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CAPÍTULO 6

A cultura da crise' e as ideologias do con-


senso no ultraneoliberalismo brasileiro?

Ana Elizabete Mota

Situo meu curto ensaio no àmbito dos mecanismos utilizados pela bur-

guesia em face da crise capitalista, crise orgånica; que afeta o campo da


Essa crise incide nas es-
hegemonia, segundo a perspectiva gramsciana.
feras da economia, da política e da formação de cultura e sociabilidades,
determinando o surgimento de renovadas estratégias de gestão da crise
que, sob determinadas condições objetivas, criam um campo de força em
torno da luta pela hegemonia.

1 A categoria cultura da crise foi por mim construída como um artificio reflexivo
para tratar das ideologias formadoras de consensos de classe quando da reforma
da
Previdência Social brasileira nos anos 1990, tratada originalmente na minha tese de
doutoramento, publicada em 1995. Desde ento venho sistematicamente enriquecendo
e identificando os significados dessa cultura saturada de ideologias que passivizam a
consciência social e a luta dos trabalhadores e trabalhadoras, sob determinadas condições
históricas. Por suposto, contando com a necessária atualização histórica, a tese central me
parece válida para compreender criticamente as estratégias e táticas da burguesia para
realizar suas contrarreformas. Sobre o tema, consultar: MOTA, A. Elizabete. Cultura da
crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e assistência social
brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995.
2 Ensaio elaborado a partir de exposição feita em 27 de junho de 2019, na mesa intitulada
A agenda do capital no governo Bolsonaro e os desafios da esquerda e do Serviço Social",
promovida e organizada pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ,
com a participação dos professores Mauro lasi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
e Felipe Demier, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ambos docentes na área do
Serviço Social, sob coordenação da professora Mavi Rodrigues
3 Uma das características da crise orgânica é a concomitância entre a crise econômica
(de acumulação) e a emergência de uma crise política, determinada pelo acirramento dos
conflitos entre as classes e, no seu interior, entre as frações de classe. Na concepção de
Gramsci, essa crise orgânica afeta o conjunto das relações sociais e é a condensação das
contradições inerentes à estrutura social. Para uma síntese do conceito, conferir:VOZA,
P;LIGUORI, G. Dicionário gramsciano. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 162-164.

135
PODER (ANO 1):
CRÍTICAS SOBRE O GOVERNQ
ANÁLISES CRITICAS SOBRE GOVERNO
BOLSONAR
ONEOFASCISMO NO
136

da hegemonia
do grupo dominante,
nte não se
Para Gramsci, a construção no terreno da ecOno.
e exploração
restringe às relações de dominação univ hegemônica
à formação de
uma cultura que iversal
torna e

mas remete
ou fração
de classe que, sendo dom
ominan-
mundo de uma classe
a visão de apresentar seus inta.
se pretende dirigente,
isto é, pretende nteres-
te, também
fossem os
interesses gerais da nação no interi.
erior
como se
ses particulares demais classes da
da própria classe e
diante das frações
das
ade
determinista, dado auee
com uma perspectiva em-
Essa concepção rompe
ela deve ser também económica h
bora a hegemonia seja ético-política, dominante no niclas
seada necessariamente nafunção exercida pelo grupo
daí a orgänica relação entre a existência
decisivo da atividade econômica,"
de classe no åmbito
e enfrentamento da
crise capitalista e a ação politica
da constituição da hegemonia.
Nos anos passado século, utilizei a categoria cultura da crise
1990 do
mecanismos ideopolíticos que, mediados pelas ideologias
para tratar dos
do senso comum e fomentados pelos aparelhos privados de hegemonia,
socializam ideias, conceitos e proposições através dos quais a burguesia
e seus associados tentam tornar universais 0s seus interesses especificos
para obter o consentimento passivo e ativo das classes subalternas em
torno do seu projeto societal.
Retomo aqui a tese da cultura da crise - de que, no leito da crise brasi-

leira, vem sendo gestada uma cultura política da crise que recicla as bases
da constituição da hegemonia do capital para refletir sobre as
-

práticas
do atual governo brasileiro, qualificando-as como estratégias e táticas da
burguesia brasileira, em articulação com a direita internacional eo novo
imperialismo, para ressignificar os métodos, os conteúdos e as formas
de socialização do seu projeto de sociedade, usando, dentre outras alter-
nativas, argumentos prêt-à-porter (pronto para uso), sem a elegåncia e o
bom gosto que marcaram essa adjetivação nas rodas burguesas parisien"
ses
quando o assunto era moda.
Sob determinadas
ga da
relações e utilizando algumas mediações, a pedag
cultura da crise consiste em
a
produção de consensos ativos e metabolizar objetiva e subjetivame
passivos de classes subalternas requcteri

