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Raúl Zaffa Nilo Batista 1

Alejandro Alagia / Alejandro Slokar


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DEDALUS • Acervo • FD • Fac. de Direito

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3065428-10
Direito penal brasileiro
M80119/22 343.2(81) D635 2.ed. 3. reimpr. v.2 t.1 DPC O:->M
,
E. RAUL ZAFFARONI NILO BATISTA
ALEJANDRO ALAGIA ALEJANDRO SLOKAR

Direito Penal Brasileiro - II, I


E. RAÚL ZAFFARONI NILO BATISTA
Professor titular de Dir. Penal e Criminologia Professor titular de Direito Penal da Uni-
da Universidade de Buenos Aires. Dr. HC pela versidade Federal do Rio de Janeiro, da Uni-
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Vice- versidade do Estado do Rio de Janeiro e da
presidente da Associação Internacional de Di- Universidade Candido Mendes. Presidente
reito Penal. Ministro da Corte Suprema da do Instituto Carioca de Criminologia. Ad- •
Nação Argentina. vogado.

ALEJANDRO ALAGIA ALEJANDRO SLOKAR


Professores Adjuntos de Direito Penal da Universidade de Buenos Aires

Direito Penal Brasileiro


Segundo volume
Tomo I
Teoria do Delito: introdução histórica
~ m~tQtlQlógiç~, ~çãp ~ tipicidade
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E,e
Editora Revan
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- Copyright © 201 Oby E. Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar.
V: 2 +..L
.<, ,j I Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhllllla parte desta publica-
\ .• .'.' ~' ;': '_ . ção poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica,
:• / ) - , sem a autorização prévia da Editora.

Revisão
Roberto Teixeira

Capa
João Paulo Batista
Sobre layout de Cristina Rebello (capa do vol. 1), com bico de pena de J> rt· ari reproduzido
por especial obséquio de João Candido Portinatj O m ' .

Impressão e acabamento
(Em papel off-set 7Sg. após paginação eletrônica, cm tipo Times Ncw R°lll:tii
Divisão Gráfica da Editora Revan. •e. 11113)

D635
v.2
Direito penal brasileiro, segundo volume : teoria do delil().. trod ~o tustórica
e metodológica, ação e tipicidade/ E. Raúl Z,t~ tn . u t ~.]. .·
Rio de Janeiro : Revan, 201 O. 2ª edição, outubro de ~()aron\ [eít11pressão,
julhode2018. 10,3 re

376p.
piclui bibliografi~

ISBN 978-85-7106-401-0

1. Direito penal - Brasil. 2. Delito. I. Zaffaroni, E. ¾ JO·


li!. II. TíP'
I0-0749.
CDU: 343(81)

22.02.10 26.02.10
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Em sua notável carreira política,
Leonel Brizola
percebeu a natureza política das opressões penais
e tentou sofrear o poder punitivo ilegal.
Por isso, este livro é dedicado a sua memória.
NOTA EXPLICATIVA

Quando da publicação do primeiro volume, em 2003, contendo a Teoria


Geral do Direito Penal (integrada por materiais teóricos que, em outra e muito
utilizada organização metodológica, pertencem à chamada Teoria da Lei Pe-
nal), estimei que o prazo de um ano não seria demasiadamente ultrapassado até
a publicação do segundo. Pobres previsões humanas. Em 2004, com o faleci-
mento de Leonel Brizola, tive a honra de prestar-lhe a devida e justa homena-
gem, e lá se foi o ano. Lancei-me em 2005 ao trabalho (saboroso) de tradução
e (árduo) de abrasileiração do texto e das soluções dogmáticas de Raúl Zaffaronj,
com as contribuições de Alejandro Alagia e Alejandro Slokar. Em 2006, contu-
do, prestei concurso público para a titularidade de direito penal da Faculdade
Nacional de Direito, da qual Heleno Fragoso fora discretamente expurgado
durante a ditadura. Vencido o concurso, atirei-me a umas Lições de Direito
Penal Falimentar nas quais pude dialogar muito com este outro querido morto.
Pensava que em três ou quatro meses completaria o estudo, que na verdade
consumiu mais do que o dobro desse tempo. Acresça-se a tudo isso o exercício
da advocacia criminal, em tempos de ascensão do Estado policial, e as aulas
matinais diárias para trezentos jovens generosamente sequiosos de um direito
penal emancipador, na UFRJ e na UERJ, e estará explicado como agora, no
final de 2009, não disponho mais do que da metade do trabalho concluído.
Numa conversa com Raúl, pensamos que talvez fosse útil fracionar a
publicação do segundo volume, obtendo assim que suas propostas teóricas des-
de logo circulem e submetam-se ao debate. A divisão do segundo volume em
dois tomos foi a fórmula encontrada para não deixar na gaveta, por mais tempo,
formulações que- espero- podem contribuir para os impasses do direito penal
brasileiro, neste momento sob certa artilharia funcionalista que sinaliza um ho-
rizonte político-criminal muito preocupante.
Por isso, aí está o primeiro tomo do segundo volume do Direito Penal
Brasileiro. Nele se reúnem uma introdução histórica e metodológica, a teoria
da ação e a teoria do tipo.
Ao contrário do primeiro volume, no qual pude contar com uma prévia
tradução "bruta", as sutilezas técnico-jurídicas da teoria do delito e sua
compatibilização com a legislação brasileira impõem um método trabalhoso e
indelegável, palavra por palavra. Além disso, uma elaboração dogmática tão
fundamentada e harmoniosa como a teoria do delito zaffaroniana impõe ao
tradutor, por vezes, a obrigação de renunciar à própria opinião para não afetar
a coerência teórica da obra alheia que lhe foi confiada. Assim, álgumas vezes
(por exemplo, na opção pela capacidade individual como padrão referencial

7
para a tipicidade culposa, que sempre suspeitei desafiar o próprio conceito de
tipo) engoli minhas caturrices, em favor de fielmente apresentar ao público
brasileiro, em sua integridade, a monumental construção de Raúl. Prometo que
a exposição sobre antijwidicidade, culpabilidade e os demais campos que inte-
gram a teoria do delito não virão a lume tão distantes deste tomo I quanto veio
ele do primeiro volume, e espero sinceramente, desta feita, poder cumprir a
promessa. De resto, todo o merecimento das páginas que se seguem são de
Raúl, e todos os equívocos e deslizes são meus.

Nilo Batista
Santa Tereza, novembro de 2009

8
Índice

SEGUNDO VOLUME

TOMOI

TEORIA DO DELITO: INI'RODUÇÃO IHSTÓRICA E METODOLÓGICA,


AÇÃO ETIPICIDADE
CAPÍTULO X: ESTRUTURADA TEORIA DO DELITO 13

§ 25. Função e estrutura da teoria do delito 20


1. As funções dos sistemas teóricos do delito 20
II. A necessidade de um sistema 22
Ili. Estruturação básica do conceito: lineamentos 26
IV. A elaboração sistemática segundo outros critérios 29
V. Desenvolvimento histórico da sistemática do delito 31
VI. Notas históricas sobre a teoria do delito no Brasil 39

§ 26. Esquema de sistemática funcional redutora (ou funcional conflitiva) 58


1. Os dados ônticos 58
II. Teleologia redutora 60
III. Particularidades construtivas 61
IV. Limites da teoria do delito e sua distinção da teoria da responsabilidade 63
V. Penas sem delito? 66

CAPÍTULO XI: A AÇÃO 69

§ 27. O conceito jurídico-penal de ação 79


1. Função política do conceito jurídico-penal de ação 79
II. O conceito de ação em suas origens • 82
III. O apogeu do conceito causal de ação e o debate com o finalismo 84
IV. Os conceitos sociais de ação 91
V. A identificação com a ação típica 93
VI. O conceito negativo de ação e sua variante funcionalista 95
VII. O conceito pessoal de ação 98

§ 28. Aação e sua ausência em função redutora 100


1. A ação é um conceito jurídico 100
. II. Afinalidade como elemento redutor 103
III. Aação e o mundo 104
IV. A idoneidade da ação redutora 107

9
V. A função política de redução seletiva 11 O
VI. A capacidade psíquica da ação 112
VII. Ausência de ação 113
VIII. A incapacidade de ação das pessoas jurídicas 117
IX. Conseqüências sistemáticas da ausência de ação 120

CAPITULOXIl:OTIPOEATIPICIDADE 121

§ 29. Conceito de tipo e de tipicidade 125


1. Aproximação do conceito 125
li. Tipo, tipicidade e juízo de tipicidade 128
III. Outros usos da palavra tipo 134
IV. Modalidades legislativas dos tipos penais 136
V. Tipo de ato e tipo de autor 139
VI. Tipos dolosos e culposos, ativos (ou comissivos) e omissivos 14 l
VII. Momentos construtivos da teoria do tipo 142

CAPÍTULO XIIl: TIPO DOLOSO ATIVO (OU COMISSIVO DOLOSO): FUNÇÃO


SISTEMÁTICA DE SEU ASPECTO OBJETIVO 149

§ 30. Tipo doloso: estrutura de seu aspecto objetivo 159


l Funções sistemática e conglobante do tipo objetivo doloso 159
II. Exteriorização da vontade: mutação física 163
m. Nexo de causalidade 164
IY. Elementos especiais de alguns tipos objetivos 170

EXCURSUS: Da causalidade às teorias da imputação objeti_va 174

§ 31. O percurso das teorias 174


I. O problema em tempos de causalismo 174
II. O problema no finalismo 177
m. O pós-finalismo 178
IY. As teorias da imputação objetiva 180
V. A teoria do risco de Roxin 184
VI. A teoria dos papéis de Jakobs 190
Vil À guisa de síntese 199

CAPÍTULO XIV: TIPO DOLOSO ATIVO (OU COMISSIVO DOLOSO): FUNÇÃO


CONGWBANTE DE SEU ASPECTO OBJETIVO 201

§ 32. Tipicidade conglobante como lesividade ou afetação do bem jurídico 212


I. Lesividade ou afetação do bem jurídico 212
II. O conceito de bem jurídico 215

10
III. A afetação insignificante do bem jurídico 228
IV Cumprimento de um dever jurídico 231
V. Aquiescência: acordo e consentimento do titular do bem jurídico 236
Vl Realização de ações fomentadas pelo direito 244

§ 33. Imputação como pertencimento ao agente 251


I. Dominabilidade do fato pelo autor 251
II. Exigência de colaboração não banal do partícipe 257

CAPÍTULO XV: TIPO DOLOSOATIVO(OU COMISSIVO DOLOSO): ASPECTO


SUBJETIVO 261

§ 34. Dolo: o núcleo redutor subjetivo da tipicidade 270


1. Conceito e fundamentos 270
II. Aspectos cognitivo e volitivo do dolo 273
Ili. O conhecimento no dolo e sua diferença da consciência (compreensão)
da ilicitude 282
IV. Outras classes e momentos do dolo 283

§ 35. Ausência de dolo: erro de tipo 286


I. A classificação do erro e o en-or iuris nocet 286
II. O erro de tipo como face negativa do dolo 288
III. O erro de tipo por incapacide de psíquica 292
IV. Erro sobre elementos nonnativos 293
V Problemas de disparidade entre o plano e o resultado ("erros acidentais'') 295
VI. Erros sobre circunstâncias qualificadoras e privilegiantes (majorantes e
minorantes) 302
VII.Elementos especiais do tipo subjetivo (distintos do dolo) 304

CAPÍTULO XVI: TIPO ATIVO CULPOSO(OU COMISSIVOCULPOSO) 309

§ 36. Tipicidade por culpa 314


1. A estrutura do tipo culposo 314
II. Tipo objetivo sistemático 323
III. Tipicidade conglobante: culpa simples (não-temerária) e previsibilidade 325
IV. Tipicidade conglobante: princípio da confiança e nexo de determinação 330
V. Tipicidade conglobante: insignificância, fomento, cumprimento de um
dever jurídico e consentimento 334
VI. Tipo subjetivo na culpa consciente e temerária 337

§ 37. Figuras complexas e versari in re illicita 339

11
CAPÍTULO XVU: TIPOS OMISSIVOS 343

§ 38. Fundamentos da omissão penal 347


l A omissão típica 347
II. Inexistência da omissão pré-típica 349

§ 39. Estrutura do tipo omissivo 3S2


I. O tipo objetivo sistemático 352
II. Classificação dos tipos omissivos 3S4 .
III. Problemática dos tipos omissivos impróprios não escritos; ·dever de
agir e garantidor 357
IV. O tipo objetivo conglobante 370
V. O tipo subjetivo 371
VI. As omissões culposas 37S

12
CAPÍTULO X

ESTRUTURA DA TEORIA DO DELITO

As obras a seguir arroladas integram a bibliografia geral do tratado, acres-


cendo-se às já discriminadas anteriormente (v. I, pp. 17 ss).

AA.VV., Actas de las Jornadas Internacionales de Derecho Penal,


Universidade de Belgrano ( 1971 ), Buenos Aires, 1973; AA. W., O Direito Pe-
nal e o Novo Código Penal Brasileiro, P. Alegre, 1985, ed. Fabris -AMPRS;
AA.W., Refonna Penal, S. Paulo, 1985, ed. Saraiva; Aftalión, Enrique R., La
escuela penal técnico-jurídica y oiros estudios penales, Buenos Aires, 1952;
Andrade, Vera Regina Pereira de, Dogmática Jurídica, P. Alegre, 2003, ed. Liv.
Adv.; da mesma, A Ilusão da Segurança Jurídica, P. Alegre, 1997, ed. Liv. Adv.;
A. P. Freitas, Ricardo de Brito, As Razões do Positivismo Penal no Brasil, Rio,
2002, ed. L. Juris; Atienza, Manuel, La filosofia dei derecho argentina actual,
Buenos Aires, 1984; Bacchieri dos Santos, Aglaia Cynthia, Perspectiva Jurídi-
co-analítica do Crime, P. Alegre, 1997, ed. Fabris; Bacigalupo, Enrique,
Lineamientos de la teoria dei delito, B. Aires, 1974, ed. Astrea; do mesmo,
Sui dogmi de/la dogmatica pena/e, em DDDP, nº 2, 1983, p. 245 ss.; Batista,
Nilo, o Elemento Subjetivo do Crime de Denunciação Caluniosa, Rio, 1975, ed.
L. Juris; do mesmo, Novas tendências do direito penal, Rio, 2004, ed. Revan;
Beling, •Ernst von, Esquema de Derecho Penal - La Doctrina dei Delito -
tipo, trad. S. Soler, B. Aires, 1944, ed. Depalma; do mesmo, Die Lehre vom
Verbrechen, Tübingen, 1906 (reed. Aalen, 1964); Bessa, Paulo D., Uma Nova
Introdução ao Direito, Rio, 1986, ed. Renovar; Bettiol, Giuseppe, Scritti
Giuridici, Le tre ultime lezioni brasiliane, Pádua, 1987; Bevilaqua, Clovis,
. . . . ' • . 1

Teoria Geral do Direito Civil, Rio, 1975, ed. Rio ( 1ª ed., 1908); Birch, Anthony,
British system ofgovernment, Londres, 1990; Bitencourt, Cezar Roberto, Te-
oria Geral do Delito, S. Paulo, 1997, ed. RT; Brandão, Cláudio, Teoria Jurídica
do Crime, Rio, 2001, ed. Forense; Braz Florentino Henriques de Souza, Lições
de Direito Criminal, Recife, 1872, ed. J.N. Souza; Busato, Paulo César, Direito
Penal e Ação Significativa, Rio, 2005, ed. L. Iuris; Busch, Richard, Moderne
Wandlungen der Verbrechenslehre, Tübingen, 1949; Bustos Ramírez, Juan,
Política criminal y dogmática, em El poder penal dei estado - Horn. a
Hilde Kaufmann, Buenos Aires, 1985, p. 133 ss.; do mesmo, Culpa y finalidad,
Santiago de Chile, 1967; Camargo, Joaquim Augusto de, Direito Penal Brazileiro,
S. Paulo, 1882, ed. Gazeta, 2 vols.; Camargo, Margarida Maria Lacombe,

13
Hermenêutica e Argumentação, Rio, 2003, ed. Renovar; Campos, Alberto A.,
lntroducción a la teoria dei delito, B. Aires, 1971, ed. A.-Perrot; Cappelletti,
Mauro, O controle judicial da constitucionalidade das leis no direito comparado,
Porto Alegre, 1984; Cardenal Motraveta, Sergi, E/ Tipo Penal en Beling y los
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la acción finalista como fundamento dei sistema dei derecho penal, em
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Direito, P. Alegre, 1991, ed. Fabris; Coelho, Walter, Teoria Geral do Crime, P.
Alegre, 1991, ed. Fabris; Costa e Silva, Antônio José da, Código Penal dos
Estados Unidos do Brasil, S. Paulo, 1930, ed. Cia. Ed. Nacional; Costa Jr.,
Heitor, Crítica à legitimidade do direito penal funcionalista, em OS-CDS, nº 9-
1O, pp. 95 ss; Condeixa da Costa, Carlos Adalmir, Pressupostos Existenciais do
Crime, Rio, 1970; Costa Júnior, Heitor, A Teoria da Omissão no Pensamento
Jurídico-penal de Tobias Barreto, Rio, 1979, diss. Mestrado UFRJ, Fac.Dir.,
mimeo; Creus, Carlos, Garantismo versus fancionalismo, em NDP, nº 1997/
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Damásio (org.), Curso sobre a Reforma Penal, S. Paulo, 1985, ed. Saraiva; do
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Betrachtung in materiellrechtlicher, prozessuafr!r unq ypl/~~g~rech[licher
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Hermenêutica Jurídica, P. Alegre, 1989, ed. Fabris; Faria, José Eduardo, Are-
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Dégénérescence et Criminalité, Paris, 1888, ed. F. Alcan; Ferraz Jr., Tércio
Sampaio, Teoria da Norma Jurídica, Rio, 1978, ed. Forense; do mesmo, Função
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Eduardo Reale, Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático
de Direito, S. Paulo, 2001, ed. RT; Fischer, HansAlbrecht, Die Rechtswidrigkeit

14
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Heleno Cláudio, Conduta Punível, S. Paulo, 1961, ed. J. Bushatsky; Frank,
Reinhard, Über den Aufbau des Schuldbegriffs, 1907 (Estructura dei
concepto de culpabilidad, trad. de Sebastián Soler, Santiago de Chile, 1966);
Frommel, Monika, Los orígenes filosóficos de la teoría final de la acción,
em ADPCP, 1989, p. 621 ss.; Gallas, Wilhelm, Zum gegenwiirtigen Stand der
Lehre vom Verbrechen, em ZStW, 1955, p. l ss.; reproduzido em Beitriige zur
Verbrechenslehre, Berlim, 1968, p. 18 ss. (La teoría dei delito en su momen-
to actual, trad. cast. de J. Córdoba Roda, Barcelona, 1959); Gallo, Marcelo,
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ção do positivismo jurídico: a questão do sistema, em Rev. Trim. Direito Civil,
Rio, 2003, ed. Padma, nº 13, pp. 135 ss.; Galvão, Fernando, Imputação Objeti-
va, B. Horizonte, 2000, ed. Mandamentos; Greco, Rogério, Estrutura Jurídica
do Crime, B. Horizonte, 1999, ed. Mandamentos; García Rivas, Nicolás, El
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J.C.GPaglinca, S. Paulo, 2002, ed. RT; Gomes, Luiz Flávio, Medidas de Segu-
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Eine Beitrag zur Rechtsphilosophie des kritischen ldealismus und der Lehre
von der jüristichen Kausalitiit, Leipzig, 1927; Lessa, Pedro, Do Poder Judici-
ário, Rio, 1915, ed. F. Alves (ed. fac-similar Brasília, 2003, ed. Sen. Fed. -
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( l ª ed., 1911 ); Liszt, Franz von, Tratado de Direito Penal Alemão, trad. José
Hygino Duarte Pereira, Rio, 1899, ed. Briguiet, 2 vols; do mesmo, Der
Zweckgedanke im Strafrecht, em ZStW, 1883, p. l ss., reproduzido em
Strafrechtliche Aufsiitze und Vortriige, Berlim, 1905, p. 126 ss. (trad. italiana
com introdução de Alessandro Calvi, La teoria dello scopo nel diritto pena/e,
Milão, 1962, e trad. castelhana - La idea de fin en e! derecho penal - de
Enrique Aimone Gibson, revisão técnica e prólogo de Manuel de Rivacoba y
Rivacoba, Valparaíso, 1984); Lombroso, C. - Ferrem, G., La Donna Delin-
qüente, Turim, 1923 (4ª ed.), ed. Fr. Bocca; Luhmann, Niklas, Sistema jurídi-
co y dogmática jurídica, Madri, 1983; Luisi, Luiz, O tipo Penal e a Teoria
Finalista da Ação, P. Alegre, s/d ( 1975), ed. Gráfica A Nação; Lyra Filho, Roberto
-Cemicchiaro, Luiz Vicente, Postilas de Direito Penal, Brasília, 1969, ed. Coord.
Brasília; Macedo Soares, Oscar de, Código Penal da República dos Estados
Unidos do Brasil, Rio, 191 O, ed. Gamier; Machado Neto, A.L., Teoria da Ciên-
cia Jurídica, S. Paulo, 1975, ed. Saraiva; Madeira, Ronaldo Tanus, A Teoria do
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Demóstenes, Aulas de Direito Penal - 2º ano, Rio, 1950, ed. CACO, mimeo;
Mantovani, Luciano Pettoello, II Concerto Ontologico dei Reato, Milão, 1954,
ed. Giuffre; Mayer, Max Ernst, Rechtsnormen und Kulturnormen, Breslau,
1903; do mesmo, Filosofia dei derecho, Barcelona, 1937; Meihofer, Wemer,
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19
§ 25. FUNÇÃO E ESTRUTURA DA TEORIA DO DELITO
I. As funções dos sistemas teóricos do delito
1. É na interpretação das leis penais manifestas que o direito penal pode
realizar sua mais importante função de conter e reduzir o poder punitivo. Como
já exposto', o saber (ou ciência) do direito penal deve operar como dique de
contenção das sujas e turbulentas águas do estado de polícia, para impedir a
submersão do estado de direito. Situadas em nível superior ao do estado de
direito, tais águas represadas ameaçam ininterruptamente vazar por sobre o
dique. Entre a abertura total das comportas, que afogaria o estado de direito, e
a plena acumulação do volume das águas, que levaria ao mesmo resultado pela
ruptura do dique ou pela ultrapassagem de seu nível, cabe uma operação sele-
tiva, que deixe escoarem-se as águas menos sujas e procure abrandar as mais
turbulentas. A metáfora do dique nos permite constatar que, se o poder punitivo
distribui sua violência seletivamente, a contenção redutora que lhe opõe o direi-
to penal também se exerce seletivamente.

2. Tal seletividade do direito penal deve ostentar um sinal trocado em


relação à seletividade do poder punitivo, configurando perante este uma con-
tra-seletividade. Toca-lhe, desde logo, enfrentar as águas que, como poder
punitivo habilitado por leis penais latentes ou eventuais2, tentam romper o di-
que; e deve neste enfrentamento empenhar toda a sua força. Contudo, quanto
ao poder punitivo habilitado por leis penais manifestas que logrem ultrapassar
os filtros críticos da constitucionalidade e da racionalidade, não se pode impedir
completamente sua passagem, embora caiba esgotar todos os esforços para
que a mais estrita legalidade seja observada também nos sucessivos momentos
processuais'. Coincidem, n(;:ste itineráriQ d9 poder punitivo através do jogo de
comportas p~nais, 11s eng~nhéi~éis clr direito P!!Irnl ~ PR proc~sso pe11éi,:

3. Ao final desse itinerário, que juridicamente existe como processo, che-


ga-se, em termos sociológicos, à criminalização secundária formal de uma pes-
soa, mas em termos jurídico-penais isto pressupõe a ultrapassagem de dois
grandes sistemas de comportas seletivas: a) o primeiro se propõe constatar a
existência dos pressupostos jurídicos necessários para requerer da agência ju-
dicial uma resposta que habilite o exercício de poder punitivo; b) o segundo se
dedica, vencidas as comportas do primeiro, aos requisitos da resposta que a
agência judicial dará a tal requerimento. O primeiro sistema é habitualmente
1
Cf.v.I,§lº.
2
Cf. V. I, § 4°, II.

20
designado por teoria do delito, e o segundo por teoria da pena, embora fosse
preferível falar-se numa teoria da responsabilidade penal (ou punitiva) da
agência judicial (pois é dela, e não do criminalizado, o encargo da resposta).

4. Da teoria do delito trataremos neste segundo volume, e cabe começar


pela aproximação genérica que compreende o delito como ação típica,
antijurídica e culpável. Afirma-se ser esta uma definição analítica, à qual se
contraporiam definições formais (que enfatizam no delito, apreendido lógico-
deonticamente, o caráter de um cometimento proibido, transgressional da nonna)
e definições materiais (que se interessam pelo conteúdo, necessariamente
valorativo, ofensivo ou danoso do delito). Tal contraposição não deve iludir-nos
quanto à presença, na definição analítica do delito, de elementos das demais.
Assim, uma definição formal, que tem a virtude política de recordar o caráter
discricionário da criação legislativa do delito (criminalização primária) e a virtude
jurídica de destacar o princípio da legalidade, mas se fechar-se em si mesma
oferecerá riscos para o princípio da lesividade, integrar-se-á utilmente à elabora-
ção analítica, por exemplo ao versar-se a tipicidade. Do mesmo modo, uma defi-
nição material, que tem a virtude de pôr em evidência o princípio da lesividade (e
portanto a questão do bem jurídico), porém enclausurada conceitualmente pode
resultar na postulação criminológica de um "delito natural" ou na formulação
jurídica da mais detestável versão de uma antijuridicidade material, auxiliará a
elaboração analítica, por exemplo ao tratar-se do erro de proibição. A definição
analítica, em cujo interior se reconhecerão contribuições das chamadas defini-
ções formais e materiais, é aquela que oferece às agências judiciais do sistema
penal melhores e mais seguros elementos para, mediante um processo legalmen-
te estipulado, decidirem sobre se habilitam ou não a passagem de poder punitivo,
cuja quantificação pertencerá à teoria da pena (ou da responsabilidade penal).

5. Enquanto sistema de filtros que facultam sucessivas interrogações acer-


ca de uma resposta habilitadora de poder punitivo por parte das agências judici-
ais, a teoria do delito representa a mais importante concreção da função do direito
penal em relação ao poder punitivo fundamentado em leis penais manifestas. Por
isso, a dogmáticajuridico-penal alcançou no âmbito da teoria do delito sua mais
fina elaboração, certamente superdimensionada com respeito ao resto do direito
penal. Este fenômeno é explicável pela circunstância de que tal elaboração, se-
gundo o modelo ainda hoje observado, começou no século XIX com autores que
partiam da existência de um estado racional (de um legislador racional) e que
nem remotamente suspeitavam da sobrevivência do estado de polícia sob múlti-
plas máscaras (como Binding, Merkel e os hegelianos3), dedicando-se a aperfei-

3
Cf. v. 1, § 21, li, e§ 22, II.

21
çoar os requisitos de operatividade de um poder que consideravam sempre ou
substancialmente racional. Tal tendência foi favorecida pela função pragmática
de classificar, de forma razoável, as características do delito para oferecer um
modelo analítico que facilitasse o adestramento (ensino jurídico) e o exercício da
atividade judicial (decisão de casos). Estas funções pragmáticas (adestramento e
decidibilidade) potencializaram o desenvolvimento teórico do delito, ganhando
especial importância quando a tarefa jurisdicional foi atribuída a agências buro-
cratizadas e verticalizadas, às quais se chegava depois de longa formação acadê-
mica4, próprias de um estado legal de direito porém não de um estado constitucional
de direito, já que não exerciam o controle de constitucionalidade das leis nem
para isso estavam seus funcionários preparados5• Privilegiar suas funções prag-
máticas levou a teoria do delito às sistemáticas classificatórias que, sob clara
influência metodológica do cientificismo naturalista6, tratavam de distinguir e com-
binar elementos e características, sem derivar a sistemática de uma concepção
da pena ou de uma teoria do direito penal que a orientasse, apenas referindo
vagamente uma concepção preventivo-dissuasiva da pena como sustentação da
indemonstrável função motivadora das normas, materiais básicos para edificar
um discurso jurídico-penal legitimante do poder punitivo, pela atribuição a ele de
uma função supostamente-tutelar'.

li. A necessidade de um sistema


1. Dentro do tradicional esquema de legitimação do poder punitivo, foi posta
em dúvida e mesmo negada a necessidade de um sistema, com finalidades e
argumentos distintosª. Confundiram-se, neste aspecto, críticas ao método
dogmático e críticas dirigidas apenas contra algumas construções do sistema do
delito no direito penal. a) São hoje históricas as críticas da chamada Escola de

4
Cf. Hannover-Hannover, Politische Justiz.
5 A respeito, Cappelletti, O Controle Judicial da Constitucionalidade; cf. v. I, § 8°. Costuma-
se atualmente atribuir à teoria do delito o caráter de um complexo argumentativo de fundo
constitucional (p. ex., Donini, em RIDPP, 1997, pp. 347 ss; Zenkner Schmidt, O Princípio
da Legalidade Penal, cit., pp. 63 ss).
6 Ihering caracterizava a construção jurídica como "a aplicação do método da história natural à
matéria jurídica"; cf. Batista, Nilo, Introdução Crítica, cit., p. 118.
7
Uma aguda crítica a tais sistemáticas, sustentando que derivam dos pandectistas e que não
respondem às necessidades do mundo contemporâneo, em Rivacoba y Rivacoba, em BFD,
UNED, nº 13, Madri, 1998. No Brasil, a mais espirituosa crítica à esterilidade de tais
sistemáticas em Nélson Hungria, Os pandectistas do direito penal, em Comentários, v. I, t.
II, pp. 443 ss.
1 Defendem a necessidade de um sistema e de uma teoria jurídica do delito Roxin (Política
criminal y estructura dei delito, pp. 35 ss) e Gimbernat Ordeig (Concepto y método, pp.
102 ss.).

22
Kiel, ou seja, dos penalistas do nazismo ativo e militante, que sustentavam uma
construção irracionalista do delito como totalidade, bem como as críticas dos
jusfilósofos da Escola Egológica argentina, sem sinal político manifesto9, e ain-
da alguns ensaios fundados na teoria pura de Kelsen 10, ou seja, no neokantismo
de Marburgo. b) Dispõe de maior atualidade certa compreensão do direito penal
inglês como exemplo do funcionamento garantista de uma agência judicial, mes-
mo quando não disponha de um sistema teórico do delito. É inconvincente tal
tendência: por pouco que observemos a jurisprudência inglesa, é visível que dis-
põe ela de um sistema estruturado na correspondência actus reus - mens rea, ou
seja, um sistema classificatório objetivo-subjetivo bastante simples, elaborado
pelos próprios juízes 11, não muito diferente de correntes européias do século XIX
que ainda hoje subsistem na França. O poder acadêmico é muito reduzido no
direito penal britânico, porque a corporação dos advogados fonna os juízes prati-
camente desde a Idade Média, impedindo a estruturação de uma burocracia judi-
cial 12 como a que resulta do longo adestramento universitário alemão. Por essa
característica, o sistema teórico do delito anglo-saxão não se desenvolveu aos
moldes da dogmática penal tedesca, sendo contudo inegável que ele se constitui
como claríssima sistemática classificatória, capaz de referenciar e propor solu-
ções - a nossos olhos, algo rudimentares - para todos os problemas e interroga-
ções que aquela dogmática pretende explorar.

2. e) Outra vertente crítica argumenta que a construção de um sistema pode


prejudicar a justiça na decisão de casos particulares, reduzindo âmbitos
argumentativos no tratamento dos problemas, chegando a soluções estranhas à
política criminal ou caindo num conceitualismo excessivamente abstrato13 • Nenhum
desses efeitos é atribuível à existência de um sistema, salvo talvez aquele que se
refere à política criminal. Contudo, se por política criminal se entende, na forma
tradicional, a pretensão de extrair de uma função manifesta da pena todas as suas

9
Especialmente Aftalión, Enrique, La esc11ela penal técnico-jurídica; Landaburu, Laureano,
em Rev. de Der. Penal, B. Aires, 1945. No Brasil, a teoria egológica foi experimentada na
teoria do delito por Condeixa da Costa, Pressupostos Existenciais do Crime.
10
Trabalhos muito raros, que não tiveram desenvolvimento: De la Cera Alonso, Manuel, E!
concepto de delito; Klein Quintana, Julio, Ensayo de una teoría jurídica dei derecho penal.
11 Cf. a bibliografia anglo-saxônica novecentista: Blackstone; Bishop, Joel Prentiss, New
Commentaries; no século XX, Kenny, 1921; para a literatura atual, Card-Cross-Jones,
1998; Carvell - Swinfen Green, 1970; Clarkson - Keating, 1998; Curzon, 1991; Fitzgerald,
1962; Paulsen - Kadish, 1962; Samaha, Joel, 1993; Smith - Hogan, 1992; Stuart, Don,
1982.
12
Sobre isto, Birch, Anthony, British system; Reynold Heinrich, Justiz in England; Kirafly,
A.K.R., The english legal system; Hertley, T.C. - Griffith, J.A.G., Government and law;
Yardley, D.C.M., Introd11ction to British Constitutional Law.
13
Roxin, p. 165.

23
conseqüências, o embaraço produzido por um componente teórico sistemático apa-
rece mais como vantagem do que como defeito, por exercer claramente função
redutora do poder punitivo. d) O questionamento mais forte do pós-guerra, contra a
sistemática do delito, poderia provir da chamada tópica ou pensamento problemá-
tico, que remonta a Aristóteles, Cícero e Vico, e consiste em argumentar a favor e
contra todas as possíveis soluções de cada caso particular, até chegar a uma que
provoque consenso geral. Esta techne do pensamento foi retomada por Viehweg,
numa conferência de 1950, em Mainz, desenvolvida dois anos mais tarde como
tese de livre-docência na Universidade de Munique 14 • É natural que a tópica seja
mais discutida no âmbito do direito privado, que postula efetivamente a existência
de um modelo reparador de solução de conflitos. É complicado aplicá-Ia ao direito
penal.já que este não resolve os conflitos, limitando-se a decidir sobre eles e suspendê-
los. É inimaginável uma tópica penal, que deveria desconsiderar a opinião da vítima.
Na medida que o poder punitivo deixasse de ser um ato de poder verticalizado, e
adquirisse racionalidade como modelo de solução de conflitos ou de exercício raci-
onal de poder - o que equivaleria a abandonar sua própria punitividade - a tópica
poderia aplicar-se mais ao direito penal. Mas apesar da própria essência do punitivo
tolher espaço ao pensamento problemático em nossa disciplina, a ele recorrem por
vezes os penalistas (embora sempre o dissimulem: experimentados os argumentos
e feita a opção pelo mais convincente, o "rascunho" problemático é apagado e a
solução é elaborada como se extraída dedutivamente dos princípios sistemáticos).

3. Objeções à dogmática jurídico-penal, particularmente no campo da teoria


do delito, fundadas no descumprimento de suas promessas de prover segurança e
previsibilidade para as decisões'5, possuem muito maior consistência que as de-
mais, de vez que se pode afirmar que: a) a dogmática facilitou a racionalização
do poder punitivo e não questionou sua função; b) a pluralidade de teorias
que inc01pora e faz conviverem viabiliza a sustentação de decisões díspares
e procedimentos arbitrários. Além disso, como já observado, o mito do legislador
racional 16 reduziu sua força questionadora e estimulou sua função legitimante de
mera racionalização. Tais objeções não são facilmente eludíveis, e por isso é preci-
so responder a uma fundamental interrogação sobre elas: uma metodologia que
permitiu a racionalização do poder punitivo pode ser utilmente empregada
na contenção dele, no momento de reconstruir o direito penal liberal a partir
de uma teoria negativa da pena?

14
Viehweg, Theodor, Tópica e Jurisprudência; uma crítica conciliatória em Gimbemat Ordeig,
Conceito e Método da Ciência do Direito Penal, p. 93. No âmbito do direito privado, cf.
Galuppo, Marcelo Campos, O direito civil no contexto da superação do positivismo jurídi-
co: a gestão do sistema.
15 Como as de Vera Regina Pereira de Andrade, A Ilusão da Segurança Jurídica.
16
Sobre este mito, Nino, Carlos Santiago. Consideraciones sobre la dogmática jurídica.

24
4. O desenvolvimento conceituai da teoria do delito, especialmente em
língua alemã, constitui um esforço de raciocínio e pesquisa muito especial no
campo jurídico. Quase todas as possibilidades de construção sistemática, e seus
fundamentos filosóficos, nele se apresentaram. Rechaçar essa experiência, o
esforço intelectual e a tradição secular que a envolve, quando se pretende
empreender a tarefa construtiva de um direito penal exclusivamente redutor do
poder punitivo, significaria uma prodigalidade onipotente condenada ao fracas-
so, exposta aos riscos da insensatez intuicionista, do desmonte pelo absurdo. O
direito penal redutor que renunciasse ao auxílio metodológico da dogmática se
converteria num discurso político, talvez até denso, porém juridicamente defici-
tário. Se a tarefa do direito penal é conter e filtrar a irracionalidade e a violência
do poder punitivo, as comportas do dique devem funcionar inteligentemente. O
poder punitivo é um fato político dotado de força irracional, e a contenção e
filtragem do direito penal deve ser racional para compensar, até onde puder,
sua violência seletiva. De duas seleções irracionais só poderia resultar a soma
ou a potenciação de irracionalidades. A seleção inteligente não se realizará se
as comportas não se combinarem em forma de sistema, entendido, ante a
equivocidade contemporânea do vocábulo, em sua acepção kantiana, ou seja,
como a unidade de diversos conhecimentos sob uma idéia, de modo que a
priori se reconheça o âmbito e o lugar de seus componentes.

5. Se é verdade que uma sistemática do delito pode ser construída apenas


como instrumento classificatório ou pragmático, que renuncia a toda indagação
acerca de sua funcionalidade perante o poder punitivo e portanto se reduz a
pura análise da lei, desinteressada de sua produção no marco do Estado e dos
conflitos sociais, não é menos verdade que tal sistemática pode ser capaz de
manifestamente assumir aquela funcionalidade, considerando-a a cada passo
de sua elaboração. Uma sistemática do delito que menospreze sua própria fun-
cionalidade perante o poder punitivo constitui uma teoria mutilada, que tende a
isolar-se e a converter suas tarefas de favorecer o adestramento ( ensino jurídi-
co) e o exercício da atividade judicial (decisão de casos) num complexo tabulei-
ro de xadrez para uso de iniciados. Rompe definitivamente com a unidade teórica
do direito penal quem se limita a indicar aos operadores judiciais como devem
eles decidir os casos, silenciando sobre o sentido, os compromissos, as conse-
qüências humanas e os custos sociais de tais decisões. A dogmática não pode
prescindir jamais de uma decisão extralegal prévia que lhe confira sentido e
unifique a construção 17. Uma dogmática do gênero "arte pela arte" transfor-
ma o operador judicial num perigoso autômato, que manobra um programa cuja
função ignora - mas que se exercerá inexoravelmente, apesar de manobrado

17
Bacigalupo, Enrique, em DDDP, nº 2, 1983, pp. 245 ss.

25
por um néscio que julga dispensável saber para que e a quem serve aquilo que
ele mesmo faz.

6. Sistemáticas teleológicas são aquelas que se constróem atendendo a


uma decisão prévia que tenha por referência fins atribuídos à pena ou sua
própria função perante o poder punitivo, ao contrário das sistemáticas
classificatórias. Toda sistemática responde a certa ideologia: as teleológicas
exibem suas ideologias e submetem a debate seus fundamentos, enquanto as
classificatórias escondem suas opções ideológicas e interditam o debate simu-
lando aspirar a um grau de assepsia científica que o dispensaria 18. Não é por
ciosamente escondê-lo que as sistemáticas classificatórias deixam de desem-
penhar importantes tarefas perante o poder punitivo.

Ili. Estruturação básica do conceito: lineamentos

1. Ensinam os dados sociais que o poder punitivo seleciona pessoas a


partir do estereótipo criminal, e a conduta delas não passa de um pretexto
que outorga fundamento jurídico-objetivo àquela seleção. O direito penal deve
tentar neutralizar, tanto quanto possível, os componentes sócio-subjetivos arbitrá-
rios da seletividade punitiva. Para fazê-lo, recalcando essa tendência do estado
policial, o direito penal procura assegurar-se de que qualquer pretensão de exer-
cício punitivo tenha como pressuposto, pelo menos, uma ação. Embora tal pre-
caução não seja capaz de neutralizar a seleção por vulnerabilidade da pessoa
criminalizada, ela garante, no mínimo, que a criminalização secundária não se
formalize sem que o sujeito tenha manifestado certa conduta, requisito sem o qual
o poder punitivo incidiria num grau insuportável de irracionalidade discriminatória.
É intolerável que se pretenda formalizar juridicamente poder punitivo so-
bre outro ente que não seja uma pessoa e por outro motivo que não se
assente em uma conduta dela. Portanto, no limiar de nossa construção, cumpre
excluir do conceito de delito toda formulação legal que resultasse no exercício de
poder punitivo sobre coisas ou animais, ou, quando recaísse sobre pessoa, preten-
desse considerar algo distinto de sua conduta (por exemplo, sua classe social,
etnia, gênero, opção sexual, filiação partidária, religião etc.). Esta é a consagra-
ção teórica do princípio nullum crimen sine conducta. Porém nem toda e qual-
quer ação humana pode servir de base teórica para o delito: ninguém sofre pena

18 Em sua conferência na Universidade de Córdoba, em 1971, Welzel dizia da dogmática alemã ter
sido cultivada como "finne baluarte contra invasões ideológicas" (La dogmatica en e/ derecho
penal, p. 31 ). Juarez Tavares menciona a falsa pretensão de que a dogmática se realize "por meio
de um processo isento de conteúdos ideológicos" (Teorias do Delito, p. 4).

26
por seu pensamento (cogitationis poenam nemo patitur), afirmava Ulpiano no
século III (D. XLVIII, XIX, 18). A reflexão, os desejos, as convicções políticas,
os sentimentos, a imaginação, e mesmo os atos íntimos individuais que não se
projetam no mundo exterior, nada disso pode servir de base factual para o delito.
O nullum crimen sine conducta configura um requisito redutor mínimo, de
elementaríssima racionalidade, que dentro do sistema de contenção cumpre fim-
ção preliminar menos refinada do que os três elementos filtrantes aos quais serve
de base: a tipicidade, a antijurídicidade e a culpabilidade19•

2. Comprometeria a racionalidade republicana que a intervenção dopo-


der punitivo fosse invocada sem que a conduta houvesse produzido um confli-
to jurídico, pela afetação considerável, mediante periclitação ou dano, de um
bem jurídico alheio. Condutas não-conflitivas, ou que gerem danos irrisórios, ou
ainda conflitos que disponham de solução através de outros modelos, não de-
vem ser expostas, no estado de direito, aos flagelos do poder punitivo. Quando
pretenderem criminalizar primariamente uma conduta conflitiva que afetou con-
sideravelmente um bem jurídico alheio, as agências políticas deverão utilizar
instrumentos de técnica legislativa que permitam estabelecer, da forma mais
clara e completa, o pressuposto de fato (Tatbestand) ou tipo, ao qual se refe-
rirá a seleção criminalizante secundária. Os debates parlamentares
freqüentemente revelam o esforço do poder punitivo para criminalizar condu-
tas não-conflitivas, ou que geram danos irrisórios, ou facilmente solucionáveis
através de outros modelos (elastério de tipos). A análise da tipicidade, ou seja,
da adequação da conduta ao tipo, não é puramente descritiva, mas também e
essencialmente valorativa. Parte substancial da análise valorativa recai no exa-
me apurado, em cada caso, para surpreender embutidos arbitrários (raridades
significantes no tipo, novidades insólitas, ambigüidades e contradições que fa-
voreçam uma dutibilidade típica francamente expansora do poder punitivo).
Cabe registrar desde logo que, mesmo quando uma conduta conflitiva afete
consideravelmente um bem jurídico alheio, a habilitação do poder punitivo con-
seqüente a sua prévia criminalização primária dependerá de que essa conduta
humana tenha consistido numa atuação voluntária finalisticamente dirigida à
afetação do bem jurídico ou, pelo menos, causadora de tal afetação por leviana
inobservância do cuidado exigível.

19
Certos autores brasileiros, nomeadamente Damásio, Mirabete e Celso Delmanto, entendem
que a culpabilidade não integra o conceito de crime, constituindo um pressuposto da pena.
Trata-se de opinião minoritária, sobre a qual retomaremos oportunamente. Vejam-se críti-
cas em Cláudio Brandão, Teoria Jurídica do Crime, p. 14, e Fernando Galvão e Rogério
Greco, Estrutura Jurídica do Crime, pp. 33 e 34. Com maior originalidade, embora refratário
a sua reconfiguração finalística, o colombiano Servio Túlio Ruiz substitui a culpabilidade
pela categoria da referibi/idade psíquica, que englobaria as teorias do dolo, da culpa, do erro
e da imputabilidade (La estructura dei Delito, pp. 119 ss.).

27
3. A pura lesividade conflitiva da conduta não nos infonna definitivamente
sobre a existência de um objeto (um ilícito ou injusto penal) que possa repro-
var-se a alguém, porquanto até este momento analítico a conflitividade só se
entremostra à luz das proibições, cuja averiguação se antecipa, lógica e politi-
camente, às permissões. É possível que essa conduta não seja juridicamente
conflitiva, caso represente a via adequada, segundo uma autorização legal, para
a solução ou prevenção de outro conflito. A solução ou prevenção de um con-
flito, nos tennos de um dispositivo de lei, não pode juridicamente ser tomada
como um novo conflito que pretendesse habilitar poder punitivo. Isto significa
que a conflitividade deve ser confinnada através da constatação de que não
existe nenhuma pennissão legal autorizadora da conduta. A racionalidade repu-
blicana postula, quanto ao objeto (ilícito ou injusto penal) que, no curso de uma
pretensão punitiva fonnalizadora, possa reprovar-se a alguém não só que sua
conduta tenha sido típica, mas que também tenha sido antijurídica.

4. Mesmo quando se pudesse reconhecer um ilícito ou injusto penal (uma


conduta típica e antijurídica), desafiaria a mínima racionalidade a pretensão de
habilitar poder punitivo contra um sujeito cuja atuação, no contexto concreto
em que se deu, não fosse culpável, diante da impossibilidade de conduzir-se ele
de outro modo. A diferença entre antijuridicidade e culpabilidade não pro-
vém de deduzirem-se elas de duas classes de nonnas (uma de valoração e
outra de detenninação), nem tampouco de derivarem de uma única nonna que
impeça a distinção. Trata-se de dois momentos valorativos da seleção: o pri-
meiro (antijuridicidade) visa descartar tudo quanto não caiba considerar-se como
um conflito penalmente relevante, enquanto o segundo (culpabilidade) propõe-
se rejeitar toda pretensão punitiva quando pela produção do conflito penalmen-
te relevante não puder ser responsabilizado o sujeito. São momentos distintos
de valoração do conteúdo de irracionalidade da pretensão do poder punitivo
que se articulam logicamente: qualquer responsabilização pressupõe um objeto.
A questão esteve obscurecida ao longo de sua história doutrinária, pelo fato de
se terem das leis deduzido nonnas como proibições ou mandados dirigidos às
pessoas ( teoria dos imperativos), concluindo-se que as nonnas não podem diri-
gir-se a quem não possa compreendê-las20. Para obviar esta objeção novecentista,
integrando ao direito penal a distinção entre antijuridicidade e culpabilidade,
proveniente do direito civil21 , introduziu-se a distinção entre nonna de valoração
(para estabelecer o injusto penal) e nonna de detenninação (para estabele-
cer a culpabilidade a partir da determinação do sujeito conforme a

20 Merkel, Adolf, Lehrbuch, pp. 139 e 156 ss; Thon, August, Der Rechtsbegriff e também
Norma giuridica e diritto soggettivo.
21 Ihering, Rudolfvon, L 'Esprit du Droit Romain, t. III, p. 69; Das Schuldmoment,, em Fest.f
Giessen.

28
juridicidade)22 • Cabe compreender ambos os conceitos como critérios
normativos de valoração do conteúdo de racionalidade da pretensão
punitiva.

5. Toda a teoria das nonnas responde, a rigor, a duas premissas cuja crítica
já se mencionou: a primeira está na finalidade preventiva da pena, dependente de
um suposto efeito motivador da nonna, e a segunda está na racionalidade do
legislador assumida como uma realidade, pelo menos ao nível da coerência inter-
na (não-contradição). Da primeira já tratamos23 , mas quanto à segunda premissa
convém proclamar não ser verdade que o legislador seja sempre coerente e não
contraditório. As nonnas são deduções que o intérprete fonnula a partir das leis
para compatibilizá-las até onde seja possível (na extrema impossibilidade, a lei é
inconstitucional) ao escopo de evitar contradições nas decisões judiciais, e não
porque o legislador não seja contraditório. As nonnas não são dados prévios,
senão deduções interpretativas que se vão fonnulando ao ritmo da construção
racional sistemática. Impõe-se o desdobramento dos momentos valorativos não
só pela precedência lógica do objeto (injusto) sobre a responsabilidade do sujeito
(culpabilidade), mas também porque na construção sistemática se evitariam equí-
vocos e confusões, tais como por exemplo afinnar que o inimputável mata licita-
mente, porque se excluiria a legítima defesa contra ele etc. etc.

6. Convém ressaltar que tanto a concepção genérica do delito quanto


seus três caracteres específicos, com ligeiras variações, são quase pacifica-
mente aceitos em qualquer conceito analítico do delito, em nossa família jurídi-
ca, há mais de um século. Não obstante, conteúdos, relações e a própria natureza
dos caracteres, bem como sua posição sistemática, variam consideravelmente.
Para nós, o delito não é um conceito composto pela agregação de elementos,
mas sim um duplo jogo de valorações acerca de uma conduta humana, que em
cada caso a pretensão de exercício do poder punitivo deve superar, para que os
juízes possam habqitar sua passagem de certa forma e em deteryninada quantj-
clade. S~ coubesse uma representação gráfica, com todas as inexatidões que
implica, corresponderia menos a um mosaico ou a um quebra-cabeças do que a
conjunto de filtros sucessivos, conectados entre si.

TV. A elaboração sistemática segundo outros critérios


1. Delimitou-se uma sistemática do delito com critérios valorativos e
teleológicos, onde a concepção genérica se estrutura como a) provocação de
22 Assim Mezger, Tratado, l, pp. 339 ss; Mezger-Blei, pp. 96 e 97; Roxin, p. 268.
23
Cf. V. I, § 6°.

29
um conflito jurídico b) reprovável ao sujeito que poderia motivar-se diversa-
mente e tê-lo evitado (porque desfrutou de certo nível de autodeterminação
para provocá-lo). Trata-se de critérios que enlaçam duas valorações segundo
uma precedência lógica: a) a da pretensão punitiva fundada na conduta como
obra realizada em si mesma; b) a da própria obra enquanto obra de um sujeito
que poderia não tê-la realizado. Definitivamente, é um esquema próximo das
valorações correntes na ética social cotidiana: uma pintura é premiada por sua
beleza intrínseca, mas também pelo merecimento que toca a seu autor por
havê-la criado. Continuaria bela, se fosse um plágio, porém provavelmente o
prêmio seria cassado. Os critérios de elaboração dogmática da sistemática do
delito não foram sempre valorativos nem teleológicos. Muitas vezes privile-
giou-se sua função de favorecer a decisão judicial de casos, caindo-se em
formulações meramente classificatórias; outras vezes, tal função viu-se dificul-
tada exatamente por privilegiar-se uma leitura teleológica. Buscou-se, de for-
ma geral, estabelecer valorações sobre a conduta, quando o importante é a
valoração da pretensão do poder punitivo para garantir um mínimo de
racionalidade e impedir a intolerável irracionalidade com a qual tal po-
der pretende exercer-se. Os desvalores da conduta não passam de meios
aos quais se recorre para valorar o impulso punitivo e calibrar sua vio-
lência: não se trata de valoração ética, que tem outro objeto, alheio por com-
pleto ao objetivo de conter e reduzir o exercício de poder punitivo.

2. O primeiro critério distintivo separou no delito o campo objetivo do


campo subjetivo, e, segundo suas construções teleológicas, os hegelianos e os
teóricos dos imperativos deviam começar sua análise a partir do subjetivo. Para
os hegelianos, a pena deveria reafirmar o direito, superando o delito, como
"segunda violência que é uma anulação da primeira"24, e só quem era livre
estava em condições de negar o direito (de ser autor de um delito), de modo
que toda ação era livre ou não era ação. Os teóricos dos imperativos, crendo
firmemente que a pena dissuade, atribuiam à norma função motivadora e, por
isso, proibições e mandados só poderiam dirigir-se a quem os compreendesse
ou pudesse compreendê-los. Essas construções teleológicas não eram muito
úteis para a função de favorecer a decisão de casos, porque deveriam principi-
ar pela análise da capacidade do sujeito, antes mesmo de perguntar se sua obra
dispunha de relevância jurídico-penal. Perante tais sistemáticas, não se poderia
admitir a distinção entre antijuridicidade e culpabilidade, introduzida por Ihering
no direito privado. Com essas dificuldades para o cumprimento da função prag-
mática, optou-se por passar de uma sistemática teleológica a uma classificatória,
que manteria a separação objetivo-subjetivo, mas iniciaria a análise pelo as-

2
' Hegel, G W.F., Filosofia do Direito, § 93.

30
pecto objetivo (Liszt), assumindo a distinção de Ihering25• Quando esta análise
apresentou dificuldades ou insuficiências para sua função imediata, o
neokantismo introduziu urna variável valora tiva que sustentava a mesma estru-
tura com novos andairnes 26 • As contradições de urna sistemática assim
construída, e de seus pressupostos metodológicos, corno também alguma in-
coerência quanto a sua função prática, levaram a que o finalismo depurasse e
aprofundasse o sentido valorativo27 • Atualmente, o centro dos debates parece
voltar às sistemáticas teleológicas. De qualquer modo, este processo, descrito
fora de seus correspondentes contextos culturais e jurídicos, resulta pouco com-
preensível, parecendo freqüentemente urna espécie de jogo de lógica jurídica
nem sempre claro. Por isso, cabe desenvolver suas linhas mais gerais.

V. Desenvolvimento histórico da sistemática do delito


l. As dificuldades dos autores hegelianos e dos teóricos dos imperativos
para elaborar um conceito de delito que cumprisse suas tarefas práticas propi-
ciaram a rápida difusão da sistemática do positivismo alemão de Liszt, ou seja,
daquele critério objetivo-subjetivo que predominaria na Alemanha nas pri-
meiras décadas do século XX e que partira da recepção, no âmbito penal, do
conceito de antijuridicidade objetiva de lhering. Segundo este modelo, o objeti-
vo correspondia ao injusto e o subjetivo à culpabilidade; a ação era um aconte-
cimento causal voluntário e a voluntariedade seria urna enervação
muscula?8• O injusto se definia corno a causação tisica do dano social e a
culpabilidade corno sua causação psíquica29• O delito era conceituado como
ação antijurídica, culpável e punível, concepção que incluía a relevância
penal corno último dos caracteres específicos, o que perturbava sua tarefa
prática classificatória. Em 1906, Beling introduziu a teoria do tipo 30, que contor-

25
O sistema de Liszt em seu Lehrbuch ( 1• edição em 1881; 21 • e última em vida do autor,
1919) seria atualizado por Eberhard Schmidt. Em 1899, José Hygino Duarte Pereira publi-
cou no Brasil sua tradução (Tratado de Direito Penal Alemão, Rio, 1899, ed. Briguiet, 2
vols.). Convém notar que a sistemática teleológica também remonta a Ihering (Der Zweck
im Recht, pp. 435 ss.), sendo igualmente incorporada à doutrina penal por Liszt (Der
Zweckgadanke im Strafrecht, também referido como Programa de Marburgo). Cabe regis-
trar que do festejado texto de Ihering A Luta pelo Direito dizia Tobias Barreto, em 1878,
que nele a "concepção darwínica do strugglefor life é transportada do domínio da natureza
para o domínio da sociedade, e o direito se resigna a ser um capítulo da história natural"
(Estudos de Direito, p. 292).
26
O expoente máximo foi Mezger, Edmund (cf. Tratado).
27
Welzel, Hans, Abhandlungen.
28
Beling, Ernst von, Esquema, pp. 19 e 20.
29
Liszt, Lehrbuch, pp. 144 e 173.
30
Beling, Die Lehre vom Verbrechen.

31
nou este inconveniente, razão pela qual tal sistemática é conhecida como Liszt-
Beling (também costuma ser chamada clássica, denominação criticável)31 • É
claro que o conceito de tipo de Beling era completamente objetivo; o tipo era
parte de uma totalidade maior, o injusto, também todo ele objetivo.

2. Entre a segunda e a terceira década do século XX, a proposta lisztiana


foi substituída, na Alemanha, por outra sistemática, de inspiração neokantiana32,
mas que, em distintos fundamentos filosóficos, recaía na mesma estrutura ana-
lítica positivista, conforme o mencionado esquema objetivo-subjetivo. A crise
filosófica e científica do princípio causal e da fisica newtoniana33 e as dificulda-
des do modelo anterior impuseram uma renovação das fontes ideológicas de
sustentação, que não obstante preservou essencialmente o próprio modelo. A
culpabilidade precisava de incorporar algum critério objetivo, porque a concep-
ção que a restringia a um liame psicológico entre o sujeito e o delito não podia
abarcar a culpa inconsciente (sem representação do resultado lesivo). Tratou-
se, então, de substituir a concepção anterior por um critério valorativo (teoria
normativa da culpabilidade, entendida como reprovabilidade)34 . Por outro lado,
alguns tipos não logravam adequada definição sem o reconhecimento neles de
certos elementos subjetivos, o que rompia a pretensão de completa objetividade
35
do injusto . A ação ao estilo lisztiano salvou-se pela construção de um concei-
to que, abandonando a empostação naturalista-descritiva, se pretendia
normativo36• O injusto se mantinha predominantemente objetivo; apesar da
admissão excepcional de certos elementos subjetivos, e também aqui se renun-
ciava a um conceito descritivo em favor de um valorativo. A culpabilidade, sem
abrir mão de exprimir um vínculo de imputação subjetiva, passou a constituir
um juízo (de reprovabilidade) baseado numa norma de determinação (num im-
perativo). Sem dúvida, recorrer a valorações para enriquecer a sistemática
descritiva foi um passo muito importante, cujo mais alto desenvolvimento
correspondeu a Mezger7• De qualquer modo, era no mínimo estranho que ~s
duas valorações coincidissem tanto com as prévias descrições, bem com~ que
dolo e culpa continuassem a passar por formas da culpabilidade, o que apresen-

31 Jescheck-Weigend, p.201; Tavares, Juarez, Teorias do delito, p. 17; criticamente, Welzel, p.


40.
32 Cf. V. 1, § 23, IV.

33 Cf. V. 1, § 22, II 1.

:M Frank, Reinhard, Über den Aujbau des Schu/dsbegriff


JS Fischer, Hans Albrecht, Die Rechtswidrigkeit; Hegler,August, em ZStW 76/19; do mesmo em
Archiv f Rechts-und-Wistshcaftphilosophie, 1915, 16, pp. 153 ss.; também em Fest. f
Frank, pp. 251 ss.; Mayer, M.E., 1923, pp. 185 ss.
36
Radbruch, Gustav, Der Handlungsbegriff.
37
Mezger, Edmund, Tratado, obra cujas sucessivas edições seriam atualizadas por Hennann
Blei.

