorçamentárias e gastos tri-
butários. Esse movimento expressa o esvaziamento da fonte orçamentária e
o enfraquecimento do papel da pasta federal do esporte no desenvolvimento
das políticas públicas para o setor, com a extinção do Ministério do Esporte
(ME), substituído pela Secretaria Especial de Esporte (SEE) vinculada ao
Ministério da Cidadania.
Também é importante dizer que os estudos sobre financiamento do
esporte, principalmente, sobre o orçamento público, se ampliaram na
última década. Em estudo de revisão sobre essa produção, Pereira (2020)
identificou que a maioria dos estudos sobre financiamento do esporte anali-
saram o orçamento do esporte no governo federal – dirigidos aos governos
Lula (ATHAYDE; MASCARENHAS; SALVADOR, 2015; ALMEIDA;
MACHI JÚNIOR, 2010; CASTRO, 2016); aos governos Fernando Hen-
rique Cardoso, Lula e Dilma (MASCARENHAS, 2016; GUIMARÃES,
2017); ao governo Dilma (CARNEIRO et al., 2019); aos governos Lula
e Dilma (CARNEIRO; MASCARENHAS, 2018; CARNEIRO, 2018); a
os governos Lula, Dilma e Temer (CARNEIRO; ATHAYDE; MASCA-
RENHAS, 2019); aos governos Dilma e Temer (MATIAS, 2021a); aos
governos Dilma, Temer e Bolsonaro (ATHAYDE; ARAÚJO; PEREIRA
FILHO, 2021).73
Todavia, não há estudos que tenham analisado a série histórica dos últi-
mos 20 anos de orçamento do esporte, de Lula a Bolsonaro. Assim, este

73 Importante destacar a influência que os estudos desenvolvidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas do
Orçamento Público e Seguridade Social da Universidade do estado do Rio de Janeiro (GOPSS/UERJ)
exerceu sobre boa parte destas produções, particularmente, sobre aquelas construídas no âmbito do Grupo
de Pesquisa e Formação Sociocrítica em Educação Física, Esporte e Lazer (AVANTE-UnB).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 195

artigo apresenta uma análise do orçamento público do esporte ao longo de


2003 a 2022, tendo por base a origem dos recursos e seu gasto (magnitude
e direcionamento).

Delineamento da pesquisa

O presente artigo baseia-se em pesquisa descritivo-exploratória de


cunho quanti-qualitativo, desenvolvida a partir de levantamento documental.
O recorte temporal compreende uma série histórica de 20 anos, de 2003
a 2022. O marco inicial coincide com o primeiro ano do governo Lula e
com a criação do Ministério do Esporte; o final, coincide com o último ano
do governo Bolsonaro e com a própria disponibilidade de dados anuais
completos sobre o orçamento federal. É importante registrar que estamos
considerando os últimos seis governos: Lula 1 (2003-2006), Lula 2 (2007-
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2010), Dilma 1 (2011-2014), Dilma 2 (2015-2016)74, Temer (2016-2018) e


Bolsonaro (2019-2022).
O levantamento documental ou coleta de dados foi realizado a partir
de duas fontes: a) no Siga Brasil (Senado Federal, 2023a) foram busca-
dos dados sobre a origem dos recursos orçamentários para esporte, valores
referentes a etapas de planejamento e execução do orçamento do esporte e
os recursos totais do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social (OFSS); e,
b) no Portal Transparência no Esporte foram coletados os dados referentes
ao direcionamento dos gastos com esporte no orçamento federal (Transpa-
rência no Esporte, 2023).75 O levantamento foi realizado entre 1 e 30 de
janeiro de 2023.
A análise dos dados foi realizada com base na proposta de metodologia
crítica de análise do financiamento do esporte desenvolvida por Carneiro e
Mascarenhas (2018), considerando três indicadores: a) fontes de financia-
mento, referente à origem dos recursos e análise das diferentes fontes de
recursos do orçamento do esporte; b) magnitude do gasto, relativa ao montante
de gastos em cada ano e análise longitudinal da série histórica, debatendo a
evolução da execução orçamentária, bem como a execução do orçamento
do esporte em relação à totalidade do OFSS; e, c) direção do gasto, alusivo
ao direcionamento dos recursos, estabelecendo o que foi priorizado a partir
de diferentes categorias de gasto. Os dados sobre a fonte de financiamento e

74 O processo de impeachment da presidenta Dilma, denunciado pelo Partido dos Trabalhadores e movimentos
sociais como um golpe, fez com que ela fosse afastada do cargo em 12 de maio de 2016, processo que foi
finalizado em 31 de agosto de 2016 com a confirmação da cassação de seu mandato.
75 Ferramenta de monitoramento e visualização gráfica dos recursos públicos do esporte na esfera federal
produzida e atualizada pelo Grupo de Pesquisa e Formação Sociocrítica em Educação Física, Esporte e
Lazer da Universidade de Brasília (Avante-UnB). Ver: www.transparencianoesporte.unb.br.
196

direção do gasto se basearam na etapa de liquidação da execução orçamentá-


ria, haja vista, a não publicização de 2003 a 2011 dos recursos efetivamente
pagos, que seria a melhor opção para análise.76
Os dados financeiros utilizados foram deflacionados pelo Índice Geral de
Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), calculado pela Fundação Getúlio
Vargas, tendo como referência preços de dezembro de 2022. Este procedi-
mento se justifica pela necessidade de atualizar os valores para comparações
longitudinais, eliminando os efeitos da inflação e da desvalorização da moeda.
Para realizar este processo, foi utilizada a ferramenta Calculadora Cidadã,
disponibilizada pelo Banco Central do Brasil (2023).

Fontes de financiamento do orçamento do esporte

Para o estudo da execução orçamentária do esporte no âmbito federal,

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fizemos uso da classificação funcional-programática vigente, de acordo com
a Portaria do Ministério do Orçamento e Gestão n° 42/1999 – as bases desta
portaria são a Lei n° 4.320/1964 e a Lei n° 9.649/1998 (alterada pela Medida
Provisória n° 2.216-37/2001). Essa legislação estabelece a função Desporto
e Lazer como a rubrica que agrega o esporte e o lazer, bem como suas sub-
funções: Desporto de Rendimento, Desporto Comunitário e Lazer.
Todos os recursos da função Desporto e Lazer, pela classificação insti-
tucional, foram executados pelo Ministério do Esporte (2003-2018) e pela
Secretaria Especial do Esporte (2019-2022). Pela legislação, é possível que a
função Desporto e Lazer aloque recursos em outras subfunções, assim como
outras funções podem alocar recursos nas três subfunções supracitadas. Car-
neiro (2018) e Mascarenhas (2016) apontaram que isso aconteceu ao longo
dos governos Lula e Dilma.
A partir da metodologia desenvolvida por Carneiro e Mascarenhas
(2018) apresentamos a seguir, na Tabela 1, o orçamento federal do esporte
por subfonte. É possível identificar, ano a ano, de onde vieram os recursos
para o esporte.

76 Para a apuração da totalidade dos valores efetivamente pagos é necessário fazer a soma dos valores
pagos mais os valores de restos a pagar pagos, estes últimos, recursos liquidados em anos anteriores
que são pagos posteriormente. Os dados sobre restos a pagar pagos começaram a ser publicizados
somente a partir de 2012.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 197

Tabela 1 – Orçamento federal do esporte por subfonte


em R$ milhões – série 2003-2022
Recursos Contribuições Outros recursos Recursos ordinários e de outras
ordinários para a sobre concursos de orçamentários fontes de recursos do orçamento
Ano
função Desporto prognósticos para função para a função federal de distintas funções para as
e Lazer Desporto e Lazer Desporto e Lazer subfunções vinculadas ao esporte

2003 348,44 61,23 - -

2004 337,35 182,80 0,22 -

2005 281,48 99,92 - 17,28

2006 683,00 216,30 - 65,26

2007 3.972,81 454,92 - 3,04


2008 377,25 196,23 0,67 7,03
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2009 381,96 58,23 - 241,89


2010 592,81 72,64 - 681,08
2011 612,81 153,00 - 1.009,15
2012 730,00 131,80 - 138,42
2013 739,24 127,09 - 191,22
2014 1.635,04 142,39 - -
2015 1.040,85 216,60 0,75 -
2016 753,98 96,17 - -
2017 450,55 106,51 1,33 -
2018 298,58 180,57 1,37 10,54
2019 87,95 159,97 0,86 14,35
2020 0,73 105,10 20,98 4,82
2021 11,28 116,09 100,11 4,82
2022 12,84 156,98 123,26 6,17
Total 13.348,96 3.034,55 249,54 2.395,08
Obs.: 1. Valores liquidados; 2. Valores deflacionados pelo IGP-DI a preços de dezembro de 2022.
Fonte: Transparência no Esporte (2023) (Elaboração própria).

Os recursos ordinários são aqueles provenientes de Imposto de Renda


e o Imposto sobre Produtos Industrializados, além dos recursos desvincu-
lados das Contribuições Sociais (SALVADOR, 2012a). Esses recursos são
discricionários, isto é, eles podem ser alocados livremente em qualquer
função/órgão. Como pode ser identificado na Tabela 1, os recursos ordiná-
rios oscilaram bastante no período, tendência que vem sendo criticada nas
pesquisas sobre o orçamento do esporte (ATHAYDE; MASCARENHAS;
SALVADOR, 2015; MASCARENHAS; 2016; CARNEIRO, 2018). Pelo fato
198

de poder ser aplicado livremente, os recursos ordinários têm centralidade


na disputa pelo orçamento público levada a cabo pelos diferentes setores.
É importante situar que esta fonte de recurso tem um financiamento de
caráter regressivo, ou seja, é financiada, sobretudo, a partir do salário dos
trabalhadores (CARNEIRO et al., 2019).
Na Figura 1, agregamos o valor médio do orçamento alocado nas sub-
fontes do esporte por período de governo.

Figura 1 – Valor médio do orçamento alocado nas subfontes do


esporte por período de governo em R$ milhões – série 2003-2022

R$ 1.400,00

R$ 1.200,00

R$ 1.000,00

Editora CRV - Proibida a comercialização


R$ 800,00

R$ 600,00

R$ 400,00

R$ 200,00

R$ -
Lula 1 Lula 2 Dilma 1 Dilma 2 Temer Bolsonaro

Recursos ordinários para a função desporto e lazer.


Contribuições sobre concursos de prognós�cos para função desporto e lazer.
Outros recursos orçamentários para a função desporto e lazer.
Recursos ordinários e de outras fontes de recursos do orçamento federal de dis�ntas funções para as subfunções vinculadas ao esporte.

Fonte: Transparência no Esporte (2023) (Elaboração própria).


Obs.: 1. Valores liquidados; 2. Valores deflacionados pelo IGP-DI a preços de dezembro de 2022.

Além dos R$ 13,35 milhões de recursos ordinários para a função Des-


porto e Lazer, outros R$ 2 bilhões foram alocados por outras funções nas
subfunções vinculadas ao esporte. Assim, os recursos ordinários foram a prin-
cipal fonte de recursos para as políticas públicas federais de esporte. Eles
representaram 80,70% dos recursos.
Como pode ser identificado na Figura 1, o valor médio de recursos ordi-
nários para a função Desporto e Lazer aumentou do governo Lula 1 para o
governo Lula 2, apresentando posteriormente uma tendência de queda. No
período dos governos Lula, Dilma e Temer a referida subfonte foi a maior, o
que não acontece no governo Bolsonaro.
As contribuições sobre concursos de prognósticos voltados ao setor
esportivo são uma das principais fontes de financiamento do esporte brasi-
leiro, parte dela orçamentária e, outra parte, extraorçamentária (CARNEIRO
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 199

et al., 2019). É importante situar que toda contribuição social tem uma desti-
nação específica, constituindo um tipo de recursos vinculado. Assim, podemos
afirmar que o esporte conta com recursos vinculados no orçamento público
federal. Todos recursos desta subfonte foram recebidos pelo ME/SEE ao longo
do período (SENADO FEDERAL, 2023a).
Foi estabelecido na Lei n° 9.615/1998 (Lei Pelé) que os recursos prove-
nientes de contribuições sobre concursos prognósticos e loterias direcionados
ao esporte deveriam ser alocados no órgão gestor do esporte, neste caso, ME/
SEE. Durante o governo Lula foi aprovada a Lei n° 11.345/2006 (Timemania),
estabelecendo que parte destes recursos passassem a ser destinados aos clubes
de futebol. No governo Dilma foi criada a Lei n° 13.155/2015 que institui a
Loteria Exclusiva Instantânea (LOTEX), também voltada aos clubes de fute-
bol, com parte da arrecadação direcionada ao ME. De acordo com Matias e
Mascarenhas (2017), estas duas últimas loterias tinham como foco fornecer
Editora CRV - Proibida a comercialização

novas fontes de financiamento aos clubes de futebol endividados.


Já no governo Temer, para ampliar os recursos para o Fundo Nacional
de Segurança Pública, a Medida Provisória (MP) n° 841/2018 revogou todos
os dispositivos da Lei Pelé que garantiam repasse de recursos provenientes de
contribuições sobre concursos prognósticos para o esporte. Depois de ampla
mobilização do setor esportivo, foi editada a MP n° 846/2018, posteriormente
convertida na Lei n° 13.756/2018. Com essa nova legislação, recompõem-se
os repasses para o setor. “O então Ministério do Esporte (ME) e as Secreta-
rias Estaduais foram os principais afetados pelas mudanças implementadas
nos percentuais de destinação dos recursos provenientes das loterias, pois o
ME perdeu recurso para o seu orçamento em todas as modalidades lotéricas.”
(MARQUES et al., 2021, p. 4). Além disso, no governo Bolsonaro foi aprovada
a Lei n° 14.073/2020 que estabeleceu que parte dos recursos do ME deveriam
ser direcionados à Federação Nacional dos Clubes Esportivos (Fenaclubes).
Deste modo, fica claro que se os governos Lula e Dilma trabalharam para
garantir mais recursos para o esporte e, especificamente, para o Ministério
do Esporte (vide Figura 1). O inverso aconteceu com os governos Temer e
Bolsonaro, pois diminuíram os repasses a partir desta subfonte de recurso para
o ME. Isso tem relação direta com os projetos destes dois últimos governos,
com o objetivo claro de desmonte do Estado e subfinanciamento dos direitos
sociais, contrários aos interesses da classe trabalhadora (TAFFAREL; SAN-
TOS JÚNIOR, 2019). Neste contexto, houve um asfixiamento da política
esportiva (MATIAS, 2021a; 2021b).
Ao longo do período analisado, os montantes provenientes da subfonte
de contribuição sobre concursos de prognósticos para função Desporto e Lazer
representou 15,95% de todos os recursos orçamentários para o esporte. Os
200

recursos desta subfonte oscilaram bastante no período. Como demonstrado


acima, diferentes legislações que impactaram o financiamento do esporte a par-
tir de recursos arrecadados pela contribuição sobre concursos de prognósticos.
Além disso, Amaral (2005) chama atenção também para a imprevisibilidade
e volatilidade dos montantes de recursos proveniente desta subfonte, o que
se justifica pela a introdução de novos produtos, mudanças na preferência do
consumidor, variação nos esforços de marketing e acumulação em prêmios
principais de concursos de prognósticos numéricos.
Ainda para a função Desporto e Lazer houve outros recursos orçamentá-
rios: R$ 222,41 mil de outras contribuições sociais, em 2004; R$ 670,86 mil
de contribuição social sobre lucro das pessoas jurídicas, em 2008; R$ 2,87
milhões de remuneração das disponibilidades do Tesouro Nacional, nos anos
de 2015, 2017 e 2019; R$ 22,79 milhões de títulos de responsabilidade do
Tesouro Nacional, nos anos de 2018, 2020 e 2021; R$ 71,97 mil de recursos

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próprios primários de livre aplicação, em 2019; R$ 203,78 milhões de recursos
financeiros de livre aplicação, nos anos de 2020, 2021 e 2022; e, R$ 19,14
milhões de recursos de concessões e permissões em 2021.
Chama atenção que, no governo Bolsonaro, a segunda maior subfonte
orçamentária foi proveniente de outros recursos orçamentários para a função
Desporto e Lazer, o que correspondeu a 27,36% dos recursos para o Desporto
e Lazer no período do referido governo. Maior destaque para os valores da
subfonte recursos financeiros de livre aplicação, que corresponderam a 22,74%
dos recursos para o Desporto e Lazer de todo período do governo Bolsonaro.
Fica claro que na disputa pelo orçamento público, diante da dificuldade de
garantir recursos ordinários, buscaram-se outras fontes de recursos.
Dos R$ 19,03 bilhões para o esporte ao longo dos 20 anos analisados,
87,41% esteve alocado na função Desporto e Lazer, enquanto 12,59% foi pro-
veniente de outras funções. Assim, a gestão da maior parte dos recursos para o
esporte esteve institucionalmente vinculada ao ME/SEE. Os R$ 2,39 milhões
de outras funções/ministérios foram provenientes: R$ 1,68 bilhão da função
“defesa nacional” (Ministério da Defesa); R$ 385,61 milhões foi da função
“educação” (Ministério da Educação); e, R$ 329,64 milhões foi da função “cul-
tura” (Ministério da Cultura). A partir da Figura 1 fica claro que a outras pastas
alocaram recursos no esporte, sobremaneira, nos governos Dilma 1 e Lula 2.
Embora seja um avanço ao longo dos últimos 20 anos haver recursos de
outras pastas financiando ações esportivas, é importante que esse movimento
represente políticas públicas de esporte e lazer planejadas, implementadas e
avaliadas de modo intersetorial. Todavia a participação de outros setores no
financiamento do esporte caracteriza-se pela fragmentação (BONALUME,
2009; RIBEIRO; AMARAL; SILVA, 2014). As ações financiadas por outros
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 201

ministérios em relação ao esporte são pontuais e muitas vezes não se articu-


laram diretamente com as ações da pasta esportiva.

Magnitude do orçamento do esporte

Tendo por base a origem dos recursos orçamentários para o esporte, pas-
samos a analisar a magnitude destes recursos, do planejado ao executado. Para
isso, teremos por base a Tabela 2, nela é possível visualizar longitudinalmente
o volume de recursos para esporte no orçamento federal.

Tabela 2 – Planejamento e execução do orçamento do


esporte em R$ milhões – série 2003-2022
Liquidado/ OFSS/
Ano Dotação Inicial Autorizado Empenhado Liquidado
Autorizado Liquidado (%)
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2003 1.410,42 1.417,60 630,53 409,67 28,90 0,012


2004 1.257,98 1.348,76 954,03 520,37 38,58 0,017
2005 2.281,23 2.434,02 1.528,23 398,68 16,38 0,011
2006 3.022,81 3.466,64 2.528,17 964,56 27,82 0,025
2007 2.895,25 4.933,99 4.430,80 4.430,78 89,80 0,120
2008 3.223,55 4.674,52 2.725,15 581,18 12,43 0,017
2009 4.048,11 4.946,00 3.509,09 682,08 13,79 0,018
2010 5.221,25 6.774,31 3.956,02 1.346,53 19,88 0,036
2011 8.576,45 9.352,00 5.172,70 1.774,96 18,98 0,046
2012 6.569,78 9.193,31 3.550,52 1.000,22 10,88 0,025
2013 8.414,08 10.090,32 6.068,38 1.057,55 10,48 0,027
2014 4.637,36 6.864,52 5.028,75 1.777,43 25,89 0,039
2015 6.119,07 6.441,32 3.846,68 1.258,20 19,53 0,029
2016 2.968,62 2.957,04 2.489,34 850,16 28,75 0,019
2017 2.503,32 2.669,45 2.288,65 558,38 20,92 0,013
2018 2.111,07 2.160,19 2.050,93 491,06 22,73 0,011
2019 1.784,14 1.529,47 1.178,51 263,13 17,20 0,006
2020 870,32 762,56 757,93 131,63 17,26 0,003
2021 881,81 942,20 939,67 232,31 24,66 0,006
2022 873,86 872,57 856,18 299,26 34,30 0,007
Total 69.670,48 83.830,80 54.490,25 19.028,13 22,70 -
Fonte: Siga Brasil (2023a) (Elaboração própria).
Obs.: Valores deflacionados pelo IGP-DI a preços de dezembro de 2022.
202

E, na Tabela 3, conforme agregamos também estes valores planejados e


executados (valor médio) por período de governo.

Tabela 3 – Valor médio do planejamento e execução do orçamento do


esporte por período de governo em R$ milhões – série 2003-2022
Liquidado/ OFSS/
Governos Dotação Inicial Autorizado Empenhado Liquidado
Autorizado (%) Liquidado (%)
Lula 1 1.993,11 2.166,75 1.410,24 573,32 26,46 0,017
Lula 2 3.847,04 5.332,20 3.655,26 1.760,14 33,01 0,046
Dilma 1 7.049,42 8.875,04 4.955,09 1.402,54 15,80 0,034
Dilma 2 4.543,85 4.699,18 3.168,01 1.054,18 22,43 0,024
Temer 2.527,67 2.595,56 2.276,31 633,20 24,40 0,014
Bolsonaro 1.102,53 1.026,70 933,07 231,58 22,56 0,005

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Média total 3.483,52 4.191,54 2.724,51 951,41 24,96 0,024
Fonte: Siga Brasil (2023a) (Elaboração própria).
Obs.: Valores deflacionados pelo IGP-DI a preços de dezembro de 2022.

Conforme já apontamos, o processo de planejamento e execução orça-


mentário envolve os poderes Legislativo e Executivo. A primeira fase que
analisamos do orçamento é a Dotação Inicial, que se refere ao valor inicial
presente na Lei Orçamentária Anual (LOA), ou seja, o valor programado
para ser gasto com cada política em cada ano; já o Autorizado é a Dota-
ção Inicial acrescida e/ou deduzida dos créditos adicionais e/ou bloqueios
(SENADO FEDERAL, 2023b). Conforme pode ser observado na Tabela
2, ao longo dos 20 anos analisados, em apenas 4 anos – 2016, 2019, 2020
e 2022 – houve bloqueios; nos outros 16 anos houve créditos adicionais.
O valor total Autorizado no período foi R$ 14,16 bilhões, maior que a
Dotação Inicial.
Em relação a execução orçamentária, o Empenho é a primeira fase da
despesa pública, sendo o “[...] ato emanado de autoridade competente que
compromete parcela de dotação orçamentária disponível. Funciona como
garantia ao credor do ente público de que existe o crédito necessário para a
liquidação de um compromisso assumido” (SENADO FEDERAL, 2023b, s.
p.). Ao longo dos 20 anos analisados, 65,00% dos recursos Autorizados foram
Empenhados, tendo gerado um contingenciamento77 de R$ 29,34 milhões. Na
Tabela 3, é importante observar que os valores médios da Dotação Inicial,

77 Contingenciamento é a “Limitação que atinge as programações aprovadas na LOA em razão da avaliação


que o Governo faz periodicamente sobre o comportamento geral das receitas e despesas públicas, consi-
derando ainda uma meta de resultado fiscal anual (chamada de meta fiscal, prevista na LDO)” (SENADO
FEDERAL, 2023b, s. p.)
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 203

Autorizado e Empenhado aumentaram de Lula 1 até Dilma 1. Desde então,


foram diminuindo.
O Liquidado é a segunda etapa da despesa orçamentária, ela acontece
a partir da verificação objetiva do cumprimento contratual do objeto do
Empenho, sendo realizada a conferência se os serviços foram prestados
ou os bens foram fornecidos ou entregues (SENADO FEDERAL, 2023b).
A partir da Tabela 2 é possível perceber que ao longo do período, apenas
22,70% dos recursos Autorizados foram Liquidados; em relação ao Empe-
nhado, o Liquidado representou 34,92%. No que tange à média anual de
execução do Liquidado em relação ao Autorizado (vide Tabela 3), é possí-
vel afirmar que os governos Lula 1 e 2 foram os que mais tiveram sucesso,
enquanto o governo Dilma 1 foi o que teve mais dificuldade. Diferentes
estudos vêm demonstrando a dificuldade da execução do orçamento para o
esporte (CASTRO, 2016; GUIMARÃES, 2017; CARNEIRO; ATHAYDE;
Editora CRV - Proibida a comercialização

MASCARENHAS, 2019).
É importante situar que as políticas neoliberais que se aprofundaram no
Brasil, mais fortemente a partir dos anos 90, vêm impactando diretamente as
disputas pelo orçamento público, expressão disso é o ajuste fiscal permanente e
as contrarreformas que atacam os direitos dos trabalhadores (BEHRING, 2018).
Com efeito, foram constantes as políticas de austeridade fiscal, em seu ápice,
resultando na aprovação da Emenda Constitucional n° 95, que que limitou
por 20 anos os gastos correntes do governo (SALVADOR, 2020). Todas estas
questões e determinantes da política macroeconômica impactaram diretamente
a Liquidação dos recursos para o esporte. Por isso a diferença em relação ao que
foi planejado expresso pela Dotação Inicial, tendência que não é exclusividade
do esporte, mas que apanha o conjunto das políticas sociais. Estudos como os
de Mascarenhas (2016) e Carneiro (2018) já haviam analisado o impacto das
políticas de austeridade fiscal sobre o orçamento do esporte.
Fica claro pela Tabela 1 e 2 que, ao longo do tempo, houve bastante varia-
ção na execução orçamentário do Liquidado com esporte. Em 2007, foi o ano
que o esporte teve mais recurso orçamentário Liquidado, R$ 4,43 bilhões. Já
em 2020, foram R$ 131,63 milhões, valor mais de 33 vezes inferior que o de
2007. Esta oscilação tem relação com a distribuição dos recursos do orçamento
público entre os diferentes setores, quando o esporte é secundarizado frente a
outras necessidades (CARNEIRO, 2018; GUIMARÃES, 2017; ATHAYDE;
MASCARENHAS; SALVADOR, 2015). Foi somente quando prioridades
que emergiram na agenda esportiva, como no caso dos megaeventos, que a
alocação de recursos orçamentários no esporte ganhou maior volume (MAS-
CARENHAS et al., 2012; GUIMARÃES, 2017; CARNEIRO, 2018).
204

Em relação aos períodos de governo, os que apresentaram maior média de


gasto Liquidado foram os governos Lula 2, Dilma 1 e Dilma 2. Estes tiveram
média maiores que R$ 1 bilhão, com média superior àquela verificada no período.
Por outro lado, os governos que tiveram as menores médias de gasto Liquidado
foram Bolsonaro, Lula 1 e Temer. A média de gasto Liquidado com esporte do
governo Lula 2 é maior 7,6 vezes que a do governo Bolsonaro. Os governos
Lula e Dilma tinham uma visão de política esportiva que, embora contraditória,
favoreceu a ampliação das fontes de financiamento para o setor, bem como
representou um aumento de recursos direcionados para o setor esportivo, todavia,
algo que guarda relação com a agenda dos megaeventos (MASCARENHAS et
al., 2012). Já os governos Temer e Bolsonaro tinham um caráter destrutivo das
políticas sociais (TAFFAREL; SANTOS JÚNIOR, 2019), haja vista as classes
e frações de classe que davam sustentação a seus governos (MATIAS, 2021a;
2021b). Ademais, o “[...] esgotamento do ciclo de grandes eventos esportivos no

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Brasil se associou no tempo histórico ao Golpe (jurídico-midiático-parlamentar)
de 2016, engendrando interrupção, descontinuidade e fragilização da agenda
esportiva” (ATHAYDE; ARAÚJO; PEREIRA, 2021, p. 120).
Nas Tabela 2 e 3 há uma última coluna que demonstra a participação do
orçamento Liquidado para o esporte em relação a todos os recursos Liqui-
dados do OFSS. Ao longo dos 20 anos analisados, a média foi de 0,024%,
enquanto em 2007, o valor representou 0,120%. Em 2020, ele foi de apenas
0,003%. Estudos como os de Mascarenhas (2016), Guimarães (2017) e Car-
neiro (2018) já vinham demonstrando a irrisória participação do esporte no
OFSS. Foi nos governos Lula 2 e Dilma 1 que o esporte teve a maior fatia
do orçamento, enquanto nos governos Bolsonaro e Temer o esporte teve uma
participação menor. Nesses últimos dois governos, o esporte passou a ter um
espaço ainda mais marginal frente às outras políticas públicas. Ao longo dos
20 anos analisados, a participação do esporte no OFSS ficou longe dos 1%,
conforme proposto na I e II Conferência Nacional do Esporte (2004 e 2006),
mais ainda dos 2%, proposto pela terceira edição (2010).