4
5
GRAMSCI, A. apud MOTA, A.
MOTA, A. E., op. cit., E., op. cit., p. 33.
p. 24.
a cutura da crise e as ideologias do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro
137

dos pelo capital na implementação de medidas necessárias aos seus mo-


dos de operar enfrentamento da crise capitalista.
o

Nesse enfrentamento, a programática burguesa


responde pela prin-
cipal prática capitalista: a financeirização da economia via
do fundo público pelo capital rentista e banca internacional
apropriação
por meio da
expropriação de direitos e pilhagem dos meios de vida dos trabalhadores
(bens, serviços, salários e rendas), mercantilizando-os e financeirizando-
-0s. Esse movimento, cuja centralidade é do mercado, inclusive do mer-
cado de capitais, revela que o atendimento das necessidades materiais e
sociais da populaço brasileira afasta-se cada vez mais da guarida dos
direitos e aproxima-se da transformação dos bens e serviços públicos em
mercadorias lucrativas. Por certo, também revela a subordinação do Es-
tado aos interesses do capital em detrimento do usufruto das conquistas
civilizatórias das classes trabalhadoras brasileiras desde os anos 1980.
Para tanto, as classes dominantes necessitaram reciclar as bases da
constituição da hegemonia no ritmo do regime democrático-blindado
(com crescentes traços bonapartistas) das classes dominantes brasilei-
ras, orgânicas às necessidades do capital e à subordinação do Brasil à
dinâmica do projeto imperialista.
Mediadora da ofensiva capitalista em busca da valorização do valor,
essa cultura, saturada de ideologias reacionárias, conservadoras e proto-

facistas, tem no governo Bolsonaro expressões emblemáticas, sob a di


reção do ultraneoliberalismo. Essa direção se referencia em ajustes e me-
didas de austeridade, ou de austericídio, através das contrarreformas do

destaques para a apropriação privada do fundo público


e a
Estado, com
como ocorre explicitamen-
mercantilização de políticas, bens e serviços
te,nesta altura dos acontecimentos, com a Previdência Social e implici
do Sistema Unico de Saúde
amente com a saúde, através do desmonte de recursos para o
US), entre outros setores sem falar na pilhagem -

estimula-se a
pagamento dos juros da dívida pública. Em contrapartida,
iniciativa de
da rede de serviços assistenciais, voluntários, por
Xpansão do acolhimento
laicas mais diversas áreas:
Situiçoes religiosas ou nas
sociais voltados para
c população de rua, passando por projetosde
dosos e
até a política drogas, etc.
a s e adolescentes das periferias,

a dialética da democracia
63 o assunto, consultar: DEMIER,
E Depois do Golpe:
re 2017.
Dundada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X,
ANALISES CRITICAS SOBRE OGOVEDA
ONEOFASCISMO NO PODER (ANO 1): VERNO BOLSONARO
138