32
tava dificuldades sistemáticas e levava a soluções pouco coerentes, logo per-
cebidas a partir de sua própria pauta filosófica e metodológica 38. Por volta dos
anos setenta, tal sistemática foi abandonada na Alemanha39 •

3. Vinculada ao objetivismo valorativo40, ainda que em versão mínima e


característica, a teoria finalista da ação de Hans Welzel ensejou uma renova-
ção da sistemática do delito, que acolhia também componentes fenomenológicos
e que alcançou seu apogeu nas décadas de sessenta e setenta, em luta aberta
contra o neokantismo, especialmente o de Mezger, engendrando largo debate41 •
Para o finalismo, o conceito de ação não se construía juridicamente, senão que
era ôntico-ontológico, ou seja, estava o direito penal vinculado ao plano da rea-
lidade por uma estrutura lógico-objetiva42 que lhe impunha um conceito de
ação humana centrado na finalidade, e que através da finalidade se distingue
de um mero processo causal. Uma ação assim concebida necessariamente tras-
ladava sua finalidade para o tipo, ensejando que dolo e culpa pudessem conside-
rar-se modalidades típicas, migrando da culpabilidade onde se homogeneizavam
pelo caráter normativo: com este movimento, a reprovação (culpabilidade) e seu
objeto (dolo ou culpa) não mais se confundiriam no mesmo estrato analítico do
delito. A sistemática finalista, a rigor, aprimorava sua antecessora valorativa, que
se alavancara pelo neokantismo, cumprindo melhor a tarefa de facilitação decisória

38
Weber, Hellmuth von, Zum Aujbau des Strafrechtssystems (trad. em Doctrina Jurídica, La
Piara, 1973); do mesmo, Grundriss des deutschen Strafrechts; Dohna, Alexander (Jrafzu,
Der Aujbau der Verbrechenslehre (trad. C. Fontán Balestra - Ed. Friker, La Estructura de
la Teoría dei Delito, B. Aires, 1958, ed. Ab.- Perrot).
39
Manteve-se fiel a ela Baumann, Jürgen.
4
° Cf. v. I, § 23, IV. Certa influência de Hartmann sobre Soler, observável em Las Pa/abras de
la Ley (pp. 33, 34 e 85 ss.), foi assinalada por Atienza, Manuel, La Filosofia dei Derecho,
pp. 98 ss.
41
. Para os trabalhos da época: Welzel, Hans, Das neue Bild des Strafrechtssystems - eine
finfa!inmg i'! di~fi.naie ffantllungslehre (trad. Cerezo Mir, El Nuevo Sistema de Derecho
Pena{~ una iniroducción'a Já doétrina de la acciónjinalista); do mesmo, Um diejinale
Hand/ungslehre; Mezger, Edmund, Moderne Wege der Strafrechtsdogmatik (trad. Mui\oz
Conde, Modernas Orientaciones de la Dogmáticajurídico-penal); do mesmo, em Fest.f
Ritt/er, pp. 119 ss.; Busch, Richard, Moderne Wandlungen der Verbrechenslehre; Niese,
Wemer, Finalitiit, Vorsatz und Fahr/iissigkeit; Meihofer, Werne,; Der Handlzmgsbegriff im
Verbrechenssystem; Rittler, Theodor, em Juristische Bliitter; Wolf, E.A., Der
Handlungsbegriffin der Lehre vom Verbrechen; Gallas, Wilhelm, la Teoría dei Delito en su
Momento Actual; Gallo, Marcelo, La teoria deli 'azione finalistica; Santamaría, Dario,
Prospettive dei conceitofinalistico di azione; Dannert, Gerhard, Diefinale Handlungslehre
Welze/s im Spiegel der italienischen Strafrechtsdogmatik; Rodríguez Muiioz, J. Arturo, La
doctrina de la acción finalista; Cerezo Mir, José, em AD PCP, 1959, pp. 561 ss.; Bustos
Ramirez, Juan, Culpa y Finalidad; Moreno Hemández, Moisés, Derfina/e Handlungsbegriff.
Luisi, Luiz, O Tipo Penal e a Teoria Finalista da Ação. Mais tarde, insistiu-se numa crítica
ideológica, em geral exagerada (cf. Frommel, Mon_ika, em ADPCP, 1989, pp. 621 ss).
42
Cf. V. I, § 23, IV, 8.

33
e favorecendo a seleção valorativa. O sistema de Welzel era fortemente orienta-
do por uma funcionalidade de fundo moral: o poder punitivo se legitimava porque
protegeria os valores elementares da vida em comunidade, desempenhando as-
sim uma função ético-social43. No último quartel do século XX a ortodoxia finalista
começou a ser abandonada, refutando-se mais drasticamente a teoria das estru-
turas lógico-objetivas que, se fosse convocada para o nível do poder punitivo em
geral e mais concretamente das penas, instauraria gravíssima crise no funciona-
lismo moral da construção welzeliana. Contudo, foi a partir dessa construção,
ainda que valendo-se de trilhas metodológicas distintas, que se desenvolveram as
novas teorias do último quarto de século44 • O autor que se manteve, e ainda se
mantém hoje, fiel ao finalismo welzeliano mais ortodoxo é Hirsch45 , que bem
poderia ser chamado de neojinalista por realizar, a partir do quadro teórico de
Welzel, a crítica do pós-finalismo e do funcionalismo sistêmico.

4. Muitos autores, constituindo a doutrina predominante em obras gerais


(Wessels, Jescheck, Bockelmann, Eser, Blei, Schõnke-Schrõder, Lenckner),
recusam o conceito finalista de ação e a teoria das estruturas lógico-objetivas,
porém admitem dolo e culpa como formas ou estruturas típicas. Embora tais
autores não assumam integralmente o esquema teórico do finalismo, adotam
sua principal conseqüência sistemática, sem embargo de que alguns deles
fracionem o dolo entre o tipo e a culpabilidade ou lhe concedam duplo
posicionamento. Há quem veja em tal doutrina predominante uma prorrogação
do neokantismo, invocando os antecedentes de Hellmuth von Weber ( 1929) e
do Conde Dohna ( 1935), mas outros a tomam como o resultado da síntese
proposta por Gallas em 195546• Para Roxin, seria uma síntese neoclássica-
jinalista47 • A rigor, essa doutrina exprime a construção de sistemas ecléticos
orientados praticamente, ou seja, com orientação classificatória ou funcionalista
limitada, preferentemente dirigida à facilitação da atividade judicial (decisão de
casos), já que, de modo geral, não se preocupam em comprometer a elabora-
ção ~ogmáti~a com uma visão geral das funções político-sociais do direito pe-
nal perante o poder punitivo. Convém acrescentar que este movimento ganhou
força - a exemplo do que ocorreria no Brasil após a reforma da Parte Geral de
1984 - a partir do código penal de 1974, ou seja, quando - depois de largo

43
Welzel, Das Deutsche Strafrecht, pp. I ss.
44
Sobre o desenvolvimento da dogmática européia desde meados do século XX, Hirsch, Hans
1., Derecho Penal, v. 1, pp. 13 ss.; Silva Sánchez, Jesús-Maria, Consideraciones sobre la
teoria dei delito, pp. 13 ss.; Vives Antón, Tomás S., Fundamentos, pp. 409 ss.; sobre eixos
centrais do debate, Hassemer, Winfried - Mufioz Conde, Francisco, La responsabilidad
por el producto, pp. 26 ss.
41
Hirsch, Hans Joachim, Derecho Penal.
46
Em ZStW, 1955, pp. 1 ss (trad. Córdoba Roda, La Teoria dei Delito en su Momento Actua/).
47
Op. cit., p. 193.

34
debate sobre o projeto oficial de 1962 e o alternativo de 196648 - as categorias
dogmáticas receberam em boa medida sanção legislativa, o que explica sua
funcionalidade para atender necessidades práticas reputadas urgentes. Sem
dúvida, prevalece nesses autores ecléticos uma metodologia construtiva
neokantiana, porém marcadamente positivista-jurídica, como corresponde ao
objetivo que se propõem. Certamente a existência de uma Constituição demo-
crática, a inserção da Alemanha na Convenção de Roma bem como na União
Européia e a sanção de uma legislação penal tecnicamente superior propiciam
que o positivismo jurídico produza frutos menos indigestos que os de sua habi-
tual linhagem49•

5. Em tomo da estrutura do tipo na sistemática finalista travou-se um


amplo debate sobre a natureza do injusto, especialmente manifestado na oposi-
ção entre o desvalor da ação e o desvalor do resultado. Welzel jamais re-
nunciou à inclusão do resultado no tipo objetivo, quer para o delito doloso, quer
para o culposo50 • Entretanto, preocupado em delimitar a tipicidade em função
do dolo e ancorado filosoficamente numa proposta causalista51 , Welzel não
aperfeiçoou muito os mecanismos teóricos de apropriação típica do resultado,
deixando a questão da causalidade quase no mesmo ponto em que a encontra-
ra, e deslocando alguns problemas de imputação para o âmbito de sua adequa-
ção social da conduta, que abrangia outras hipóteses de atípicidade. Ficaram
abertos, por isso, dois caminhos. a) Pelo primeiro, tais dificuldades serão trata-
das no tipo objetivo, através da teoria da imputação objetiva (é o caminho do
fancionalismo sistémico, que mencionaremos em seguida). b) Pelo segundo,
aquelas dificuldades serão superadas suprimindo-se do tipo o resultado, reduzi-
do assim a mera questão de punibilidade (é o caminho da corrente do puro
desva/or da ação, que, inicialmente enunciada nos crimes culposos - Armin
Kaufmann -, pretendeu transferir-se para o tipo doloso - Zielinski -, postulan-
do um conceito geral de delito que se identificaria com o delito tentado; parale-
lamente, experimentou-se um conceito geral de delito afeiçoado ao dos crimes
de perigo concreto - Horn-, mesmo em casos de nítidos crimes de resulta-
do) 52 • De modo geral, a teoria do puro desvalor da ação não teve prosélitos,

48
Cf. v. 1, § 17, III, 2.
49
Embora sem ênfase na relação com as nonnas constitucionais e internacionais, desenvolve
conceitos similares Schünemann, Bemd, E/ sistema moderno dei derecho penal: cuestiones
fundamentales, pp. 31 ss.; do mesmo em GA., 1995, pp. 203 ss.
so Op. cit., p. 52.
s, "A última manifestação filosófica da teoria clássica da causalidade é a doutrina de Nicolau
Hartmann" (Abbagnano, N., Dicionário de Filosofia, p. 120). O paradoxo de ser o finalismo...
causalista, em Batista, Nilo, Novas tendências do direito penal.
s2 Kaufmann, A.~ Fest. j Welzel, pp. 395 ss.; Zielinski, D., Handlungs-und Erfolgsunwert im
Unrechtsbegriff; Horn, E., Konkrete Gefahrdungsdelikte.

35
objetando-se-lhe, entre outras considerações, que se afasta da legislação vi-
gente53 , argumento totalmente cabível perante o Código Penal brasileiro, que
incorpora o resultado ao delito em inúmeras passagens (arts. 13, 15, 18 etc.).

6. A partir dos anos setenta, começou a ensaiar-se uma construção siste-


máticafimcional, ou seja, que comprometia os conceitos jurídico-penais com os
objetivos políticos da criminalização primária ou do sistema penal como um todo,
renunciando a deduzir tais conceitos da natureza ou de estruturas ônticas. Tal
corrente receberia uma forte influência do funcionalismo sistêmico sociológico,
embora numa interpretação peculiat. Seus autores, embora se afastem por
vezes consideravelmente de Welzel, reconhecem nele seu ponto de partida: Roxin
afi~a ~~e sua teoria~ um desenvolvimento_do n:iodel~ _sintético n~oclá5~sico-
finahsta , e Jakobs registra ter largado do func1onahsmo et1co do finalismo . São
estes dois seus mais distinguidos representantes, por terem exposto suas teorias
em obras gerais, embora existam importantes artigos e monografias sobre o tema.

7. A sistemática roxiniana reivindica o neokantismo dos anos trinta, subs-


tituindo contudo a orientação segundo as normas de cultura de Max Ernst
Mayer7, que considera imprecisa, por nítida orientação político-criminal se-
gundo a teoria dos fins da pena. Trata-se de um sistema que, na tradição de von
Liszt, pretende ver-se como racional conforme a fins (Zweckrationale). Men-
cionemos, sinteticamente, duas características próprias da sistemática de Roxin.
a) A mais notória reside em sua teoria da imputação no tipo objetivo, sobre a
qual nos deteremos oportunamente58. Afirma ele que, nas três sistemáticas
antecedentes, o tipo objetivo se reduz à mera causalidade, propondo uma cor-
reção que lhe agrega o requisito da produção ou incremento de um risco não
permitido dentro do âmbito tutelar da norma; à categoria científica, natural
ou lógica da causalidade acrescenta uma regra de trabalho orientada por valo-
res jurídicos. Suas raízes estão nos trabalho~ do ne~kantiano Ho~ig59 e do
neohegeliano Larenl'°, expressamente invo~~dos pqr ~qxiry61 '. ~), 1'- ~u\pab!fi-
dade, mantida como indeclinável condição de qualquer pena, passa a integrar a
• ' • ' • ~ •• ' • • • • • l ' • • '

n Jakobs, p. 203.
5' Cf. v. I, § 23, V.
55 Roxin, p. 155; sua crítica remonta a Zur Kritik der finalen Handlungslehre, em ZStW, 1962,

pp. 515 ss. (reproduzido em Strafrechtliche Grundlagenprobleme, pp. 73 ss.; trad. Luzón
Peiia, Problemas básicos dei derecho penal, Madri, 1976, ed. Reus, pp. 84 ss).
56 Jakobs, prólogo.

57
Deste autor, Rechtsnormen und Kulturnormen e Filosofia dei Derecho.
51 Cf. infra,§ 31, V.

59
Cf. Festgabe for Reinhard von Frank, I, pp. 174 ss.
60 Larenz, Karl, Hegels Zurechnungslehre.

61
Op. cit., p. 316.

36
categoria mais ampla da responsabilidade, que requer também a necessida-
de preventiva (geral e especial) da sanção penal, de tal sorte que culpabilidade
e necessidade preventiva se limitem reciprocamente, resultando assim ares-
ponsabilidade de seu efeito conjunto. Apesar de reconhecida a culpabilidade,
não haverá responsabilidade sem necessidade preventiva.

8. Jakobs radicaliza mais profundamente que Roxin a tendência construtiva


funcional sistêmica. Ao afirmar que nenhum conceito jurídico-penal - e não só a
ação e a culpabilidade - está vinculado a dados pré-jurídicos, e que todos eles se
constroem em função da tarefa do direito penal, promove completa inversão na
premissa de Welzel. Todo conceito do sistema submeter-se-á à insegurança de
depender do entendimento que se tenha acerca da tarefa do direito penal. Até o
conceito mesmo do sujeito ao qual se dirige o direito é elaborado a partir da tarefa
atribuída ao direito penal62. Jakobs não apenas nega a teoria das estruturas lógi-
co-objetivas, mas também propõe exatamente o contrário, ou seja, uma radical
norrnativização de toda a dogmática: estabelecendo-se os objetos da dogmática
pela tarefa do direito penal e não por sua essência (ou sua estrutura), isto
conduz a uma normativização ou renormativização dos conceitos. Desde
tal ponto de vista, um sujeito não é o que pode produzir ou impedir um
acontecimento, e sim aquele que pode ser competente para isto. Da mesma
forma, os conceitos de causalidade, poder, capacidade, culpabilidade e
outros perdem seu conteúdo pré-jurídico e tornam-se conceitos para níveis
de competência. Não oferecem ao direito penal nenhum modelo regulador,
mas são gerados na dependência das regras do direito penaf'3. A consequência
sistemática de sua elaboração é uma nítida separação quanto à construção do
objeto da culpabilidade e da própria culpabilidade, fundada em que o primeiro
consiste numa imputação objetiva baseada no risco desaprovado e em sua reali-
zação (que inclui o aspecto cognoscitivo do dolo) e a segunda se representa numa
imputação subjetiva (onde se situa o aspecto conativo do dolo). Ao atribuir uma
função puramente preventivo-geral à pena, seu conceito de culpabilidade resulta
mais original que o de Roxin, dependendo exclusivamente da demanda de pre-
venção geral positiva (de reforçar a confiança no direito) e não considerando a
possibilidade real do sujeito de poder fazer algo distinto, não-lesivo ou menos
lesivo. Frisou-se que sua posição significa um surpreendente renascimento
da teoria de construção de conceitos do neokantiano Lask, tão veemente-
mente combatida - e com êxito por cinco décadas - por We/zefl. De outro
lado, a sistemática baseada na dupla imputação (objetiva e subjetiva) é própria do
62
Sobre isto, cf. infra § 31, VI; sobre os riscos da nonnativização dos conceitos penais, por
todos, Creus, Carlos, em NDP, nº 1997-8, pp. 609 ss.
63
Jakobs, Günther, Lehrbuch. prólogo; no mesmo sentido em Sociedad, norma, persona.
64
Schünemann, op. cit., p. 70.

37
século XIX, tendo sido amplament~ desenvolvida pela escola toscana a partir de
Carmignani 65 •

9. Cabe observar que ambas as construções, que formulam sistemáticas


do delito a partir de funções atribuídas à pena (prevenção integrativa em
Roxin e prevenção geral positiva em Jakobs) no marco de concepções
sistêmicas da sociedade, importam metodologicamente um retomo ao idealis-
mo neokantiano, pois a construção conceituai conforme aos fins do direito pe-
nal é também característica do neokantismo. A originalidade desses autores
reside no alto grau de depuração e aprofundamento metodológico e na incorpo-
ração de perspectivas sociológicas antes desconsideradas (a sociologia
funcionalista norte-americana - Parsons, Merton - por Roxin) ou mais recen-
tes (o funcionalismo sistêmico alemão - Luhmann - por Jakobs) 66 •

l O. Observando-se a dinâmica histórica da teoria do delito ao longo do


século XX, aqui esboçada, pode-se constatar que as categorias do conceito
analítico de crime se fixaram em 1906, quando se ultimou o sistema Liszt-
Beling, e até hoje não variaram muito. É certo que houve uma série de iniciati-
vas de trocas de conteúdos e de deslocamentos topológicos entre as mesmas
categorias, em distintas épocas e contextos políticos, sob específicas influênci-
as metodológicas e ideológicas: de forma geral, contudo, foram oscilações em
tomo das quatro categorias básicas (ação, tipicidade, antijurídicidade e culpabi-
lidade). Resenhemos as mais importantes dessas tendências. a) A iniciativa de
suprimir a problemática da ação, considerando que a única ação relevante para
o direito penal é a ação típica, reduzindo assim o delito a um conceito que teria
por base a tipicidade67 • b) O esforço para refundir a tipicidade e a antijuridicidade
através da chamada teoria dos elementos negativos do tipo68 (para a qual as
causas de justificação excluem a tipicidade da conduta), ou através da versão
mais moderada do tipo de injusto69 • e) Considerar a imputabilidade como
pressuposto da culpabilidade, o que era de rigor na sistemática de Liszt-Beling,
mas só excepcionalmente se mantém depois da generalização da teoria normativa
da culpabilidade70 .• d) Tomar as condições objetivas de punibilidade, ou mesmo
a própria punibilidade, como características do delito ou então, fora dele, como
parte da teoria das conseqüências jurídicas do delito (teoria da pena).

u Cf. V. I, § 20.
66
Cf. v. I, § 23, V.
67
Gallas, op. cit.; Schmidhauser, Eb., p. 110; do mesmo, em NPP, 1975, pp. 33 ss.; em sentido
análogo os trabalhos de Roxin anteriores a seu Lehrbuch.
61
Cf. von Weber, Hellmuth, Grundriss.
69
Cf. Mezger, Tratado, l, pp. 363 ss.
7
°Cf. Goldschmidt, James, em Fest. f Frank, I, pp. 428 ss.
38
11. Muito mais rico e complexo foi o que se passou no conteúdo de cada
uma dessas quatro categorias ou características do delito e, conseqüentemente,
em seus relacionamentos recíprocos. As fonnulações contemporâneas, ou seja,
aquelas ecléticas e as funcionalistas, mantêm-se dentro das quatro categorias
estabelecidas no início do século XX (salvo em algumas tendências ecléticas que
insistem numa certa comistão entre tipicidade e antijuridicidade), porém dissen-
tem abertamente quanto a seu conteúdo. Isto se deve ao fato de manterem-se os
ecléticos em posições teóricas construídas funcionalmente de modo pouco claro,
referindo-se a fins da pena intuitivos e freqüentemente desconsiderados em eta-
pas da elaboração sistemática, produzindo assim alguma incoerência, enquanto
que os funcionalistas são mais rigorosos e procuram modernizar as incumbências
do poder punitivo e do direito penal incorporando fundamentos sociológicos, atra-
vés das teorias funcionalistas. De qualquer modo, há um denominador comum
para essas tendências contemporâneas, ecléticas ou funcionalistas, que é apre-
tensão de livrarem-se de dados ônticos. Mesmo o pós-finalismo, quando preten-
deu excluir o resultado do tipo, abandonou a teoria das estruturas lógico-objetivas.
Observou-se que um construto teórico assim produzido perde segurança, pela
dependência que se instaura com respeito a cada direito positivo. Na verdade, a
sistemática neokantiana sempre foi funcional, e sua insegurança provinha das
divergências de cada autor quanto às tarefas atribuídas ao poder punitivo. Mes-
mo o empreendimento finalista não deixou de ser funcional, pois Welzel elaborou
todo o seu sistema na perspectiva de um direito penal que teria a função ético-
social de proteger valores elementares da vida em comunidade.

VI. Notas históricas sobre a teoria do delito no Brasil


l. A primeira dificuldade metodológica dos penalistas do Império para
fonnular uma estruturação conceituai do delito estava em seu apego à defini-
ção legal que o Código Criminal de 1830 oferecia71 • Sobre tal definição, ensina-
va Braz Florentino em 1860, "é que devem recair nossas observações"72 ,
afiançando Thomaz Alves Junior, quatro anos depois, que "não encontramos
em nenhum escriptor, desde Beccaria até os mais modernos e recentes, defini-
ção que se prefira à do Código"73 . Daquele enunciado legal conseguiriam eles
extrair um modelo conceituai objetivo-subjetivo, segundo o qual o delito se

71
Art. 2°. Julgar-se-ha crime ou delicto: § 1° Toda a acção ou omissão voluntaria contraria às leis
penais; (o§ 2° se referia à tentativa).
72
Lições de Direito Criminal, p. 22.
73
Annotações Theoricas e Praticas ao Código Criminal, p. 144. Também Camargo, comentando
o art. 2°, § 1° do Código, dirá que "nenhuma definição (é) melhor que a deli e" (Direito Penal
Brazileiro, v. II, p. 22).

39
integraria por um "elemento material, que nos é indicado pelas palavras ação
ou omissão( ... ) e o elemento moral indicado pelo adjetivo qualificativo volun-
tário"14 • No elemento material residiria o requisito básico da conduta, mani-
festada por "actos exteriores", "actos do mundo extemo"75 • Contudo - e daí
proviria nova dificuldade metodológica - alguns penalistas tomavam o elemen-
to moral no sentido de uma negatividade ética substancial. Assim, Paula Pes-
soa postulava "dupla condição" para a "criminalidade das ações humanas":
uma "perturbação exterior à ordem social" e "ao mesmo tempo uma infração à
lei moral" 76 • Tal posição, de um lado, conduzia a muitas contradições77 , e de
outro gerava conceitos analítico-materiais do delito, como o de Vieira de Araú-
jo: "o crime é uma ação antijurídica e anti-social que infringe preceitos éticos
especiais" 78 • Tobias Barreto opunha à definição legal, que possuiria "natureza
formal", um "conceito material" de delito, constituído por dois elementos: "uma
agressão contra as condições vitais da sociedade" e a necessidade social de
reação "por meio da pena" 79 • A ação era por ele definida como "um facto de
percepção sensível, que entre nos domínios do mundo exterior"; tal ação (que

74
Braz Florentino, op. cit., p. 23. Pela mesma linha, invocando Carrara, Camargo afinnaria
que "todo delicio se compõe de dous elementos, o material ou physico (movimento do
corpo, actos exteriores), sem o qual a infração da lei não é possível, e o intellectual ou moral
(desígnio criminoso, intenção), sem o qual a violação material do direito será um facto
infeliz, mas não crime" (loc. cit.). Em seu estudo sobre cumplicidade punível sem autoria
responsável, Graciliano de Paula Baptista assinalava que "dous são os elementos
constitutivos do crime, a saber: um facto physico ou material(...), outro moral ou intenci-
onal" (em O Direito, v. 23, 1880, ano VIII, p. 521).
" A primeira expressão é de Camargo (loc. cit. ), a segunda de Thomaz Alves Júnior (op. cit.,
p. 72). Talvez a primeira fonnulação brasileira do princípio da lesividade tenha sido a
setecentista de Tomás Antônio Gonzaga: como os homens, ao contrário de Deus, não
podem conhecer o interior dos outros, "só poderão imputar as (ações) externas, as quais só
ficarão sujeitas ao conhecimento humano" (Tratado de Direito Natural, em Obras Comple-
tas, Rio, 1957, ed. INL, v. II, p. 60). Se Veríssimo considerou que Gonzaga, como poeta, era
brasileiro - apesar de nascido em Portugal - cabe entendimento similar sobre o jurista.
76
Código Criminal do Império do Brazil, p. 14. Por essa mesma linha, Vieira de Araújo entendia
que a criminalização primária não é feita "arbitrariamente", e sim pelo reconhecimento "como
crimes de factos que por sua natureza devem entrarem semelhante categoria" (Código Crimi-
nal Brasileiro -Commentario, p. 4 ). Vieira de Araújo conhecia e apreciava Garofalo.
77
Em suas Annotações Theoricas e Praticas, Thomaz Alves Júnior afinnava peremptoriamen-
te que ··a moral não se confunde com o direito" (p. 72), o que não o impediu de registrar que
um dos fins da pena é a "correção moral" (p. 82), nem de proclamar que "não
comprehendemos direito que não seja moral" (p. 144)!
71
Op. cit., p. 83.
79
Estudos de Direito, pp. 71 e 72. Sua finne convicção sobre o caráter político da criminalização
primária impediu que Tobias caísse em tentações eticizantes: "o pretendido elemento éthico
da pena, de que tanto fabulam sobretudo os criminalistas franceses, se aí aparece, é somente
naquela dose em que ele se fazia sentir, há alguns anos, ao suppliciarem-se os homens da
communa, isto é, em dose nenhuma" (op. cit., p. 176).

40
no delictum proprium desloca para "o predicado funcional do autor o momen-
to essencial da criminalidade") se dirige contra um "objeto prático" (expressão
que na teoria de Tobias equivale a bem jurídico, já que o objeto jurídico ou
"jurístico" do crime seria sempre a ordem jurídica) e introduz a questão da
"imputação do resultado", resolvida através de um nexo causal entendido
normativamente (alguma vez sob "o nome particular de responsabilidade") o
qual, no âmbito da omissão do texto fundacional de 1879, Tobias esmiuçou
debatendo com Feuerbach, von Buri, von Bar, Luden e Glaser8°.

2. Os penalistas do Império não encontraram, na obra de colegas que


trabalhavam o direito privado, orientações que permitissem superar este mo-
delo construtivo classificatório. Teixeira de Freitas invocava Leibnitz e Bentham
para remarcar a importância da classificação, que se deriva "das diferenças
e conformidades", valendo-se do "imprescindível processo da divisão
dichotômica, instrumento único não de arte bruta, mas da arte-sciencia"81 • O
Conselheiro Ribas registrava que, perante as legislações modernas, que de-
vem atender a "um número quasi infinito da hypotheses", a solução das ques-
tões supõe "a combinação de muitos textos" e "induções mais ou menos
longas"; para ele, a dogmática integrava, ao lado da filosofia e da história
do direito, a jurisprudência, consistindo no entanto apenas no "conhecimen-
to do direito realmente existente em certa nação, e do verdadeiro sentido de
seus textos"82 • Tanto Teixeira de Freitas quanto o Conselheiro Ribas conhe-
ciam Savigny, não porém seu texto propriamente metodológico. Uma consi-
deração especial merecem os escritos sobre a propriedade escravista, cujo
estratégico relevo econômico conduzia a um peculiar esforço de sistematiza-
ção, dificultado pela ausência de Código Negro, o que obrigava o jurista a
partir do multifário manancial das fontes romanas, controladas pela "boa ra-
zão", pela Constituição de 1824 e pelo espírito das "leis modemas"83 • Entre-
tanto, nossos penalistas transcreviam a lição de Ortolan ("toda classificação

80
Op. cit., pp. 115 e 116, 11 Oe 111, 157, 118, 186 ss. e passim. Sobre este importantíssimo
estudo, cf. Heitor Costa Júnior, A Teoria da Omissão no Pensamento Jurídico-penal de
Tobias Barreto.
81
Consolidação, v. 1, pp. XXXIX e XLIX.
82
Ribas, Antonio Joaquim, Curso de Direito Civil Brasileiro, pp. 27 e 28.
83
Cf. a obra fundamental de Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil, especialmente o
capítulo III, O escravo ante a lei civil e fiscal (v. I, pp. 53 ss.). Cf. também o artigo de
Caetano Augusto da Gama Cerqueira sobre ofurtum possessionis de escravo (em O Direito,
v. 26, 1881, ano IX, pp. 513 ss.), ou a demonstração sistemática de que alforria não é
doação, empreendida por Antonio Joaquim de Macedo Soares (em O Direito, v. 14, 1877,
ano V, pp. 592 ss). Este Macedo Soares (teremos pela frente Oscar de Macedo Soares
comentando o CP 1890) foi o primeiro brasileiro a questionar, num artigo de inspiração
positivista, a natureza agravante da reincidência: "Casos há, com effeito, que essa circuns-
tância deve-se antes considerar attenuante" (em O Direito, v. 55, ano XIX, 1891, p. 530).

41
é uma operação de ordem" 84 ) e faziam deste instrumento limitado e limitador
seu eixo metodológico. Mesmo Tobias - que ressalvava, olhando para a clas-
sificação dos ramos do direito, que tal análise ainda esperava uma "synthese
ulterior" - não negligenciava trabalhar sobre as "antitheses inherentes ao
conceito do delito"85 • Tobias conhecia lhering, e portanto sua pretensão de
aplicar à jurisprudência superior o método da história natural: o caminho
taxinômico não lhe podia parecer estranho ou restrito. Também conhecia
Ihering o talentoso, e pouco recordado, Eduardo Durão, esforçando-se por
exemplo para sistematizar os crimes preterintencionais, e polemizando com a
ligeireza de certos comentadores 86•

3. Por razões já mencionadas87, o positivismo criminológico vive seu apo-


geu entre nós a partir da abolição da escravatura e da proclamação da República.
Isto implicará em relativo desinteresse pela investigação jurídica de um conceito
analítico do delito, recalcada pelas vitoriosas teorias sobre um delinqüente cuja
inferioridade biológica o determina ao cometimento de um delito... natural88 • Para
sua desmerecida tarefa de formulação conceituai jurídica do crime, disporão os
penalistas da primeira República de duas contribuições importantes: a) a nova
definição legal aportada pelo Código Penal de 189089 ; b) a tradução do Tratado

M Assim Camargo, op. cit., v. I, p. 227, e Thomaz Alves Junior, op. cit., v. I, p. 70. Cf. Ortolan,
Éléments de Droit Pénal, t. I, pp. 9 e 253.
15
Estudos de Direito, pp. 36 e 118.
16
Eduardo Teixeira de Carvalho Durão, em O Direito, v. 56, 1891 , ano XIX, pp. 5 ss (para os
crimes preterintencionais). "Paula Pessoa é um simples annotador, que não tem princípios
nem critério jurídico" (idem, v. 55, 1891, ano XIX, p. 71 ). Neste último texto, Durão-que
às vezes publicava sob o pseudônimo Solus - afirma que "o dolo especifico da injúria( ...)
pertence à sua essência de facto e não se deve confundir com o dolo geral" (p. 67).
17
Cf. v. 1, § 18, III, 2.
11
Em São Paulo, um lustro após o lançamento europeu de As Regras do Método Sociológico,
Paulo Egydio contesta Durkheim: o crime é, claro, uma anormalidade (Estudos de Sociolo-
gia Criminal). No Rio, onde circulavam os livros de Féré sobre Degenerescência e
Criminalidade e de Lombroso e Ferrero sobre A Mulher Delinqüente (no qual se tentava
demonstrar, com base em dados manicomiais italianos de 1888, que a histeria é feminina, e
que as histéricas cometem furtos e incêndios no período menstrual - pp. 430 ss), Viveiros
de Castro prestava seu depoimento pessoal sobre a inferioridade da mulher, "frívola e
ociosa, incapaz, na regra geral, de um pensamento profundo, de uma ação heróica": em seus
seis anos de promotor público, jamais vira uma mulher acusada de falsidade ou estelionato,
delitos que implicam "reflexões acuradas", incompatíveis com "a estreiteza de sua inteli-
gência" (A Nova Escola Penal, p. 205). Houve, contudo, autores que, a despeito dos limites
metodológicos do positivismo, produziram trabalhos interessantes: na República Velha,
que começa a especializar a institucionalização de "menores" abandonados ou infratores,
informações sobre tribunais juvenis europeus e norte-americanos poderiam ser obtidas em
Criminalidade da Infância e da Adolescência, de Evaristo de Moraes - quanto futuro neste
título! Um amplo estudo da influência positivista sobre o pensamento penalístico dessa
conjuntura em A.P. Freitas, Ricardo de Brito, As Razões do Positivismo Penal no Brasil.
19
Art. 7°. Crime é a violação imputável e culposa da lei penal.

42
de von Liszt, por José Hygino, publicada em 18999(). A nova definição legal não
contemplava o requisito básico da conduta, que no entanto subsistia, deslocado
para dispositivos sobre impunibilidade dos atos preparatórios (com expressa men-
ção a "actos exteriores" - art. 1O) e sobre integração do resultado nos crimes
materiais (art. 11 ). A expressão "violação imputável e culposa" (culposa no
sentido de culpável) originou mal-entendidos. Macedo Soares associava a vox
"imputável" à imputabilidade, vendo nela uma redundância,já que "a culpabilida-
de comprehende a imputabilidade"91 ; na mesma linha, Costa e Silva afirmava
que "a culpa (no sentido de culpabilidade) pressupõe a imputabilidade", e portan-
to "bastaria" definir o crime como "violação culposa da lei penal"92 • Galdino
Siqueira, acertadamente, vinculou o adjetivo imputável à imputação do fato: para
ele, por "violação imputável quis o legislador se referir à ação ou omissão atribu-
ível a um indivíduo"93. A tradução do Tratado de von Liszt foi precedida por um
notável prefácio de José Hygino, do qual convém destacar uma passagem com
sabor de convocação metodológica: após o Código imperial alemão de 1871, es-
creveu ele, os "dogmáticos entregaram-se com ardor ao trabalho de systematizar
o direito penal(... ) de construir o direito, isto é, fazer a exegese dos artigos do
Código, inferir de suas disposições as idéias e princípios superiores, coordená-los
em um systema organico, e dar assim regras geraes e fundamentaes à practica
judiciaria"94• Se omitirmos as iluminações de Tobias Barreto, terá sido esta pas-
sagem o primeiro-e precário- resumo brasileiro do procedimento metodológico
da dogmática jurídico-penal, diretamente referido à função pragmática de orien-
tar "a prática judiciária" (decidibilidade). Quanto à tradução em si, cabem duas
observações. Em primeiro lugar, José Hygino procurou adaptar a linguagem teó-
rica lisztiana às opções da linguagem legal brasileira. O crime não era, segundo o
artigo 7° de nosso código, violação imputável e culposa da lei penal? Então essa
violação da lei sugere que "das Verbrechen ais rechtswidrige Handlung" se
traduza por "o crime como ação illegaf' (e não antijurídica ou ilícita), bem como
"rechtswidrigkeit" por "illegalidade" (e não antijuridicidade ou ilicitude); da
mesma forma, essa violação culposa sugerirá que "das Verbrechen ais
schuldhafte Handlung" se traduza por "o crime como ação culposa" (e não
culpável), etc.95 • Em segundo lugar, note-se que a tradução, que terá uma influên-
cia decisiva na fundação da dogmática brasileira, foi empreendida sobre a sétima
edição, e publicada em 1899: é um Liszt ainda sem Beling, cuja obra - com a

90
Tratado de Direito Penal Alemão, 2 vols.
91
Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, p. 26.
92
Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, p. 48.
93
Direito Penal Brazileiro, Rio, 1932, ed. Jacyntho, v. I, p. 151 . Curiosamente, linhas abaixo
Galdino repetirá a crítica de seus colegas.
94
Tratado, cit., v. I, prefácio, p. XXXI.
95
Tratado, cit., v. I, pp. 219 ss. e 249 ss.

43
provavelmente única exceção de Costa e Silva96 - os penalistas brasileiros só
conhecerão a partir da tradução de parte dela por Soler, em 194497 .

4. Para "dar regras geraes e fundamentaes à practica judiciária", como


dizia José Hygino, uma teoria do delito, à imagem e semelhança da européia,
começava a vicejar em certos núcleos teóricos úberes, como os da tentativa e
desistência, da autoria e participação, da causalidade da omissão, das situações
justificativas da conduta, etc. O conceito jurídico do crime, entretanto, continu-
ava submetido a um modelo objetivo-subjetivo. No seu muito consultado
Diccionario de Direito Penal, Moura Romeiro declinava em 1905 os "ele-
mentos constitutivos do crime - o elemento material, que consiste na ação ou
omissão, e o elemento moral, que consiste na inteligência e vontade"98 • Um
lustro depois, Macedo Soares refinaria a estruturação binária: "o elemento
material (ou objetivo) constituído pelo facto( ... ) o elemento moral (ou subjeti-
vo) constituído pelo dolo ou pela culpa"99• A palavra facto (o velho fac tum de
Bohemero!), empregada na formulação do princípio da reserva legal, ocupou
os penalistas da República velha. A mão de Macedo Soares roçagou o fruto
desconhecido da tipicidade: largou-o, tomando-o por imprestável
"circunlóquio" 100! Para Costa e Silva, o legislador quisera, empregando a pala-
vra facto, "designar a ação com todos os seus elementos - a vontade, o movi-
mento corpóreo e o resultado - o todo como todo" 1º1• Galdino não gostava do
termo; para ele, sob direta influência de Liszt,factos implicavam "mudanças
do mundo exterior apreciáveis pelos sentidos", que provindos "de causas
physicas" se chamam "acontecimentos", mas provindas "da vontade huma-
na" se chamam "ações". Embora "menos extensiva" que facto, a palavra acção
seria preferível, já que o direito penal não se interessa pelos acontecimentos.

96
Em 1930, Costa e Silva consultava e citava três trabalhos de Beling: Die Lehre von Verbrechen,
Tubinga, 1906; Grundzüge des Strafrechts, Tubinga, 1919; e Methodik der Gesetzgebung
insbesondere der Strafgesetzgebung, Berlim, 1922 (Código Penal, cit., p. 455).
91
Esquema de Derecho Penal - La Doctrina dei Delito-tipo, B. Aires, 1944, ed. Depalma.
Sobre Beling, cf. o recente estudo doutoral de Cardenal Motraveta, EI tipo penal en Beling
y los neokantianos.
91
Diccionario, p. 84.
99 Código Penal da República, cit., pp. 26 e 27. A palavra facto constava do art. 1° CP 1890:
Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido anteriormente qualificado crime,
e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas.
100
"Confrontando-se os dois dispositivos (arts. 1º e 7°) verifica-se que não há crime sem a
existência de um facto resultante de uma acção e esta só é criminosa quando consiste na
violação imputável (dolosa ou culposa) da lei penal. Ora, sendo a violação a acção e dela
resultando o facto; se crime é o facto assim qual ificado; se crime é a acção (violação da lei
penal) assim definida, verifica-se um circunlóquio que não se encontrava no texto claro e
simples do código de 1830" (op. cit., p. 27).
101
Código Penal, cit., p. 4.

44
Na seqüência, Galdino recorria ainda a von Liszt para frisar que "a ação é o
facto que repousa sobre a vontade humana", e finalmente bradar que "sem ato
de vontade não há acção, não há injusto, não há crime" - e foi assim que a
expressão injusto, em sentido substantivo, foi empregada pela primeira vez por
um penalista brasileiroio2 . Podemos tentar urna síntese do pensamento predo-
minante. A base conceituai (conduta) é requisitada por todos os autores, se-
gundo urna concepção positivista-naturalista que encontrara no acessível von
Liszt o grande formulador: urna ação impulsionada pela vontade e realizada
corno movimento corporal que causa um resultado, uma alteração no mundo
exterior (facto). Também a illegalidade (antijurídicidade) da ação é reconhe-
cida: para Galdino, "o que completa o ser do delicto é a contradição desses
elementos com a lei jurídica"103 . Finalmente, a culpabilidade (extraída da ex-
pressão culposa do art. 7º CP 1890) se reconhecia como chave da classifica-
ção entre delitos dolosos e culposos 104 , algumas vezes vínculo da imputação
jurídica105 , outras impregnada de precoces aromas normativistas 106• Um facto
illegal e culposo seria, observada a linguagem da época, o conceito analítico
de crime daquela conjuntura. Quando um autor procurava arrolar os "elemen-
tos essenciaes genericos do crime", como Galdino, devia fracionar aqueles
integrantes do facto: a) o sujeito ativo; b) o sujeito passivo; c) o objeto do crime
( material e jurídico); d) a ação ou omissão (compreendendo a causação ou não
impedimento do resultado); e) a imputabilidade (no sentido de capacidade de
culpa); f) a culpabilidade107 • Algo similar se dava no estudo dos crimes em
espécie. Tomemos, por exemplo, Vieira de Araújo debruçado sobre o cárcere
privado ( art. 181 CP 1890). Segundo ele, tal delito seria constituído por três
elementos: "1°) um facto de arrestação, detenção ou seqüestro" (que anterior-
mente ele já caracterizara pelas modalidades da abductio de loco ad locum
ou per obsidionem ); "2°) a illegalidade do facto" (que não ocorreria "se se
tratar duma arrestação de um indivíduo em flagrante delicto"); "3º) o dolo es-

102
Direito Penal Brazileiro, cit., v. I, pp. 38 e 39. A distinção entre fatos, acontecimentos e
ações humanas foi extraída de Liszt (Tratado, v. I, p. 193); na mesma página, o uso
substantivado da expressão injusto, portanto opção do tradutor José Hygino; até mesmo a
frase "sem ato de vontade não há ação, não há injusto, não há crime", que Galdino reprodu-
ziu sem aspas, é de Liszt/Hygino.
103
Op. cit., p. 148.
104
Assim Costa e Silva, op. cit., p. 52; Moura Romeiro, op. cit., p. 87.
105
Macedo Soares, op. cit., p. 26 (tornando imputabilidade e responsabilidade termos
"eqüipolentes").
106
"A culpabilidade denota a falta mais ou menos grave do dever ou da obrigação por parte do
agente na acção a elle imputada" - Galdino, op. cit., p. 151.
107
Op. cit., pp. 152-153. Como se vê, Galdino nesta passagem confere à imputabilidade
autonomia perante a culpabilidade, e simplesmente omite a antijuridicidade (illegalidade),
apesar de mencionar a violação da norma ao tratar do objeto jurídico.

45
pecífico" (ausente nos castigos moderados de "pais, mestres e semelhantes",
ou no encarceramento ministrado pelos "incumbidos da guarda dos loucos") 108•
Aí podemos vislumbrar, com maior clareza, um conceito de crime como facto
il/egal e culposo. Fomos modorrentos em incorporar, eduzido da política cri-
minal liberal (positivista-legal)-mais especificamente, do princípio da legalida-
de - um utensílio conceituai interessado na constatação de que o "facto (. ..)
tenha sido anteriormente qualificado crime" (art. 1° CP 1890). Para aquela
"practica judiciaria", inteiramente submetida aos preconceitos raciais e de gê-
nero do positivismo criminológico na concreta seletividade que a marcou 109,
"regras geraes" que restringissem o arbítrio das agências seriam muito mal
recebidas. Tardamos muito a receber as categorias de tipo e tipicidade. Em
1941, Oscar Stevenson, livre-docente da USP e da então Universidade do Bra-
sil, via no delito a "tríplice característica de ser penalmente ilícito, culpável e
punível" 11º; em 1943, Costa e Silva resumirá o pensamento de Beling em "crime
é o fato típico" - para, após transcrever opinião de von Hippel segundo a qual a
teoria da tipicidade "não é desacertada (unrichtig) mas supérflua", concluir "tam-
bém assim nos parece" 111 ; em 1974, na sua obra póstuma, Salgado Martins ainda
definiria o delito como "a ação antijurídica e culpável" 112.

5. Em seu possível intercâmbio com os colegas do direito privado, da


filosofia ou da metodologia do direito, não receberiam os penalistas da pri-
meira República adminículos para superar o modelo construtivo classificatório,
condicionado por um estado legal de direito permanentemente atravessado
por intermináveis estados de sítio. Sobre o apreço dos civilistas pelo procedi-
mento taxinômico, basta-nos ler o que Clovis Bevilacqua escreveu acerca da
classificação dos direitos: "operações lógicas impostas pela necessidade da
ordem" que "contribuem poderosamente para a clareza das idéias" 113 • Sobre
a comedida influência de princípios constitucionais, ou ainda sobre a
inexistência de controle de constitucionalidade, será suficiente recordar que
para Pedro Lessa uma das características do Poder Judiciário estava em que
"só se pronuncia acerca de casos particulares, e não em abstrato sobre nor-
mas ou preceitos jurídicos, e ainda menos sobre princípios" 114. Em suas au-
las, Lima Drummond explicava a modesta relação do direito penal com o

101
O Código Penal Interpretado, v. 1, p. 1O1.
109
Cf. v. I, § 18, III, 2, 4 e 9.
110
Da Exclusão do Crime, p. 63.
111
Comentários, pp. 48 e 49; para ele, crime é ação culposa (no sentido de culpável) e antijurídica.
112
Direito Penal, p. 130.
m Teoria Geral do Direito Civil, p. 60.
11
' Do Poder Judiciário, p. 1. A Corte Suprema seria simples "intérprete do direito constituci-
onal" (p. 4 ).

46
direito constitucional ("porque a cada passo precisamos invocar os preceitos
da Constituição para resolver certas questões"), exemplificando com "o caso
Varella", no qual "houve necessidade de harmonizar o artigo 134 do Código
Penal (desacato à autoridade) com o artigo 20 da Constituição Federal (imu-
nidades parlamentares)" 115. (Na contra-mão desse entendimento, Costa e
Silva inutilmente sustentava que "os juízes têm o direito de lhes [às leis pe-
nais] negar applicação, nos casos concretos, quando ellas se achem em evi-
dente antagonismo com a lei fundamental" 116.) Um arraigado empirismo
jurídico assinala os ensaios filosóficos de Pedro Lessa, em 1911 117, e o expe-
rimento metodológico de Pontes de Miranda, em 1922 118• Para Pedro Lessa,
a dogmática jurídica é uma arte - ou, talvez melhor, uma meta-arte (ele usa a
expressão "explanação de uma arte") - na qual, "partindo dos princípios, o
expositor vai descendo logicamente às normas jurídicas, filiadas a esses princí-
pios", realizando-se como "sistema", como uma "síntese" que reconstitui o
objeto decomposto pela anterior análise (exegese)"; não se deve confundi-la
com a ciência do direito, da qual não obstante costuma a dogmática receber
"algumas verdades gerais, induzidas da observação dos fatos sociais"119• Para
Pontes, a crise "gnosiológica e moral" da ciência do direito proviria de pre-
tender-se "fosse dedutiva uma ciência social, quando indutiva é a sociologia";
para "extrair da vida, do real, o Direito", afastando-o da metafisica, "só há um
processo eficaz: o método indutivo", que permite "direta investigação das rela-
ções sociais" 12º. Pedro Lessa acrescentaria à função de favorecer a atividade
judicial (solução de casos, decidibilidade),já assinalada por José Hygino ("dar
regras geraes e fundamentaes à practica judiciária") a função de adestramento
(ensino jurídico), mencionando explicitamente um "fim didático da dogmática
jurídica" 121 • Pontes, assinalando que "o perigo do método sistemático, constru-
tivo, é descambar para as abstrações", advertia para o conformismo do 'jurista
prático" de "se satisfazer com critérios que resolvem bem os casos" 122 • De
fato, essas funções pragmáticas tradicionais (adestramento e decidibilidade)
são eminentemente reprodutoras do saber e do ordenamento jurídico; quando
pioneiramente Pontes tratou de "segurançajuridica", no sentido de previsibilidade
acerca de soluções eqüitativamente semelhantes nos casos particulares123 ,

115
Cf. Vianna, Paulo Domingues, Direito Criminal, aulas do Des. Lima Drummond, pp. 19 e 20.
116
Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, p. 4. •
117
Estudos de Filosofia do Direito. •
118
Sistema de Ciência Positiva do Direito.
119
Estudos de Filosofia, cit., pp. 18 ss. e 57 ss.
120
Sistema de Ciência, cit., v. I, pp. 69 e 94.
121
Estudos, cit., p. 19.
122
Sistema, cit., v. IV, pp. 4 e 5.
123
Sistema, cit., v. IV, pp. 193 ss.

47
remarcava uma nova função, de natureza política, para a dogmática 124. A
mais influente reflexão jusfilosófica ~rasileira da conjuntura, que florescerá
como teoria tridimensional do direito, situa a dogmática - enquanto procedi-
mento integrado por "três momentos lógicos de interpretação, construção e
sistematização de normas" - como "estudo da normatividade jurídica em
unidade sistemática" 125 • O tridimensionalismo realeano pouco repercutiria na
teoria do delito 126•

6. O direito penal brasileiro que se constrói no entorno e depois do Código


Penal de 1940 será sucessivamente marcado por três grandes influxos
metodológicos: o tecnicismo jurídico, o neokantismo e o ontologismo de raiz
finalista. a) Ter sido o código Rocco o principal modelo do Código Penal de
1940 implicou a importação entusiástica da proposta metodológica do tecnicismo
jurídico, que reagia ao que Amuo Rocco, na famosa conferência de 191 O, cha-
mara de "fracasso do positivismo"127, e que hoje podemos compreender como
uma "troca de positivismos" ( do criminológico para o legal). Para Rocco, o
único objeto da ciência jurídica consiste no "direito positivo vigente", e a inves-
tigação jurídica se restringe a três procedimentos: a exegese, a dogmática ou
sistemática e a crítica 128 • Em 1942, Hungria profere em São Paulo uma confe-
rência que foi como um manifesto do tecnicismo jurídico, matizado por leves
tinturas neokantistas e temperado por ácida crítica a Kelsen: de qualquer for-
ma, ele só admitia uma "filosofia penal" e uma "política criminal" quando elas
"aglutinam-se (ao direito positivo) num bloco único", pois fora desta continuida-
de neutralizante passariam a constituir "teorias extrajurídicas, devaneios filosó-
ficos" 129 • A mesma perspectiva encontramos na aula inaugural de Oscar
Stevenson, do ano letivo de 1943, na Faculdade Nacional de Direito 130, em
cujas salas, em 1950, Madureira de Pinho - ressalvando que o estudo do delin-

124 Sobre tal função, de ângulos opostos, cf. Vera Regina Pereira de Andrade, A Ilusão de
Segurança Jurídica e Gimbemat Ordeig, Tiene unfuturo la dogmáticajuridicopenal? em
Estúdios de Derecho Penal. • •
12 s Miguel Reale, Filosofia do Direito, v. 2°, p. 578.

126 Pontualmente, contribuiu para a teoria da antijuridicidade (cf. Reale Jr., Miguel,

Antijurídicidade Concreta, pp. 25 ss. e Teoria do Delito, pp. 30 ss.) e para o conceito
eclético de conduta de Paulo José da Costa Jr. (Comentários, v. I, p. 44). Tampouco aquilo
que Miguel Reale chamou de "tridimensionalismo estático" (Filosofia, cit., v. 2°, p. 535) de
Wilhelm Sauer repercutiria muito (e, neste caso, com os perigos resultantes da adesão dele
a certos postulados de Kiel), apesar da tradução espanhola de 1956 circular entre nós.
127 E/ Problema y e/ Método de la Ciencia dei Derecho Penal, p. 6.
121
Op. cit., pp. 8 e 18 ss.
129 Introdução à Ciência Penal, em Novas Questões Jurídico-penais, pp. 3 ss. É nesse texto que

Hungria nega haver entre direito penal e criminologia qualquer "afinidade ou relação neces-
sária" (p. 4).
130
O método jurídico na ciência penal (onde, no entanto, Stevenson incorpora Mezger).

48
qüente era encargo das ciências naturais - invocava "o maravilhoso discurso
de Arturo Rocco" para ensinar que "o objeto único do estudo do direito penal
será o conjunto de normas do direito positivo vigente em um determinado país,
num dado momento histórico", carecendo "de justificativa as indagações de
caráter filosófico": "a lei, unicamente a lei, deve ser objeto das cogitações do
jurista"131 • A tal compromisso metodológico correspondia uma teoria do delito
causal-naturalista, na linha do sistema Liszt-Beling 132, que podemos observar
na versão exemplar do Hungria dos Comentários: a ação é um "voluntário
movimento corpóreo" que produz um "resultado (effectum sce/eris)" que re-
presenta "uma alteração no mundo externo"; "a tipicidade é um indício da
injuridicidade"; só "na órbita do direito positivo" pode encontrar-se a justifica-
ção de um fato típico, e a culpabilidade constitui "uma relação subjetiva ou de
causalidade psíquica vinculando o ato ao agente" 133 • Tais noções tiveram acei-
tação generalizada. A ação "é sempre constituída pelo movimento do corpo,
quer por meio dos membros locomotores, quer por meio de músculos, como se
dá com a palavra ou o olhar" 134; requer-se a "movimentação dos membros, na
simples palavra, ou em outras deslocações parciais do corpo" 135 • A culpabilida-
de é "o vínculo psicológico entre a vontade do agente e o fato criminoso",
"apresentando-se em duas formas, como sejam o dolo e a culpa" 136• Quando o
projeto de Virgílio de Sá Pereira,já revisto por ele próprio, Evaristo de Moraes
e Mário Bulhões Pedreira, foi objeto da bateria de críticas que lhe despejaria a
Primeira Conferência Brasileira de Criminologia 137 , Nélson Hungria pretendeu
alterar a redação do artigo 24, para acrescentar o elemento da "consciência da
injuridicidade". "O repórter, por exemplo - esbravejava ele - que, exclusiva-
mente para provar a falta de fiscalização de um museu, subtrae furtivamente
uma peça qualquer, para expô-la na redação de seu jornal, pode ser passível de
pena, no regime do projeto". Sua proposta foi rejeitada por 26 votos a 5; por 29
votos a 2 seria igualmente rejeitada a tese de Prudente Siqueira, que desejava que
~ refi~i?ã~ do dolo obs~rvasse a teoria da representação e não a da vontade 1 • Os
38

m Aulas de Direito Penal - 2º ano, pp. 12 ss. Ao contrário de Hungria, Madureira de Pinho
incorporava Kelsen.
132 Cf. Juarez Tavares, Teorias do Delito, pp. 17 ss.
133
Comentários ao Código Penal, v. 1, t. II, pp. 1O, 21, 23 e 25.
134
Magalhães Noronha, Direito Penal, v. 1, p. 95.
m Paulo José da Costa Júnior, Comentários, v. 1, p.31.
136
Roque de Brito Alves, Direito Penal, p. 411. Cf. também, no mesmo sentido, Salgado
Martins, Direito Penal, p. 204. Esses autores conhecem a influência nonnativa sobre o
conceito de culpabilidade.
137
Realizada em junho de 1936, no Rio de Janeiro, pela Sociedade Brasileira de Criminologia.
As atas estão publicadas na Revista de Direito Penal, v. XV, fase.! a III, ano VI, 1936 (Rio,
1937, ed. lmp. Nac.).
138
Cf. Revista de Direito Penal, 1936, cit., pp. 43 e 78 ss.

49
penalistas daquela conjuntura, talvez sem pretendê-lo, retardavam assim a
nonnativização do conceito de culpabilidade, e tendiam a implantar na legisla-
ção uma definição de dolo que no futuro se adaptaria bem ao esquadro finalista.
Quanto às linhas gerais, predominaria doravante um conceito tripartido do deli-
to, como fato (ou ação compreendendo a omissão) típico, antijurídico e cul-
pável. Houve exceções, é claro. O modelo objetivo-subjetivo sobreviveu como
"o corpo e a alma do crime" que Lyra neles via 139; também o emprego, mesmo
por autores que adotaram um conceito analítico tripartido, das expressões "ele-
mento material", "elemento subjetivo" e similares perduraria bastante, no estu-
do seja da Parte Geral 140, seja da Parte Especial 141 • Uma reminiscência do CP
1890 estava na opção de Frederico Marques em definir o delito como "fato
típico, antijurídico e culposo" 142• Foi incomum a fonnulação de um conceito
dissector dessas categorias, como aquele que, na esteira do primeiro Galdino
Siqueira, construiu Lyra Filho, com nada menos que onze elementos143 • Inver-
sões na ordem dessas categorias foram mais comuns. Costa e Silva, relutante
à teoria da tipicidade, pensava o crime como "ação culposa e antijurídica"144;
Basileu Garcia falava de "ação humana, antijurídica, típica, culpável e puní-
vel" 145 ; se os alunos de Madureira de Pinho não lhe ouviram mal a aula, foi dele
a inversão mais radical: "ação externa( ...), elemento psíquico do fato ou subje-
tividade, antijuridicidade e tipicidade" 146•

7. b) A tradução que Rodríguez Mufioz, em 1935, empreendeu do Trata-


do de Derecho Penal de Edmund Mezger seria, especialmente a partir da
edição de 1946, o grande veículo divulgador das conseqüências metodológicas
do neokantismo na teoria do delito entre nós. No prólogo à segunda edição
original (a partir da qual se fizera a tradução), Mezger deixava claro seu ponto
de partida: o "caráter empírico-valorativo de todos os conceitos jurídicos". "A
ação, a culpabilidade, a personalidade etc. têm suas raízes no terreno firme do
empírico e das 'leis naturais'; porém, como ação querida, culpabilidade punível,
personalidade motivada etc. as realidades empíricas cedem à 'seleção' do mundo
dos valores". Embora incorporasse toda a elaboração naturalista acerca da

139
Expressão mais Simples do Direito Penal, p. 87.
140
Cf. Basileu Gé,trcia, Instituições, v. I, p. I 99.
1
" Cf. Magalhães Noronha, Direito Penal, v. 2, passim.
142
Tratado, v. II, p. 9.
143
Roberto Lyra Filho e Luiz Vicente Cemicchiaro, Postilas de Direito Penal, p. I 7 ss (no
Compêndio de Direito Penal - PG, pp. 98 ss.).
144
Comentários ao Código Penal, pp. 48 ss.
1
•s Instituições, v. I, p. 195. Incluir a punibilidade entre os elementos do crime foi um uso que
cedeu à forte argumentação de Hungria, que antes incorrera nele (cf. Comentários, v. I, t. 11,
pp. 9 e 26).
146
Aulas de Direito Penal, cit., p. 156.