Direcionamento do orçamento do esporte

Passamos agora a analisar o direcionamento do orçamento do esporte.


Para isso, fizemos uso da categorização proposta por Carneiro e Masca-
renhas (2018), utilizada pelo Transparência no Esporte (2023), ou seja:
Megaeventos; Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social (EELIS); Gestão;
Infraestrutura; e Esporte de Alto Rendimento (EAR). Essa categorização
emergiu a partir do estudo dos Plano Plurianuais (PPA) de 2012-2015, que
passou a se organizar por programas temáticos e não mais por programas
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 205

finalísticos, como era nos PPAs 2000-2003, 2004-2007 e 2008-2011. Esta


lógica de organização por programas temáticos se manteve nos PPA’s 2016-
2019 e 2020-2023 – (CARNEIRO; MASCARENHAS, 2018). Na tabela 4,
apresentamos o direcionamento dos gastos no período organizado a partir
desta categorização.

Tabela 4 – Direcionamento do gasto orçamentário com esporte


por categoria em R$ milhões – série 2003-2022
Ano Megaeventos EELIS Infraestrutura Gestão EAR
2003 - 84,89 299,36 4,87 20,54
2004 130,64 155,92 127,24 91,73 14,84
2005 20,53 242,37 21,34 99,43 15,02
2006 378,72 328,68 77,72 158,05 21,39
Editora CRV - Proibida a comercialização

2007 2.295,92 516,12 1.212,96 225,22 180,56


2008 85,27 279,51 27,13 154,27 35,00
2009 200,68 208,92 12,46 184,65 75,37
2010 747,86 223,65 9,43 236,28 129,31
2011 866,35 177,43 320,62 238,64 171,93
2012 356,73 62,94 145,27 238,39 196,90
2013 239,13 98,25 222,42 212,83 284,91
2014 1.054,74 183,40 0,83 248,19 290,27
2015 630,31 174,88 16,09 226,97 209,95
2016 406,92 71,44 66,27 210,43 95,10
2017 - 58,58 195,82 216,22 87,77
2018 - 77,84 141,19 206,60 65,42
2019 - 30,55 78,96 12,93 140,69
2020 - 31,50 32,32 - 67,81
2021 - 103,07 32,70 - 96,53
2022 - 147,11 51,62 - 100,53
Total 7.413,82 3.257,07 3.091,74 2.965,69 2.299,83
Fonte: Transparência no Esporte (2023) (Elaboração própria).
Obs.: 1. Valores liquidados; 2. Valores deflacionados pelo IGP-DI a preços de dezembro de 2022.

Na Figura 2, apresentamos valor médio do direcionamento agregado por


período de governo.
206

Figura 2 – Valor médio do direcionamento do orçamento do esporte por


categoria e período de governo em R$ milhões – série 2003-2022
R$ 900,00

R$ 800,00

R$ 700,00

R$ 600,00

R$ 500,00

R$ 400,00

R$ 300,00

R$ 200,00

R$ 100,00

R$ -
Lula 1 Lula 2 Dilma 1 Dilma 2 Temer Bolsonaro
Grandes eventos EELIS Gestão Infraestrutura EAR

Editora CRV - Proibida a comercialização


Fonte: Transparência no Esporte (2023) (Elaboração própria).
Obs.: 1. Valores liquidados; 2. Valores deflacionados pelo IGP-DI a preços de dezembro de 2022.

Conforme pode ser identificado na Tabela 4, a categoria que teve mais recur-
sos foi a de Megaeventos, o que representou 38,96% de todo orçamento do esporte.
Ela se refere ao gasto de preparação, organização e infraestrutura para que o país
sediasse os Jogos Rio 2007 (R$ 2,83 bilhões), Jogos Mundiais Militares Rio
2011 (R$ 1,52 bilhão), Copa do Mundo 2014 (R$ 282,87 mil) e Jogos Rio 2016
(R$ 2,77 bilhões). O orçamento foi apenas uma das fontes de financiamento dos
Megaeventos. O Transparência no Esporte (2023) demonstra que houve recursos
extraorçamentários e de gastos tributários também direcionados aos Megaventos.
Os Jogos Rio 2007 foi o Megaevento que mais consumiu recursos do
orçamento para sua realização. Foram gastos ao longo de 2004 a 2007: R$
1,98 bilhão para infraestrutura, R$ 845,58 milhões com sua organização e R$
3,41 milhões com sua captação. Em 2007, com a realização dos Jogos Rio
2007, que consumiu R$ 2,28 milhões, esse tipo de gasto atinge seu ápice. O
gasto foi tão elevado que fez com que este ano marcasse também o pico de
gastos orçamentários com esporte no período analisado.
Dificuldades no processo na sua organização, inicialmente assumida
pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB), fizeram com que o governo federal
precisasse financiá-lo, haja vista o risco de sua não realização (CARNEIRO,
2018). Os Jogos Rio 2016 foi segundo Megaevento que mais gerou gastos, a
ver: de 2007 a 2008 e de 2010 a 2016 foram R$ 1,72 bilhão com sua infraes-
trutura; R$ 640,14 milhões com sua preparação e organização; R$ 284,91
milhões com a Autoridade Pública Olímpica; R$ 101,19 milhões com sua
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 207

captação; e, R$ 25,86 para participação da União no capital da Empresa


Brasileira de Legado Esportivo S. A. Com os Jogos Mundiais Militares Rio
2011 foram gastos, de 2009 a 2011: R$ 1,33 bilhão com infraestrutura e R$
189,08 milhões com sua organização – os gastos com este Megaevento foram
realizados pelo Ministério da Defesa (função Defesa Nacional). Com a Copa
do Mundo 2014, foram gastos ao longo de 2010 a 2014, R$ 259,74 milhões
com apoio a organização e R$ 23,13 milhões com a implantação de controle
de acesso e monitoramento nos estádios de futebol para segurança do torcedor.
A partir de 2007, com a efetivação dos Jogos Rio 2007, houve uma inflexão
da política esportiva para realização dos Megaeventos Esportivos (ATHAYDE,
2011; GUIMARÃES, 2017). Eles acabaram se tornando o princípio organiza-
dor da agenda esportiva no Brasil (MASCARENHAS et al., 2012). Matias e
Mascarenhas (2017) apontam que os Megaeventos impactaram o planejamento,
o arranjo institucional, o ordenamento jurídico e o financiamento do esporte.
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A segunda categoria que mais teve recurso foi a EELIS, representando


17,12% de todo orçamento para o esporte. Ela se refere ao gasto com a vivên-
cia do esporte em projetos sociais, na escola e no tempo de lazer. As quatro
ações que mais tiveram recursos foram: 1) funcionamento de núcleos de
esporte educacional (R$ 1,41 bilhão); 2) desenvolvimento de atividades e
apoio a projetos e eventos de esporte, educação, lazer, inclusão social e legado
social (R$ 801,76 milhões); 3) inserção social pela produção de material
esportivo (R$ 328,20 milhões); e, 4) funcionamento de núcleos de esporte
recreativo e de lazer (R$ 218,96 milhões). As ações 1, 3 e 4 foram realizadas
de 2003 a 2011, quando o PPA e o orçamento se organizavam por programas
finalísticos, a ação 1 se refere ao Programa Segundo Tempo (PST), a ação 3
ao Programa Pintando a Liberdade e a ação 4 ao Programa Esporte e Lazer da
Cidade (PELC). Com a nova organização do PPA a partir de 2012, os recursos
deste programa passam a ser alocados em ações genéricas como a ação 2.
Em EELIS, houve diferentes ações financiadas por outras pastas: o Minis-
tério da Educação direcionou R$ 85,59 milhões para apoio ao desenvolvimento
de atividades educacionais, culturais e de lazer em escolas abertas nos finais de
semana (2005 a 2007) e R$ 13,03 milhões para integração da comunidade no
espaço escolar (2008 e 2009); O Ministério da Defesa alocou R$ 4,30 milhões
na ação apoio das Forças Armadas à inclusão social e a valorização da cidadania
(2020 e 2021) e R$ 2,82 milhões na ação Programa Forças no Esporte (PRO-
FESP) e Projeto João do Pulo (PJP) (2022). Enquanto no governo Lula havia
projetos do Ministério da Educação financiando o esporte, no governo Bolsonaro
essa articulação se deu com o Ministério da Defesa. Guirra e Castellani Filho
(2020) demonstram que esta atuação na política esportiva colocava em curso
uma parte do plano de militarização da sociedade brasileira.
208

As maiores médias anuais de gasto com EELIS foram nos governos Lula 1 e
2, já as menores foram nos governos Temer e Bolsonaro. O governo Lula 1 foi o
único que priorizou as políticas voltadas ao esporte como direito (EELIS), tendo
sido neste governo criados programas sociais esportivos inovadores, a exemplo
do Programa Esporte e Lazer da Cidade (PELC) e Programa Segundo Tempo
(PST). Todavia, a partir de 2007, a tônica da política esportiva foi a organiza-
ção dos Megaeventos e o EAR (ATHAYDE, 2011; MASCARENHAS, 2016;
GUIMARÃES, 2017; CARNEIRO, 2018), o que se evidencia pela pauta da III
Conferência Nacional do Esporte e pelo Plano Decenal de Esporte e Lazer, quando
a política esportiva passa a se orientar pela meta colocar o Brasil no ranking das
potências olímpicas em termos de conquistas de medalhas (FLAUSINO, 2013).
O terceiro maior gasto foi com Infraestrutura, R$ 3,09 bilhões, o que
representou 15,59% do orçamento do esporte. Todavia se somarmos os R$ 5,06
bilhões gastos com Infraestrutura para os Megaeventos, totalizam-se 42,86%

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de todo o orçamento do esporte. Do gasto com Infraestrutura, R$ 2,80 bilhões
foram de EELIS, R$ 170,75 milhões foram com gestão e manutenção de
infraestruturas dos Megaeventos após realização destes (de 2018 a 2022) e R$
119,99 milhões foram com EAR. Da Infraestrutura de EELIS houve: R$ 1,71
para infraestrutura de núcleos de esporte recreativo e de lazer (2003 a 2011);
R$ 337,79 milhões para os Centros de Iniciação ao Esporte (2014 a 2020);
R$ 329,64 para as Praças dos Esportes e da Cultura – gasto do Ministério da
Cultura (2012 e 2013); R$ 286,10 para implantação e adequação de estrutu-
ras esportivas escolares – gasto do Ministério da Educação (2011); R$ 73,21
milhões para o infraestrutura de esporte educacional (2003 a 2011); R$ 56,43
milhões para infraestrutura de esporte educacional, recreativo e de lazer ( 2012
a 2020); e, R$ 1,52 milhão para implantação dos Centros de Desenvolvimento
do Esporte Recreativo e de Lazer – (2004 a 2007). Ações de infraestrutura de
EAR foram: implantação de infraestrutura para o EAR (R$ 91,81 milhões) e
para os Centros Científicos e Tecnológicos Para o Esporte (R$ 28,18 milhões).
De acordo com Teixeira et al. (2018) e Castro, Scarpin e Mezzadri (2020),
os recursos para infraestrutura esportiva foram provenientes, sobretudo, de
emendas parlamentares, tendo estas um caráter clientelista. Mascarenhas
(2016) critica a quantidade de obras no ME, tendo transformado esse em
um “Ministério de obras”, contudo sem estrutura e pessoal para o acom-
panhamento daquelas, abrindo brechas para irregularidades. Os governos
que tiveram maior média de gastos anual com Infraestrutura foram Lula 2 e
Dilma 1. Isso tem relação direta com a perspectiva neodesenvolvimentista
destes governos, com ampliação dos investimentos do governo federal em
das obras públicas, atendendo assim interesses dos parlamentares e do setor
da construção civil (CARNEIRO, 2018).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 209

O quarto maior gasto foi com Gestão do ME/SEE, representando 16,25%


do orçamento do esporte. Ele se refere às ações e meios para que a pasta do
esporte funcionasse. As ações com mais gasto foram: administração da uni-
dade, R$ 1,67 bilhão (2004 a 2018); salário e encargos sociais de pessoal,
R$ 554,38 milhões (2004 a 2019); publicidade, R$ 392,35 milhões (2003 a
2018); e gestão de programas, R$ 182,10 milhões (2004 a 2011). Como a
estrutura de gestão do ME (2003 a 2018) foi enxugada a partir de sua subs-
tituição pela SEE (2019 a 2022), os gastos que antes se direcionavam para a
função Desporto e Lazer passassem a ser alocados em função vinculada ao
Ministério da Cidadania. Apenas em 2019 que o governo Bolsonaro teria tido
gasto de Gestão vinculada a função Desporto e Lazer, especificamente, para
o pagamento de salários e encargos sociais de pessoal.
A categoria que menos teve recurso foi o EAR, representando 12,09% do
orçamento do esporte. Ela se refere à preparação e participação de atletas em
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competições de alto rendimento. As quatro ações que tiveram mais recursos


foram: concessão de Bolsa Atleta, R$ 1,47 bilhão (2005 a 2022); preparação de
atletas e capacitação de recursos humanos para o esporte de alto rendimento,
R$ 293,61 milhões (2003 a 2022); promoção e participação em competições
internacionais de alto rendimento, R$ 127,19 milhões (2006 a 2011); e, pre-
paração das equipes brasileiras para os Jogos Mundiais Militares Rio 2011,
R$ 114,34 milhões (2009 a 2011). Além desta última ação, o Ministério da
Defesa direcionou R$ 24,89 milhões para apoiar a participação da equipe
brasileira no 7º Jogos Mundiais Militares (2018 e 2019) e R$ 8,70 milhões
para o desenvolvimento do desporto nacional e militar (2020 a 2022).
Os recursos de EAR foram se ampliando até os anos anteriores à realiza-
ção dos Jogos Rio 2016, tendo ocorrido uma indução do governo federal para
o Brasil tivesse bons resultados (CARNEIRO, 2018). Os governos Dilma 1
e 2 foram os que mais gastaram com EAR, reflexo das prioridades definidas
pelo Plano Decenal de Esporte e Lazer. Entretanto, desde 2016, os recursos
de EAR tiveram grande redução (Tabela 4). Embora na fonte orçamentária o
EAR seja a categoria que menos teve recurso do esporte, houve a criação e
alteração de legislações que garantiram a ampliação dos recursos para o EAR
via recursos extraorçamentários e gastos tributários (CARNEIRO, 2018). Com
este incremento, o EAR carreou o maior volume de gastos do fundo público
do esporte (TRANSPARÊNCIA NO ESPORTE, 2023; MATIAS, 2021a).

Considerações finais

A principal fonte de recurso orçamentário do esporte são recursos ordiná-


rios, seguida pelas contribuições sobre concursos de prognóstico para função
210

Desporto e Lazer. Além disso, outras funções também têm possuem relevo,
como Defesa Nacional, Educação e Cultura, alocando recursos na subfunções
da função Desporto e Lazer.
Ao longo dos 20 anos analisados houve dificuldade de execução dos
recursos planejados para o esporte, fruto de processo de contingenciamento,
voltados a constantes processos de ajuste fiscal, haja vista o contexto de
contrangimento aos gastos públicos e políticas sociais impostos pela agenda
neoliberal. Cabe ainda registrar que o orçamento para o esporte oscilou bas-
tante no período, além de ter tido uma participação marginal no OFSS. A
prioridade do gasto orçamentário com esporte foi com Megaventos e com
Infraestrutura. Assim, pode-se se dizer a vivência esportiva no âmbito do
EELIS e EAR não esteve no primeiro plano do orçamento do esporte, a não
ser em momento pontuais.
O governo Lula 1 priorizou inicialmente o acesso ao esporte como direi-

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tos (EELIS), em programas como PST e o PELC. Mas a partir da realização
dos Jogos Rio 2007, a agenda esportiva passou a ser organizada pelos Megae-
ventos, tanto que este foi o principal gasto dos governos Lula 2 e Dilma 1
e 2. Este projeto implicou no fortalecimento do EAR, o que envolveu gas-
tos do orçamento público, via fontes extraorçamentárias e gastos tributários
(TRANSPARÊNCIA NO ESPORTE, 2013).
Já os governos Temer e Bolsonaro tinham um projeto de destruição
das políticas sociais, expressão disso foram as contrarreformas trabalhista
e previdenciária, bem como a aprovação da Emenda Constitucional 95. Os
reflexos desse projeto destrutivo foram vistos ainda mais claramente a partir
da pandemia do Coronavírus (covid-19). Esse projeto reverberou na política
esportiva, em que muito pouco foi criado. Uma ação reforçada no governo
Bolsonaro foi a atuação dos militares nas políticas esportivas, mantendo-se
aquilo que havia sido criado nos governos anteriores.
É importante que novos estudos aprofundem os reflexos da política
esportiva após o ciclo dos Megaeventos. Uma chave interpretativa impor-
tante para isso é o seu financiamento. Além disso, é essencial que esse período
pós-Golpe 2016 seja estudado, demonstrando seus reflexos na política espor-
tiva. Também é relevante que haja estudos que analisem longitudinalmente
o financiamento do esporte para além da fonte orçamentária. Essas análises
terão um papel fundamental para subsidiar o planejamento e implementação
da política esportiva a partir de 2023 e a recriação do Ministério do Esporte,
pois com a vitória de Lula será necessário que o campo acadêmico-científico
tenha condições de contribuir efetivamente para o projeto de reconstrução do
país, sendo uma bandeira importante a materialização do esporte como um
direito de todas as pessoas.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 211

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ADOLESCENTE: reflexões sobre as
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Rodrigo Silva Lima78
DOI: 10.24824/978652515394.0.215-238

Introdução

Há duas décadas o debate nacional sobre a relação entre fundo público e as


políticas sociais têm sido estimulado numa tentativa de superar a aridez neoliberal
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e a dimensão tecnicista atribuída aos números, busca-se desvendar os interesses


de classes existentes nas relações do Estado capitalista. O avanço da produção do
conhecimento em Serviço Social, principalmente, no que diz respeito à apreen-
são marxista das políticas públicas se deve, em certa medida, à proeminência
do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social
(GOPSS/UERJ). O texto ora apresentado contém fragmentos da tese de doutorado:
“Orçamento público dos abrigos municipais no Rio de Janeiro: velhos e novos
dilemas”, realizada sob orientação de Elaine Behring, e de reflexões recentes
impulsionadas por estudos junto ao Núcleo de Extensão e Pesquisa em Direitos
Humanos, Infância Juventude e Serviço Social (NUDISS/UFF).
O texto traz alguns apontamentos de ordem teórico-metodológica e, sobre-
tudo, enfatiza a preocupação com os números, não como uma finalidade em
si, mas como um ponto de partida de uma espécie de “letramento orçamentá-
rio”, algo que contribui para desvendar os reais compromissos de uma gestão
governamental. A primeira parte trata brevemente das desiguais relações sociais
impostas às crianças e adolescentes no processo de formação social brasileiro;
logo em seguida a reflexão sobre o ciclo orçamentário na Constituição Federal
de 1988, o princípio da prioridade absoluta no Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (ECA) e a descentralização político administrativa. Nesse mesmo item,
com dois desdobramentos, o momento embrionário do Orçamento Criança
e Adolescente (OCA) e outro com a sua consolidação, por meio do projeto
“Lugar da Criança é no Orçamento”, realizado em articulação com o Fórum

78 Educador social, assistente social e professor associado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal
Fluminense. Membro do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional e
Coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Direitos Humanos, Infância, Juventude e Serviço Social.
E-mail: rodrigolima@id.uff.br
216

Popular do Orçamento (FPO-RJ) e o Centro de Defesa dos Direitos de Crianças


e Adolescentes (CEDECA-RJ). Por fim, essas estratégias almejam ampliar os
debates e pressionar o poder público na adoção de uma prestação de contas
mais detalhadas e que favoreça o processo de avaliação e monitoramento das
políticas para crianças e adolescentes na cidade do Rio de Janeiro.