desenvolvem em um cenário de
potenciacä
Essas medidas se enciação da ex
da superpopulação relativa edo exér-
ploração do trabalho, daexpansão emulheres
homens alojados no desemn
cito de reserva, formado por
na informalidade e no trabalho por conta pria - o que afeta fronsemprego
mente a capacidade político-organizativa dos trabalhadores e traha
doras para resistir e lutar contrao desmonte dos seus direitos. Tamhdmé
palcodas diabruras da lumpemburguesia' que, como fração da classe.
explora o trabalho, acumula capital e verte lucros e vantagens financeiras
exercita-se como classe dominante e tenta tornar-se dirigente ao impie
mentar iniciativas e socializar valores com Os estratos médios, os setores
subalternos e segmentos das classes trabalhadoras e seus descendentes
compartilhando seu projeto de Brasil. Superando todos os limites éticos e
estéticos do largo processo histórico de decadència ideológica da burgue
sia e da destruição da razão? com as armas do anti-intelectualismo e ao
arrepio da critica, são devotos do reacionarismo mais rasteiro, fazendo
uso de modos toscos, rasos e anticivilizatórios de sere viver,
compatíveis
com as necessidades das burguesias industrial, agrária, financeira e de
seus prepostos.
O ambiente da pequena
política, cotidiana, brasileira, acirrado pelo
golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, é marcado pelo surgimen
to de grupos reacionários com
expressãoe representatividade nas igrejas,
nas no
manifestações populares, movimento dos estudantes, nas univer
sidades, etc. Presencia-se a redefinição de blocos
mento, inclusive com a ampliação de bancadas
ideológicos no parla-
integradas por deputados

7 Termo utilizado
por Felipe Demier com precisão cirúrgica
para qualificar a origem ae
classe e os traços ideoculturais dos estratos dominantes que
DEMIER, E. Crónica do caminho do caos: apoiamo atual governo.
atual. Rio de Janeiro: Mauad democracia blindada, golpe e fascismo no br
X, 2019
8A
monia
concepção de classe dirigente relaciona-se diretamente com
na o conceito de
tradição gramsciana: a de direço hege uanto
diversa e complementar da político-ideológica fundada no consenso, leitor
de Gramsci: escritos dominação, fundada na coerção (COUTINHO, C. N.enq
escolhidos (1916-1935). Rio de 2011.
p. 19). Para Gramsci, a Janeiro: Civilização Brasileirad,
ås
construção da do grupo dominante não se
terreno
relações de dominaçãoe exploração nohegemonia da economia. Remete, de fato, a reo áo
de uma cultura
como dominante, é também dirigente no interior da própria diante
que torna hegemônica e universal classeloe de uma das
1ouayque,
classe.
a visão de mundo
rações
majoritárias das demais classes.
9 COUTINHO, C. N. O
estruturalismo e a miséria presså
Popular, 2010. da razão. São Paulo:
EAP
140
SOBRE GOVERNO
ONEOFASCISMO NO PODER (ANO 1): ANALISES CRITICAS SOBRE O
OGOVEDM
BOLSONAR
ralismo que, no caso brasileiro e latino-americano, pode ser
ser cone:a
considerado
uma resposta politica com tônus imperialista e neocolonialista a d
ocial
-liberalismo eà onda neodesenvolvimentista que vigeram no subconti.
nente na primeira década deste
século.
Ao que tudo indica, algumas ideias-força presentes nesta coni
dentre outras que os limites deste ensaio não permitem explorara,
apre-
sentam-se como respostas às radicais exigências do capitalismo co
ntem-
porâneo e, sob meu ponto de vista, dizem respeito aos novos meine
exploração do trabalho; à expropriação de direitos e à apropriação fnos
de
finan-
ceirizada do fundo público e das rendas do trabalho, todas elasestrah.
straté-
gica e ideologicamente conduzidas como necessidades indiferenciadas e
toda a sociedade, obliterando interesses antagónicos e contraditórios das
classes fundamentais, de modo a promover:
1.O apagamento da referência ao direito do cidadão como
mediador
da relação entre o indivíduo e o Estado, com impactos diretos na
seguran
ca social e legal do trabalhador e na proteçáo social pública, em prol do
consumo mercantil de serviços, das políticas
compensatórias residuais e
do fim da regulação coletiva do trabalho. Os novos
sujeitos dessa cultura
são o consumidor, o assistido socialmente, o
empreendedor individual e
o trabalhador autônomo.
2. A reiteração, renovada, do tratamento da crise capitalista pelas suas
manifestações imediatas, ressignificadas sob argumentos que devem fa-
vorecer a passivizaço da sociedade em torno de
ajustes fiscais, tributá-
rios das contrarreformas do Estado. Tais
e
argumentos se tornaram ver-
dadeiros mantras da mídia global sobre as causas do baixo crescimento
econômico: insuficiente liberdade do mercado e amarras regulatórias do
Estado. No quesito finanças e contas públicas, atribuem à corrupço o
ponto de fuga dos recursos públicos, especialmente no universo dos go
vernos do Partido dos Trabalhadores (PT), criminalizando seus quadros
Sobre o
desemprego e baixa
sobre a rigidez e o custo da
a
produtividade do trabalho, fazem ilaçoes
legislação trabalhista. A esses tópicos, as0
ciam o déficit da Previdência
tido Social, como o vilão das finanças
Estado, omitindo, evidentemente, a a
avidez dos bancos pela previde
privada complementar.
3. A
desqualificação social e moral das conguistas libertárias e Civl
zatórias da sociedade
partir da crítica moralista e apequenada as lutas
a
das mulheres, dos negros e negras, do movimento da
LGBTTT em torn
ACultura da crise e as ideologlas do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro
141