50
ação, observava que, como ela constituía "infração da norma, era por
consequência um conceito valorizado". Da mesma forma, sobre a "situa-
ção fática da culpabilidade" (mantidos "dolo e culpa como formas da culpabili-
dade") incidiria um "juízo valorativo", a "responsabilidade penal pela conduta
antijurídica" 147 . Os traços neokantistas de Kelsen, cuja obra estaria sendo di-
fundida no Brasil na metade do século XX, contribuirão para essa construção
positivista-normativa, que não renuncia ao legado do naturalismo, especialmen-
te ao mundo causal onde inscreve a conduta humana, porém refugia-se confor-
tavelmente num dever-ser lógico quase adiáforo, que permite - no ensino
jurídico e na prática forense - fechar as cortinas à realidade e, quem diria, até
mesmo aos valores (dever-ser axiológico) 148• A recepção das vinhetas
neokantistas foi imediata. Galdino, que já em 1921 via na culpabilidade "a falta
mais ou menos grave do dever ou da obrigação por parte do agente", em 1947
destaca nela ''a desaprovação, o juízo de censura", invocando Mezger 149 . Em
1949, num livro que teve melhor acolhida no foro do que na academia, Souza
Neto defendia ardorosamente a culpabilidade normativa, segundo a qual se
deve "levar em consideração a consciência da antijuridicidade" 150. Caberia
destacar, como a mais acabada construção sob tal enfoque - apesar de sobre-
vivências pontuais do tecnicismo jurídico e do naturalismo - a obra de Aníbal
Bruno, que surge a partir de 1956 151 • Também Heleno Fragoso adota a distin-
ção proveniente da filosofia dos valores "entre realidade e valor, entre ser e
dever ser, entre natureza e cultura" para - referindo-se, como Aníbal Bruno
também fizera, a lhering - propor um procedimento metodológico que igual-
mente se adapta a um tecnicismo jurídico menos fechado 152• O recurso àquela
distinção generalizou-se, sendo encontrado entre autores de orientações e ten-
dências diversas. Para Cirilo de Vargas, o direito penal é "ciência do dever-ser,
ciência cultural", embora a dogmática deva ocupar-se do "direito que é" e não
do "direito possível" 153 ; para Cezar Bitencourt, "na clássica divisão entre ciên-
cias naturais e culturais, o direito penal pertence a esta classe, qual seja à das
ciências do dever ser e não do ser , isto é, à das ciências naturais" 154.

147
Tratado de Derecho Penal, v. I, pp. 13 ss. e 187 ss.; v. II, pp. 1 ss. Sobre Mezger, cf.
Francisco Mufloz Conde, Edmund Mezger y e/ Derecho Penal de su Tzempo.
148
Cf. José Eduardo Faria, A reforma do ensino jurídico; Machado Neto, A.L., Teoria da Ciência
Jurídica, pp. 119 ss.
149
Direito Penal Brazileiro, v. I, p. 153; Tratado de Direito Penal, v. I, p. 391.
150
O Motivo e o Dolo, p. 11.
151
Direito Penal, v. I, t. 1° a 2°. Para as sobrevivências, t. I, pp. 26 ss e 281 ss. Para a
culpabilidade como reprovabilidade, t. 2°, pp. 27 ss.
152 Lições, P.G., cap. 2.
153
Instituições de Direito Penal, t. I, pp. 38 e 39.
154
Manual, PG, p. 35.

51
8. e) A partir de 1950, a teoria finalista da ação começa a ser mencionada por
autores brasileiros, de modo geral com certa hostilidade. "Acreditamos não ser de
seguir-se o ensinamento de Welzel", dizia Magalhães Noronha 155 ; tal "doutrina(...)
não traz ao Direito Penal nenhuma contribuição aceitável", profetizava (mal) Frederico
Marques 156• Em 1956, Aníbal Bruno afirmava que "essa teoria audaciosa, que sub-
verte de maneira tão profunda a contextura do fato punível (... ) representa wn
retrocesso" 157; uma década depois, Nélson Hungria, fiisando, bem a seu estilo, que
"toda a vez que a Europa acende fogo a América Latina há de emitir fumaça"
protligava o "dolo acrômico" da "infecunda" teoria 158 • Entre essas manifestações,
o Heleno Fragoso de Conduta Punível ( 1961) também não adotava a teoria finalista,
mas estava já apaixonado por ela, que via como "o termo de longo desenvolvimen-
to", com "conseqüências que afetam todo o sistema" da teoria do delito, por ela
"submetida a revisão que em alguns pontos é pouco menos que revolucionária", e
"que oferece solução sedutora para muitos árduos problemas" 159• Em 1970, final-
mente, dois trabalhos incorporaram o pensamento de Welzel: um, por suas conse-
qüências na teoria do delito-é João Mestieri 160 -; o outro, experimentando cruzá-lo
com a teoria egológica de Cossio, por uma aproximação filosófica ao conceito de
culpabilidade - é Carlos Adalmyr Condeixa da Costa 161 • Na contramão da hostili-
dade paulista, Miguel Reale Júnior, em 1973, estuda uma "ação humana (...)
ontologicamente finalista", integrada pela "intencionalidade, por força de sua pró-
pria estrutura" 162, opção metodológica à qual se manteria fiel 163 • Em 1975, Luiz
Luisi publica sua influente tese, o primeiro estudo monográfico que entre nós
redesenhou o tipo segundo o modelo finalista 164• Os jovens professores que traba-

m Direito Penal, v. 1, p. 95.


IS6 Tratado, v. 11, p. 46.
1 7
s Direito Penal, v. I, t. 1º, pp. 292 e 293.
is• A teoria da ação finalística no direito penal, em RBCDP nº 16, ano IV, 1967, pp. 7 ss.
1 9
s Conduta Punível, pp. 19 ss.
1611
Curso de Direito Criminal: "seguiremos ( ...) a orientação de examinar o dolo e a !:Ulpa
juntamente com qualquer outra tendência subjetiva como características de tipo e rião com~
espécies ou formas de culpabilidade" (p. 18). • • • ' • • ·'
161
Pressupostos Existenciais do Crime: "Entre estas (estruturas lógico-objetivas), consoante já foi
esplendidamente pesquisado e exemplificado por Welzel, repensando Kant, descortinam-se a
estrutura ontológica do fazer humano e a estrutura da culpa no direito penal" (p. 188). 1970 é
também o ano da tradução chilena (por Juan Bustos Ramirez e Sérgio Yáflez Pérez) da Parte
Geral da obra penalística fundamental de Welzel, feita a partir de seus últimos desenvolvimentos
teóricos ( 11 ªedição). Tal tradução circularia intensamente em toda a América Latina.
162
Antijurídicidade Concreta, p. 27.
163
"O sistema toma-se mais firmemente instrumento de segurança jurídica se fundado em
bases ontológicas, em uma estrutura lógico-objetiva tal como propõe o finalismo" (Institui-
ções, cit., p. 127).
164
O Tipo Penal e a Teoria Finalista da Ação foi o título da edição acadêmica; O Tipo Penal,
A Teoria Finalista e a Nova Legislação Penal é o título da edição Fabris, de 1987. A resenha
do primeiro, por Juarez Cirino dos Santos, em RDP 24/122.

52
lhavam com Heleno Fragoso, no Rio, estavam aderindo ao finalismo, como se podia
ver em seus trabalhos 165, sinalizando a conversão do autor de Lições de Direito
Penal, o que ficaria explícito em 1976, no prefácio da primeira edição do volume
sobre a Parte Geral 166• Mas a polêmica prosseguia. Em 1977, o catedrático do
Recife, Everardo da Cunha Luna, em palestra na Faculdade de Direito Candido
Mendes, no Rio- onde pontificava Heleno Fragoso-questionaria o finalismo com
um argumento que seria muito repetido: "a fonte de conceitos da ciência juridica é
o direito positivo", e "em nosso direito penal positivo o fim não é exigido no conceito
168
de ação" 167• Tal argumento desapareceria com a reforma da Parte Geral de 1984 •
Apesar de ter a Câmara dos Deputados reintroduzido no projeto a definição de
causa segundo a teoria da conditio sine qua non, o que para Francisco de Assis
Toledo representara "um retrocesso"169, Damásio podia afumar para seus colegas
do Ministério Público de São Paulo que "a reforma, naquilo em que podia adotar o
finalismo, adotou-o com todas as suas conseqüências lógicas"170• Embora, naquela
conjuntura, ainda se questionassem os fundamentos ontologistas da teoria171 , suas
conseqüências na estrutura analítica do delito passariam doravante a ser aceitas
por um número crescente de penalistas e de juízes. Conceitos finalistas da ação,
puros como em Toledo 172, Álvaro Mayrink da Costa 173, e Fernando Galvão -
Rogério Greco 174, ou influenciados pela teoria social como em Cezar Roberto

165
Juarez Tavares, Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo, em RDP 6/21 ss.
(1972); Juarez Cirino dos Santos, Culpabilidade: desintegração dialética de um conceito
metafisico, em RDP 15-16/51 ss. ( 1974 ); Heitor Costa Júnior, Elementos subjetivos nas
causas de justificação, em RDP 23/41 ss. ( 1978); Nilo Batista, O Elemento Subjetivo do
Crime de Denunciação Caluniosa ( 1975), pp. 49 ss. e RDP, passim.
166
"Em relação a esta (teoria do crime), filia-se o autor à teoria finalista da ação, que representa
incontestável superioridade técnica na sistematização da matéria". A primeira edição é de S.
Paulo, 1976, J. Bushatsky. Quando Fragoso capitulou àquelas "soluções sedutoras para árduos
problemas", os originais de Lições já se encontravam praticamente concluídos, segundo uma
perspectiva causal-normativista. Deslocamentos, adaptações e ajustes daqueles textos originais
eram como uma cansativa representação material da buliçosa reacomodação categorial, das
transferências e mutações conceituais que a teoria do delito sofrera. Vestígios dessas progressi-
vas adaptações permaneceram no pioneiro manual de direito penal finalista brasileiro.
167
Capítulos de Direito Penal, S. Paulo, 1985, ed. Saraiva, pp. 90 e 91. Everardo não deixou de
reaviventar a tradicional crítica à primeira concepção welzeliana do delito culposo: a culpa
seria "a espinha na garganta da teoria finalista" (p. 93).
168
Cf. V. I, § 18, V.
169
Cf. AA.VV., O Direito Penal e o Novo Código Penal Brasileiro, p. 9.
11
° Cf. Damásio E. de Jesus (org.), Curso sobre a Reforma Penal, p. 4.
171 Como Alberto R.R. Rodrigues de Souza, em AA.VV., O Direito Penal e o Novo Código

Penal Brasileiro, pp. 27 ss.


172
Princípios Básicos de Direito Penal, p. 83.
173
"A ação é atividade conscientemente dirigida a um objetivo finalisticamente determinado"
(Direito Penal, P.G.,v. I, t. I, p. 497).
m "É a ação, portanto, um comportamento humano voluntário dirigido a uma finalidade
qualquer" (Estrutura Jurídica do Crime, p. 92).

53
Bitencourt17S, passam a prevalecer nos compêndios: afinal, como assegura Luiz
Regis Prado, "o conceito finalista faculta uma mais perfeita compreensão do injusto
dos delitos dolosos e culposos, sendo preferível" 176• Para Juarez Cirino dos Santos,
o "modelo final de ação destaca o traço que mais diferencia a ação de todos os
demais fenômenos humanos e naturais e permite delimitar a base real capaz de
incorporar os atributos axiológicos do conceito de crime"177 • Na síntese do Juarez
Tavares de 1980, "a concepção finalista de delito apresenta-se como a mais coeren-
te formaliz.ação sistemática até hoje proposta no direito penal"178• Paralelamente, os
pressupostos metodológicos do finalismo - "a ação, insiste Reale Júnior, prende-se a
uma forma de ser a que se deve render o direito, por se constituir em uma estrutura
lógico-objetiva"' 79 - ganhavam adesões. A "existencialidade da conduta humana como
categoria lógico-objetiva" e a impossível "desconsideração da verdade ontológica"
são realçadas por Ronaldo Madeira180; "o Direito Penal não cria o conceito de con-
duta, ele o retira do mundo fenomênico dos fatos", sentencia Cláudio Brandão 181 •

9. Apesar do wishfol thinking de Cirilo de Vargas 182, a hegemonia finalista


no penalismo brasileiro do final do século XX é incontestável. Nessa ocasião,
ressalvada uma divergência que já mencionaremos, o conceito analítico de crime
pacificara-se na fórmula da ação típica, antijurídica (ou, como tanto insistira
Toledo, ilícita 183 ) e culpável, embora discrepante o conteúdo atribuído a cada
uma dessas categorias, e por conseqüência a dinâmica de seu relacionamen-
to. A referida divergência circunscreve a ação típica e antijurídica (ou
ilícita) o conceito de crime, trabalhando a culpabilidade como mero pres-
suposto da pena, e não elemento do delito. Fonnulada tal proposta por René
Ariel Dotti em 1976184, seria expressamente adotada por Damásio 185 , influ-
enciando obras gerais, como Mirabete 186, e trabalhos monográficos, como

171
Manual de Direito Penal, P.G, p. 196.
176
Curso de Direito Penal Brasileiro, P.G., p. 165.
177
A Moderna Teoria do Fato Punível, pp. 26-27.
171
Teorias do Delito, p. 114.
179
Instituições, p. 129.
110
A Teoria do Delito e o Código Penal Brasileiro, p. 3.
111
Teoria Jurídica do Crime, p. 19.
112 "O vendaval, porém, passou. A doutrina finalista perdeu interesse e adeptos. Caiu no

esquecimento" (Instituições de Direito Penal, P.G, t. I, p. 168).


113
Argumentando, com Camelutti, que o delito é um fato jurídico, e com a opção redacional
da comissão, por ele coordenada, em favor do tenno ilicitude (cf. arts. 21 e seu parágrafo; cf.
rubrica do art. 23 CP após a refonna de 1984), Francisco de Assis Toledo bateu-se, sem
sucesso, pela substituição da expressão antijurídicidade e cognatos. Cf. suas Considera-
ções sobre a Ilicitude na Reforma Penal Brasileira, em AA.VV., Refonna Penal, pp. l ss.
'"' O Incesto, pp. 173 ss.; Curso de Direito Penal, cit., pp. 335 ss. (nº 68).
m Cf. Direito Penal, v. l º, p. 454.
116
Manual de Direito Penal, P.G, p. 97.

54
Walter Coelho 187• Houve quem pretendesse remontá-la a Welzel 188 , e sua pre-
dominância ensejou debates 189. Podemos afirmar com segurança que prevalece
na doutrina brasileira um conceito de delito integrado por conduta, tipicidade,
antijurídicidade (ou ilicitude) e culpabilidade, de inspiração metodológica
finalista. Como se passa na Europa, o aproveitamento de tal inspiração em solu-
ções teóricas pontuais é muito mais expressivo do que o compromisso metodológico
ontologista, não obstante presente em diversos autores, como vimos acima. Per-
cebem-se diferenças em matizes e entretons com os quais nossos diversos auto-
res finalistas transitam pela estrutura do delito, como já registrou Juarez Tavares 190;
de tais peculiaridades trataremos no estudo aprofundado de cada elemento. Não
há um só epígono brasileiro da corrente do puro desvalor da ação. A sistemática
funcional teleológica de Roxin encontra adeptos, como Luís Greco e Paulo
Queiroz191 , e algumas de suas soluções teóricas são incorporadas mesmo por
finalistas, como Juarez Cirino dos Santos 192 . Já a construção funcionalista
sistêmica de Jakobs, objeto de estudos que se concentram na teoria da
imputação objetiva 193 , não tem prosélitos quanto a seus fundamentos
metodológicos, contra os quais se desfecham críticas acerbas 194 • Especial
menção merece a elaboração de Juarez Tavares, finalista anteriormente
inclinado à teoria da relevância social 195, que, sob influência de Habermas,
chega em seu último trabalho a um conceito comunicativo de ação, com

187
Teoria Geral do Crime, v. I, p. 36; também Aglaia C. Bacchieri dos Santos, Perspectiva
Jurídico-analítica do Crime, p. 89.
188
Diz Palotti Júnior que "para a teoria finalista, proposta por Hans Welzel, crime é um fato
típico e antijurídico" (Direito Penal, P.G, p. 31 ); mas Welzel foi muito claro ao assegurar
que "tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade são os três elementos do crime - die drei
Verbrechense/emente" (Das Deutsche Strafrecht, p. 48).
189 Cezar Roberto Bitencourt chegou a tomar tal divergência (à qual, diga-se de passagem, não

adere) como "entendimento dominante" (Manual de Direito Penal, P.G, p. 317), porém
Cláudio Brandão arrola nada menos que doze autores brasileiros que incluem a culpabilida-
de entre os elementos do crime (Teoria Jurídica do Crime, p. 14). Os novos penalistas não
parecem sufragar aquela divergência, como, entre outros, o próprio Cláudio Brandão e
Rogério Greco, que a questionara (Curso de Direito Penal, P.G, p. 157).
190
Direito Penal da Negligência, 2• ed., pp. 55 ss. (O finalismo brasileiro).
191
Greco, L., Imputação objetiva: introdução, em Roxin, C ., Funcionalismo e Imputação
Objetiva no Direito Penal, pp. 1 ss.; Paulo Queiroz defende abertamente uma sistemática
teleológica (Direito Penal, pp. 83 ss).
192
A Moderna Teoria do Fato Punível.
193
Fernando Galvão, Imputação Objetiva; Damásio E. de Jesus, Imputação Objetiva; Luiz
Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho, Teorias da Imputação Objetiva do Resultado.
194
Heitor Costa Jr., Crítica à legitimidade do direito penal funcionalista, em DS-CDS, nº 9-1 O,
pp. 95 ss.; Juarez Tavares, Teoria do Injusto Penal, pp. 144 e passim; Miguel Reale Júnior,
Instituições, pp. 126 ss.
195
Em 1976, traduziu o Direito Penal de Johannes Wessels.

55
traços finais e sociais 196 • Por último, cabe mencionar a aparição difusa de
estudos que poderiam caracterizar um neotecnicismo Jurídico: completamente
desinteressados da filosofia, da história e das ciências sociais, em geral legitimantes
do direito positivo (cujas contradições aspiram dissolver), redutores da reflexão
dogmática a simples dissensões conceituais e ajustes lógico-formais; tudo isso-
ou este pouco - quase sempre destinado à aprendizagem.

1O. Ao longo da vigência do CP 1940, reformado em 1984, os estudos de


filosofia - dominados pela influência do tridimensionalismo realeano - e
metodologia do direito se desenvolveram muito no Brasil, aportando um conjun-
to de reflexões sobre a "dogmática jurídica" ou a "ciência do direito". A matriz
metodológica de Ihering tomou-se moeda corrente em tais reflexões, invocada
em compêndios de introdução ao estudo do direito, como o de Hermes Lima 197,
ou mesmo de direito penal, como o de Fragoso 198, ou ainda em estudos avança-
dos de teoria geral do direito, como o de Margarida Camargo199• Paralelamen-
te, outros paradigmas epistemológicos foram incorporados e experimentados.
Na esteira da semiótica e da lingüística, Tércio Sampaio Ferraz Jr. - que difun-
diria a tópica entre nós - estudava a legitimidade dos sistemas normativos em
1978200, e um ano depois Rosa Maria Cardoso da Cunha - valendo-se da esco-
la analítica - despia o princípio da reserva legal da veleidade dos sentidos
unívocos201 ; com raízes em Heidegger e pelas rotas de Gadamer, Lênio Streck
desmonta a objetividade jurídica que a dogmática não poderia negar, atingindo
no coração seu estatuto epistemológico2º2 . (Deve registrar-se a dívida de nos-
sos estudos neste campo para com o professor argentino Luiz Alberto Warat,
no seu fecundo estágio em universidades brasileiras203 • ) Pelos caminhos do
pluralismo jurídico, numa vertente marxista, José Geraldo de Sousa Júnior, dis-
cípulo de Roberto Lyra Filho, também questionava o objetivismo positivista que

196 '"Ação é toda conduta conscientemente orientada em função de um objeto de referência e


materializada como expressão da realidade humano-social" (Direito Penal da Negligência, p.
225). A exploração das virtualidades dogmáticas de um conceito comunicativo de ação
tocaria a outra geração; por todos, Busato, Paulo César, Direito Penal e Ação Significativa.
197
Introdução à Ciência do Direito, p. 40.
191 Lições, cit., P.G., p. 12.

199
A "inegabilidade dos pontos de partida que aponta para a inexorabilidade da lei" como
objeto de conhecimento, que a autora retoma de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, corresponde
à primeira lei de construção jurídica de Ihering, que vincula a construção doutrinária "exata-
mente ao direito positivo" (proibição de negação). Cf. Margarida Maria Lacombe Camargo,
Hermenêutica e Argumentação, p. 251.
1~ Teoria da Norma Jurídica.
101
O Caráter Retórico do Princípio da Legalidade.
202
Hermenêutica Jurídica e(m) Crise.
201 Introdução Geral ao Direito, 2 vols.

56
a dogmática supõe204 • Essa vertente viabilizaria, no pensamento generoso de
Machado Neto, uma sorte de dogmática que tem tarefas - assinaladas por
Recaséns Siches e Legaz y Lacambra - das quais só pode dar conta se, num
movimento antipositivista, inscrever "o humano em sua radicação histórica"205 •
Nessa mesma linhagem, Luiz Fernando Coelho, tomando a dogmática como
"uma das manifestações do positivismo", vê na sua fundamentação neokantista
a omissão de toda "crítica social" em favor de uma "preocupação epistemológica
pela definição das categorias formais do direito"206 ; igualmente, insurge-se Plauto
Faraco de Azevedo contra "circunscrever-se a investigação realizada pela
dogmática jurídica à enunciação de 'puros' juízos de constatação a propósito
das instituições, rigidamente separadas de quaisquer outras indagações"2º7 •
Tudo isso encaminhou ou a negação teórica de uma "ciência dogmática", com
as aspas que lhe apõe Paulo Bessa208 , ou uma crítica da dogmática, empreen-
dimento levado a cabo entre nós por Vera Andrade209 • Esta autora questiona
finamente o estatuto epistemológico da dogmática, resguardado por uma "neu-
tralidade" que, embora ficcional, contribui para a legitimação política de sua
função orientadora de decisões210 , inscrevendo na "trilha" histórica do direito
penal do fato a promessa jamais cumprida de segurança jurídica211 • Enquanto
as funções tradicionais e reprodutoras (adestramento e decidibilidade) podem
satisfazer-se com uma racionalidade analítica, a função de segurança jurídica-
conquanto frustrada- projeta a dogmática numa racionalidade de fins, estimu-
lando a construção teleológica. Como observou Tércio Sampaio Ferraz Jr., en-
quanto a atitude analítica procura soluções olhando as situações a partir das
normas, a atitude teleológica visa o mesmo objetivo olhando as normas a partir
das situações212 • As escassas referências, acima mal cerzidas, sobre a impor-
tante investigação metodológica jurídica brasileira das últimas décadas, adver-
tem para um relativo desinteresse da literatura penalística nacional em incorporar
tal debate, optando freqüentemente por refugiar-se em concepções simplistas
e surradas, ou mesmo, sob o influxo do neotecnicismo jurídico antes referido,
por silenciar a respeito dele.

204
Para uma Crítica da Eficácia do Direito. O pluralismo jurídico seria entre nós especialmente
desenvolvido por Amilton Bueno de Carvalho.
2º5 Teoria da Ciência Jurídica, pp. 50 ss.
206
Teoria Crítica do Direito, pp. 167 ss.
201
Crítica à Dogmática e Hermenêutica Jurídica, p. 29.
2011
Uma Nova Introdução ao Direito, p. 36.
209
Dogmática Jurídica e A Ilusão de Segurança Jurídica.
21
º Dogmática Jurídica, pp. 84 ss.
211
A Ilusão de Segurança Jurídica, pp. 125 ss. e passim.
m A Função Social da Dogmática Jurídica, p. 149.

57
§ 26. ESQUEMA DE SISTEMÁTICA FUNCIONAL REDUTORA
( OU FUNCIONAL CONFLITIVA)

I. Os dados ônticos

1. Gostemos ou não, o mundo existe. Não podemos ignorar que os con-


ceitos jurídicos que construímos dispõem de uma função política, sob pena de
incidirmos em dupla contradição213 : a) qualquer conceito que se construa em
atenção a objetivos político-criminais deve aspirar a que tais objetivos sejam
atingidos na realidade social, representando uma incoerência metodológica lan-
çar-se a tal construção negando dados dessa realidade; b) a funcionalidade
política dos conceitos jurídico-penais não constitui um dado aleatório, ou
suprimível, pois a característica de afetarem de algum modo o exercício do
poder punitivo significa que tais conceitos são sempre funcionais. A funciona-
lidade é assim um dado ôntico dos conceitos jurídico-penais. O que
corresponde fazer a uma metodologia consciente desse dado é incorporá-lo, no
sentido de orientar a inexorável funcionalidade segundo certa intencionalidade
construtiva, ou seja, postular-se como teleológica (a alternativa seria, ignoran-
do ou não assumindo a funcionalidade dos conceitos jurídico-penais, contentar-
se com uma sistemática c/assificatória).

2. A funcionalidade, entendida como efeito político dos conceitos jurídico-


penais, é um dado ôntico que existe, percebamos ou não. Admitir que o mais
inteligente a fazer é percebê-lo e dotar de intencionalidade a sistemática que se
elabore não significa criar a funcionalidade, mas tão só descobri-la e orientá-la.
Neste sentido pode-se afirmar que o finalismo, a despeito de seu compromisso
metodológico ontologista, ignorou o dado ôntico de que não existem conceitos
jurídico-penais que não sejam politicamente funcionais,já que produzidos e uti-
lizados por agências do sistema penal empenhadas num exercício concreto de
poder punitivo. O finalismo - pelo menos em alguns de seus expositores - foi
muito além do cabível, ao ultrapassar o fundamento de seus conceitos sobre
dados ônticos e pretender que era ôntico aquilo que, na realidade, era uma nova
construção jurídica e, portanto, funcional. Não há nada ôntico em prescrever
ao direito penal a função de reforçamento da ética social, o que aliás não passa
de fantasia, sem nenhum dado de realidade que o confirme. Não se pode negar

213 Sobre a necessária incorporação de dados da realidade na construção dogmática, por todos,
Bustos Ramirez, Juan, Política criminal y dogmática, em Horn. a Hilde Kaufmann, p. 133.

58
em Welzel um funcionalismo eticizante de corte conservador: seu conceito de
culpabilidade se inscreve nesta linha214• O que não parece coerente é rechaçar
peremptoriamente os dados ônticos para cair numa elaboração livre (ou alucinada)
de conceitos, a partir de uma funcionalidade que não passa de ser o reconheci-
mento de um dado da realidade social, pretendendo que tais conceitos operem
sobre essa mesma realidade, que se ignora ou nega.

3. Como todo saber ocupa-se de um âmbito da realidade, e o faz a partir


de certa perspectiva e com certa intencionalidade, é inevitável que, ao recolher
os dados para a elaboração de seus conceitos, escolha aqueles que guardem
pertinência com seu objeto e melhor se adequem a seu método. Não poderia
ser diferente com o direito penal. Todo saber científico se organiza pescando
seus dados do mundo, e nenhum deles se permite o luxo de inventá-los, o que
equivaleria a estar inventando o próprio mundo. Pode-se reconhecer um amplo
arbítrio na escolha, interpretação e combinação dos dados: muito diferente se-
ria admitir a livre criação deles. Quando uma disciplina, cujos conceitos estão
sempre referidos ao poder, atribui-se a capacidade de livremente criar o mundo
sobre o qual deveria incidir, termina num discurso desconcertante e
desorientador, inserido no marco mais amplo de ocultação ideológica do mundo
real, a serviço de qualquer objetivo político. A invenção da realidade para ela-
borar conceitos jurídico-penais e a pretensão de que a realidade os impõe não
passam de duas posições extremadas. A primeira pretende que o saber penal
possa inventar o mundo; a segunda postula que o mundo nos proporciona um
saber penal (em ambas as pontas, com matizes e graduações variáveis). No
momento de reconhecer e proclamar que os conceitos jurídico-penais têm fun-
cionalidade política (dado ôntico), e logo de assumir a tarefa de incorporar tal
dado (tal funcionalidade) para dotá-lo(a) de intencionalidade (construção
teleológica), não podemos cair em nenhuma daquelas posições extremadas.
Na primeira delas, inventora do mundo, pode-se até obter uma coerência inter-
na do discurso, porém jamais se conhecerá sua função real e, portanto, não
poderá ser dotado de intencionalidade teleológica: à ignorância do destino polí-
tico somar-se-á o paradoxo freqüente de um discurso formalmente liberal e
funcionalmente autoritário. Na segunda delas, conformista, negar-se-á a possi-
bilidade da intencionalidade com supostos dados ônticos que não são mais do
que outros conceitos jurídicos politicamente funcionais.

4. Quando o direito penal deve elaborar conceitos, não pode desconhecer


que mesmo que não o faça teleologicamente, tais conceitos cumprem uma
função política e, portanto, não há como deixar de orientá-los politicamente, sob

214
Welzel, Hans, pp. 142 ss.

59
pena de construir conceitos perversos. Para não cair na perversidade, cabe
eludir a tendência a inventar aquilo que não existe no mundo, bem como a
tendência a pretender que aquilo que existe o limita mais além da necessidade.
O cliente de um restaurante só pode comer os pratos oferecidos no cardápio,
mas pode pretender outros pratos e desvalorar o restaurante pela limitação de
sua oferta. Mas sabe também que não poderia pedir carnes vermelhas com
escamas ou peixes com penas, porque não existem. O ontologismo finalista
comporta-se às vezes como se não pudesse queixar-se da escassez dos pratos
oferecidos; o neokantismo pede omelete com ovos de mamíferos; uma cons-
trução teórica que assuma a intencionalidade da função política teleológica deve
pugnar pelo aumento na oferta de pratos possíveis.

li. Teleologia redutora


1. Quem, como nós, valore negativamente o poder punitivo em geral e a
pena em particular (a partir de uma negação de suas funções manifestas, cal-
cada no fracasso das teorias legitimantes), e atribua ao direito penal a tarefa
política de, como uma barragem predisposta pelo estado de direito, conter o
caudal punitivo do estado de polícia, não pode fugir à conseqüência de que a
construção conceituai do delito deve empreender-se como um sistema orienta-
do pela idéia reitora de uma intencionalidade redutora do poder punitivo, que
influenciará portanto todas as particularidades construtivas que pretendam in-
tegrar-se ao sistema.

2. Note-se que as novas teorias funcionalistas sistêmicas do delito procu-


ram estabelecer relações com a sociologia, escolhendo contudo concepções
que tomam a sociedade como sistema, porque a perspectiva escolhida lhes
permite valorar positivamente o poder punitivo. Vale recordar que, por essa
linha, seria possível valorar positivamente o próprio delito, como fez Durkheim215 •
É possível sustentar que um direito penal liberal é socialmente mais saudável do
que um exercício de poder punitivo autoritário e ilimitado, com o que se logra
legitimar uma parte do poder punitivo, à moda da velha teoria do contrato soci-
al. Embora caiba subscrever um considerável número de soluções provenien-
tes dessa orientação, desde uma perspectiva redutora as razões devem ser
diferentes. O vínculo que um direito penal redutor procura estabelecer com as
ciências sociais deve privilegiar o marco de uma sociedade compreendida a
partir de uma teoria do conflito 216, ou seja, compreendida como uma sociedade

m Durkheim, Émile, De la division du travai/ social eles regles de la méthode sociologique.


216
Cf. V. I, § 24.

60
integrada por classes, grupos e indivíduos cujos interesses se enfrentam e se
chocam, num processo histórico de contínua transformação. Neste marco é
difícil valorar positivamente o poder punitivo, que intervém na conflitividade
social sempre ao lado do mais forte, como sua história demonstra. Portanto, o
direito penal liberal concebido no mesmo contexto não pode legitimá-lo em
qualquer medida considerável, senão reduzi-lo e contê-lo. Ao reprimir o conflito
em si, freando a dinâmica social que aspira por ampliar o âmbito de realização
das pessoas, de seus grupos e classes sociais, o poder punitivo se confronta
com os mais essenciais postulados do direito penal liberal.

3. As construções de Roxin e Jakobs tendem a elaborar sistemas


conceituais funcionais aos objetivos que atribuem à pena, que, para eles, confi-
gura um instrumento de poder punitivo igualmente funcional para a preserva-
ção de uma sociedade também compreendida como sistema. Em nosso caso,
procuramos desenvolver uma estruturação conceituai que seja funcional para a
contenção e redução do poder punitivo, diante da impossibilidade empírica de
reconhecer validade científica a qualquer teoria positiva da pena. Por outro
lado, tal proposta pretende ser funcional para a dinâmica de uma sociedade na
qual classes e grupos convivem em permanente conflito. •

4. Para avançar nessa proposta, convém creditar: ao neokantismo, o


adestramento para a fina construção sistemática; ao finalismo, a advertência
sobre respeitar o mundo e seus dados; ao funcionalismo, ter assumido sem
rebuços que os conceitos jurídico-penais são politicamente funcionais. Portan-
to, a construção redutora não significa uma radical ruptura metodológica com a
teoria do delito, mas sim uma via de seu desenvolvimento. O funcionalismo
alemão, ao lançar uma ponte construtiva na direção da sociologia sistêmica,
preo~llpa-se e~ ~estacar s~µs yínculos ~~m p passado teótjco, q que ~ verda-:
d~1rn: füp ro·ssR ~~sq? n-qca,piqs p conformism!J Q~ socjp\o~i~ ~is!~~ip~ pf~~
dinâmica de teqrias sociais ~o conflito, associadas à cq11cepção agnósti~a ou
negativa da pena, introduzindo assim na construção um dado de validade
inquestionável.

Ili. Particularidades construtivas


1. Qualquer sistemática conceituai do delito deve satisfazer a três condi-
ções: a) atender, com um mínimo de eficiência, à função tradicional de facilitar
as decisões judiciais; b) estruturar-se valorativamente, no sentido de extrair
suas características da determinação dos critérios para descartar os impulsos

61
punitivos intoleráveis segundo pautas claras e seqüencialmente prelatícias; e)
construir-se teleologicamente, ao escopo de conter o poder punitivo.

2. O requisito de "estruturar-se valorativamente" pode induzir a confu-


sões, diante da polissemia da expressão. Trata-se, aqui, de observar uma ordem
de desvalores que sugeriria uma representação gráfica análoga a um sistema de
filtragem com diversas fases. A matéria que ultrapassa os filtros não difere es-
sencialmente da que neles resta, eis que constituída por ação humana: porém
muitas ações humanas não superam os filtros, concentrados cada qual em alguns
aspectos e não em outros, o que supõe uma seqüência prelatícia necessariamente
valorativa. Nesta seqüência, não se reiteram valorações nem objetos já valorados
anteriormente podem voltar a sê-lo segundo o mesmo critério.

3. Uma sistemática construída teleologicamente para impulsionar o pro-


gresso do estado constitucional de direito não pode ignorar os efeitos reais, ou
seja, não pode contentar-se com mera análise dedutiva, senão que deve conectar-
se aos dados da realidade que permitam considerar os efeitos de um hipotético
exercício de poder punitivo conforme as particularidades do caso. Isto se
problematiza quando se considera a funcionalidade do conceito de delito no mar-
co das teorias positivas da pena, porque a) a sistemática aberta à realidade tende
a ultrapassar limites legais em nome de supostos objetivos político-criminais, e
porque b) mesmo observados tais limites, é possível incorrer em excessos de
intolerável irracionalidade para atender aos supostos objetivos político-criminais.
Este inconveniente estará notavelmente neutralizado por uma construção que se
abra para a realidade, desde que sua funcionalidade seja estritamente redutora,
por causa, precisamente, da função política do direito penal.

4. Os efeitos nefastos das teorias que atribuem à pena uma função posi-
tiva, assumida como princípio reitor na teleologia construtiva do conceito de
delito, podem ser claramente percebidos em muitas passagens dos funcionalis-
mos, mas ficam especialmente evidentes na culpabilidade, isto é, no nível de
filtragem que mais proximamente habilita poder punitivo, inclusive promovendo
sua quantificação. Jakobs chega a um ponto em que a culpabilidade se fecha
sobre si mesma, num conceito que não é apenas normativo quanto a seu conti-
nente mas também quanto a seu conteúdo21 7, e que se resolve numa dedução
da necessidade de prevenção geral positiva de sua teoria da pena. Roxin cons-
trói um conceito de responsabilidade no qual a culpabilidade se mescla a
critérios preventivos, também derivados de sua teoria da pena. A construção de
Roxin termina por de certo modo harmonizar direito penal e política criminal em

217
Jakobs, Gunther, em Recht und Staat (trad. Estúdios, pp. 73 ss).

62
sentido tradicional, ao contrário de Liszt, que os concebia contraditoriamente,
enfrentando-se218. Para Roxin, cujo pensamento provém de uma concepção
sistêmica, e não conflitual, da sociedade, não pode haver uma relação dialética
entre poder punitivo e direito penal: tudo parece provir de uma criação perfeita,
na qual o juiz coroa na particularidade a obra do legislador, e na própria política
criminal - como se esqueceria deles um criador racional e previdente? - já
estão dados os componentes limitadores do poder punitivo. Esta visão do exer-
cício do poder punitivo, que elimina todas as suas contradições, não se assenta
em qualquer realidade, mas amolda-se como luva à teoria parsoniana da socie-
dade, própria do welfare state; em aberto ficam as dificuldades práticas para
determinar os limites do poder punitivo quando se leva a sério que tais limites
estão indicados pelo próprio poder que se pretende conter... Nenhum poder
tende jamais a auto-limitar-se, e sim, sempre, a expandir-se; por isso, todo limi-
te do poder confiado ao próprio poder tende a desaparecer.

5. Para evitar tais riscos, um esforço de construção redutora precisa ob-


servar que: a) no marco de uma teoria agnóstica ou negativa da pena, qualquer
conceito da teoria do delito deve ser necessariamente redutor da possibilidade
de exercício do poder punitivo, pois do contrário seria disfuncional e, portanto,
mal elaborado; b) deve-se distinguir nitidamente a teoria do delito, como pres-
suposto que apenas habilita a responsabilidade penal ou punitiva das agências
judiciárias, das questões acerca da assunção desta responsabilidade por parte
delas. Isto permite sistematizar melhor os problemas e evita que a funcionalida-
de construtiva da teoria do delito termine por configurar uma confusão
conceituai.

TV. Limites da teoria do delito e sua distinção da teoria da


responsabilidade
1. Sempre que uma agência judiciária é instada, mediante processo legal,
a autorizar o exercício, em certa forma e medida, de poder punitivo, pressupõe-
se a existência de um delito. Assim como não se coloca uma questão sucessória
sem que haja um morto, não há decisão autorizadora de exercício de poder
punitivo sem delito, ou seja, sem ação típica, antijurídica e culpável. Ao reque-
rimento que lhe é dirigido, ativando-a, responderá a agência judiciária habilitan-
do ou não o exercício de poder punitivo; no caso em que o habilite, determinando
sua forma e medida. Desse modo se ultima a criminalização secundária, atra-

218
Roxin, Claus, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, pp. 2 ss.

63
vés de decisão que programa, em linhas muito amplas e gerais, a execução de
uma pena.

2. Nos tempos de Binding distinguia-se entre delito e crime, reservando-


se a palavra crime para o delito que respondesse a todas as características
exigidas pela ultimação do processo de criminalização secundária. Além da
circunstância de que isto nem sempre depende de elementos integrantes do
fato infracional (podendo mesmo derivar de acontecimentos posteriores a ele),
tal manejo da palavra crime reporta-se claramente à velha classificação tripartida
das infrações penais, sendo preferível não ressuscitar aquela proposta. Mais
difundida foi a tendência de incluir a punibi/idade como elemento do delito, às
vezes precedida por pressupostos ou condições objetivas de punibilidade,
que em algumas ocasiões abarcaram requisitos do tipo objetivo e, em outras,
requisitos de procedibilidade. Da forma e da medida do poder punitivo habilita-
do costuma ocupar-se uma teoria da pena, como individualização da sanção
penal, que obteve desenvolvimento autônomo significativo nas últimas décadas
(o Strafzumessungsrecht alemão e o sentencing anglo-saxão).

3. Estes sistemas são confusos. Observada a funcionalidade redutora de


toda a construção teórica, é muito mais claro separar o pressuposto da possi-
bilidade de resposta punitiva (delito) da própria possibilidade de resposta
(responsabilidade) punitiva. A agência judiciária deve responder pela habi-
litação de poder punitivo, fazendo-se responsável pela formal criminalização
do agente. Neste sentido, constrói-se uma responsabilidade penal (ou puni-
tiva) conceitualmente distinta daquela usualmente referida, que se desloca do
sujeito criminalizado para a agência criminalizante. Não é o sujeito criminalizado
que deve responder, e sim a agência criminalizante- evitando, com sua respos-
ta, que sobre ele se exerça um poder punitivo ilegal, inconstitucional ou irracio-
nal. Portanto, é mais correto construir uma teoria dfl responsabilidade penal
(ou punitiva), co111preendida como possfbilidade de n;sposta (respo11sabili-:
dade) punitiva da agência judiciária, que, dado seu pressuposto (delito), ocu-
pe-se do complexo de condições que resultam na forma e medida do exercício
concreto de poder punitivo. Para este conceito de responsabilidade penal ou
punitiva, que se instaura como responsabilidade pela habilitação do exer-
cício concreto de poder punitivo, não é preciso alterar o conceito de culpabi-
lidade de ato com o qual se completa o delito, e que assinala o limite máximo de
poder punitivo habilitável.

4. A culpabilidade de ato pura projeta-se da teoria do delito na teoria da


responsabilidade penal, como indicador do limite máximo de poder punitivo
habilitável (desde que não intercorram condições negativas de punibilidade, como

64
por exemplo na causa pessoal de isenção prevista no artigo 181 CP). A recons-
trução dogmática das normas que tratam da quantificação do poder punitivo, da
chamada individualização judicial da pena (arts. 59 ss. CP), bem como a inves-
tigação sistematizada das diversas causas que extinguem a punibilidade - ge-
rais (arts. 107 ss. CP) ou especiais (p. ex., art. 312, § 3º CP) - e ainda de
condições negativas de punibilidade, como aquela acima referida, são tarefas
da teoria da responsabilidade punitiva. Frise-se que nesta projeção da culpabi-
lidade de ato, como indicador do limite máximo de poder punitivo habilitável,
não se deve respigar qualquer efeito legitimante, e sim um mecanismo de con-
tenção quantitativa da irracionalidade punitiva. É fácil perceber que a ultrapas-
sagem do limite máximo indicado pela culpabilidade de ato representaria
intolerável violência da agência judiciária. A hipótese inversa - ao contrário do
que preconiza a Súmula STJ nº 231 - é completamente viável, como oportuna-
mente se constatará.

5. Os dados sociais demonstram que a seletividade criminalizante é arbitrária


e recái sobre pessoas vulneráveis, que acabam criminalizadas por sua vulnerabilidade
e não pelo delito praticado. A vulnerabilidade depende de: a) um estado de
vulnerabilidade, que se integra com as características do autor (classe social,
etnia, instrução, estereótipo etc.); b) um esforço que o autor empreende para che-
gar à situação de vulnerabilidade (as circunstâncias que concretamente o toma-
ram vulnerável).Adistância entre estado e situação de vulnerabilidade é, geralmente,
inversamente proporcional ao poder de que dispõe a agência responsável para
reduzir a quantidade de poder punitivo indicada pela culpabilidade de ato. A agência
é responsável pelo esgotamento deste espaço de seu poder. Cabe denominar à este
espaço de poder jurídico redutor culpabilidade pela vulnerabilidade. Este con-
ceito de culpabilidade apresenta diversas vantagens: a) modifica a indicação que
resulta da pura culpabilidade de ato, sem afetá-la quanto à função redutora que
p~v~ cumprir na t~oria do delito; b) prescinde de indagar-se se é culpabilidade de
atQ pude aut9r, um~ vez HUe só pode dispor de efeito redutor; e) não legitima o
~~ercíci~ d~ poder p~itiyri, Il1às tão somente- ~o ~mplicar o esgotamento do espa-
ço de poder decisório da agência - a decisão.

6. Como já registrado anteriormente219, os sistemas penais exercem seu


poder punitivo no marco de estados com distintos níveis de controle do poder de
polícia e de eficácia das garantias individuais. Isto significa que o princípio
regulativo do estado de direito se realiza em diferentes medidas, ensejando que
entre as categorias jurídicas se estabeleça uma tensão sistemática220 • A reali-

219
Cf. V. I, § 5°.
220
Ost, François e Van de Kerchove, Michel, em Sociologia dei Diritto, pp. 5 ss.

65
vés de decisão que programa, em linhas muito amplas e gerais, a execução de
uma pena.

2. Nos tempos de Binding distinguia-se entre delito e crime, reservando-


se a palavra crime para o delito que respondesse a todas as características
exigidas pela ultimação do processo de criminalização secundária. Além da
circunstância de que isto nem sempre depende de elementos integrantes do
fato infracional (podendo mesmo derivar de acontecimentos posteriores a ele),
tal manejo da palavra crime reporta-se claramente à velha classificação tripartida
das infrações penais, sendo preferível não ressuscitar aquela proposta. Mais
difundida foi a tendência de incluir a punibilidade como elemento do delito, às
vezes precedida por pressupostos ou condições objetivas de punibilidade,
que em algumas ocasiões abarcaram requisitos do tipo objetivo e, em outras,
requisitos de procedibilidade. Da forma e da medida do poder punitivo habilita-
do costuma ocupar-se uma teoria da pena, como individualização da sanção
penal, que obteve desenvolvimento autônomo significativo nas últimas décadas
(o Strafzumessungsrecht alemão e o sentencing anglo-saxão).

3. Estes sistemas são confusos. Observada a funcionalidade redutora de


toda a construção teórica, é muito mais claro separar o pressuposto da possi-
bilidade de resposta punitiva (delito) da própria possibilidade de resposta
(responsabilidade) punitiva. A agência judiciária deve responder pela habi-
litação de poder punitivo, fazendo-se responsável pela formal criminalização
do agente. Neste sentido, constrói-se uma responsabilidade penal (ou puni-
tiva) conceitualmente distinta daquela usualmente referida, que se desloca do
sujeito criminalizado para a agência criminalizante. Não é o sujeito criminalizado
que deve responder, e sim a agência criminalizante - evitando, com sua respos-
ta, que sobre ele se exerça um poder punitivo ilegal, inconstitucional ou irracio-
nal. Portanto, é mais correto cons~ir urna te()rill dfl re~ponsabilidac/.e prnal
(Óu punitiva), ·cory1preendida como possibilidade de respos(a (respo~sabili7
dade) pu~iÍiva da ·agência judiciária, q·ue: dado seu pressuposto (delit~). OCll:
pe-se do complexo de condições que resultam na fonna e medida do exercício
concreto de poder punitivo. Para este conceito de responsabilidade penal ou
punitiva, que se instaura como responsabilidade pela habilitação do exer-
cício concreto de poder punitivo, não é preciso alterar o conceito de culpabi-
lidade de ato com o qual se completa o delito, e que assinala o limite máximo de
poder punitivo habilitável.

4. A culpabilidade de ato pura projeta-se da teoria do delito na teoria da


responsabilidade penal, como indicador do limite máximo de poder punitivo
habilitável (desde que não intercorram condições negativas de punibilidade, como

64
por exemplo na causa pessoal de isenção prevista no artigo 181 CP). A recons-
trução dogmática das normas que tratam da quantificação do poder punitivo, da
chamada individualização judicial da pena (arts. 59 ss. CP), bem como a inves-
tigação sistematizada das diversas causas que extinguem a punibilidade - ge-
rais (arts. 107 ss. CP) ou especiais (p. ex., art. 312, § 3° CP) - e ainda de
condições negativas de punibilidade, como aquela acima referida, são tarefas
da teoria da responsabilidade punitiva. Frise-se que nesta projeção da culpabi-
lidade de ato, como indicador do limite máximo de poder punitivo habilitável,
não se deve respigar qualquer efeito legitimante, e sim um mecanismo de con-
tenção quantitativa da irracionalidade punitiva. É fácil perceber que a ultrapas-
sagem do limite máximo indicado pela culpabilidade de ato representaria
intolerável violência da agência judiciária. A hipótese inversa- ao contrário do
que preconiza a Súmula STJ nº 231 - é completamente viável, como oportuna-
mente se constatará.

5. Os dados sociais demonstram que a seletividade criminalizante é arbitrária


e recái sobre pessoas vulneráveis, que acabam criminalizadas por sua vulnerabilidade
e não pelo delito praticado. A vulnerabilidade depende de: a) um estado de
vulnerabilidade, que se integra com as características do autor (classe social,
etnia, instrução, estereótipo etc.); b) um esforço que o autor empreende para che-
gar à situação de vulnerabilidade (as circunstâncias que concretamente o torna-
ram vulnerável). Adistância entre estado e situação de vulnerabilidade é, geralmente,
inversamente proporcional ao poder de que dispõe a agência responsável para
reduzir a quantidade de poder punitivo indicada pela culpabilidade de ato.A agência
é responsável pelo esgotamento deste espaço de seu poder. Cabe denominar à este
espaço de poder jurídico redutor culpabilidade pela vulnerabilidade. Este con-
ceito de culpabilidade apresenta diversas vantagens: a) modifica a indicação que
resulta da pura culpabilidade de ato, sem afetá-la quanto à função redutora que
d~v~ cumprir na teoria do delito; b) prescinde de indagar-se se é culpabilidade de
atQ pude autqr, uma vez qµe sq pode dispor de efeito redutor; e) não legitima o
~~erc.íd~ d~ poder p~itiy~," 111as tão so~ente-?q implicarº esgotamento do espa-
ço de poder decisório da agência - a decisão. •

6. Como já registrado anteriormente219, os sistemas penais exercem seu


poder punitivo no marco de estados com distintos níveis de controle do poder de
polícia e de eficácia das garantias individuais. Isto significa que o princípio
regulativo do estado de direito se realiza em diferentes medidas, ensejando que
entre as categorias jurídicas se estabeleça uma tensão sistemática220• A reali-

219
Cf. V. I, § 5°.
220
Ost, François e Van de Kerchove, Michel, em Sociologia dei Diritto, pp. 5 ss.

65
zação desse princípio regulativo é inversamente proporcional à perigosidade
do sistema penal. Esta perigosidade do sistema penal constitui um dado a ser
incorporado à teoria da responsabilidade punitiva, devendo ser considerada pelas
agências no uso e no aperfeiçoamento de seus filtros. Uma agência judiciária
que não leve em consideração que as condições concretas de prisonização
implicariam um alto perigo de vida para a pessoa prisonizada estaria impondo
uma inconstitucional pena de morte. Um administrador penitenciário que per-
mita a convivência de grupos sabidamente inimigos entre si estaria, na previsí-
vel chacina, impondo uma monstruosa sanção disciplinar. Tanto nos riscos gerais,
estatisticamente demonstráveis, quanto naqueles especialmente referidos à pes-
soa do criminalizado, devem tais dados - que exprimem a perigosidade do
sistema penal- incidir sobre a quantificação indicada pela culpabilidade de ato.
Tudo isso constitui, entretanto, matéria para a teoria da responsabilidade penal
(ou punitiva), que não será tratada com as características do delito.

V. Penas sem delito?


1. A natureza penal das medidas de segurança - aquele "embuste das
etiquetas" ao qual se referia Kohlrausch - estava suficientemente demonstra-
da entre nós, até a refonna da Parte Geral de 1984 (lei nº 7.209, de 11.jul.84),
sob o então vigente critério do duplo binário, pela "hipocrisia" bem descrita por
Cezar Roberto Bitencourt: "quando o sentenciado concluía a pena, continuava
no mesmo local, cumprindo a medida de segurança, nas mesmas condições em
que acabara de cumprir a pena"221 • A restrição do cabimento de medidas de
segurança aos inimputáveis e semi-imputáveis (neste último caso, sob critério
vicariante), expungidas as diversas hipóteses de perigosidade presumida pré-
delitual da disciplina legal anterior, representou significativo avanço aportado
pela reforma de 1984.

2. Algumas questões, contudo, nesta matéria da qual disse Bettiol que


corresponderia a um túmulo do direito penal 222, remanescem desafiando uma
construção dogmática conseqüente. A primeira delas está na indetenninação
do prazo máximo de duração da internação ou do tratamento ambulatorial (art.
97, § I ° CP) 223 • Um exercício ilimitado (não-quantificado) de poder punitivo é
algo claramente irracional, especialmente se o pretexto reside na irracionalidade

221
Manual de Direito Penal, P.G, p. 714.
222 Bettiol, Giuseppe, Scritti Giuridici, p. 9.
223 Sobre os limites mínimos e máximos de duração das medidas de segurança, extensamente e

por todos, Ferrari, Eduardo Reale, Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Demo-
crático de Direito, pp. 174 ss.

66
atribuída ao sujeito criminalizado, e contrasta com a proscrição constitucional
de penas perpétuas (art. 5°, inc. XLVII, ai. b), cabendo, como bem acentuou
Luiz Flávio Gomes, reconhecer a inconstitucionalidade daquele dispositivo224.
Tomar como "limite tácito" o máximo da pena cominada ao delito praticado225
é construção que, sem embargo de sua superioridade sobre a duração
indeterminada claramente inconstitucional, não se eximiria à crítica de ignorar
o dado da lentidão das burocracias psiquiátrico-forenses, suficientemente cons-
tatado sob o regime legal anterior à reforma de 1984, bem como da incerteza
científica de seus fundamentos rotineiros226, resultando numa espécie de habi-
litação genérica de poder punitivo pela máxima quantificação possível. Ques-
tão similar é colocada pela natureza condicional da desinternação ou da alta do
tratamento ambulatorial, que admitem reversão se, dentro do prazo de um ano,
praticar o sujeito "fato indicativo de persistência de sua periculosidade" (art.
97, § 3° CP). Bruno de Morais Ribeiro postula "a adoção de uma fórmula legal
que estabeleça, com maior precisão , a natureza dos fatos que são aptos para
ocasionar o restabelecimento da medida de segurança"227• A única solução
compatível com o princípio segundo o qual em nenhuma hipótese pode o direito
penal autorizar o exercício de poder punitivo sem o prévio cometimento de um
delito consistirá em exigir que tal fato seja típico, como no caso, recolhido por
René Dotti, de ameaça à família 228 . Mesmo antes de um aperfeiçoamento
legislativo da matéria, alguns passos poderiam ser dados incorporando-se à
construção dogmática importantes contribuições da lei nº I0.216, de 6.abr.0 l,
sobre a proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais.

224
Medidas de Segurança e seus limites, em RBCCrim, nº 2, p. 66.
m Assim, Eduardo Reale Ferrari, op.cit., p. 196; Cezar Bitencourt, op. cit., p. 721.
226
Cf. Rauter, Cristina, Criminologia e Subjetividade no Brasil.
227
Medidas de Segurança, p. 56.
228
Curso de Direito Penal, p. 633.

67
68
CAPÍTULO XI

A AÇÃO

Abbagnano, Nicola, Dicionário de Filosofia, trad. A. Bosi, S. Paulo, 1982,


ed. M. Jou; Aftalión, Enrique, Acerca de la responsabilidad penal de las
personas jurídicas, em LL, 37-280; Alessandri, Alberto, em Pedrazzi, C. et
alii, Manuale di Diritto Pena/e de/1 'impresa, Bolonha, 1999, p. 1 ss.; Alimena,
Bernardino,/ limiti e i modificatori dell'imputabilità, Turim, 1894, 3 vols.;
Andreucci, Ricardo Antunes, Coação Irresistível por Violência, S. Paulo, 1974,
ed. J. Bushatsky; Anscombe, Elizabeth, lntention, lthaca, 1958; Aristóteles,
Ética a Nicômacos, trad. M.G Kury, Brasília, 1985, ed. UnB;Atienza, Manuel,
Para una teoría general de la acción penal, em ADPCP, 1987, p. 5 ss.;
Bacigalupo, Silvina, La responsabilidad penal de las personas jurídicas,
Barcelona, 1998; Bacigalupo, Enrique, Delitos impropios de omisión, Buenos
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tema de la doble imputación. Responsabilidad penal de las personas jurí-
dicas, em De las penas, Homenagem ao Prof. Isidoro De Benedetti, Buenos
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Giuliano, La volontà e il rischio pena/e d'azione, Nápoles, 1995; Balestrieri,
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ir/andese, I principi, Pádua, 2000; Bar, Ludwig voo, Die Schu/d nach dem
Strafgesetze, Berlim, 1907; Barbero Santos, Marino, Los delitos de peligro
abstracto, emActas, Universidad de Belgrano, Buenos Aires, 1971; Behrendt,
Die Unterlassung im Strafrecht. Entwurf eines negativen Handlungsbegriff
auf psychoanalytischer Grundlage, 1979; Bellavista, / reati senza azione,
Nápoles, 1937; Benakis, Anna, Über den Begriff des Unrecht-tuns bei
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negocio jurídico (trad. A. Martin Pérez), Madri, 1959; Bevilaqua, Clovis, Te-
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strafrechtlichen Handlungsbegriff von Feuerbach bis Liszt unter besondere

69
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78
§ 27. Ü CONCEITO JURÍDICO-PENAL DE AÇÃO

I. Função política do conceito jurídico-penal de ação


1. A ação, ou conduta, tomada como gênero da espécie delito, deve cons-
tituir, no marco de um direito penal redutor, um conceito idôneo para cumprir
clara função política: qualquer pretensão de exercício do poder punitivo tem que
fundar-se na atuação de uma pessoa1, e cabe impedir todo intento de afrontar ou
desconhecer este nível primário de republicanismo penal (nullum crimen sine
conducta2). A realidade social do exercício do poder punitivo demonstra que ele
recai sempre sobre pessoas selecionadas segundo certos estereótipos historica-
mente condicionados, conforme sua dinâmica substancialmente discriminatória.
Dado que esta seletividade, fundada em preconceitos, mitos e bodes expiatórios,
é inevitável, não será suficiente descartar a punição de não-ações, impondo-se
também a construção de um conceito jurídico-penal de ação que seja anterior à
análise da tipicidade (pré-típico)3, como válvula de segurança do princípio nullum
crimen sine lege na forma do nullum crimen sine conducta.

2. O poder punitivo seleciona preferentemente a partir de caracterís-


ticas pessoais socialmente adquiridas. Entre as incomensuráveis pessoas
que realizam condutas típicas, apenas algumas são selecionadas, quase sem-
pre por corresponderem a estereótipos; poucas, entre as pessoas
selecionadas, empreenderam um esforço considerável para vulnerabilizarem-
se. Ou seja, na seleção criminalizante real não predomina o critério da con-
duta realizada, e sim o da vulnerabilidade ao poder punitivo. Freqüentemente
ações de idêntica ou maior lesividade não conduzem à criminalização de
seus autores, invulneráveis ao poder punitivo. Tal realidade seletiva não
desmerece a relevância da teoria da ação; pelo contrário, faz ressaltar sua
estratégica função política de impor um requisito de exterioridade e alteridade
ao procedimento discriminatório da criminalização secundária, que na pós-
modernidade penalística responde ao "risco" dos contingentes humanos
1
Cf. Mouyart de Vouglans, t. I, p. 2; Mayer, M.E., Lehrbuch, pp. 13 e 57; Cousifio Maclver,
p. 564; Núnez, I, p. 219; Barbero Santos, p. 121; Manzini, I, p. 649; Bellavista, pp. 5 ss;
Cunha Luna, p. 75; Pannain, I, p. 318; Bettiol, p. 249; Malamud Goti, La Tenencia, p. 859;
Zaffaroni - Cavallero, pp. 249 ss; Fragoso, Conduta Punível, pp. 6 ss; Brandão, Cláudio,
Teoria Jurídica do Crime, p. 20.
2
Ou nu/la injuria sine actione; cf. Insolera, Gaetano, p. 271.
3
Binding, Handbuch, p. 568; Beling, Die Lehre von Verbrechen, p. 10; Radbruch, Der
Handlungsbegriff, e a mudança de sua opinião em Zur Systematik, pp. 158 ss; Sauer, p. 52
ss; Cirino dos Santos, Juarez, A Moderna Teoria, p. 24; em sentido contrário, Gallas, Zum
gegenwiirtigen, pp. 19 ss. Para o debate na Itália, Balbi, Giuliano, La volontà, pp. 248 ss;
Marinucci, G., li Reato come "Azione ".