Atendimento à infância no Brasil: uma trajetória de desigualdades

De Pindorama aos diversos Brasis que emergem das análises teóricas


de diversos matizes existem evidências da violência estrutural e do processo
brutal imposto à socialização de crianças e adolescentes, principalmente de
origem indígena e africana, decorrente do processo de acumulação capitalista
em países periféricos. Esses elementos deitam as suas raízes em contradições
históricas presentes na expropriação de riquezas da terra, no caráter mórbido e

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sangrento do pacto colonial e, por outro lado, se expressam também nas bele-
zas naturais, na herança da cultura popular, na resistência, na criatividade e nas
estratégias insurgentes de sobrevivência dos segmentos pauperizados das clas-
ses trabalhadoras (ALENCAR; CARPI; RIBEIRO, 1985; MARTINS, 1991).
De acordo com a literatura (MOURA, 1993; CAMPOS, 2007), em qui-
lombos brasileiros, espaços de defesa e insubmissão aos proprietários rurais
e ao Estado colonial, a organização familiar instituída, diante da dinâmica
e da estrutura social, apresentava traços mais coletivos no gerenciamento
dos recursos e nos cuidados comunitários. Mas no seio do desenvolvimento
capitalista e do liberalismo econômico, quando se atribuiu à família nuclear
burguesa essa responsabilidade pela reprodução social, as contradições das
relações entre capital e trabalho, foram tratadas no âmbito privado, como
um “problema da família” (MIOTO, 2010). Observa-se que em países de
capitalismo dependente, marcados pelo predomínio de uma modernização
conservadora, onde as classes dominantes pactuam mecanismos de dominação
e coerção, vem se demandando ao Estado e às forças sociais democráticas o
desafio de enfrentar as expressões da questão social e de superar um modelo
concentrador de riquezas que, ao mesmo tempo, produz a pobreza de expressi-
vos contingentes de famílias, a superexploração da mão de obra e a devastação
dos espaços formais no mercado de trabalho (SOUZA, 2016; BRITO 2022).
O processo de formação social, de base colonial e escravocrata, estruturou
um modus operandi violento na sociabilidade infanto juvenil considerando-os
pessoas inferiores, “menos importantes”, “menores”. A linha do tempo traçada e
sistematizada por em Perez e Passone (2010) e Senhoras e Castro (2020), assim
como as denúncias decorrentes da vasta referência mencionada ao longo dessa
análise, foram fundamentais para evidenciar a face cruel e precoce da exploração
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 217

sexual e da força de trabalho, das injustas condições de vida no campo, na cidade


e na floresta, da supressão de direitos fundamentais e do menosprezo da con-
dição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Tais práticas eram atravessadas
também por uma anuência ou pelo consentimento social incorporado, sobretudo,
pela ideologia cristã, patriarcal e racista que fomentam os alicerces do “adulto-
centrismo” (NOGUEIRA NETO, 2005; EURICO, 2020). São reveladoras as
marcas deixadas em processos educativos permeados pelo autoritarismo e pela
eugenia em relação à infância desamparada em processos de institucionalização
de longa permanência (AGUILAR FILHO, 2011; SARAIVA, 2022).
No que diz respeito à trajetória do atendimento à infância e à adolescên-
cia, ao longo da história brasileira, temos uma vasta literatura que percorre os
tortuosos caminhos, do século XVI ao XX, em vista da garantia da proteção
social ao público em questão. A Igreja Católica teve um papel primordial e
a ação educativa, assistencialista e correcional passou pela catequese dos
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Jesuítas junto aos curumins, pela Santa Casa de Misericórdia e pela a Roda
dos Expostos. No que tange a ação estatal destaca-se o surgimento do Primeiro
Código Penal de República, dos Códigos de Menores (de 1927 e 1979), do
Juizado de Menores, do Serviço de Assistência ao Menor, da Legião Brasileira
de Assistência, da Fundação Nacional de Bem Estar do Menor até alcançar,
mais recentemente, os lampejos de uma cidadania idealizada com a elaboração
da Lei 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente79 e nas legislações
da saúde, da assistência social e da educação (PILOTTI; RIZZINI, 1995; DEL
PRIORE, 2009; FREITAS, 2016).
O nódulo de resistência e rebeldia na ação da Pastoral do Menor, da
Associação dos Ex Alunos da Funabem (ASSEAF), do Movimento Nacio-
nal de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e das forças progressistas
remanescentes no Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(FNDCA), contribuiu para formalizar um modelo de atendimento (e de enten-
dimento do público em questão) e, não obstante, a forjar no imaginário social
e na formação política de conselheiros(as) tutelares e demais profissionais do
Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA)80 a
necessidade imperiosa de superação de um quadro desigual, de negação da
infância e da cidadania. Sendo assim, o ECA tão ameaçado por segmentos
conservadores, mesmo depois de três décadas, como lei e, ao mesmo tempo,

79 Para além dessa lei é possível enumerar outros ordenamentos jurídicos recentes e fundamentais na proteção
social em geral, como o Estatuto do Idoso, atual Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003); o Estatuto
da Juventude (Lei nº 12.852/2013) e no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).
80 Instituído pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, por meio da Resolução nº 113,
o SGDCA é constituído pela articulação de diversos sujeitos políticos, tanto de instâncias públicas gover-
namentais, como da sociedade civil e que atuam em rede para garantir os direitos humanos de crianças e
adolescentes no Brasil.
218

como projeto de sociedade, continua sendo a base de uma mudança para-


digmática, da elevação de crianças e adolescentes à condição de sujeitos de
direitos e priorização desses segmentos na agenda política. É um dos mais
relevantes instrumentos de proteção e promoção de direitos humanos do pla-
neta (DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, 2020; SANTOS; SIMAS; LIMA, 2022).

Ciclo Orçamentário e o Orçamento Criança e Adolescente (OCA)

As noções do ciclo orçamentário nos ajudam a compreender como são


executadas as principais políticas sociais para crianças e adolescentes, assim
como elas são determinadas por concepções técnicas, disputas de interesses
de classe e permanente correlação de forças. De acordo com Salvador, no que
diz respeito à canalização dos recursos públicos, o estudo do orçamento, para
além de um instrumento técnico e contábil, é a maneira pela qual se explica

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os mecanismos de democratização da riqueza por parte dos governos e o
financiamento dos esquemas de proteção social no Brasil, “o dimensiona-
mento desses gastos permite compreender e mensurar a importância dada a
cada política pública no contexto histórico da conjuntura econômica, social
e política vivenciada no país” (SALVADOR, 2010, p. 172).
O ímpeto democrático que antecedeu a promulgação da Constituição
Federal de 1988, principalmente quando se analisa a área da infância e da
adolescência, foi marcado pela crítica ao reforço do setor privado, à centra-
lização tecnocrática e à manutenção do clientelismo, da repressão e da insti-
tucionalização como mecanismo de controle (FALEIROS, 1995). Verifica-se
também que durante a ditadura empresarial militar (1964-1985), o processo
orçamentário foi “desfigurado” e isso atingiu também os princípios norteado-
res das políticas públicas, como a unicidade, a universalidade, a transparência,
dentre outros, contribuindo para o isolamento do parlamento e a concentração
decisória no Poder Executivo e para reiterar o privilégio dos segmentos das
classes dominantes (SALVADOR, 2010).
O orçamento consiste numa autorização de despesas e não uma obrigação
do governo em utilizar os recursos previstos. E no âmbito das finanças públicas
o art. 165 da Carta Magna restabeleceu as prerrogativas do Poder Legislativo
no trato do orçamento, imprimiu o reordenamento institucional no planeja-
mento de governo e fortaleceu os entes federativos com atribuições específicas
na prestação de serviços públicos. No que diz respeito aos ordenamentos dos
governos, que passam a compor o ciclo orçamentário com objetivo de integrar
planejamento e orçamento na consecução de políticas sociais, o Plano Pluria-
nual (PPA), das três leis, apresenta uma dimensão estratégica na administra-
ção pública. É um planejamento de longo prazo e sua elaboração consiste em
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 219

garantir a continuidade das políticas sociais, com início no segundo ano de


gestão e indo até o primeiro ano de mandato do governo subsequente. A Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) depende de discussão, votação e aprovação
pelo Parlamento. É um instrumento fundamental que autoriza o uso de recursos,
disciplina um equilíbrio entre receitas e despesas e com ela se verifica, além das
metas, as reais prioridades do governo. São essas regras que auxiliam no projeto
da Lei Orçamentário Anual (LOA). E, enfim, a LOA, depois de publicação em
Diário Oficial, estabelece um cronograma mensal de desembolso e um quadro
detalhado com as receitas e despesas previstas para ser executada a cada mês.
Tem em sua composição o Orçamento da Seguridade Social, Fiscal e de Inves-
timento (GIACOMONI, 2007; SADECK FILHO, 2009; SALVADOR, 2010).
Tanto a Constituição Federal de 1988 (CF) quanto o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) resultam de uma complexa teia de negociações entre
segmentos de classes heterogêneos. A Seguridade Social, por meio do artigo
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194 da CF, estabelece uma noção de proteção social inédita e ao mesmo tempo,
inacabada, que regulamenta um conjunto integrado de ações do governo e da
sociedade no que tange os direitos à saúde, à previdência social e à assistên-
cia social. Já Doutrina de Proteção Integral, prevista no ECA, tem no artigo
227 da CF a previsão de direitos fundamentais e de um sistema híbrido de
execução das políticas sociais, algo que reforça a dualidade do atendimento
na esfera pública e privada.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,


ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).

A noção de “absoluta prioridade”, no art. 4º do ECA, tem como premissa


a destinação privilegiada de recursos nas áreas voltadas à proteção integral
desse público. Na dinâmica social, as leis não se efetivam de forma instan-
tânea e advém desse processo de regulamentação de direitos, no âmbito do
orçamento estatal, a disputa por recursos do fundo público, “o orçamento
público é um espaço de luta política, onde diferentes forças da sociedade
buscam inserir os seus interesses” (SALVADOR, 2010, p. 30). E as conquistas
obtidas por meio da organização e da lutas sociais, tanto no que diz respeito à
incorporação de uma agenda garantidora de direitos, como nos mecanismos
de socialização do poder exprimem um contexto de ampliação da noção de
cidadania, “orientadas pelos princípios da universalização, responsabilidade
pública e gestão democrática” (BEHRING; BOSCHETTI, 2007, p. 144).
220

Na dinâmica do capitalismo contemporâneo, a novidade trazida pelo


surgimento da seguridade social constitucional envolve também a lógica da
descentralização político-administrativa, atravessada por requisições do mer-
cado, pelo tensionamento de sujeitos políticos de longa tradição na trajetória
de atendimento à infância. De acordo com Behring (2008), as tendências de
alocação de recursos para as políticas de seguridade social81 apresentaram
características estagnadas, cobertura insuficiente e não acompanharam o cres-
cimento demográfico ou da carga tributária. E ainda sofreram uma contenção
devido aos impactos do superávit primário e aos efeitos nefastos da Desvin-
culação de Receitas da União (DRU) que reforçaram as rígidas condições do
mercado financeiro para pagamento de juros e amortização de dívidas. Os
recursos públicos, portanto, continuam concentrados no governo federal e,
mesmo com as orientações constitucionais, inexiste a redistribuição de renda
e de riqueza, por causa de uma carga tributária regressiva, que recai muito

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mais nas classes trabalhadoras do que sobre as grandes fortunas.
Nesse sentido, a primeira reflexão sobre descentralização político-admi-
nistrativa concerne a assimetria entre deslocamento de poder e a efetivação das
políticas sociais municipalizadas. Além de essa ideia desconsiderar as diferen-
ças regionais no processo de desenvolvimento, são estabelecidos critérios de
responsabilidade dos governos municipais que negligenciam desigualdades
históricas, bem como a capacidade de arrecadação e os aspectos demográficos,
econômicos e sociais (LIMA, 2013). A segunda diz respeito ao peso histórico
de determinadas entidades da sociedade civil nas relações com o Estado e que,
ao longo dos anos, no processo de descentralização sustentaram interesses
privados, baseados na tradição filantrópica, na troca de favores em detrimento
da lógica da universalização dos direitos e da proteção integral. Em outras
palavras, “numa combinação e confrontação de estratégias repressivas, assis-
tencialistas e de defesa dos direitos de crianças e adolescentes” (FALEIROS,
1995, p. 94-95). E a terceira se expressa porque as políticas sociais, quando
distantes dos ideais de solidariedade de classe, de redistribuição e de justiça
social conjugam elementos de uma racionalidade burocrática que envolve
a mercantilização dos serviços e a focalização na pobreza. Atualmente, no
processo de descentralização, se atribui aos municípios a adoção de iniciativas
com ênfase em ações de entidades da sociedade civil que revelam interesses
heterogêneos e até mesmo colidentes com os princípios constitucionais e
os fins sociais que o ECA se dirige. Elas contribuem para privatizar a coisa

81 O Artigo 195 da CF postula que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e
indireta e mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios e das contribuições sociais dos empregadores, das empresas ou entidades a elas equiparadas,
na forma da lei. Cabe ressaltar que nem todos os programas voltados para crianças e adolescentes são
financiados com recursos do Orçamento da Seguridade Social (BOSCHETTI; TEIXEIRA; DIAS, 2006).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 221

pública, escamotear as reais prioridades dos governos e reiterar discursos


conservadores de uma suposta ineficiência da gestão estatal que, ao lado da
adoção de políticas compensatórias e das novas formas de gerenciamento,
se somam às práticas de criminalização e encarceramento dos segmentos
pauperizados da classe trabalhadora (BEHRING, 2008).

O surgimento do Orçamento da Criança e do Adolescente

A partir dos estudos de Lima (2015), Telles, Suguihiro e Barros (2011),


Espíndola (2008) o debate acerca do Orçamento da Criança e do Adolescente
(OCA) não pode se restringir apenas às preocupações de especialistas ou tor-
nar-se um dado de difícil interpretação para a sociedade civil, como se fosse
uma “canastra misteriosa” ou o “quarto escuro da casa”. E embora os portais
de transparência estejam cada vez mais aprimorados e o processo de demo-
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cratização das políticas públicas82, sem entrar no mérito de sua execução ou


efetividade, seja uma realidade nas três esferas dos governos, ainda é difícil
realizar o acompanhamento do orçamento público e conseguir especificar o peso
atribuído aos investimentos em políticas para crianças e adolescentes nas finan-
ças públicas, todavia, se permanecem inacessíveis à massa da população isso se
justifica também por determinações de um “mito tecnicista” (VIANNA, 2005).
O “tecnicismo” de governos eleitos, sob determinações do neoliberalismo,
se expressou também em contradições de uma “confluência perversa” (DAG-
NINO, 2004). Embora as experiências nacionais de Orçamento Participativo
com crianças e adolescentes (ANTUNES et al., 2004), algo raro e fundamental,
contribuam para o exercício da cidadania, ainda hoje se subverte a noção de
“participação social” e se transfere progressivamente responsabilidades do
Estado para a sociedade civil, seja por meio do incentivo a doações, do traba-
lho voluntário etc. Isso rebate na desqualificação de determinadas políticas de
proteção social, como as unidades de abrigo ou acolhimento institucional, e de
uma escolha pautada no acolhimento familiar, não por argumentos que levam
em consideração “o melhor interesse da criança”, mas, sobretudo, por preocu-
pações “tecnicistas” da burocracia com a contenção de gastos (LIMA, 2015).
Constata-se também uma forte crítica à concentração de renda e à tendên-
cia de regressividade da tributação no país, pois não cria faixas de participação

82 Considera-se que toda política social é pública, mas nem toda política pública é política social. Em “Dis-
cussões conceituais sobre política social como política pública e direito de cidadania”, Pereira (2008, p. 94)
reforça a distinção entre “política pública e política estatal”. Há uma discussão bastante didática em Nogueira
Neto (2005, p. 14) onde as políticas públicas são classificadas de quatro maneiras: “como políticas sociais
(educação, saúde, assistência social etc.), políticas institucionais (segurança pública, defesa do Estado,
relações exteriores etc.), políticas infraestruturantes (transportes, turismo, indústria, comércio etc.) e políticas
econômicas (tributária, cambial, bancária)”.
222

das grandes fortunas no financiamento das políticas para crianças e adoles-


centes. Com a destinação de recursos, cada vez maiores, para o pagamento
de juros e amortizações da dívida, em detrimento de sua canalização para as
políticas protetivas do ECA, o impasse que se cria é o de que os beneficiários
da seguridade social pagam direta ou indiretamente seus benefícios com dimi-
nuição de sua alocação nas demandas do trabalho, com a perda de direitos e
precarização da vida (BEHRING, 2008).
Nesse sentido, para enfrentar politicamente a fragmentação entre a
dimensão social e econômica e democratizar o acesso ao orçamento, um
conjunto de instituições da sociedade civil se organizou, de forma pioneira, na
construção de metodologias para identificar nas mais altas esferas do governo
as despesas com as políticas na área da infância e juventude. Em meados da
década de 1990, a primeira iniciativa pode ser identificada com a parceria entre
o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Fundação de Assistência

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ao Estudante (FAE) e o Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF)
que culminou na publicação “Orçamento da Criança: metodologia, situação
atual e perspectivas para 1996” (PIOLA et al., 1996). Passada uma década da
promulgação do texto constitucional, no ano de 1999, foi normatizado pelo
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a padronização de funções e
subfunções orçamentárias. A partir dessa mudança é possível mencionar algu-
mas ações que contribuíram, sobremaneira, para salientar o papel estratégico
de novas metodologias para avaliar e monitorar o orçamento (ALMEIDA,
2011). Em 2002 foi criado o Fórum Brasil do Orçamento (FBO) que reunia
mais de cinquenta organizações, movimentos e sindicatos com o objetivo de
monitorar e influenciar o orçamento público no país (INESC, 2009).
Em meados da década de 2000 a publicação “De olho no orçamento
criança” reuniu, além do UNICEF, os esforços de equipes de pesquisa do
Instituto Nacional de Estudos Sociais (INESC) e da Fundação Abrinc. No
documento tais informações são democratizadas e busca-se “oferecer à socie-
dade civil uma ferramenta para o acompanhamento, a avaliação e a atuação
política por um orçamento público que priorize as crianças e os adolescentes”
(VELASCO et al., 2005). A última publicação, “Gasto Social com Crianças
e Adolescentes – Descrição Metodológica” é uma publicação do IPEA e do
UNICEF que, como uma nota preliminar, pretende contribuir para mostrar
como ocorreu o uso dos recursos públicos com as crianças em experiências
passadas, mas, sobretudo, refletir sobre como tais recursos podem vir a ser
estrategicamente planejados e investidos na atualidade, “de modo a ampliar
o bem-estar e a qualidade de vida das crianças e dos adolescentes, de forma
contínua e igualitária” (IPEA, 2021, p. 38).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 223

Ao longo dos anos, os governos caminharam no sentido de ampliar os


investimentos em políticas previstas no ECA e pelo menos três leis expressam
ajustes quanto ao papel dos conselhos de direitos no processo de captação
de recursos para financiamento de projetos voltados à promoção, proteção e
defesa de direitos. A Lei nº 8.242/1991, dentre outros dispositivos, criou o
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA),
órgão paritário responsável por elaborar as normas gerais da política nacional
de atendimento ao público em questão, bem como acompanhar a elaboração
e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações
necessárias à consecução das políticas para infância. Com ela se estabeleceu
um mecanismo onde contribuintes poderiam deduzir do imposto devido, na
declaração do Imposto sobre a Renda, o total das doações feitas aos Fundos
dos Direitos da Criança e do Adolescente – nacional, estaduais ou municipais
– devidamente comprovadas, obedecidos os limites estabelecidos.
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A Lei 9.532/1997 realizou diversas alterações no sistema tributário brasi-


leiro, inclusive, no estabelecimento de um percentual diferenciado de dedução
do imposto de pessoas físicas e jurídicas. Ao revogar o § 1º do art. 260 que pre-
conizava a dedução do imposto de renda e a doação para entidades de utilidade
pública, inclusive, por conta das tendências presentes no Programa Comunidade
Solidária83, se redefiniram as regras para doação de pessoa física e jurídica aos
fundos para infância e adolescência. Na Cidade do Rio de Janeiro, por meio do
Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CMDCA),
estimulava-se a captação de recursos em iniciativas dedução do imposto de renda
devido de doações de pessoas físicas, em até 6%, e de pessoas jurídicas, até 1%.
Com a Lei 12.594/2012, o ECA foi alterado e o art. 26084 passou a vigo-
rar com nova redação. Os contribuintes, a partir do exercício de 2012, foram
autorizados a efetuar doações de 3% aos Fundos de Direitos da Criança e do
Adolescente. Esse percentual aplicado sobre imposto apurado na Declaração
do Imposto de Renda, somente no momento da elaboração. O texto explica
a maneira como será efetuada e regulamentada a doação de pessoa física e
jurídica que, em linhas gerais, poderá ser feita em bens e em espécie, obser-
vados os dispositivos da Lei:

Os contribuintes poderão efetuar doações aos Fundos dos Direitos da


Criança e do Adolescente nacional, distrital, estaduais ou municipais, devi-
damente comprovadas, sendo essas integralmente deduzidas do imposto de

83 A crítica de Mauriel (2000) constata que, além de ferir dispositivos constitucionais, se estimulou a participação
social com doações, trabalho voluntário reeditando práticas assistencialistas.
84 Art. 260 foi ampliado de maneira significativa e subdividido em letras do alfabeto para comportar o conjunto
de mudanças: 260 a, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l.
224

renda, obedecidos os seguintes limites: I – 1% (um por cento) do imposto


sobre a renda devido apurado pelas pessoas jurídicas tributadas com base
no lucro real; e II – 6% (seis por cento) do imposto sobre a renda apurado
pelas pessoas físicas na Declaração de Ajuste Anual (BRASIL, 1990).

Na primeira década do ano 2000, relevantes alterações nos dispositi-


vos de proteção se materializaram com a criação do Sistema Único de Assis-
tência Social (SUAS), do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) e do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária
(PNCFC). Contudo, houve uma baixa execução dos recursos orçamentários
previstos nas ações para crianças e adolescentes, principalmente nos serviços
da política de assistência social e, mais especificamente, nas ações para ado-
lescentes em cumprimento de medidas em meio aberto (SALVADOR; ALVES,
2012). Na segunda década dos anos 2000 foram publicadas pelo CONANDA
duas importantes Resoluções, nº 137/2010 e nº 194/2017, que estabeleceram

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parâmetros para a criação e o funcionamento dos Fundos Nacional, Estaduais e
Municipais dos Direitos da Criança e dos Direitos da Criança e do Adolescente.
De acordo com Almeida (2011, p. 2019) “a prioridade absoluta materiali-
za-se no orçamento público de duas formas: por meio do Fundo dos Direitos da
Criança e do Adolescente (FDCA) e de ações no orçamento local voltadas ao
atendimento do público infantojuvenil”. O OCA, como forma de acompanha-
mento do orçamento local, tem sido uma preocupação que vem acompanhando
progressivamente os profissionais e as entidades da sociedade civil instadas a
avaliar e socializar, sistematicamente, informações que fortaleçam a militância
e aprimorem os mecanismos de democratização. Esse esforço se justifica em
virtude do compromisso com a execução das políticas sociais, com a melho-
ria do padrão dos serviços públicos prestados; pela necessidade imperiosa de
compreender o caráter indissociável – entre o social e o econômico – estabe-
lecido entre os instrumentos fiscais e o impacto social, “permite identificar,
com clareza e objetividade, o montante de recursos destinado à proteção e
desenvolvimento da criança e do adolescente” (VELASCO et al., 2005, p. 14).
A metodologia OCA descreve quais são as ações, em favor da criança e
do adolescente, consideradas prioritárias e que deverão ser identificadas no
orçamento público. Por exemplo, foram definidas três áreas prioritárias de
ação: (a) Saúde; (b) Educação; (c) Assistência Social e Direito de Cidadania.
Considera-se como integrante do Orçamento Criança e Adolescente tanto
as ações implementadas para a atenção direta às crianças e aos adolescentes
quanto aquelas que melhoram as condições de vida das famílias. Essa obser-
vação é importante, pois, enquanto os valores apurados do Orçamento Exclu-
sivo devem ser considerados na sua integralidade, os valores do Orçamento
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 225

Não Exclusivo devem ser submetidos ao cálculo da proporcionalidade85, “de


acordo com a metodologia, o valor encontrado de despesas do Orçamento
Não Exclusivo deve ser calculado considerando-se a quantidade proporcional
de crianças e adolescentes beneficiários” (VELASCO et al., 2005, p. 15).

O Lugar da Criança também é no Orçamento

O Projeto “Lugar da Criança é no Orçamento” é expressão de uma arti-


culação interinstitucional desencadeada pelo Centro de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente (CEDECA – RJ), entidade civil sem fins lucrativos e
filiada a Associação Nacional de Centros de Defesa da Criança e do Adolescente
e pelo Fórum Popular do Orçamento (FPO – RJ), que surge em 1995, fruto de
uma parceria com o IBASE, e tem por objetivo acompanhar e democratizar
informações sobre o orçamento e de sua execução no município do Rio de
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Janeiro. Esse pontapé inicial deflagrou questionamentos sobre a necessidade


de realizar uma análise mais completa das políticas públicas e intensificar o
acompanhamento do OCA; levantar dados orçamentários, metas físicas e definir
os programas e ações a serem monitoradas; aplicar um questionário de pesquisa
junto aos segmentos que atuam diretamente com esse público específico, os
conselheiros tutelares e conselheiros de direitos do município, para saber quais
as políticas consideradas prioritárias na assistência social, na educação e na
saúde. A partir dessas preocupações o escritório do Fundo das Nações Unidas
para Infância (UNICEF) foi convidado, por toda legitimidade e experiência
acumulada, assim como o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público
e da Seguridade Social (GOPSS), por esse grupo estudar o papel do fundo
público na sociedade capitalista e a sua relação com a seguridade social, bem
como representar as universidades públicas no Fórum Brasil de Orçamento.
Com a equipe montada e as reuniões de planejamento, se estabeleceu um
cronograma com todas as fases da pesquisa e divisão de tarefas: levantamento,
leitura e discussão de bibliografia, elaboração do questionário, envio da carta
convite, aplicação do questionário, tabulação das respostas. Com base na meto-
dologia OCA, todos os Programas das políticas prioritárias foram enumerados

85 De acordo com Benhken et al. (2012b) crianças e adolescentes no Rio de Janeiro representam, aproxima-
damente, 25% de toda a população. Outras informações pertinentes sobre o cálculo da proporcionalidade, o
uso de indicadores gerais, o quantitativo da população infanto-juvenil e o número de matrículas na educação
são encontradas no documento “De olho no orçamento Criança” (VELASCO et al., 2005, p. 16). Esse cálculo
visa medir os benefícios de ações governamentais não diretamente voltadas para crianças e adolescentes,
visto que atingem uma população maior do que a infanto-juvenil, como, por exemplo, quando se verifica o
número de leitos em hospitais.
226

e, a partir daí, conselheiros (as) entrevistados (as) puderam emitir a sua opinião
e o resultado do levantamento está assinalado em negrito na tabela abaixo.