liberdade de orientação0 sexual, dos cientistas e dos professores das huma-


nidades, tratando-os pejorativamente como ideólogos do marxismo cul
kral. Tratam nessa mesma linha as questões territoriais e ambientais que
tem relação com os imperativ0s da acunmulação por espoliação" e com a
economia das catastrofes (barragens, mineração etc.).
Observa-se, assim, a construção de uma verdadeira antipolítica civi-
lizatória, da qual emanam diretrizes que neutralizam o patrimônio tec-
nológico, cientifico e cultural da sociedade em favor do pragmatismo e
obscurantismo mais bárbaros. Nesse ponto também situo os elos entre a
questão da segurança pública, a capacidade de defesa pessoal dos indiví-
duos e a posse/porte de armas.
Resumidamente, podemos dizer que o impulso dessa onda conser-
vadora e ultraneoliberal pode ser identificado a partir de 2013, com as
manifestações espontâneas de massas, cujas pautas são reveladoras da in-
satisfação popular em relação aos serviços públicos, à democratização do
Estado e aos paradoxos da gestão petista, então ocupante da Presidência
da República. Culmina com o transbordamento das contradiçóes da de-
mocracia blindadal" e/ou democracia de cooptação," abrindo espaço para
a ofensividade da direita tradicional, da nova direita e dos seus asseclas.
Seu ápice foi o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, quando
depuseram uma presidenta da República legitimamente eleita. Esse pro-
cesso se alarga e se espraia a partir de então com o surgimento de jovens
lideranças, apoiadas por velhos e novos "caciques" da direita, a quem se
aliaram organizações empresariais, com destaque para a Federação das
Indústrias do Estado de Säo Paulo (Fiesp), um dos principais apoiadores
e financiadores das manifestações populares verde-amarelas de direita e

extrema-direita.
Na proporção em que o conservadorismo moderno ressignifica os
meios e os conteúdos da direção programática das classes dominantes,

10 HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.


de dominação política. In:
DEMIER, E. A democracia blindada: uma nova forma
Depois do Golpe, op. cit., p. 35-52.
(notas de estudo guiadas
LASI, M. Cinco teses sobre a formação social brasileira otimismo da prática). In:
Pelo pessimismo da razão e uma conclusäo animada pelo
RANEMANN, S. (Org.). Teoria social, formação social e Serviço Social: pesquisas
em Serviço Social,
narxistas emdebate. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação
135-157. Coleção Carlos Nelson Coutinho, v. 4.
2018.p.
O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANALISES CRITICAS
SOBRE O GOVERNO BOIS
LSONARO
142

onda conservadora evidencia sua


dimen.
mundial e nacionalmente, essa men-
cultural e política cotidianas das clac
são e complexidade na formação sses
trabalhadoras.3 É nesse sentido que muitas das manifestações ao lon
de 2015 e 2016 no Brasil foram apoiadas pelos mais improváveis ceg-
mentos da sociedade brasileira: precariado, operårios, segmentos médios
assalariados, funcionários públicos, trabalhadores dos bancos públicoc
professores, profissionais liberais e expressivos setores da centenária oli.