79
marginalizados com um programa de encarceramento massivo que foi ade-
quadamente chamado de atuaria/4.

3. Sobre as funções desempenhadas pelo conceito jurídico-penal de ação


existem diversas opiniões. Freqüentemente se lhe atribui a função de base
comum para todas as fonnas estruturais de conduta punível, o que alguns
chamam função classificatória5, outros elemento fundante 6 e outros con-
ceito abrangente1. Muitas vezes se adiciona a tal função a de elemento
vinculante8 e também delimitador9, não faltando quem mencione uma fun-
ção negativa e imputativa'º. Da perspectiva de uma funcionalidade reduto-
ra do poder punitivo -que pennanentemente busca exercer-se arbitrariamente
e segundo critérios de seleção pessoal - o conceito jurídico-penal de ação
deve ser construído de modo a que opere como contenção deste impulso,
sendo a/unção política (de neutralização da criminalização por seleção
pessoal) aquela que deve ser priorizada e subordinar as demais. Deriva daí
que um conceito idôneo para assumir esta função limitadora não pode
sujeitar-se à prova de verdade ou falsidade conforme sua aptidão para
abranger todos os pressupostos de fato recolhidos nas condutas que a
criminalização primária tornou puníveis, e sim, pelo contrário, deve servir
para limitar a criminalização primária. Seu fundamento jurídico deve
ser buscado na Constituição e no direito internacional dos direitos hu-
manos, e não nos tipos legais de injusto, que serão inconstitucionais se
pretenderem criminalizar algo distinto de uma ação assim compreendi-
da. Qualquer tipo que pretenda habilitar o exercício de poder punitivo tendo

4 De Giorgi, Alessandro, li governo de/1 'eccedenza, p. 113.


j Jakobs, p. 156 ss. A uma "função de classificação" se refere, no Brasil, Paulo César Busato
(Direito Penal e Ação Significativa, p. 47).
6
~aihofer, Der (-{andlungsbegriff, pp. 6 ss. Como '.'~JementQ básic? e f~ndamertal dp
conceito de crime''. se refere Fragoso à ação (ÇonduJa Punjvel, p. S); ~omQ '.'.qµcleo clq
conceito" de crime, Aníbal Bruno (Direito Penal, t. 1°, p. 276); como "elemento básico,
unitário", Cezar Bitencourt (Teoria Geral do Delito, p. 40).
7
Roxin, p. 184; no mesmo sentido, Luzón Pena, Diego-Manuel, em Estudios Jurídicos en
memoria dei Prof Dr. José Ramón Casabó Ruiz, 11, pp. 143 ss; Serrano Piedecasas, José
Ramón, Crítica formal dei concepto de la omisión, pp. 981 ss. Cirino dos Santos fala de
uma "função de unificação" referida à "capacidade de compreender a ação e a omissão de
ação, sob formas dolosa e imprudente, como espécies de comportamentos humanos" ( A
Moderna Teoria, p. 23).
1 Cf. Luzón Pena, loc. cit.
9
Maihofer, op. cit., p. 6; Jescheck- Weigend, p. 219; Cirino dos Santos, op. cit., p. 24; Paulo
César Busato, op. cit., p. 52.
10
Para a função negativa, cf. Kienapfel, p. 17; Kühl, p. 11; Triffterer, p. 29; para a imputativa,
Kühl, p. 40.

80
por base algo distinto de uma conduta humana é inadmissível 11 : o Estado
deve diretamente abster-se de semelhante aberração, que portanto convém
ser descartada pré-tipicamente. Uma programação criminalizante como a de
Herodes é inaceitável, porque ter a pele negra, ser pobre ou muçulmano são
fatos insuscetíveis de criminalização não por sua atípicidade, mas sim por
uma objeção intransponível, de fundo constitucional, que deve ser atendida
antes do tipo: não constituírem conduta humana. A priorização dessa função
política compreende a chamada função delimitadora, segundo a qual um
conceito adequadamente elaborado de ação cumpre também a tarefa de ex-
cluir liminarmente estados existenciais ou comportamentos que a ele não se
ajustem (ausência de ação).

4. A.função vinculante pretende que a ação constitua o "ponto de parti-


12
da" , a matéria prima sobre a qual recairão todos os desvalores das diversas e
sucessivas comportas filtrantes da teoria do delito, que embora se relacionem
complexamente estão sempre referidas à ação. Tal função não pode servir de
pretexto para uma renúncia à ordem seqüencial dos desvalores, esquecendo-se
de que reduzir a irracionalidade é sempre um procedimento racional, mas, ao
contrário, deve advertir para que os desvalores se projetem radicalmente sobre
o único objeto que predicarão. Qualquer transigência aqui poderia significar
uma recaída na teoria totalizante intuitiva do crime, tanto quanto desprezar a
função vinculante implicaria converter a sistemática do delito numa colcha de
retalhos desconexos. Portanto, o conceito de ação capaz de atender à prioritária
função política deve ser suficientemente amplo para abarcar (função abrangente
ou unificadora) todas as formas típicas constitucionalmente admissíveis na
descrição de condutas puníveis 13 • É neste sentido que cabe entender a função
abrangente ou unificadora, e não ao contrário (um conceito de ação plastica-
me11t~ contorcido para "salvar" tipos com deficit de conduta da programação
~P.ffil!1~Hzante):

11
Formalmente essa doulTina é unânime. Cf., p. ex., Fontán Balestra, 1, p. 351; Terán Lomas,
I, p. 253; Núnez, 1, p. 230; Ramos Mejía, em LL 126/1157; Etcheberry, 1, p. 161; Bayardo
Bengoa, pp. 193 ss; Porte Petit, pp. 325 ss; Nelson Hungria, Comentários, II. p. 6; Luiz
Regis Prado, Curso, v. 1, p. 314; Mezger - Blei, p. 50; Baumann, p. 188; Welzel, p. 30;
Mayer, H., p. 42; Schmidhauser, p. 110; Stratenwerth, p. 132; Wessels, p. 8 (na ITadução
brasileira, pp. 16 ss); Naucke, p. 246; Otto, p. 183; Blei, p. 55; Bettiol, p. 258, Mantovani,
p. 157.
12
Munoz Conde, Francisco, Teoria Geral do Delito, p. 9.
13
Sobre sua possibilidade, Octavio de Toledo - Huerta Tocildo, p. 42; Luzón Pena, Diego -
Manuel, loc. cit., com um conceito predominantemente ontológico de ação, sendo os con-
teúdos normativos agregados pelos restantes elementos do delito; nesta linha, Serrano
Piedecasas, op. cit., p. 1.002. Em sentido contrário, ultimamente, Kühl, p. 11.

81
5. Ao largo das diferentes teorias do delito, o conceito de ação manifes-
tou-se em múltiplas versões, com suas respectivas funcionalidades, e também
recebeu distintas denominações, como por exemplo conduta e ato 14, para abar-
car a ação e a omissão. É preferível empregar como sinônimas tais denomina-
ções, que se reportam todas ao mesmo conceito, com todos os seus problemas
e interrogações.

II. O conceito de ação em suas origens


1. Não ensaiaremos a construção de um conceito de ação, apto para
cumprir as funções acima mencionadas, sem um exame dos conceitos anteri-
ormente elaborados e dos respectivos contextos ideológicos. Naturalmente,
estaremos adstritos ao debate penalístico moderno do conceito de ação e de
suas raízes filosóficas ou sociológicas mais próximas. Mas convém registrar a
tradição de interesse filosófico acerca da ação, que na antiguidade remonta a
Aristóteles e na idade média recebeu uma influente contribuição de Tomás de
Aquino 15, e também um interesse sociológico que de Weber seria retomado por
Parsons 16 •

2. Como vimos, para Hegel, em sua concepção do avanço dialético triádico,


o delito, como negação do direito, é cancelado pela pena, enquanto negação do
delito: a negação de sua própria negação reafirmaria o direito. Neste esquema,
o componente antijurídico era a ação, concebida sempre como livre, por ser
inadmissível punir uma conduta que não fosse livre, já que não poderia ser
tomada como negação do direito. O postulado de que só as ações livres podem
ser antijurídicas (incindibilidade da antijuridicidade e da culpabilidade neste sen-
tido) era uma conseqüência da teoria da pena de Hegel, que estendeu seu
critério, para além dos autores hegelianos (como Abegg, Kõstlin, Bemer)17, aos
autores da teoria dos imperativos, que tinham como pano de fundo ideológico o

14 Soler, 1, pp. 243 ss; Fontán Balestra, 1, p. 351; Terán Lomas, I, p. 253; Núi\ez, 1, pp. 230
ss; Mezger-Blei, p. 50; Baumann, p. 188; Stratenwerth, p. 132. Nosso Francisco de Assis
Toledo já empregava "indiferentemente, como sinônimos, os tennos ação, comportamento
e conduta" (Princípios Básicos do Direito Penal, p. 92).
15 Aristóteles, Ética a Nicômacos, especialmente livro VI (pp. 113 ss); Tomás de Aquino, Suma
Teológica, v. III, pp. 117 ss (Tratado dos Atos Humanos).
16
Weber, Max, Economia y Sociedad, v. I, pp. 18 ss.; Parsons, Talcott, The Structure ofSocial
Action.
17
Sobre Hegel, cf. v. I, p. 554 ss (§ 21, II, 4 ss). Cf. Abegg, p. 123; Kõstlin, p. 56; Bemer, p.
69. Sobre os penalistas hegelianos, Sulz, Hegels phi/osophische Begründung, e Flechtheim,
Strafrechtstheorie; particularmente sobre a ação, Bubnoff, Die Enrwick/ung; Welzel, pp.
38-39; Jaen Yallejo, Manuel, EI concepto de acción, pp. 19 ss.

82
estado (legislador) racional. Isso explica porque se disse de Hegel ter sido o
pai do conceito penal de ação 18 •

3. Abandonada a teoria hegeliana da pena, viabilizou-se a construção de


um conceito de ação atrelado a outras teorias da pena (ou a nenhuma,'segundo
se assuma uma funcionalidade teleologicamente projetada ou bem se a deixe
latente). Desde então, o direito penal construiu o conceito de ação em moldes
funcionalmente adequados a teorias preventivas da pena 19, o que continuou até
recentemente, quando se passou a rediscutir menos perfunctoriamente sua fun-
ção manifesta. Apesar dos riscos da simplificação, pode-se afirmar que a siste-
mática positivista e a neokantiana, ou seja, o período que vai do ocaso da influência
hegeliana, no final do século XIX, até a metade do século XX2 º, foi marcado
pela adesão a um conceito causal de ação 21 , inicialmente em versão naturalis-
ta ou descritiva e em seguida como construção conceituai jurídico-
valorativa2 2• Esta ampla tendência nasceu como resultado da recepção penal
do conceito de antijurídicidade objetiva de Ihering, que ensejou separá-la da
culpabilidade e retomar a sistemática objetivo-subjetiva pelo lado objetivo,
exatamente ao contrário dos hegelianos. Tal sistemática não era nova, provindo
dos glosadores e dos práticos, e seria mais tarde difundida em todo o mundo23 •
11
Radbruch, Der Handlungsbegriff, pp. 68 ss; Jescheck, em Fest. for Eb. Schmidt, p. 139.
Importante investigação sobre tal paternidade de Solange Mercier-Josa, Apres Aristote et
Adam Smith, que dit Hegel de /'agir?, em Ricoeur, Paul (org.) LaSémantique de/' Action,
pp. 237 ss.
19
Binding, Die Normen, II, p. 483 e Handbuch, p. 565; Dohna, em ZStW, nº 27, p. 342;
Radbruch, Zur Systematik, p. 161; Hellmuth Mayer, 1936, pp. 195 ss; Welzel, Naturrecht,
p. 197, Das Deutsche Strafrecht, p. 33 e E/ Nuevo Sistema, pp. 25-28; Jakobs, p. 170.
20
Um panorama deste desenvolvimento em Marinucci, Giorgio, E/ delito como acción, pp. 44
ss. e em Juarez Tavares, Teorias do Delito, pp. 17 ss.
21
Beling, Esquema, p. 19; Ranieri, I, p. 195; na doutrina anglo-saxônica, Sa/mond on
Jurisprudence, p. 383, com citações coincidentes de Austin e Holmes.
22
Gallas, Beitriige, pp. 19 ss; Schõnke-Schrõder, pp. 19-20; Mezger, Leipziger Kommentar,
pp. 6-7 e Libro de Estudio, pp. 92-93; Mezger-Blei, pp. 58-59; Radbruch, Der
Hand/ungsbegriff, pp. 130 ss.; Liszt-Schmidt, p. 123; Beling, Grundzüge, pp. 20-21.
23
Para sua difusão no Brasil, Galdino Siqueira, Tratado, I, pp. 269 ss.; Costa e Silva (relutante
com a antijurídicidade), Comentários, pp. 48 ss; Bento de Faria (denominando "material e
psíquico" à oposição objetivo-subjetivo), Código Penal, II, pp. 107 ss; Hungria, Comentá-
rios, v. I, t. II, pp. 9 ss; Aníbal Bruno, Direito Penal, P.G., I, pp. 273 ss.; Basileu Garcia,
Instituições, I, pp. 193 ss; na América Latina, Soler, I, p. 244; Núilez, I, p. 323; Fontán
Balestra, I, p. 405; Terán Lomas, I, p. 258; Porte Petit, p. 302; Villalobos, p. 223; Reyes
Echandía, p. 140; Luis Carlos Pérez, Derecho Penal, l, pp. 334 ss; Mendoza, I, p. 329;
Gaitán Mahecha, p. 99; Castellanos Tena, p. 145; Medrano Ossio, p. 74; Chiossone, pp.
137-138; Cajias, p. 91; na Espanha, Rodríguez Devesa, I, p. 291 ;Antón Oneca- Rodríguez
Muiíoz, I, p. 151; Cuello Calón, p. 325; Quintano Ripollés, Comentarios, l, p. 13; na Itália,
Maggiore, I, p. 317; Santaniello, p. 56; Pagliaro, p. 255; Bettiol, p. 211; nos países nórdicos
e na velha União Soviética, Andenaes, p. 192, Jon Skeie, Den Norske Strajferett, p. 216;
Stephan Hurwitz, Den Danske Kriminalret; Nefte, p. 217; Zdravomislov et alii, p. 116.

83
O enunciado deste conceito causal de ação, em sua versão pretensamente
descritiva ou naturalista, foi formulado por von Liszt como a realização de
uma mudança no mundo exterior atribuível a uma vontade humana. A
esta mudança chamamos resultado. Sua realização é atribuível à vontade
humana quando resulta do movimento corpóreo voluntário. Assim, o con-
ceito de ação se divide em duas partes: de um lado o movimento corpóreo
e do outro o resultado, reunidos ambos pela relação de causa e efeito24 . A
tradução do Tratado de von Liszt por José Hygino, em 1899, explica a fantásti-
ca influência de tal conceito de ação no direito penal brasileiro.

4. Este conceito de ação se apresentava como natural, embora o pró-


prio von Liszt o embaraçasse ao acrescentar que o movimento corpóreo volun-
tário se determinava "através de representações "25 • Não era, pois, algo regido
pela natureza dos "nervos motores", mas sim entranhado nas relações sociais.
Da mesma fonna, a pretensão meramente descritiva fracassava quando von
Liszt conceituava a omissão como não fazer alguma coisa que devia ser
feita e, portanto, como "omissão (sempre) antijurídica"26• Fica claro que,
mesmo em suas origens positivistas, o conceito causal de ação não era nem
rigorosamente naturalista, pelo papel das representações, nem estritamente
descritivo, porque o conceito de omissão não podia ser construído sem referên-
cia à antijurídicidade. Esta última dificuldade não seria vencida quando se ape-
lou à idéia de omissão como inércia muscular, ensaiada por Beling27 •

III. O apogeu do conceito causal de ação e o debate com o


finalismo .
1. Partindo de sua teoria do conhecimento, na qual o valor cria - ou pelo
menos altera - o obj~to valorado2\ o neokantismo epsejm~ a co~struçãq ~~ ~~
conceito de ação que não diferia muito daquele eriunciadq por yon Ljszt n~
•· • • , · ·· • • ' • ' •· \.. - • ' • • ~ ! . 1 •• , 1 , 1

marco positivista. E cômodo, qentro de uma visão idealista, como a do

2
' Liszt, Lehrbuch, 1891, p. 128; na tradução de José Hygino, Tratado, t. I, p. 198.
2
s "durch Vorste/lungen bestimmt" - toe. cit.
26
Lehrbuch, p. 138; na tradução de José Hygino, Tratado, t. I, p. 208. Além da passagem de
Paulo, citada por von Liszt, que afirma atuar fraudulentamente "qui nonfacit quod debet
facere" (D. XLII, VIII, 4), remonta a Tomás de Aquino a consideração de que nem sempre
aquilo que se segue à omissão (quod sequitur ad defectum actionis) é atribuível ao sujeito
por não ter agido, mas somente quando podia e devia agir (sed so/um tunc cum potest et
debet agere); cf. Summa, Tratado dos Atos Humanos, q. VI, art. 3°.
27
Die Lehre von Verbrechen,p. 9.
21
Cf. Beristain, Objetivación; Hartmann, p. 67; Mezger, Moderne Wege, pp. 7-1 O; Heidegger,
p. 99.

84
neokantismo, construir um conceito de ação na medida das necessidades do
direito penal, ainda que desprezando as características ônticas da conduta hu-
mana, e por vezes delirando da realidade. O neokantismo continuou mantendo
aquelas "representações" através das quais se determinava a vontade do su-
jeito (e seu movimento corpóreo) separadas de seu conteúdo, daí decorrendo
uma vontade semfinalidade29, metodologicamente mais manobrável que aquela
de von Liszt,já que nenhuma satisfação maior era devida ao plano da natureza.

2. Em nome da necessidade de construir um único conceito abrangente, o


neokantismo concebeu a conduta como vontade de apertar o gatilho 30, con-
tinuando a remeter seu conteúdo à culpabilidade. Embora reconhecendo que
esta cisão era artificial, o neokantismo a aceitou como uma característica do
conceito jurídico, cuja divergência da realidade cabia assumir enquanto conse-
qüência das premissas construtivas. O conceito causal neokantiano da ação
assim elaborado tinha pouca utilidade prática e muitas dificuldades teóricas31 •
Por um lado, não conseguia erigir-se como conceito superior, apto a oferecer
uma base comum para a ação e a omissão32 , principalmente porque a omissão
(tomada como um não fazer) não é causa de qualquer resultado típico, e, por
outro, porque a causalidade não tem limites e são infinitas as ações que podem
causar resultados típicos.

3. A teoria finalista da ação, como concepção oposta ao causa/ismo, foi


enunciada por Welzel em 193833 e, desde então, desenvolvida nas sucessivas
edições de sua obra geral, até a última ( 11 ª edição, 1969). Sua idéia reitora foi a
construção de um conceito de ação que respeitasse os dados da realidade, ou
seja, um conceito ôntico-ontológico34 de ação, o que implicava frontal rejeição

29 Gallas, Beitriige, pp. 19 ss; Schõnke-Schrõder, pp. 19-20; Mezger, Libro de Estudio, pp.
92-93; Mezger-Blei, pp. 48-49; Radbruch, Der Handlungsbegriff. p. 130-131; Liszt-
Schmidt, p. 123; Baumann, Jürgen - Weber, Ulrich-Mitsch, Wolfgang, p. 124; Austin,
John, Lectures, lição XIII.
30
Beling, Grundzüge, p. 20; Baumann. Grundbegriff, p. 46; Schmidhiiuser, p. 167; Mezger-
Blei, pp. 50 ss; Soler, 1, p. 247; Fontán Balestra, I, p. 405; Núfiez, 1, p. 232; Terán Lomas,
La Teoría, pp. 99 ss; Mirabete, Manual, v. 1, p. 102.
31
Welzel, Das De11tsche Strafrecht, pp. 33 e 150, e E/ Nuevo Sistema, pp. 25-28 e 224.
32
von Weber, Hellmuth, em Fest. for Engisch, p. 328; outra opinião, Kaufmann, Armin,
Dogmatik, pp. 64 ss; Bacigalupo, Enrique, Delitos lmpropios, pp. 77 ss.
33 Welzel, Kausalitiit, pp. 703 ss, reproduzido em Abhandlungen, p. 7; sobre a origem,
Aristóteles, Ética, liv. Ili, 1. Em 1935, Welzel recolhia em Nicolau Hanmann a idéia e a
palavrafina/idade: cf. Nat11ralism11s und Wertphi/osophie, pp. 78-79.
34
A filiação ao pensamento de Hartmann foi negada por Welzel, no prólogo a E/ N11evo
Sistema, onde radica sua teoria na psicologia do pensamento, mencionando especificamente
Richard Hõnigswald (p. 12). Entretanto, mais do que a estrutura da ação na Ética de
Hartmann, há indícios muito veementes de sua influência; Hartmann opõe um "mundo
causal", onde "e/ proceso discurre a ciegas", a um "hombre vidente", capaz de "constrenir

85
do conceito jurídico-penal que não levava em conta o conteúdo das "representa-
ções" que determinavam a conduta conforme a um sentido35 , e que portanto
destruía conceitualmente sua essência de exercício de atividade final.

4. Para o finalismo, as "representações" de Liszt conservam todo o seu


conteúdo; o sujeito parte delas, que sinalizam e antecipam o resultado (mudan-
ça no mundo exterior) que ele deseja produzir, seleciona os meios para conse-
gui-lo e, num terceiro momento, atua - põe em funcionamento a causalidade,
orientando-a à finalidade representada 36• Isto é algo evidente para a ciência e a
filosofia 37 • Em todos esses horizontes de saber a ação é entendida como a
passagem de um estado de coisas a outro, com o que se indica que tal passa-
gem também provoca a transformação 38 • Deste modo, quando na filosofia da
linguagem ou na lógica se alude ao papel das representações39 e a seu conteú-
do (razões, desejos e crenças), o que se faz é reconhecer que esses particula-
res estados mentais fazem parte do universo ontológico da conduta, na forma
de finalidade 4°. É duvidoso que a finalidade como estado mental seja causa, em
sentido tisico, de uma ação, o que Ryle ironizou designando o problema como
fantasma da máquina41 • Adequado embora o gracejo, é errôneo opor finalida-
de (ou estados mentais) à ação: a finalidade não causa a ação, pois a finalidade
conduz e neste sentido é a própria ação4 2 . Isto é evidente, também, num sentido
descritivo ou lingüístico43, porque não são idênticas as afirmações "seu dedo
moveu-se" e "ele moveu seu dedo '"'4, e porque permaneceria para sempre

para su servicio las fuerzas de lo natural" (Autoexposición Sistemática, p. 62). Não está aí
a famosa frase-manifesto de Welzel, "lafinalidad es vidente, la causalidad ciega" (E! Nuevo
Sistema, p. 25)?!
is O sentido como alternativa à antinomia cálculo-loucura em Naishtat, F., p. 329.
36
Sustentou-se com razão que os movimentos voluntários se caracterizam pela falta de assom-
bro ou admiração: Wittgenstein, Ludwig, Investigações Filosóficas, Parte I, nº 628.
37
Para os níveis de análise do discurso da ação na filosofia, Ricoeur, pp. 11 ss.
31
von Wright, G.H., pp. 46 ss; Atienza, M., Para una teoría general de la acción, pp. 5 ss.
39
Sobre isto, com sentido crítico quanto ao funcionalismo, Putnam, Hilary, pp. 119 ss;
Dennet, Daniel, Contenido y consciencia, pp. 135 ss. e Hacia una teoria cognitiva de la
consciencia, pp. 5 ss.
40
Sobre os componentes da subjetividade, Giner, Salvador, p. 43.
41
Ryle, pp. 19 ss. Sobre este debate, Rabossi, Eduardo, La filosofia de la acción y la filosofia
de la mente, pp. 17 ss e Filosofia de la mente y ciencia cognitiva, pp. 17 ss; Campbell, pp.
17 ss; Davidson, D., Sucesos mentales, p. 11; Putnam, H., la naturaleza de los sucesos
mentales, pp. 5 ss; Bunge, Mario, Mente y sociedad, p. 25.
42
Próximo a esta linha J.R. Searle, Jntencionalidad, p. 24.
0
Sobre a relação entre ação e filosofia da linguagem, Vives Antón, T.S., Fundamentos,pp. 141
ss. A influência de Habermas está presente no conceito de ação formulado por Juarez
Tavares em seu último trabalho (Direito Penal da Negligência, p. 225), bem como no estudo
de Paulo César Busato (Direito Penal e Ação Significativa).
44
Homsby, Action; Nino, La filosofia de la acción, pp. 30 ss.

86
insuficiente a explicação da quebra do vidro se a pretendesse satisfazer apenas a
constatação de que a pedra o quebrou45 • Por esta via pode-se afinnar que toda
ação é um ensaio, ou seja, uma tentativa46 , cabendo observar o parentesco desta
perspectiva com o subjetivismo radical que pretendeu sintetizar todo injusto na
fórmula da tentativa47 • À parte esses exageros, coincide-se em que a atuação
humana que merece o nome de ação é aquela que obedece a finalidades48•

5. No âmbito do marxismo analítico49 o debate sobre o conteúdo da ação


se concentra em tomo do conceito de escolha racional, que também pressu-
põe um componente final 5º na idéia de ação orientada pela programação do
resultado através dos meios mais adequados 51 • Não falta quem identifique ação
com plano52 ou com projeto 53 : a ação é um processo no tempo que se
aproxima de um final antecipadamente representado; ao contrário, o fato
é ação acontecida, que contém em si a história dos passos anteriores que
conduziram a ele. Para agir é preciso projetar previamente um fato, de
modo que a ação que se projetará no fato possa conduzir a seu objetivo;
mas o fato representado sempre se antecipa à ação, e assim o último fatu-
ro se apresenta como o primeiro atuaI' 4 • Que o componente final das ações
integra o universo ontológico é algo fora de dúvida mesmo no campo das ciên-
cias, porque sem invocar a categoria da finalidade não é possível indagar em
que medida um fenômeno causa outro. Por isso, Wiener, com o tenno intenci-
onal, quer significar que a ação pode ser interpretada como dirigida a alcançar

45
Davidson, op. cit.; do mesmo, em Ensayos sobre acciones y sucesos, pp. 107 ss, e também
Mente, Mundo y Acción, p. 51; Anscombe, pp. 45-46; crítico, Nino, que contrapõe a tese de
Welzel à de Davidson, desconsiderando que nenhuma versão do finalismo incorporou uma
oposição entre a concepção causal (tese externa da conduta) e a final (tese interna) e que, ao
contrário, a perspectiva ontológica implicou a inclusão do subjetivo como orientação e guia
do objetivo (causação); cf. Nino, E/ constructivismo moral, p. 22.
46
Homsby, loc. cit.; Hampshire, S., p. 131.
47
Cf. infra, § 55.
48
Giner, Salvador, op. cit., pp. 112 ss.
49
Também na historiografia marxista se destaca a importância da conduta individual como
fenômeno subjetivo, em oposição ao reducionismo econômico-estrutural. Cf. Thompson, E.P.,
Miseria de la teoria, pp. 19 e 253; Caínzos López, Miguel, Clase, acción y estructura, p. 61.
so Um penalista marxista como Luis Carlos Pérez tratará de ressaltar que "la acción es
consciente" e que a atividade consciente implica "una e/aboración de propósitos y fines",
dialogando críticamente com a concepção finalista (Derecho penal, l, pp. 339 ss).
51
Elster, Jon, Una introducción a Karl Marx, p. 28; do mesmo, Domar la suerte, pp. 53 ss,
Uvas amargas, pp. 11 ss. e Marxismo, funcionalismo y teoria de los juegos, pp. 21 ss;
Przeworski, Marxismo y elección racional, pp. 97 ss.; Roemer, John, E/ marxismo de la
elección racional, pp. 13 7 ss.
52 Goldman, Alvin, pp. 86 ss.
53 Luckmann, Thomas, pp. 46 ss.
54
Ibidem.

87
um objetivo, ou seja, trata-se de uma condição final, na qual o objeto continente
dispõe de uma correlação, definida no tempo e no espaço, com relação a qual-
quer outro objeto; deduz-se daí que a conduta desprovida de intencionalidade
não se interpreta como dirigida a um objetivo 55. Isto permitiu o desenvolvimento,
através da cibernética, de mecanismos de controle (máquinas com desempenho
"intencional" intrínseco) para uso civil e militar6 • Em suma, qualquer que seja a
combinação de dados ônticos usados para formatar a estrutura da conduta, a
finalidade não pode ficar de fora. A negação deste conteúdo final, por qualquer
via que seja, parece provir mais de preconceitos que pretendem reduzir o saber a
puro decisionismo místico do que de critérios normativos funcionais. Também a
estratégia funcional está condenada ao fracasso se abstrair a realidade.

6. Como mencionado, também no campo das ciências sociais a ação huma-


na constitui um objeto privilegiado57 • Entendeu-se, implícita ou explicitamente,
que as ações individuais são aptas para esclarecer fenômenos sociais; para isso,
era preciso descartar uma concepção mecanicista que subordinasse completa-
mente a ação a processos de socialização ou a obscuridades ideológicas, buscan-
do compreendê-la também pelo conteúdo de finalidade que a animara. Weber
considerou ação uma conduta humana à qual o sujeito vincule um sentido subje-
tivo, não deixando de referir-se à "ação racional conforme a fins"; a isto que
posteriormente chamou-se modelo teleológico aderiria Parsons58• É compreen-
sível que à extinção do Welfare State se seguisse outra versão funcionalista que
abandonasse o indivíduo, objetificado na nova racionalização do poder, fundada
nas idéias de risco e de segurança. O organicismo do medo da revolta tem em
comum com esta variante radical de funcionalismo o abandono da centralidade
da pessoa59 e sua substituição pela redução de complexidade do sistema, de tal
modo que a supressão da ação se assemelhe a uma libertação60•

7. O conceito welzeliano de ação final tem raízes na ética aristotélica,


segundo a qual "a origem da ação é a escolha( ... ) e a origem da escolha está
no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim", pois "qualquer pessoa que faz
alguma coisa a faz com vistas a uma finalidade" 61 • O causalismo havia reitera-

ss Wiener, Norbert, p. 18.


s6 Rosenblueth, Arturo - Wiener, Norbert, p. 14; Bunge, Mario, Causalidad, p. 168.
s7 von Wright, G.H., Explicación y comprensión, pp. 18 ss; Rizter, George, Teoria Sociológi-
ca, p. 174.
ss Max Weber, op. cit., pp. 5 e 20; Talcott Parsons, op. cit.
s9 As categorias de papéis, funções e lógica sistêmica perdem a perspectiva do humano
individual, para convertê-lo em algo intercambiável e inteiramente fungível (cf. Zolo, Danilo,
I rischi, p. 17).
60
Luhmann, N ., F in y racionalidad en los sistemas, p. 16.
61
Aristóteles, Ética a Nicômacos, p. 114 (cap. VI; 1139 b).

88
do o conceito de ação de Liszt, embora sua sistematização se valesse, na distin-
ção entre injusto e culpabilidade, de um critério que tendia a disfarçar os incon-
venientes da oposição objetivo-subjetivo. Esta crise se anunciara já na
sistemática proposta por Hellmuth von Weber62 antes de 1930, que embora não
abandonasse a metodologia neokantiana, reclamava por um novo conceito de
ação como eixo central de toda a teoria. O neokantismo penalístico não havia
erradicado a estrutura fundada no conceito causal-positivista, ainda que hou-
vesse podido tê-lo feito se tivesse levado às últimas conseqüências suas pre-
missas metodológicas. Foi outra corrente, fundada numa teoria do conhecimento
realista, que questionou o conceito lisztiano de ação, conceito que seria susten-
tado, no grande debate do pós-guerra, por Edmundo Mezger63 . Para o finalismo,
contrapondo-se ao idealismo - que, na versão mais extremada, afirma que o
ato de conhecimento é um ato de criação - o valor (ou o conhecimento) não
altera o objeto valorado (ou conhecido). A distinção entre valoração do objeto e
objeto da valoração adquire então importância metodológica, não apenas para
a tipicidade mas em todos os estratos do delito, porque a valoração é sempre
uma predicação64. Não há predicados sem objeto~ logo, pretender que o predicado
cria o objeto é na verdade criar objetos que não existem. A ação, do ponto de
vista finalista, não é um conceito que se possa inventar ao gosto e ao molde do
direito penal, mas, pelo contrário, impõe-se respeitar sua estrutura ôntica, sob
pena de não se dispor de nenhum objeto de valoração, e tão somente de um
valor valorável. Para o finalismo não era admissível um conceito de ação que
ignorasse seus dados ônticos. Uma ação com vontade mas sem finalidade
no plano jurídico é uma ação sem vontade no plano ôntico (porque não
existe vontade sem finalidade); e uma ação sem vontade não é uma ação
e sim um processo causal. Quando apelou a um conceito valorativo de ação, o
neokantismo fez com que o desvalor do injusto não incidisse sobre uma ação, e
sim sobre um processo causal.

8. O conceito finalista de ação provocou extenso debate65 . As objeções ao


causalismo dirigiram-se particularmente sobre sua capacidade para constituir o
62 Weber, Grundriss des tschechoslowakischen, pp. 13-19; do mesmo, Grundriss des deutschen
e Zum Aujbau; Dohna, Der Aujbau.
63 Sobre a polêmica, Engisch, Probleme, p. 141; Bockelmann, p. 151; Welzel, Um die fina/e
Handlungslehre; Busch, Moderne Wandlungen; Mezger, Moderne Wege e Die Handlung;
Gallas, op. cit.; Niese, Finalitiit; Maihofer, Der Handl11ngsbegriff, p. 156; Jescheck, Der
strafrechtliche Handlungsbegriff, p.139; Hardwing, Die Zurechnung; Mayer, H., p. 49;
Rittler, p. 613; Nowakowski, pp. 335 ss; Roxin, em ZStW 74/515; Niese, em JZ, 1956, p.
36; Wolf, Der Handlungsbegriff.
64
Kilpper, Georg, Grenzen, p. 199. •
65 Além do debate em alemão, já mapeado: Santoro, p. 319; Bettiol, p. 237; Rodríguez
Mourullo, El teleologismo; Gallo, La teoria de/la azione; Dall'Ora, Condotta omisiva;
Campisi, Rilievi; Porzio, Uno studio; Latagliata, La desistenza; La Porta, La teoria;

89
elemento fundante comum entre ação em sentido estrito e omissão66 ou entre
ação dolosa e ação culposa67, pretendendo que a utilidade do conceito finalista se
restringia aos delitos dolosos ativos, acrescentando alguns que, mesmo neste
âmbito, apenas aos crimes de resultado material. Certamente o conceito finalista
não era uma panacéia para todos os problemas da teoria do delito, e as tentativas
de substituir a não finalidade por uma finalidade potencial e a não causação
por uma causação potenciaf°8 bem revelaram suas dificuldades. O longo deba-
te foi acompanhado por uma maior elaboração da teoria, que caminhou para a
concepção da culpa como violação objetiva do cuidado, da omissão como aliud
agere69, sem prejuízo de outras variáveis que levaram alguns dos partidários do
finalismo a atribuir-lhe operatividade apenas para a ação em sentido estrito, e não
para a omissão70, outros a negar que um conceito pretípico de ação pudesse
cumprir com suas funções fundante e vinculante71 , não faltando quem propugnasse
pela reforma da culpa como dolo de perigo, a partir do risco permitido72. Objetou-
se ainda que no curso de atividades conscientes sobrevêm atos semi-automáticos
que são fruto de um adestramento prévio, chegando-se a falar de finalidade
inconsciente73 , e recentemente as baterias se voltaram contra os próprios fim-
damentos construtivos ônticos: não só afrontariam eles a máxima kantiana se-
gundo a qual do ser não se consegue deduzir o dever-ser, mas o próprio conceito

Santamaria, Prospettive; uma síntese do debate italiano da época em Danneert, Diefinale;


Rodríguez Mufloz, la doctrina; Beristain, Objetivación; Suárez Montes, Consideraciones;
Gimbemat Ordeig, la causalidad, p. 562; do mesmo, E/ sistema e Delitos cua/ificados;
Cerezo Mir, E/ concepto; do mesmo, La consciencia e Curso; Mufloz Conde, Introducción;
Fukuda, Vorsatz, pp. 38-50; do mesmo, Die Fina/e, p. 251; Ohno, p. 261; Tjong,
Beziehungen, p. 277; Kienapfel, em JZ, 1972, p. 569; Moos, pp. 5 ss.; Cury Urzúa,
Orientación; Cousif\o Maclver, Derecho Penal; Bustos Ramirez, Culpa y Finalidad; Moisés
Moreno, Der Fina/e; Novoa Monreal, Causa/ismo y finalismo. Para o debate no Brasil, cf.
supra§ 25, VI, 8. Sobre a confusão entre dolo e finalidade, Roxin, Zur Kritik, em ZStW, 74,
1962, p. 515; Welzel, Vom Bleibenden e Das Neue Bild, pp. 26-27; Gimbemat Ordeig,
Delitos cua/ificados, pp. 113-114; Watennann, pp. 133-134.
66
Mezger-Blei, p. 79; no finalismo, Kaufmann, Annin, Dogmatik, pp. 64 ss.; Bacigalupo,
Delitos impropios, pp. 77 ss.; Huerta Toei Ido, Susana, Problemas fundamentales.
67
Engisch, Der fina/e, p. 141; Bockelmann, Tiiterschafi und Teilnahme, pp. 20 ss.; Schõnke,
Strafgesetzbuch Kommentar, 3" ed., § 1º; Nagler, Leipziger Kommentar, 6º ed., p. 24;
Mezger, Moderne Wege e Vom Sinn der Strafbaren Handlung, em JZ, 1952, p. 673;
Kaufmann, Arthur, Das Schuldprinzip, p. 166, e Die fina/e, p. 145; Stratenwerth, em Fest.
fiir Welzel, p. 289; Roxin, Zur Kritik, p. 527.
68
Kaufmann, Annin, Dogmatik, pp. 64 ss.
69
Luden, p. 219; Liszt, lehrbuch, p. 109; Rohland, p. 19; Hippel, II, p. 153; Bar, II, p. 244;
Kollmann, p. 372; críticos, Mayer, M.E., pp. 108-110; Schmidt, Eb., Der Artz, p. 160;
Gallas, Beitriige, p. 19.
°
7
Kaufmann, Die Dogmatik; Stratenwerth, nº 140; Hirsch, ZStW, 93, 1981, p. 851.
71
Kaufmann, Armin, em Fest. fiir Welzel, p. 393.
72
Struensee, em ADPCP, 1987, p. 423.
73
Stratenwerth, Unbewusste, p. 298.

90
de finalidade, após ingressar no tipo, converter-se-ia num conceito valorativo,
determinado pelos objetivos da ordem jurídica74 •

9. Na medida em que aspectos relevantes apontados pelo finalismo inte-


gram o conceito de ação que corresponde a nossa perspectiva redutora, é pre-
ciso considerar essas objeções. Contudo, cabe advertir que as refutações
contemporâneas do funcionalismo sistêmico não são muito diferentes das obje-
ções esgrimidas pelo neokantismo, em sua defesa das concepções causais no
debate do pós-guerra. À máxima de que do ser não pode provir o dever-ser
respondeu-se filosoficamente que o dever-ser é um ser que não é (ou, pelo
menos, ainda não e'). Assim, invertendo-se a questão, converge-se em que
tampouco do não-ser se poderia chegar ao ser. Quanto à valoração de que se
impregnaria a ação instalada no tipo, é objeção que confunde a velha distinção
entre objeto da valoração e valoração do objeto. Em seus últimos anos, Welzel
assinalava malentendidos criados pela designação "finalista", que estariam
superados caso houvesse ele podido se valer da expressão "cibernética", fa-
lando de uma ação biociberneticamente antecipada15 , no sentido de que
toda ação humana manifesta se planifica e se exerce conforme a um objetivo.

TV. Os conceitos sociais de ação


1. Não é inteiramente correto referir-se a um conceito social de ação16•
É mais apropriado falar de conceitos sociais de ação ou de esforços cons-
trutivos de diferentes conceitos sociais de ação, que parecem compartilhar
um postulado interessante: partindo do dado de que os tipos penais não podem
incorporar processos fisicos (como supunha o causal ismo) e atribuindo um cer-
rado psicologismo à teoria finalista, procuraram desenvolver teorias da ação
que tivessem por referência central seus efeitos sociais.

2. Um primeiro enunciado se deve, ainda nos anos trinta do século XX, a


Eberhard Schmidt77 • Atualmente, vários autores78 trabalham com uma teoria
74
Roxin, p. 194.
75
Frank, Elmar, pp. 14 ss; Nilo Batista, Concurso de Agentes, prefácio à 2ª ed.
76
Muitos o consideraram superador do dilema causal ismo-finalismo: Maihofer, Der Soziale,
p. 156; Jescheck, Der Strafretliche, p. 140; como variante do causalismo, Maurach, p. 174;
Gimbernat Ordeig, Delitos cualificados, p. 117.
77
Liszt- Schmidt, Lehrbuch, p. 153; Schmidt, Der Artz, p. 78 e Soziale Handlungslehre, p.
339; crítico, Weber, Bemerkugen, p. 331 .
71
• Jescheck - Weigend, p. 222; Wessels, p. 17. No Brasil, tratou da teoria social da ação,
pioneiramente (recorde-se sua tradução de Wessels), Juarez Tavares (Teorias, pp. 91 ss.);
cf. também Juarez Cirino dos Santos (A Moderna, pp. 17 ss); Cezar Bitencourt (Teoria
Geral, pp. 46 ss); Paulo César Busato (Direito Penal e Ação, pp. 23 ss).

91
social da ação, alguns como uma variante da teoria causal, outros como síntese
superadora do dilema causalismo-finalismo. Houve quem, procurando enfatizar
o contexto social conflitivo na teoria da ação, acentuasse uma sistemática
causalista do delito79, mas autores contemporâneos optam por uma sistemática
próxima do finalismo, ou pelo menos da neokantiana de Hellmuth von Weber.

3. Ausente de suas origens, uma influência fenomenológica foi introduzida


nesses esforços a partir da versão de Maihofer8°, ainda que sem maiores conse-
qüências sistemáticas. Na verdade, o ponto de confluência dessas tendências
consistiu em remarcar que a ação penalmente relevante tem sempre um sentido
ou efeito social 81 • Como tal característica parece insuficiente para proporcionar um
conceito independente de ação, Welzel respondia que o único conceito válido de
ação social era o final 82• De fato, é muito dificil atribuir à ação seu sentido social
sem desde logo saber a que se propunha o agente. A equivocidade da caracteriza-
ção da ação social ensejou construções díspares, que será útil esclarecer.

4. Através dessas construções pretendeu-se encontrar, em nível pretípico,


um conceito de ação abrangente da ação em sentido estrito e da omissão,
apelando a seu sentido social. No espaço pretípico, isto apenas exumava a
centenária demanda de Liszt: omitir é um verbo transitivo, que remete neces-
sariamente ao complemento, pois quem omite sempre omite algo. Como este
algo há de, também necessariamente, alojar-se no tipo, a ação deixa de ser
uma referência pretípica. O outro caminho seria deslocar o algo - embora
nenhum autor dessa corrente o tenha expressado claramente - para que a
ação devida pudesse referir-se pretipicamente a uma "ética social". Esta alter-
nativa conduz a um juízo fático logicamente difícil e politicamente perigoso,
porque a ética social não é única nas sociedades de classes, e portanto implica-
ria referência a critérios incertos, acerca dos quais a arbitrariedade do intérpre-
te operaria livremente. Para contornar este inconveniente, a teoria social
reencontraria as mesmas dificuldades das demais.

5. A requisição de significação social pode ter um resultado fecundo na


exigência de que a ação transcenda o sujeito, ou seja, que produza um
efeito sobre a relação com outra pessoa ou titular de direitos. Certamente toda
79
Assim Dei Rosal, I, p. 564, apesar de Schmidt ter tratado de distinguir sua posição da de
Liszt (Fest. for Engisch, p. 339).
80
Maihofer, Recht und Sein e Naturrecht.
11
Jescheck - Weigend, loc. cit.; Maihofer, op. cit.; do mesmo, Der fina/e, p. 141; em sentido
próximo, Engisch, Derfina/e e Vom We/tbald; Wolf, Der Handlungsbegriffe Das Problem,
p. 291; Würtenberger, Die geistige Situation; Kaufmann, Arthur, Die ontologische Struktur,
pp. 96 ss; crítico, Baumann, p. 197.
12
Welzel, E/ Nuevo sistema, p. 33; Moreno Hemández, p. 104.

92
ação humana, se deve realizar-se no mundo físico e se responde a certo proce-
dimento psicológico, também se produz num contexto social e portanto cultural.
Enquanto os ensaios construtivos reafinnem a dimensão social e cultural da
ação, não há maiores inconvenientes: o risco é pretender, através do sentido
social, uma abstração cultural que espiritualize a exteriorização até o limite
intolerável em que o substrato material da conduta seja dispensado.

6. Ao contrário, a inclusão na exteriorização da ação de seu sentido social


pode levar a conseqüências úteis: o caráter social da ação implica transcender o
agente (alteridade), embora a conflitividade jurídica (lesividade) da ação constitua
um requisito de sua tipicidade. Ao nível do nullum crimen sine conducta a garan-
tia redutora se esgota com a exigência da transcendência interativa da ação. A
lesividade não é uma característica substancial do conceito jurídico-penal da ação
porque não pode estabelecer-se pretipicamente, sem concreta referência nonnativa
ou valorativa. Os dois níveis de garantia são importantes, porém devem permane-
cer separados,justamente para evitar que, por força de insistir-se na função política
da ação, se tennine por distender o conceito além de seus limites lógicos redutores,
com o efeito paradoxal de debilitar a função que se pretendia reforçar.

V. A identificação com a ação típica


1. O conceito de ação do neokantismo resultava de uma construção centrada
nos tipos, no contexto de uma teoria classificatória do delito, elaborada por uma
dogmática que não tomava em conta o controle de constitucionalidade. Conside-
rando as dificuldades para encontrar um conceito de ação que pudesse atender
às especificidades de todos os tipos, tal procedimento metodológico teria como
conseqüência a ~upressão da ação como base teórica do delito, substituída pela
próP,tja tipicidaq~; em ~u~a, a identi fic!içãq ~a aç~'a co~o
~çaR ~a/!za4~rq ({o
iiPíl: ~ss~ prqposta foi apresentada em, f930 por Radbruch83 e susten~~ªi cpm
distintas fundamentações, por outros autores84 . Na prática, isto significava redu-
zir o delito a dois componentes: o injusto e a culpabilidade.

2. Talvez tenha sido essa a proposta na qual com maior clareza avulta o
compromisso da teoria do delito com a função atribuída ao saber penal. Se a
tarefa do direito penal é tão somente oferecer critérios classificatórios para faci-
litar a decisão sobre casos concretos, no marco da legislação vigente - que não

83 Fest. f Frank, pp. 161-163.


84
Weber, Bemerkungen, pp. 328-338; Bockelmann, pp. 40 ss; Schmidhãuser, p. 11 O. É curioso
que Heleno Fragoso, pioneiro no estudo da ação (Conduta Punível), tenha sido atraído por
essa orientação (Lições, 11 ª ed., p. 157); percebeu-o Walter Coelho (Teoria Geral, p. 29).

93
deve ser questionada ao confronto de uma norma superior-, a utilidade da pro-
posta é evidente. Mas se ao direito penal se atribuem funções redutoras do poder
punitivo, é forçoso reconhecer que tal proposta se põe na contramão delas, pois
uma ação concebida a partir e segundo o recorte dos tipos penais ostenta o
grave inconveniente de permitir que o legislador disfarce de "ação" esta-
dos, situações e dados que não o são. Isto fica ainda pior quando sequer se
construa um conceito pretípico, reduzindo-se o conceito de ação ao que os tipos
manifestem. Aqui, temos um naufrágio do nullum crimen sine conducta.

3. É claro, do ponto de vista sistemático, que o deslocamento do conceito


de ação da base construtiva do delito só multiplica os problemas, ensejando
uma espécie de normatização - muito freqüente no neokantismo - que se es-
gota em si mesma e que interdita a compreensão das características gerais da
conduta, manifestada nos tipos. Como se poderia qualificar de típica alguma
coisa que não se definiu previamente? Como o adjetivo típica funcionaria sem
o substantivo ação? Sobre qual objeto incidiriam os desvalores da antijuridicidade
e da culpabilidade? Definitivamente, o delito seria um conceito com a preten-
são de ser elaborado sistematicamente, sem que tal pretensão sistematizante
dispusesse de um elemento vinculante 85•

4. Embora essa radicalização da metodologia neokantiana ponha em evi-


dência seus defeitos, riscos similares rondam todos os esforços construtivos do
conceito de ação cujo critério de verdade seja a capacidade de abranger todas
as matérias de proibição típica, ao invés de assumir a função de limitação des-
sas matérias. Inverte-se, por esse caminho, a função mais elementar do saber
penal: em lugar de perguntar-se se a coisa cabe na caixa, bisonhamente admi-
te-se que qualquer coisa cabe numa caixa feita na medida para a dita coisa. A
omissão de socorro a morto, da legislação brasileira de trânsito86, constitui con~
duta punível porque sediada num tipo, a despeito de sua cômica irracionalidade.

5. Outro problema sistemático criado por essa posição passa pela constatação
de que o conceito de ação, no direito penal, não pode ser exclusivamente típico, pois
existem tipicidades que dependem de condutas de terceiros, como os chamados
"concorrentes necessários impróprios"87. Nesses casos, é óbvio que a falta das
ações próprias ou concomitantes da vítima, ou de terceiros, requeridas pelo tipo
porém não proibidas, conjura a tipicidade ou transfere a investigação para uma

as Roxin, pp. 201-202.


86
CTB, art. 304, par. ún.: Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda
que( ...) se trate de vítima com morte instantânea.
17
Assim o necessitado que instiga o agente a receber a garantia extorsiva (art. 160 CP), ou a
raptada que consente (art. 220 CP). Cf. Nilo Batista, Concurso de Agentes, 2" ed., p. 180.

94
tipicidade diferente. Fica demonstrado, em qualquer caso, que o conceito de ação
não pode ser deduzido da (ou identificado com a) ação proibida no tipo.

VI. O conceito negativo de ação e sua variante funciona/is ta


1. A partir dos anos setenta, iniciou-se a peculiar construção de um con-
ceito de ação centrado no modelo da omissão. Se até então se buscara conce-
ber a omissão a partir da estrutura da ação, a nova construção procurava
compreender a ação partindo da estrutura da omissão. A chave comum dos
autores que experimentaram essa via estava na caracterização da ação sobre
a base da evitabilidade: para o direito penal, ação seria a evitável não evitação
8
em posição de garantido/ • A posição de garantidor, categoria jurídico-penal
criada para os delitos omissivos impróprios, ao escopo de racionalizar o amplo
espectro criminalizante que resultaria de que qualquer não evitação pudesse
ser típica, é generalizada e estendida também aos delitos comissivos: toda pes-
soa atualiza sua agressão ao bem jurídico com um movimento tisico delituoso e,
por isso, em razão desta conduta precedente, assumiria a posição de garanti-
dor89 . O conceito assim formulado não abrange os tipos que não requisitam do
sujeito ativo a posição de garantidor, como os delitos omissivos próprios, que
ficam ao relento perante tal conceito de ação.

2. Mas a crítica fundamental que essa teoria merece, para além da inad-
missível extensão da posição de garantidor e de sua insuficiência diante da
omissão própria e mesmo dos crimes comissivos de mera atividade, reside em
seu fracasso para abranger a ação em sentido estrito (atividade) e a omissão.
Nas formas ativas, a evitação equivale à não produção do resultado; logo, a
não-evitação (= produção de resultado) é uma não-não-produção de resulta-
do (negação da negação é afirmação); nas formas omissivas, a não evitação
equivale à produção do resultado, e a evitação corresponde à não-produção
do resultado. Nada muda essencialmente: ação e omissão continuam distintas,
mesmo olhadas num espelho. O impasse não é transposto com a iniciativa de
enraizar o conceito negativo de ação na supressão da contrapulsão psíquica, de
90
fundo psicanalítico , que seria comum à ação e à omissão, porque isto não
91
avança muito além da velha voluntariedade do causalismo •

88 Herzberg, op. cit., p. 173. Cf. também E/ delito comisivo doloso, em RBCCrim 52/177 ss.
89
Herzberg, loc. cit.
90
Behrendt, Die Unterlassung im Strafrecht. A impropriedade de " reduzir conceitos funda-
mentais da psicanálise aos limites funciona is do conceito de ação" em Cirino dos Santos, A
Moderna Teoria, p. 21.
91
Behrendt, op. cit., p. 173.

95
3. Ao conceito negativo de ação, em qualquer de suas versões, aplica-se
como luva a crítica endereçada às propostas que abandonam o momento
pretípico em favor de uma ação realizadora do tipo. Os negativistas se esme-
ram em advertir que não tem sentido perguntar-se sobre a evitação de um
convite para almoçar, senão apenas sobre a evitação da exteriorização da
destrutividade humana. Por isso, o conceito negativo de ação merece a mes-
ma crítica que o procedimento de identificação da ação com a ação típica92 •

4. Arrancando da distinção entre governo da ação e governo do impulso


ou motivação, Jakobs sustenta que o pertencimento do primeiro ao injusto e do
segundo à culpabilidade não é uma questão ôntica, e sim uma decisão acerca do
sujeito do injusto, que corresponde ao direito penal93 • Por isso, afinna que o sujei-
to do conceito causal de ação é menos específico que o do conceito final, que
atua governando a ação, mas sempre dentro do governo da ação e coincidindo
ambos - causal e final - no deslocamento do governo da motivação para o nível
da culpabilidade. Para isso, parte de Luhmann, segundo quem a construção do
conceito de ação é um malentendido94, porque definitivamente trata-se sempre
da construção de um sujeito e de seu relacionamento com o mundo exterior95 •

5. Como resultado de sua refutação da construção finalista da culpa, pre-


servada contudo para o dolo, Jakobs trabalha um conceito de evitabilidade indi-
vidual que seja abrangente do dolo e da culpa. A causação individualmente
evitável do resultado é o conceito abrangente da conduta individual dolosa
e culposa. O conhecimento da execução da conduta e em certos casos de
suas conseqüências (no dolo) ou a cognoscibilidade individual (na culpa)
pertencem à ação como condições da evitação, e com isto ao injusto. Resul-
ta daí que no âmbito do dolo não há diferença com o conceito final de
ação: apenas removeu-se a extensão da finalidade dirigida ao resultado
para a evitabilidade do resultado96. Esta mudança pennitiria compreender a
• • , 1 1 • o •

culpa e as ações culposas automatizadas num conceito abrangente ~~ aç~p ~pb


as comuns condições de evitabilidade. Desde logo Jakobs se defronta cpm a
omissão e coincide com a velha observação de Radbruch, no sentido de que, caso
fossem, a ação e a omissão, afinnação e negação de algo, não seria possível
abrigá-las no mesmo guarda-chuva; porém como não constituem uma afinnação
92
Sobre isso, Roxin, p. 198; nosso Paulo César Busato observa que, para os negativistas,
"ação e omissão seriam conceitos que pertencem ao tipo de injusto" (op. cit., p. 115).
93
Jakobs, p. 156; em sentido análogo, Bacigalupo, 1984, p. 92.
" De Giorgi, Raffaelle, Azione e imputazione, pp. 21 ss, como Jakobs, identifica imputação
com ação (ação como comportamento imputável).
9
' Jakobs, p. 169; privada de base ontológica, fica a ação reduzida a uma questão imputativa;
Insolera, Gaetano, Prob/emi, p. 273 .
96
Jakobs, pp. 174-175.

96
e seu contrário, o único que se pode encontrar em comum é um nome (conduta),
não porém um conceito abrangente. Jakobs coincide no nome abrangente (con-
duta) e o converte em conceito através da evitabilidade: o conceito de ação
como evitável causação e o correspondente conceito de omissão como evi-
tável não-impedimento do resultado permitiriam construir um conceito
abrangente de conduta que na respectiva evitação de um resultado diferen-
te abarca o que há de comum entre ação e omissão. Em síntese, conduta
seria a evitabilidade de um resultado diferente97.

6. Jakobs afasta-se da concepção negativa de ação, refutando o que con-


sidera a dissolução dos delitos ativos na omissão98 . Por isso, mantém separadas
ação e omissão e constrói com a evitabilidade o conceito abrangente de con-
duta. Pareceria que, enquanto a concepção negativa pioneira, dos anos seten-
ta, impunha como modelo a omissão, Jakobs toma como modelo a culpa, o que
redunda em dificuldades análogas. Expõe-se esta variante à mesma crítica que
recái sobre a versão pioneira: ensaia-se aqui também um conceito de ação que
se identifica com uma ação realizadora do tipo. Especialmente no caso da omis-
são, toda referência pretípica ao resultado requer uma prévia individualização
dele, que é típico. A individualmente não evitável causação do resultado
não constituiria uma ação atípica: simplesmente não constituiria uma ação. A
rigor, a evitabilidade desempenha funções importantes na teoria do delito, espe-
cialmente no campo do injusto; não, porém, no conceito de ação.

7. Mais tarde, Jakobs aprofunda ainda mais sua construção exclusivamente


jurídica da ação, argumentando que todo conceito de ação prévio à culpabilidade
é provisório, pois só após reconhecida a culpabilidade poder-se-ia afirmar que
houve uma ação para o direito penal99• Procura assim entroncar-se em Hegel,
embora evite as conseqüências sistemáticas ao custo de assumir que, para o
direito penal, as ações não delituosas não são ações. A ação como evitabilidade
permite que ele separe a antijuridicidade (imputação objetiva) da culpabilidade
(imputação subjetiva): com a primeira afere-se a evitabilidade pelo parâmetro
das expectativas conforme a papéis sociais; com a segunda, como evitabilidade
individual. Isto sugere uma cisão do dolo em componentes cognoscitivos, que
pertencem ao injusto, e volitivos, que passam à culpabilidade.

97
Jakobs, p. 177.
98
Jakobs, p. 176.
99
Jakobs, pp. 157 ss.

97
VII. O conceito pessoal de ação
l. Avariante funcionalista de Roxin postula um conceito de ação pretípica,
criticando Jakobs e a concepção negativa exatamente por construírem a ação
como parte da teoria da imputação 100• Roxin formula um conceito pessoal de
ação que se afasta do causal e do final: a ação é manifestação da persona-
lidade, entendendo-se como tal aquilo que é produzido pelo homem enquanto
centro de ação anímico-espiritual'º'. Roxin acredita que seu conceito seja
abrangente, já que ações dolosas e culposas seriam exteriorizações de per-
sonalidade, tanto quanto as omissões. Causalidade, resultado, finalidade, rele-
vância social etc. seriam questões que correspondem ao injusto e à culpabilidade,
porém que só interessariam se e quando existisse uma exteriorização da persona-
lidade 1°2. Assinala Roxin que tanto o conceito naturalístico de ação (Liszt, Beling)
quanto o extremo normativismo (concepção negativa) afastam-se da experi-
ência comum, o que não sucederia com um conceito jurídico fundado na
exteriorização da personalidade, que teria uma base prejurídica penal. .