Tabela 1 – Levantamento de Programas do OCA no Rio de Janeiro


Assistência Social Educação Saúde
Implantação e manutenção de unidade de
Reabilitação Social Baseada Merenda escolar; pronto atendimento (UPA);
nas comunidades; Manutenção e revitalização da Manutenção do custeio da rede atenção
Apoio a habilitação e educação infantil; primária a saúde;
reabilitação social de pessoas Educação infantil – Projeto rio de Pré-hospitalar móvel – Projeto Cegonha
com deficiência; excelência/ Criança atendida com Carioca/ Gestante atendida no programa
Pessoa com deficiência qualidade; cegonha carioca;
atendida na rede Obras e equipamentos para as Ampliação do acesso, qualificação e
socioassistencial privada; unidades de educação infantil; atenção integral no cuidado em saúde
Proteção social no Atendimento Escolar Especializado bucal;
atendimento a crianças e – Educação Especial na Educação Construção, ampliação e reforma em

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adolescentes; Básica; emergências;
Manutenção da creche Manutenção das unidades esportivas Qualificação do atendimento nas
institucional Dr. Paulo da rede municipal de ensino; emergências da rede municipal;
Niemeyer / (Cidade Nova); Implantação e Manutenção de Regulação dos leitos hospitalares e
Infraestrutura e manutenção “Escolas do Amanhã”; procedimentos de baixa, média e alta
das unidades da Secretaria Desenvolvimento do Reforço Escolar; complexidade;
Municipal Assistência Social Gestão da Saúde nas Escolas/ Ações e serviços de saúde da rede
Centro integrado de políticas Unidade da Rede Atendida; credenciada do SUS;
sociais; Desenvolvimento do Rio Criança Construção e/ou reformar módulos de
CRAS Rinaldo Delamare (São Global; saúde da família;
Conrado); Manutenção e revitalização do Ensino Ações de controle de doenças crônicas
Proteção social e defesa dos Fundamental/ Aluno Atendido; transmissíveis;
direitos socioassistenciais; Manutenção e Revitalização das Construção, ampliação e reforma de
Enfrentamento ao uso e Unidades da Rede de Ensino; unidades hospitalares;
abuso do crack e de outras Obras e Equipamentos para a Rede Ações de atenção integral aos ciclos de
substâncias psicoativas; de Ensino; vida e gênero;
Crianças e adolescentes Desenvolvimento global e inclusão Vigilância e fiscalização sanitária/
tratados nas casas viva; produtiva da pessoa com deficiência Inspeção realizada;
Transferência de renda no e sua família; Vigilância em saúde, prevenção e
município do Rio de Janeiro; Pessoa com deficiência/ familiar controle de doenças;
Cartão família carioca. atendida. Programa de aceleração do crescimento
– PAC moradia.
Fonte: Questionário “Lugar da Criança é no Orçamento” (2012). Elaboração própria.

As análises de dados coletados foram cruzadas com informações colhidas


em sites da Prefeitura do Rio de Janeiro, do Sistema Único de Saúde (SUS), do
Ministério de Educação e Cultura (MEC), do Ministério da Justiça – “Programa
Crack é possível vencer”, do Censo Demográfico (IBGE) etc. A socialização dos
resultados da pesquisa foi realizada, em julho de 2012, por meio do Seminário
“Lugar da Criança é no Orçamento”. Além das reflexões, o evento contou com
dinâmicas de grupo para a construção coletiva de estratégias e sugestões das
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 227

pessoas que participaram. Sendo assim, se deliberou por reivindicar a especifica-


ção dos dados do OCA nos relatórios de prestação de contas do governo munici-
pal, para favorecer a avaliação e o monitoramento, bem como foi referendada a
proposta de elaboração e envio de uma carta compromisso86, com resultados da
pesquisa e desdobramentos dos registros realizados nos grupos de trabalho, a ser
entregue para todas as candidaturas que concorriam a uma vaga para Prefeitura do
Rio de Janeiro naquele ano, com dados orçamentários deflacionados e atualizados
para abril de 2012 (BEHNKEN et al., 2012).
Na Assistência Social (direitos de cidadania) o Programa analisado foi
“Enfrentamento ao uso e abuso do crack e de outras substâncias psicoativas”, com
50% das menções dos entrevistados. No período havia uma preocupação da Prefei-
tura do Rio de Janeiro, tanto por conta dos megaeventos internacionais, quanto por
causa da pressão dos veículos de comunicação de massa e das denúncias acerca
do efeito “devastador” entre a população em situação de rua87. O recolhimento
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compulsório, como uma das saídas adotadas, terminou por implantar a coerção
sobre o discurso da proteção e a construção das Casas Vivas, para atendimento
do público em questão, preencheu uma lacuna na rede assistencial. E embora seja
uma questão de responsabilidade de todas as políticas públicas, em especial da
saúde e da assistência, verificou-se uma única ação orçamentária no combate à
dependência ao crack que, diante da complexidade e emergência, apresentou um
valor orçamentário estimado em pouco mais de R$ 5 milhões para 2012, mas o
recurso não foi todo utilizado. As principais deliberações do Seminário apontaram
para: 1) Implementar a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente em
Situação de Rua – Deliberação nº 763/2009 AS/CMDCA (Assistência Social/
Conselho Municipal da Criança e do Adolescente); 2) Fortalecer e capacitar a
rede de garantia de direitos, através dos Centros de Referencia da Assistência
Social e de Referencia Especializado da Assistência Social (CRAS, CREAS) para
aumentar a inclusão de crianças e adolescentes nos Sistema Único de Assistência
Social e Sistema Único de Saúde; Adequar as ações municipais de atendimento
e intervenção junto a crianças e adolescentes usuárias ao Plano Nacional “Crack
é possível vencer” (BEHNKEN et al., 2012b, p. 14-15).
Na Educação (cultura e esporte) a “Escola do Amanhã” empatou com
“Obras e equipamentos para as unidades de educação infantil”, ambas com

86 Assinaram a carta, Marcelo Freixo (PSOL), Rodrigo Maia (PFL), Otávio Leite (PSDB) e Cyro Garcia (PSTU),
o único que não assinou foi Eduardo Paes (na época no PMDB), então candidato eleito.
87 Um estudo muito importante nessa área, publicado pela editora da UERJ, é de autoria de Zélia Caldeira (2021),
“Mães do crack: a produção de uma anormalidade”. No Serviço Social a dissertação de Ana Paula Cardoso
Silva (2017), “A política de drogas na ‘Cidade Maravilhosa’: pedras no meio do caminho” do Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF, é uma importante referência. Cabe um
registro de outra dissertação, que aborda uma especificidade: “Orçamento Criança Adolescente e a Política de
Assistência Social no município de Teresina-PI: encontros e desencontros”, de autoria de Luciana Evangelista
Franco (2017), no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí.
228

27% das escolhas. A preocupação em melhorar o funcionamento dos prédios


escolares; promover a modernização destes e ampliar o número de vagas
existentes para a educação infantil, segmento entre seis meses e cinco anos
de idade, são antigas pautas de reivindicação dos entrevistados. De acordo
com dados (INEP, 2010; IBGE, 2010), aproximadamente, 215 mil crianças
não estavam em creches, apenas 25% das crianças cariocas eram atendidas
por creches, sendo a maior parte em unidades privadas (42 mil) e a outra em
rede pública (33 mil). Nas pré-escolas, aproximadamente 80% das crianças
estavam matriculadas no município, a maioria na rede pública (66 mil) e outra
parcela em unidades privadas (54 mil). Um ponto positivo a ser salientado é
que o Programa Escola do Amanhã, com mais de 105 mil alunos atendidos
em 152 unidades escolares, atingiu o seu principal objetivo – diminuição da
evasão escolar, de 5,1% em 2010 para 3,2% em 2011, porém a sua execução
orçamentária sofreu uma queda de 2010 para 2011, de R$ 65 milhões para

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algo em torno de R$ 24 milhões de Reais. As duas principais deliberações
do Seminário: 1) Regularizar a destinação das verbas do FUNDEB para a
educação infantil e a ampliação de vagas; 2) Ampliar o orçamento destinado
e as ações das Escolas do Amanhã e transformá-la em política pública de
educação integral e de cunho universal, além de disponibilizar, em detalhes,
os dados referentes à evasão escolar (BEHNKEN et al., 2012a, p. 14-15).
Na Saúde, onde o resultado foi mais apertado, a menção à “regulação
dos leitos hospitalares e procedimentos de baixa, média e alta complexidade”
apareceu em 22% dos questionários. A partir dos levantamentos nos Cadas-
tro Nacional de Estabelecimento de Saúde (CNES) e no Censo Demográfico
(IBGE, 2010) verificou-se uma defasagem de leitos para faixa etária de 0 a 18
anos quando comparados aos destinados à população carioca em geral. No que
diz respeito às ações orçamentárias em obras, apresentaram um crescimento
significativo de R$ 6.469.554,33 milhões (em 2009) para R$ 138.521.187,61
milhões (em 2011), a maior parte do gasto em 2011, superior a R$ 100 milhões,
foi para a reforma realizada no Hospital Pedro II. Na pesquisa, havia uma
carência relacionada ao quantitativo de profissionais e com isso a necessidade
de intensificação nos gastos com recursos humanos e realização de concursos.
As duas principais sugestões deliberadas no Seminário foram: 1) Ampliar o
número de leitos e de profissionais de saúde para atender o tratamento priori-
tário previsto no ECA88; 2) Ampliar o número de Centros de Atenção Psicos-
social para Álcool e Drogas – CAPSad (BEHNKEN et al., 2012b, p. 14-15).

88 A preocupação com os leitos hospitalares se mostrou ainda mais acertada diante da epidemia pelo vírus
Zika e da microcefalia no Brasil, em 2016, e dos esforços políticos e sanitários para seu enfrentamento.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 229

De acordo com a apresentação no Seminário “Lugar da Criança é no


Orçamento” (BEHNKEN et al., 2012) os dados demonstram que do orçamento
municipal do Rio de Janeiro, na gestão governamental de César Maia, a por-
centagem destinada ao OCA em 2006 e 2007 variou, respectivamente, entre
25% e 22% do orçamento total. Na gestão de Eduardo Paes a porcentagem
destinada ao OCA, nos anos de 2010 e 2011, teve um declínio de 22% para
20%, respectivamente. Importante observar que, embora algumas tendências
sejam apontadas com esses dados, apenas os percentuais em si, não revelam
se houve diminuição real do orçamento destinado às políticas públicas, pois
existe oscilação na arrecadação da cidade, é necessário levar em consideração a
inflação do período e, nesse caso, embora muitos dados tenham sido cruzados,
a metodologia do OCA não oferece muita precisão, “ainda não permite avaliar
se os recursos aplicados são suficientes ou não” (VELASCO et al., 2005, p. 3).
Na última década, a análise das tendências do OCA levou em conside-
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ração a comparação com o segundo ano de cada gestão municipal e a rela-


ção entre receitas arrecadadas89 e despesas por área de atuação que levam
em consideração os custos da assistência social, da educação, da saúde. De
acordo com dados do FPO, na última década, existe equilíbrio do OCA, que
ao longo desses anos oscilou entre 20% e 23%. No ano de 2010, 22% e em
2014, embora o valor do orçamento total tenha aumentado, o percentual do
OCA, por exemplo, teve uma pequena redução e ficou em 21%.
Duas tendências no acompanhamento do orçamento federal foram obser-
vadas. A primeira, revelada em estudos sobre ações de proteção a crianças e
adolescentes no âmbito da seguridade social, entre 2000 e 2005, mostram uma
tendência de ampliação dos recursos autorizados, mas a redução dos índices
de execução, em alguns programas, comprova que os mesmos não estão sendo
destinados ao seu fim (BOSCHETTI; TEIXEIRA; DIAS, 2006). Isso acontece,
tanto em face dos mecanismos de contenção de recursos, como a DRU, quanto
das exigências de legislações de responsabilidade fiscal, algo que pode mascarar
a eficácia e eficiência no gerenciamento de recursos públicos. A outra tendência
mostra o peso da assistência social no OCA, pois, entre 2016-2019, o Brasil
destinou apenas 3,2% dos recursos públicos federais a crianças e adolescentes,
mas 86% do OCA se concentra nas áreas de assistência social (IPEA, 2021).
No Rio de Janeiro, conforme o artigo 212 da CF, o município deve
aplicar, anualmente, o mínimo 25% da receita resultante de impostos para a
manutenção e o desenvolvimento do ensino (BRASIL, 1988). Nos termos da

89 No âmbito municipal, as receitas correntes se desdobram em: 1) receitas tributárias (impostos mais taxas);
2) receitas patrimoniais; 3) contribuições; 4) serviços; 5) transferências correntes (parcela do ICMS18
arrecadado pelo estado e cota parte do IPVA); e 6) outras receitas correntes (como a dívida ativa, ou seja,
multas etc.) (cf. LIMA, 2015, p. 192).
230

Lei Complementar nº 141/2012, que regulamenta o § 3o do art. 198 da Consti-


tuição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anual-
mente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços
públicos de saúde, o município deverá aplicar, no mínimo, 15% da arrecadação
dos impostos na política de saúde. Importante mencionar que embora a arre-
cadação e a despesa do município tenham aumentado consideravelmente, os
investimentos nas políticas voltadas para crianças e adolescentes não seguiram
a mesma tendência. Enquanto as políticas de saúde e educação, por força da
lei, apresentam investimentos acentuados e uma média mais equilibrada em
cada gestão, a assistência social, cada vez mais fragilizada do ponto de vista
orçamentário, tem o percentual reduzido no OCA. A progressiva redução
observada no orçamento destinado à política de assistência social começa
com o maior percentual de 3,36% em 2006 (César Maia); 2,37% em 2010
(Eduardo Paes); 3,22% em 2014 (Eduardo Paes); 2,19% em 2018 (Marcelo

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Crivella) e, no momento de maior crise, acirrada pela pandemia da covid-19,
o percentual da assistência social chega em 2021 (Marcelo Crivella), ainda
mais enxuto, representando apenas 1,74% do orçamento total do município.

Tabela 2 – Orçamento da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro


Ano Destino Valores / Percentual Executado
Assistência 339.050 2,37%

(2010) Educação 2.578.134 18,05%


Receita R$ 15.243.212 bi Saúde 2.512.589 17,59%
Despesa R$ 14.278.900 bi
Juros e encargos da dívida 625.675 4,38%
Amortizações da dívida 1.332.618 9,33%
Assistência 791.389 3,22%

(2014) Educação 5.128.072 20,90%


Receita R$ 23.972480 bi Saúde 4.198.847 17,11%
Despesa R$ 24.531.736 bi
Juros e encargos da dívida 641.589 2,62%
Amortizações da dívida 378.593 1,54%
Assistência 610.168 2,19%

(2018) Educação 6.392.976 22,96%


Receita R$ 27.673.484 bi Saúde 5.152.067 18,50%
Despesa R$ 27.842.364 bi
Juros e encargos da dívida 823.679 2,96%
Amortizações da dívida 711.987 2,56%
Fonte: Controladoria Geral do Município (2010; 2014; 2018). Elaboração própria.

A tabela também demonstra que, na cidade do Rio de Janeiro, a soma


dos juros e encargos da dívida mais a amortização da dívida, ultrapassam o
valor do orçamento da assistência social. Todavia, a constatação acerca das
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 231

tendências de alocação do orçamento municipal do Rio de Janeiro, aponta


para “seletividade dos gastos sociais, o contingenciamento dos investimentos
e a captura do fundo público” (LIMA, 2020, p. 280).
Diante de aproximadamente R$ 30 bilhões de despesas gerais da
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e de R$ 554.756 (quinhentos e
cinquenta e quatro mil e setecentos e cinquenta a seis Reais) destinados à
assistência social, os dados da Controladoria Geral do Município (2020)
demonstram que tanto as despesas com a dívida pública (3,58%), como
as despesas em Segurança e Ordem Pública (2,20%), ultrapassaram as
despesas com a assistência social (1,82%). Esses recursos ficaram muito
aquém do percentual de 5% da arrecadação do município para assistência
social, algo recomendado, desde 2005, com a realização da V Conferência
Nacional de Assistência Social (CNAS, 2005).
Por fim, a assistência social conta com um orçamento enxuto e as
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violações de direitos humanos se somam às dificuldades de estabelecer


redes de prevenção à violência contra crianças e adolescentes e ao processo
de precarização e intensificação do trabalho. Ao longo desses anos, além
das dificuldades intersetoriais, principalmente, entre assistência social e
saúde mental, são salários sem reajustes, atraso de pagamentos, déficit de
profissionais, alta rotatividade dos membros das equipes, exigência de pro-
dutivismo, sucateamento de equipamentos públicos, bem como insuficiência
de processos de formação continuada e a situação não é mais alarmante, em
grande medida, pelo compromisso ético e político dos quadros profissionais
da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (LIMA, 2020).

Considerações Finais

Os segmentos sociais progressistas têm sido incansáveis nas articula-


ções e vem contribuindo para garantir de direitos e criar mecanismos legais
e institucionalizados para acompanhar e monitorar o orçamento, bem como
demonstrar as prioridades políticas e os compromissos de governos. Em ação
inovadora, a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e da Juven-
tude da Capital, em 2022, ajuizou ações civis públicas para que os gestores
especifiquem, na elaboração dos seus respectivos Projetos de Lei Orçamen-
tária Anuais, os valores que serão destinados para as políticas de proteção à
infância e à juventude.
As disputas pelo fundo público envolvem uma concepção de sociedade
e, além das iniciativas descritas nesse texto, a luta por trabalho e acesso a
renda, ampliação do acesso às creches, investimentos em prevenção e pro-
moção da saúde, atenção às condições de habitação e moradia e redução
232

das práticas e índices de violência. A aparência dos dados não captura a


totalidade de uma realidade complexa que nas famílias, nas favelas e demais
instituições, tem sido violenta e desigual.
E as publicações e eventos têm favorecido articulações institucionais
e diminuído a resistência dos profissionais da área social com os números.
Observam-se três apontamentos resultantes das articulações com os conse-
lhos. Um de que os dados ainda são desconhecidos da massa, o segundo de
que o processo de democratização das informações precisa de uma lingua-
gem mais acessível e o terceiro que embora essa análise do orçamento seja
um avanço e ofereça subsídios para compreender a alocação de recursos nas
políticas públicas para crianças e adolescentes, ela ainda não permite preci-
sar se os recursos são suficientes para consecução dos objetivos propostos.
Por fim, o GOPSS/UERJ, que completa vinte anos de existência, vem
aglutinando profissionais e pesquisadores de várias áreas, algo fundamental no

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debate nacional sobre a relação entre orçamento público e as políticas sociais.
Que as referências, o resgate histórico e a reflexão desse texto contribuam
com o debate, estimulem novas pesquisas, assim como o espírito insurgente
das pessoas que defendem o ECA e lutam por democracia e liberdade. Vida
longa ao GOPSS e que o lugar da infância também seja no orçamento!
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 233

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CONSENSOS REGRESSIVOS
E LUTAS SOCIAIS
Katia Iris Marro
DOI: 10.24824/978652515394.0.239-260

Introdução

Neste trabalho compartilhamos algumas reflexões sobre as lutas sociais


das classes subalternas do Brasil e da América Latina contemporânea, bus-
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cando decifrar sua capacidade para enfrentar o padrão primário exportador


que dá o tom à acumulação ampliada do capital no continente. A partir do
chão histórico onde se produzem os antagonismos sociais que se manifes-
tam como impulsos de rebelião, começamos por compreender as amarras
neoextrativistas da dependência da América Latina. Falamos da primazia do
padrão primário exportador, que como uma Maldición de Malinche90, marca
o passado e o presente de projetos de desenvolvimento que cambian oro por
cuentas de vidrio, nuestras riquezas por espejos con brillo.
Um segundo momento da nossa reflexão se detém nos mecanismos atuais
que cimentam a subordinação, analisando algumas hipóteses sobre as formas
como as classes dominantes constroem sua supremacia, mantendo o consenso e
o controle dos grupos subalternos. Queremos compreender os mecanismos que
os sujeitam, mas também os núcleos potenciais de sua autonomia e insubordi-
nação. Por isso, finalmente mergulhamos em algumas insurgências populares
de um Brasil latino-americano. Trabalharemos na perspectiva de ampliarmos a
leitura sobre o circuito do antagonismo social, para entendermos as formas de
resistência que brotam da exploração do trabalho nas suas diversas formas, como
também os sujeitos e resistências que contestam os mecanismos de espoliação
e pilhagem que estão ao serviço da acumulação ampliada do capital.
Falamos de um Brasil latino-americano, pois o ciclo de lutas caracterís-
tico da região é o ângulo proposto para reconstruirmos o mapa das resistências
e dos possíveis antagonismos que emergem na cena atual. A unidade analí-
tica deriva também das mesmas correntes da dependência que nos sujeitam,

90 Referência à música La Maldición de la Malinche, da cantora mexicana Amparo Uchoa.


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promovem processos de exploração e expropriação similares, e produzem


conflitos sociais que devem ser compreendidos de forma articulada.

As amarras neoextrativistas da dependência latino-americana

No contexto de uma nova crise geral do capitalismo, o neoextrativismo


parece recolocar a América Latina, com seus bens comuns da natureza, na roda
neocolonial do mercado global. Os processos de expropriação em curso, que ree-
ditam alguns dos mecanismos descritos por Marx (1981) no capítulo XXIV d’O
Capital como próprios da acumulação primitiva, parecem intensificar e aprofundar
essas práticas predatórias como traços constitutivos do capitalismo contemporâ-
neo. No cerne do que Marx identifica como expropriação, estão os mecanismos
de separação, roubo e divórcio do trabalhador dos seus meios de subsistência,
tanto para disponibilizá-lo como força de trabalho “livre” para a relação salarial,

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quanto para tornar sua reprodução dependente do capital91, isto é, elementos do
capital variável e do capital constante. Ainda que ao falar da acumulação primitiva,
nosso intelectual esteja falando de episódios de roubo e expropriação violenta do
povo, localizados entre o último terço do século XV e o final do século XVIII,
necessários para criar as condições da acumulação capitalista92, algumas leituras
nos permitem compreender a atualidade desses cercamentos.
A partir deste instrumento conceitual, queremos propor uma lupa abran-
gente que nos permita captar a amplitude dos processos de expropriação em
curso, sendo fundamental para compreender a dinâmica neoextrativista. Par-
tindo da compreensão dos cercamentos como constitutivos do funcionamento
regular da acumulação capitalista, que retira / despoja os trabalhadores dos
seus meios de existência para torná-los capital (FONTES apud BOSCHETTI,
2018), é possível refletir sobre um conjunto de mecanismos diferenciados
de expropriação. Veremos que estes mecanismos estão em jogo quando o
agronegócio avança sobre uma terra indígena, a disponibiliza para o mer-
cado de terras e expulsa suas comunidades, obrigando-as ao deslocamento,
à pobreza e a uma reprodução mercantilizada da sua existência. Também é
possível observar expropriações que se operam no âmbito da mercadoria força

91 Isso significa que ao quebrar uma reprodução da força de trabalho que era pautada por economias de sub-
sistência e coletivizada, ela se torna cada vez mais dependente do mercado e da compra de mercadorias.
92 As palavras de expulsão, limpeza, extermínio e demais formas de violência extraeconômica são recorrentes na
pluma de Marx (1981) ao falar da acumulação originária. Apropriação e cercamento das terras comunais; expulsão
dos camponeses e produtores rurais para a transformação das suas lavouras em pastagens; apropriação de
terras que estavam nas mãos da Igreja e usurpação direta de propriedades do Estado; sistema de dívida pública;
colonização e escravização, são alguns dos mecanismos expropriatórios reconhecidos por este intelectual, que
foram utilizados nos primórdios do capitalismo para separar o trabalhador dos seus meios de subsistência e
torna-los capital. Esta expropriação primária, fundamente e originária, nos termos de Fontes (apud BOSCHETTI,
2018), é condição e pressuposto para criar, de um lado, o trabalhador assalariado, e de outro, o capitalista.
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de trabalho, se nos detivermos nos mecanismos de espoliação e sobretraba-


lho, ou inclusive nas particularidades da superexploração própria dos países
de capitalismo dependente (MARINI, 2005). Seja através destes mecanis-
mos diretos de exploração, seja através de mecanismos indiretos93, podemos
destacar a expropriação social de direitos do trabalho e da previdência que
vulnerabilizam as condições de reprodução e de oferta da força de trabalho,
disponibilizando os trabalhadores à lei geral da acumulação capitalista94.
Tal como apontam Seoane, Taddei e Algranati (2013), para compreender
a acumulação ampliada do capital (e as práticas permanentes de depredação,
fraude e violência) é necessário dar visibilidade ao ampliado processo de
expropriação e exploração que caracteriza o atual padrão primário exportador.
Para compreender melhor a dinâmica de expansão neoextrativista na
América Latina, é necessário diferenciar: 1) O período 2003-2008, marcado
pelo crescimento econômico contínuo a partir do aprofundamento do modelo
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extrativo exportador. A partir da crise capitalista que se abre em 2008, se


observa uma interrupção relativa desta dinâmica de crescimento, dando lugar
a uma ofensiva maior do padrão extrativista como recurso de compensação
dos seus efeitos. 2) Portanto, identificamos um segundo momento de ofensiva
neoextrativista no período 2008-2011, em que se observa um novo cresci-
mento do preço das commodities no mercado internacional. 3) Um período
que se abre em 2012/2013, caracterizado pela desaceleração econômica e uma
queda do preço dessas mercadorias globais95. Este cenário de estancamento
econômico mundial será agravado pela explosão da pandemia em 2020 que
interrompe temporariamente algumas cadeias globais de valor, mas não parece
afetar os lucros dos grandes conglomerados do agronegócio e da mineração.
Na abertura do novo século XXI, enquanto em alguns países avançaram
governos críticos do receituário neoliberal (Venezuela, Argentina, Bolí-
via, Paraguai, Equador, Uruguai), em outros (México, Colômbia e Peru) se
afiançaram forças conservadoras e de direita, que aprofundaram o programa
neoliberal e as respostas repressivas e de militarização social, expandindo