garquia brasileira.
Não restariam dúvidas sobre as inflexões do Golpe de 2016 na socie
dade brasileira, ela própria dividida entre a direita, a centro-esquerda e
a esquerda, ao favorecer descaradamente a concentração da riqueza e a
concomitante ampliação da pauperização e do desemprego. Os golpistas
hastearam, sem as culpas da esquerda do capital, as bandeiras da contrar-
reforma trabalhista e da Previdência Social, ao tempo que exercitaram
mecanismos de coerção através da criminalização da pobreza e dos
movi
mentos e manifestações dos trabalhadores, impactando no embate entre
a ofensividade da burguesia e a resistência do trabalho.
Por suposto que a crise do neodesenvolvimentismo petista com a de-
saceleração do crescimento, a realização de ajustes macroeconômicose
a ascensão do
desemprego, temperados pela ampla catequese da mídia
sobre acorrupção, fornecerama base material para o consenso conserva-
dor, mediado pela partidarização do
judiciário e dos militares, cuja pro
paganda combate à corrupção tornou-se a principal mediação moral
do

13 Sobre o tema do conservadorismo moderno, sugerimos consultar


deJamerson Murillo Anunciaço de Souza, orientada te de doutorado
SOUZA, J. M. A. Tendéncias pela professora Angela Amaral.
ideológicas do conservadorismo. Tese
(Doutorado enm
Social)-Programa de
Serviço Social, UFPE, Recife, 2016.Serviço
Pós-Graduação em
brilhantismo erudição, autor trata o conservadorismo
e o Com
da crise do moderno
capital e, dentre outras assertivas, afirma como a
ideolog
contemporånea, tal como se que: "A ideologia
conservaa
e
políticas, é portadora |..] doapresenta no Brasil em suas tendências ideais, teo
direitos civis, crescimento da
políticos e sociais." Acrescenta intolerância e da agenda de ataques a aos

apresentar como posição política que "[..] o


conservadorismo proc omo se

meros traços de desprovida de consequências


personalidade,
politico empenhado como tendências para a sociabilidaut
grifo do autor).
na
preservação dos diferentessubjetivas, ou, então, com0 mov10.
'estilos de vida' 210,
14 Sobre a
ideologia da
individuaisP
anticorrupção e as anticorrupção,
armadilhas da
ver:
HOEVELER, R; MELO,, D. D. A agenda
(Org.). A onda pequena política. A R.
conservadora: ensaios sobre os In: DEMIER, E; HOEV ER
atuais tempos de
de
sombrios no Bras
ACultura da crise e as ideologlas do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro
143

do desmonte da resistência e da captura ideopolítica de amplas frações


das classes trabalhadoras. A ideologia da anticorrupção foi o maior acha-
do da direita para desqualificar a esquerda reformista no Brasil, e que só
os devotos do Padim Ciço, calejados de tanta miséia, não levaram tão
a sério e permaneceram fiéis eleitores do PT nas últimas eleições pre
sidenciais. Os paraibas, no léxico do presidente, foram os seus maiores
antagonistas eleitorais.
O desenvolvimento dessa processualidade, contudo, demonstrou a
inexistência de alquimias no processo de formação da consciência de
classe, dado que não há relação de causalidade entre a ofensividade bur-
guesa e a reação popular. Tampouco entre o crescimento da pobrezae
do desemprego e o impulso político-organizativo das classes subalternas.
Note-se que significativos setores das classes subalternas (lembremos dos
caminhoneiros e daqueles e daquelas que um dia foram alçados à condi-

ção de nova classe média na gestão lulista), ao serem objeto do


consenso

das classes dominantes (organizada, sistemática e midiática), à moda da


intelectual e moral gramsciana, sob o influxo do pensamento ul-
direção
traconservador e reacionário da nova e velha direita, aderiram à onda

conservadora.
Dentre as pedagogia da he-
dimensões desse movimento, destaco a

de
gemonia3 da classe dominante que se quer dirigente junto frações
às

de outras classes, traduzida em argumentos com aderência


ao senso
sua e

comum, contando com a expertise dos seus economistas, dos marquetei-


ros internacionais e da mídia, como a ideia de que a contrarreforma da
economia crescer, atrairia investidores internacionais
previdência faria a
desteitos no imediato alvorecer
e alavancaria os empregos; argumentos
das novas regras da pre-
após a aprovação, pela Câmara dos Deputados,
vidência brasileira.
cultura que nega
agora alimentam
uma
Fato é que produziram e
arduamente arrancados
despudoradamente os ganhos civilizatórios
das classes dominantes pelostrabalhadores e trabalhadoras nas déca-
militar-empresarial. Diga-se de
das que se seguiram ao fim da ditadura