2. Contudo, Roxin admite que em certos casos é impossível sustentar seu


conceito de ação pessoal completamente neutro frente ao tipo, particularmente
nas omissões. Admite ele que o conceito de exteriorização da personalida-
de não é completamente neutro em todos os casos frente às instâncias
valorativas do tipo, já que no âmbito das omissões ele não pode prescin-
dir da valoração jurídica. Uma omissão só constitui manifestação da per-
sonalidade através de uma expectativa de ação. Teoricamente se poderiam
fazer diariamente as coisas mais estranhas, como por exemplo escalar os
postes de luz, esbofetear passantes inofensivos etc. Não fazê-lo não é
uma manifestação da personalidade - e, portanto, não é uma ação -
enquanto ninguém esperar algo semelhante 103•

3. É certo que a teoria de Roxin propicia um conceito de ação útil pelo


prisma da função vinculante, porém, como ele mesmo reconhece, insatisfatório
quanto à condição pretípica da ação. Na omissão socialmente inesperada, nada
teríamos antes do injusto, o que contraria a experiência comum e as requisições
sistemáticas: é inimaginável um tipo que capture um vácuo, um desvalor que
incida sobre o nada ou que tautologicamente defina seu próprio objeto. Por uma
via distinta, parece que Roxin retoma ao dilema de Radbruch.

100
Roxin, p. 201 .
101
Roxin, p. 202.
102
Ibidem.
101
Roxin, p. 205.

98
4. O conceito de ação como manifestação da personalidade levanta
outros problemas. Reconheça-se que seria adequado à conduta de um doente
mental ou de uma pessoa com perturbações da consciência, e ressalve-se que
Roxin não emprega a vox personalidade no sentido em que a incorporou o
direito penal de autor104• Contudo, o conceito de personalidade é complexo e
equívoco 105 , e não constitui grande ajuda esclarecê-lo como atividade anímico-
espiritual. Ainda admitindo que tal conceito significasse um avanço sobre a
velha distinção entre ausência de ato e outras incapacidades psíquicas com
base na intervenção ou não da consciência (mesmo perturbada), o certo é que
ele não avança muito além do modelo de ação realizadora do tipo dos autores
neokantianos, pois se a finalidade pertence à ação dependerá da tipicidade (na
dolosa, ação final; na culposa, causal) e a omissão só constituirá ação na medi-
da que o tipo a reclame (e jamais quando não intervenha uma expectativa
social acerca da conduta omitida).

5. É claro que Roxin procura construir um conceito jurídico-penal de ação


que pretipicamente cumpra a função redutora que o nullum crimen sine
conducta exige, investindo-o corretamente desta função. Todavia, seu ponto
de partida é perigosamente amplo (o inextricável conceito de manifestação da
personalidade), e metodologicamente sua construção visa satisfazer todas as
formas típicas. Ou seja: ainda que não incida em contradição com as linhas de
um direito penal redutor, afasta-se de suas premissas construtivas. Por último,
é inconcebível qualquer exteriorização da personalidade que se dirija ao mundo
(material ou simbólico) privada de sentido, e tal sentido estará orientado por
imagens ou representações, independentemente de que isso seja ou não típico,
de que o tipo requeira a provocação ou não de certo resultado, de que o tipo
espere determinada conduta, ou de que seja ela manifestada com o cuidado
que tal espécie de conduta exige etc. Subir na árvore é uma ação humana, seja
para comer a fiuta, seja para subtraí-la em proveito alheio, aqui para ajudar a
criança travessa, acolá para contemplar a paisagem, ora podando-a cuidadosa-
mente, ora fazendo sem querer com que um galho caia na cabeça do passante ...

104
Para uma visão que aproxima o funcionalismo, especialmente na versão de Jakobs, da escola
de Kiel, cf. Heitor Costa Júnior, Crítica à legitimidade do direito penal funcionalista, em DS-
CDS 9-10/95 ss.
105
Sobre sua "anemia significativa", extensamente, Saio de Carvalho, em Carvalho,Amilton B.
e Carvalho, Saio de, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 53 ss; sobre seus "limites incertos
e difusos", Cirino dos Santos, A Moderna, p. 22.

99
§ 28. A AÇÃO E SUA AUSÊNCIA EM FUNÇÃO REDUTORA

I. A ação é um conceito jurídico


1. O conceito de ação do direito penal é um conceito jurídico, e é duvi-
doso que mesmo Welzel tenha querido negá-lo: o que era para ele indescartável
é que o conceito jurídico não podia incorporar algo que não existisse no mundo.
Para além desse debate histórico, o certo é que o direito penal deve construir
seu conceito de ação procedendo por abstração de dados da realidade. Qual-
quer saber que se ocupe da conduta humana procederá da mesma maneira, de
sorte que não existe um conceito de ação real, mas somente uma realidade (a
conduta) da qual cada ciência (ou, dentro dela, cada escola ou tendência), con-
forme seus interesses, abstrai aquilo que considera mais revelador ou mais útil
para seu conceito de ação: a psicanálise enfatizará motivações inconscientes, a
sociologia destacará comportamentos grupais ou interativos, o comportamentalismo
(behaviourism) privilegiou os movimentos corporais sobre a introspecção etc.
Não há qualquer motivo para que o direito penal opte por um conceito de ação
produzido por outro saber, ao invés de elaborar o seu, a partir de seus próprios
interesses. É pois inevitável que o conceito de ação seja, para o direito penal, um
conceito jurídico e não um simples dado da realidade.

2. De acordo com a teleologia redutora que anima nossa construção, um


conceito jurídico-penal de ação deve ser útil como característica geral do delito,
exercendo o papel de conceptáculo que delimita a matéria a ser submetida aos
sucessivos filtros valorativos, na tarefa comum de conter e reduzir o exercício
do poder punitivo. Não é uma tarefa fácil. De um lado, construir um conceito
jurídico-penal redutor que não seja valorativo é uma contradição; de outro lado,
construir um conceito valorativo que se funde naquilo de que o injusto necessita
para qualificar a algo como ação equivale a renunciar à função redutora do
conceito assim obtido. O nullum crimen sine conducta reclama um conceito
pretípico de ação que, sob o império da Constituição e do direito internacional,
se imponha até mesmo ao poder criminalizante primário; se, para construí-lo, a
base estiver no produto - tantas vezes aberrante - dos atos de criminalização
primária (nos tipos legais), o refúgio se converteria numa jaula de leões. Diante
dessa contradição, era ilusoriamente confortável apelar a um conceito ôntico
de ação. O conceito finalista de ação não é ôntico neste sentido. Se é verdade
que não há ação que não seja final (ponto ao qual logo retornaremos), também
não há ação sem motivação; não obstante, os motivos foram abstraídos do
conceito para serem tratados na culpabilidade. Não há aí uma questão ôntica
ou ontológica, mas tão somente uma conseqüência provinda da distinção siste-

100
mática entre injusto e culpabilidade. Tampouco todos os motivos são conscien-
tes, mas o papel limitado dos níveis inconscientes da ação na teoria do delito, ou
seja, sua abstração do conceito jurídico-penal de ação, responde a uma neces-
sidade de racionalidade mínima da ordem jurídica objetivada. Como se vê, tam-
bém o conceito final de ação foi e segue sendo construído por abstração.

3. A diferença entre os conceitos final e causal da ação não reside apenas


em que o primeiro é menos abstrativo que o segundo, mas também em que o
segundo abstrai irracionalmente, pois cinde o incindível, com o que não estaria
abstraindo entes, e sim duplicando-os. O causalismo logrou abstrair da ação a
vontade e construir um conceito de ação reduzido ao movimento causado por
um ser humano e ao processo causal desfechado por tal movimento. Este con-
ceito seria inadmissível por razões sistemáticas,jurídicas e políticas, não porém
por seu procedimento de construção abstrativa. Pretender todavia extrair da
vontade as representações que a orientam não é, no fundo, um procedimento
abstrativo, senão a invenção de uma vontade sem sentido, porque na realidade
não existe uma vontade sem representações que a orientem. O sentido da
vontade é inseparável dela. Para o conceito de ação do direito penal não inte-
ressa a vontade como faculdade e sim como praxis.

4. O complexo ser da conduta humana não impõe qualquer conceito.


Pretender abarcá-lo num conceito de validade universal constitui onipotência
tola, que ninguém jamais ambicionou. Mas o ser da conduta impõe limites para
a construção abstrativa dos diferentes conceitos científicos que a partir dele
serão elaborados. Abstrair aspectos particularmente reveladores ou úteis da
conduta humana não significa invenção livre desses aspectos. Pescam-se, re-
cortam-se pedaços do ser, porém não se pode pescar ou recortar aquilo que
não existe, como uma vontade sem sentido. Em suma, não há um conceito
ôntico de ação, mas há limites ônticos à construção jurídico-penal do
conceito de ação.

5. O reconhecimento desses limites não resolve todos os problemas. A


teleologia redutora e filtrante que deve inspirar todo o saber jurídico-penal e
especialmente orientar a elaboração sistemática do delito não removeria a base
construtiva dos tipos penais, por mais restritivamente que fossem interpreta-
dos. É preciso indagar, portanto, se não existe outra fonte legal que proporcione
a base de construção do conceito de ação e que preferentemente seja oponível
ao poder criminalizante primário, pois do contrário a construção se deduziria da
razão e estaríamos teorizando jusnaturalisticamente. É possível encontrar tal
base na Constituição da República. Quando estudamos o princípio da lesividade,
observamos que a livre manifestação do pensamento, a inviolabilidade da liber-

HD~C/DPM~/\ 101

(;~18llJO~CÃ
......_
,...,;.......,._
E__ _
_,.
dade de consciência e de crença, a proibição de qualquer privação de direitos
em razão de convicção filosófica ou política, a livre expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, e ainda a inviolabilidade da
intimidade e da vida privada, garantidas pela Constituição da República (art. 5°,
incs. IV, VI, VIII, IX e X) impõem - não apenas ao poder criminalizante primá-
rio e secundário, mas também à ingerência coativa do Estado em geral - gra-
ves restrições, com importantes conseqüências no campo do direito penal 106•
Se tais dispositivos constitucionais estão a infonnar ao poder criminalizante
primário sobre matérias de criminalização interditada, há outro do qual se pode
extrair com segurança o objeto possível da criminalização. "Ninguém será obri-
gado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", reza a
Constituição (art. 5°, inc. II). O princípio geral da legalidade possui essa
contraface: se, de um lado, postula a "subordinação do comportamento", da
"atuação das pessoas" 107 apenas à lei, por outro revela as duas grandes moda-
lidades desse "comportamento", dessa "atuação", sobre as quais pode a lei
intervir: fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Tal expressão, como frisado
por Pontes de Miranda, nada tem a ver com o direito das obrigações: fazer
alguma coisa representa "exteriorização ou atuação da vontade humana,
positiva" 108, concebendo Crettela Jr. o deixar de fazer alguma coisa como
"a omissão, a ação negativa que também se projeta no mundo" 109 • O re-
corrente emprego simultâneo das expressões ação ou omissão no princípio da
legalidade penal, garantido em tantos textos do direito internacional dos direitos
humanos 1'º, conforta o entendimento de que a fónnula do princípio geral da lega-
lidade, tradicionalmente inscrita em quase todas as Constituições brasileiras, si-
naliza para a captura legal da conduta - proibições (não fazer alguma coisa) e
mandados (fazer alguma coisa) - que o legislador pode impor aos cidadãos:
ações ou omissões exteriorizadas. Ao "momento" ou ao "lugar em que ocorreu a
ação ou omissão" se referirá a lei penal (arts. 4° e 6° CP), para a qual o resultado
delituoso deve provir igualmente de "ação ou omissão" ( art. I 3 CP).

6. Vale recordar a contradição construtiva que subjaz à elaboração de um


conceito jurídico-penal de ação: procura-se um conceito isento de valor mas a
construção jurídica não pennite eludir seu caráter valorativo. Essa aporia só se
dissolve com a compreensão de que tal conceito é jurídico-penal, e o direito
106
Cf. v. 1, § 11, 1.
101
Pinto Ferreira, Constituição Brasileira, v. I, pp. 65-66.
10• Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, t. V, p. 2.
109
Cretella Jr., Comentários à Constituição Brasileira de 1988, v. I, p. 194. Cretella conflui com
Pontes em excluir da expressão constitucional toda conotação de direito das obrigações.
110
P. ex., art. XI, 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; art. 15, 1 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos; art. 9º da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.

102
penal o constrói como conceito jurídico-penal constitucional, segundo o enten-
dimento de que a lei constitucional é a lei penal de máxima hierarquia. Portanto,
cabe concluir que: a) o conceito de ação é jurídico, isto é, deve ser construído
pelo direito penal; b) o procedimento construtivo é a abstração a partir da rea-
lidade da conduta que, embora não imponha nenhum conceito, limita a constru-
ção do conceito (não se pode abstrair o que não existe); e) a base legal do
conceito de ação está na Constituição e no direito internacional, não nos tipos;
d) o conceito deve ser elaborado teleologicamente, segundo o objetivo redutor
que deve inspirar todo o saber jurídico-penal.

li. A finalidade como elemento redutor


1. Como vimos, os princípios nullum crimen sine conducta e cogitationis
poenam nemo patitur têm raízes constitucionais, o que viabiliza a construção
de um conceito jurídico-penal de ação que possa prevalecer sobre os tipos que
o violem e seja capaz de cumprir a tarefa constitucional de balizar o legislador.
Perante a teleologia que atravessa nosso empreendimento sistemático, o con-
ceito de ação será tanto mais funcional quanto mais redutor. A funcionalidade
redutora do conceito de ação está na razão direta do número de entes abstraí-
dos da realidade da conduta: menos entes conformam um conceito mais dúctil,
e portanto menos redutor. Historicamente, o conceito que mais açambarcou
dados da realidade da conduta foi o finalista, criticado precisamente por sua
suposta inaptidão para fornecer a base de todas as formas típicas. Isto indicaria
que a consideração da finalidade, na linha do modelo welzeliano de ação, é útil
para demarcar seu conceito jurídico e garantir mais adequadamente o nullum
crimen sine conducta 111 . Entre qualquer conceito mais dútil de ação e o con-
ceito finalista, tomados todos como conceitos jurídicos (isto é, abandonando
toda pretensão ontologista), o finalista é política e tecnicamente preferível.

2. Não haveria razão para sustentar um conceito jurídico com conteúdo


equivalente ao que o finalismo pretendia derivar do ôntico, se não fosse ele apto
a, pelo menos, transcrever-se nos tipos como ação ou omissão, tal como preco-
niza o texto constitucional. Recorde-se que os argumentos usualmente esgrimi-
dos contra o componente final da ação giram em tomo de sua suposta inaptidão
para abarcar certos atos automatizados, para inscrever-se em tipos dúteis (par-
ticularmente os de esquecimento) e para atender às omissões 112• A propósito
cabe reafirmar que o componente final integra qualquer conduta humana, e as

111
Cf. Guzmán Dalbora, José Luis, em Anuario de Filosofia Jurídica y Social, p. 186.
112
Roxin, p. 211; Jakobs, p. 165.

103
condutas tipificadas em estruturas dolosas ou culposas, ativas ou omissivas,
são sempre finais, até por exigência sistemática,já que sem o dado da finalida-
de concreta complica-se extraordinariamente, e às vezes se toma impossível, o
reconhecimento da tipicidade. Disto tratará o próximo parágrafo, mas a com-
preensão é facilitada pela prévia explicação da função que um conceito redutor
de ação desempenha na teoria do delito.

Ili. A ação e o mundo


l. Larga e complexa discussão ocupa-se da localização sistemática do
resultado que provém da ação. Foi ele concebido pretipicamente, integrando
a ação; a maior parte da doutrina contemporânea o situa no tipo objetivo; não
faltou quem o remetesse à punibilidade, e até quem o expulsasse da conduta113 •
Não se trata de uma questão decorativa, mas de um problema sistemático
vinculado à teleologia construtiva, que alcança o próprio conceito de resultado.

2. Postula a Constituição que os tipos contemplem condutas conflitivas, ou


seja, um fazer ou um deixar de fazer alguma coisa que lesione outrem. Para
que este fazer alguma coisa seja uma ação, é indispensável tenha ele um sentido,
orientando-se no mundo segundo certas representações, independentemente de
que tal sentido seja designado por finalidade ou por qualquer outro termo, ou seja,
independentemente de se ter conscientemente visado à instauração do conflito
ou de se tê-lo provocado pela negligente transgressão de deveres de cuidado. É
um sentido que deve necessariamente exteriorizar-se no mundo, porque caso
contrário nunca chegaria a instaurar-se um conflito (não se lesionaria outrem).
Isto significaria que, em qualquer conceito jurídico-penal de ação, sua exteriorização
deveria situar-se pretipicamente, pois se assim não fosse o tipo estaria se ajustan-
do a um vazio, ou estaria criando uma exteriorização. Entretanto, é claro que os
efeitos exteriorizados da ação não podem conservar-se em nível pretípico, por-
que integram fundamentalmente a função jurídica de definição do conflito, que
seria irrealizável sem a mediação metodológica do tipo.

3. A ação concebida como sentido que se exterioriza produz efeitos no


mundo: pode ser que o modifique da maneira prevista pelo agente, ou que não
o faça, mas em todo caso essa exteriorização produzirá múltiplos efeitos (pre-
lll Integrando a ação: Liszt, p. 127; Beling, l.v. Verbrechen, p. 43; Mezger-Blei, pp. 70 ss.; Welzel,
pp. 39 ss; Soler, I, p. 279; Novoa Monreal, I, p. 285; Antolisei, Manuale, p. 178; Aníbal Bruno,
I, p. 283; situando no tipo objetivo: Bockelmann, p. 62; Maurach, p. 184; Wessels, p. 34;
Stratenwerth, p. 82; Fragoso, Lições, PG, 11ª ed., p. 152; Frederico Marques, v. 2, p. 57; Cirilo
de Vargas, Instituições, t I, p. 225; Cezar Bitencourt, Manual, PG, p. 242; remetendo à punibilidade,
Jakobs, p. 202; expulsando da conduta, Baumann, Grundbegriff, pp. 44-46.

104
vistos, previsíveis ou imprevisíveis) e o agente sabe que seu sentido pode propi-
ciar o advento de determinados efeitos, dentro de certas fronteiras, além das
quais o cruzamento de efeitos escapa a qualquer controle.

4. A ação se exterioriza no mundo, onde, ao lado dos fenômenos fisicos,


encontram-se as relações sociais, com sua dinâmica de conflitos e interações:
o mundo da cultura configura um marco de exteriorização da ação. Um expe-
rimento sobre até onde podem chegar os efeitos de uma exteriorização de
sentido no mundo não poderia recorrer somente à tisica, mas também ou prin-
cipalmente à história, à política, à psicologia, à antropologia, à sociologia etc.
Quando alguém escreve um livro, prevê e deseja que ele seja lido, o que pode
ou não acontecer; mas também ativa trabalhadores gráficos, máquinas impres-
soras, vendedores e livrarias; talvez chegue a públicos distantes, talvez não
passe da esquina; quem sabe será traduzido, desde que escape de ser destruído
pela crítica; não é impossível que seja o motivo da distração de um leitor pedes-
tre, atropelado ao cruzar a avenida imerso em sua leitura; pode ser que o livro
desperte ódio ou inveja, ou pode ser ofertado pela namorada com amorosa
dedicatória; porventura sucesso de vendas, vira filme; acaso quebrará a edito-
ra; se quem ganhou o livro da namorada era casado, a descoberta da dedicató-
ria vira um divórcio; queimado nas praças limpas do neonazismo, consolo e
companheiro de um moribundo; glória literária nacional, ou calço de mesa ava-
riada; escrever o livro foi a ação que se exteriorizou no mundo por esses e por
outros milhares de efeitos.

5. O enxame de efeitos sociais indiretos possíveis de uma ação exteriorizada


pode ser objeto da imaginação, não da ciência humana. Por isso mesmo, seria
irracional pudessem eles interessar ao tipo penal. A lei não pode proibir efeitos
incontroláveis e imprevisíveis, mesmo que provindos da exteriorização da ação. A
lei pode apenas proibir aqueles efeitos que, modificando o mundo de forma lesiva
para outrem, sejam vinculáveis à ação como produto do autor. A ação e seu(s)
produto(s) constituem o pragma conflitivo que o tipo formaliza: certo pragma
conflitivo, integrado por certa ação e certo reconhecível produto dela, que
reconfiguraram o mundo de certa maneira conflitiva.

6. Vedado constitucionalmente que os tipos penais capturem pensamen-


tos, convicções e desejos, só lhes cabe ocupar-se de condutas exteriorizadas
(fazer ou deixar de fazer alguma coisa) e seus efeitos, ou seja, de pragmas
conflitivos integrados pela conduta e seus produtos. Há efeitos das ações aos
quais intuitivamente o senso comum negaria qualquer vinculação: quem pensa-
ria em atribuir as lesões corporais do leitor pedestre distraído ao autor do livro?
Tais efeitos, numerosos como vimos, não interessam ao tipo. É irrelevante para

105
o tipo do furto se a vítima, após a subtração de sua carteira, conseguiu algum
para a passagem ou voltou a pé para casa; é irrelevante para o tipo do homicí-
dio se o cônjuge supérstite sentiu-se irremediavelmente só ou aliviado; é
irrelevante para o tipo do estupro se o autor teve orgasmo; etc. Antes do tipo,
dispomos apenas de uma ação e de incomensuráveis efeitos. Ainda que fosse
problemático, poder-se-ia tentar vincular à ação apenas aqueles que fossem
controláveis (domináveis) por ocasião da exteriorização de sentido. Esta linha
não seria útil, porque neste momento ainda ignoramos quais são os efeitos
vinculáveis à ação (produtos dela) que interessam ao pragma conflitivo formali-
zado no tipo. Por outro lado, efeitos controlados (dominados) pertencem à reali-
dade, mas aquilo que não foi controlado não pertence ao controle real da ação,
não passando de uma realidade que não foi, ou seja, uma hipótese de quem valora
a ação, e não algo inscrito na ação antes de sua valoração. Não teria sentido, em
nível pretípico, perder-se no campo infinito dos efeitos possíveis de uma ação, em
busca de efeitos a ela vinculáveis. Introduzido o tipo, sabe-se quais ações e quais
resultados importam como pragma conjlitivo; o tipo é a referência para deter-
minar se tal ou qual efeito da ação, por ele destacado, constitui produto dela
atribuível - pertencente normativamente - ao autor.

7. As ações não podem ser compreendidas isoladas do contexto histórico


e social no qual se manifestam: é aí que adquirem seu sentido. Costumes, ex-
pectativas, opressões, papéis, exigências, desejos, todas as circunstâncias da
ação a esclarecem e dotam de sentido. A ação não se desenrola num vácuo,
mas num cenário de significados e significantes. É no contexto da ação que se
revelará se um efeito foi também um produto. Os tipos penais não podem igno-
rar o contexto da ação, ao preço de não conseguir definir ou de definir com
graves deficiências seus pragmas. Tampouco a investigação sobre o contexto
social da ação pode ser conduzida em nível pretípico, porque desconhecería-
mos ainda quais as variáveis com relevância típico-objetiva.

8. A questão do resultado e de sua possível colocação pretípica é, no


fundo, uma compreensão defeituosa do tipo penal, de sua concepção puramen-
te descritiva, e, de certo modo, um vestígio da teoria causal da ação. Atribuir
determinado efeito da ação, como seu produto, ao agente, constitui uma ques-
tão de imputação, e, como tal, uma questão de tipo. Determinar o efeito que
interessa e o contexto no qual pode ele ser imputado como produto da ação é
uma tarefa valorativa, que só pode ser cumprida tendo por referência um pragma
típico. Antes do tipo, situa-se apenas uma ação, com sua infinita cascata de
efeitos, inserida num contexto diversificado e polissêmico. Antes do tipo, nin-
guém sabe quais efeitos e quais características contextuais interessam, e a
investigação se converteria num insensato rastreamento universal. Considerar

106
a ação no nível pretípico e deixar para a tipicidade a análise valorativa de seu
contexto e de seu efeito não é inventar realidade: exatamente ao contrário, o
tipo se confronta com a realidade de uma ação com todo o seu contexto e seus
efeitos. A pergunta sobre a tipicidade se dirige a uma ação cujo contexto e
cujos efeitos interessam ao tipo. É inadmissível a separação do sentido da ação
e de sua exteriorização no mundo. Isso não significa que o tipo possa imputar
como produto qualquer efeito da ação, ou que possa prescindir de limites cons-
trutivos impostos pela realidade, como oportunamente veremos.

IV A idoneidade da ação redutora


1. Um conceito jurídico-penal de ação que realce sua finalidade como seu
componente de sentido não apenas respeita os pressupostos ônticos da cons-
trução como também é idôneo para abranger as fonnas e modalidades típicas
facultadas pela Constituição.A ação exteriorizada confonne a um sentido pode
estar proibida num tipo penal porque este proíbe uma ação com tal sentido, seja
quando ela se concretiza no mundo, seja quando a ação altera o mundo para
que ele se concretize, de acordo com certas pautas imputativas objetivas e
subjetivas. Pode o tipo exigir que da ação exteriorizada resulte certo efeito
(necessariamente diferente dela), ou contentar-se com que a exteriorização se
esgote em si mesma. Estes são os tipos dolosos ativos (ou comissivos), consu-
mados e tentados, de resultado ou de simples atividade, e sem dúvida se
estruturam sobre ações finais, porquanto justamente delas se valem para ca-
racterizar a matéria desvalorada.

2. Insiste-se, ainda hoje, na afinnação de que atribuir sentido à ação não


oferece uma base segura para os tipos culposos 114 • É evidente que os tipos
culposos não proíbem atendendo à finalidade da ação, e sim a um defeito na
gestão de sua exteriorização, violador de um dever de cuidado. Qualquer ativi-
dade deve ser realizada com a observância de certo cuidado; quando se dota
de sentido a uma ação, é preciso evitar que essa exteriorização, que altera
alguma coisa no mundo, provoque um conflito por lesionar alguém. Entretanto,
tanto para quem acredita que esse dever de cuidado é objetivo e idêntico para
todos quanto para quem distingue deveres segundo a capacidade pessoal de
cada ator - ou seja, dever de cuidado geral ou pessoal -, a evitabilidade do
conflito não pode ser averiguada desconhecendo-se o sentido da ação, porque
a certas atividades correspondem certos cuidados e não outros. Um veículo
pode atropelar o pedestre na calçada porque seu condutor saiu da garagem

114
Jakobs, p. 165.

107
sem as precauções devidas, mas também porque uma criança acionou a igni-
ção, ou porque foi estacionado na garagem sem freio, ou ainda porque o mecâ-
nico o levantara sem travar o macaco etc. Nas quatro hipóteses teremos que
nos reportar a diferentes deveres de cuidado, alguns mais regulamentados (como
os que estão explícitos no Código de Trânsito Brasileiro), outros ligados a impe-
dir que mecanismos perigosos estejam ao alcance de incapazes, outros perti-
nentes às regras sobre o manejo de equipamentos técnicos etc.

3. Ninguém conseguiria estabelecer qual o cuidado cuja violação tornaria


a ação típica ignorando o sentido da exteriorização da ação, independentemen-
te de trabalhar com um conceito de cuidado geral ou de cuidado pessoal. Tal
questão, que toca na medida ou extensão do dever de cuidado, é logicamente
posterior ao conhecimento sobre a natureza da ação exteriorizada. No extre-
mo, o dever de cuidado pode converter-se em dever de abstenção (quem não
sabe dirigir veículos, não dirija; quem não foi adestrado, não aplique injeções etc).
Se para detenninar a evitabilidade da lesão temos que recorrer ao sentido da
ação, não há qualquer vantagem em situar na evitabilidade uma suposta base
comum para a ação dolosa e a culposa, já que em ambas as estruturas típicas a
individualização do proibido se revela através da finalidade (nas dolosas, proibi-
ção direta; nas culposas, proibição do planejamento ou da execução negligente).
Não se altera o raciocínio com a introdução do conceito de riscos juridicamente
desaprovados, uma vez que a aprovação ou desaprovação jurídica dos riscos
também só se estabelece em função da natureza da ação exteriorizada, que não
pode prescindir da finalidade como elemento central para denotar seu sentido.

4. Costuma-se dizer que, nos tipos omissivos, é impossível definir uma


omissão antes do tipo, salvo conforme a uma regra de ética social, o que é
discutível 115 • Em nível pretípico, ou seja, quando ainda não se sabe o quê inte-
ressará ao tipo, temos apenas ações 116, não porém decisões descontextualizadas
e tampouco ações sem sentido, mas sim ações orientadas finalmente e inscritas
no mundo histórico. O tipo penal omissivo sempre tipifica a conduta (omissiva)
projetando-a numa dada situação social, sem a qual o mandado de agir não
faria sentido. O tipo não recolhe um vasio, senão ações num certo contexto, e o
argumento de que a ação distinta da devida seria inocente é ineficaz, pois tal
inocência desaparece no contexto em que o tipo requer atuação do sujeito. Não
é típico brincar com torrões de açúcar, mas certamente seria fazê-lo na frente de
alguém prostrado por coma hipoglicêmica; não é típico costurar as (famosas)
meias, mas certamente seria fazê-lo ao lado de uma criança que está morrendo à
11 s Cf. infra, § 38.
116
Sobre a impossibilidade de um conceito naturalístico de omissão, por todos, Contento,
Gaetano, p. 75.

108
míngua de alimentação; não é típico conversar sobre amenidades, mas certa-
mente seria fazê-lo no deck de uma piscina onde o afogado grita por socorro etc.

5. A concepção causalista da ação, particularmente aquela identificada


com a causação física do resultado, acarretou distorções conceituais. Uma
ação ganha sentido quando orienta certa configuração do mundo, valendo-se
para isso da causalidade. Alguém que pretende configurar o mundo, em deter-
minado contexto, pode fazê-lo: a) exteriorizando sua ação de modo a produzir o
efeito pretendido (resultado); b) constatado já estar em curso um processo
causal que produzirá tal efeito (resultado), realizando qualquer ação diferente
daquela que impediria o resultado, estando em seu dever e a seu alcance impe-
di-lo. O tipo, enquanto construção legal, pode estruturar-se sobre uma conduta
contextualizada que se apresenta como produtora ou como não impeditiva de
um resultado. Temos aí um problema de imputação, ou seja, de valoração jurí-
dica da ação projetada no mundo, problema que pertence ao injusto. A
racionalidade e a categorização dos critérios imputativos constitui um problema
do injusto que em nenhum caso pode ser resolvido pretipicamente, quando só
cabe definir o objeto daquela valoração.

6. A tendência de definir a ação através da evitabilidade não difere muito da


concepção que buscou defini-la pela causalidade, compreendida como causação
fisica. Em ambas se ignora que os tipos não podem eludir-se a um dado ôntico
elementar, na captura de ações que se exteriorizam no mundo. Incide no mesmo
equívoco a teoria da ação final, quando procura isolar a ação de seu contexto
histórico: a ação é final não porque faculta ao sujeito manejar causações, mas
porque, em determinado contexto histórico, é orientada pelo sujeito, com base na
previsão da causalidade, a configurar o mundo (sentido). Todo critério imputativo
subjetivo deve fundar-se na previsão da causalidade, ou, pelo menos, em sua
previsibilidade. A ação que gera um conflito é aquela que, através de seu senti-
do - esclarecido pelo manejo da causal idade prevista ou previsível -vincula-se a
uma lesão, diretamente produzida pela atividade do sujeito ou resultante de um
constatado processo causal em curso que o sujeito, devendo e podendo desviar
ou interromper, deixa que chegue a seu termo lesivo.

7. Um dos argumentos mais esgrimidos, nas últimas décadas, contra a


presença do componente final ou de sentido no conceito de ação, invoca os
atos automatizados, tais como os empregados na condução de um veículo, quando
se opera o freio, o volante, a embreagem etc, sem uma reflexão acerca de cada
movimento117 . Por certo tais atos não podem constituir uma objeção séria con-

117
Por todos, Roxin, p. 212.

109
tra a presença da finalidade na ação, a menos que se entendesse que a ação
fosse fracionável em algo assim como unidades biológicas de inervação, o que
ninguém defende. Na ação de conduzir um veículo ou de disparar uma anna
participam movimentos automatizados, mas nem por isso deixam eles de ser
ações confonne a um sentido e com um objetivo: há sempre uma decisão de
conduzir o veículo ou disparar a arma. Não se trata de remeter a ação ao
momento prévio e inventar uma actio voluntaria in causa: é a própria ação
que se exterioriza, através também de atos automatizados. Isto ocorre em mui-
tas situações que, aceito o argumento, passariam por vis compulsiva. Se uma
pessoa cai sobre outra e a fere, porque desabou o estrado em que se encontra-
va, a ação não reside, claramente, na queda, e sim em ter subido ao estrado, o
que geralmente não será temerário, ressalvados os casos em que sua fragilida-
de fosse aparente, ou que dela estivesse o sujeito cientificado.

V. A função política de redução seletiva


1. O conceito jurídico-penal de ação ora proposto poderia, sinteticamente,
fonnular-se como uma conduta humana (por isto, conforme a sentido) que
se exterioriza produzindo efeitos em certo contexto do mundo (fisico ou
cultural, historicamente determinável). Objetar-se-ia que este conceito, embo-
ra mais preciso que o de outras teorias da ação, não apresenta vantagens subs-
tanciais quanto a sua função seletiva, isto é, quanto às hipóteses que estariam
descartadas por não poderem ser consideradas ações. Geralmente, os fatos
que se excluem por não constituírem ações são praticamente os mesmos nas
diferentes concepções teóricas da ação. Poder-se-ia deduzir daí que nada se
ganha em termos de seletividade - como efeito político redutor - com um
conceito de ação que incorpore o sentido ou finalidade da conduta. Tal dedu-
ção, contudo, só seria válida se se partisse do pressuposto de que a função
política redutora do conceito de ação se esgota na seleção pretípica; e, mesmo
assim, não seria de todo exata.

2. Perante a função de seleção pretípica, um conceito não pode ser


valorado apenas por não excluir mais hipóteses do que outros, mas também por
garantir melhor a exclusão, por sua maior capacidade de assegurar que não
passe por ação um fato humano que não o seja. O respeito aos limites ônticos
na construção de um conceito redutor oferece mais garantias do que a livre
construção de um conceito, ainda que os respectivos enunciados resultem simi-
lares e num primeiro momento pareçam excluir o mesmo número de hipóteses.
Um caso exemplar de exclusão da ação com violação evidente dos limites
ônticos deu-se na Argentina, com a chamada obediência devida, que

11 O
corresponde, ressalvadas peculiaridades, a nossa obediência hierárquica (art.
22 CP). Entendeu-se, para as chamadas ordens vinculantes, que haveria um
"deslocamento da ação"' 18 do executor para o superior hierárquico, o que im-
plicava uma grave alteração no conceito de ação, aberrantemente dissociada
dos limites ônticos quanto à conseqüência de que o funcionário que, cumprindo
ordens, prendeu, torturou e matou o dissidente político na ditadura militar não
teria agido. Outro caso seria o dos tipos que não mencionam especificamente
ações: ou são inconstitucionais ou devem concentrar-se interpretativamente
numa ação entre as possíveis, escolhendo-se a mais limitativa, como nas situa-
ções de posse ilícita 119•

3. É comum minimizar a função política do conceito jurídico-penal de


ação quanto ao princípio cogitationis poenam nemo patitur, ao argumento de
que este princípio tem relevância apenas no âmbito da tipicidade. O motivo
reside em que o pensamento e o sentimento expressam-se numa manifestação
que é sempre uma ação: a injúria verbal é uma ação que manifesta um juízo ou
um afeto em relação a outrem. Os chamados delitos de opinião não apresen-
tam, geralmente, problemas ao nível da ação e sim no da tipicidade: sua
constitucionalidade não é questionada porque não haja ação, mas porque tal
ação não pode ser típica, por violar princípios constitucionais que garantem a
liberdade de expressão. No entanto, pensamentos e sentimentos podem reve-
lar-se independentemente de qualquer manifestação direta, e podem mesmo
ser inferidos da prática social do sujeito, de suas relações pessoais e admira-
ções políticas, da arte que o sensibilize, das reuniões e espetáculos que fre-
qüente, das publicações que subscreva ou colecione etc. Desse conjunto de
atitudes pode resultar a constatação inequívoca de um pensamento e de um
sentimento racista, porém a condução da vida não pode constituir matéria de
um tipo penal: no caso, não caberia falar de atípicidade perante os delitos pre-
vistos na lei nº 7.716, de 5.jan.89, ou perante o art. 140, § 3° CP, mas sim
proclamar a inexistência de uma ação sobre a qual basear a tipicidade. A mani-
festação de um pensamento ou de um sentimento constitui uma ação, porém
inferir juízos e afetos do sujeito por suas práticas habituais constitui uma ação

118
Soler, I, p. 262.
119
Foram chamados, de uma perspectiva autoritária, que disfarçava o perigosismo e recordava
sua origem canônica, de "crimes de mera suspeita" por Manzini, I, 602; cf. ainda Bellavista,
1 reati senza azione. Sobre sua inconstitucionalidade, finamente, Malamud Goti, DP, 1979,
pp. 859 ss. O dec.-lei nº 73, de 2 l .nov.1966, estabeleceu em seu art. 11 O: "constitui crime
contra a economia popular, punível de acordo com a legislação respectiva, a ação ou omis-
são, pessoal ou coletiva, de que decorra a insuficiência de reservas e de sua cobertura,
vinculada à garantia das obrigações das sociedades seguradoras". Vê-se que o legislador não
estruturou este tipo sobre qualquer ação específica, mas unicamente sobre certo resultado.

111
de quem infere, não de quem pensa ou sente; por isso, não pode constituir o
elemento básico de nenhum crime.

4. É um equívoco afirmar que a função redutora do conceito de ação se


esgota ao nível da seleção pretípica, ignorando-se assim a implicação seletiva
do conceito que acompanha sua função vinculante. Quando o conceito pretípico
de ação é integrado por maiores requisitos, força-se a tipicidade a empreender
uma tarefa seletiva mais intensa e redutora: já não se poderá construir um juízo
de tipicidade fundado apenas em dados objetivos. É muito mais propício para a
redução do poder punitivo um tipo que descarte seu avanço valendo-se de
referências objetivas e subjetivas do que outro circunscrito às primeiras. Sem-
pre que a definição da matéria proibida agregue requisitos, reduz-se a seletividade
do poder punitivo, qualquer que seja a natureza dos instrumentos redutores, e a
garantia de redução dilarga-se quando é imposta à tipicidade pelo conceito
pretípico de ação, e não quando assumida por meras considerações de coerên-
cia interna.

VI. A capacidade psíquica da ação


1. Toda ação requer uma vontade que a dota de sentido conforme a re-
presentações. Tanto o motivo da ação quanto suas representações e o conse-
qüente sentido podem ser aberrantes em decorrência de alguma patologia ou
estado fisiológico que perturbe gravemente a atividade consciente da pessoa,
ou de sua imaturidade: mesmo assim, existe uma ação. Para que não haja ação
não deve haver vontade 12º, ou seja, requer-se um estado de inconsciência e
não mera perturbação dela 121 • Não cabe, assim, confundir a incapacidade de
ação com os casos nos quais uma ação é reconhecível, sendo contudo atípica
ou escusável por causa de representações ou motivações aberrantes, condici-
onadas por perturbações da consciência 122. Uma pessoa em estado de coma é
incapaz de conduta; quem sofre de alucinações pode imprimir a sua conduta
um sentido aberrante por causa de sua falsa representação (conduta atípica
subjetivamente, por falta de dolo); por fim, alguém que padece de um delírio
persecutório pode atuar conforme a sentido, de modo adequado à realidade po-
120
A capacidade psíquica de ação não deve ser confundida com a capacidade de ação dos
hegelianos, que a identificavam com a total capacidade psíquica de delito; Handlungsfiihigkeit
(capacidade de ação) se confundia com Deliktsfiihigkeit (capacidade de delito) e com
Zurechnungsfiihigkeit (capacidade de imputação); sobre isto, Binding, Grundriss, p. 97, e
Liszt, lehrbuch, p. 126.
121
Cf. Zevenbergen, Willen, Leerboak, p. 145.
122
Contemporaneamente, renova a opinião dos hegelianos Lesch, Heiko Hartmut, Die
Verbrechensbegriff, p. 224.

112
rém aberrante quanto à motivação (conduta típica e antijurídica porém escusável
- sujeito inimputável). O conjunto dessas capacidades costuma ser designado por
capacidade psíquica de delito, conceito que não desempenha qualquer função
sistemática específica, distinta de advertir para a necessidade de certa capacida-
de psíquica sempre que se investigue algum componente subjetivo do delito.

2. Na doutrina brasileira, a capacidade psíquica de ação está centrada na


vontade, afirmando-se que a vontade condiciona a existência da conduta 123,
negando-se exista ação quando vontade não existe 124, e estabelecendo-se que
a atuação humana desprovida de vontade é simples aparência sensível, "fenô-
meno" 125 • É, portanto, a partir da supressão da vontade, ou de pressupostos
que logicamente impliquem sua supressão, que deveremos construir as hipóte-
ses nas quais caberá reconhecer a inexistência ou ausência de ação.

VII. Ausência de ação


1. Como já observamos, independentemente da posição sistemática (au-
tônoma ou não) atribuída e mesmo do conteúdo do conceito jurídico-penal de
ação, e nomeadamente da adoção ou não de uma concepção finalista, coinci-
dem distintas tendências teóricas ao concentrar em três grandes grupos os
casos de ausência de ação 126• São eles: a) estados de inconsciência; b) atos
reflexos; e) coação fisica irresistível.

2. Nos estados de inconsciência121 temos uma pessoa privada de cons-


ciência, e pois incapacitada de agir em sentido jurídico-penal. Apalavra consciên-
cia é aqui utilizada em sentido clínico, como função sintetizadora das funções
mentais específicas. São os casos de descerebração, coma, desmaio, embriaguês
letárgic~, sono profundo, ~rise epiléptica, sonambulismo, sugestão hipnótica etc.128•
N.enhum problema of~recem os casos em que o sujeito se encontra absolutamen-

123
Fragoso, Conduta Punível, p. 29.
124
Everardo da Cunha Luna, Capítulos, p. 95; Cláudio Brandão, Teoria Jurídica, p. 36; Cezar
Bitencourt, Teoria Geral, p. 50.
125
Francisco de Assis Toledo, Princípios, p. 109.
126
Silva Sánchez, Consideraciones, p. 36; Enrique Bacigalupo, Lineamientos, p. 29.
127
Cf. Zaffaroni, La capacidad; Terán Lomas, I, p. 298; Novoa Monreal, I, p. 278; Aníbal
Bruno, I, p. 317; Fragoso, Lições, P.G, p. 154; Regis Prado, L., Curso, 5ª ed., p. 336; Soler,
II, 54-55.
121
Sobre esses casos, Gotor, Pablo, La epilepsia; Kolle, Kurt, Psiquiatría, p. 225; na velha
psiquiatria, Foderé, I, pp. 283 ss; sobre a responsabilidade do sonâmbulo, Pacheco, I, p. 135;
Gómez de la Sema - Montalbán, Elementos, pp. 35 ss; um panorama das pesquisas sobre o
sono em Gaer Luce, Gail-Segal, Julius, E/ sueno; o sono como ausência de conduta em Homs

113
te impossibilitado de dirigir suas ações, até em sentido tisico, como por exemplo
na existência vegetativa de um descerebrado: o estado de inconsciência exclui,
sem qualquer dúvida, que se possa aí falar de ação em sentido jurídico-penal.
Mais dificeis são certas hipóteses cientificamente pouco esclarecidas, como o
sonambulismo e o transe hipnótico, onde o sujeito aparenta exercer uma conduta
consciente, realizando atividades complexas, das quais freqüentemente não se
recordará, cessada a crise, motivo pelo qual alguns autores deslocam a questão
para o campo da imputabilidade, reconhecendo portanto a presença de ação.
Entretanto, considerando-se que cabe resolver a dúvida em favor do réu, é reco-
mendável que em todos esses casos se proclame a ausência de ação. Completa-
mente distintos são os pressupostos nos quais o sujeito voluntariamente se coloca
num estado de incapacidade psíquica de ação precisamente para violar seu dever
de agir, como o guarda-chaves que adormece e não evita a colisão de dois com-
boios ferroviários 129 (sua relevante omissão seria reconhecível mesmo que hou-
vesse ele ido ao cinema etc), ou precisamente para favorecer o cometimento do
delito, como na embriaguez preordenada que, em seus excepcionalíssimos limi-
tes, será tratada como actio libera in causa130•

3. São atos reflexos aqueles movimentos corporais incontroláveis que


respondem imediatamente (ou seja, sem mediação da consciência,
subcorticalmente) a um estímulo fisiológico-sensitivo. É o caso não só da tosse,
do espirro, do soluço, mas também do movimento desastrado de quem, dirigin-
do seu veículo, vê-se acometido por um inseto no olho ou por uma câimbra na
perna, ou de quem afasta violentamente a mão de um objeto que a queimou, ou
ainda de quem, chocado pela cena terrível do acidente que presencia, fica pa-
ralisado e emudecido, incapacitado de prestar ou pedir auxílio. O riso queres-
ponda incoercivelmente a certos estímulos sócio-culturais constitui ato retlexo 131 •
Dos atos reflexos distinguem-se os movimentos automatizados 132 ou instinti-

Sanz de la Garza, Joaquim, Trastorno mental transitorio, p. 77 e Sainz Cantero, José Antonio,
lecciones, p. 287; Luiz Regis Prado, Curso, P.G., p. 336; Fragoso, Lições, P.G, p. 154. Uma
análise do sonambulismo ao início do século XX em de Fleury, Maurice, lntroduction a la
médicine de /'esprit, p. 46. Desloca a questão da hipnose (reconhecendo-lhe ação) para a
culpabilidade Enrique Cury, Orientación, p. 39; sobre a sugestão hipnótica, Cousir'io Maclver,
Luis, Manual de Medicina legal, p. 351 . Ainda sobre hipnotismo, Paulsen-Kadisch, p. 218;
Alimena, l limiti, II, p. I43; Lluesma, Uranga, Manual de psiquiatria para usoforense, p. 120;
Fontán Balestra, I, p. 446; Clarkson, C.M. V. - Keating, H.M., Criminal law and Materiais,
p. 394; a hipnose como vis absoluta em van Hamel, GA., Nederlansche Strafrecht, p. 237.
Para a sugestão hipnótica no direito privado, Clóvis Bevilaqua, p. 222.
129
Cf. Zaffaroni - Pierangelli, Manual, p. 440.
13
° Cf. infra§ 46, VI; Cezar Bitencourt, Teoria Geral, p. 5 I.
131
Cf. Nilo Batista, Decisões Criminais Comentadas, pp. 138 ss.
132
Distinguem-nos Kienapfel, Diethelm, Strafrecht, p. I 8 e Kühl, Kristian, Strafrecht, p. I4;
equipara-os Mantovani, Luciano Pettoello, li Concello Ontologico dei Reato, p. 78.

114
vos 133, presentes nas chamadas "ações em curto-circuito", bem como os atos
mecânicos, para os quais o sujeito adestrou-se repetindo-os e habituando-se a
eles: nessas hipóteses, claramente existe conduta humana (conforme a senti-
do). Ao contrário, nos atos reflexos - vistos por alguns autores como coação
tisica absoluta interior - falta por completo a capacidade psíquica de ação:
neles a consciência não intervém, e portanto não existe vontade.

4. Por coação fisica irresistíve/134 entende-se a situação na qual o sujei-


to é compelido materialmente por outrem à prática do delito (usado mecanica-
mente nos crimes comissivos, ou imobilizado nos omissivos). São os casos de
quem é empurrado por outrem violentamente contra terceiro, lesionando-o, ou
do tesoureiro que, à força, tem seu polegar encostado na leitora de digitais da
fechadura de segurança que dá acesso ao cofre, ou ainda do motorista surpre-
endido pelo desvio vigoroso e abrupto do volante pelo carona, atropelando ter-
ceiro, etc, hoje pacificamente admitidos pela doutrina 135. São evidentes os motivos
pelos quais a coação física irresistível exclui a ação do sujeito, perante ela mais
bem um objeto 136: sua vontade está cancelada pelo jugo material que o tirani-
za, inabilitando o coato para a conduta. O malogrado CP 1969 previa explicita-
mente a hipótese: "não é autor do crime quem o pratica sob coação física
irresistível, respondendo tão somente o coator" ( art. 23 ). De fato, no modelo da
coação física irresistível não cabe pensar-se em autoria mediata: o que se dá é
uma verdadeira autoria direta do coator, fundamentada no domínio da ação 137 •
Exige-se que a coação física seja irresistível 138 : fora dos casos de manifesta
inoponibilidade, poder-se-á cogitar da exclusão de culpabilidade, como na coa-
ção moral irresistível (art. 22 CP).

JJJ Nas ações instintivas Jaspers viu um "controle velado da personalidade" (Karl Jaspers,
Psicopatologia Geral, v. I, p. 144).
13
' Pessoa, Nelson, em Baigún, D. - ZafTaroni, E.R. - Terragni, M.A., Código Penal y normas
complementarias, l, p. 600; Jiménez Díaz, Maria José, em Cobo dei Rosal, Manuel (org.),
Comentarias ai Código Penal, t. I, p. 391; Andreucci, Ricardo Antunes, Coação Irresistível
por Violência; Campos Pires, Ariosvaldo, A Coação Irresistível no Direito Penal Brasileiro;
Linhares, Marcello Jardim, Coação Irresistível.
135
P. ex., Jescheck- Weigend, p. 224; Mezger, Lehrbuch, p. 107; Welzel, p. 175; Blei, p. 73;
Baumann, p. 192; Schmidhauser, p. 173; Rudolphi et alii, StGB, p. 108; Binding, Handbuch,
p. 717; Mayer, M.E., p. 103; Beling, Die Lehre vom Verbrechen, p. 17; Carrara, Programma,
§ 279 ss; Fragoso, Lições, p. 154; Prado, L.R., p. 336 (5ª ed.), Cláudio Brandão, Teoria
Jurídica, p. 36; Cirino dos Santos, J., A Moderna, p. 25; para tipos omissivos, Novoa
Monreal, I, p. 282; Fontán Balestra, I, p. 444; Mendoza, I, p. 399. Também no âmbito do
direito privado se reconhece que a vis absoluta "faz desaparecer a vontade e, conseqüente-
mente, não permite que o ato jurídico se fonne" (Bevilaqua, Clóvis, p. 221 ).
6
ll Assim, Ariosvaldo de Campos Pires, p. 6. Para uma fundamentação de raiz existencialista,
que percebe no coato um "estar-aí não significativo", Ricardo Antunes Andreucci, p. 63.
137
Assim Nilo Batista, Concurso de Agentes, p. 137.
138
Cláudio Brandão, Teoria Jurídica, p. 37; Marcello Jardim Linhares, p. 47.

115
5. Por vezes, utiliza-se o conceito de caso fortuito para constituir outro
grupo de casos que excluiria a ação 139 • Parece-nos que tal conceito, que histo-
ricamente foi convocado para afastar a imputação de certos resultados, princi-
palmente no âmbito dos delitos culposos, imprevisíveis ou inevitáveis, pouco
tem a contribuir hoje para a teoria do delito. O casus e a força maior (vis
maior), unificados categorialmente nas fontes romanas e distinguidos segundo
vários critérios pela doutrina privatística, apontam para fenômenos naturais (en-
chentes, terremotos, tsunamis, trombas d'água, raios, incêndios espontâneos,
epidemias, secas etc), acidentes de grande escala (desabamento de prédios ou
pontes, naufrágios, colisão de comboios ferroviários, vazamento nuclear etc),
ordens ou leis excepcionais (lacta principis) de elevada repercussão (requisi-
ção ou desapropriação massiva de bens privados, interdições de locomoção
etc) ou conflitos e mobilizações de certa monta (estados de beligerância, inva-
são por forças estrangeiras, bloqueios, motins etc). Entende-se que, no âmbito
civil, tais fatos tenham o condão de, sob certas circunstâncias, exonerar o de-
vedor obrigacional, e também o ex delicto 140• Escasseia-lhes a utilidade no
direito penal da ação final significativa, embora compreensível que uma ação
concebida como causatividade pudesse confundir-se amiúde com processos
causais naturais, favorecendo a concepção do casus como "negação de toda
causa" 141 • O casus, este "fato necessário" de que fala o Código Civil (art. 393,
par. ún.), pode cruzar-se com a conduta humana, na forma de ação ou omissão,
segundo diversas dinâmicas, porém jamais poderá ser confundido com ela. Se
a avalanche da força-maior leva de roldão a conduta, não existe objetivamente
conduta; se, atrasada, apenas soterra o resultado, recorta uma tentativa ou
impede a qualificação pelo resultado; mas quando se limita a bloquear a única
estrada pela qual o garantidor poderia passar para impedir o resultado, exone-
ra-o - na velha tradição privatística - do dever de atuar; finalmente quando, já
em seus estertores, as últimas pedras quebram o pára-brisas do carro e provo-
cam o atropelamento ou atingem e matam o ferido já atropelado, definem a
atipici~ade da con~ut~ çulpo~!i pu questionam f! ÍP1Pµt!3Ç~Q 8A r~s4!!~~p'. O
c::aso fa~itp ~ a fQrça qiaior, na velha definiçãp p~ J.m~tjp tupo aqujlQ que nãq
pode ser previsto pelo homem, nem, se previsto, sustado (nec cui praeviso potest
resisti), interessam como contexto especialmente complexo da ação humana,
oferecendo questões que ora revelarão não ter ocorrido conduta, ora dirão res-
peito à tipicidade objetiva (com ênfase na imputação de resultados) e subjetiva, à

139
Regis Prado, Luiz, Curso, P. G (5" ed.), p. 337; reconhecendo na maior parte desses casos
conduta, porém atípica, Zaffaroni - Pierangelli, Manual, p. 434.
1
~ Silva Pereira, Caio Mário, Instituições, II, pp. 287 ss; Franzen de Lima, João, Curso, II, pp.
329; Medeiros da Fonseca, Amoldo, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, p. 146 ss.; Serra
Vieira, Patrícia Ribeiro, A Responsabilidade, p. 42.
141
Prado, Robervani P., Caso Fortuito, p. 147.

116
antijuridicidade (em particular, ao estado de necessidade) e mesmo à culpabilida-
de. Não representam uma constelação de casos de ausência de ação.

VIII. A incapacidade de ação das pessoas jurídicas


1. Para qualquer teoria da ação cuja construção não respeite limites ônticos,
a questão da possibilidade de exercício de poder punitivo sobre pessoas jurídi-
cas é matéria de pura decisão legal142. Nessa perspectiva, pode-se sustentar
que a ação e mesmo os sujeitos do direito penal são construídos funcionalmen-
te, e portanto é possível equiparar o registro dos atos constitutivos da pessoa
jurídica e sua estrutura organizativa com o registro de nascimento e a tomada
de decisões humanas, concluindo que quando a pessoa jurídica delibera e nego-
cia segundo seus estatutos estaria agindo, cabendo falar-se numa culpabilidade
pela deliberação 143 . Este é o caminho do organicismo, que desde meados do
século XIX fundamenta a capacidade penal das pessoas jurídicas. Na doutrina
britânica, sustenta-se que uma companhia pode ser assimilada, sob muitos
aspectos, ao corpo humano. A companhia tem um cérebro e um centro
nervoso que controla o que faz. Tem igualmente mãos que usam as ferra-
mentas e cumprem as ordens que vêm do centro nervoso. Algumas pesso-
as, na companhia, são simples trabalhadores e funcionários, apenas mãos
para cumprir tarefas que não representam sua mente ou vontade. Mas há
quem as represente, os diretores e gerentes que controlam o que ela faz. O
estado mental desses dirigentes é o da companhia, e a lei o trata como
ta/144• Tais posições, definitivamente, não parecem afastar-se muito da velha
teoria orgânica ou da realidade sobre a natureza das pessoas jurídicas (Gierke),
em oposição à teoria dajicção de Savigny145.

142
Assim entendia a corrente da "defesa social" e seus simpatizantes (Mestre, Las personas
morales); a jurisprudência francesa da época a rejeitou (cf. Bouzat, Pierre - Pinatel, Jean,
Traité, l, p. 313 ); o funcionalismo retomou as bandeiras da "defesa social" sobre demanda
similar de repressão, na base da identificação organicista do indivíduo com o sistema (Jakobs,
p. 183 ); analogamente, Silvina Bacigalupo, la responsabi/idad penal de las personas jurí-
dicas; Schünemann, Bemd- Ruiz Vadillo, Enrique- Delmas-Marty, Mireille et alii, Madrid
Symposiumfiir Klaus Tiedemann, pp. 265-346; o estado da questão no direito comparado
em Gracia Martin, Luis, em Rev. Per. Cs. Penales, pp. 471 ss. e Shecaira, Sérgio Salomão,
Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, pp. 42 ss; pela punibilidade das pessoas jurídi-
cas, Jeandidier, p. 342 e Salvage, p. 94; contra, Wessels, Johannes - Beulke, Werner,
Strafrecht, p. 27; da polêmica no Brasil trataremos adiante.
143
Jakobs, p. 184; procura responder às objeções contra o funcionalismo Zulgadía Espinar, J.M.,
Capacidad de acción y capacidad de culpabilidad de las personas jurídicas, pp. 613 ss.
144
Cf. J.C. Smith - Brian Hogan, p. 180; Giles, F.T., The Criminal Law, p. 184.
14
s Mantovani, Ferrando, p. 143.

117
2. A maior parte da doutrina se inclina a considerar que não se trata de
pura decisão legal 146, mas sim que a pessoa jurídica é incapaz de ação 141 , não
faltando quem remeta o societas de/inquere non potest (ou universitas
de/inquere nequit) para uma incapacidade de tipicidade ou de culpabilidade 148
ou mesmo de pena 149 • A tese da incapacidade de ação é perfilhada por autores
cujo conceito de ação dispõe de compromisso ontológico.

3. Até a Constituição da República de 1988, o princípio societas de/inquere


non potest era prestigiado quase unanimemente pelos penalistas brasileiros 150•
Em duas passagens, a Constituição teria facultado a criminalização de pessoas
jurídicas, em ilícitos contra a ordem econômica e financeira e contra a econo-
mia popular 151 e contra o meio ambiente152 • Desfechou-se grande reação dou-
trinária contra a novidade. Argumentou-se que, na redação do art. 173, § 5°, a
supressão do adjetivo "criminal" após o substantivo "responsabilidade" (da pes-
soa jurídica) durante o processo constituinte demonstraria uma opção por san-
ções distintas da penal~ quanto ao art. 225, § 3°, a melhor interpretação deveria
correlacionar "condutas", "pessoas tisicas" e "sanções penais" por um lado, e
"atividades", "pessoas jurídicas" e "sanções administrativas" por outro 153. Apesar
da resistência doutrinária 154, a lei nº 9.605, do 12 de fevereiro de 1998, sobre

l'6 Assim, Roxin, p. 208; contra, Hirsch, Hans-Joachim, em AD PCP, pp. 1099 ss.
147
Assim Feuerbach (lehrbuch, p. 52) e a maioria de seus contemporâneos; Grolmann,
Grundsiitze; Martin, p. 338; Henke, p. 383; no mesmo sentido, Beling, lehre vom
Verbrechen; Mayer, H., p. 46; Schmidhauser, p. 160; Jescheck - Weigend, p. 226; Haft,
Fritjof, Strafrecht, p. 33. Sustentam a capacidade de ação das pessoas jurídicas Bauer,
lehrbuch; Liszt, lehrbuch,p. 124; M.E. Mayer, p. 96; Busch, Grundfragen; flutuante
Hafter, p. 72; dubitativos Baumann, Jürgen-Weber, Ulrich- Mitsch, Wolfgang, Strafrecht,
p. 191; Kühl, p. 14. Na doutrina italiana, pela incapacidade de atuar Manzini, I, p. 628;
Bettiol, p. 253; Pagliaro, p. 1S0.
141
P. ex. Heinnitz, DerAujbau, pp. 6S ss; este parece um dos argumentos de Soler atendendo
ao princípio de intranscendência da pena(!, p. 2S0); antigos autores postularam a punição
da maioria votante que deliberou (Tittmann, Handbuch, § 113 ).
149
Gracia Martín, Luis, op. cit.
1
'° Por todos, Galdino Siqueira, Tratado, I, p. 270 e Álvaro Mayrink da Costa,p. 881.
ui Art. 173, § Sº: A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa
jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com
sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a econo-
mia popular.
12
s Art. 225, § 3°: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas tisicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente-
mente da obrigação de reparar os danos causados.
m Miguel Reale Júnior, A responsabilidade penal da pessoa jurídica, em Luiz Regis Prado
(org.) Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, p. 138.
4
is René Dotti, Curso, p. 302; Cezar Bitencourt, Reflexões sobre a responsabilidade penal da
pessoa jurídica, em Luiz Flavio Gomes (org.) Responsabilidade Penal de Pessoa Jurídica,
pp. SI ss; Miguel Reale Jr., loc. cit.; Luiz Vicente Cernicchiaro e Paulo José da Costa Jr.,

118
crimes ambientais, contemplou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas 155 .
Ao contrário do modelo francês, que o inspirou, o legislador brasileiro não edi-
tou uma lei de adaptação, com o que se estabeleceram algumas perplexida-
des graves. A falta de um só dispositivo sobre processo penal parece questionar
frontalmente o princípio constitucional do devido processo legal em sua expres-
são mais elementar, a garantia do procedimento tipificado. Igualmente grave,
desafiando o principio da legalidade, foi não ter a lei estipulado os delitos que
podem ser atribuídos às pessoas jurídicas, nem as penas que a cada um de tais
delitos corresponderiam'~, impondo ao juiz uma verdadeira integração analógica
que fere no peito a divisão republicana de poderes e a reserva legal. Até o
momento, a Corte Suprema ainda não foi convocada a examinar a
constitucionalidade da lei nº 9.605/98, sob esses dois aspectos. O Superior Tri-
bunal de Justiça, no julgamento do Resp nº 622724-SC, negou aplicabilidade à
lei, ressaltando que pessoas jurídicas são "carecedoras de capacidade de ação,
bem como de culpabilidade" (6ª T., rei. Min. Felix Fischer, un.).