93 Mota (apud BOSCHETTI, 2018) afirma que essas novas expropriações alargam os termos e as condições
de superexploração da força de trabalho, não apenas pelo apelo a métodos de exploração redobrados, mas
também porque se expropria o acesso à proteção social pública num quadro de desemprego e generalização
do emprego desprotegido.
94 As análises de Boschetti e Behring (ambos artigos reunidos na coletânea organizada por Boschetti, 2018)
confluem e dão visibilidade a aspectos diferenciados da expropriação que se opera no âmbito dos direitos
sociais: seja destacando a restrição da participação do Estado nos custos de reprodução da força de tra-
balho; seja a funcionalidade da política de assistência social para garantir melhores condições de retração
dos direitos do trabalho e da previdência (e portanto, da superexploração da força de trabalho); seja pela
dinâmica de alocação do fundo público num ambiente de contrarreformas e crise estrutural do capital.
95 Para essa caracterização e periodização, utilizaremos os aportes de Seoane, Taddei, Algranati (2013), Katz
(2016), Svampa (2019).
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com truculência o padrão primário exportador. Entretanto, os governos que


ascendem com programas críticos ao receituário neoliberal não se salvaram
desta maldición. Apesar das diferenças, todos eles funcionaram na mesma
“equação perigosa” (cujos custos políticos e sociais serão visíveis nos pró-
ximos anos): seus governos implicaram um aprofundamento desse padrão,
com primazia da agromineradora, do extrativismo, da indústria montadora e
dos serviços transnacionais, usando a “abundância” temporária do mercado
de commodities para expandir políticas de distribuição monetária e melho-
ria relativa das condições de vida da classe trabalhadora, que, em muitos
casos, não representaram uma redistribuição social real (BEHRING, 2012,
2016), nem foram acompanhados de processos de politização em torno dos
direitos conquistados.
No Brasil, os diferentes governos do PT (do período 2003 a 2016) con-
centrariam esforços para reduzir a pobreza extrema e absoluta e reverter algu-

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mas das consequências sociais mais cruéis das políticas neoliberais da era
FHC, mas sem interferir na orientação hegemônica da política econômica. A
melhoria de alguns indicadores sociais; o aumento do investimento nas áreas
sociais; o aumento do salário mínimo e do consumo; e a expansão da oferta
de emprego formal se tornam ganhos relativos ao observar a permanência de
uma estrutura tributária regressiva96; aumento da concentração da riqueza e
da propriedade da terra97; o aumento exponencial do preço da terra urbana98;
o crescimento dos acidentes de trabalho e da superexploração da força de
trabalho99; os lucros recorde dos bancos100, isto é, a manutenção do núcleo duro

96 Tal como aponta Coggiola (2009), apesar de ter impacto na redução da pobreza absoluta, trata-se de uma
medida financiada, fundamentalmente, com a transferência de renda dos assalariados para os setores mais
pobres, na medida em que não há qualquer taxação do capital nem medidas que revertem a concentração
de renda. Na mesma direção, as análises presentes em Behring (2018) e Salvador (2018) nos permitem
afirmar que as contrarreformas tributárias que expandem a tributação indireta (sobre o consumo) implicam
em mais uma punção sobre os salários dos trabalhadores, questionando o suposto potencial redistributivo
dessas políticas sociais.
97 Moreira (2017) fundamenta a partir de dados oficiais que durante os governos do PT é possível observar
uma reconcentração de terra e um abandono da perspectiva da reforma agrária.
98 As opções para lidar com o déficit habitacional – pautadas na lógica de financeirização (e endividamento)
próprio do modelo primário exportador privilegiado – provocarão esse encarecimento, marcando um boom
imobiliário no período de 2009-2015. Este será um dos pontos de disputa e de conflito entre o governo e o
MTST, em torno do Programa Minha Casa, Minha Vida, que vem para responder a uma demanda do setor
da construção civil pós crise de 2008, buscando “conciliar” com a histórica necessidade de habitação popular.
Cf. Braga (2017), Tatagiba e Galvão (2019).
99 Segundo Antunes e Braga (2014, p. 44), sob os governos do PT, aproximadamente 94% dos empregos
criados no mercado formal de trabalho, remuneravam até 1,5 salários mínimos; ao tempo que crescem os
acidentes de trabalho, a terceirização, a precarização e a rotatividades dos empregos, apontando o caráter
e a qualidade do emprego que se expande. Cf. também Braga (2017).
100 Dados analisados por Castelo (2013, p. 126) mostram que ao longo dos oito anos do mandado do governo
Lula, os lucros de nove bancos bateram recordes (contabilizando 174 mil milhões), enquanto que nos anos
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da orientação neoliberal da política econômica (meta inflacionária, superávit


primário, ajustes adequados à conjuntura, liberalização comercial e primazia
das finanças, privatizações de nova geração)101.
Na leitura de Behring (2018, 2019), os governos petistas provocaram
deslocamentos suaves que, entretanto, não fugiram da rota do ajuste fiscal
permanente em função do superavit primário e o pagamento de juros, encargos
e amortizações da dívida pública. Apesar dos inegáveis impactos materiais
positivos nos segmentos sociais que viviam na pobreza extrema ou absoluta, a
intensa apropriação do fundo público pelo capital portador de juros provocou
um constrangimento permanente do financiamento dos investimentos e das
políticas sociais, que impediram qualquer ruptura significativa, seja no campo
da política econômica, seja no campo da política social.
A aposta de “duplo gume” da estratégia de desenvolvimento centrada no
modelo extrativista exportador começaria a mostrar seus “custos políticos”. As
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suas frações econômicas dominantes, fortalecidas nos pactos de conciliação


de classe, se verão ameaçadas pela intensa polarização social que se produz
no contexto de crise, e começarão a demandar a “devolução” ou o exercício
exclusivo do poder governamental (SEOANE, 2016). É assim que, sobretudo
a partir de 2012, associadamente à desaceleração econômica que resulta da
queda do preço internacional das commodities, aumentam as tensões e a ins-
tabilidade política que levarão à crise ou à derrota dos governos que tinham
proposto deslocamentos em relação à ortodoxia neoliberal ou que já não resul-
tavam funcionais para garantir a “paz social”. As contradições temporariamente
administradas no período de bonança econômica se aprofundam quando boa
parte desses governos se verão na pressão de implementar novas e maiores
medidas de austeridade neoliberal que terminarão por minar as bases (tensas)
de apoio popular (WEBBER, 2019). E mais um “novo giro extrativista” viria
a se impor para compensar o déficit na balança comercial (SVAMPA, 2019).
A reação à direita que assola América Latina teria o “sabor” da ofen-
siva neoextrativista: o golpe em Honduras em 2009; o golpe em Paraguai
em 2012102; as tentativas de desestabilização racistas e pro-imperialistas da
Bolívia em 2008 que se efetivam como golpe em 2019103; Equador em 2010;
o golpe no Brasil em 2016; além das diversas tentativas de desestabilização

de Fernando Henrique Cardoso o resultado foi de 19 mil milhões.


101 Cf. Mota (2012), Castelo (2013), Antunes e Braga (2014), Katz (2016), Behring (2018, 2019). As análises
de Salvador (2017) e Boschetti e Teixeira (2019), demonstram inclusive um permanente e sistemático
desfinanciamento da seguridade social em função das políticas de ajuste.
102 Não por casualidade, após o golpe em Paraguai, se aprova o uso de sementes transgênicas de algodão e
milho, assim como é possível observar o avanço dos interesses de empresas de agronegocio da soja, das
mineradoras, e da exploração de metais (Cf. SEOANE; TADDEI; ALGRANATI, 2013, p. 93).
103 É inegável que os interesses de exploração do gás e do lítio também estão por trás do golpe perpetuado
na Bolívia contra Evo Morales. A guerra do gás em 2003 (que se alastra frente à ameaça de estrangeirizar
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da Venezuela, que se agravam nos últimos anos. O avanço de candidaturas ou


forças sociais de direita na Argentina em 2015; no Equador em 2017 (ainda
que não assuma com esta retórica, rapidamente se aproxima de um programa
neoliberal e de reforço dos interesses imperialistas de EEUU) e de extrema
direita no Brasil em 2019; ou as permanentes ameaças de intervenção militar
na Venezuela, devem ser compreendidos neste jogo de forças.

Consensos regressivos e estratégias de dominação que cimentam


a subalternidade

Ao nos interrogarmos sobre as formas como as classes dominantes bus-


cam garantir sua supremacia, no contexto de um capitalismo dependente
que acirra os processos de expropriação, constata-se uma alteração profunda
das bases materiais do exercício da hegemonia em relação a outros momen-

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tos históricos em que as burguesias demonstraram certas energias integra-
doras e inclusivas dos de baixo, expressando “assimilar organicamente as
outras classes” ou “ampliar ‘técnica’ e ideologicamente sua esfera de classe”
(GRAMSCI, 2000b, p. 271).
As contrarreformas neoliberais e o desmonte de direitos sociais que se
aceleram nos momentos de crise provocaram a desarticulação de significati-
vos aparelhos hegemônicos construídos em outros contextos históricos, que
expressavam uma maior tendência de integração relativa de reivindicações
das classes subalternas. Ainda que as décadas neoliberais sugiram uma esma-
gadora hegemonia burguesa, trata-se de um empreendimento onde as classes
dominantes latino-americanas parecem ter “desistido” de integrar as massas
subalternas, consolidando a destruição de um campo de significados comuns
a dominantes e dominados (OLIVEIRA, 2007).
Será que estamos frente a uma burguesia “saturada”, que “se desagre-
ga”104? Quais são as margens para as classes dominantes se tornarem “diri-
gentes”105 no atual contexto? Se a hegemonia de uma classe – além do domínio

os hidrocarbonetos) e a nacionalização desse bem natural em 2006, receberão uma primeira contestação
nas tentativas de desestabilização em 2008, finalmente efetivadas como golpe em 2019.
104 Uma classe burguesa que está “saturada” significaria que “não só não se difunde, mas se desagrega; não só
não assimila novos elementos, mas desassimila uma parte de si mesma (ou, pelo menos, as desassimilações
são muitíssimo mais numerosas do que as assimilações)” (GRAMSCI, 2000b, p. 271).
105 Lembremos que para Gramsci a “supremacia” de uma classe que pretende a construção de uma ordem
duradoura requer que ela seja não apenas “dominante” (que possua o controle do aparelho de Estado e
suas funções ditatoriais), mas também “dirigente”, “hegemônica”, no sentido de ser capaz de exercer uma
direção intelectual e moral dos outros grupos e classes sociais, expandindo suas fronteiras de classe pela
sua capacidade de estabelecer “soluções de compromisso” com esses outros segmentos. Nas palavras de
Gramsci, “[...] a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis
(no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados,
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ideológico-cultural –, envolve compromissos (instáveis e dinâmicos) com outros


grupos sociais, para além do seu “estreito interesse econômico-corporativo”,
expressando o consenso ativo dos governados antes que a mera manipulação
ideológica, o que está em jogo na atual forma da supremacia burguesa?
O exercício da direção intelectual e moral parece privilegiar a neutraliza-
ção e enfraquecimento político-ideológico, a retirada duradoura das classes
subalternas da esfera pública, mesmo que para isso tenha que mobilizá-las em
torno de valores e consensos regressivos. Coutinho (2007) fala da “hegemonia
da pequena política”, para se referir à prevalência de um consenso passivo, de
um consenso que não se expressa pela auto-organização e pela participação
ativa das massas por meio dos seus órgãos na sociedade civil.
A qualidade desta supremacia burguesa parece aproximar-se dos pro-
cessos que Gramsci retrata como “ditadura sem hegemonia” ou de um tipo
de hegemonia que “será de uma parte do grupo social sobre todo o grupo,
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não deste sobre outras forças para fortalecer o movimento [...]”106. Será que
podemos falar de uma “hegemonia limitada” às margens das próprias classes
dominantes, que expressa a retração dos componentes do “consenso ativo e
organizado” em relação às classes subalternas?107 Lembremos que nos casos
de transformismo a oposição à participação popular na vida do Estado e as
“reformas” feitas com base na “ditadura” sobre as classes subalternas supõe
uma espécie de hegemonia limitada ao próprio bloco dominante (Cf. BRAGA
apud DIAS, 1996).
Se este padrão de desenvolvimento em curso na América Latina não cria
crescimento sustentável nem empregos estáveis, não promove bem-estar social
de longo prazo (pois o máximo “tolerável” é expandir relativos processos de
distribuição monetária em períodos delimitados) e supõe um “efeito colateral”
de esgotamento de bens naturais essenciais para a vida humana, pode estar
expressando uma certa tendência à desuniversalização da dominação burguesa.
Note-se que não estamos sugerindo o enfraquecimento ou subestimando o
domínio das classes dominantes.
O Brasil dá mostras de que “[...] vivemos uma dominação de classes
caracterizada pelo máximo investimento no consenso por parte do grande
capital” (MATTOS, 2017, p. 19), que busca ampliar seus aparelhos de hege-
monia para cimentar a subalternidade. Nessa direção, não poderíamos deixar
de mencionar o significado do governo Bolsonaro (2018-2022) para a mobi-
lização à direita das insatisfações e frustrações que perpassam o cotidiano de

equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja,
não até o estreito interesse econômico-corporativo” (GRAMSCI, 2000b, p. 42).
106 Gramsci (2002, p. 330) [grifos nossos].
107 Trabalhamos a metáfora da “hegemonia limitada” em relação à experiência Argentina na nossa tese de
doutorado (Cf. MARRO, 2009).
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reprodução das massas e se alimentam das contradições que apontamos. Tais


aparelhos constituem poderosos mecanismos de construção da subalternidade
em torno do que viemos chamando de consensos regressivos.
Além das clássicas ONGs, meios de comunicação e redes filantrópicas
– que desarmaram o ativismo das periferias, substituindo reivindicações de
direitos universais por políticas focalizadas ou disputa de editais sociais108 –, é
necessário reconhecer a novidade de outros recursos cada vez mais acionados
pelas classes dominantes. Estes também apelam a um tipo de mobilização
coletiva (despolitizante), mas crescem em proporção inversa à presença de
sindicatos e partidos políticos tradicionais que outrora aglutinavam os mesmos
segmentos: “milícias digitais”; doutrinas neopentecostais fundamentais para
moldar o conformismo dos de baixo num contexto de crise civilizatória ou a
atuação orgânica como variáveis de poder real das milícias e forças paramili-
tares, que mostram a letalidade da estratégia de dominação em curso. Ora no

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plano da sociedade civil, para “acalmar” o sentimento de insegurança social,
ora com uma presença encorpada na sociedade política para garantir uma
agenda necessária para o avanço das expropriações”.
Esses mecanismos de construção de consensos regressivos são eficien-
tes pois “liquidificam” e interditam conflitos de classe; exacerbam valores
retrógrados e conservadores funcionais à crise; diluem qualquer potenciali-
dade coletiva das tensões sociais e as conduzem para o plano dos conflitos e
frustrações interpessoais, inflamando disputas raciais, de gênero, culturais,
entre as próprias massas trabalhadoras. Por isso, os consensos regressivos
funcionam como mecanismos de dissolução da classe – para si.
Esta tendência, também é captada desde um outro víeis na metáfora pro-
posta por Demier (2017a, 2017b), que retrata a crescente “imunização” das
democracias liberais à participação popular, cada vez mais restritas e reduzidas
a um conjunto de normas procedimentais porque se aposta na desmobilização
e na apatia. Diferentemente de outros contextos históricos, nas democracias
blindadas seus núcleos decisórios são impermeáveis às demandas populares.
Difícil qualificar a “capacidade hegemônica” dos regimes que se conso-
lidam, ainda que solidifiquem uma supremacia burguesa inconteste (e letal).
Sugerimos a hipótese de que, frente aos limites históricos de expansão das
fronteiras de classe dos setores dominantes para promover concessões simbó-
licas e materiais reais para as classes subalternas, a supremacia burguesa se
suporta ora sobre consensos passivos, ora sobre consensos regressivos e fun-
ções ditatoriais exacerbadas, bastante efetivos para perpetuar a subalternidade

108 Cf. Braga (2017, p. 171). Na mesma direção, Fontes (2008) analisa a conversão mercantil-filantrópica de
parte da militância social.
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e restringir o seu poder no seio do Estado – cada vez mais blindado, como na
análise de Demier (2017a).
No contexto da ofensiva neoextrativista, o consenso ativo e organizado
dos subalternos parece uma “quimera”, pois ele opera apenas no interior do
bloco dominante. Talvez suas margens tenham sido amplificadas a um máximo
possível “tolerável”, nas experiências dos dissimiles governos que propuseram
“deslocamentos” e rupturas em relação à programática neoliberal, ao custo de um
transformismo que “decapitou” organizações importantes das classes subalternas.
Na medida em que os governos do PT do período 2003-2016 aderiram à
plataforma neoliberal sem provocar rupturas com o núcleo duro da sua política
econômica, apesar das suas contradições, também foram responsáveis pelo
apaziguamento dos conflitos e a construção de consensos em torno do regime,
apostando na conciliação de classe (e na pacificação das tensões entre capital
e trabalho) para conter potenciais convulsões sociais109. Mesmo havendo reco-
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nhecido institucionalmente pautas importantes dos subalternos110, as alianças


de classe com o grande capital tornariam os governos do PT também parte da
“blindagem” do regime democrático burguês, imunizado frente às demandas
populares. Nos termos de Cislaghi (2020), a configuração de um “neolibe-
ralismo de cooptação” demandou novas bases ideológicas que capturaram
pautas históricas do legado organizativo da classe trabalhadora, implicando
em novas estratégias de consentimento. E durante um bom período de relativa
estabilidade econômica, as políticas sociais compensatórias seriam importantes
recursos políticos na “costura” dos consensos – e na garantia de apaziguamento
dos subalternos, cada vez mais atrelados às correntes da pequena política.
Inicialmente, o caminho escolhido será o golpe político-parlamentar
contra a presidente Dilma em 2016. Na intensidade exigida pela crise capi-
talista no contexto de um capitalismo dependente, o golpe teve o objetivo
de implementar o ajuste fiscal e as contrarreformas da agenda do grande
capital, destacando-se a redução do custo da força de trabalho e a rifa do
fundo público para o setor privado111. Posteriormente, em 2018, o cenário se
expressa na vitória de uma candidatura de extrema direita e neofascista, que

109 Cf. trabalhos reunidos no livro organizado por Mattos (2017), sobretudo os artigos do próprio Mattos (idem),
Demier (2017b), Maciel (2017), Coelho (2017). Sobre o transformismo petista, cf. Coutinho (2010), Oliveira
(2007 e 2010), Paulani (2010), Braga (2017), Demier (2017a), Cislaghi (2020a), Mattos (2020).
110 Não poderíamos subestimar a importância de um conjunto de políticas e programas criados nestes gover-
nos, que expressaram reivindicações históricas de diversos movimentos sociais. Apenas para citar alguns
exemplos: a Secretaria Nacional de Políticas para as mulheres; a Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra; a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, das Águas e da Flo-
resta; a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; a Política Nacional de Saúde Integral da
população LGBT; dentre tantas outras. Não é por casualidade que todas elas tenham sido deliberadamente
desestruturadas no governo Bolsonaro, provocando retrocessos incalculáveis.
111 Conferir Demier (2017a); Mattos (2020b).
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ao mesmo tempo em que sugere uma sórdida supremacia burguesa, expressa


as dificuldades hegemônicas das classes dominantes: será que elas conse-
guiram consolidar sua capacidade de direção intelectual e moral, através da
mobilização social em torno de valores retrógrados e consensos regressivos,
exacerbando os componentes ditatoriais da sua supremacia? Quais são os
recursos acionados para amalgamar o “conformismo” dos subalternos no
atual contexto de tamanha desagregação social?
A análise de Mattos (2020b) sobre o governo Bolsonaro oferece interes-
santes pistas para refletir sobre os motivos pelos quais a dominação burguesa
passou a incorporar uma dimensão neofascista, relacionada com a necessidade
da gestão contrarrevolucionária e preventiva dos descontentamentos das clas-
ses subalternas – sobredimensionados, mas preanunciados como “ameaça” nas
Jornadas de Junho. Na confluência de uma ideologia obscurantista neofascista,
uma vertente ultraneoliberal, e a forte presença militar nos altos escalões do

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poder, se ergue um governo que tem um sentido claro de classe para a grande
burguesia. Lançando mão de um amálgama ideológico preconceituoso e rea-
cionário, atiça o ressentimento de segmentos assalariados médios que temem a
proletarização – dirigido aos de baixo, que conquistaram durante os governos
do PT melhorias relativas, mas altamente ofensivas aos privilégios das classes
dominantes –, para realizar a agenda mais brutal e contrarreformista.

Lutas Sociais e espírito de cisão

Decifrar quais iniciativas dos grupos subalternos expressam o espírito de


cisão significa buscar nos conflitos e rebeliões, nos episódios de mobilização
ou movimentos e lutas sociais mais permanentes, aqueles que expressam
momentos do antagonismo social. Significa mergulhar no universo das insur-
gências populares, resgatando suas possibilidades de expressão antagônica.
Nas palavras de Gramsci,

O que se pode contrapor, por parte de uma classe inovadora, a este com-
plexo formidável de trincheiras e fortificações da classe dominante? O
espirito de cisão, isto é, a conquista progressiva da consciência da própria
personalidade histórica, espirito de cisão que deve tender a se ampliar
da classe protagonista às classes ainda potenciais: tudo isso requer um
complexo trabalho ideológico [...] (GRAMSCI, 2000a, p. 79).

Trata-se de um exercício que demanda identificar e valorizar momentos


diferenciados da atuação destes grupos no contexto do desafio da luta pela
hegemonia: desde os impulsos de rebeldia imediata que podem funcionar
como núcleos potenciais de autonomia e insubordinação, até as formas de
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 249

organização mais permanentes (e massificadas) capazes de unificar o con-


junto das classes subalternas, romper os elos da subordinação e reabrir o
confronto hegemônico. Quais organismos populares têm condições de arran-
car as influências regressivas que operam na sociabilidade contemporânea
das massas e promover sua elevação cultural? Como dissolver consensos
e mobilizações em torno de valores retrógrados que proliferam em tempos
de reação e cimentam a subalternidade? Quem organiza os subalternos?
São perguntas que excedem amplamente as possibilidades deste artigo, mas
orientam algumas das reflexões que aqui compartilhamos.
As lutas de América Latina vêm se destacando no mapa das resistências
contra o neoextrativismo e é para elas que devemos olhar se quisermos deci-
frar esses impulsos de rebelião. A partir de um legado de intensas revoltas
de massas contra o neoliberalismo, entre os anos ‘90 e 2000, assistimos ao
protagonismo de indígenas, camponeses e desempregados que irromperam
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em países como Argentina, Equador, México, Bolívia, Paraguai, Chile, Vene-


zuela. Tais lutas revelam a presença de diversos sujeitos que emergiram desde
a subalternidade histórica e protagonizaram um ciclo antagonista, criando
impulsos de rebelião e autonomia contra o avanço do grande capital (MODO-
NESI, 2010). Apesar de heterogêneas, essas lutas modificariam as relações
de força em alguns países, ampliariam as condições para a obtenção de con-
quistas populares (KATZ, 2016), definindo o cenário de polarização social
que caracterizaria a região. A ascensão de governos críticos do receituário
neoliberal em vários países a partir da década entrante esteve intimamente
relacionada com este cenário de mobilização de massas.
O Brasil fará de forma mais tardia sua entrada neste cenário de grandes
convulsões. Acontece que nas décadas de 1990 e 2000 se observa um paulatino
refluxo das lutas de massas; primeiro marcado pelo recuo do movimento sin-
dical e o desmanche dos movimentos de base, atacados de morte pela ofensiva
neoliberal; depois, pela derrota da contra-hegemonia antagônica que emergira
nos anos 80 (em torno da direção do PT, mas com a presença de um encorpado
movimento popular e sindical). Ao olhar para a década de 2000, os autores ana-
lisados coincidem ao apontar a acomodação política que a caracteriza; sinais de
reversão só apareceram no seu final – também associado ao estreitamento das
margens de manobra dos consensos. Ainda que a luta reivindicativa não tenha
refluído (lembremos dos Fóruns Sociais Mundiais; a explosão dos movimentos
por moradia nas grandes cidades com destaque para o MTST; a agitação do movi-
mento estudantil), a luta mais ofensiva contra o modelo neoliberal perde terreno.
Nas primeiras páginas deste artigo, mencionávamos os efeitos contradi-
tórios de muitos destes governos críticos do receituário neoliberal em América
Latina, que reconstruirão as deterioradas relações de hegemonia herdadas da
250

convulsionada década anterior, num quadro de avanço da ofensiva extrativista


e de apaziguamento dos conflitos sociais. Este período de reconstrução de
consensos (e conciliação de classes), marcado por uma relativa integração das
classes subalternas (em alguns casos, reduzidas a reivindicações mais corpo-
rativas e processos de cooptação transformista), terá significados variados em
cada país: seja pelas conquistas relacionadas com a melhoria das condições
de vida; seja do ponto de vista da cooptação e desarticulação de iniciativas de
maior potencial antagonista. Fazendo um balanço das relações dos governos
com importantes movimentos populares que lhe deram sustentação, apesar
das inúmeras heterogeneidades que se constatam, Gaudichaud (2019, p. 56)
[tradução nossa] afirma:

Trata-se de uma participação subordinada ao poder estatal e o período é


marcado por um momento de institucionalização relativa e instável de

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muitos movimentos, e com frequência, de cooptação e burocratização de
uma parte significativa de lideranças sociais”.