Janeiro: Mauad X, 2016. p. 57-66; DEMIER,


F. O jacobinismo às avessas: anticorrupçãobe
atual. In: Crônicas do caminho do caos, op.
neoliberalismo na política brasileira
.

cit., p. 61-73.
pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para
15 NEVES, Lucia M. W. A nova

São Paulo: Xam, 2005.


educar o consenso.
ANALISES CRITICAS SOBRE Q GOuEr
NO PODER (ANO I): NERNO BOLSONARO
ONEOFASCISMO
144

ficientes, porém política e


porém política. .

passagem,
ganhos
materiais

uma
insufhcientes,

s o c i e d a d e herdeira
do colonialisma
ismo,
socialmente
mente
do latifún
significativos para
ditaduras e da condição de país perif
dio hereditário, de duas
dependente.
grau de ampliação do E..
determinado
Embora tenha havido ado
relativa democratização da noa.
na década de 1980,
protagonizando poder,
o mesmo não se
deu em relação ao acess0 a propriedade da terra aos
meios de produção e à riqueza sOcialmente produzida. Assim, acredit
mos que a democracia de cooptaçãoe a democracia blindada criaram as
condições para que o atendimento das necessidades imediatas das classes
trabalhadoras se fizesse contemplando sempre conjunturalmente -as
necessidades dos de cima, de modo que, à execução de contrarreformas,
se combinassem políticas de combate à pobreza e de favorecimento ao
acesso de bens e
serviços necessários à sobrevivência de parte das famí-
lias de trabalhadores. Com essa
tàncias
metodologia,
sob determinadas circuns-
(e o período lulista é exemplar), foi possível enfrentar a
e os baixos salários desde
pobreza
que também fossem impulsionados o mercado
consumidor e o consumo doméstico, como
fazem os programas de trans-
ferência de rendas, em
específico, o Bolsa Família.
Observe-se, por exemplo, que a
vés da compra ampliação do acesso à moradia, atra*
subsidiada de habitações caso do
Minha Vida fez-se revigorandoo mercado programa Minha Casás
-

vil; que foi factível lucrativo da construçao c


ampliar acesso à educação
o
uita
sem torná-la exatamente superior
universal, porque era preciso pública e
grau
cimento cres
rentável do ensino superior assegura renda
do traballhador
ou através de privado-lucrativo, com pago
mento das
famílias. empréstimos
Também sob a égide doque promovem demandas o
por saúde da
populaço, foi atendimento ås
ae
privada mercantil como possível empresariar
e
déficit dos mecanismo comercializa
e

de que cobra serviços do SUS, supostamente comp da saú"


dos utentes os estimulando o atual
aplementar ao

saú-
mercado
somente para citar mesmos valores porhela
-

vimentista, alguns casos estabelecidos na SU


bela SUS

correntes. Se, no
presenciou-se o espetacular
ea
ea
descentralização dos crescimento
perioao de sate
de
assalariados das coberturas chamados dos
dos planos
p
polos médicos, oo desemprego tirou 0
se
rou os
consumo dos desemp spara
das grandes popular e
cidades. mercantil de planos privados, conduzindo-os
serviços privadosconduzin
sauac na erifer
de saúde
eriferia
ACultura da crise e as ideologias do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro
145