4. A tendência para dotar as pessoas jurídicas de capacidade delitiva pro-


vém de correntes criminológicas positivistas e daquelas tributárias da chamada
defesa social, ou seja, de concepções de fundo organicista157 • Mais tarde agre-
gar-se-iam argumentos de dirigismo estatal, e atualmente influenciam critérios de
signos ideológicos distintos, ora ligados ao desenvolvimento do direito econômico,
à defesa do meio ambiente e dos consumidores 158, ora alavancando repressão
punitiva simbólica, através do discurso do "crime organizado" que, nos países
periféricos, produziria o efeito real de dizimar as pequenas e médias empresas,
vulneráveis à criminalização, abrindo espaço para as grandes transnacionais.

5. O custo de alterar gravemente o conceito de ação e sua função política


limitadora não é compensado pela aplicação de penas às pessoas jurídicas.

Direito Penal na Constituição, pp. 135 ss; um panorama da polêmica em Sérgio Salomão
Shecaira, op. cit., pp. 114 ss.
,ss Art. 3º: As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente
conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu
representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou beneficio da
sociedade.
156
Cf. Luiz Luisi, Notas sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em Luiz Regis
Prado (org.) Responsabilidade penal, cit., p. 96; cf. também Luís Paulo Sirvinskas, Tutela
Penal do Meio Ambiente, p. 24. Cf. ainda o acórdão TACrimSP, 3" C., MS nº 349.440/8, rei.
J. Fábio Gouvêa.
157
Sobre todas as teorias, Saavedra R., Edgar, Corporación, criminalidad y ley penal, p. 19.
158
Alessandri, Alberto, em Pedrazzi et alii, Manuale di Diritto Pena/e deli 'impresa, p. 81;
imputando uma vontade social dolosa ou a violação de especiais deveres de cuidado, Baigún,
David, em De las Penas, Horn. ao Prof. Isidoro de Benedetti, pp. 25 ss; também La
responsabilidad penal de las personasj11rídicas.

119
Como sabemos, a pena não resolve os conflitos. Poderia o juiz ser chamado a
exercer coerção direta ou coerção reparadora sobre as pessoas jurídicas, com
maior proveito social do que a infecunda intervenção penal. Em algum momen-
to, poder-se-á constatar empiricamente se no Brasil o meio ambiente se bene-
ficiou, de alguma maneira, com o reconhecimento da responsabilidade penal
das pessoas jurídicas em 1998.

IX. Conseqüências sistemáticas da ausência de ação


l. As mais importantes conseqüências sistemáticas da ausência de ação
podem ser assim arroladas: a) não cabe legitima defesa contra quem não rea-
liza uma conduta. Em qualquer hipótese, a defesa contra quem não atua se
inscreve no quadro do estado de necessidade,justificativo ou exculpante. Igno-
rando o defendente que o sujeito não realizava conduta, acreditando
invencivelmente que uma ação de agressão contra ele se desenvolvia, tratar-
se-ia de erro de proibição indireto (art. 20, § 1º CP). Tal solução se mantém
mesmo que a pessoa seja usada por terceiro para agredir, pois a legítima defesa
só cabe contra o agressor, e não contra alguém que não agride, e apenas está
sendo usado como massa fisica. Cabe legítima defesa contra quem usa a pes-
soa, e não contra a pessoa mediatizada como massa fisica. Em qualquer caso,
quem usa a pessoa poderá responder, segundo o caso por dolo ou culpa, quanto
às lesões que a pessoa usada venha a sofrer pela ação justificada ou exculpada
do agredido, e mesmo que este não tenha atuado justificada ou exculpantemente.
b) Quem se vale de uma pessoa que não atua será sempre autor direto, não
cabendo falar-se nem de autoria mediata nem de instigação. e) Nos tipos
plurissubjetivos, os movimentos de quem não atua não podem configurar a
tipicidade; quando a lei exige um certo número de concorrentes necessários, a
pessoa de quem não atuou não pode ser computada.

2. Em certos casos duvidosos, pode colocar-se um problema, quando em


virtude do favor rei alguém seja declarado incapaz de ação, porém isso confi-
gure a tipicidade ou agrave a situação processual de outrem. Seria a hipótese
de quem, podendo fugir, defende-se moderadamente e valendo-se dos meios
necessários, da agressão de uma pessoa hipnotizada. Reconhecido que o hip-
notizado não agiu, estaria o defendente fora da justificativa. Para estes casos
não pode haver outra solução senão consagrar a dúvida, que beneficiará de
maneira distinta a ambos.

120
CAPÍTULO XII

Ü TIPO E A TIPICIDADE

Alexander, Franz - Staub, Hugo, E/ de/incuente y sus jueces desde e/


punto de vista psicoana/ítico, Madri, 1935; Bacigulupo, Enrique, Tipo y Error,
B. Aires, 1973, ed. Coop. D.C.S; Baumgarten, Arthur, Der Aujbau der
Verbrechenslehre, Tubinga, 1913; Beling, Ernst von, Die Lehre vom Verbrechen,
1906; do mesmo, E/ rector de los tipos de delito, Madri, 1936; também, Die
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em Der Gerichtssaa/, Stuttgart, LXXVI, 191 O, pp. 2 ss.; Bockelmann, Paul,
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konsequentes Tãterstrafrecht auf ein neues Strafgesetzbuch auswirken?
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121
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der Akademie fiir Deutsches Rechts, 1936, pp. 363 ss.

124
§ 29. CONCEITO DE TIPO E DE TIPICIDADE
1. Aproximação do conceito
1. São tipos as fórmulas que a lei emprega para caracterizar os
pragmas conflitivos a cujas condutas cominou pena. Com a formalização
da criminalização primária, o poder punitivo habilita seu exercício através de
leis com função punitiva manifesta. Sabe-se de antemão que essa habilitação,
formalizada pelas agências políticas competentes, só em pouquíssimos casos
resultará num efetivo exercício do poder punitivo enquanto criminalização se-
cundária esgotada na execução de uma pena, mas oferecerá amplamente um
novo motivo para a vigilância (poder positivo configurador) e novas ocasi-
ões de criminalizações secundárias incompletas (interrogatórios, apreen-
sões, interceptações e escutas autorizadas judicialmente, prisões provisórias
etc). Sabe-se também que estas últimas se realizarão seletivamente, segundo a
vulnerabilidade do criminalizado1• Embora pareça estranho, o tipo é uma fór-
mula textual com a pretensão de selecionar condutas, mas o poder punitivo na
maioria dos casos se vale dele para selecionar pessoas em função de suas
características, devido à estrutura do sistema penal.

2. O fenômeno da seleção, mediante fórmulas textuais, de condutas


que na realidade propicia uma seleção punitiva de pessoas vulneráveis
pode ser reduzido, mas seria impossível suprimi-lo. Por isso, quanto maior
for o número de tipos penais de uma legislação - especialmente aqueles de
conteúdo antijurídico leve ou médio- tanto maior será o espectro populacional
exposto aos riscos da criminalização secundária, ou seja, de arbítrio seletivo, e
também maior será o arco do próprio arbítrio de que disporão as agência~ para
o exercício do poder de vigilâ~cia: Poftant~? os princíp{o~ regulqt{vqs tip
~staç:/0. df! pirriio ~e r~plf~qm nq r~~ifP. {rz~~r~q do, '1~rr~r,q ~~ fipq~ prng/~
lf~islp(iyamente çriado~:

3. Dessas constatações se deduz que o direito penal, enquanto instrumen-


to de realização do estado de direito, deve prover um sistema interpretativo
limitador do âmbito das condutas típicas: quanto mais uma doutrina penal for
idônea para reduzir interpretativamente o alcance dos tipos penais, menor será
o exercício seletivo do poder punitivo numa sociedade. A redução interpretativa
das condutas subsumíveis nos tipos constitui uma tarefa prévia, necessária para
a redução da seleção criminalizante por características pessoais (vulnera-

1
Cf. v. I, § 2º (pp. 43 ss).

125
bilidade). Mas tal tarefa deve ser cumprida de modo racional; nem toda redu-
ção é idônea para cumprir essa função. Uma redução arbitrária só produzirá o
risco de uma seleção pessoal ainda mais arbitrária. É imperiosa uma análise
sistemática dos tipos penais, uma cuidadosa elaboração dogmática da tipicidade:
duas arbitrariedades seletivas, longe de reduzirem a arbitrariedade, a
potencializariam; só a neutralização racional da arbitrariedade seletiva
mais grosseira pode reduzi-la.

4. Cabe considerar o plano da tipicidade como um ten-eno de conflito no


qual colidem o poder punitivo e o direito penal. O primeiro luta ali pela expan-
são de seu exercício arbitrário, e o segundo procura contê-la racionalmente. O
conceito de tipo é portanto dual: para o poder punitivo, o tipo constitui instrumento
habilitante de seu exercício; para o direito penal, o tipo configura limitação do
poder punitivo. Uma limitada habilitação do poder punitivo, ilusoriamente cria-
da por armistícios periódicos, não elude a tensão permanente provinda deste con-
flito. O poder punitivo jamais deixa de pressionar através dos tipos: recorre à
minimização do bem jurídico2, a perigos abstratos e remotos3, a interpretações
extensivas, analogias e ambigüidades4 etc., enquanto o direito penal redutor luta
contra ele em todas essas frentes. Cada tipo penal representa um tentáculo do
poder punitivo, que o estado de polícia trata de tomar mais ágil e eficiente e o
direito penal - ao lado do estado de direito - de reduzir.

5. O poder punitivo, como vimos, se distribui desigualmente, gerando


vulnerabilidade na razão inversa da proximidade ou inserção do sujeito nas
classes dominantes; por vezes, no entanto, em situações de perda de cobertura
ou de comportamento grotesco5, alguém anteriormente invulnerável vê-se
criminalizado. Deriva. daí freqüentemente a convivência de padrões
interpretativos aparentemente antagônicos, porém funcionais para a seletividade
do poder punitivo: tendências restritivas (limitadoras) para os tipos penais fre-
qüentados por sujeitos posicionados hegemonicamente, e tendências extensi-
vas (ampliadoras) para as condutas típicas da criminalidade tosca, protagonizada
pelos integrantes das classes subalternas. É curioso observar que, quando seto-
res vulneráveis se organizam, costuma ser freqüente que pleiteiem o exercício
de poder punitivo contra seus oponentes sociais ou políticos. Nesta pugna cru-
zada a vitória cabe sempre ao poder punitivo, e portanto ao estado de polícia. A
extraordinária criminalização de alguém invulnerável não passará de um episó-
dio inconseqüente, mesmo que reiterado, que termina por legitimar o poder
2
Cf. v. I, § 11 (pp. 225 ss); cf. infra, § 32.
3
Cf. infra, § 32.
' Cf. v. I, § 1O(pp. 200 ss).
s Sobre perda de cobertura e comportamento grotesco, cf. v. I, § 2º, III, 7 e 8 (pp. 49-50).

126
punitivo (que consegue então dissimular por instantes, com o auxílio da mídia,
sua seletividade, porém continuará a exercer-se seletivamente, revigorado en-
tão pelo aplauso de suas próprias vítimas). Trata-se do embuste da ilusão puni-
tiva: em troca de uma espécie de vingança simbólica, incapaz de resultar em
qualquer transfonnação efetiva sobre os conflitos sociais (a criminalização do
invulnerável), os setores vulneráveis azeitam discursivamente as engrenagens do
poder punitivo e legitimam sua própria criminalização. A existência dessa pugna
cruzada em torno do embuste da ilusão punitiva toma mais importante e ur-
gente o esforço dogmático na construção de conceitos jurídico-penais que não
agudizem a seletividade estrutural do exercício do poder punitivo.

6. Partindo dessas considerações, pode-se afirmar, com maior precisão,


que o tipo penal é a fórmula legal necessária ao poder punitivo para
habilitar seu exercício formal, e ao direito penal para reduzir as hipóteses
de pragmas conjlitivos e para valorar limitativamente a proibição penal
das condutas submetidas a decisão jurídica. a) É uma fórmula legal por-
que pertence à lei6 ; a tipicidade é uma característica da conduta e o juízo de
tipicidade é a valoração jurídica que, tendo o tipo por referência, permite esta-
belecer a tipicidade da conduta. b) Tal fórmula é necessária ao poder puniti-
vo para habilitar seu exercício formal porque, como um estado de polícia
absoluto e ilimitado não existe (seria o caos), o poder punitivo fonnal sempre
requer habilitações, tanto quanto o informal sempre demanda pretextos. Mes-
mo num sistema autoritário que admita a analogia integradora, sua fonte estará
numa fórmula legal. A necessidade do tipo penal possui também natureza lógi-
ca, e o que pode variar é que sua construção obedeça à estrita legalidade num
estado de direito ou a uma legalidade débil ( que enseje sua determinação judi-
cial) num estado de polícia. Em qualquer caso, é impossível constatar o caráter
delituoso de uma conduta sem previamente fixar sua proibição. e) Sua formu-
lação é necessária ao direito penal porque sem ela não poderia ele empreen-
der a interpretação redutora do âmbito da proibição, que deve partir de um
território semântico. O tipo se exprime em linguagem, e assim jamais dispõe de
precisão limitativa. O tipo não estabelece a proibição, e sim proporciona o má-
ximo âmbito da proibição, que não pode desde logo ultrapassar sua resistência
semântica. Caso se compreendesse como proibido tudo quanto pode caber no
sentido literal dos tipos penais, o poder punitivo daí resultante seria insuporta-
velmente amplo e arbitrário, por mais perfeita que houvesse sido a formulação
técnica. O tipo penal não é uma fórmula que define a proibição, mas apenas

6
Beling, D.L. v.Tatbestand, pp. 4 e 113; E/ rector de los tipos de delito, p. 12; sobre a
identificação do tipo com a lei penal, Class, Wilhelm, Grenzen des Tatbestandes, p. 23;
sobre outros significados, Engisch, Karl, em Fest.f Mezger, pp. 127 ss.; Mezger, Edmund,
em NJW, 1953, pp. 2 ss.; Lange-Hinrichsen, em JR, 1952, pp. 302 ss.

127
uma fónnula necessária para que o direito penal possa interpretar redutoramente
o âmbito das hipóteses de proibição.

7. A redução abstrata de hipóteses não esgota a tarefa do direito penal,


constituindo apenas o pressuposto necessário para o juízo de valor acerca da
proibição das ações concretas que se submetem a decisão jurídica. Este juízo é
que esgota- neste nível - a função limitadora do direito penal; aí se desenvolve
a verdadeira atividade redutora.

li. Tipo, tipicidade e juízo de tipicidade


1. O conceito de tipo penal, tensionado entre o poder punitivo e o direito penal,
escapou entre os dedos da doutrina tradicional que, ignorando essa tensão, conce-
deu-lhe uma função legitimante que tenninou por naturalizá-lo. Por isso, cabem
alguns esclarecimentos que pennitarn diferenciar o próprio conceito de tipo dos
requisitos necessários para afirmar a tipicidade de uma conduta e também do juízo
através do qual se estabelece a tipicidade a propósito de uma conduta concreta.

2. Comecemos pela advertência de que a tradicional tradução por tipo da


palavra alemã Tatbestand 1 é apenas aproximativa. Não é um erro de interpre-
tação, pois etimologicamente tipo admite, tanto em sânscrito quanto em grego8,
os sentidos de batida, impressão, cunhagem, nas quais se originariam material-
mente outros objetos (um resíduo lingüístico desta acepção nas tipografias, nos
linotipos etc) e de exemplo ou modelo dos quais derivariam idealmente seme-
lhanças ou afinidades (como na expressão arquétipo). Esta segunda acepção,
arraigada na linguagem técnico-jurídica, prevalece entre nós.

7
A palavra remonta ao latim medieval, no qual se falava de facti species a propósito do corpus
de/icli, no procedimento inquisitorial canônico (cf. Rosshirt, Conrad, Entwicklung der
Gnmdsiitze des Strafrecht, p. 290; Hall, Alfred Karl, Die Lehre vom Corpus delicti, p. 1;
Boldt, Gottfried, Johann Samuel Friedrich von Bohmer und die gemeinrechtliche
Strafrechtwissenschaft, p. 112; Schweikert, Henrich, Die Wandlungen der Tatbestandlehre
sei/ Beling, pp. 7-8; Luden, Heinrich, Abhandlungen, li, pp. 32-33). Entretanto, o conceito de
Tatbestand foi empregado pela primeira vez no final do século XVIII por Klein, Ernst Ferdinand,
Gransiitze, e Feuerbach, Paul Anselm Ritter von, Lehrbuch, p. 78; sobre a polêmica com
Klein, cf. o prefácio de Revision der Grundsiitze und Grundbegrijfe;Sttibel, Christoph Carl,
Uber den Tatbestand der Verbrechen, pp. 2-4; Jagemann, Ludwig von, Criminallexikon, pp.
605-608; Wachter, Karl Georg, lehrbuch, § 46; Abegg, Julius Fredrich Heinrich, lehrbuch, p.
103; Mitterrnaier, Die Strafgesetzgebung in ihrer Fortbildung, pp. 155 ss.; Merkel, Adolf,
Lehrbuch, pp. 34 ss. Sobre a origem histórica também Jakobs, p. 188, e entre nós Machado
Derzi, Misabel de Abreu, Direito Tributário, Direito Penal e Tipo, pp. 21 ss, e Luiz Luisi, O
Tipo Penal, a Teoria Finalista e a Nova Legislação Penal, pp. 13 ss.
• Cf. Roberts-Pastor, p. 173; Misabel Derzi, p. 21.

128
3. Tatbestand em sentido literal significa aproximadamente pressuposto
de fato, permitindo, portanto, duas claras significações: a) como pressuposto
de fato fáctico (o acontecimento particular e concreto, produzido por conduta
humana, que se realiza no mundo), e b) como pressuposto de fato legal (o
modelo geral e abstrato que a lei cria para sua caracterização)9. Na primeira
parte dos preceitos penais encontramos a descrição de uma conduta, embora
não em toda a sua extensão e sim em suas facetas conceituais. Esta imagem
conceituai se denomina pressuposto de fato (Tatbestand) abstrato, ou me-
lhor, legal (praeceptum legis). Enquanto presença conjunta das característi-
cas conceituais que devem guardar correspondência no fato, para que este seja
punível, distingue-se o pressuposto do fato (Tatbestand) legal do fáctico (o
abstrato do concreto). Qualquer acontecimento que ocorra no mundo é, desde
que obra humana, um pressuposto de fato (Tatbestand) fáctico; por exemplo,
uma conversa, uma viagem, a explosão de uma bomba. Neste sentido, um
terremoto não configura um pressuposto de fato (Tatbestand) fáctico 10 • O em-
prego generalizado da palavra tipo, com o predomínio da acepção de exemplo ou
modelo, limitou sua incidência ao pressuposto de fato legal ou abstrato
(praeceptum legis)11, pois seria artificioso denominar tipo ao fato particular e
concreto. Enquanto a expressão "tipo legar' ganhava curso no Brasil, caía no
esquecimento o outro sentido possível da palavra alemã Tatbestand. Contribuiu
decisivamente para isso sua identificação com afacti species na terminologia de
Teófilo, que no latim medieval significava literalmente aparência do fato, o que
levou à tradução italiana de Tatbestand por fattispecie, expressão que - tanto
quanto tipo em português - evoca preferencialmente o geral e abstrato 12•

4. Sendo inconveniente inovar em terminologia técnica consagrada, é pre-


ferível - já que a expressão Tatbestand perdeu um de seus sentidos - substi-
tuir o sentido perdido (pressuposto de fato fáctico) pela expressão pragma,
qu~ é fndicadQrq da comiuta humana e rje sua obra no mundo 13 . Um
.prpg"Jq pp,9e s~r u111~ çonv~rs~, 4ma viagem, ou a explosão de uma bomba,
fl~P portm µrq terremoto, ~nde não é reconhecível çppduta, Qµmana; a expres-

9
Trata-se de uma dupla posição sistemática (processual e penal), que excede a categoria de
Typus, própria da refundação conceituai do Tatbestand formulada por Beling (cf. Gargani,
Alberto, Dai corpus delicti ai Tatbestand, p. 409); um modelo de reconstrução processual
com base historiográfica, a partir do conhecido "caso Sofri", em Ginzburg, Cario, Eljuez y
el historiador, pp. 18-24.
10
Mayer, M. E., Lehrbuch, p. 3.
11 Mayer, M. E., loc. cit.
12
Sobre isso, com ampla bibliografia, Gargani, A., op. cit., pp. 302 ss.
13 Uma abordagem filosófica do pragma, como "expressão objetiva da praxis", em Lima Vaz,
Henrique Cláudio, Ética e Direito, pp. 33 ss.

129
são pode, assim, cumprir exatamente a função que Max Ernst Mayer atribuía
em alemão ao Tarbesrand (pressuposto de fato) fácrico.

5. O conceito de tipo como modelo abstrato, que deve ser comparado


com a conduta concreta realizada no mundo, constitui não só um conceito está-
tico de tipo mas também tende a deslocar-se na direção de uma suposta natu-
reza descritiva '4. Esta visão se vincula à ideologia de um liberalismo ingênuo,
que pretende produza o legislador um instrumento acabado e perfeito para que
o juiz se limite à comparação subsuntiva do fato com a descrição. Tal perspec-
tiva está pouco distante do pensamento revolucionário oitocentista, que postu-
lava fossem as incriminações tão claras e precisas que qualquer cidadão pudesse
empreender a comparação subsuntiva, complementando a ilusão de códigos
diáfanos e unívocos e de juízes populares e leigos, que é o marco original da
natureza descritiva dos tipos, da natureza exclusivamente factual do juízo de
tipicidade e da natureza ava/orada da característica de tipicidade da condu-
ta 15, que ainda hoje perdura para aqueles que acreditam que a função judicial
se esgota na subsunção estritamente comparativa, não por acaso sustentada
pelo mais radical opositor do controle judicial da constitucionalidade das leis 16.
Esta perspectiva, numa esquina em que o liberalismo ingênuo se encontra com
o nazismo teórico, esquece que a seleção abstrata de pragmas conflitivos re-
quer uma interpretação técnica dos tipos, sem a qual o âmbito da proibição se
estenderia de forma absurda e inusitada, tratando-se portanto de uma tarefa
jurídica, necessariamente va!orativa 17 . A interpretação dos tipos penais está
inextricavelmente ligada ao juízo pelo qual se estabelece se uma conduta real e
concreta é típica, ou seja, se constitui matéria proibida, o que é também um
juízo valorativo (jurídico) acerca de uma conduta e seus efeitos (um pragma).

6. Mesmo quem admita que os tipos penais devem ser objeto de uma
valoração redutora das hipóteses de proibição pode incidir no erro de conside-
rar que ojuízo de tipicidade é factual, porque a atividade classificatória primária
que vinca a análise jurídica concebe a interpretação técnica dos tipos como
etapa prévia ao juízo de tipicidade. No marco de uma lógica que despreze as
reais possibilidades e funções do direito penal fica adequado tomar a interpre-
tação como passo anterior ao juízo de tipicidade. Nessa linha, chegou-se a

14
Beling, D.L.v. Verbrechen, p. 112; Cardenal Motraveta, Sergi, E/ Tipo Penal en Belingy los
Neokantianos, pp. 59 ss.
15
Questionada já no primeiro quartel do século XX, cf. Fischer, Die Rechtswidrigkeit; Hegler,
em ZStW, 36, 1915, pp. 19 ss.; Mayer, M. E., Lehrbuch, pp. 185-188; Mezger, em GerS
89, 1924, p. 207.
16
Schmitt, Carl, La defensa de la Constitución.
17
Cf. Roxin, p. 281.

130
propor uma distinção entre tipo textual e tipo de interpretação (Wortlauttat-
bestand e Auslegungstatbestand), reduzido o primeiro à fónnula legal e in-
corporando o segundo a contribuição hennenêutica 18 • Entretanto, essa lógica
recusa a realidade e, com raízes na ideologia penal da revolução burguesa,
supõe um legislador onividente, cujos tipos penais diáfanos e unívocos logram
compreender todos os pragmas que os conflitos sociais expõem, sem que ne-
nhuma circunstância concreta deles possa gerar qualquer incerteza. Quando se
renuncia à lenda do legislador sábio, percebe-se que ele só pode desincumbir-se
de sua tarefa de modo circular, resignado em que as infinitas variáveis sob as
quais os pragrnas se apresentam histórica e concretamente requisitam penna-
nentemente reinterpretações e aprimoramentos na valoração redutora das hipó-
teses típicas. Assim, a interpretação técnica dos tipos e a valoração de uma ação
como típica ou atípica não constituem duas etapas sucessivas, mas apenas duas
faces de uma mesma e incindível atividade valorativa (o juízo de tipicidade).

7. O tipo é produto de uma decisão política, e portanto de uma valoração 19;


sua limitação interpretativa é uma atividade jurídica (valorativa) que constitui
uma face do juízo de tipicidade traduzida na valoração de um pragma como
penalmente proibido. O fato de nascer o tipo de uma valoração e logo conver-
ter-se em objeto de outra valoração não implica que não se valha, em sua
fórmula, de descrições. Ao contrário, é completamente apropriado que a proibi-
ção de condutas recorra à descrição delas, particulannente através dos verbos
que as exprimem. Isto, porém, não significa que o tipo seja descritivo como .
antônimo de valorativo e menos ainda como sinônimo de objetivo. O tipo é
claramente valorativo porque é gerado por um ato de valoração e por-
que, exprimindo uma proibição, será novamente valorado quando de seu
emprego nesta função de exprimir a proibição.

8. A partir de que não existe forma para exprimir pautas de desvalor


de condutas que não recorra à descrição, pretendeu-se em algum momento
deduzir que o tipo seria puramente objetivo (a descrição seria apenas exterior)
e ava/orado (não conteria apreciações axiológicas), procurando-se assim ca-
racterizar o juízo de tipicidade como factual (comparativo) e a ação típica
como valorativamente neutra. Quando, na fónnula legal, se encontrava algum
dado subjetivo ou alguma referência valorativa, eram tomados por anonnalida-
des, sendo tais tipos batizados de anormais20. Embora a classificação dos tipos
legais em normais e anormais tenha perdido sentido a partir do conceito com-

18
Schmidhãuser, 1970, p. 14; 1982, p. 40.
19
Do "socialmente intolerável", para Jakobs, p. 190.
20
Jiménez de Asúa, Luis, La ley y el delito, p. 258.

131
plexo de tipo, perdura a classificação dos elementos típicos em descritivos e
valorativos, percebendo-se nos últimos efeitos debilitadores da legalidade21 •

9. Perigosa confusão ocorreria caso, por ser o tipo valorativo, se renunci-


asse à classificação de seus elementos em descritivos e va/orativos (denomi-
nação que se mantém por tradicional),já que seriam então todos valorativos 22,
abrindo-se pois um campo ilimitado para o arbítrio legislativo e desorientando-
se a interpretação redutora pela remissão incontrolada do intérprete a critérios
axiológicos voluntaristas23 . Tal confusão sugere revisitar a conceitualização dos
elementos do tipo assim classificados.

1O. Na elaboração do juízo de tipicidade, encontraremos elementos típi-


cos capturáveis através da linguagem comum {p. ex., "animais" - art. 164 CP),
da linguagem científica (p. ex., "germes patogênicos" - art. 267 CP) ou da
linguagem jurídica (p. ex., "coisa tombada" - art. 165 CP). Por serem
interpretáveis, de todos se poderia afirmar serem igualmente descritivos. No
entanto, se para o primeiro deles ("animais") o processo interpretativo pode, na
quase totalidade dos casos, dispensar qualquer mediação além das representa-
ções sociais correntes ( elemento descritivo), para o segundo ("germes
patogênicos") a constatação dependerá de informações médicas, tanto quanto
para o terceiro ("coisa tombada") de informações jurídicas ( elementos
normativos). Não se pode relegar o ato interpretativo de um elemento típico a
uma escolha irresponsável entre uma acepção técnica e outra laica, sem imedi-
ata fragilização da função de garantia do tipo e ruptura metodológica com a
teleologia redutora que deve orientar o afazer dogmático.

11. Os elementos normativos constituem remissões diretas a outras or-


dens valorativas, o que obriga o intérprete a uma integração conceituai neces-
sária ao juízo de tipicidade. Para estabelecer se a conduta incidiu sobre "coisa
tombada", tanto quanto para saber se o sujeito atuou "sem licença" (art. 166
CP), será sempre indispensável a investigação adm\nis~féltiva corr~spQngent~;
para saber se o "agente recebeu a coisa em depósito necessário'? (art. 168, §
1º, inc. I CP) estará o intérprete adstrito à previsão legal específica (art. 647ss

21
Cf. infra,§ 30, IV; ponnenorizadamente em Engisch, Karl, em Fest.f Mezger, pp. 127 ss.;
Kunert, Die normativen Merkmale des strafrechtliche Tatbestiinde; Kindhauser, V., Rohe
Tatsachen und normative Tatbestandsmerkmale; Fragoso, Heleno, Elementos subjetivos
do tipo, em Direito Penal e Direitos Humanos, pp. 73 ss; Luiz Luisi, O Tipo Penal, pp. 16
ss; Vargas, José Cirilo de, Do Tipo Penal, pp. 36 ss.
22
Assim Puppe, Ingeborg, notas prévias ao§ 13 em Nomos Kommentar zum StGB; Stratenwerth,
p. 93.
23
Como as remissões à valoração global do fato, quando não referidas à antijuridicidade; cf.
Roxin, pp. 246 ss.; Jakobs, pp. 196 ss.

132
CC), que não poderá ampliar sem que esteja ao mesmo tempo violando a fim-
ção de taxatividade da reserva legal. Quando um elemento normativo não for
interpretável (por não produzir sentido algum, quando ininteligível; por produzir
um sentido aberrante, em contradição com o ordenamento jurídico; ou quando
produzir tantos sentidos que fragilize a função de garantia) deverá proclamar-
se a inconstitucionalidade do tipo legal.

12. Ao reduzir as hipóteses e valorar os pragmas, o direito penal valora


condutas como proibidas: toda proibição está referida a normas. Como vimos24,
as normas não são concebidas como preexistentes aos tipos penais (nem na lei,
nem na cultura), mas sim como uma dedução alcançável a partir dos próprios
tipos. Trata-se de uma dedução necessária para o intérprete estabelecer o âmbito
da proibição como critério de desvaloração primário (primeiro escalão
desvalorativo, ou de relevância penal indiciária, ou de prelação lógica para a
averiguação da antijuridicidade), concebido não como um ente criado pelo le-
gislador ou pela cultura e sim como instrumento de lógica jurídica.

13. Neste sentido, a norma não pressupõe um legislador racional, acima


dos conflitos, nem qualquer outra ficção 25 , assumindo pelo contrário o dado real
de um legislador que incorre em contradições e jamais pode prever todas as
hipóteses, porque mesmo se operasse como um sofisticado computador a dinâ-
mica histórica sempre o surpreenderia com novas situações e novos confron-
tos. É precisamente o dado real do legislador contraditório que concita a tomar
a norma como instrumento de lógica jurídica: se a cominação de pena a uma
conduta, que é a criação política e jurídica do crime, assinala um âmbito que
toca ao juiz considerar proibido, a racionalidade republicana impõe que o em-
prego da pena se explique pela presença de um conflito de certa importância, e
que este conflito se caracterize pela afetação de um ente juridicamente valorado
de forma positiva (bem jurídico). Não há provas de que os legisladores tenham
sido sempre racionais e tenham sempre partido do bem jurídico para construir a
norma e chegar ao tipo, e exatamente por isso é indispensável levar às últimas
conseqüências o esforço científico para que um juiz racional, partindo do tipo,
deduza a norma e chegue ao bem jurídico, podendo assim estabelecer com
precisão o âmbito do proibido, dele excluíndo não só as hipóteses formalmente
atípicas, como também aquelas de intolerável irracionalidade, nas quais o bem
jurídico não esteja afetado.

14. Trata-se de uma norma deduzida pelo juiz, e não dirigida a ele, não
cabendo confundir um instrumento lógico com um ente do mundo. Quando o
2
~ Cf. v. I, §§ 8° (pp. 151 ss) e 23 (pp. 601 ss).
2s Cf. v.1, § 23 (pp. 601 ss).

133
poder político resolve suspender certo padrão de conflitos ao invés de resolvê-
los, promove sua criminalização primária num tipo legal, que é o instrumento do
qual se valerá o juiz para habilitar ou interromper os procedimentos de
criminalização secundária: o que existe no mundo é a objetivação ou resultado
da decisão política criminalizante (a lei penal). A pretensão de que o tipo e a
norma se dirijam ao juiz ou ao súdito ou a ambos pressupõe não só um legisla-
dor fictício (alheio aos conflitos sociais, profético e racional) como também um
sistema penal mecânico, que descarrega poder punitivo cada vez que social-
mente se realiza um pragma. Afortunadamente, isto é impossível. Mantida a
teoria dos imperativos em versão corrigida e adaptada à verdade operativa dos
sistemas penais, chegaríamos ao disparate de considerar que todos os tipos
seriam crimes próprios com sujeitos qualificados por sua vulnerabilidade, quan-
do, inversamente, a mais importante tarefa do direito penal seria diminuir a
seletividade arbitrária.

III. Outros usos da palavra tipo


1. Quando mencionamos simplesmente o tipo, estamos nos referindo ao
conceito antes elaborado, que no direito penal exerce a função de filtrar, num
primeiro nível de desvalor (oda proibição), o poder punitivo. Um setor doutriná-
rio, para distingui-lo de outros usos que a doutrina concedeu à palavra tipo 26,
vale-se da expressão tipo sistemático para designar simplesmente o tipo; no
Brasil, esse tipo "em estado bruto" que é o tipo sistemático é freqüentemente
chamado de tipo legal. Na Alemanha, a palavra tipo foi utilizada em diferen-
tes contextos e sentidos27, nem todos admissíveis em português, onde como
vimos prevalece a acepção de modelo abstrato. Será mais simples denominar
apenas tipo, sem qualquer adjetivo, a este tipo legal ou tipo sistemático que
cumpre a função fandamentadora ora assinalada, agregando-lhe aditamentos
só nos casos em que seja empregado com outra significação.

2. Independentemente da questão semântica, é desnecessário e inconve-


niente abusar da expressão. Entre os múltiplos usos doutrinários, caberia recor-
dar: a) antes de Beling, o tipo abarcava praticamente todas as condições do
delito, inclusive as de punibilidade28; b) posteriormente, distinguiu-se o tipo em
sentido técnico (tipo sistemático ou fundamentador) do tipo em sentido amplo,
pré-belinguiano, que passava a ser uma tradução dogmática do princípio da
26
Sobre outros usos, Jakobs, p. 191.
27
Engisch assinalou que o tipo se convertera "num conceito da moda em todas as ciências" (La
Jdea de Concreción, p. 415).
21
Welzel, p. 54.

134
legalidade, agora chamado tipo de garantia (Garantietatbestand) 29 ; e) uma
particular concepção que identifica no tipo a ratio essendi da antijuridicidade
se referirá a um tipo de injusto ( Unrechttatbestand}3°; d) dentro de certa
concepção do erro, segundo a qual o erro de tipo abrangeria as características
31
factuais das causas de justificação , falar-se-ia de tipo de erro
(lrrtumstatbestand) 32 , que estaria composto por maior número de caracteres
objetivos que o anterior; e) também se falaria de tipo permissivo
(Erlaubnistatbestand) como referência a uma causa de justificação33 ; t) um
uso menos freqüente daria ensejo ao chamado tipo de culpabilidade
(Schuldtatbestand) 34.

3. Convém desde logo descartar alguns desses usos. A amplitude de que


disporia um conceito de tipo de garantia, incorporando até mesmo elementos
do processo penal, neutralizaria sua utilidade dogmática. A noção de tipo de
injusto é proveitosa para aqueles que compartilham o marco teórico de onde
proveio ela, o que não é o nosso caso. Por fim, no conceito de tipo de culpabi-
lidade têm origem muitas confusões, sendo ele desnecessário para assinalar a
congruência da culpabilidade com o correspondente injusto.

4. No presente estudo serão empregados, além do geral (tipo sistemático,


fundamentador ou legal), apenas dois daqueles conceitos: o de tipo de erro

29
Schultz, I, p. 109; Otto, Harro, p. 58; Welzel, p. 54, e também em JZ, 1952, p. 617 e NJW,
1953, 1, p. 652; Mayer, Hellmuth, em JZ, 1953, p. 105; Baumann, p. 125. A distinção entre
tipo sistemático e tipo de garantia foi formulada também por Gallas, Beitriige, p. 32;
Maurach, p. 226; Mayer, H., p. 35; Kaufmann, Arthur, em JZ, 1954, p. 656; Stratenwerth,
p. 65; Wessels, p. 16; Schõnke-Schrõder, p. 20; Lang-Hinrichsen, Dietrich, em JR, 1952,
pp. 184 e 302 e em JZ, 1953, p. 362; Mezger-Blei, p. 103; Mezger, em NJW, 1953, p. 2;
Engisch, Karl, em Festf.Mezger, p. 127; Roxin, Ôffene Tatbestiinde... , p. 107; Schmidhauser,
p. 71; Jescheck-Weigend, p. 246.
30
Reconhece elementos negativos do tipo Baumgarten, Arthur, Der Aujbau der Verbrechenslehre;
sem submeter-se a isto, Sauer, Wilhem, Gmndlagen des Strafrechts; Mayer, M.E., lehrbuch,
1915 (2ª ed., 1923). Cf. ainda Hegler, A., Die Merkmale des Verbrechens, em ZStW, 36, 19,
1915; Engisch, K., Der Unrechttatbestand im Strafrecht; Lang-Hinrichsen, D., em JZ, 1953,
pp. 362-367; Kaufmann, A., em JZ, 1954, pp. 653-659; Novakowiski, Friedrich, em ZStW,
65, 1953, pp. 379 ss.; Weber, Aujbau, p. 17; Gnmdriss, p. 86; e Fest.fMezger, pp. 183-191;
Schaffstein, Friedrich, em MDR, 5, 1951, p. 196 ss.; Bockelmann, p. 40; Wessels, p. 73; Blei,
p. 148; Schüneman, B., E/ sistema moderno... , p. 71; Herzberg, emJA, 1989, p. 243; Schroth,
em Fest.f A. Kaufmann, p. 565; na Espanha, Luzón Pei\a, pp. 298-299; críticos, Schweikert,
op. cit., pp. 35 ss.; Hirsch, Joachim, Die lehre von den negativen Tatbestandsmerkmalen,
pp. 78 ss.; Jakobs, p. 192; por motivos preventivos a teoria é rejeitada por Roxin, pp. 232 ss.
31
Cf. Jescheck-Weigend, pp. 248 ss.
32
Schmidhauser, p. 157; Bockelmann, p. 78.
33
Wessels, p. 90;. Jescheck-Weigend, pp. 462 ss.
34
Bockelmann, p. 62; Jescheck-Weigend, p. 246.

135
(com conteúdo distinto do habitual) e o de tipo permissivo. Quanto ao primei-
ro, ao contrário da conhecida posição doutrinária (que, para resolver os erros
sobre circunstâncias factuais das descriminantes como erro de tipo, postula um
âmbito objetivo que excede o tipo objetivo), é aqui empregado como suporte
dos elementos objetivos que devem ser abrangidos pelo dolo. Quanto ao segun-
do (tipo permissivo ou de just(ficação ), pode prestar-se a clarificar, em cer-
tas condições, a análise de hipóteses de exclusão da antijurídicidade.

5. A tipicidade de uma conduta indica sua proibição penal, ou seja, sua


conflitividade penal, a partir da qual se investigarão sua antijuridicidade e culpa-
bilidade, características atreladas a esta (e não a outra) conduta típica, com o
que a tipicidade se projeta nas sucessivas desvalorações da mesma conduta.
Neste sentido, também a antijurídicidade e a culpabilidade são típicas (são
desvalor~ções de uma conduta típica detenninada, particular e concreta), po-
rém nem por isso é preciso construir novos conceitos de tipo, propiciando con-
fusões. Preferimos, assim, não empregar conceitos equívocos de tipo, que se
multiplicaram ao longo do século XX (tipo total de injusto, tipo de exculpação,
tipo de ação, tipo de aplicação, tipo reitor etc)35.

TV. Modalidades legislativas dos tipos penais


1. Como é impossível constatar se algo está proibido sem partir de
uma prévia demarcação da matéria da proibição, o tipo penal é sempre
imprescindível. Não se trata aqui da comparação entre um pragma e um tipo
através de um juízo fático: o pragma é submetido a um juízo de valor baseado
no tipo, e portanto sem o tipo penal tal juízo de valor (tipicidade) seria irrealizável.
Ainda que atualmente poucas legislações nacionais permitam a construção
analógica de tipos penais, como por exemplo a China, mesmo nestes sistemas
de tipos judiciais é imprescindível que os juízes construam o tipo para averi-
guar a tipicidade36; é o que faziam os juízes da legislação nazista. Fora dos
sistemas legais que expressamente admitem a analogia na construção de tipos,
algo similar é realizado quando juízes de estados de direito de fachada se valem
do procedimento analógico para integrar tipos inconstitucionais. Em suma: mesmo
que não se respeite em toda a sua plenitude o princípio da legalidade, o
tipo é sempre imprescindível, por razões estritamente lógicas.

35
Ampla descrição desses usos em Roxin, Ôffene Tatbestiinde.
36
Sobre violações do princípio da legalidade na interpretação judicial dos tipos, cf. Müller-
Dietz, em Fest. f Maurach, pp. 41 ss., e Bettiol, EI drama dei tipo penal.

136
2. Quando o poder punitivo se dirige contra inimigos ("domésticos" se
dizia dos escravos e "internos" dos dissidentes da ditadura de 1964; "públicos";
"da sociedade" etc) o conflito perde interesse e passa ao primeiro plano a
inimizade (às vezes chamada de pericu/osidade), passando a tipicidade a
referenciar-se não ao conflito e sim à inimizade perante o poder. Por isso, o
direito penal do estado policial teoriza sobre o tipo indicando ao juiz como cons-
truí-lo para detectar inimigos. Os tipos legais cedem espaço, então, aos tipos
judiciais, tanto quanto os tipos de ato aos tipos de autor, podendo afirmar-se que
se nem todos os tipos legais são de ato, todos os tipos judiciais são de
autor. O direito penal que se afasta do empreendimento redutor, para degra-
dar-se como racionalização policial, geralmente violenta a tipicidade legal, legi-
tima a tipicidade de livre elaboração judicial, menospreza a averiguação do
conflito em favor da averiguação da qualidade de inimigo, com a conseqüência
processual de reduzir o debate e fortalecer o inquisitório. O estado de polícia,
neste âmbito, tende a cometer ao juiz a formulação do tipo para que ele identi-
fique autores ao invés de ações.

3. Dado que não existe um estado de polícia total nem um estado de


direito perfeito, é constante a tensão entre tipos legais e judiciais, bem
como entre seleção típica de ato e de autor. Por mais que certa legislação
queira observar o princípio da legalidade, a própria linguagem tem limitações,
de modo que a construção legal dos tipos jamais se esgota na estrita literalidade,
requerendo um trabalho interpretativo de redução racional da matéria proibida,
que toca ao direito penal efetuar. Mesmo num sistema de tipos legais, como é o
brasileiro, são empregadas fórmulas gerais nos chamados tipos abertos37 , como
por exemplo os tipos culposos, apresentando-se ainda outros hiatos de legalida-
de nos chamados tipos dependentes (como na distinção entre atos preparató-
rios impunes - art. 31 CP - e atos de tentativa puníveis - art. 14, inc. II CP).
Problemas semelhantes surgem também nos chamados crimes omissivos im-
próprios, tais como concebidos pela doutrina dominante. Temos aí diversos
âmbitos de tipicidade judicial, nos quais a função redutora do direito penal en-
frenta os impulsos punitivos do estado policial. Ao nível típico, essa tensão se
manifesta na proliferação de tipos abertos e de tipos de perigo (especialmente
presumido ou abstrato) e no desprestígio teórico do bem jurídico. A legalidade

37
Sobre este problema, Wex, Peter, Die Grenzen normati~•er Tatbestandsmerkmale; See, Paul,
Umbesimmte und normative Tatbestandsmerkma/e; Roxin, Claus, Ôffene Tatbestiinde, p.
108; Welzel, 1967, p. 45; Wessels, Johannes, em Fest.f Maurach, pp. 295 ss.; Maiwald,
Manfred, em Fest.f Gal/as, p. 137; Wassner, H., Die Stellung des "besonders schweren
Fiille", diss.; Wahle, Eberhard, Die Rechtsnatur der "besonders schweren Fiille", diss.;
Hub, Renate, Die A11sgestaltung der besonders schweren Fiille; Jakobs, pp. 196 ss; Macha-
do Derzi, Misabel, p. 138.

137
não é, portanto, um problema que o legislador esgotou ao nível do tipo, mas é
tarefa do direito penal traduzi-la e rematá-la em termos de legalidade estrita,
através da interpretação restritiva dos tipos penais ou da eventual proclamação
de sua inconstitucionalidade.

4. Fica assim claro que o tipo penal, como sua história demonstra, não
nasce diretamente do nullum crimen sine lege, já que é imprescindível até
num sistema de tipos judiciais. Os tipos legais representam uma condição ne-
cessária, porém não suficiente, para a plena realização do princípio da reserva
legal. É a ciência do direito penal que, tomado o nul!um crimen sine lege da
Constituição, do direito internacional e do artigo Iº CP, tratará de limitar os
tipos, extraindo desse princípio todas as conseqüências redutoras da matéria da
proibição, como por exemplo o reconhecimento da inconstitucionalidade da
integração analógica.

5. Dúvidas desconcertantes são colocadas pelas estruturas típicas


costumeiramente chamadas de tipos abertos. À parte as peculiaridades dos
tipos culposos e dos omissivos, sustentou-se que em alguns tipos comissivos
dolosos a tipicidade dependeria de características da antijurídicidade, pois, ao
invés de esgotar totalmente os elementos típicos, remeteria o intérprete a uma
valoração jurídica que complementava o tipo. Na legislação alemã, são exem-
plos os tipos de constrangimento ilegal e extorsão(§§ 240 e 253 StGB}, nos
quais a coação deve ser exercida ilicitamente e o fim visado pelo agente deve
estimar-se reprovável38 • No direito brasileiro, muitas condutas típicas devem
ser exercidas "indevidamente" (art. 151 CP) ou "sem justa causa" (art. 244
CP), enquanto por vezes a valoração recai sobre certos elementos de tipo,
como o furto da coisa comum de "quem legitimamente a detém" (art. 156
CP). Retomaremos mais adiante o tema39, cabendo desde logo observar que
um tipo doloso estruturado apenas e inteiramente sobre uma cláusula geral de
valoração seria inconstitucional, porque sua amplitude proibitiva lhe subtrairia a
própria condição de tipo. Assim, tipos abertos por defeito legiferante ou má fé
do legislador não devem ser racionalizados nem legitimados: ao contrário, toca
ao direito penal neutralizar a falha técnica ou a má fé política com a escolha da
mais restritiva entre todas as possíveis interpretações, ou proclamar sua
inconstitucionalidade.

6. Dos tipos abertos se distinguem os tipos exemplificativos, como o


estelionato (art. 171 CP). A exemplificação cumpre aqui uma função restritiva

38
Roxin, p. 246 ss.; Jakobs, p. 198; Jescheck-Weigend, p. 247.
39
Cf. infra, § 30, IV.

138
da fórmula geral: não será suficiente o reconhecimento de "qualquer outro meio
fraudulento", se este meio não for equiparável ao "artificio" e ao "ardil", por-
tanto "idôneo"4º para iludir a vítima e impor-lhe um prejuízo material, como
pode ocorrer com a simples mentira verbal41 ou com o simples silêncio, ausente
o dever de verdade. Os tipos exemplificativos são, em princípio, inconstitucionais,
porque violadores da legalidade estrita (taxatividade). Sua principal utilidade
dogmática está no emprego do padrão exemplificante para reduzir o âmbito da
proibição típica.

V. Tipo de ato e tipo de autor


1. Embora entre os tipos judiciais e os tipos de autor42 exista vinculação
(todo tipo judicial é de autor), e embora constituam ambos expressões do poder
punitivo de um estado policial, não coincidem sempre (há tipos legais de autor).
Da mesma forma que um sistema de tipos legais não garante por si o princípio
da legalidade, a adoção de tipos de ato não exclui a seleção por características
pessoais. Frisou-se que o poder punitivo sempre é de autor e que a estrutura
indescartável dos sistemas penais, pelo menos na grande maioria dos casos,
seleciona a partir de estereótipos. O direito penal de ato representa o esfor-
ço do estado de direito para reduzir e limitar o poder punitivo de autor. O
direito penal de autor renuncia a este esforço e sua expressão mais grosseira
reside no tipo de autor, ou seja, na pretensão de que o tipo legal apreenda e
demarque personalidades e não atos, proíba ser de determinada maneira e não
fazer certas ações conflitivas43 . Portanto, a racionalização dos tipos de au-
tor é o sinal mais crasso de desorientação metodológica do direito penal,
que inverte sua função e põe-se a serviço do estado policial. Fala-se de
direito penal de autor, mas em verdade quando uma teorização chega ao
ponto de pretender legitimar tipos de autor já não merece o nome de direito.

4
° Fragoso, Lições, P.E., v. I, p. 451.
41
Carrara, dentro de seu critério da mise en scene, descartava a tipicidade de "semplici paroles
mensongeres" (Programma, § 2.344).
42
Sobre tipos de autor, Wolf, Erik, em Zeitschrifi der Akademie fiir Deutsches Rechts, 1936,
p. 363; o maior desenvolvimento desta teoria se deve a Dahm, Georg, Der Tiiter im Strafrecht;
imediata crítica em Lange, Richard, Die notwendige Teilnahme, p. 85 e em Welzel, em ZStW,
I 941, p. 461; Bockelmann, Studien zum Tiiterstrafrecht, p. 9, e em Strafrechtliche
Untersuchungen, p. 4; na Italia, De Mattia, Angelo, em Rassegna di Studi Penitenziari,
1956, pp. 563-581 e 641-650; Calvi, Alessandro, Tipo criminologico e tipo normativo
d 'autore, pp. 68-69; em relação aos tipos criminológicos de autor, cf. Selling, Emst-Weinslwe,
Karl, Die Typen der Kriminellen; a eles se referem, Welzel, pp. 125 ss., Schõnke-Schrõder,
p. 23 e Jescheck-Weigend, p. 54.
43
Cf. Ferrajoli, Dirillo e Ragione.

139
2. É comum a advertência de que o tipo de autor em sentido jurídico (tipo
legal de autor) deve distinguir-se do tipo criminológico. No entanto, recorde-se
que a velha criminologia clínica ensaiou inúmeras classificações dos delin-
qüentes44 como tipologias patológicas que influenciaram muito os preconceitos
sobre os quais se fundaram os tipos legais de autor. Não podia ser diferente, já
que com estes tipos se pretendia responder penalmente ao ladrão, e não ao
furto, ao assassino como personalidade e não ao homicídio como ato etc. O que
definitivamente se procurava saber era se atrás de cada conduta havia um
autor a cuja personalidade corresponderia a conduta, ou se, pelo contrário, a
conduta representava um acidente estranho a sua estrutura caracteriológica. É
claro que o último horizonte era detectar os autores sem que fosse preciso
aguardar as condutas. Geralmente, os casos nos quais não se encontrava essa
correspondência entre a conduta e o autor seriam resolvidos com a culpabilida-
de de autor, porém ao nível da tipicidade se proibia ser de determinada maneira,
sem que existissem pragmas conflitivos. Trata-se evidentemente de uma ideo-
logia policial, segundo a qual quem não é inimigo, mesmo que lesione outrem,
terá as conseqüências jurídicas mitigadas, porque há pouco ou nada a reprovar
em sua personalidade; em compensação, o inimigo deve ser reprimido mesmo
que não tenha lesionado ninguém e nem mesmo tenha pensado em fazê-lo,
simplesmente porque sua vida suspeita exibe sua inimizade. É a máxima consa-
gração do estado policial: aos amigos, tudo, aos inimigos a le,-i 5• Existem, no
direito penal brasileiro, vários tipos que poderiam ser compreendidos como ti-
pos de autor, mas a Constituição da República impõe46 sejam eles compreendi-
dos como tipos de ato, e que não se considere típica uma conduta que não afete
um bem jurídico. Podemos encontrá-los entre as contravenções (art. 60 LCP),
no código (art. 284 CP) e na legislação extravagante (art. 28 e seu§ 1º da lei nº
11.343, de 23.ago.06): uma visita às elaborações doutrinárias revelaria muitas
vezes um comovente esforço racionalizante para travestir de direito penal de
ato a esses tipos de autor.

3. Embora ninguém sustente abertamente os tipos de autor, inúmeras es-


tratégias político-criminais - crimes de perigo abstrato ou presumido, assunção
de paternalismo tutelar, remissões a pautas éticas etc. - terminam por viabilizar
a tendência do poder punitivo a converter em tipos de autor todos os tipos de
ato. Existe, difuso nessas estratégias e nos correspondentes discursos teóricos,
um novo direito penal de autor, meio envergonhado de suas origens históricas,
mas inequivocamente voltado à criminalização de estados e condições existen-

.,. Desde as psiquiátricas de Di Tullio, Benigno ( 1950) ou de lngenieros, José ( 1931 ), até as
psicanalíticas, como a de Alexander-Staub.
45
Schmitt, Carl, E/ concepto de lo político, pp. 26 ss.
46
Cf. supra § 28, I, 5.

140
ciais, e até mesmo de opiniões- ou não é visível o emprego mais freqüente dos
delitos de incitação e apologia (arts. 286 e 287 CP) nos dias que correm? Cabe
finalmente descartar a possibilidade de tipos de autor in bonam partem. Frente
à estrutura binária de toda proibição, é inevitável que à proibição de determina-
da personalidade corresponda logicamente a permissão de outra(s), de sorte
que o pretenso tipo de autor in bonam partem não passaria de ser um tipo de
autor in malam partem pelo avesso, expressão clara de poder punitivo de au-
tor. Diversa é a aplicação do direito penal de autor in bonam partem, que pode
manifestar-se no campo da culpabilidade e da individualização judicial da pena.

VI. Tipos dolosos e culposos, ativos (ou comissivos) e omissivos


1. Para a dogmática jurídico-penal de raiz neokantista, ação e omissão
eram manifestações (espécies) do gênero pretípico conduta (ou ação em senti-
do extenso), e dolo e culpa eram as duas formas da culpabilidade. Hoje pre-
domina o entendimento de que dolo e culpa e ação e omissão configuram
distintas modalidades ou estruturas típicas. O conceito redutor de conduta
(ação em sentido extenso) desenvolvido no capítulo anterior é o caráter geral
comum a todas essas estruturas típicas. Os tipos dolosos descrevem condutas
caracterizadas pelo controle final do agente sobre o fato, ao qual se incorpora o
resultado típico;já nos tipos culposos o resultado provém de uma falta de cuida-
do do agente no controle final de sua conduta. Os tipos ativos (ou comissivos)
individualizam diretamente as condutas positivas puníveis, enquanto nos tipos
omissivos as condutas puníveis se caracterizam por serem diferentes da ação
devida (aliud agere): no primeiro caso, o resultado é causado pelo agente (nexo
de causalidade), no segundo, o sujeito não o evita (nexo de evitação).

2. Da combinação dessas modalidades de conduta provêm as distintas


~strutur~s fípicas, qµe darão lugar ao~: a) tipos dolosos ativos (ou comissivos
(ÍP,(p,~p~ ); ll) tipri (/P.{oso~ Of1?issiyo~,: ç) {ip9s ~~lposos a{ivps; ~) {ipas
culposos omissivos. As figuras preterintencionais não constituem uma estru-
tura típica à parte, senão uma superposição seqüencial das modalidades dolo e
culpa, referidas a distintos elementos de um tipo complexo.

3. Essas formas estruturais condicionarão aspectos da antijurídicidade e


da culpabilidade, segundo se refiram a tipos dolosos ou culposos, ativos
( comissivos) ou omissivos. Rigorosamente, a antijuridicidade e a culpabilidade
apresentarão aspectos particulares próprios de cada tipo, o que constitui objeto
de estudo da Parte Especial do direito penal; não cabe descer a este estrato de
particularização ao nível da teoria geral do delito. Dificuldades imputativas e de

141
tipicidade objetiva em certos casos problemáticos levaram a que, após
estabelecida a distinção entre as quatro estruturas típicas fundamentais, se ex-
perimentasse um processo redutor que ensejasse um fundamento imputativo
único para todas elas, surgindo daí as atuais teorias da imputação objetiva41•

VII. Momentos construtivos da teoria do tipo


l. Proveniente do direito processual medieval, o conceito de tipo se introduzi-
ra no direito penal sem merecer elaboração sistemática e coerente durante o século
XIX, tratado ora como um conceito parcial, ora concebido de forma totalizante,
reduzido às vezes a mero instrumento classificatório de delitos. O ingresso da teoria
do tipo na dogmática contemporânea deu-se em 1906, quando Beling fixou o con-
ceito técnico de tipo penal, que para evitar confusões é hoje chamado de tipo
sistemático, fundamentador ou de proibição48 • Antes dessa notável contribui-
ção de Beling - e mesmo depois dela - sustentava von Liszt que o delito, como
injusto criminal, era a ação antijurídica, culpável e sujeita a cominação penal.
Ao conceito mesmo de delito Liszt chamava tipo gerar9 , com o que pretendia ele
seguir o itinerário de um suposto legislador racional: tal imaginário legislador olharia
em primeiro lugar para a antijuridicidade e em seguida para a relevância penal, o
que é impraticável para o juiz e, portanto, dogmaticamente inadequado. Daí a cer-
teira resposta de Beling: já que a antijurídicidade e a culpabilidade são as
condições que sujeitam a ação à cominação penal, estão contidas nela, para
não contrariar as leis do pensamento que nos ensinam que não se podem
cumular com igual valor duas características quando uma está já contida na
outra50. Pode-se, pois, afinnar que houve um emprego assistemático de tipo
([atbestand) anterior a 1906, e um uso sistemático desde então até hoje, nµm
percurso doutrinário que oferece variáveis teóricas que podem ser reunidas em
quatro ordens de questões: a) sua natureza objetiva ou subjetiva; b) sua
ava/oração ou valoração (relações com a antijurídicidade); e) sua relação
com a culpabilidade, d) sua redução à categoria da imputação objetiva.