Por outro lado, “[...] a tensão autonomia-cooptação-integração também


foi acompanhada de uma marginalização-neutralização, ou inclusive repressão,
para as organizações que não se alinhavam” (2019, p. 57) [tradução nossa].
Acontece que a partir da crise capitalista que se abre em 2008, assistiremos
a uma nova ofensiva extrativista ao ritmo da valorização financeira das commo-
dities, empurrando as economias latino-americanas à trágica equação de reverter
os seus efeitos deletérios com um novo ciclo de mercantilização e apropriação
privada dos bens comuns da natureza. De esta forma, se tornam mais visíveis os
primeiros sinais de esgotamento das concessões e se esfriam as apostas conci-
liatórias dos governos. É a hora de um novo ciclo de austeridade generalizada.
Instabilidade, mobilização de segmentos reacionários e aumento dos protestos
marcam o tom dos próximos lustros, num cenário de crise econômica mundial.
Em proporção direta ao avanço da agro-mineração e da indústria extrati-
vista, assistimos a um novo ciclo – heterogêneo, fragmentado e às vezes conver-
gente – de conflitos sociais de proporções regionais onde mulheres, indígenas,
camponeses e trabalhadores urbanos precarizados travam lutas defensivas e
de resistência. Desnudam-se as falsas promessas de “emprego” e “desenvol-
vimento” que acompanham esses grandes empreendimentos de economias de
enclave que estão amarradas estruturalmente nas correntes da dependência112.
No Brasil, os anos de 2011 e 2012 estão marcados por protestos pela
redução da tarifa do transporte público em várias cidades; mesma reivindi-
cação que seria o estopim de junho de 2013. Também se observam greves do

112 Seoane (apud SEOANE; TADDEI; ALGRANATI, 2013; 2016).


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funcionalismo público e de categorias importantes como bancários e correios;


as mobilizações contra o Novo Código Florestal; e significativos protestos nas
obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – clara expressão da
ofensiva neoextrativista a partir da construção de barragens e mega projetos
energéticos, ligados à exploração de petróleo e gás, com recursos do BNDES
e funcionando como receptáculo de fundos de investimentos: a ironia da his-
tória é que estes trabalhadores precários, que se rebelam por fora dos canais
sindicais clássicos, sofrem nas mãos de um capital que se monopoliza e se
utiliza da poupança compulsória de trabalhadores mais bem posicionados que,
via fundos de previdência, aplicam suas ações em obras do mapa extrativista.
No caso da hidroelétrica de Belo Monte, os protestos envolvem ações diretas
lideradas por indígenas, pescadores e agricultores, mas também conflitos com
os trabalhadores da construção civil113. Como antessala de junho de 2013,
devemos mencionar também a resistência dos operários das obras dos estádios
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para a Copa do Mundo; do Porto do Suape e dos canteiros petroquímicos do


Estado do Rio de Janeiro (no Comperj); assim como os protestos indígenas
que dizem respeito à demarcação de terras e ganham notoriedade neste mesmo
contexto (BRAGA, 2017; TATAGIBA; GALVÃO, 2019).
Por outro lado, desde 2010, o número de greves começaria a crescer,
observando-se em 2013 um aumento de 134% em relação às greves de 2012,
com a ultrapassagem das 2000 greves anuais, parâmetro que se mantém de
forma aproximativa no período de 2013 a 2016. Ainda que com números
decrescentes em relação a 2016, em 2017 e 2018 as greves ainda se encontram
num patamar elevado (são 1566 e 1453 greves, respectivamente, segundo o
DIESSE, 2018, 2019). Seguindo uma tendência de queda, em 2019 se observa
um número nada desprezível de 1118 greves, sendo que 82% incluiriam itens
de caráter defensivo na pauta de reivindicações (DIEESE, 2020). Trata-se de
um cenário de intensificação do conflito social, mas claramente defensivo,
sobretudo se avaliarmos o desenlace trágico, de “pacificação à direita” que se

113 Entre 2011 e 2013, os trabalhadores das usinas hidroelétricas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio realizam
8 greves, sendo em 2012 o auge das paralisações nas obras de Belo Monte, (coincidentemente?) mesmo
ano em que a cidade de Altamira registra um recorde no número de estupros, conforme dados analisados por
Barroso (2018). Ainda que a violência patriarcal seja um fenômeno complexo e multicausal, é inevitável não
estabelecer algumas relações: ao mesmo tempo em que se acirram conflitos entre os trabalhadores, aumenta
a violência sexual contra as mulheres, pudendo funcionar como um eficiente mecanismo que desvia tensões
de classe e interdita uma potencial unificação das classes subalternas em torno de pautas universais como
a luta contra a superexploração da força de trabalho, a violência sexista, a depredação social e ambiental
derivada da construção da UHE de Belo Monte. Veremos que essas pautas estiveram presentes nas inciativas
de diversos movimentos sociais, entre os que se destacam o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
e o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS), Colocar por extenso ainda que, provavelmente com menos
permeabilidade e grandes dificuldades para romper o cerco da fragmentação dos trabalhadores precários
mobilizados pelas grandes obras.
252

abriria para o Brasil. A onda de mobilizações desencadeada em junho de 2013,


no sentido das pautas mais progressistas que emergem das necessidades de
reprodução das massas subalternas, seria contida. Apesar do rico laboratório de
mobilização social, não superariam seu formato mais fragmentário e heterogê-
neo, atiçando inclusive a reorganização dos mecanismos burgueses de domi-
nação, no contexto da crise capitalista que se acirra em 2014. Neste cenário se
gesta o golpe de 2016 e fermentam as forças reacionárias que se expressariam
politicamente no neofascismo à brasileira (BRAGA, 2017; MATTOS, 2020b).
Um mesmo quadro de instabilidade política, mobilização das direitas e
nova onda de protestos parecem caracterizar o panorama latino-americano.
Ele expressa os efeitos dos ciclos de ajuste estrutural que a crise capitalista
cobra de forma cada vez mais violenta, num cenário de reduzidas taxas de
crescimento econômico. A vitória de Bolsonaro no apagar das luzes de 2018
tem um claro significado de classe, completando o quadro de aceleração da

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retirada de direitos dos trabalhadores, aprofundamento da superexploração
da força de trabalho e de transferência mais intensa do fundo público para o
grande capital (MATTOS, 2020b).
O ano de 2019 amanhece polarizado na América Latina. De um lado,
assistimos a uma nova onda de revoltas de massas contra a austeridade neo-
liberal no Chile, no Equador, no Peru e no Haiti. De outro, o golpe na Bolívia
e a ascensão do neofascismo no Brasil. A grande disputa também se processa
no plano eleitoral, com a vitória de Lopez Obrador no México e Fernandez
na Argentina. Antes da tragédia da pandemia, as mobilizações de massas (de
magnitude popular inusitada) pareciam apontar que as classes subalternas
voltavam ao ataque contra o neoliberalismo, identificando-o como responsável
pela desintegração social da América Latina (KATZ, 2019). Além do protago-
nismo indígena e popular, devemos mencionar a existência de um movimento
feminista popular, diverso e de massas, travando lutas importantíssimas em
países como Argentina, Chile, Colômbia, México, Uruguai, demonstrando
uma capacidade contra-hegemônica inusitada: ao transversalizar o feminismo
dentro do movimento social das classes subalternas, expandindo a crítica ao
patriarcado na atividade das diversas organizações políticas e sociais, rompe
o cerco da subalternidade que ameaça a coagulá-la como uma luta corporativa
(ou uma mera “identidade”) e devolve um outro significado ao movimento
feminista. Os feminismos, no plural, vêm demonstrando também uma capa-
cidade de desestabilização global significativa, seja através da greve, seja
pela pauta da legalização da interrupção voluntária da gravidez e contra a
criminalização das mulheres (GAGO, 2020).
No contexto da pandemia e em um país governado por forças neofas-
cistas, não poderíamos deixar de mencionar a mobilização dos precarizados
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 253

trabalhadores de aplicativos (com a interessante articulação dos Entregadores


Antifascistas) e a brava resistência das comunidades indígenas frente ao des-
matamento e o avanço do garimpo ilegal114 que expressam o rosto de um neoe-
xtrativismo de alta intensidade característico do governo Bolsonaro. Capítulo
à parte merecem as intervenções de movimentos como o MST, o MTST e o
MPA para responder às necessidades de sobrevivência das massas subalternas
durante a pandemia e o crescimento da fome115. Nos referimos às campanhas
de solidariedade com toneladas de alimentos agroecológicos produzidas pelos
movimentos do campo ou doadas pelos trabalhadores urbanos; mobilização das
periferias e auto-organização dos territórios para construir práticas de cuidado
e saúde frente ao planejado abandono genocida do Estado (MATTOS, 2020a).
Em todos estes impulsos de rebelião que retratamos prevalecem demandas
relacionadas com o processo de reprodução das classes subalternas, cada vez
mais fragilizado pela expropriação e exploração capitalista. Daí a necessidade
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de compreender a dinâmica ampliada da acumulação capitalista (que envolve


extrativismo, superexploração da força de trabalho no campo e na cidade,
expropriação de territórios e mercantilização acelerada de bens naturais) e os
circuitos do antagonismo social que emergem daí, não de forma automática,
mas mediada pela auto-organização dos subalternos. A luta anticapitalista para
enfrentar o capital extrativista parece ter vetores fundamentais nos movimentos
feministas e indígenas; na resistência à destruição dos bens comuns da natureza
e nos trabalhadores precarizados. Estes sujeitos têm privilegiado repertórios
de luta que envolvem a ação direta, a ocupação de territórios, os bloqueios, de
forma articulada a formas mais clássicas como greves e paralisações.

A modo de conclusão
“Oh, maldición de malinche, Enfermedad del presente ¿Cuándo dejarás
mi tierra..? ¿Cuándo harás libre a mi gente?”
La Maldición de la Malinche, Amparo Uchoa

114 Segundo dados da Hutukara Associação Yanomami (2022), a maior reserva indígena do Brasil passa pelo
pior momento de invasões em 30 anos, considerando que 56% dos 27.000 habitantes da Terra Indígena
Yanomami estão sendo afetados pelo garimpo ilegal. Nos últimos 3 anos, o garimpo ilegal na reserva
praticamente triplicou, passando de 1200 hectares para 3272 hectares. Escravidão por dívida, aliciamento,
violência sexual contra mulheres e crianças, assassinatos, malária e desnutrição infantil são algumas das
suas principais consequências.
115 Segundo dados do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19,
no ano de 2022, 33,1 milhões de pessoas não tem o que comer – contra 19,1 milhões no fim de 2020 –,
representando 14 milhões de novos brasileiros/as em situação de fome. A destruição acelerada orquestrada
pelo governo Bolsonaro das políticas de proteção e de combate à pobreza mantém mais da metade da
população brasileira (58,7%) em insegurança alimentar, redundando num quadro onde apenas 4 de 10
famílias tem acesso pleno à alimentação.
254

A Maldición de Malinche faz referência ao desencontro, à traição, aos


caminhos de apaziguamento dos povos de América, herdados da colonização.
Malinche, indígena Nahuatl, tradutora e confidente do colonizador Hernán
Cortez, é metáfora para pensar os espelhinhos que os projetos de desenvol-
vimento centrados no padrão primário exportador oferecem como promessa
de crescimento e emprego para América Latina. Governos variados, mais
ou menos à esquerda ou à direita do espectro político, padecem a mesma
Maldición de Malinche. Quase como uma “síndrome” da dependência, se
aposta no padrão primário exportador (e no mercado das commodities) como
uma “oportunidade” para superar a pobreza, a recessão e a crise econômica,
negligenciando suas consequências de longo prazo.
No atual cenário histórico, a mobilização das forças políticas das classes
subalternas e partidárias de esquerda tem se centrado no desafio de derrotar
Bolsonaro nas urnas. O governo de Lula que começa em 2023 representa

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uma vitória importante para enfrentar o quadro de regressão econômica e
social em que as forças neofascistas têm deixado o país. Porém se inicia numa
conjuntura bastante complexa para as lutas das classes subalternas que deve-
rão enfrentar uma correlação de forças política e econômica extremamente
regressiva. Pela amplitude política das alianças partidárias e a composição
do Congresso Nacional, pelo tamanho da destruição das políticas públicas
operada pelo governo Bolsonaro, pelo armamento das milícias e o avanço
das forças militares nas estruturas de poder, pelo aprofundamento de um
extrativismo de alta intensidade, as políticas de conciliação de classes que o
governo deve lançar mão podem ferir de morte o potencial antagonista ou a
organização autônoma dos de baixo.
Para finalizar, gostaríamos de apontar para o debate dois “nós” que, na
nossa leitura, estão no fogo cruzado da ação das classes subalternas. O pri-
meiro deles se refere à equação extrativismo x expansão de políticas sociais
que promove um perverso “jogo duplo”, porque “tolera” o desastre ambiental
em nome de acrescentar a renda pública para promover distribuição social.
O problema é que essa falsa formulação que opõe o social ao ambiental cria
a ilusão de que as políticas sociais poderiam enfrentar tamanha destruição, e
invisibiliza o fato de que muitas delas alargam o fosso da desigualdade que
dizem atacar116, porque podem funcionar como incentivos diretos dos pro-
cessos de expropriação dos territórios indígenas, camponeses e populares.
Diversas políticas públicas e sociais recomendadas e financiadas pelo Banco
Mundial (políticas alimentares, habitacionais, políticas agrárias) para América
Latina fomentam a mercantilização da terra e demais bens naturais como saí-
das possíveis para a crise dos países dependentes: recomendam e pressionam

116 Cf. Zibechi (2010), Mota (2012), Seoane, Taddei e Algranati (2013), Svampa (2019).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 255

governos a oferecerem isenção impositiva; mercado de créditos; flexibilização


da legislação trabalhista e ambiental; construção de infraestrutura material e
energética; colocando um leque de políticas públicas (e o fundo público) ao
serviço da ofensiva extrativista e do processo de financeirização. Não restam
dúvidas do significado da aposta do governo Lula que se inaugura neste ano
de 2023, de reerguer importantes Ministérios, Secretarias e Programas com
a presença de lideranças históricas e intelectuais críticos de envergadura,
para enfrentar o deterioro das condições de vida das maiorias sociais. Entre-
tanto, as organizações populares e políticas das classes subalternas deverão
se manter alertas frente aos riscos de cooptação e transformismo em nome
de estratégias que busquem reeditar essa equação que combina extrativismo
+ políticas sociais de combate à pobreza.
O segundo “nó” se refere ao desafio de desfazer a adesão e o universo de
sentidos que as forças neofascistas deram a uma parte das classes trabalhado-
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ras. Trata-se de uma identificação regressiva, dessagregadora, amalgamada a


partir de valores retrógrados, degradados, que mobiliza o ressentimento social,
expressando uma baixa qualidade da vida política e coletiva.
Por isso, será fundamental pautar as grandes necessidades sociais que
emergem nesta conjuntura histórica: a fome; a produção e o acesso aos ali-
mentos; o trabalho e a reforma agrária; a luta contra o racismo; os direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres; a vida da população LGBT. Por sua vez,
politizar a juventude; colocá-la em movimento; conduzir as frustrações para
um horizonte de organização e desfazer essa identificação regressiva com for-
ças reacionárias serão algumas das urgências das lutas das classes subalternas.
256

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Editora CRV - Proibida a comercialização
A NOSSA AMÉRICA EM DISPUTA:
capitalismo dependente, contra-
insurgência e lutas sociais117
Juan Pablo S. Tapiro118
DOI: 10.24824/978652515394.0.261-276

[…] Los pueblos que no se conocen han de darse prisa para conocerse,
como quienes van a pelear juntos. […] Se ponen en pie los pueblos, y se
saludan. “¿Cómo somos?” se preguntan; y unos a otros se van diciendo
cómo son. […] ¡Porque ya suena el himno unánime; la generación actual
lleva a cuestas, por el camino abonado por los padres sublimes, la América
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trabajadora; del Bravo a Magallanes, sentado en el lomo del cóndor, regó


el Gran Semí, por las naciones románticas del continente y por las islas
dolorosas del mar, la semilla de la América nueva!
José Martí (Nuestra América, 1891).

Introdução

Este texto é produto de diversas reflexões realizadas nos últimos anos


sobre a conjuntura, as lutas sociais e os processos emancipatórios na Nossa
América. E faz parte da elaboração de um projeto de pesquisa sobre os
debates em torno à fundamentação crítica no Serviço Social, na região, entre
2009 e 2022, tendo como fonte os Seminários da ALAEITS. A intenção é
contribuir com algumas provocações para pensar coletivamente sobre a Nossa
América na atualidade.

117 Neste texto recupera-se e se faz uma síntese de diversas reflexões, individuais e coletivas, realizadas no
contexto da aproximação e participação dentro do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da
Seguridade Social (GOPSS) e do Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI), sob a coordenação da professora
Dra. Elaine Behring, a partir do segundo semestre de 2021. Assim como da participação em diversos eventos
internacionais, em debates sobre conjuntura na Nossa América, lutas sociais, processos emancipatórios,
entre 2015 e 2022. Também da possibilidade de ministrar cursos de fundamentos do Serviço Social em
várias universidades entre 2016 e 2022. Parte dos elementos aqui desenvolvidos foram apresentados no
XXVII Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS), na mesa temática coordenada
pela professora Dra. Juliana Fiuza, “Ultraneoliberalismo, neofascismo e dependência” e no XXIII Seminário
da Associação Latino-Americana de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ALAEITS, por sua sigla em
espanhol), em trabalho realizado junto com Nora Guevara Peña, no painel coordenado pelo professor Dr
Alejandro Casas, “Coyuntura latino-americana, luchas sociales y desafios para el Trabajo Social”.
118 Professor adjunto do Departamento de Fundamentos Teórico-Práticos do Serviço Social, da Faculdade de
Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do GOPSS e do CEOI.
262

O texto está organizado em três partes: 1) uma breve explicitação sobre


por quê a referência à Nossa América; 2) uma aproximação ao momento atual
na Nossa América, particularmente dos projetos societários em disputa; e 3)
uma apresentação do surgimento e desenvolvimento da contra-insurgência
como parte da estratégia de dominação imperialista e particularmente para a
materialização da ofensiva neoliberal na Nossa América, como um elemento
histórico-estrutural, chave para a análise do Estado no capitalismo dependente
e para pensar as lutas sociais e os projetos societários em disputa na região.

Por que Nossa América?

Referimo-nos à Nossa América, retomando o legado de Martí, como um


projeto de unidade dos povos do sul do Rio Bravo no México até a região de
Magallanes, no Chile, incluindo as ilhas do Caribe; uma unidade que reside

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em uma história comum, mas, também, como uma necessidade de fortalecer
as lutas emancipatórias, com base na diversidade das suas experiências.
Pensar em termos de Nossa América implica reconhecer a diversidade
presente nos povos originários da Abya Yala119, e as particularidades dos
processos de invasão e colonização, que foram parte fundamental do pro-
cesso da chamada acumulação primitiva e do desenvolvimento capitalista da
Europa ocidental.
Assim como, também, as particularidades da transição necessária para um
desenvolvimento propriamente capitalista-dependente, na fase imperialista do
capital monopolista, a partir do final do século XIX e das primeiras décadas
do século XX, com sua correspondente transição para os Estados burgueses
e as democracias restritas, apesar de, em várias formações sociais, terem sido
mantidos traços oligárquicos.
Nesse processo de desenvolvimento de um capitalismo dependente em
Nossa América, os Estados Unidos da América (EUA) tenta impor uma relação
de dominação econômica, política, militar e cultural, baseada em uma suposta
supremacia, expressa explicitamente, desde as primeiras décadas do século
XIX, com a “Doutrina Monroe”, de que a América (todo o continente ameri-
cano e as ilhas caribenhas) deveria ser para os americanos (estadunidenses);
enfrentando o projeto bolivariano, de unidade e soberania dos nossos povos.
119 Abya Yala é uma expressão político-cultural que reflete a visão do povo Kuna (do que conhecemos como
Panamá), seu significado literal, de acordo com Morales (2012) é terra em plena maturidade ou terra de
sangue vital, também traduzida como terra fértil; de acordo com Dussel (1994), refere-se à toda a terra
conhecida por eles e, também, refere-se no mesmo sentido a “Cemanáhuac” para os astecas, e “Tahuantin-
suyo” para os incas. Em síntese, é uma expressão que reúne os vários povos originários, que de diferentes
formas chamavam estas terras que povoaram muito antes da invasão e da colonização dos europeus a
partir de 1492, e que foi chamada de América.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 263

Assim, tenta, até os dias de hoje, por vários meios, realizar plenamente seu
suposto “Destino Manifesto”, na intenção de submeter os povos da Nossa
América às suas necessidades e interesses particulares.
Mas, Nossa América, não expressa apenas processos de expropriação,
exploração, opressão e dominação, por isso também é fundamental reco-
nhecer, apreender e pensar nas diversas resistências, por mais de 500 anos,
dos povos originários da Abya Yala e dos povos africanos racializados como
negros, escravizados.
Assim como das lutas pela independência, a partir do final do século
XVIII, e durante o século XIX, na busca pela emancipação política, inspirada,
em parte, pela revolução burguesa francesa; do povo haitiano até o povo
cubano, passando pelos processos liderados por Simón Bolívar na Grande
Colômbia e San Martín no sul do continente, mas presente ainda nas diversas
lutas pela segunda e definitiva independência120, e especialmente nas lutas do
Editora CRV - Proibida a comercialização

povo porto-riquenho.
E, é claro, das diversas insurreições populares e lutas revolucionárias
durante o século XX, lideradas por camponeses e trabalhadores urbanos,
entre outros setores subalternizados, combinando diversas formas de luta, de
acordo com as particularidades de cada formação social.
Portanto, a referência à Nossa América não é apenas uma expressão
territorial, mas é, também e, sobretudo, uma expressão política, que, reco-
nhecendo a nossa diversidade, permite uma síntese da nossa história comum
e da necessidade concreta da unidade das lutas dos nossos povos.
Além disso, a Nossa América é uma região geoestratégica para o mundo,
no século XXI, por suas fontes hídricas, de hidrocarbonetos, minérios, pela
floresta amazônica, entre outros; motivo pelo qual, cada vez mais, estará no
centro das disputas inter-capitalistas, inter-imperialistas, o que tem repercus-
sões, também, para pensarmos as lutas sociais e de classes na região toda e
em cada país.