Ao que tudo indica, a hegemonia às avessas, de


que falava o memorá-
wel Chico de Oliveira reterindo-se à estratégia política dos governos do
PT. apresentou resultados que favoreceram a cultura
política requerida
nela ordem, decorrente da estratégia de conciliação de classe
que mediou
atendimento das demandas das classes trabalhadoras e que prevaleceu
nas gestões petistas. Essa modalidade de
articulação parece ter despo-
itizado as demandas das classes trabalhadoras, porque - como
anteriormente - elas foram amparadas numa aliança invisível entre expus
os

interesses imediatos da acumulação capitalista e os mecanismos de aten-


dimento às necessidades de amplos setores das classes trabalhadoras.
Em poucas palavras: houve inegável ampliação do consumo de bens e
serviços por setores das classes populares, atendendo às demandas dessa
população, mas a estratégia no foi a de oferta pública como resultado
da conquista e exercício de direitos. Ao contrário, pavimentou-se uma
concepção da assistência social através dos benefícios monetários (trans-
ferêencia de renda) para os mais pobres e de baixa renda, e uma concepção
individual e mercantil de acesso a bens e serviços, como educação, saúde,
habitação etc., dependente, diretamente, da renda das famílias.
Todavia, esse movimento tem história... Vejamos: a dinâmica política
dos anos 1980 culminou com a Constituição de 1988, que incorporou
demandas por direitos civis, políticos e sociais, acalentando a expectativa
das classes subalternas sobre o exercício dos direitos sociais, em especial
os relativos à seguridade social. Na década de 1990, a ofensiva (neolibe
ral) do Consenso de Washington investiu no desmonte daquela expecta-
tiva por direitos sociais e pôs em movimento a ofensiva contrarreformista
do Estado que se robusteceu no governo Collor, com o discurso contra os
marajás da Previdência Social e do serviço público. Ao lado da interna-
cionalização da produção industrial e da reestruturação produtiva, essa
contrarreforma do Estado adquiriu centralidade nos governos Fernando
Henrique Cardoso (FHC), com as privatizações das empresas estatais, a
Emenda Constitucional (EC) 20, relativa à reforma da Previdência So-
cial, e a dubiedade em relação à politica de Assistència Social - quando,

160 professor Chico de Oliveira utilizou a expressão hegemonia às avessas para designar
um paradoxo dos governos do PT, ou seja, quando parte dos "te baixo" dirigem o Estado
através do programa dos de cima'". OLIVEIRA, E Hegemonia às avessas. In: OLIVEIRA
E; BRAGA, R.; RIZEK, C. (Org.). Hegemonia ds avessas. Såo Paulo: Boitempo, 2010. p.
26-27.
146 ONEOFASCISMO NO PODER (ANO D: ANALISES CRITICAS
SOBRE OGOVERNO
BOLSous
SONARO
concomitante à regulamentação da Lei
Orgânica
Assistência So. da
(Loas), governo criava, por tora dessa politica, o
o Social
de Solidária e programa Comunida.
algumas
medidas de transferência de rendas.
No período petista, como
já identificamos em outros trabalhos, houve
crescimento das políticas de combate à pobreza que, em certa
promoveram a medida.
assistencialização'" da
tralidade da assistência social e dos Seguridade
Social em face da cen-
das que se realizaram vis-à-vis à programas de transferência de ren-
mercantilização de outras políticas, bens
e
serviços. Paulatinamente, os acessos garantidos
transformados em direitos ao consumo mercantil pelos direitos foram
1995, denominei da forjandoo que, em
-

constituição do cidadão
Não se trata de avaliar as consumidor.
blicos como conquistas de políticas, bens e serviços pú-
jogo de soma zero. O que quero destacar éa unidade
ditória entre as radicais contra-
necessidades do capital e os meios de
to às demandas das
classes trabalhadoras. atendimen-
Uma das
mediações políticas dessa trajetóória diz
da desigualdade social por parte das classes respeito à vivência
mento das suas necessidades mais subalternas, cujo não atendi-
tos, das classes trabalhadoras e do
elementares empurram esses
segmen-
lumpesinato,
co-corporativo, da sua reprodução simples, no para o
campo econômi-
da formação da consciência qual é restrito o espaço
crítica, apontando a
dução da racionalidade das classes
dominantes.°
possibilidade
de repro-
formação do consenso ativo das classes dominadas.Estaríamos diante da
Nesse espectro, embora o lastro
dada e de cooptação referencie a político e cultural da democracia blin-
existência formal dos
nia, do acesso à direitos de cidada-
Seguridade Social e de que os
sociais concretizam relações entre o direitos civis, políticos e
Estado e o
exercício dos direitos se subsume ao cidadão, cada vez mais ob
consumo de bens e
zam da oferta
pública para a dos serviços privados e serviços e desli-
rados complementares. mercantis, conside-
Assim sendo, é notório o peso que tem Os
eventuais de assistência social; não exatamente os programas conjunturais e
da política de Assistên-
17MOTA, A. E. A centralidade da assistência social na Seguridade Social
anos2000. In:. (Org.). O mito da Assistência Social. São Paulo: brasileira nos
.