2. Nasceu com Beling a concepção de um tipo estritamente objetivo.


Beling pretendia que a descrição típica abrangesse apenas o aspecto exterior
da conduta humana: o Tatbestand era em si objetivo e estava livre de todo
momento subjetivo (um tipo subjetivo constituiria uma contraditio in adjecto51 ) .

47
Cf. infra, § 31.
48 Beling, D.L. v. Verbrechen, p. 113.
49
Lehrbuch, p. 112.
50
D.L. v. Verbrechen, pp. 5-6.
51
Beling, op.cit., p. 178, invocando opiniões convergentes de von Femeck e Stoos.

142
Nos anos que se seguiram, a chamada escola neoclássica sustentou o mesmo
conceito belinguiano, com ajustes e remendos. Autores neokantistas, no entanto,
passaram a admitir a presença de elementos subjetivos, argumentando que na
tentativa o próprio dolo passava a ser elemento subjetivo do tipo52, acrescentando
Blei,já bem mais tarde, que quando ocorre a realização objetiva (consumação)
esta passaria a ocupar o lugar do elemento subjetivo53 • Welzel diria que seme-
lhante distinção entre delito tentado e consumado carecia de toda razão lógica54 •

3. Antes que uma década se completasse da enunciação teórica de Beling,


a concepção puramente objetiva do tipo foi negada quando Hegler, partindo da
chamada jurisprudência dos interesses, quebrou o esquema objetivo/subjeti-
vo na teoria do delito 55 . Em 1910 Binding formulara o primeiro conceito misto
de tipo penal, postulando um tipo de delito objetivo (objektiven
Verbrechenstatbestand)56, numa linha que teria poucos adeptos 57•

4. A concepção mista (objetivo-subjetiva) do tipo foi fruto das dificulda-


des da concepção objetiva. De um lado, a descoberta dos elementos subjetivos
do injusto negava uma total objetividade; de outro, a incapacidade da teoria
psicológica da culpabilidade para incorporar a culpa inconsciente desacredita-
va o pretenso monopólio da subjetividade ostentado pela culpabilidade. Hellmuth
von Weber foi o primeiro a elaborar um conceito de tipo francamente misto em
1929, que desenvolveria de forma mais completa em 1935, sistematizando, anos
antes de Dohna, um tipo objetivo e um tipo subjetivo 58• Weber observava que a
teoria normativa da culpabilidade e os elementos subjetivos do tipo haviam rom-
pido a base metodológica objetivo/subjetiva, advertindo que as inconseqüências
das doutrinas apegadas a tal base não aportavam à jurisprudência bons instru-
mentos decisórios, particularmente em tema de erro, participação e tentativa.
Para Weber, a culpabilidade se reporta ao poder enquanto a antijurídicidade se

52
Mezger, leipziger Kommentar, 1954, v.1, p. 11 (na edição de 1956, pp. 14-15).
5
i Mezger-Blei, p. I 04.
54
Das neue Bild, p. 57 (na versão espanhola, cf. nota de Cerezo Mir, pp. 64-65); Gallas,
Beitriige, p. 48; Jescheck-Weigend, p. 515; Bockelmann, Strafrechtliche Unters11ch11ngen,
p. 151; outra opinião, Engisch, em Hundert Jahre Deutsches Rechtsleben, pp. 432-437.
55
Em ZStW, 1915, pp. 76 ss.
56
Binding, Karl, em Der Gerichtssaa/, LXXVI, 19 IO, pp. 2 ss. Os conceitos de ação de
Binding e do finalismo se aproximam, porque orientados ambos para preexistentes estrutu-
ras ônticas. Enquanto, porém, o conceito finalista se propõe como atividade humana por
completo independente de relevância jurídica, o de Binding se erige no marco do normativo,
já que extraído da capacidade de observar um dever (cf. Kaufmann, Armin, l ebendiges und
Totes in Bindings Normentheorie, p. 283).
57
Nagler, Johannes, em Fest.f Binding, II, pp. 286-287; Allfeld, Philipp, em Meyer-Allfeld,
lehrbuch, p. 22.
51
Weber, Zum aujbau ... , pp. 5-27; Grundriss des Tschechoslowakischen.

143
reporta ao dever, substituindo-se a dualidade objetivo/subjetivo pela dever/po-
der (Sol/en/Konnen) 59• Em 1936 o conde Dohna também elaborou um concei-
to misto do tipo penal. Em sua construção havia um desvalor de caráter misto:
do tipo objetivo (que era o juízo de antijuridicidade) e do tipo subjetivo (que era
o juízo de culpabilidade)6°. Assim, Hellmuth von Weber e Alexander Graf zu
Dohna indicaram um percurso, ao qual, a partir de 1935, se agregaria Welzel61 •

5. Ressalvadas divergências entre algumas de suas versões, a concepção


mista do tipo sustenta que nele se emparelham um aspecto objetivo (composto
por tudo quanto esteja objetivado no mundo exterior) e um aspecto subjetivo,
cujo cerne é inquestionavelmente o dolo62, embora por vezes o tipo subjetivo se
apresente hipertrofiado, ostentando elementos diferentes do dolo (como certos
fins de agir que ultrapassem a realização típica objetiva).63 Distinta é a estrutu-
ra do tipo culposo, porque para a tipicidade culposa é critério decisivo a forma
de realização da conduta, que é violadora de um dever de cuidado (para cuja
individualização cabe recorrer à finalidade) e determinante do resultado. Desse
modo, uma concepção mista do tipo penal implica que dolo e culpa são dois
conceitos que se separam e se excluem neste estrato teórico do delito.

6. A concepção mista do tipo, que sediaria o dolo na tipicidade, foi em seu


tempo motivo de escândalo, imputando-se-lhe significar um direito penal de âni-
mo ou de atitude interna64• Na verdade, mesmo o subjetivismo de Welzel jamais
foi equiparável ao do direito penal da vontade ( Willensstrafrecht) nazista, de
amarga memória, sendo atacado pelos juristas da socialista República Democrática
da Alemanha como subjetivismo burguês. Nas trilhas welzelianas tratou-se sem-
pre de considerar momentos subjetivos a parte obiecti, a parte de/icti, e nunca de
vinculá-los a qualquer deliberado aumento dos poderes discricionais do juiz, como
nos sistemas políticos autoritários, tal como, também em seu tempo, se pretendeu65•

7. No q4e tang~ ao relpcionamento ~mr~ o tipo, r g antijuridfçi~aci(31 çab;


observar que um~ concepção totalmente avalo~qa do tipo p~n~J esW,°i? !omcaJTTeiHe
obrigada a sustentar que entre tipo e antijuridicidade não pode haver qualquer rela-
ção, salvo a mecânica prelação analítica que obriga à averiguação do primeiro
antes que da segunda, sem implicar nenhum desvalor. Beling nunca afirmou que o

s9 Aujbau, p. 11.
60
Dohna, Der Aujbau.
61
Welzel, Hans, em ZStW, 51, 1935, pp. 703 ss; reproduzido em Abhandlungen, pp. 7 ss.
62
Cf. Mir Puig, em ADPCP, 1988, pp. 661 ss.
63
Sobre isso, Roxin, p. 311; Luiz Luisi, O Tipo Penal, p. 69.
6" Schmidhiiuser, Gesinnungsmerkma/e im Strafrecht; também dele, em Fest.f Gal/as, pp. 81 ss.
65
Bettiol, em Fest.f We/ze/, pp. 185-186.

144
tipo não tivesse relação com a antijuridicidade, mas qual fosse a natureza dessa
relação é algo que não estava claro em sua primeira exposição66 . Max Ernst Mayer
foi muito mais expresso quando atribuiu ao tipo o caráter indiciário de
antijuridicidade61 . No extremo oposto, a doutrina habitualmente chamada dos
elementos negativos do tipo penal (negativen Tatbestandsmerkmalen) trataria
de identificar tipicidade com antijuridicidade tipificada. Para ela, o juízo de
antijuridicidade de uma conduta fica definitivamente concluído pela afinnação da
tipicidade, e o tipo se comporia de elementos positivos (objetivos para uns, objetivos
e subjetivos para outros) e de elementos negativos, que consistiriam na ausência de
causas de justificação68. A teoria dos elementos negativos do tipo foi exposta por
Merkel69, a ela filiando-se Franl/°, mas depois da exposição do conceito sistemáti-
co do tipo foi Baumgarten quem, em 1913, opôs tal teoria à de Beling71 • No campo
da concepção mista do tipo penal, von Weber e Schaffstein72 também postularam a
identificação com aantijuridicidade.

8. Derivada da velha teoria dos imperativos, a teoria dos elementos negativos


do tipo acarreta conseqüências desconcertantes: representa wn retrocesso perante
a formulação de Beling, esvazia a antijuridicidade reduzindo-a a wn problema penal,
conduz ao dolus malus (ou obriga, para evitá-lo, a wna construção artificiosa), impõe
uma teoria limitada da culpabilidade, confunde a pwlibilidade do partícipe etc. Uma de
suas conseqüências mais notórias está no âmbito do erro: se as causas de justificação
se convertem em elementos negativos do tipo, então o erro sobre seus pressupostos
factuais deve ser considerado como erro de tipo. Para evitar os corolários dessa
posição teórica será preciso afinnar que o dolo não abraça o conhecimento de todo o
tipo objetivo, mas apenas de wna parte dele. Por isso, Roxin distingue três conceitos
de tipo, fundados em três funções do Tatbestand: a garantidora (Garantiefunktion),
a reguladora do erro de tipo (irrtumrege/nde Funkion) e a sistemática (systematische
Funktion) 73 . Este tipo de erro é o que seria objeto do dolo, ou, como disse Bruns, o
tipo regulador do do/0 14: t\ distinção entre tipo fundamentador e tipo de erro só
s~ri~ ~c~jlãve~ c~q nãp s~ assimilasse o tipo df! erro ao tipo objetivo, pois do contrá-
rio se teria criado wn inútil conceito reiterativo.
, • • . ._ l• . ,,, , . , · · , • \. 1 , . , . . , , i .

66
Cf. Welzel, Das neue Bild, p. 18.
67
Mayer, M. E., lehrbuch, 1923, p. 1O; Schweikert, op. cit., p. 19.
61
Assim, Weber, A ujbau, p. 17; Bokelmann, p. 40; Mezger, Lehrbuch, 1949, p. 89; a propó-
sito, Roxin, pp. 283 ss.
69
Merkel, Adolph, Lehrbuch, pp. 82 ss.
7
° Frank, Reinhart von, na primeira edição de seu Strafgesetzbuch, § 59.
71 Beling, D.L. v. Verbrechen, p. 267.
72 Weber, Grundriss, p. 86; Schaffstein, F., em MDR, 5, 1951, pp. 196 ss.

73 Op. cit., p. 226.


74
Bruns, Kritik der Lehre vom Tatbestand, pp. 27 ss (Der auch den Vorsatz regulierende
Tatbestand).

145
9. Dentro da corrente que almeja uma solução unitária para a questão do
erro, há quem tenha sustentado que a tipicidade é a ratio essendi da
antijuridicidade, muito embora a tipicidade não arremate conclusivamente o
juízo de antijuridicidade, sempre revertido por uma causa de justificação75• Uma
coisa é dizer que há um indício de antijuridicidade, que reside na antinormatividade
da conduta típica, e outra é afinnar diretamente a antijuridicidade da conduta
típica, o que se costuma fazer alegando que todo tipo é um tipo de injusto e, no
estrato subseqüente, contraditoriamente, negar essa afinnação. Qualquer teo-
ria que sustente o tipo de injusto só aparentemente é uma concepção trimembre,
pois se numa antijuridicidade dividida em duas partes a chamada segunda par-
te não é mais do que a ausência da primeira, na verdade ela não existe.

1O. O caráter indiciário da tipicidade foi enunciado por Max Ernst Mayer
em 1915, ao tratar de suas relações com a antijuridicidade. Segundo ele, a tipicidade
constitui o mais importante fundamento cognoscitivo da antijuridicidade, compor-
tando-se a seu respeito como a fumaça e o fogo (Sie verhalten sich wie Rauch
zmd Feuer)76 • A separação da antijuridicidade (como juízo de desvalor) e da
tipicidade (como objeto desse juízo) aclara o conceito de delito, sempre que se
considere a segunda como indício que pennite averiguar a primeira. Enquanto o
tipo é a descrição particularizada de uma conduta proibida, a tipicidade é adequa-
ção de uma conduta concreta com a particularizada descrição lega!77, e a
antijuridicidade é a contradição dessa conduta com o ordenamento jurídico7 8•

11. No que tange ao relacionamento entre o tipo e a culpabilidade, cabe


observar que a radical autonomia dos dois estratos analíticos levava a absurdos, e
os ensaios de vinculação nem sempre foram felizes. A chuva de críticas sobre
sua concepção de tipo de 1906 estimulou Beling a retificá-la em 1930, esboçando
uma teoria conhecida como do Leitbild ou da figura reitora79 • Beling incorpo-
rou algumas das críticas, admitindo que o tipo mantém relação com a antijuridicidade
e sobretudo que o dolo deve guardar correspondência com o tipo. Todo o esforço
do Beling de 1930 se dirige à coordenação do tipo com a antijurídicidade e com a
culpabilidade. Trata-se de uma construção intrincada, que introduz um novo con-
ceito, o de Deliktstypus ou tipo de delito 80 • Na verdade, o Deliktstypus do

71
Bockelmann, p. 39; em sentido similar, onde as causas de justificação resultam em tipos que
delimitam o dever, Otto, Harro, p. 116.
76
Lehrb11ch, p. 1O.
77
Mayer, ibidem, p. 4.
78
Welzel, Das neue Bild, p. 16.
79
Beling, Ernst von, Die Lehre von Tathestand (traduzida por Soler, Sebastian, La Doctrina
dei Delito-Tipo, B.Aires, 1944, ed. Depalma).
80
D.L. v. Tutbestand, p. 3.

146
segundo Beling seria integrado pelo tipo de garantia, do qual proviria um tipo
de injusto (Unrechtstypus) e um tipo de culpabilidade (Schuldtypus). Mas
um conceito de tipo de garantia, ou seja, um conceito de tipo omnicompreensivo
construído sobre a base da garantia política, não era apto para promover a unida-
de que Beling buscava para sua teoria original de 190681 • A proposta de Beling de
1930 não lograria maior trânsito na dogmática penal posterior.

12. Um isolado retomo à concepção tardia de Beling foi protagonizado


por Wilhelm Gallas, com sua teoria do tipo de delito (Deliktstypus) 82 . Para
Gallas o Tatbestand é um De/iktstypus, portador de todas as característi-
cas típicas que fazem merecedora de pena a correspondente conduta83 •
Enquanto para Beling o Deliktstypus encerrava o juízo de antijurídicidade, para
Gallas este permanecia aberto. Mais substancialmente, enquanto Beling diver-
sificava sua construção totalista num Deliktstypus filho do político e num Leitbild
iluminado pela precisão sistemática, Gallas fundava o Deliktstypus no sistemá-
tico e afirmava que a função garantidora era secundária84 • •

13. À margem dessas ambiciosas construções totalizantes, existem usos


pontuais da expressão tipo de culpabilidade, sem maiores conseqüências te-
óricas ou práticas85 • Em nossa opinião, são inaceitáveis os conceitos de tipo de
injusto e de tipo de culpabilidade, salvo se forem eles utilizados simplesmen-
te como referência à antijuridicidade de uma concreta conduta típica e à culpa-
bilidade do autor desse concreto injusto.

14. Nos tempos do finalismo welzeliano algumas dificuldades, para as


quais não se encontravam soluções satisfatórias, eram resolvidas através da
função limitante do dolo ou através da chamada teoria da adequação social
da conduta, que Welzel situou primeiro no âmbito da antijuridicidade e depois
no da tipicidade86• A partir do funcionalismo sistêmico procura-se resolver aque-
las dificuldades no âmbito da tipicidade, como problema de imputação objetiva.
A versão moderada do funcionalismo (Roxin) o faz valendo-se do incremento
do risco, e a versão extremada (Jakobs) se vale da teoria dos papéis sociais.
Este desenvolvimento, bem como sua crítica, será objet~ do próximo capítulo.

81 Op. cit. pp. 4-5.


82
Em ZStW, pp. 67 ss. (também recolhido nas Beitrãge, pp. 18 ss).
83 Beitriige, p. 33.

•• A respeito, Schweikert, op. cit., p. 133, nota 165.


85 Jescheck-Weigend, p. 469.

86
Cf. infra§ 31 .

147
148
CAPÍTULO XIII

TIPO DOLOSO ATIVO ( OU COMISSIVO DOLOSO):


FUNÇÃO SISTEMÁTICA DE SEU ASPECTO OBJETIVO

AA. VV, Relevancia de la actuación de la víctima para la


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158
§ 30. TIPO DOLOSO: ESTRUTURA DE SEU ASPECTO
OBJETIVO

/. Funções sistemática e conglobante do tipo objetivo doloso


1. A doutrina dominante, como vimos, pretende que o tipo doloso ativo
(ou comissivo doloso) seja complexo, abrangendo portanto um aspecto
objetivo e outro subjetivo. A investigação sobre a tipicidade de uma conduta
exige uma análise que deve sempre principiar pelo aspecto objetivo. Não é,
entretanto, cabível que tal análise seja empreendida ingenuamente, como a pes-
quisa química de certo elemento em dada substância. Não é qualquer factum
que abre a investigação acerca de sua possível tipicidade, pois não se coloca a
tipicidade de uma conduta sem sua inserção num espaço problemático de dis-
cussão: ninguém discute a tipicidade de uma conduta absolutamente inócua,
como beber água, nem de um acontecimento puramente acidental e imprevisível,
como a queda de um raio. Sem uma elementar captação típica de uma ação
não se discutirá sua tipicidade; no entanto, iniciada a análise, instrumentos mais
elaborados devem ser convocados ao debate.

2. Deriva daí que o tipo objetivo tenha duas funções: a) a função siste-
mática, através da qual se realiza a fixação primária ou elementar da matéria
da proibição, pela apreensão dos componentes objetivos que emergem da aná-
lise isolada do tipo (alguns dos quais devem ser abrangidos pelo conhecimento
do agente para configurar sua vontade dolosa), proporcionando o espaço pro-
blemático de discussão da tipicidade objetiva, embora limitado ao conteúdo do
tipo isolado~ b) afunção conglobante, através da qual se verifica a conflitividade
do pragma, que implica tanto a constatação da lesividade' quanto a possibili-
dade de que possa ele ser imputado objetivamente ao agente como próprio
(imputação por dominabilidade)2. Não há conflito quando não há lesão, nem
tampouco quando, existindo a lesão, não pode ela ser imputada a um sujeito
como obra dominável por ele (tratar-se-ia de um acidente e não de um confli-
to). A lesividade deve ser estabelecida através da consideração da norma que
se deduz do tipo, porém já não isolada, e sim conglobada na ordem normativa
constituída por todo o conjunto de normas deduzidas, dedutíveis ou expressas
em outras leis de igual ou superior hierarquia. O outro aspecto da conflitividade,

1 A reconstrução histórica do princípio da lesividade em Batista, Nilo, Introdução Crítica, p.


84; para o direito penal brasileiro, cf. supra, X, § 25, VI, nota nº 75.
2
Cf. infra, § 33.

159
no plano objetivo, está constituído pela possibilidade objetiva de imputar o pragma
ao agente, questão que recorta a fixação primária ou elementar do tipo siste-
mático e que se estabelece também à luz da ordem normativa, dada a notória
insuficiência da norma isolada para ministrar critérios de imputação, mas onde
também não podem faltar considerações objetivas,já que entre o acidental e o
dominável imperam critérios de previsão e regularidade científicas3•

3. Para que essas duas funções sejam cumpridas, cabe dividir o tipo obje-
tivo em tipo objetivo sistemático e tipo objetivo conglobante. Sem dúvida,
também o tipo objetivo sistemático provê indicações sobre lesividade e imputa-
ção, porém de forma rudimentar ou indiciária, já que apenas se limita a abrir o
espaço problemático de discussão ao tratar- dentro das fronteiras semânticas
do tipo isolado - de um agente que atua como causante e de uma lesividade que
emerge de uma dedução normativa muito primária. Pelo contrário, o tipo obje-
tivo conglobante reconsidera o alcance da norma deduzida do tipo através de
sua conglobação no universo de normas deduzidas de outros tipos e estabelecidas
por (ou deduzidas de) outras leis penais ou extra-penais, segundo o princípio
geral de coerência ou não-contradição, o que compreende limitações proibitivas
(interferências de criminalização primária) derivadas de normas de hierarquia
superior (constitucionais e internacionais incorporadas) e do sentido geral de
todas elas, que também pressupõe que o pragma possa ser imputado como
próprio a uma pessoa.

4. O princípio geral de coerência ou não-contradição, concebido por lhering


como a segunda lei da construção dogmática4, não é metajurídico nem se anco-
ra na ficção de um legislador imune a incoerências, integrando a imposição de
exercício racional do poder jurisdicional ao qual o princípio republicano de go-
verno vincula todo juiz. A exigência de que um pragma não seja imputado a
uma pessoa quando não possa ser considerado como sua obra também faz
parte do mesmo princípio republicano, sendo ad~f!lajs dedutível dos. fup.damen-
tos do princípio da legalidade. Nos tipos dolosos ativ9s (oµ co111issivQs qµlo~o~)!
ainda no campo do tipo objetivo cabe descartar eventos aprioristicamente inap-
tos para terem sido produzidos por conduta humana. •

3
Parece exagerada a primazia do esquema nonnativo na busca de uma imputação objetiva
justa, o que se agrava quando o esquema é construído de costas para a realidade; dificilmente
se pode, neste caso, falar de um sistema nonnativo, ainda que não se possa eludir-se a ele;
cf. Jescheck - Weigend, p. 278.
• Também designada por ele de "unidade sistemática"; cf. lhering, Rudolfvon, La Dogmática
Jurídica (trechos do Espírito do Direito Romano), trad. E. Príncipe y Satorres, 8. Aires,
1946, ed. Losada, p. 145.

160
5. A partir do tipo sistemático e do tipo conglobante não se estabele-
cem duas tipicidades objetivas independentes, mas tão somente a consideração
diferenciada de elementos do tipo objetivo, necessária para cumprir as duas
funções da tipicidade objetiva. As duas faces da tipicidade objetiva perma-
necem vinculadas como decorrência da relação dialética que as funções,
para o exercício das quais foram construídas, mantêm: a função imputativa
que a tipicidade conglobante exerce funciona como contrapulsão redutora (ou
de contenção) da pulsão amplificadora do canal de passagem de poder punitivo
ínsito na descrição individualizadora da conduta, inerente à tipicidade sistemáti-
ca, à conta da inexorável polissemia da linguagem formalizada. Daí provém a
eficácia redutora do princípio da máxima taxatividade interpretativa, derivado
do princípio geral da legalidade5.

6. Através da função sistemática o tipo objetivo cumpre a demanda de


comprovação: a) da mutação fisica ocorrida no mundo como efeito de uma
ação; b) dos elementos particulares requisitados pelo tipo; e) do nexo de
causalidade entre a mutação tisica e a ação. Esta função sistemática limita-
se, pois, à constatação da presença de um pragma típico. A antinormatividade6
deste pragma será definitivamente aferida quando se puder, através de uma
segunda operação (tipicidade conglobante), constatar que aquele pragma
típico é realmente conjlitivo, porque : a) importa numa lesão de certa relevân-
cia para o bem jurídico; b) porque o alcance da norma não está restringido por
outras de igual ou superior hierarquia; e) e porque pode ser imputado ao agente
como obra sua. A tipicidade objetiva da ação só pode ser afirmada quan-
do se tenham esgotado ambas as funções do tipo objetivo (a sistemática e
a conglobante).

7. O tipo é uma figura imaginária criada pela agência política (le-


gislador) do poder punitivo no ato da criminalização primária: é, pois, um
desenho legal abstrato (faz parte da lei)7. A ação e a mutação fisica configuram
o pragma, que é um fato do mundo real, com sua infinita gama de particulari-
dades e conexões. O juiz, por força do dever que lhe impõe a lei - o tipo -
interroga o pragma, verificando preliminarmente a existência de seus compo-
nentes objetivos elementares, entre os quais a relação de causalidade entre a
ação e a mutação fisica. Logo, num segundo momento, o juiz procurará estabe-
lecer se aquele pragma é lesivo (conflitividade) e se a mutação causada pela
ação pode ser objetivamente lançada à conta do agente como obra dele (impu-

5
Cf. v. 1, cap. IV, § 1O, III (pp. 206 ss ).
6
Sobre suas diferenças com a proibição, cf. infra§ 40.
7 O tipo objetivo é também chamado "imagem legal do fato"; cf. Kienapfel, Diethelm, Strafrecht,
p. 22.

161
tação ). Só depois de cumprida essa dupla comprovação pode-se afirmar a
tipicidade objetiva como característica específica dessa ação.

8. O aspecto imputativo da função conglobante sempre foi considerado


necessário; embora tenha havido um primeiro esforço para resolvê-lo como
questão pré-típica8, logo se buscou concebê-lo como parte da função sistemá-
tica, insistindo-se atualmente nessa direção9, ou alternativamente, a partir de
sua consideração como questão normativa, procura-se solucioná-lo no plano da
antijuridicidade 10•

9. O núcleo central do tipo subjetivo é o dolo, que requer o conhecimento


efetivo ou disponível e atual dos elementos do tipo objetivo, na medida ne-
cessária para caracterizar a finalidade típica da ação. O dolo não requer o
conhecimento de todos os elementos do tipo objetivo, mas apenas daqueles
necessários para caracterizar a vontade realizadora. Trataremos oportu-
namente do dolo 11 , cabendo aqui tão-somente declinar as razões pelas quais é
preferível manter o chamado tipo de erro, ainda que com um alcance diferente
daquele postulado pela doutrina alinhada à teoria limitada da culpabilidade 12•

1O. Dentro da perspectiva aqui sustentada, o tipo de erro é integrado


pela parte do tipo objetivo que deve ser abarcada pelo conhecimento do
dolo. Portanto, o tipo de erro é integrado: a) pelo tipo objetivo sistemático; b)
pelos aspectos da tipicidade conglobante que permitem determinar a lesividade,
nos casos excepcionais em que estejam eles expressa ou conceitualmente exi-
gidos pelo tipo sistemático como elementos normativos de recorte 13; e) pelos
aspectos da tipicidade conglobante que permitem a imputação da mutação fisi-
ca como obra do agente. O desconhecimento desses elementos enseja erros de
tipo, enquanto que o desconhecimento de elementos da tipicidade conglobante
determinantes da lesividade, desde que não incorporados ao tipo objetivo siste-
mático, enseja erros de proibição 14•

1
Cf. infra, § 31, 1.
9
Cf. infra, § 31, 11, III e IV.
°
1
Cf. infra, § 32, 1.
11
Cf. infra, § 34.
12
Cf. infra, § 48.
13
Cf. infra, § 32.
14
Cf. infra,§ 49.

162
li. Exteriorização da vontade: mutação fisica
1. É inconcebível uma conduta penalmente relevante sem exteriorização
no mundo fisico, porque não pode configurar um conflito algo que não tenha
expressão sensível 1s. Daí que tal exteriorização constitua o aspecto central e
básico do tipo objetivo. A exteriorização da vontade sempre implica uma muta-
ção tisica. Essa mutação tisica também é chamada de resultado, expressão
cujo uso foi dificultado a partir da pretensão de chamar-se resultado jurídico
à afetação do bem jurídico, que é uma questão imputativa, alheia portanto à
função sistemática do tipo objetivo.

2. O tipo é uma fórmula legal com a qual o poder punitivo criminaliza


primariamente condutas conflitivas individualizando pragmas segundo diferen-
tes critérios ou técnicas16 • Às vezes a ênfase recái no resultado, visando abranger
todas as condutas que o causem; às vezes o tipo procura individualizar estrita-
mente a conduta, independentemente dos resultados por ela causados. Distin-
guem-se, assim, os tipos de resultado (vulgarmente chamados crimes de
resultado) dos tipos de atividade (também chamados crimes de mera ativida-
de ) 17• Essa classificação gerou confusões, quando se pretendeu a existência de
tipicidade sem resultado, numa leitura absurdamente idealista dos requisitos
típicos. Essa leitura confundia a técnica legislativa na construção do tipo com a
realidade (na qual nenhuma ação vem desacompanhada de alguma mutação
fisica) e o próprio objetivo do poder punitivo (que individualiza conflitos que não
existiriam sem a mutação fisica). O legislador, na individualização do pragma,
privilegiará seja o eixo do resultado seja o eixo da ação, porém da mesma
forma que seria inconcebível proibisse ele resultados sem ação, é inadmissível
que proíba ações sem resultado: sua função política e jurídica postula a
individualização de um pragma integrado por ambos, ação e resultado.

u Cf. Kienapfel, Diethelm, Strafrecht, p. 24; Mazzacuva, Nicola, II disvalore, pp. 18S ss.
16
Sobre classes de tipos, Wolf, E., Typen der Tatbestandsmãssigkeit, pp. 12 ss; no Brasil, cf.
Regis Prado, Curso, v. 1, pp. 344 ss e ainda os úteis Tubenchlak, James, Teoria do Crime -
o estudo do crime através de suas divisões, e Mara de Barros, Orlando, Dicionário de
Classificação de Crimes.
17
Jescheck-Weigend, p. 260; Mayer, H.,Lehrbuch, p. 127; Schmidhiiuser, p. 213; Wessels,
1, p. 5; Soler, 11, p. 1S6; Núiiez, Manual, p. 171; Fontán Balestra, 1, p. 466; Fragoso, Lições,
P.G., p. 166; Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 109; trabalhando com a antinomia crimes
materiais - crimes fonnais, Cezar Bitencourt, Tratado, 1, p. 330. É crítico quanto a essa
classificação Maurach, p. 237. Monografias brasileiras sobre o tema: Tomaghi, Helio, A
Questão do Crime Formal; Cunha Luna, Everardo, O Resultado no Direito Penal; Pimentel,
Manoel Pedro, Crimes de Mera Conduta. Cf. especialmente Acate Sánchez, Maria, E/ tipo
injusto en los delitos de mera actividad.

163
3. Quando a técnica de construção típica descreve a ação valendo-se de
um verbo que denote a produção do resultado (verbo "resultativo" 18), encon-
traríamos como que uma terceira categoria, representada por falsos tipos de
atividade (como o estupro). Neles, como a realização da ação já implica a
produção do resultado, não se admite a tentativa acabada, enquanto que as
tentativas inacabadas são geralmente admitidas em todos os crimes dolosos.
Poderíamos subdividir essa terceira categoria em falsos tipos de atividade
iniciada e falsos tipos de atividade completa. Para os primeiros o verbo
denota uma ação cujo empreendimento, mesmo em fase inicial, é inseparável
do resultado ("fazer afirmação falsa" - art. 342 CP); para os segundos, aper-
feiçoada a ação temos necessariamente o resultado ("destruir coisa alheia" -
art. 163 CP).

III. Nexo de causalidade


1. A causalidade é um processo cego que se projeta desde e até o infini-
to. Dessa amplitude provêm as inúmeras tentativas de limitação ensaiadas para
estabelecer o nexo de causalidade entre a ação e o resultado típicos 19• A
noção de causa e efeito - ou o problema da causalidade - constitui urna
forma, entre outras, de explicação e compreensão científicas 20 : descrever a
causa de um evento é um modo de dizer por quê ele aconteceu. As explica-
ções gerais, como os modelos dedutivos nomológico (Hempel) ou hipotético
(Popper), têm tanto o propósito de prever algo futuro quanto o de tomar inteli-
gível algo passado, como se dá com a explicação causal. Existem outros méto-
dos, funcionais, genéticos, inclusive intencionais, estatísticos, genealógicos,
dialéticos, que perseguem os mesmos objetivos21 . Todas essas construções se
dirigem a tentar estabelecer uma conexão lógica entre o que explicam e o
explicado. Mas, ao mesmo tempo, almejam estabelecer alguma forma de co-
nexão causal que não se restrinja a um processo de raciocínio lógico, ou
seja, que procure um tratamento ontológico da questão capaz de ver-se
traduzido por categorias da lógica. Assim, a pesquisa de causas equivale à
pesquisa das condições suficientes para a produção de um resultado 22 •

11
Cf. Ferrater Mora, Jndagaciones sobre e/ lenguage, pp. 26-27.
19
Por todos, Cerezo Mir, Curso, p. 51 .
2
° Cf. Bunge, Mario, Causalidad.
21 Klimovsky, Gregorio, Las desventuras dei conocimiento cienlíjico, p. 245; Boudon-
Bourricaud, Diccionario crílico de sociología, p. 98; Anscombe, Jntención, p. 51 ; Schuster,
Félix, Exp/icación y comprensión, p. 26.
22
Nino, Carlos S., /ntroducción a la filosofia de la acción humana, p. 94.

164
2. As grandes tradições explicativas operam por dois filões: o causal e o
teleológico finalista23 • Para o primeiro, um fato fica explicado pela identificação
de suas causas; o segundo configura uma reação idealista contra o positivismo,
que adotou um paradigma de compreensão de ciência do espírito, segundo os
objetivos e propósitos de um agente. A explicação positivista reapareceu no
Círculo de Viena, e foi Hempel quem efetuou o reordenamento do discurso
positivista das ciências através do modelo nomológico dedutivo, que envolve a
explicação causal. Convém observar que nenhum dos modelos pode renunciar
ao conteúdo causal como parte da explicação. Tampouco o modelo intencional
de Anscombe prescinde da causalidade, através do silogismo prático aristotélico
construído ao redor da idéia de fim 24. Apesar disso, o modelo explicativo causal
tem sido duramente criticado, como relíquia do passado que sobrevive por sua
inocuidade teórica25 . Com esses antecedentes no plano das ciências naturais,
não seria dificil, na teoria do direito tomada como ciência cultural, recorrendo-
se ao neokantismo (que substitui relações de causalidade por relações de
normatividade), propor-se a eliminação da causalidade26• Essa substituição
normativa foi questionada por Hart e Honoré27 e, por certo, a causalidade não
desapareceu das construções teóricas jurídicas e científicas28, ao ponto de ten-
tar-se explicar relações de prazer mediante uma causalidade neurológica29.
Portanto, embora caiba reconhecer que nas ciências históricas as leis de co-
bertura de base causal oferecem rendimento menor do que em outros campos,
não se pode negar que mesmo o acaso, que à primeira vista contradiria o
determinismo causal, tem lá suas regras e, longe de distribuir aleatoriamente
resultados, opera sob condições por vezes apreensíveis. Talvez a tisica quântica
não tenha destruído a idéia de causalidade30 . Em conclusão: no mundo há efei-
tos de causas que são efeitos de outras causas. É esta causalidade ôntica,
como conceito fisico, que permite sejam os fatos do mundo explicados, que lhes
outorga inteligibilidade; no mundo da cultura há formas de relacionar mental-
mente causas e efeitos, condicionadas pelo conhecimento da causalidade, e
capazes de explicar alguns fenômenos e prever outros análogos.

23
von Wright, Explicación y comprensión, p. 17.
24
Neste sentido, Nino, op. cit., p. 73; von Wright, op. cit., p. 49.
25
Russel, Bertrand, Misticismo y lógica y otros ensayos, pp. 178-179.
26
Cf. Kelsen, Hans, Qué es lajusticia?, pp. 194 e 221; Teoría pura dei derecho, p. 26;
Sociedad y naturaleza, p. 72; também Gimbernat Ordeig, Enrique, Delitos cualificados, pp.
106 e 217; Jakobs, lmputación objetiva, p. 24.
27
Para a crítica, dirigida ao âmbito filosófico norte-americano, cf. Causation in the law.
28
Nagel, Ernest, The Structure of Science, p. 13.
29
Bunge, Mario, Mente y sociedad, p.14.
30
Elster, J., Domar la suerte, p. 62.

165
3. a) Na cabeça do agente, no momento do fato típico, ocorreu a previsão
do curso causal originado de sua conduta; b) no mundo fisico, existiu um pro-
cesso causal posterior a sua previsão pelo agente (e anterior a sua fatura
constatação pelo juiz); e) na cabeça do juiz ocorre a constatação do nexo
causal, depois do fato; d) também na cabeça do juiz ocorre a verificação de
que essa causalidade era dominável pelo agente. Esses quatro momentos distin-
guem-se claramente. Aprevisão do curso causal pelo agente é wn dado que corresponde
ao núcleo da tipicidade subjetiva (dolo); o processo causal que objetivamente trans-
corre no mundo tisico constitui material para os procedimentos de constatação do
nexo causal e verificação de sua dominabilidade pelo agente, a serem empreendidos
pelo juiz; a constatação do nexo causal pelo juiz realiz.a a função sistemática da tipicidade
objetiva; a verificação da dominabilidade pelo agente do processo causal, que o juiz
também realiz.a, atende à função imputativa da tipicidade objetiva

4. O projeto original que culminaria na reforma da Parte Geral de 1984


havia suprimido a expressa opção do Código Penal, em sua redação de 1940
(art. 11) sob influência italiana, pela teoria da equivalência dos antecedentes
(ou da condiria sine qua non); como disse Francisco de Assis Toledo, "rele-
gando-a para a doutrina e jurisprudência"31 • Contudo, diversos setores32
propugnaram pela manutenção do dispositivo, o que acabou prevalecendo (art.
13 CP). Temos, portanto, que a lei penal brasileira adota explicitamente a teoria
da equivalência dos antecedentes (ou da conditio sine qua non): toda condi-
ção que não possa ser mentalmente suprimida sem que, com tal supressão,
desapareça também o resultado, é causa33 . Esta é a formulação original de von

31 Princípios gerais do novo sistema penal brasileiro, em AA.VV., O Direito Penal e o Novo
Código Penal Brasileiro, P. Alegre, 1985, ed. Fabris e ESMP-RS, p. 9.
32
Da OAB de Pernambuco (que sugeriu a emenda legislativa que reintroduziu o compromisso
com a teoria da equivalência dos antecedentes) à Comissão da Confederação das Associa-
ções do Ministério Público; sobre esta última, cf. Mirabete, Júlio Fabrini, Causalidade e
Culpabilidade, em Jesus, Damásio E. de (org.), Curso sobre a Refonna Penal, S. Paulo,
1985, ed. Saraiva, p. 60. A afinnação de Mirabete de que Heitor Costa Júnior teria apoiado
a sugestão para reintroduzir a teoria da conditio sine qua non se choca com a avaliação do
próprio Heitor Costa Júnior acerca da reintrodução: um "evidente retrocesso na técnica
legislativa" (A refonna da Pane Geral do Código Penal Brasileiro, em AA.VV., O Direito
Penal e o Novo Código Penal Brasileiro, cit., p. 57).
33
Sobre esta teoria, van Bemmelen, J.M. - van Hattum, W.F.C., Hand en Leerbock, I, p. 171,
e Heleno Fragoso, Conduta Punível, pp. 92 ss; adotam-na, entre outros, Welzel, p. 43;
Rudolphi, STGB Kommentar, p. 15; Blei, p. 75; Jescheck-Weigend, p. 280; Hungria, Co-
mentários, v. I, t. 11, p. 66. A excessiva amplitude desta teoria, ensejando o que muitos
autores caracterizaram como um regressus ad infinitum, demanda como contrapanida um
sistema estratificado de limitações para imputar o resultado ao agente: previsibilidade,
evitabilidade, aumento e realização de um risco proibido abarcado pela nonna de proibição
(cf. p. ex. Jescheck-Weigend, p. 284; Wessels-Beulke, pp. 54-55; completa descrição em
Maiwald, Kausa/itiit und Strafrecht).

166
Buri 34, para quem todas as condições são causas, e por isto se equivalem. Essa
primeira formulação foi aprimorada em atenção aos casos nos quais aportes
causais são capazes de conjuntamente provocar um resultado, mas isolada-
mente seriam insuficientes: quando duas (ou mais) condições, que embora
mentalmente suprimidas de forma alternativa levariam à desaparição do
resultado, não podem contudo ser mentalmente suprimidas de forma cu-
mulativa sem que o resultado desapareça, cada uma delas é causa3 5• Como
observa Juarez Tavares, "neste caso a aplicação pura e simples da fórmula da
eliminação hipotética resolve o problema"36, já que eliminado mentalmente o
aporte causal (que atua em conjunto com outro[s]) desapareceria o resultado, e
portanto todas as condições são causa.

5. Segundo esta concepção, não se poderia admitir as chamadas interrup-


ções do nexo causal37, remetendo-se os correspondentes problemas à função
imputativa, a constatar-se na tipicidade conglobante. Ocorre que a lei brasilei-
ra, após prescrever que "o resultado, de que depende a existência do crime,
somente é imputável a quem lhe deu causa" (art. 13 CP), estabeleceu que "a
superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação
quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto,
imputam-se a quem os praticou" (art. 13, § 1º CP). É evidente que o parágra-
fo está se referindo à imputação do resultado ao sujeito causante previsto no
caput: a concausa superveniente relativamente independente impede que o
resultado seja atribuído a quem lhe deu causa, intervindo pois - ainda que me-
taforicamente - sobre o nexo causal. Por causa disso, os autores brasileiros
costumam falar de interrupção de causalidade mesmo quando remetem a ques-

34
von Buri, Conditio sine qua non e Die Kausalitiit und ihre strafrechtlichen Beziehungen; esta
teoria como limite lógico negativo em Contento, Gaetano, Corso, p. 65. Dois anos antes de
von Buri, o austríaco Julius Glaser formulara a teoria da conditio (Abhandlungen aus dem
os terreichischen Strafrecht, Leipzig, 1858, t. I, p. 298).
35
Rudolphi, p. 16; Jescheck-Weigend, p. 282; Maurach-Zipf, p. 270; Wessels, p. 36.
36
Teoria do Injusto Penal, p. 261.
37
Cf. Bockelmann, p. 68. Como ensinou Fragoso, "do ponto de vista naturalístico não há
rompimento do nexo causal. Esse rompimento que a lei considera, para efeitos jurídicos,
não pode deixar de fazer-se através de uma valoração que abandona os princípios da
teoria da equivalência dos antecedentes, utilizando critérios que são próprios da causali-
dade adequada" (Lições, P.G., p. 171 ). A impropriedade terminológica do " rompimento
do nexo causal" é ressaltada recorrentemente na literatura jurídico-penal brasileira (assim,
Regis Prado, Curso, I, p. 304; Damásio, Direito Penal, v. lº, p. 261 e Imputação Objetiva,
p. 12; porém, a despeito da ressalva, esses autores falarão de um "desdobramento do
processo causal" - Regis Prado, op. cit., p. 305 - ou de uma "linha de desdobramento
físico" - Damásio, Direito Penal, p. 259, Imputação Objetiva, p. 10 - para distinguir a
concausa absolutamente da relativamente independente, na esteira de Hungria - Comen-
tários, cit., p. 68).

167
tão ao âmbito imputativo pós-causal 38. Se conjugannos o texto legal (que não
pode ser negado pela construção dogmática) à proposta de Fragoso (que via
naquele texto uma "fónnula heurística, que visa simplesmente limitar o campo
da responsabilidade penal"39), aprimorada por Juarez Tavares (que incorpora à
questão a cláusula ceteris paribus, não só como "fator de garantia, que ponha
um limite à extensão dessa explicação causal" mas também como critério para
a solução de situações concretas4°), deveremos concluir que, no direito penal
brasileiro, cabe falar de interrupção do nexo causal pela superveniência de
concausa relativamente independente, nem que seja apenas ''porque a lei as-
sim o determina", como concluiu Hungria41 • São causas relativamente inde-
pendentes aquelas que "embora se insiram no processo causal posto em marcha
pelo agente, produzem o resultado sem contar com a interferência de sua ação
no momento em que esse resultado se verifica"42 • O agente que, necandi
animo, efetua disparo de anna de fogo no ventre da vítima, a qual, conduzida
ao hospital, morre de traumatismo crânio-encefálico quando a ambulância em
que se encontra colide em alta velocidade com um poste, não responde pelo
resultado morte (responderá apenas por tentativa de homicídio) porque o nexo
causal originado de sua conduta foi "rompido". Enquanto requisito do tipo siste-
mático, a causalidade constitui o nível mais exterior e rudimentar da função
imputativa, na falta do qual, no entanto, estará encerrada a investigação imputativa
e negada a tipicidade da conduta. A limitação da eficácia interruptiva do nexo
causal às concausas supervenientes, proveniente também do texto legal, reme-
terá a solução de alguns problemas que surgem em situações de concausas
antecedentes ou concomitantes ao plano do tipo subjetivo, porque, como vimos,
o agente deve prever o curso causal originado de sua conduta, tanto quanto
deve o juiz verificar se a causalidade era dominável por ele. No famoso conto
de Monteiro Lobato, o protagonista - que ambicionava o cargo do coletor, por-
tador de grave aneurisma (concausa antecedente)- não só se infonna minuci-
osamente acerca do problema médico, como prepara uma anedota com os
condimentos preferidos pelo humor de sua vítima, que será contada após lauta
38 Juarez Cirino dos Santos interpreta que "a lei brasileira considera a independência relativa do
novo curso causal como excludente da imputação do resultado", porém na página anterior
afinnara que "a relação de causalidade é interrompida somente por curso causal posterior
absolutamente independente" (Direito Penal, pp. 124 e 123); Cezar Roberto Bitencourt fala
em "excluir a relação de causalidade" para, em seguida considerar a concausa que "por si só,
ocasionou o resultado, excluindo então a imputação do fato" (Tratado, v. I, pp. 309-31 O).
39
Lições, P.G., p. I 68.
40
Teoria do Injusto Penal, pp. 274 ss.
41
Comentários, cit., p. 69. Recentemente, adverte para o emprego de teorias de imputação "em
frontal choque com nosso direito legislado" Simões Vida!, Hélvio, Causalidade Científica no
Direito Penal, p. 332. Para Paulo José da Costa Jr., o emprego de tais teorias "representaria
uma afronta ao artigo 13 do Código Penal" (Nexo Causal, p. 156).
42
Juarez Tavares, op. cit., p. 264.

168
refeição; Lobato se vale, para narrar o desfecho da pilhéria (que levaria ao
"estouro da artéria" do coletor), das seguintes palavras: "com voz firme puxou
o gatilho" 43 • A previsão do curso causal pelo agente é evidente no conto, e o juiz
que o lesse não hesitaria em verificar uma causalidade, mais que dominável,
dominada pelo agente. Contudo, se o protagonista ignorasse completamente os
riscos circulatórios do coletor, e contasse a mesma piada após a mesma refei-
ção, seguindo-se igualmente a morte do coletor, a questão já não se resolveria,
salvo opiniões minoritárias44, no plano do tipo objetivo sistemático (como inter-
rupção do nexo causal), e sim no plano do tipo subjetivo (como erro de tipo
excludente do dolo).

6. A chamada "causalidade cumulativa"45 , na qual dois ou mais aportes


causais produzem o resultado, dispondo cada qual de entidade causal para pro-
duzi-lo independentemente dos demais, não oferece dificuldades porque a qua-
lidade de causa não pode ser negada a qualquer deles. Tampouco a
causalidade concorrente (ou por adiantamento)46 oferece dificuldades: se
a pessoa, mortalmente envenenada por alguém, é morta por disparo de arma de
fogo efetuado por outrem, claramente a morte foi causada pelo disparo e não
pelo veneno. Na impossibilidade de, perante situações de autoria colateral, de-
terminar quem efetivamente causou a morte, cabe aplicar o princípio in dubio
pro reo 47, não imputando a qualquer dos autores colaterais - que responderão
por tentativa de homicídio - o resultado morte. Os chamados cursos causais
hipotéticos e os inadequados48 constituem problemas a serem resolvidos con-
forme a função imputativa do tipo objetivo, sendo de reconhecer-se neles, sem
dúvida, a existência de causalidade.

7. Um dos maiores questionamentos ao requisito da causalidade está na


constatação de que existem cursos causais que não são conhecidos em todos os
pormenores, sendo pois rigorosamente indomináveis. Esse questionamento apare-
ceu nos casos Talidomida (ou Contergan), de 1970, do pulverizador de couros,

43
O engraçado arrependido, em Urupês, S. Paulo, 1950, ed. Brasiliense, pp. 71 ss.
44
Entre nós, na linha de alguns autores italianos, René Dotti preconiza que "também as causas
antecedentes ou concomitantes operam o mesmo efeito" ( de interromper o nexo de causali-
dade); cf. Curso de Direito Penal, p. 321.
45
Cf. Jescheck-Weigend, p. 282; Juarez Tavares, p. 259; Cirino dos Santos, p. 121.
46
Samson, Erich, Hypothetische Ka11salverlii11fe im Straji-echt, p. 95.
47
Como frisa Juarez Tavares, "o princípio in d11bio pro reo não é apenas um critério que opere
no âmbito processual, diante da incerteza ou dubiedade das provas ( ... ); é antes de tudo
conseqüência do princípio da presunção de inocência e deve ser utilizado como instrumento
delimitador da incidência normativa" (Teoria do Injusto Penal, cit., p. 260).
48
Sobre isso, Rudolphi, Hans-Joachim, Causalidad y imputacion objetiva, p. 20; Kühl,
Kristian, Strafrecht, pp. 51-52.

169
de 1990 - ambos, na Alemanha - e do azeite de colza na Espanha49• Tais casos
podem equacionar-se de duas maneiras diferentes: a) se a impossibilidade provém
de limites científicos ao conhecimento, que impedem acessar a todos os detalhes50,
porém não obstante consentem observar a regra empírica (de que eliminada a
causa desaparece o efeito), pouco importa conhecer as minúcias do desdobramen-
to causal; b) se, pelo contrário, existem dúvidas51 sobre se a conduta foi causa do
resultado, não existe outra solução fora do princípio in dubio por reo52•

TV. Elementos especiais de alguns tipos objetivos

1. São os tipos objetivos integrados por elementos necessários ou even-


tuais. À primeira classe pertencem os sujeitos (ativo e passivo), a ação típica
(exteriorização da vontade) e o nexo causal entre ela e o resultado. Os elemen-
tos eventuais são de natureza muito variada. Pelos problemas que introduzem,
cabe mencionar os chamados elementos normativos53 , presentes sempre que

9
• Caso Contergan, Landesgericht Aachen, acórdão de 18.dez. 70, JZ, 1971, pp. 507 ss.; Lederspray
(ou caso Erdal), BGHSt, 307, 106; cf. o novo caso Holzschutzmittel, BGHSt. 2.ago.95, NJW,
1995, pp. 2933 ss. (síntese em Actualidad Penal, Madri, 1997, p. 439 ss.). Na Itália, caso
Montecatini, Tribunal de Roveretto, 17.jan.69 (RJDPP, 1971, p. 1.021 ss.); caso Vajont,
Cassazione Pena/e, 25.mar.71 (Giurisprudenza Italiana, 1971, II, p. 482 ss. e 1972, II, p. 113
ss.). Na Espanha, caso Colza, Tribunal Supremo, 1992 (Cuadernos dei Consejo General dei
Poder Judicial, sentença da Sala Segunda, no recurso de cassação nº 3654/90, em 23.abr.92,
pp. 69 ss.), com análise de Puppe, JR, 1992, pp. 30 ss.; Gimbernat Ordeig, Ensayos penales,
pp. 330 ss; Gómez Benítez, José Manuel, Causa/idad, imputación y cualificación por e/
resultado, pp. 36 ss. Uma crítica implacável à imputação do resultado unicamente com base
na causalidade em Hassemer, Winfried - Munoz Conde, Francisco, La responsabilidadpor e/
producto, p. 94. O tempo dos processos causais e a inaplicabilidade da coisa julgada a
resultados posteriores à sentença, ainda que aberrante, tem partidários: cf. Silva Sánchez,
Jesús-María, em Estudios pena/es en memoria de Agustín Fernández-Albor, p. 677.
so Agazzi, E., La spiegazzione, pp. 397 e 404.
st Frente a problemas de prova, não falta quem proponha a criminalização de estados prévios à
lesão, como fonna de contornar o requisito da causalidade (assim, Cho, Byung-Sung, em
Revista Penal, p. 49); outro método para eludir-se ao requisito da causalidade reside na
nonnativização da relação causal, à moda de uma teoria individualizadora (Puppe, I, em
ZStW, 92, 1980, p. 863); crítico a isto, Roxin, p. 353; sobre cursos causais duvidosos e a
aplicação de métodos científicos exatos para detenninar a relação causal, Kindhãuser, em GA,
1982, p. 477; Samson, em ZStW, 99, 1987, p. 617; sobre nexos de causalidade transmitidos
psíquicamente, e considerados como nexos empíricos, Schulz, em Fest. f Lackner, p. 45.
si Por todos, Maiwald, Manfred, Causalità e diritto pena/e, p. 116.
sJ Trechsel, Stefan, Schweizerisches Strafrecht, p. 67; Ruggiero, Giuseppe, G/i Elementi
Normativi dei/a Fallispecie Pena/e; completa classificação em Díaz y García Conlledo,
Miguel, em Estudios Jurídicos en Memoria dei Prof José Ramón Casabó Ruiz, p. 696;
visão crítica em Cancino Moreno, Antonio, Crítica a la Teoría de los Elementos Normativos
dei Tipo; entre nós, Fragoso, Conduta Punível, cit., pp. 138 ss; Luisi, Luiz, O Tipo Penal,
cit., pp. 56 ss; Cirilo de Yargas, José, Do Tipo Penal, cit., pp. 44 ss.

170
os tipos utilizam valorações jurídicas ou éticas 54. Na tarefa de individualizar
pragmas, nonnalmente os tipos se valem de descrições, mas às vezes recorrem
a elementos de caráter valorativo. Contudo, se a pretexto de normatizar ou
jurídicizar o legislador desafia a realidade, voltando as costas aos objetos do
predicado valorativo, é inevitável uma anarquia conceituai e tenninológica55 • O
emprego exagerado de elementos normativos debilita o nullum crimen sine
lege e fortalece a pulsão do poder punitivo, constituindo uma característica do
direito penal autoritário 56• Observe-se, entretanto, que existem elementos
normativos bem demarcados (como o conceito de funcionário público, art.
327 CP) e existem elementos descritivos problemáticos (como o conceito de
gado ou rebanho, art. 162 CP). Na verdade, nos tipos objetivos podem distin-
guir-se elementos rígidos - descritivos ou normativos - de denotação
incontroversa, elementos elásticos, que formam uma zona cinzenta na qual cos-
tumam prevalecer os nonnativos extrajurídicos (ou culturais), e elementos va-
gos e indetenninados, totalmente normativos, fundados em pseudoconceitos de
natureza emocional57 . Estes últimos são inconstitucionais, por direta afronta ao
princípio da legalidade; os elásticos não deixam de colocar problemas similares,
cabendo analisá-los caso a caso.

2. Frente à confusa definição desses elementos, não falta quem negue a


possibilidade de distingui-los58, pois, a partir da afinnação de que todos os con-
ceitos integrantes de uma lei penal requerem uma valoração para sua compre-
ensão, todos os elementos do tipo seriam normativos. Assim, no exemplo do
homicídio do nascituro (a vida humana autônoma começa no início, no meio ou
no fim do parto?), o erro a tal respeito constituiria um erro de subsunção59 •
Muito embora os verdadeiros elementos normativos do tipo sejam aqueles que
requeiram uma real valoração60 (como '"inferioridade mentaI'' - art. 174 CP
-, "ato obsceno" - art. 233 CP - etc.), e não aqueles que apenas são estabe-
lecidos e individualizados pelo direito (como "coisa tombada pela autoridade
competente" - art. 165 CP -, "duplicata" - art. 172 CP - etc), a novidade
dessa opinião extremamente normativizada - e inaceitável perante o direito
penal brasileiro desde a reforma da Parte Geral de 1984 - seria não admitir
erro de tipo quando recaísse ele sobre tais elementos. Tal opinião ainda distin-
gue esses elementos propriamente normativos dos que denomina elementos de

54
Baumann, Jürgen - Weber, Ulrich - Mitsch, Wolfgang, Strafrecht, pp. 101 e 104.
55
Küpper, Georg, Grenzen der normativierenden Strafrechtsdogmatik, p. 202.
s6 Bettiol, p. 237.
57
Mantovani, Ferrando, p. 100.
58 Puppe, lngeborg, notas prévias ao § 13 do Nomos Kommentar zum StGB (5 1 entrega, 1998).
s9 Idem, p. 33.
60
Idem, p. 34.

171
valoração total (gesamttatbewertenden Merkmale)6l, que são aqueles carac-
terizados por expressões como "indevidamente" (art. 151 CP), "sem justa
causa" (art. 153 CP), "sem licença" (art. l 66 CP), "sem permissão legar'
(art. 292 CP), entre nós freqüentemente denominados elementos normativos
valorativos. Em síntese, haveria para tal opinião três classes de elementos típi-
cos: a) os descritivos, designação que abrangeria os normativos tradicionais; b)
em branco, que seriam aqueles cuja significação proviria de outras leis; e e) os
autenticamente normativos, que valoram fatos (através da aplicação de nor-
mas de valor não escritas mas socialmente reconhecidas), e que podem referir-
se a um só elemento (ato obsceno, p. ex.) ou à totalidade da descrição típica
(indevidamente, p. ex.). Segundo esta classificação, diferencia-se o tipo de
cominação ou de ameaça (Strafandrohungstatbstand) do tipo de erro: ao
primeiro pertencem tanto os elementos normativos quanto os conteúdos fáticos
valorados, mas o segundo só é integrado pelos conteúdos fáticos valorados62•

3. É tradicional a distinção entre elementos normativos e referências à


antijurídicidade que a lei eventualmente formula 63 , através de expressões
como indevidamente, sem justa causa etc. Tais expressões são geralmente
identificadas como elementos nonnativos valorativos do tipo quando referidas
à individualização da conduta, incidindo sobre um ou mais aspectos dela (um ou
mais elementos típicos), e identificadas como referências à antijuridicidade (não
pertencendo, pois, ao tipo) quando implicam uma valoração da conduta típica
como um todo; houve quem nelas entrevisse uma antijuridicidadc especial, em
paralelo à antijurídicidade enquanto categoria geral do delito. Oportunamente
veremos como, no direito penal brasileiro, desde a reforma da Parte Geral de
1984, independentemente do âmbito de referência, cabe reconhecer que o erro
sobre tais elementos normativos valorativos (ou elementos normativos de
recorte) configura erro de tipo. Tais elementos cumprem, na economia do tipo,
a função de complementar uma definição que requer conceitualmente o dissenso
do sujeito passivo ou uma oportuna menção à antinormatividade. Se atentar-
mos para os delitos de violação de correspondência (art. 151 CP) ou de divul-
gação de segredo ( art. 15 3 CP), constataremos tratarem-se de condutas
habitualmente praticadas pelas pessoas, de sorte que convém o tipo ressaltar-
através do elemento normativo valorativo - o dissenso do sujeito passivo ou a
própria (freqüentemente ausente) antinormatividade da conduta. Esses elementos
normativos de recorte se dirigem à antinormatividade, e não à antijuridicidade.
Esses elementos postulam que a conduta se realize contra a vontade do titular
61
Idem, p. 35.
62
Idem, p. 37.
63 Baumann, Jürgen - Weber, Ulrich - Mitsch, Wolfgang, Strafrecht, p. 282; Maurach - Zipf,
I, p. 326; Roxin, p. 252.