Sobre o momento atual na Nossa América121

A Nossa América, atualmente, está em disputa, principalmente entre,


por um lado, projetos que pretendem aprofundar o neoliberalismo, alinhados

120 Esta aposta de uma segunda ou verdadeira independência, foi retomada em diversos momentos e proces-
sos na região. A expressão verdadeira independência ficou conhecida amplamente a partir do discurso de
Ernesto “Che” Guevara na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1964; mas já
Fidel Castro fez essa referência na “Segunda declaração da Havana” em 1962; foi José Martí, quem fez,
primeiramente, referência à segunda independência, ainda no final do século XIX.
121 Aqui se retomam elementos de análise estudados em Boron (2007), Castelo (2013), Katz (2015, 2010),
Machado-Gouvea (2022), Mota (2012), Sierra-Tapiro (2019, 2017).
264

especialmente com o imperialismo estadunidense; baseados em um endureci-


mento da contra-insurgência, mas, colocando em xeque as próprias instituições
da restrita democracia burguesa, consolidada na maioria de países da região nas
últimas décadas. E, por outro, por projetos que se apresentam como anti-neoli-
berais e que defendem processos de democratização política, social e econômica
das sociedades.
Esses dois grandes blocos, que por sua vez não são homogêneos no seu
interior, têm diferenças importantes relacionadas com seus próprios processos
históricos, do desenvolvimento capitalista dependente e da luta de classes; e,
por sua vez, existem outros projetos, que na atualidade não tem uma grande
visibilidade e, que apontam, não só ao enfrentamento e superação do neolibera-
lismo, mas, também, do imperialismo e das próprias relações sociais do modo
de produção e reprodução capitalista, em um horizonte de emancipação humana.
Para pensarmos o momento atual, precisamos, pelo menos, voltar até

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o final do século XX e ao início do século XXI; quando, como produto das
nefastas consequências sociais do neoliberalismo, na vida da maioria da popu-
lação, houve uma intensificação de diversas expressões de resistências e lutas
em vários países. Isso criou as bases para a disputa eleitoral de projetos que se
apresentavam como anti-neoliberais e que chegaram ao governo, constituindo
o denominado primeiro “ciclo” ou “onda progressista”.
É necessária a análise diferenciada de cada processo desse “ciclo” ou
“onda progressista”, já que não formam um bloco homogêneo. Em alguns
casos, como, por exemplo, o da Venezuela e Bolívia, foi evidente uma oposi-
ção direta à dominação imperialista estadunidense e a aposta pela construção
de processos de unidade baseados na solidariedade e autodeterminação dos
povos, onde a principal referência é o projeto da Aliança Bolivariana para os
Povos da Nossa América (ALBA); colocando em perspectiva, novamente, na
agenda dos debates e das lutas sociais na região, a necessidade da construção
de um socialismo, desta vez, bolivariano.
Em outros casos, como, por exemplo, o do Brasil, e da Argentina, embora
também tensionassem a influência dos EUA na região, assumiam os processos
de relação internacional regional, mas, como uma expressão subimperialista,
e, portanto, também tensionavam as construções mais radicais da unidade
regional, baseadas no intercâmbio solidário; nesse sentido, priorizaram o for-
talecimento do Mercado Comum do Sul (Mercosul), que tinha surgido desde
a década de 1990; assumindo nos seus governos, com diferenças, estratégias
neo-desenvolvimentistas ou social-liberais.
Tanto uns como os outros, confluíam no enfrentamento ao projeto da
Área de Livre Comércio para as Américas (ALCA), como maior expressão da
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 265

subordinação da Nossa América aos interesses do imperialismo estadunidense,


o que foi derrotado, pelo menos parcialmente, em 2005.
Além disso, havia alguns outros processos, como, por exemplo, na
Colômbia e no Peru, nos quais se manteve uma plena subordinação aos interes-
ses imperialistas estadunidenses, econômicos, políticos e militares, na região.
Essas diferenciações obedecem tanto aos processos histórico-sociais
particulares, como ao caráter de cada governo e à organização e mobilização
social de luta contra o neoliberalismo, e/ou o imperialismo, e/ou o capitalismo.
Uma luta anti-neoliberal, coerentemente deveria ser anti-imperialista,
que, por sua vez, deveria ser anti-capitalista. No entanto, em diversos dis-
cursos e plataformas isto se coloca de forma ambígua e/ou contraditória; já
que alguns só pretendem superar o neoliberalismo, discurso que tem efeito
imediato para as maiorias pauperizadas que sofrem mais diretamente as con-
sequências dessa estratégia, quase que propondo que não todo imperialismo
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nem todo capitalismo tem porque ser assim, neoliberal, portanto que seria
possível relações mais solidárias e humanas nessa sociedade; e/ou, por outro
lado, se pretende enfrentar o imperialismo estadunidense, mas assumindo a
dominação e expropriação de outros países da região (embora não se coloque
explicitamente assim, senão, de forma mistificada, como relações de coope-
ração e intercâmbio).
Um elemento chave e complexo de todo esse processo, é que durante
a primeira década do século XXI, tanto os governos ditos “progressistas”,
como os mais alinhados aos interesses imperialistas na região (não só dos
EUA), confluíram no extrativismo e na reprimarização da economia, o que
independente da sua posição política, aprofundou as bases da dependência
econômica e fragilizou a produção própria.
Diante da crise econômica que começou nos EUA em 2007-2008 (que
por sua vez é parte da crise estrutural do capital), que foi posteriormente
sentida na Europa (com maior força na Espanha, Grécia, Portugal e Itália) e
que começou a se expressar na Nossa América, no início da segunda década
deste século; os chamados governos “progressistas” também entraram em crise
política, em grande parte devido às suas próprias limitações e contradições
políticas, sociais e econômicas.
O que tornou possível uma nova ofensiva dos setores mais reacionários
e abertamente neoliberais, das classes dominantes, que de forma permanente
(e com o apoio do imperialismo estadunidense), têm boicotado e desestabi-
lizado, vários dos governos denominados progressistas, contando com um
importante papel dos meios de comunicação de massa, assim como do poder
judiciário, com a perseguição de dirigentes políticos e sociais (incluindo pre-
sidentes, ex-presidentes e vice-presidentes), e, também, com uma mobilização
266

crescente dos setores mais reacionários ligados às diversas religiões cristãs


– especialmente setores evangélicos –, na defesa de valores conservadores,
por exemplo, na defesa de uma forma particular de Família, contra liberdades
e direitos individuais e coletivos, dentre outros.
Esses setores mais reacionários das classes dominantes, conseguiram
novamente assumir o governo, fosse de maneira direta ou indireta; fosse
através de meios eleitorais legais ou através de novas formas aparentemente
legais – mas não legítimas – de golpe de Estado, com a participação mais ou
menos aberta, segundo cada caso, das forças militares.
Mesmo assim, é importante destacar que não estamos diante de um
retorno ao neoliberalismo na região, pois a estratégia neoliberal nunca deixou
de fazer parte da agenda de vários governos que se assumiam como progres-
sistas; porém, certamente, apesar disso, um governo que se apresenta como
“popular” ou dos “trabalhadores” é qualitativamente diferente de um governo

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abertamente reacionário, totalmente subordinado aos interesses do capital
monopolista transnacional e particularmente aos interesses geopolíticos e
econômicos dos EUA na região.
O horizonte desses governos, dos setores mais reacionários das classes
dominantes, é uma intensificação da resposta do capital à sua crise estrutural:
o aprofundamento brutal das políticas neoliberais, com um maior desmonte de
direitos sociais, fortalecendo o caráter coercitivo do Estado de contra-insur-
gência, sustentado no terrorismo de Estado; mas que em alguns casos, chega
inclusive a ter expressões abertamente neofascistas, de desestabilização da
própria institucionalidade democrática burguesa.
Entretanto, esse não foi o início de um longo período de dominação por
parte desses setores das direitas mais reacionárias das classes dominantes.
O que vem acontecendo em muitos países da Nossa América, são diver-
sas expressões de lutas sociais e de classe, trabalhadores/as assalariados/as
mobilizados/as para impedir que suas condições de trabalho se tornem mais
precárias, mobilizações das classes trabalhadoras (urbanas e do campo) e dos
setores subalternizados, contra as políticas de morte dos governos neoliberais,
mobilizações de estudantes, mulheres, dissidentes de gênero e de sexualidades,
sem-teto, ambientalistas, povos étnicos, entre outros.
Lutas nas quais convergiram processos históricos e novos, alguns que
assumiram a tarefa de resistir à contra-insurgência e à ofensiva neoliberal,
outros que propõem reformas democratizadoras e àqueles que propõem a
necessidade de uma nova sociedade. Essas diversas expressões e processos
estão sobretudo nas ruas, em processos de assembleia, forjando poder de
baixo para cima, colocando como desafio a necessidade de consolidar a uni-
dade na diversidade para a luta, em um processo de conscientização coletiva,
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 267

com respeito aos limites estabelecidos para a participação efetiva no Estado


burguês (em crise).
A experiência do primeiro “ciclo” ou “onda progressista”, mostra como
é limitado ser um governo e, até mesmo, ter maiorias parlamentares, diante
dos poderes econômicos, judiciais, militares, e inclusive, dos meios de comu-
nicação de massa; todos os poderes subordinados à força imperialista, prin-
cipalmente dos EUA; o que coloca a necessidade de repensar o que é poder,
e retomar e combinar o movimento de forjar um poder de baixo para tomar
o poder, para gerar as condições que possibilitem uma transformação em
direção a uma nova sociabilidade.
No momento atual, todas as expressões de luta são importantes, assim como
a troca de experiências e a articulação internacionalista, como elementos-chave
para enfrentar a ofensiva imperialista; será no próprio movimento que saberemos
se o teto é resistir, tentar reformas na própria ordem ou, definitivamente, radicalizar
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para superar as relações de produção e reprodução capitalista.


O neoliberalismo como estratégia do capital para responder suas crises,
só tem mais barbárie a oferecer; a estratégia de reformas dentro da ordem com
a pretensão de uma conciliação de classes não tem lugar no atual contexto
de crise, apesar do fato de que se abre um novo cenário com a pandemia do
coronavírus (covid-19); mesmo que algumas reformas democratizadoras sejam
alcançadas, o que seria muito importante para as classes trabalhadoras como
um todo (e motivo pelo qual será necessário lutar taticamente na conjuntura
atual), essas reformas têm pouca chance de permanecer no tempo, dado o
agravamento da crise estrutural do capital, o que implica uma maior força do
movimento de massas para a defesa dos direitos e sua materialização.
É nessa conjuntura da Nossa América em disputa, que é preciso pensar
o que vem acontecendo, na retomada ao governo de setores que se assumem
como progressistas, o que certamente é muito importante, mas insuficiente.
Aqui se destacam necessariamente dois processos que são produto de uma
crescente mobilização social nas ruas, no enfrentamento ao neoliberalismo nos
últimos anos. No Chile, o primeiro laboratório mundial do neoliberalismo, e
na Colômbia, o principal aliado do imperialismo estadunidense na região nas
últimas décadas e que pela primeira vez tem um governo que se apresenta
como progressista e com evidentes traços de esquerda122.
Há também o retorno de forças políticas (e protagonistas) do chamado
primeiro “ciclo progressista”, em uma tentativa de se rearticular em direção
a um “novo ciclo progressista”; no entanto, permanecem dúvidas quanto à

122 Para uma aproximação ao processo recente na Colômbia ver De Zubiria e Libreros (2021), Estrada-Alvarez
(2021 e 2022), Guevara-Peña e Sierra Tapiro (2022), Sierra-Tapiro (2022, 2021a).
268

necessária autocrítica dessas forças (e de seus protagonistas) sobre suas pri-


meiras experiências, para fazer correções necessárias e enfrentar o momento
atual, muito mais adverso que no início do século.
A questão para pensar, sobre todos esses governos, que expressam, de
forma mais ou menos aberta, o enfrentamento ao neoliberalismo e a defesa de
processos de democratização política, social e econômica; é, se no contexto
de aprofundamento da crise estrutural do capital, o que se pretende é uma
gestão da barbárie, para conter a ofensiva neoliberal (e por sua vez o protesto
social), mas sem assumir um confronto efetivo com seus fundamentos.
Por isso, além de conseguir a manutenção efetiva, chegada e/ou reto-
mada de governos que se assumem progressistas, a chave para enfrentar
o neoliberalismo e a contra-insurgência está nas lutas dos povos, e em
seu poder transformador de articulação e unidade internacionalista, com
agendas comuns, baseadas nas particularidades de cada formação social e

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na situação atual.
Esses governos (os que foram, os que são e os que virão) terão mais força
se houver um movimento social nas ruas, que efetivamente os pressione a
responder às necessidades das classes trabalhadoras e dos setores subalterni-
zados, e não apenas a tentar conciliar interesses, o que quase sempre acaba
favorecendo as classes dominantes.
Isso coloca como um dos desafios, a análise do surgimento dos Estados
contra-insurgentes, como um elemento central para a reprodução do capita-
lismo dependente na Nossa América nas últimas décadas e, particularmente,
da ofensiva neoliberal como resposta à sua crise estrutural, assim como
para pensar as ofensivas neofascistas e dos setores de direita que estão se
organizando internacionalmente123.
Essa análise é necessária no enfrentamento às suas consequências, assim
como as contradições próprias das lutas nos limites da institucionalidade,
pensar o horizonte estratégico e os movimentos táticos, na organização e nas
lutas sociais e de classes; para forjar um senso comum que não se limite em
termos do possibilismo e das lutas nas margens, mas que assuma para si, a
necessidade e possibilidade da superação das relações sociais de produção e
reprodução capitalista, que produzem barbárie.

123 Por exemplo, na articulação do Fórum de Madrid, que se apresenta como defesa da liberdade, da democracia
e do Estado de Direito, em confronto com o que denominam o avanço da “extrema esquerda”, especialmente
na Europa e na Nossa América.
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 269

O surgimento e desenvolvimento da contra-insurgência como


parte da dominação imperialista e da ofensiva neoliberal na
Nossa América

Após a II Grande Guerra inter-imperialista, a denominada II Guerra


Mundial (1939-1945), na qual os EUA e a União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) foram aliadas, junto com a Inglaterra e a França (para
derrotar o nazismo alemão, o fascismo italiano e o Japão), se inicia a mal
chamada “Guerra Fria”, entendida como o não confrontamento bélico direto
entre as grandes potências – os EUA do denominado primeiro mundo capita-
lista e a URSS do denominado segundo mundo, que seria o “socialismo real”.
Um processo de disputa pelo mundo que, aparentemente, seria mais no
âmbito ideológico e cultural, já que um confrontamento bélico poderia impli-
car em uma guerra atômica-nuclear, como ameaça para toda a humanidade.
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Com os EUA no comando do mundo capitalista, se deu uma reorgani-


zação da dominação imperialista124. Essa reorganização se apresenta tanto
no âmbito do consenso (político-cultural e econômico), como da coerção. E
para isso era necessária, por sua vez, uma nova institucionalidade, tanto nas
Américas como no mundo todo.
Na reorganização do consenso político, cria-se em 1945, em São Fran-
cisco, EUA, a ONU. Embora seja inicialmente um acordo impulsionado entre
os países vencedores na denominada II Guerra Mundial, para supostamente
manter a paz mundial, é evidente a hegemonia histórica dos EUA que, inclu-
sive, quando não concordam com a vontade da maioria, simplesmente fazem
valer a sua vontade particular.
Já em 1948 é criada, em Bogotá-Colômbia, a Organização dos Estados
Americanos (OEA), como instrumento de dominação estadunidense sobre
os Estados da região, na sua pretensão de expansão, sob o projeto monroísta.
Na reorganização do consenso econômico e para a dominação financeira,
após o acordo de Bretton Woods, cria-se, em 1944, o Banco Mundial (BM)
e, em 1945, o Fundo Monetário Internacional (FMI); Já em 1959, cria-se o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Além disso, a Europa
ocidental iniciava um processo de reconstrução, tendo como suporte o Plano
Marshall, financiado pelos EUA.

124 O imperialismo entendido como parte do desenvolvimento capitalista, iniciado entre final do século XIX e início
do século XX, portanto, como um processo fundamentalmente econômico. O imperialismo se caracterizou
pela conformação do capital monopolista, o surgimento do capital financeiro (como unidade entre o capital
industrial e bancário), entre outros aspectos. Além da dominação econômica, o imperialismo também implica
na dominação política e militar, de forma diferente da dominação própria dos impérios colonialistas. Sobre
o imperialismo ver Lenin (2008), Braz e Netto (2006), Katz (2011).
270

É com base nessa reorganização econômico-financeira, que se deu início


aos chamados “anos dourados” do capitalismo-imperialismo, onde foi chave
a conciliação de classes no centro do capitalismo, com o denominado “Estado
de Bem-estar social”.
Combinando a produção fordista-taylorista com a regulação econômica
proposta por Keynes, desde a década de 1930, mas que só será assumida de
forma geral a partir desse novo momento, no processo de acumulação de
capital, como estratégia anti-crises.
Visando enfrentar o subconsumo, brindando melhores condições de vida
concreta para o conjunto das classes trabalhadoras, com políticas tendentes ao
pleno emprego, com seguridade social, políticas sociais públicas universais,
entre outros direitos, que em parte eram conquistas próprias das classes tra-
balhadoras, das suas lutas nesses países, mas que também pretendiam conter
a influência do denominado “socialismo real”.

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Mas esse pacto de conciliação, baseado no crescimento econômico no
centro do capital, só foi possível pelos processos de expansão imperialista, que
implicavam um maior desenvolvimento capitalista dependente em países da
periferia. Nesse processo foi chave, a criação, em 1948, da Comissão Econômica
para América Latina (CEPAL), vinculada à ONU, para incentivar a cooperação
econômica. Assim, durante as décadas de 1950 e 1960 haverá uma forte ênfase
em políticas desenvolvimentistas para a região a partir da CEPAL e da OEA.
Já na reorganização da coerção, sob a roupagem de “defesa”, se gera
uma coordenação das Forças Armadas, comandadas pelas forças militares
estadunidenses, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR),
assinado em 1947, no Rio de Janeiro, Brasil; e a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), assinado em 1949, em Washington, EUA.
É nesse processo de reorganização da coerção, na dominação imperialista,
que surge a estratégia contra-insurgente. A partir da qual se estabelecem as
práticas de enfrentamento às classes trabalhadoras e aos setores subalterni-
zados, segundo as particularidades de cada formação social e das lutas de
classes; mas tendo em comum uma mesma base: a Doutrina de Segurança
Nacional e do Inimigo Interno.
É nesse espírito que se cria a Escola das Américas em 1946, para a
formação de militares de toda a região, no suposto combate ao comunismo;
o que na verdade não foi mais do que práticas de terrorismo de Estado, no
enfrentamento da questão social, das lutas de classes, dos/as trabalhadores/as
mais pauperizados/as e de todos aqueles setores da sociedade que decidiram
reivindicar direitos sociais e melhores condições de vida.
Essa reorganização da dominação imperialista, desenhada no contexto da
mal chamada “Guerra Fria”, na verdade, se materializou, enquanto o mundo
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 271

fervia, com processos de lutas pela libertação nacional, luta anticolonial, luta
pelo socialismo e diversos processos emancipatórios em todo o mundo.
A resposta por parte dos Estados capitalistas em particular e do imperia-
lismo no geral, foi o reforço e a intensificação da estratégia contra-insurgente.
Alguns processos que evidenciam que o mundo fervia foram:
Revolução chinesa (1949), que se assumiu como socialista (aliada da
URSS), em um país de tamanho continental, o que implicou num alerta para
os EUA e na sua intervenção em outras guerras de libertação na Ásia.
Guerra de Libertação da Coreia (1950 a 1953), conhecida no Ocidente
como a “Guerra da Coreia”. Que terminou com a cisão permanente, até os
dias de hoje, entre a República Democrática da Coreia (Coreia do Norte, que
se assumiu como socialista, aliada da URSS e da China) e a Coreia do Sul
(aliada dos EUA).
A guerra imperialista da Indochina (1955 a 1975), conhecida no Ocidente
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como a “Guerra do Vietnã”. Após a libertação do povo do Vietnã como colônia


francesa, e dado que também se assumiu como socialista, os EUA intervêm
pretendendo uma cisão como ocorreu na Coreia. Após 20 anos de guerra e brava
resistência do povo (com o apoio da URSS e da China), os EUA tiveram que
sair e parar a intervenção, já quando se detonava a crise estrutural do capital e
havia uma forte recusa, por parte do próprio povo dos EUA, à essa intervenção.
Revolução cubana (1959), a primeira revolução triunfante, pela via
armada, contra o imperialismo, na Nossa América, o que inspirou diversos
levantamentos populares e de luta armada na região; mas que, por sua vez,
pôs os EUA em alerta. Não por acaso, nesse ano, inicia o bloqueio criminoso
contra Cuba, se cria o BID e, em 1961, é impulsionada a estratégia de “Aliança
para o Progresso”, com a promessa de desenvolvimento capitalista para os
países da região, implicando na expulsão de Cuba da OEA, em 1962, após ter
declarado, em 1961, o caráter socialista do processo revolucionário.
Além de várias lutas e guerras de libertação nacional e descolonização em
África, por exemplo, na Argélia, Angola, Congo, Moçambique, entre outras;
que em vários casos aprenderam sobre métodos de luta armada durante a
Segunda Grande Guerra, mas tendo também como referências as revoluções
chinesa, vietnamita e cubana.
Em 1966, em Cuba, é criada a Organização de Solidariedade dos Povos
da África, Asia e América Latina (OSPAAAL), como espaço de articulação
anti-imperialista e de apoio aos diversos processos de lutas de independência
e libertação nacional.
No centro do capitalismo, também, havia expressões de luta social. Nos
EUA, além do movimento contra a intervenção no Vietnã; surgia e se desen-
volvia, entre as décadas de 1950 e 1960, um movimento, muito diverso no seu
272

interior (que incluía táticas civilistas e armadas), na luta pelos direitos civis do
povo negro, o que terá repercussões, na luta antirracista, em todo o ocidente.
Na Europa ocidental, explode o Maio de 68 ou o Maio Francês, com
um protagonismo da juventude, estudantil e trabalhadora, mas que não foi
restrito à França, nem ocorreu apenas em 68, tendo repercussões em todo o
mundo, inclusive, na Nossa América.
Nesse movimento se colocaram em xeque os valores e relações sociais
da sociabilidade burguesa no seu conjunto (além das relações de exploração
da força de trabalho, se expressaram também contestações sobre as relações
de opressão sobre as mulheres e começam a se expressar as dissidências de
gênero e sexualidades, assim como também são denunciadas as relações de
exploração destrutoras da natureza, entre outras), sendo, possivelmente, a
primeira expressão cultural e política da crise estrutural do capital125.
Essas expressões de lutas não foram somente parte de uma disputa

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cultural, insistimos na resposta brutal dos Estados capitalistas em particular
e do imperialismo no geral, com práticas de repressão generalizada, pri-
sões arbitrárias, torturas, exílio, desaparecimentos forçados, assassinatos,
entre outras.
Outra expressão das lutas emancipatórias, foi o processo de renovação
no interior da Igreja Católica, iniciado com o Concilio Vaticano II, com João
XXIII, e que vai culminar na Teologia da Libertação, com a Conferência Epis-
copal de Medellín (Colômbia), em 1968. A partir daí o amor eficaz, promovido
pelo Sacerdote Camilo Torres Restrepo (assassinado em 1966), implicará num
compromisso com as lutas dos povos, dos/as pobres, que se traduz não em
poucos casos, mas, inclusive, na participação direta nas organizações de luta
em toda a Nossa América.
Já na década de 1970, se realizará a primeira experiência de tentativa de
uma transição ao socialismo pela via das instituições democráticas burguesas,
com o Governo da Unidade Popular, no Chile. O Programa desse governo,
sob a presidência de Salvador Allende, implicava em reformas democráticas
econômicas, políticas, sociais, em uma evidente perspectiva anti-imperialista
e internacionalista126.

125 Já na segunda metade da década de 1960 e na primeira metade da década de 1970, começa a expressar-se
a crise estrutural do capital, que aparece como uma crise do “Estado de bem-estar social” e do fordismo-
-taylorismo, mas que é o início de uma crise econômica (dos limites da reprodução ampliada do capital),
política (do Estado burguês), social (da barbárie produzida pelo capital) e ambiental (dos limites da relação
destrutora da natureza), o que coloca, em geral, as bases para o questionamento da sociabilidade burguesa
e a necessidade de uma nova sociabilidade, superando as diversas formas de exploração, opressão e
dominação. Sobre a crise estrutural do capital, ver Mandel (1990), Mészáros (2009), Antunes (2007), Harvey
(1992). Uma síntese introdutória encontra-se em Sierra-Tapiro (2017).
126 Sobre a vigência do projeto da Unidade Popular para a Nossa América, ver Sierra-Tapiro (2021b).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 273

Desde o momento em que Allende foi eleito, teve início o processo de


boicote, desestabilização e, inclusive, de atentados, até que, em 11 de setembro
de 1973, foi dado o golpe civil-militar, sob o comando do general Augusto
Pinochet, e com o apoio da CIA, inaugurando a primeira experiência de neo-
liberalismo no mundo.
Na década de 1970, as ditaduras se expandem por toda a Nossa América,
mas, especialmente, no cone sul, implementando-se o chamado Plano Con-
dor, como uma articulação das forças militares no processo de perseguição a
qualquer expressão de crítica ou resistência. Aqui se materializa plenamente
o TIAR e os ensinamentos da Escola das Américas, como parte do momento
mais brutal da estratégia contra-insurgente.
Na segunda metade da década de 1970, todos os países do cone sul
estavam em ditadura. Além das que foram iniciadas nessa década, Uruguai
(1973-1985), Chile (1973-1990) e Argentina (1976-1983), já havia ditaduras
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no Brasil (1964-1985, com a particularidade de que foi um golpe “preven-


tivo”, pelas reformas democráticas impulsionadas pelo governo João Goulart
– Jango –; essa ditadura iniciou ainda em um momento de plena expansão
desenvolvimentista) e no Paraguai (1954-1989, com a particularidade de ser
uma ditadura mais parecida com as do Caribe, um processo autocrático ainda
com traços coloniais-oligárquicos).
Já no final da década de 1970, em parte pelos rebatimentos da crise do
capital, mas, também, pela crítica situação de violação dos Direitos Huma-
nos, os povos trabalhadores de toda a Nossa América retomavam as ruas e as
mobilizações sociais cresciam.
Assim, a Nossa América seguia fervendo. Inclusive, em 1979, na Nica-
rágua, triunfa uma segunda revolução, anti-imperialista, por meio da luta
armada, o que novamente inspira diversas expressões de resistências e lutas.
Nesse novo cenário de crise econômica e política e de desgaste das
ditaduras, no final da década de 1970, é colocada a necessidade da ins-
titucionalização da contra-insurgência127, denominada pelo governo dos
EUA como construção de “democracias viáveis”, o que implicaria na tran-
sição das ditaduras para democracias restritas e processos de paz onde
havia guerra.
Esse processo de institucionalização da contra-insurgência se realizou
em cada país segundo as próprias particularidades das suas lutas de classes
durante a década de 1980 e inícios da década de 1990; no entanto, esse pro-
cesso não se encerrou completamente, especialmente pela permanência de
algumas organizações insurgentes armadas na Colômbia, e o surgimento do

127 Sobre o Estado contra-insurgente e o seu processo de institucionalização, ver Marini (1978), Murga e
Hernández (1980).
274

Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em Chiapas, no México,


entre outros diversos processos de insurreição popular e movimentos de mas-
sas, como insurgências sociais não armadas, que começaram a enfrentar a
ofensiva neoliberal na região.
É importante lembrar que embora o neoliberalismo é colocado como uma
resposta ao keynesianismo desde a década de 1940, não teve base concreta
para ser assumido até o início da crise estrutural do capital. Foi aí, quando,
como resposta à aparência fenomênica da crise, começa a materialização
da estratégia econômica, política e ideológica neoliberal, com processos de
reestruturação produtiva, aprofundamento da denominada financeirização,
da contrarreforma do Estado e de uma ofensiva ideológica pós-moderna
e neoconservadora128.
Após a brutal e sanguinária experiência no Chile, sob a ditadura civil-mi-
litar, a estratégia neoliberal é assumida no centro do capital a partir do final da

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década de 1970 e durante a década de 1980, implicando em fortes retrocessos
e pauperização nas condições de trabalho e de vida das classes trabalhadoras;
expandindo-se plenamente na década de 1990, com o fim da URSS e do denomi-
nado “socialismo real” (o que ideologicamente foi apresentado no mundo como
o triunfo do capitalismo e da democracia burguesa como o único mundo possível
e desejável, o suposto “fim da história”).
Na Nossa América a ofensiva neoliberal teve expressões desde a década
de 1970 e 1980 (tanto em países sob ditaduras civil-militares como sob demo-
cracias restritas), mas vai se institucionalizar na década de 1990 sob a orien-
tação do Consenso de Washington de 1989, apontando para uma nova forma
do projeto monroísta com a ALCA.
Nesse sentido, confluem os processos de institucionalização do neolibera-
lismo e da contra-insurgência, respondendo fundamentalmente às necessidades
do capital monopolista transnacional, com uma base de dominação fortemente
coercitiva, com um poder efetivo das Forças Armadas como suposto garantidor
das democracias restritas.
A face mais brutal da contra-insurgência, o terrorismo de Estado, se
mantém de formas diferenciadas na região e se aprofunda nos países em que
se intensificam mais as lutas sociais e de classes – seja com as forças legais
ou ilegais (paramilitares) –, com o apoio (e orientação) de instituições do
imperialismo estadunidense ou sob o seu controle.
O que se complexifica ainda mais, em formações sociais nas quais as
economias ilegais, particularmente o narcotráfico, têm conseguido também
uma maior expansão e têm permeado as instituições desses Estados.