133-146. Cortez, 2008. p.


18 MOTA, A. E. Cultura da crise e seguridade social, op. cit, p. 159-183.
19 LASI, M., op. cit., p. 147-151.
ACultura da crise e as ideologias do consenso no ultraneoliberalismo brasileiro
147

cia Social, e sim os que ficam à mercê dos programas sociais eventuais,
focalistas, meritocráticos e no universais. E nesse sentido que o imedia-
tismo da reprodução material e social das classes subalternas torna-se
permeável ao oportunismo político das ideias das classes dominantes,
que hipotecam às representações, e não ao real e concreto, a verdade das
suas narrativas para tornar subjetiva a objetividade requerida pela socie-
dade do capital.
Os intelectuais orgânicos do capital e seus aparelhos privados de he-
gemonia apostam na aderência das classes ao conservadorismo, marcado
que é por uma concepção reacionária do mundo que se revela intole-
rante, preconceituosa, sectária, irracional, anticomunista, e propensa a
apoiar alternativas autoritárias.
A ideologia burguesa interpela essa consciência imediata que a reco-
nhece... faz com que uma política claramente contrária aos interesses dos
trabalhadores encontre entre as massas as bases de sustentação passiva,
mas por vezes ativa, que desequilibra a correlação de forças e sustenta a
reação política.20
Seus protagonistas, sujeitos da decodificação e tradução das ideias-
-força que nascem no terreno das necessidades da acumulação e finan-
ceirização do capital e se subjetivam no plano das ideologias, utilizam os
mais diversos meios e artifícios de interpelação da consciência imediata,
cotidiana, reprodutiva.
Finalizo minha reflexão, ciente de que neste ensaio borbulham - fei-

to água de nascente - hipóteses e observações que requerem aprofunda-


mento e análise concreta de situações concretas. Todavia, o que concluo
no momento é que todas as dimensões das contrarreformas do Estado e
da passivização das classes, para consentir com o projeto em curso, são
expressões da radicccalização das exigências do capital nesta quadra

histórica:
dos traba-
Destruição do trabalho protegido e da organização política
lhadores através de formas mais acirradas de exploração do trabalho
e de renovadas estratégias de subordinação
dos que vivem da venda
limites
da sua força de trabalho por meio da disponibilização sem
-

cenário em que precariza-


legais da oferta de força de trabalho num

20 IASI, M., op. cit, p. 147.


148 O NEOFASCISMO NO PODER (ANO I): ANÁLISES CRITICAS SOBRE O GOVERNO BOLSONARO

ção, desemprego e desalento não favorecem a organização e a resistèn


cia dos trabalhadores.
Usurpação direta dos salários e do fundo público para transtormar
dinheiro em capital, mediados pelo capital fictício, pela banca inter
nacionale pelo imperialismo espoliativo e explorador.
Expansão da superpopulação relativa, transformando desempregados
em empreendedores individuais; e famílias em
situação de pobreza
absoluta em objeto da assistência social pública ou da caridade priva-
da e empresarial.
Transformação dos trabalhadores e suas famílias em sujeitos endivi-
dados e consumidores de pobres serviços rentáveis ao capital como
resultado da supressão dos seus direitos e das tendências privatistas e
mercantis presentes nas contrarreformas que os retiram.
Assiste-se, assim, a um movimento de passivização das classes subal-
ternas através da ofensiva das classes dominantes
que atualizam as bases
do seu domínio, erigindo novas formas de
Obtenção do consenso neces-
sário à reestruturação da sua hegemonla, a0 tempo que colocam em mo-
vimento práticas coercitivas rebuscadas, Com sabor de revanche. de um
embrutecido ódio de classe, para neutranzar as iniciativas dos segmentos
de classe que resistem à onda ultraneoliberal e conservadora

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