128 Sobre o neoliberalismo e suas repercussões, ver Anderson (2003), Harvey (1992), Antunes (2018, 2007),
Estrada (2004), Behring (2008).
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 275

Mas a contra-insurgência também se expressa nas políticas sociais para


o disciplinamento das classes trabalhadoras, na disputa ideológica das lutas
sociais, no uso do fundo público no gasto militar e do sistema carcerário, entre
outros, para garantir a militarização da vida cotidiana e a criminalização dos
movimentos sociais, das organizações populares e dos setores mais pauperi-
zados das classes trabalhadoras e dos setores subalternizados.
Elementos que precisam ser ainda mais estudados e analisados,
como determinações da contra-insurgência no capitalismo dependente na
Nossa América.

A guisa de conclusões (e/ou provocações)

I. É importante assumir a análise da Nossa América como uma uni-


dade na diversidade, reconhecer os elementos históricos comuns,
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partindo das particularidades das formações sociais.


O que por sua vez possibilite apreender coletivamente, no intercâm-
bio das experiências de lutas dos nossos povos, das suas formas de
organização, das táticas e estratégias, forjando uma articulação e
unidade nas lutas; que passam pelas lutas nacionais, mas que, tam-
bém, tem muitos elementos comuns para uma luta regional, assim
como na articulação internacionalista com outros processos e lutas
emancipatórias no mundo.
II. A Nossa América está em disputa entre diversos projetos societários,
os dois principais blocos apontam para a manutenção das relações
sociais de produção e reprodução capitalista, seja na sua expressão
mais barbarizante de aprofundamento aberto do neoliberalismo, ou,
seja na sua expressão mais democrática que pretende uma contenção
dessa barbárie, apresentando-se como anti-neoliberal. No entanto,
existem outros projetos, anti-neoliberais, anti-imperialistas e anti-capi-
talistas, que apontam para a superação dessas relações sociais e para a
construção de uma nova sociabilidade, num horizonte emancipatório,
que supere toda forma de exploração, opressão e dominação.
É preciso aprofundar no conhecimento da diversidade desses projetos
e, sobretudo, na disputa pelo senso comum na vida cotidiana, sobre as
repercussões da crise estrutural do capital, da ofensiva neoliberal, do
caráter contraditório das reformas dentro da (des)ordem do capital e da
necessidade e potencialidade da transformação, na raiz, da sociedade.
III. Se faz necessário, no enfrentamento ao neoliberalismo, aprofundar
nas análises sobre as particularidades do capitalismo dependente
na Nossa América, como parte do processo de desenvolvimento
276

capitalista-imperialista no mundo; o que por sua vez, implica enten-


der as particularidades das classes sociais, na sua heterogeneidade,
e das formas do Estado.
Em consequência, é preciso aprofundar os estudos e debates sobre o
surgimento e o desenvolvimento da contra-insurgência como estra-
tégia do capital imperialista na luta de classes, que não se limitou
às ditaduras civil-militares na Nossa América, mas que está em um
processo de institucionalização há quatro décadas na maioria de
países na região, inclusive em vários onde houve, ou há, governos
que se assumem como anti-neoliberais.
IV. A Nossa América é central na disputa inter-imperialista no século
XXI, principalmente pela apropriação dos bens naturais, o que por
sua vez implica em processos de expropriação dos nossos povos,
assim como em uma intensificação da exploração da força de tra-

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balho. O que se expressa não só nas relações econômicas, mas,
também, nas político-ideológicas e militares.
Portanto, as diversas formas de organização e das lutas de resistên-
cias e revolucionárias, precisam também assumir na sua análise e
na sua prática política, formas de auto-defesa e de enfrentamento ao
terrorismo de Estado, assim como as possíveis intervenções armadas
imperialistas diretas.
Aqui, a disputa dos diversos cenários concretos de poder, da mobili-
zação de massas e da articulação internacionalista são fundamentais.

El siglo que viene para nosotros,


es el siglo de la esperanza,
es nuestro siglo.
Es el siglo de la resurrección
del sueño bolivariano,
del sueño de Martí,
del sueño latinoamericano.
Hugo Chávez Frías.
(Discurso en La Habana, 1994)
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 277

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ÍNDICE REMISSIVO

A
Acumulação capitalista 29, 56, 58, 61, 62, 82, 136, 149, 216, 233, 240,
241, 253
Agricultura 55, 150, 169, 172, 173

B
Bolsonarismo 72, 75, 76, 115, 234
Bolsonaro 8, 11, 22, 31, 35, 58, 69, 70, 72, 73, 74, 78, 96, 113, 114, 143,
193, 194, 195, 198, 199, 200, 202, 204, 207, 208, 209, 210, 213, 246, 247,
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248, 252, 253, 254, 258

C
Capitalismo 7, 8, 10, 11, 14, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 32, 33,
34, 35, 36, 37, 38, 39, 41, 42, 43, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 59,
60, 61, 62, 64, 65, 66, 67, 70, 77, 81, 82, 84, 93, 97, 99, 101, 104, 105, 108,
115, 120, 126, 132, 135, 136, 141, 142, 143, 144, 146, 147, 151, 154, 155,
158, 159, 160, 180, 182, 216, 220, 233, 236, 237, 240, 241, 244, 247, 256,
257, 261, 262, 265, 268, 270, 272, 274, 275, 276, 277, 278
Cidadania 62, 70, 71, 83, 111, 112, 132, 194, 207, 209, 217, 218, 220, 221,
224, 227, 233, 234, 236
Colonialismo 57, 141, 142, 143, 152, 153, 166
Corrupção 58, 87, 183, 184, 188, 192
Crise estrutural do capital 31, 53, 57, 62, 65, 241, 265, 267, 268, 271, 272,
274, 275, 279
Crítica da economia política 9, 19, 22, 23, 25, 51, 97, 116, 139

D
Democracia 29, 31, 33, 35, 36, 56, 58, 66, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 153,
165, 169, 233, 239, 257, 264, 268, 274, 279, 290
Democratização 15, 20, 79, 169, 178, 180, 218, 221, 224, 232, 264, 268
Descentralização 62, 90, 178, 215, 220, 221
Desemprego 24, 53, 57, 86, 154, 166, 183, 185, 241
282

Desigualdades 11, 47, 119, 130, 140, 152, 155, 156, 157, 165, 166, 172, 186,
187, 188, 189, 216, 220
Dilma 58, 84, 123, 143, 194, 195, 196, 198, 199, 200, 202, 203, 204, 208,
209, 210, 212, 213, 247
Dinheiro 25, 27, 30, 76, 84, 88, 102, 104, 108, 110, 118, 177, 182, 183
Ditadura 35, 56, 61, 66, 67, 79, 218, 245, 257, 273, 274

E
Enfrentamento 61, 64, 111, 132, 153, 188, 226, 227, 228, 264, 265, 267,
268, 270, 276
Estado social 7, 28, 29, 30, 46, 53, 54, 60, 61, 62, 64, 65, 187
Extrativismo 11, 172, 173, 242, 253, 254, 255, 265

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F
Financeirização 7, 10, 21, 31, 50, 94, 101, 102, 104, 106, 107, 108, 109, 110,
111, 113, 114, 115, 116, 134, 135, 159, 213, 242, 255, 274

I
Imperialismo 28, 34, 37, 43, 51, 54, 55, 56, 115, 132, 145, 147, 257, 264,
265, 267, 269, 270, 271, 272, 274, 278
Imposto 85, 88, 95, 96, 118, 119, 120, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128,
129, 130, 133, 134, 135, 137, 138, 154, 197, 216, 223, 224
Imposto de renda 85, 88, 95, 96, 120, 122, 123, 125, 126, 127, 134, 138,
197, 223, 224
Indígenas 26, 31, 32, 152, 249, 250, 251, 253, 254
Institucionalização 155, 157, 217, 218, 250, 273, 274, 276

L
Liberalismo 27, 29, 74, 216, 256, 277
Liberdade 14, 73, 74, 81, 94, 207, 219, 233, 268
Lucro 29, 30, 46, 47, 58, 59, 61, 84, 93, 94, 101, 102, 103, 105, 107, 118,
123, 125, 147, 158, 200, 224
Lula 8, 10, 11, 20, 58, 69, 70, 71, 74, 75, 76, 77, 79, 81, 82, 83, 84, 92, 96,
108, 117, 132, 133, 143, 177, 193, 194, 195, 196, 198, 199, 200, 202, 203,
204, 207, 208, 210, 211, 212, 242, 254, 255
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 283

M
Mercantilização 58, 81, 82, 91, 97, 178, 190, 220, 250, 253, 255
Mundialização 30, 33, 36, 57, 65, 66, 105, 115, 139, 146, 158, 160

N
Neofascismo 10, 22, 31, 32, 35, 64, 69, 71, 72, 75, 79, 96, 114, 252, 258,
261, 279
Neoliberalismo 27, 30, 31, 34, 62, 70, 75, 76, 92, 115, 135, 159, 211, 221,
247, 249, 252, 256, 257, 258, 264, 265, 266, 267, 268, 273, 274, 275, 276, 277

O
Orçamento público 8, 9, 10, 11, 13, 14, 17, 18, 19, 20, 24, 26, 38, 63, 81, 82,
88, 94, 95, 101, 110, 115, 117, 144, 145, 150, 163, 171, 193, 194, 195, 198,
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199, 200, 203, 210, 215, 219, 221, 222, 224, 225, 232, 233, 234, 235, 236,
237, 261, 289, 290, 291, 292

P
Pagamento 57, 84, 86, 87, 88, 91, 92, 94, 95, 96, 109, 112, 114, 120, 121,
125, 131, 132, 134, 143, 144, 145, 177, 182, 209, 220, 222, 243
Pandemia 25, 53, 79, 96, 172, 210, 213, 230, 241, 252, 253, 258, 259, 267
Patrimônio 31, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 124, 127, 128, 132, 133, 137, 166
Pobreza 25, 64, 86, 130, 164, 165, 166, 172, 175, 178, 184, 185, 188, 191,
216, 221, 241, 242, 243, 253, 254, 255
Políticas sociais 7, 10, 14, 18, 19, 22, 23, 29, 30, 44, 49, 50, 53, 58, 59, 60,
61, 62, 63, 65, 73, 82, 84, 91, 99, 101, 102, 107, 108, 109, 110, 112, 115, 116,
117, 132, 134, 136, 155, 156, 159, 191, 203, 204, 210, 213, 215, 218, 219,
220, 221, 224, 226, 232, 235, 236, 237, 242, 243, 247, 254, 255, 270, 275, 279
Privatização 43, 44, 47, 50, 58, 62, 65, 81, 82, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 109,
178, 182

R
Racismo 42, 54, 142, 150, 153, 154, 155, 157, 159, 160, 235, 255
Redemocratização 9, 19, 62, 83, 211, 256
Regressividade 88, 91, 92, 95, 117, 118, 119, 120, 121, 126, 130, 131, 132,
134, 222
Remuneração 63, 89, 102, 110, 111, 112, 114, 120, 122, 127, 144, 156, 200
Roubo 39, 41, 42, 240
284

S
Salários 9, 31, 44, 49, 107, 109, 110, 121, 122, 123, 126, 154, 157, 209,
231, 242
Saneamento 88, 110, 175, 178, 185
Seguridade social 4, 9, 13, 14, 17, 18, 19, 36, 38, 62, 63, 66, 80, 81, 83, 84,
86, 87, 88, 95, 96, 97, 98, 107, 109, 114, 117, 123, 131, 132, 134, 140, 145,
155, 163, 194, 195, 215, 219, 220, 222, 225, 229, 237, 239, 243, 256, 261,
270, 289, 290, 291, 292
Serviço social 4, 13, 17, 20, 34, 35, 36, 37, 38, 43, 49, 53, 66, 67, 79, 81,
92, 97, 99, 140, 159, 163, 190, 211, 215, 227, 233, 234, 236, 237, 261, 262,
278, 289, 290, 291, 292
Socialismo 29, 34, 50, 66, 74, 258, 264, 269, 270, 271, 272, 274
Superexploração da força de trabalho 46, 54, 56, 58, 59, 60, 61, 64, 130, 135,

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136, 154, 160, 241, 243, 251, 252, 253

U
Ultraneoliberalismo 48, 79, 96, 108, 115, 235, 261, 279

V
Violência 22, 26, 30, 31, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 49, 61, 96, 111, 142, 152,
166, 216, 219, 231, 232, 233, 235, 240, 241, 251, 253, 256
SOBRE AS(OS) AUTORAS(OS)

Elaine Rossetti Behring


Professora Titular da UERJ, no Departamento de Política Social da Faculdade
de Serviço Social. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orça-
mento Público e da Seguridade Social (GOPSS/UERJ). Graduação, mestrado
e doutorado em Serviço Social pela UFRJ. Presidente da Associação Brasileira
de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na gestão 2009-2010 e do
Conselho Federal de Serviço Social (1999-2002). Coordenadora do PPGSS/
UERJ (2012 e 2016). Coordenadora do Centro de Estudos Octavio Ianni
(CEOI/UERJ). Pós-Doutorado em Sociologia e Ciência Política na Univer-
sidade de Paris VIII (2011-2012). E-mail: elan.rosbeh@uol.com.br
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Juliana Fiuza Cislaghi


Doutora em Serviço Social e Professora Associada da Faculdade de Serviço
Social da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UERJ
(PPGSS/UERJ). É pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Orça-
mento Público e Seguridade Social (GOPSS), do Centro de Estudos Octavio
Ianni (CEOI) e coordenadora do projeto de extensão GT Favela do Esqueleto
(FSS/UERJ). E-mail: fiuzajuliana@yahoo.com.br

Márcia Pereira da Silva Cassin


Assistente Social, Mestre e Doutora em Serviço Social pelo PPGSS/UFRJ.
Professora Adjunta da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (FSS/UERJ). Co-Coordenadora de Extensão e Estágio
da FSS/UERJ (Gestão 2022/2024). Coordenadora do projeto prodocência
Literatura e Formação Social Brasileira. Pesquisadora do Grupo de Estudos
e Pesquisas do Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS/UERJ) e do
Centro de Estudos Octávio Ianni (CEOI/UERJ). Supervisora de campo de
estágio em Serviço Social. E-mail: marcia.cassin@hotmail.com

Felipe Demier
Doutor em História pela UFF e professor adjunto do Departamento de Polí-
tica Social (DPS) da Faculdade de Serviço Social (FSS) e do Programa de
Pós-Graduação de Serviço Social da UERJ. Membro do GOPSS/UERJ e do
CEOI/UERJ, é autor de “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada
no Brasil” (Mauad X. 2017), entre outros trabalhos. E-mail: felipedemier@
yahoo.com.br
286

Tainá Souza Caitete


Assistente Social. Mestre e Doutora em Serviço Social pelo Programa de
Pós-Graduação em Serviço da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pro-
fessora Adjunta do Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço
Social da Uerj. É pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orça-
mento Público e Seguridade Social (GOPSS), vinculado ao Centro de Estudos
Octávio Ianni (CEOI/UERJ). Atualmente está coordenadora Acadêmica do
Departamento de Serviço Social da Policlínica Universitária Piquet Carneiro
(DSS/PPC). Coordenadora adjunta do projeto de extensão e coletivo Questão
Social em Foto (FSS/UERJ). E-mail: taina.con@gmail.com

Giselle Souza
Assistente Social. Mestre e doutora em Serviço Social pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professora da Universidade Federal do

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Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Coordenadora do projeto de pesquisa
Fundo Público e Estado no Brasil Contemporâneo (UNIRIO). Membro do
Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social
(GOPSS/UERJ) e vice coordenadora do Núcleo Interinstitucional de Estudos
e Pesquisa sobre Teoria Social, Trabalho e Serviço Social (NUTSS/UFF).
E-mail: giselle.souza@unirio.br

Evilasio Salvador
Economista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
mestre e doutor em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB) e
pós-doutor em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor na Universidade de Brasília (UnB) na graduação em Ser-
viço Social e no Programa de Pós-graduação em Política Social. Bolsista
Produtividade do CNPq. Líder do núcleo de estudos e pesquisas sobre Fundo
Público, Orçamento, Hegemonia e Política Social (FOHPS). E-mail: evila-
siosalvador@gmail.com

Jonathan Henri Sebastião Jaumont


Assistente social e Professor da Escola de Serviço Social da UFRJ. É doutor
em Serviço Social pelo PPGSS/UERJ e pesquisador, desde então, do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Orçamento Público e Seguridade Social (GOPSS),
do Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI). E-mail: jojaumont@gmail.com

Juliana Lando Canga


Possui Doutoramento em Ciências Sociais (2011) pela Universidade Federal
do Pará. Professora Associada na Faculdade de Serviço Social – FSS da Uni-
versidade de Luanda, onde Preside a Assembleia e o Conselho Científico na
FUNDO PÚBLICO, ORÇAMENTO E POLÍTICA SOCIAL – 20 ANOS DO GOPSS / UERJ 287

Faculdade, é presidente emérita do conselho geral e é membro do Conselho


Geral e do Senado da Universidade de Luanda, consultora especial do GCUB.
Pós-Doutorada em Serviço Social na UERJ – Universidade Estadual do Rio
de Janeiro onde participou do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Orçamento
Público e Seguridade Social (GOPSS) Brasil. Membro da FORGES desde
2013. E-mail: jlcanga06@gmail.com

Fernando Henrique Silva Carneiro


Professor de Educação Física no Instituto Federal de Goiás (IFG) e no Pro-
grama de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação. Doutor e mestre em
Educação Física pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Educa-
ção Física Escolar pela Universidade Estadual de Goiás (UEG/ESEFFEGO) e
em Gerenciamento de Projetos pela Universidade Estácio de Sá. Licenciado
em Educação Física pela (UEG/ESEFFEGO) e bacharel em Administração
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pela Faculdade Estácio de Sá de Goiás. Pesquisador do AVANTE-UnB. Asso-


ciado do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE). Atua principal-
mente com os seguintes temas: Financiamento do esporte e lazer; Políticas
públicas de esporte e lazer; Políticas educacionais; e Educação Física Escolar.

Fernando Mascarenhas
Professor da Universidade de Brasília (UnB), onde atua no âmbito da gradua-
ção e pós-graduação em atividades de ensino, pesquisa e extensão vinculadas
às linhas: Políticas de Esporte e Lazer; Teoria Social do Esporte; Economia do
Esporte. Integra o Avante – Grupo de Pesquisa e Formação Sociocrítica em
Educação Física, Esporte Lazer da UnB. Possui Pós-Doutorado em Política
Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrado e
Doutorado em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). E-mail: fernando.masca@outlook.com

Rodrigo Silva Lima


Educador social, assistente social e professor associado da Escola de Serviço
Social da Universidade Federal Fluminense (ESS/UFF), lotado no Departa-
mento de Serviço Social de Niterói (SSN). Docente do Curso de Graduação
em Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e
Desenvolvimento Regional (PPGSSDR). Coordenador do Núcleo de Exten-
são e Pesquisa em Direitos Humanos, Infância, Juventude e Serviço Social
(NUDISS) e membro da comissão ampliada do Grupo Temático de Pesquisa
da Associação Brasileira de Pesquisadores em Serviço Social (GTP/ABEPSS)
Serviço Social, Geração e Classes Sociais. Conselheiro Presidente, gestão
2014-2017, do Conselho Regional de Serviço Social da 7ª Região (CRESS/
RJ). E-mail: rodrigolima@id.uff.br
288

Katia Iris Marro


Assistente Social pela Universidade Nacional de Rosario (Argentina); Mestre
e Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
e Pós-Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; professora associada do Curso de Serviço Social da Universidade
Federal Fluminense (Campus Rio das Ostras); coordena o Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas Lutas Sociais e Classes Subalternas e diversos Projetos de
Extensão junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. E-mail:
katiamarro@id.uff.br

Juan Pablo S. Tapiro


Professor adjunto da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Integrante do Centro de Estudos Octavio Ianni
(CEOI) e do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Segu-

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ridade Social (GOPSS). Doutor em Serviço Social pela Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2017. Tem colaborado como professor do
Seminario eletivo: “Tendencias del debate sobre la fundamentación crítica
del Trabajo Social en Nuestra América” no curso de Mestrado em Trabajo
Social da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires
em 2021. Foi integrante do Colectivo de Trabajo Social Crítico Colombia
(TSCC), entre 2007 e 2021. E-mail: jptapiro@gmail.com
Editora CRV - Proibida a comercialização
tecidas por um coletivo de inte-
lectuais dedicado a apreender
a realidade em perspectiva
de totalidade e em suas contra-
dições, sem fugir da luta por uma Nos 20 anos do Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público
sociedade emancipada, livre de e Seguridade Social - GOPSS/UERJ - seus pesquisadores nos brin-
qualquer forma de exploração e dam esta consistente, necessária e provocativa coletânea. Fecunda-
opressão. O GOPSS/UERJ, sob a da pela crítica da economia política, ela adensa o debate sobre a
coordenação da Elaine Behring relação entre valor, orçamento público e política social no marco
e vice-coordenação de Juliana das relações entre as classes e o Estado na América Latina e seus
Fiuza, importantes intelectuais e impactos na dinâmica do fundo público em tempos de financeiriza-
militantes socialistas, é expressão ção. As palavras do poeta caem como uma luva: “O tempo é minha
de um dos principais papeis da matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”
universidade pública: a produção (Drummond de Andrade). Este livro, enraizado historicamente na
e socialização de conhecimento sociedade contemporânea, contribui tanto para elucidar seus enig-
crítico. Compas do GOPSS/UERJ, mas quanto para subsidiar sujeitos coletivos, de mãos dadas, em

Editora CRV - Proibida a comercialização


Parabéns e Avante! suas lutas e movimentos sociais. As pesquisas aqui reunidas são
Sandra Oliveira Teixeira regidas pelo compromisso intelectual e político com “um devir histó-
Dept. de Serviço Social/ rico com homens e mulheres emancipados da lógica da valorização
Universidade de Brasília do valor”. O GOPSS é hoje uma referência em sua área temática. Ele
encontra-se inscrito no Centro de Estudos Octavio Ianni (CEOI), da
Faculdade de Serviço Social da UERJ. Que possamos desfrutar essa
valiosa leitura!
Marilda Villela Iamamoto
Professora titular aposentada da UERJ
Pesquisadora do CNPq

SOBRE O LIVRO
Tiragem: Não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm ISBN 978-65-251-5394-0
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)
9 786525 153940

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