172
do bem jurídico ofendido. Pode ocorrer que tais elementos se apresentem taci-
tamente, tomando impossível conceber o pragma contlitivo sem sua presença
lógica. Um exemplo de elemento normativo valorativo (ou elemento normativo
de recorte) tácito encontramos no crime de dano (art. 163 CP): alguém susten-
taria que no canteiro de obras de uma demolição autorizada está sendo pratica-
da a ação típica de "destruir coisa alheia", apesar de estarem fazendo
exatamente isto?!

4. Embora existam muitas classificações secundárias dos tipos penais em


virtude de critérios objetivos, nem todas desfrutam - pelas conseqüências prá-
ticas ou teóricas - da mesma importância, sendo dificil sistematizá-las64. As-
sim, tendo em vista sua formulação legal, distinguem-se os tipos fechados e os
tipos abertos65. Segundo a originalidade ou dependência de seus elementos,
temos tipos básicos e tipos derivados, estes últimos por qualificação (quando
o elemento típico especificante importar em aumento de pena: crimes qualifi-
cados) ou por privilégio (quando o elemento típico especificante importar em
diminuição de pena: crimes privilegiados). Segundo o grau ou intensidade
individualizadora, encontraremos tipos de formulação livre ou casuística, mas
o critério do número de ações neles contido revelará tipos simples e tipos
mistos (ou compostos). Quando o momento consumativo se prorroga no tem-
po, temos tipos permanentes; todos os demais são tipos instantâneos66• Se a
conduta típica for fracionável em atos, estamos diante de um tipo
plurissubsistente; se a conduta típica resumir-se a um só ato, sendo pois
infracionável, encontramos um tipo unissubsistente61 • Quando a tipicidade
depender de que a conduta seja reiteradamente (no mínimo, por duas vezes)
praticada, estaremos perante um tipo habitual (p. ex., art. 284, inc. I CP). O
sujeito ativo inspira diversas classificações: pelo número, chegamos a tipos
unissubjetivos e tipos plurissubjetivos; pela qualidade, encontraremos tipos
comuns (crimes comuns) e tipos próprios ou especiais (crimes próprios)68•

64
Sobre classificações de tipos, cf. Soler, II, pp. 153 ss; Núi\ez, Manual, p. 159; Fontán
Balestra, Manual, p. 259; Regis Prado, Curso, I, pp. 344 ss; Tubenchlak, James, Teoria do
Crime; Mara de Barros, Orlando, Dicionário de Classificação dos Crimes.
6
s Sobre os conflitos de fronteira entre os tipos abertos e o princípio da reserva legal, interessan-
tes observações em Rivacoba y Rivacoba, División y f11entes; invocando a "natureza das
coisas", Welzel, 1967, pp. 45-46; descarta-os Roxin, Offene Tatbestande, p. 108.
66
Cf. Hruschka, em GA, 1968, p. 193.
67
Jescheck-Weigend, p. 265.
68 Jescheck-Weigend, p. 266. Os crimes próprios ou especiais, por seu turno, subdividem-se
em próprios (ou especiais) puros e próprios (ou especiais) impuros; nos primeiros, "a
qualificação do sujeito é essencial (fundante) para o ilícito, de sorte que na sua ausência o
fato seria atípico" (Nilo Batista, Concurso de Agentes, p. 72).

173
ExcURSus: DA CAUSALIDADE ÀS TEORIAS DA IMPUTAÇÃO
OBJETIVA

§ 31. Ü PERCURSO DAS TEORIAS

1. O problema em tempos de causa/ismo

l. A dogmática jurídico-penal empreendeu, ao longo do século XX, consi-


deráveis esforços para reduzir o excessivo âmbito de proibição que emerge da
tipicidade objetiva (que era toda a tipicidade no velho esquema neokantista)
esgotada sobre sua estreita base limitadora69 . Como esses esforços foram
empreendidos em diversos níveis, convém mirá-los nos sucessivos momentos
da construção teórica para melhor compreendê-los no contexto teórico em que
surgiram. Em muitos casos a proibição calcada na causalidade oferecia uma
solução clara, embora politicamente perigosa pela estreiteza do critério causal
como contra-pulsão limitadora da tipicidade. Porisso, a tipicidade objetiva foi
sempre um capítulo problemático na teoria jurídico-penal.

2. A partir da distinção entre injusto e culpabilidade, realizada no século


XIX, substituiu-se a imputação, tal como a concebiam os hegelianos, por in-
compatibilidade com o esquema objetivo-subjetivo que orientava, naquela con-
juntura, a bipartição conceituai do delito. Tal incompatibilidade não se alterou
com o advento da tripartição e, assim, o injusto em primeiro lugar e logo depois
a tipicidade tornaram-se dependentes de uma causalidade naturalística que
comprometia a própria função política de garantia do tipo penal; era preciso, de
alguma forma, contornar a ridícula conseqüência de, pelos vínculos causais,
admitir como típica de adultério a conduta do carpinteiro que produzira a cama.
Esses inconvenientes foram percebidos bem cedo pelos penalistas, que busca-
ram superá-los pela elaboração de um conceito jurídico-penal de causali-
dade, dando surgimento ao conjunto de teorias que hoje são agregadas sob o
rótulo de teorias individualizadoras70. A individualização de uma entre todas
69
Gimbemat Ordeig, Enrique, em ADPCP, 1994, pp. 5 ss; Freund, Georg, Strafrecht, p. 54; Kühl,
Kristian, Strafrecht, p. 40; Küpper, Georg, Grenzen ... , cit.; Puppe, em ZStW, 1987, p. 595.
'º Sobre elas, van Eck, D., Causaliteil en aansprakelijheid voor gevolgen in het Strafrecht;
Fragoso, Heleno, Conduta Punível; um quadro sintético em Hungria, Nelson, Comentários,
cit., v. I, t. II, pp. 60 ss. Em oposição à teoria da equivalência dos antecedentes, as teorias
individualizadoras buscaram formular critérios para discernir "a" causa das meras condi-
ções, alguns de fundo ontológico (como a condição eficiente de Stoppato, a condição
suficiente de Birkmeyer, ou a condição conforme às leis naturais de Engisch), outros de

174
as condições de um evento, só ela tomada como sua causa, favoreceu a carac-
terização de um curso ou nexo causal suscetível de interrupções, ensejando
a primeira versão da proibição de regresso (Regressverbot) 1 1, ou seja, uma
interdição teórica a regressar infinitamente na pesquisa causal.

3. A rigor, a única teoria comprometida ontologicamente com os proces-


sos causais fisicos é a da equivalência dos antecedentes, que não distingue
entre causa e condições, constituindo a primeira apenas numa condição sem a
qual comprovadamente o efeito (resultado) não teria ocorrido (conditio sine
qua non). Formulada por von Buri e objeto de várias correções72, apresentaria
limitações graves em sua aplicação. Também o emprego da teoria
individualizadora da causalidade adequada, de von Bar e von Kries7 3, apre-
sentava um inconveniente teórico para a época ao construir um conceito de
causalidade próprio do direito penal, afrontando as pretensões naturalistas de
Liszt e Beling. Para além desse inconveniente conjuntural, tal teoria apresenta-
va outros: a) por um lado, delegava à interpretação do tipo (especialmente ao
alcance do verbo que consubstancia seu núcleo) a decisão sobre tipicidade da
ação, reduzindo-se assim, em certa medida, a uma teoria do senso comum; b)
por outro lado, fazia depender a existência e a continuidade do nexo causal do
conhecimento e da previsibilidade do agente e, para evitar a incorporação de
dados subjetivos (na contramão do esquema apartador objetivo-subjetivo então
vigente), devia arrostar os embaraços de recorrer à imagem abstrata de um ser
humano normal, este Frankenstein que a alquimia jurídica tenta recorrente-
mente criar.

fundo gnosiológico-empírico (como a causalidade adequada de von Bar e von Kries ou a


condição perigosa de Grispigni) e ainda outros tantos de fundo normativo (como a causa
típica de Beling, ou a causa humana exclusiva de Antolisei, ou ainda a condição relevante
de Max Ludwig Müller). Para a condição última de Rudolf Ortmann, cf. Archivfiir gemeines
Deutsches undfiir Preussiches Strafrecht, pp. 268 ss; a condição determinante de Binding
em Die Normen, II, p. 492. Cf. ainda Kohler, Josef, Studiem aus dem Strafrecht e Horn,
Richard, Der Causalitiitsbegri.ffin der Philosophie und im Strafrecht.
71
Formulada por Frank (Das Strafgesetzbuchfiir das Delllsche Reich, p. 14), e sustentada por
Mayer (Lehrbuch, p. 138); Naucke, em ZStW, 76, 1964, p. 408; Otto, em Fest.f Maurach,
p. 98; cf. Jescheck-Weigend, p. 280.
72 von Buri, Über Kausalitiit und deren Verantwortung; mais tarde, Die Kausalitiit und ihre
strafrechtlichen Beziehungen.
73 von Bar, Die lehre vom Kausalzusammenhang im Rechie, besonders im Strafrecht (187 J);
von Kries, Die Prinzipien der Wahrscheinlichkeitrechnung (1886) e em ZStW, 9, pp. 528
ss. ( 1889). Cf. ainda Traeger, Ludwig, Der Kausalbegri.ffim Straf- und Zivi/recht, pp. 105
ss; Radbruch, G., Die Lehre von der adiiquaten Verursachung; Beling em Gerichtssaal,
1932, pp. 1 ss. Para a teoria da condição relevante, MUiler, Max Ludwig, Die Bedeutung
des Kausalzusammenhanges im Straf-und Schadenerzatsrecht. Cf. ainda Engisch, Ernst,
Die Kausalitiit ais Merkma/e der strafrechtlichen Tatbestiinde, e Larnpe, em GS f Armin
Kaufmann, p. 189.

175
4. A questão mereceria tratamento mais correto da parte do penalismo
neokantista, que diferenciou a causalidade como dado e sua relevância jurí-
dica ou típica como critério valorativo74, com o que a adequação da conduta
para produzir o resultado deixou de ser uma teoria da causalidade para con-
verter-se num critério valorativo de sua relevância para a proibição pe-
na/75 . A mais correta colocação da pergunta não garantia, contudo, a certeza
da resposta, que Mezger delegava à insegura inte,pretação dos tipos.

5. Paralelamente ao penalismo neokantista, e sem que este lhes atribuísse


maior importância, cabe registrar três opiniões originais, que posteriormente
seriam retomadas e desenvolvidas. a) Em 1927, Karl Larenz76 recorreu a Hegel
para recolocar a questão como imputação77 , distinguindo entre imputação ob-
jetiva e mero acidente, na trilha hegeliana que vinca a primeira pela vontade
que permite a atribuição de um ato como próprio, valendo-se do critério do
homem prudente da teoria da adequação e remetendo as características con-
cretas do autor à culpabilidade. Embora este expediente permitisse de um lado
manter o esquema apartador objetivo-subjetivo, por outro o afastava do pensa-
mento de Hegel e ainda incidia na contradição de negar no âmbito da tipicidade
o mesmo que afirmaria na culpabilidade (a capacidade de previsão especial do
sujeito real cujo adestramento específico ultrapassa a capacidade de previsão
geral do homem prudente do tipo). b) Em 1930, Richard Honig78, por um cami-
nho vinculado ao anterior, embora liberto de seu marco filosófico, sustentou que
a imputação depende da existência da possibilidade objetiva de fzxar-se um
fim (objektive Bezweckbarkeit), o que o levava a negar a imputação nas
hipóteses de cursos causais inadequados. e) Em 1936, Hellmuth Mayer79 em-
preendeu formidável esforço de espiritualização dos bens jurídicos, permutan-
do a concreta lesividade por uma abstrata lesão à ordem estabelecida através
da proteção a tais bens, com o que reduzia drasticamente a importância da
causalidade e subjetivizava o injusto, cuja essência passava a residir na vontade
perversa do agente. A conjuntura política explica o esforço teórico.

1
Mezger, lehrbuch, 1949, p. 109.

7
s Maggiore, Giuseppe, Derecho Penal, I, p. 332.
76
Larenz, Hegels Zurechnungslehre und der Begriffder objektiven Zurechnung, p. 75 ss.
77
Sobre a versão jurídica de Hegel na teoria de Larenz, Koriath, Heinz, Grundlagen
strafrechtlicher Zurechnung, p.116; ao contrário, notando-lhe raízes kantianas Bacigalupo,
Enrique, Princípios p. 129. Há quem sustente que em Kant, Hegel e Feuerbach, a responsa-
bilidade surge sempre de processos de imputação baseados em expectativas nonnativas, e
não em disposições intelectuais reais do sujeito atuante (cf. Lesch, Heiko Hartmut, Die
Verbrechensbegriff, p. 126).
71
Honig, em FestfFrank, I, p. 184.
79
Mayer, H., Strafrecht des deutsche Volkes.

176
li. O problema no finalismo
1. Com a incorporação do dolo ao tipo, a mais grosseira de todas as ques-
tões propostas pela causalidade e sua relevância típica - a regressividade cau-
sal ad infinitum, que Frank contivera, na primeira versão da proibição de
regresso, recorrendo precisamente ao dolo - estava resolvida. Outras ques-
tões, contudo, sobreviviam. Desde logo, a questão continuava em aberto nos
tipos culposos; porém mesmo em certos tipos dolosos era preciso admitir o
corretivo da adequação 80; definitivamente não era clara a solução para hipó-
teses nas quais a causalidade irrompia como possibilidade remota, quase uma
loteria causal (o famoso tio de Honig, ou o caso Thyren); entendia-se que a
atípicidade das lesões produzidas por intervenção cirúrgica terapêutica se su-
bordinava à falta de dolo; criou-se uma categoria, a adequação social da
conduta, que em momentos teóricos distintos e subseqüentes capacitou-se a
excluir a tipicidade ou a antijurídicidade da conduta81 , e à qual vieram agregar-
se um conjunto heterogêneo de casos (insignificância, indenidade do bem jurídi-
co, riscos permitidos, acordos e consentimentos) nos quais não era possível
negar a vontade dirigida ao resultado mas tampouco era possível admitir sua
tipicidade sem cair no absurdo 82•

2. Esses problemas de tipicidade e o pleito por um critério imputativo mais


bem demarcado ensejaram inúmeros trabalhos, até em autores alheios à matriz
finalista, como Gimbemat Ordeig e Bettiol, sem que se alcançasse uma solução
unívoca. O finalismo abrira o caminho à solução através do dolo, porém não

8
° Cancio Meliá, Manuel, los orígenes de la teoria de la adecuación social, p. 53.
81
Welzel, Derecho Penal, p. 83; sua última posição a respeito em Das neue Bild, p. 53. Sobre
o percurso da concepção de Welzel, tomando a adequação social da conduta como excludente
da tipicidade, e depois da antijuridicidade, para finalmente retornar à primeira opinião, cf.
Bernert, Günther, Zur lehre von der sozia/en Adaeq11anz und die sozialadaequanten
Handlungen, pp. 18 ss.; Gregori, Giorgio, Adeguatezza sociale e teoria dei reato, p. 17;
Bettiol, p. 315; Engisch, em Monatsch. Krim. Biol., 1939, p. 419; Klug, U., em Fest. f Eb.
Schmidt, p. 249; Hoppe, Gerhard, Die soziale Adiiquanz im Straf,-echt, p. 123; Schaffstein,
Friedrich, em ZStW, 1960, p. 383; Mezger, St11dienb11ch, 1954, p. 121; Dahm, Georg, De111sches
Recht, p. 627; Niese, Werner, Finalitiit, Vorsatz und Fahrliissigkeit, pp. 60 ss.; Stratenwerth,
G, em ZStW, 68, 1956, p. 41; Kaufmann, Arthur, em JZ, 1954, p. 657; Hirsch, em ZStW, 74,
p. 78; Kienapfel, Diethelm, K61perliche Ziichtigzmg und soziale Adiiquanz im Strafrecht;
Peters, Karl, em Fest. f We/zel, pp. 415 ss; Haft, Fritjof, Straji·echt, p. 55; Fiore, Cario,
L 'Azione Socialmente Adeguata nel Diritto Pena/e. Sustentou-se que o princípio da adequação
social é útil não apenas para a valoração do perigo, mas também para outros elementos do tipo
penal (as micro-lesões no lóbulo das orelhas para a criança usar brincos, o cigarro oferecido ao
funcionário público etc), porém sua introdução por via interpretativa como atípicidade obscu-
receria a análise; cf. Otto, Harro, Gn111dk11rs Strafrecht, p. 69; também crítico, embora desde
outra perspectiva, Baratta, Alessandro, Antinomie Giuridiche e Conflitti di Coscienza, p. 47.
82
Cf. Bricola, Franco, Scritti di Diritto Pena/e, v. I, pp. 713 e 717.

177
resolvera os problemas, salvo o mais grosseiro deles83 . Em todo caso, Welzel
sempre afinnou que o tipo objetivo é o cerne do objeto real de todo delito84 •

III. O pós-finalismo
1. Os autores pós-finalistas se enveredaram por dois caminhos teóricos
que, embora igualmente nonnativistas (constroem um sistema de imputação
sobre a ficção de uma norma imperativa) e prevencionistas (a função de tutela
da proibição ou da ordem estabelece o caráter positivo da pena 85), terminaram
opostos em suas concepções gerais e conclusões. Eles não questionaram a
legitimidade do poder punitivo mas, ao contrário, em aberto confronto com os
dados provenientes das ciências sociais, reafinnaram-se no dever-ser kantiano
ou no idealismo neo-hegeliano, radicalizando o normativismo. Partindo do efei-
to preventivo das nonnas, assumido como dogma, enfrentaram os problemas
da tipicidade penal divididos entre os subjetivistas monistas (teoria do puro
desvalor da ação) e osfuncionalistas sistêmicos. Os primeiros aprofundaram
a equivocada eticização do direito penal proposta por Welzel, identificando dolo
de perigo, dolo eventual de lesão e culpa consciente apenas pela circunstância
comum do conhecimento do perigo, bem como promovendo a equivalência en-
tre tentativa e crime consumado,já que o desvalor do resultado não integraria o
injusto86; os segundos extraíram da sociologia sistêmica uma versão jurídica
conformista. Todos eles abandonaram as pretensões realistas das estruturas
lógico-objetivas, optando claramente pelo retomo ao idealismo através do
normativismo87 .

2. A teoria do puro desvalor da ação, ou subjetivismo monista88, con-


sidera que no tipo se revelam nonnas de detenninação que motivam o cidadão

83 Uma refutação cabal de todo o esquema de imputação objetiva a partir de uma posição
finalista em Hirsch, em FS der Rechtswissenschaftlichen Fakultiit, pp. 399 ss.; para o
problema nos delitos dolosos, Militello, Vincenzo, Rischio e responsabilitá pena/e, p. 205.
114
Welzel, p. 62; a expressão por ele empregada foi gegenstiind/ich-reale Kern.
85
Ainda que o funcionalismo radical o negue através da tese da prevenção geral positiva e
através da renúncia expressa à proteção de bens jurídicos (Jakobs, pp. 47 ss), a idéia de
estabilização nonnativa que a substitui não deixa de exprimir uma tutela, referida neste caso
à vontade do legislador.
86
Sobre isso, Zielinski, Diethart, pp. 143 ss; Rodríguez Montanez, Teresa, Delitos de Peligro,
pp. 58 e 103; Farre Trepa!, Elena, La Tentativa de Delito, p. 131; Mazzacuva, Nicola, //
disvalore di evento nel/ 'il/ecito pena/e, p. 185; Sancinetti, Marcelo A., Teoria dei Delito y
Disvalor de Acción, pp. 353 ss.
87
Para os riscos da nonnatização conceituai penal, Creus, Carlos, em NDP, 1997-B, pp. 609 ss.
88
Kaufmann, Annin, Lebendiges und Tores in Bindings Normentheorie; Zielinski, Diethart,
Hand/ungs- und Erfo/gsunwert im Unrechtsbegriff, Struensee, Eberhard, em AD PCP, 1987,

178
para impedir finalidades proibidas, em face do que estaria a norma violada
quando se expressem vontades proibidas. Como para o subjetivismo monista o
resultado é sempre um acontecimento casual, sua tese converte a tentativa no
grande modelo de ilícito penal, provendo criminalização não perante a lesão do
bem jurídico mas sim pela simples presença de um perigo. É falso que, limitan-
do-se o conceito de injusto ao desvalor da ação, estaria eliminada a causalidade
da reprovação do injusto, pois o acaso não intervém apenas para que a tentati-
va se consume, mas também para que os atos preparatórios se convertam em
tentativa, com o que a obsessão em erradicá-los conduziria às mais absurdas
antecipações punitivas, o que em alguns casos já ocorreria, com a demanda de
punição das tentativas inidôneas89 • Em síntese, se o agente atua com vontade
de produzir o resultado proibido já disporíamos de material suficiente para um
juízo de imputação. Assim, o papel decisivo incumbiria ao dolo90, mesmo que
este não passe de uma crença infundada do agente, seja pela impossibilidade
fisica de sobrevir o resultado, seja por tratar-se da chamada tentativa supersti-
ciosa9 1, seja ainda quando os elementos do tipo fossem imaginários92, o que
permitiria prescindir da causalidade no injusto e responsabilizar condutas nas
quais a causalidade não estivesse provada (ou o estivesse sem nível suficiente
de certeza93), já que o resultado passaria a representar mera condição de
punibilidade ou de maior punibilidade. Esses exercícios teóricos dos anos seten-
ta do século XX, além de abandonarem a referência das estruturas lógico-
objetivas de Welzel, esqueceram-se também de sua advertência sobre o valor
do gegenstiindlich-reale Kern do tipo objetivo em qualquer delito94 •

3. O funcionalismo sistémico apegou-se à advertência welzeliana sobre


o valor fundante do tipo objetivo e abandonou a vontade dolosa como critério
limitativo, esforçando-se para construir uma base imputativa comum a todas as
modalidades típicas, ou seja, para substituir a causalidade do modelo teóri-

pp. 449 ss. e em Rev. Pol. Crim. y Ciencias Penales, México, 1999, nº 1, pp. 19 ss.; Horn,
Eckhard, Konkrete Gafiihrdungsdelikte; Sancinetti, Marcelo A., Teoria dei delito y disvalor
de acción; e Responsabilidad por acciones o responsabilidad por resultados?; críticas
recentes em Sainz Cantero, José Antonio, Lecciones, p. 334; Moreno Torres Herrera, M.,
Tentativa de delito y delito irreal, p. 375.
89
O positivismo preconizava para as tentativas inidôneas a aplicação de medida de segurança,
como se dava na versão original do CP 1940. Sobre essa crítica, Puppe, lngeborg, notas
prévias ao § 13 do Nomos Kommentar zum STGB, e Walter, J., Objektive und personale
Zurechzmg.
90
Kaufmann, Armin, em ADPCP, 1985, pp. 807 e 816.
91
Kaufmann, Armin, em Festj We/zel, p. 403.
92
Zielinski, Disva/or de Acción, p. 139.
93 Kaufmann, Armin, em JZ, 1971, p. 569.
94 Struensee, Eberhard, em La ciencia penal y la política criminal, p. 304.

179
co Liszt - Beling por um novo conceito objetivo - mas radicalmente
normatizado a partir de uma teoria preventiva da pena - que cumprisse a
mesma função imputativa comum para todas as formas típicas, daí se origi-
nando as chamadas teorias da imputação objetiva95 , sobre as quais produ-
ziu-se extensa bibliografia96. Diante da diversidade de enfoques, da disparidade
de critérios, da escassa coincidência no alcance da expressão, do excessivo
casuísmo de algumas propostas (que parecem articular-se pelo método do pen-
samento problemático - tópica - e renunciar a todo critério sistemático) e, de
forma geral, do desconforto provocado por uma coincidência terminológica que
na verdade oculta uma formidável desarmonia conceituai, alguns autores as
consideram como teorias ainda em curso de gestação97 e outros lhes negam
caráter sistemático ou validade teórica geral 98•

IV. As teorias da imputação objetiva


1. Apesar de certa confusão em tomo da expressão imputação objeti-
99
va , é inegável que existem sérios problemas de imputação que constituem
problemas de tipicidade objetiva 100 que, sob esta ou outra designação, devem
ser equacionados, e que não dispõem de elucidação unívoca 10 1, sendo
9
s O sistema nonnativo é considerado autônomo (autodominável) como sistema de valores não
sujeitos a verificação, porém com valor funcional de estabilização da ordem jurídica, con-
cepção que se contrapõe a qualquer construção teórica com algum nível de compromisso
com a experiência social dos sistemas penais. São frutos dessa nonnativização as teorias do
risco e da imputação, cuja falta de clareza tennina produzindo insegurança jurídica; cf.
Küpper, Georg, Grenzen ... , cit., pp. 197-198.
96
Até como processo de comunicação, Kaufmann, Arthur, Filosofia dei Derecho, p. 253; um
inventário exaustivo delas em Martínez Escamilla, M., La /mputación Objetiva e Reyes
Alvarado, Y., lmputación Objetiva; cf. a bibliografia deste capitulo.
97
Jescheck-Weigend, pp. 286 ss.
91
Koriath, H., Grundlagen, p. 536.
99
Quanto a sua origem, a recorrente invocação de Puffendorf é confrontada com outra fonte
escolástica de base divina (cf. Giuliani, Alessandro, em Esperienza giuridica e
secolarizzazione ). Também se realça que causalidade e imputação, provenientes dos concei-
tos gregos aitía as, estavam dotadas do mesmo significado (cf. Bailly, A., Diccionaire
greco-français, p. 52). Que não se trata de uma questão exclusivamente penal foi demons-
trado pelo neokantismo de Kelsen, que não descartava em sua análise nonnativa uma
relativa utilidade da causalidade; a propósito, Marí, Enrique, E., em Materiales para una
teoría crítica dei derecho, p. 337 ss. No Brasil, versou pioneiramente o assunto Tomás
Antônio Gonzaga, em seu Tratado de Direito Natural, Livro Primeiro, Parte 1, cap. 5° (Da
imputação das ações).
100
Cf. Jakobs, pp. 223 ss.; Roxin, pp. 31 Oss.; Kõhler, Michael, p. 143; Ebert, Udo, Strafrecht,
p. 44; Haft, Fritjof, Strafrecht, p. 67; Kühl, Kristian, Strafrecht, p. 2 1; Torío Lopez, Angel,
em ADPCP, 1986, p. 33 ss.
101
Embora geralmente a pergunta central da imputação objetiva resida em detenninar quando
um resultado pode ser atribuído a alguém como obra sua (cf. Otto, Harro, Grundkurs, cit.,

180
freqüentemente objeto de soluções visivelmente artificiais, quando não de agre-
gados teóricos incoerentes 1º2• Reconhecer a existência dos problemas de
imputação objetiva independe de aderir a qualquer teoria de imputação
objetiva, entendida como ensaio para encontrar um único critério que
aspire a resolvê-los todos e em todas as modalidades típicas (dolosas e
culposas, ativas ou comissivas e omissivas).

2. Von Liszt, em seu tempo, resolvia todos os problemas de imputação


objetiva valendo-se da causalidade, que neste sentido foi a primeira teoria geral
de imputação objetiva. A disjuntiva dogmática contemporânea consiste em ave-
riguar se os critérios de imputação objetiva variam de acordo com os tipos
penais (isto é, se estruturas típicas diferentes - dolosas, culposas, ativas ou
comissivas e omissivas - requerem critérios diferentes de imputação objetiva)
ou se existe um critério geral e único, equivalente à causalidade dos tempos de
von Liszt, que proporcione uma base teórica válida para todos eles. Procurare-
mos, logo adiante, colocar em evidência as insuperáveis dificuldades das pro-
postas imputativas generalizantes, que parecem ademais seguir dois cursos distintos:
uma delas tende a generalizar critérios imputativos adaptados aos ou provenien-
tes dos tipos culposos, enquanto outra extrai seus eixos do modelo típico omissivo,
seja como criação ou seja como não evitação de riscos proibidos.

p. 53), não falta quem sustente tratar-se de tema pertencente ao âmbito da conduta (cf., com
base no funcionalismo de Luhmann, De Giorgi, R., Azione e imputazione), o que condicionaria
e abarcaria todo o sistema: tipicidade, justificação, individualização da pena e o próprio
direito processual penal (assim, Wolter, Jürgen, em Omisión e imputación objetiva en
derecho penal, p. 65). Outros não vinculam seu âmbito à tipicidade objetiva, senão à
antijuridicidade (assim, Bustos Ramirez, J., em GSf Armin Kaufmann, p. 213; Reitmaier,
Andrea, Die objektive Erfolgszurechnung, p. 249; Graven, Philippe, L 'infraction pénale
punissable, p. 156). Para alguns a imputação objetiva só abrange a realização do perigo no
resultado (Frisch, Wolfgang, Tipo penal e imp11tación objetiva, pp. 108 ss.); para outros, a
imputação pode ser pessoal (conduta), do comportamento antinormativo (criação do risco
antinormativo), do resultado (realização do risco no resultado) e imputação individual
(atuar de modo diverso); finalmente, também se integra ao sistema a necesidade de pena
(assim, Rudolphi, Hans Joachin, em E/ sistema moderno de derecho penal: cuestiones
fandamentales, pp. 90 ss.). Essa torre de Babel atraiu ampla refutação doutrinária (Baumann,
J.-Weber, U.-Mitsch, W., Strafrecht, p. 245; Hirsch, Derecho Penal, 1, pp. 37 ss.), apesar
de sua limitada acolhida jurisprudencial (sobre isso, Huerta Tocildo, Susana, em LL, 1983-
3, p. 277; Terragni, Marco Antonio, em Horn. ai Prof. Jorge Frias Caballero, p. 376;
Cadoppi, A. et alii, lntroduzione ai sistema pena/e, vol. 1, p. 193). Prevalece no Brasil o
entendimento que situa a imputação objetiva na tipicidade (Damásio, Imputação Objetiva,
p. 68; Fernando Galvão, Imputação Objetiva, p. 108; Luiz Regis Prado e Érika Mendes de
Carvalho, Teorias da Imputação Objetiva, pp. 154 ss.), embora wn estudo procure relacioná-
la também à conduta, à antijuridicidade e mesmo à culpabilidade (Antonio Luís Chaves
Camargo, Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro, pp. 128 ss).
102
Mesmo reconhecendo sua importância, não se pode descartar certas características de
tópica de casos, de dificil reconstrução sistemática; cf. Fletcher, George P., Conceptos
básicos, p. 118; Marinucci, Giorgio, em RIDPP, 1990, p. 19.

181
3. O percurso experimentado pela teoria do puro desvalor da ação
(subjetivismo monista) para equacionar a imputação objetiva foi abandonado
pela dogmática alemã. Por isso, as propostas que se oferecem como critérios
únicos para substituir a causalidade provêm do funcionalismo sistêmico, assim
constituído como o marco teórico próprio das chamadas teorias da imputação
objetiva. Mediante o pressuposto da legitimidade do poder punitivo, derivado
da incorporação dogmática da função preventiva da pena, o funcionalismo
sistêmico penal opera dividido em duas correntes principais que sustentam seus
próprios critérios e procuram demonstrar a viabilidade de sua generalização 1°3.

4. a) Uma das teorias pretende que a função do poder punitivo seja a


prevenção de riscos para os bens jurídicos e, por isso, funda a imputação obje-
tiva, para todas as modalidades típicas, na produção ou no incremento desses
riscos mais a realização deles no resultado típico 104• b) A outra teoria pretende
que a função do poder punitivo seja o reforço do sistema através da certeza da
interação conforme a papéis e, por isso, funda a imputação das condutas
desviantes a partir das expectativas dirigidas ao portador do papel JOs. Pouco
importa, a rigor, a capacidade individual do sujeito, sendo determinante sua
condição de portador do papel. Por papel se entende aqui um sistema de
posições definidas normativamente, que podem estar ocupadas por indi-
víduos que nelas se alternam ou se sucedem' 06 .

5. As duas correntes do funcionalismo procuram, a partir do preventivismo,


ensaiar verdadeiras teorias da tipicidade objetiva com um único fundamento

103
Cf. Vives Antón, Tomás, S., Fundamentos, p. 429.
HM Cf. Roxin, p. 363; Wolter, Objektive und personales Zurechung von Verhalten, Gefahr und
Verletzung in einemfunktionalen Straftatsystem; o mesmo ponto de partida em Burgstaller,
Das Fahrliissigkeitsde/ikt im Strafrecht; Rudolphi. Causalidade imputación objetiva, p.
31; do mesmo, Kommentar, § 1º, nº 38 ss.; Schünemann, em JA, 1975, pp. 435 e 511;
Stratenwerth, em Fest. f Gal/as, p. 227; Kühl, Kristian, Strafrecht, p. 42; ampla exposição
crítica em Manínez Escamilla, La imputación objetiva, p. 61; o risco como modelo superador
do probabilístico em Paliero, Cario Enrico, em Riv. It. di Medicina Lega/e, 1992, p. 854;
Romano, Mario, Commentario, t. 1, p. 375; aceitando tal critério, embora criticamente, para
solucionar cenos problemas da causalidade, Militello, Vicenzo, Rischio e responsabilità
pena/e, pp. 207-220; o risco como denominador comum das estruturas típicas dolosas e
culposas em Donini, Massimo, l/lecito e colpevolezza ne/1 'imputazione dei reato, p. 399;
Gómez Benítez, J. Manuel, Teoría jurídica dei delito, p. 186; De Toledo y Ubieto, E.
Octavio e Huena Tocildo, Susana, Derecho Penal, p. 99; Pessoa, Nelson, em Teorías
actuales en e/ derecho penal, p. 206; Dos Santos, Juarez Cirino, A Moderna Teoria, cit., pp.
57 ss e 108 ss; Greco, Luís, Introdução a Roxin, Claus, Funcionalismo e Imputação Obje-
tiva no Direito Penal, trad. L. Greco (trechos do Strafrecht A. T.).
105
Jakobs, p. 225, embora também na sua concepção a idéia de risco seja central, como em todo
o funcionalismo; em sentido similar, Otto, H., Grundkurs, p. 54.
106
Jakobs, Sociedad, norma, persona, p. 35.

182
imputativo, válido para todas as modalidades típicas. Este movimento contem-
porâneo deve ser situado e avaliado na perspectiva oferecida pela considera-
ção completa dos esforços teóricos em diferentes momentos. Ao longo dessa
história, pode-se observar a tensão permanente entre o direito penal que, com o
objetivo de limitar o poder punitivo, estabeleceu a causalidade como critério
imputativo, e o poder punitivo que, valendo-se da amplitude do espectro causal,
pretendeu usá-la para expandir-se por sobre a legalidade (toda contribuição
causal seria típica, independentemente das restrições proporcionadas pela des-
crição típica da conduta). Voltou à carga o direito penal, cuidando de restringir
a causalidade ou sua relevância típica; e eis que o poder punitivo, perante os
magros frutos de tal iniciativa teórica, esboçou um desmerecimento da causa-
lidade e do bem jurídico, para ater-se à irrestrita referência de uma vontade
com inimizade ao direito. Tratou-se então de limitar a imputação recorrendo ao
dolo, mas diante dos remendos, da insuficiência e das incertezas da nova pro-
posta de limitação, desenvolveram-se as teorias da imputação objetiva na bus-
ca de critérios válidos para todas as estruturas típicas. Nessa relação dialética
entre direito penal e poder punitivo, parece claro que a intenção dessas teorias
seria atender às exigências redutoras do primeiro, embora - a julgar pelas con-
tradições e pelos argumentos artificiosos em que incidem - não o tenham con-
seguido, o que termina por alavancar o segundo.

6. A contradição essencial dessas teorias reside em que, fundando-se elas


em concepções preventivistas da pena, legitimam o poder punitivo e assim,
para além da eventual correção de algumas soluções formuladas, abrem as
portas para sua expansão. Basta pensar na assustadora projeção de formula-
ções básicas tais como o papel de bom cidadão ou o incremento do risco.
Por outro lado, se se compara o âmbito de proibição derivado da norma "não
matarás" com aqueles que proviriam das normas "observarás estritamente o
papel de bom cidadão" ou "não incrementarás o risco de morte", causa
espanto que não se perceba imediatamente a maior aptidão das últimas para
expandir o poder punitivo.

7. Perante a tipicidade dolosa os critérios do funcionalismo parecem es-


tranhos: não se ajusta à realidade dizer, de alguém que consciente e voluntaria-
mente causou um resultado, que introduziu um risco. É claro que qualquer conduta
intencionalmente orientada a um resultado implica um risco, porém a dolosa
causação do resultado, como produto de uma estratégia racional final, permite
identificar e exprimir com maior nitidez os elos imputativos. Num marco mini-
mamente realista não parece adequado afirmar que quem atirou a bomba atô-
mica sobre Hiroshima introduziu um risco, quando na verdade causou a morte
de mais de cem mil pessoas.

183
8. Imputar um resultado segundo a criação de um risco (que nele se rea-
lizará) é retomar o modelo ex ante da tentativa, ignorando que não existem
tentativas no vácuo (para nada), porque os cursos da ação humana só ganham
sentido quando se frustram com relação a um fim pretendido, quando são aban-
donados (desistência) ou quando ultrapassados pela consumação do projeto
final. Extrair um rim, realizar uma compra e venda imobiliária, ou apropriar-se
de fundos públicos são condutas ex ante arriscadas, para o médico e o pacien-
te, para o comprador e o vendedor do imóvel, tanto quanto para o acusado e o
patrimônio público, mas a saúde do paciente, o lucro do vendedor e o prejuízo
do erário só podem ser imputados segundo a correspondência entre a ação
final e o resultado obtido, independentemente de qualquer risco criado. É por
igual artificioso dizer que aquele que dispara uma arma de fogo contra alguém,
a um metro de distância, e o mata, terá o resultado morte imputado a ele porque
defraudou um papel. Do papel de bom cidadão não se pode extrair nenhuma
posição de garantidor, e tão somente os deveres gerais de solidariedade que
podem ser violados pela simples omissão de socorro (art. 135 CP). Não só é
absurdo imputar um homicídio doloso porque o autor não evitou um resultado
diferente, como também é politicamente perigoso erigir como modelo de impu-
tação de resultados aquele que surge de uma norma imperativa de determina-
ção (desvalor de ação, tentativa), onde o dever está circunscrito à evitação
simbólica da vigência dessa mesma norma 1º7•

V. A teoria do risco de Roxin


1. No marco do funcionalismo, coube a Roxin formular a primeira das
teorias contemporâneas sobre imputação objetiva. Para ele, as regras que dis-
ciplinam a imputação de resultados ao tipo objetivo são basicamente duas. a) A
primeira regra sustenta que um resultado causado pelo agente só se pode
imputar ao tipo objetivo quando a conduta do autor criou um perigo
para o bem jurídico, perigo este não coberto por um risco permitido, e
quando tal perigo se tenha realizado no resultado concreto 108 . Segundo

101
Os delitos de risco constituem o primeiro passo na direção do direito de polícia: cf. Herzog,
Felix, em Rev.Penaf, 4, 1999, pp. 55 ss.; do mesmo, Geseffschaftliche Unsicherheit und
strafrechtliche Daseinsvorsoge, pp. 50 ss; qualifica-o como programa contra-ilustrado
Albrecht, Peter-Alexis, em La insostenible situación dei Derecho Penal, pp. 473 ss.
101
Roxin, pp. 31 Oss. (na trad. esp., pp. 363 ss.); antes, em Fest.f Honig, p. 133 (Problemas
básicos, pp. 181 ss.); Rudolphi, em GA, 1969, p. 193; do mesmo, Causalidade imputación
objetiva, pp. 30 ss.; também em EI sistema moderno dei derecho penal: cuestiones
fundamentales, pp. 90 ss.; Schünemann, em JA, 1975, pp. 435 ss.; Burgstaller, Das
Fahrliissigkeitsdelikt im Strafrecht; Stratenwerth, Bemerkungen im Strafrecht; Wolter,
Objektíve und personales Zurechung von Verhaften, p. 334; Gropp, Walter, Strafrecht, p.

184
este esquema, quando falta a criação de um perigo proibido, a ação e seu
resultado são impuníveis. Mas o resultado não pode também ser atribuído ao
autor quando não represente a realização do perigo proibido criado por ele. No
caso do tio posto, por instigação e com auxílio do autor, a caminhar em meio à
tempestade com alta incidência de raios, a ação não consubstancia criação de
perigo proibido 109; no caso do paciente dolosamente ferido por arma de fogo
que morre no incêndio do hospital - e que, no Brasil, por expressa decisão legal
( art. 13, § 1º CP), deve ser tratado como interrupção do nexo causal por concausa
superveniente relativamente independente - o perigo proibido criado pelo autor
com o disparo não se realizou no resultado concreto (a morte não exprime a
realização daquele perigo, e sim de outro). Como essa primeira regra parece
insuficiente para limitar a imputação objetiva, Roxin propõe uma outra regra
corretiva. b) Consoante esta segunda regra, não se poderá imputar o resul-
tado quando o âmbito do tipo não abrange a evitação dos riscos e suas
repercussões 110 • Aqui se incluem os casos de instigação ou auxílio a simples
auto-exposição a perigo da própria vítima, que os tipos não tendem a evitar111 •

2. Dessas duas regras básicas Roxin deduz as regras gerais, que serão
consideradas para excluir a imputação objetiva. Se a imputação objetiva pres-
supõe a criação de um risco proibido, este não será reconhecível quando o
autor produz o resultado lesivo intervindo sobre um curso causal no sentido de
melhorar a situação do bem jurídico, diminuindo o perigo para a vítima (por

134; para pontos de partida análogos, Toepel, Kausalitiit und Pflichtwidrigkeits-


zusammenhang beim fahrliissigen Erfolgsdelikt; Otto, em Fest. f Maurach, p. 91, e em
JuS, 1974, p. 702; para crítica do recurso à "realização do risco no resultado" nos crimes
dolosos, Frisch, Tipo penal e imputación objetiva, p. 76; a teoria do incremento do risco na
jurisprudência austríaca por Triffterer, em Fest. f K/11g, II, p. 419; filia-se a Roxin, com
reservas quanto ao caráter difuso da teoria, Massimo Donini, em Digesto dei/e Discipline
Penalistiche, XIV; entre nós, adotam a teoria roxiniana de imputação objetiva Juarez Cirino
dos Santos (A Moderna Teoria, cit., pp. 57 ss), Luís Greco (em Roxin, Funcionalismo e
Imputação Objetiva no Direito Penal, cit., pp. 1 ss) e Damásio (Imputação Objetiva, cit.,
passim); alia-se a Gimbemat Ordeig para uma crítica implacável Paulo de Souza Queiroz
(Direito Penal, pp. 135 ss).
• 09 Roxin, p. 311 (na trad. esp., pp. 364 e 377); como tentativa irreal (ou superticiosa) a trata
Gimbemat Ordeig, lntrod11cción, p. 11 O; como ausência de dolo, Sancinetti, Marcelo A., em
Teorias actuales en e/ derecho penal, pp. 187 ss.; crítico a Roxin e favorável à ausência de
dolo, Struensee, Eberhard, em E/ derecho penal hoy. - Hom. David Baigzin, p. 257. Cursos
causais extraordinários jamais constituíram um problema porque se excluía o dolo; para
Frisch, no entanto, tal solução é incorreta porque o conhecimento do perigo é um dado
objetivável (Tipo penal e imputación objetiva, pp. 36, 78 e 100). No sentido de reconhecer
elementos subjetivos na tipicidade objetiva, vinculando-os seja ao conceito de papel seja à
circunstância do risco, Reyes Alvarado, Yesid, em CDJP, nº 4-5, pp. 184 ss.; Martínez
Escamilla, la imputación objetiva dei resultado, p. 89.
110
Roxin, p. 312.
111 Ibidem.

185
exemplo, desviando-a do lustre que cairia sobre sua cabeça e, após o empurrão
da vítima, atinge-lhe apenas a mão) 112 • Cabe observar que pode haver casos
nos quais o risco diminui pela intervenção do agente e, entretanto, a imputação
objetiva não desaparece, como ocorreu com os médicos que sob o regime na-
zista entregaram alguns doentes para salvar a maioria deles. Esta objeção é
aplicável também às hipóteses de delitos ecológicos 113 nos quais indústrias que
contaminam em quantidades inferiores à proibida produzem, em conjunto, um
dano ambiental; tais hipóteses colocam um problema complexo, porque não se
pode afirmar que qualquer uma das indústrias tenha criado um risco proibido
(o patamar de lançamentos legalmente consentidos configuraria risco permiti-
do). Como se trata de um caso de aumento (ou incremento) de risco, poder-se-
ia sustentar que a regra não opera, e que seria possível a imputação; isso é
inadmissível, porque qualquer atividade de realização simultânea e universal
acabaria com a humanidade 114.

3. A criação do risco proibido não se exclui, para Roxin, em função de


cursos causais hipotéticos: no caso do autor substitutivo ele tem razão, mas
em muitos outros exemplos aos quais recorre não se percebe qualquer aumen-
to do risco, e sim unicamente uma usurpação de funções ou outro delito, como
no exemplo da morte dada a um animal que aguarda o sacrifício pela autorida-
de sanitária 115. Para casos nos quais o autor substitutivo atuaria justificadamente
na produção do resultado típico - a exemplo de uma vítima ou do parente de
uma vítima que, presenciando a execução, num arroubo acionasse pessoal-
mente o mecanismo que mataria o condenado, segundos antes do horário de-
terminado - Roxin argumenta que deve imputar-se-lhe a morte porque, do
contrário, se vulneraria o tabu de matar116, muito pouco influente sobre as
agências policiais dos sistemas penais latino-americanos. Contra esta solução
manifestaram-se autores, alguns considerando que a situação do bem jurídico
não sofrera alteração relevante, outros que falta o desvalor do resultado quan-
do se esperava a produção do resultado independentemente da conduta
antijurídica, pelo que caberia reconhecer-se nas respectivas ações dolosas hi-
póteses de tentativa 117 , opinião rechaçada por Roxin, argumentando, ad
absurdum, que desde que atuassem culposamente os médicos poderiam matar

112 Roxin, p. 314; Maiwald, em Festf.Jescheck, p. 405; Otto, em NJW, 1980, p. 417; Frisch,
Tipo penal e imputación objetiva, p. 35.
113
Para o caso de inundação, cf. Roxin, p. 315.
1
" Crítico sobre os delitos acumulativos, Herzog, Félix, Gesel/schaftliche Unsicherheit und
strafrechtliche Daseinsvorsoge, pp. 109-158.
tu Roxin, p. 317; contra, Samson, Hypotetische Kausalverliiufe im Strafrecht, p. 142.
116
Roxin, p. 317; Juarez Cirino dos Santos, A Moderna Teoria, cit., p. 59.
117
Roxin, p. 319, citando Arthur Kaufmann.

186
impunemente a todos os moribundos. Cabe advertir que essa resposta revela o
defeito de sua tese: aos médicos se deverá imputar objetivamente o resultado
homicida, não porém - ao contrário do que assegura Roxin - porque tenham
criado ou incrementado o risco.

4. Exclui Roxin a imputação objetiva em caso de riscos permitidos 118,


mesmo que o autor tenha criado ou incrementado o risco 119 • O resultado pro-
vindo de conduta que cria um risco relevante, porém permitido, não é objetiva-
mente imputável ao autor. Talvez seja esta a contribuição mais importante da
teoria, que deve ser considerada especialmente no tratamento da função
conglobante do tipo objetivo 120• Os vestígios da dogmática dos crimes culposos
são visíveis no corpo desta contribuição.

5. A criação ou o incremento de um risco proibido é insuficiente


quando o resultado não provenha diretamente desse risco, enquanto sua
realização. Abstraído que a lei brasileira manda tratar a hipótese como inter-
rupção de nexo causal pela superveniência de concausa relativamente inde-
pendente (art. 13, § 1° CP), essa regra resolveria o caso do ferido por arma de
fogo que morre no incêndio do hospital 121 • Contudo, as finas observações de
Roxin dificilmente poderiam ser generalizadas: ele reconhece como provinda
diretamente do risco criado pelo disparo de arma de fogo a morte do paciente,
no hospital para onde foi conduzido, por erro médico, argumentando que em
situações de urgência sempre há a possibilidade de uma imperícia 122 • Frisa que
a constatação da realização do risco no resultado implica investigações sutis, o
que deixa a questão em aberto. Tampouco é clara a solução segundo este
parâmetro em exemplos nos quais o risco se realiza no resultado - caso dos
pincéis infectados com o bacilo de carbúnculo 123 - mas o resultado estaria
sendo imputado em nome do descumprimento de um dever jurídico inútil (a

111
Chama-os justificáveis Fletcher, George, P., Conceptos básicos, p. 175; para a tipicidade
dolosa e culposa, Gimbemat Ordeig, em Estudios pena/es y criminológicos, X, 1987, p.
181; em sentido crítico, Moccia, Sergio, li dirilto pena/e Ira essere e valore, p. 138. Sobre
esses riscos, Maiwald, Manfred, De la capacidad de rendimiento dei concepto de riesgo
permitido, p. 43; sobre riscos tecnológicos, Rengeling, Hans-Wemer, Grundrechtsschutz in
der Europiiischen Gemeinschaft, p. 113; amplo panorama em Paredes Castanon, José
Manuel, E/ riesgo permitido en derecho penal, p. 331.
119 Roxin,p.319.

12
° Cf. infra, § 32.
121
Como problema de imputação objetiva, para cuja solução o dolo não teria qualquer relevância,
Wolter, em ZStW, 89, 1977, p. 646; tal concepção se impôs, cf. Jescheck-Weigend, p. 312;
Stratenwerth, p. 102; Kratzsch, Verha/tenssteuerung und Organisation im Strafrecht, p. 302.
122
Erros médicos graves exoneram de responsabilidade ao primeiro causante: Burgstaller, em
FestfJescheck, p. 364.
121
Roxin, p. 324.

187
desinfecção, segundo a /ex artis praticada, não extenninaria os bacilos). Em-
bora seja razoável excluir a imputação nesses exemplos, o fundamento seria
diverso de não ter-se o risco realizado no resultado.
6. Como corretivo do esquema anterior, Roxin propõe negar a imputação
quando o resultado não se encontre abrangido pelo fim de proteção da norma
de cuidado limitadora do risco permitido, ou seja, quando o resultado não
fosse evitado também se outra pessoa que realiza a mesma atividade houvesse
observado o cuidado devido. Quando os deveres de cuidado têm por objeto ape-
nas evitar os riscos da própria atividade, conseqüências indiretas de sua violação
não podem ser imputadas 124 . Outro aspecto deste mesmo corretivo se apresenta
nas condutas alternativas confonne ao direito, quando, na hipótese de sua realiza-
ção, com alta probabilidade - embora sem certeza - não se lograsse evitar o
resultado 125 • Quando há certeza de que o resultado teria sobrevindo mesmo à
conduta alternativa confonne ao direito, Roxin exclui a imputação; porém a admi-
te no caso de simples possibilidade de que o resultado sobreviria. Tal solução
parece violar o princípio in dubio pro reo 126, e parece na verdade recorrer a um
inexistente tipo de perigo para superar a dúvida. Roxin refuta o argumento da
violação do in dubio pro reo afirmando que as regras de cuidado exigem obser-
vância mesmo se seu descumprimento, não certamente porém possível ou prova-
velmente, aumenta o perigo para a vítima 127 • Ajurisprudência alemã se posiciona
predominantemente contra esta opinião de Roxin. As conseqüências desta sua
tese, em tipos legais como, por exemplo, o estelionato, seriam intoleráveis 128 •

7. Embora sustente que, regra geral, caiba a imputação se o agente criou


um risco proibido e tal risco se realizou no resultado 129, Roxin reconhece que a
imputação pode fracassar quando o fim de proteção do tipo penal não abran-
ge resultados da natureza daquele ocorrido, ou seja, quando o enunciado típico
não tem a pretensão de impedir um evento daquela natureza. Antes de mais

124
Roxin, pp. 325-326.
125
Puppe, I, em ZStW, 95, 1983, p. 287; Schünemann, em StrV, 1985, p. 231; Kahlo, em GA,
1987, p. 66; no entanto, se aumenta o risco da vítima, admite a imputação Krümpelmann,
em Fest.f Jescheck, p. 313; também em JR, 1989, p. 353 e em GA, 1984, p. 502; no mesmo
sentido, Erb, Rechtmãssiges A fternatiwerhalten; o debate em Reitmaier, Andrea, Die objektive
Erfolgszurechnung im osterreichischen Strafrecht, p. 251.
126
No mesmo sentido, Küpper, em Fest. f Lackner, p. 246. Outra posição em Lampe, em
ZStW, 1O1, 1989, pp. 50 ss.; também sobre a irrelevância da conduta alternativa conforme
ao direito, satisfazendo-se com o incremento do risco, Martínez Escamilla, La imputación
objetiva, p. 234; Díaz Valcárcel, Luis Maria, Causafidad e imputación objetiva, p. 106;
Corcoy Bidasolo, M., EI delito imprudente, p. 521; crítico desta solução, Cadoppi A. et alii,
lntroduzione ai sistema pena/e, I, p. 251.
127
Roxin, p. 330.
128
No mesmo sentido Prittwitz, Strafrecht und Risiko.
129
Roxin, p. 334; Wessels, J. - Beulke, W., Strafrecht, p. 56.

188
nada, essa regra pressupõe uma função tutelar dos tipos legais que é algo real-
mente indemonstrável. Em segundo lugar, essa problemática é preferencial-
mente importante nos crimes culposos 130. Embora haja um denominador comum
na aquiescência 131 , as hipóteses se distinguem em: a) a instigação ou auxílio em
ações perigosas de outrem (por exemplo, corridas - "rachas" - de motociclis-
tas estando embriagados os dois pilotos); b) a exposição a perigo de terceiro
que aceitou arrostar tal perigo (o "carona" que exorta o motorista a trafegar
em velocidade excessiva; relações sexuais com consciente risco de contágio)132;
e) ações salvadoras voluntárias que produzem lesões ou morte, quando tais
resultados decorram de voluntária auto-exposição a perigo 133 ; e d) tampouco o
fim de proteção do tipo abrangeria aqueles resultados cuja evitação se insere
na esfera de responsabilidade de outrem, pois quem introduz o risco proibido só
responde pelo (eventual) resultado até que o controle da situação recaia sob a
responsabilidade de outrem (a polícia, os bombeiros, etc). É, no entanto, incom-
preensível que tais hipóteses - à exceção da última - não sejam tratadas como
hipóteses de consentimento do ofendido 134, porque não existe perigo que não
seja perigo de certa conseqüência (o resultado danoso); não se pode consentir
no perigo sem estar em certa medida consentindo em sua conseqüência 135 •

8. Cabe observar que não existe uma estrita explicação do conceito de


risco dentro dessa teoria 136 e, em geral, em toda a formulação das teorias da
imputação objetiva137 . Elas empregam como sinônimos risco e perigo, sempre
130
Roxin, p. 335.
131
Cf. infra, § 32.
132
Roxin, p. 342; Frisch, Tipo penal e imp11tación objetiva, pp. 48, 123 ss.; Dõlling, em GA,
1984, p. 75; de outra opinião quando o paciente se suicida com uma overdose da droga
prescrita pelo médico, Herzberg, em JA, 1985, p. 265; Stree, em JuS, 1985, p. 179; sobre
infecções provenientes de relações sexuais consentidas, Bruns, Aids -Alltag 1md Recht, em
MOR, 1987, p. 356; Herzog-Nestler-Tremel, em StrV, 1987, p. 360; Frisch, W., em JuS,
1990, p. 362; Helgerth, em NStZ, 1988, p. 262; Fiedler, Zur Strafbarkeit der
einverstiindlichen Fremdgefiihrdung, 1990; H. W. Mayer, em JuS, 1990, pp. 787 ss.;
Walter, S., Eigenverantworlichkeil 11nd strafrechtliche Z111'f!chn11ng; Weber, U., em Fest.f
Baumann, p. 43; Zaczyk, Strafrechtliches Unrecht und die Selbstverantwortung des
Verletzten, pp. 58 ss.; Hillenkamp, Thomas, Vorsatztat 11nd Opferverhalten; Otto, em Jura,
1984, p. 536; também em Fest. f Trond/e, 1989, p. 169; Costa Andrade, Manuel da, A
Vítima e o Problema Criminal, p. 185; Simone, Simonetta, em DDDP, 1/94, p. 139; Tamarit
Sumalla, J.M., la Víctima en e/ Derecho Penal, p. 75.
m Roxin, p. 347; Schumann, Strafrechtliches Hand/11ngs11nrecht, pp. 70 ss.
JJ◄ Como hipóteses de consentimento as trata Eschweiler, Beteiligung an Fremder
Seibs tgefiihrdung.
m A mesma opinião de Roxin (não há consentimento quando só se consente no risco) em
Schünemann, em NStZ, 1982, p. 60.
136 Sobre a origem do conceito, Herzog, Felix, Gesellschaft/iche Unsicherheit, p. 74.
137 Uma análise crítica, a partir do liberalismo radical, em Nozick, Robert, Anarquia, Estado y
Utopia, p. 85.

189
concebidos ex ante, pelo que sempre remetem ao futuro, com o compromisso
que isto implica para o princípio da lesividade; em Roxin de forma menos evi-
dente do que em outros autores que recusam a regra da realização do risco no
resultado 138. À parte todas as dificuldades, bem conhecidas dos penalistas, para
a conceituação de perigo, que portanto contaminariam o risco, assimilar um
ao outro não é pacífico. Em sociologia distinguiu-se entre risco (como perigo
que se calcula para diminui-lo) e perigo (corno risco que pode ou não ser
calculáve{) 139. Desse ângulo, seria contraditório afirmar a existência de incre-
mento de risco: só haveria incremento de perigo. Tampouco seria possível re-
conhecer no homicídio doloso um aumento do risco de morte, quando na verdade
se materializa um resultado de morte.

VI. A teoria dos papéis de Jakobs


1. Para Jakobs, um acontecimento lesivo se torna explicável através da
imputação objetiva quando o risco pelo qual responderá alguém que nele inter-
veio pode definir-se como sua causa determinante, e as demais condições,
não determinantes, possam estimar-se socialmente adequadas 140• Assim, a
imputação tem como destinatária a pessoa (o papel141 ) a quem o acontecimen-
to pertence 142, já que a ela se atribui desvio a respeito das expectativas pelas
quais, como portador do papel, incumbia-lhe velar; o papel é definido como um
sistema de posições normativamente estabelecidas 143 • Os critérios da imputa-
ção objetiva dispõem, para este autor, de duas raízes: a) de um lado, constituiria
finalidade própria do direito penal garantir a segurança das expectativas referi-
das aos papéis 144, em razão do que não se podem imputar resultados danosos
provenientes de condutas socialmente adequadas; b) de outro lado, tais critéri-
os servem à forma de regulação predominante no direito penal, que são os
crimes de resultado.

2. Para Jakobs - neste passo, repetindo o que já houvera assentado o


neokantismo - a causalidade representa o mínimo da imputação objetiva do

131
Jakobs, p. 270; Frisch, p. 114.
139
Assim, Giddens, Consecuencias de la modernidad, p. 43; também os diferencia Luhmann,
Sociologia dei riesgo, p. 65.
140
Jakobs, Jmputación objetiva, p. 15 (na trad. esp., ed. Civitas, p. 92).
141
Jakobs, Sociedad, norma, persona, p. 35; analogamente em Sobre la génesis de la obligación
jurídica.
142
Idem, p. 18; também Reyes, em ZStW, 105, 1993, p. 108.
143
Jakobs, lmputación objetiva, p. 21.
144
No mesmo sentido, Lesch, Heiko, Die Verbrechensbegriff, p. 230.

190
resultado, que deve completar-se com a relevância jurídica da relação causal
entre ação e resultado 145 • As instituições dogmáticas através das quais Jakobs
propõe aferir tal relevância são quatro: a) o risco permitido; b) o princípio da
confiança; e) a proibição de regresso, d} as auto-exposições a perigo 146•

3. Sustenta Jakobs que o risco permitido tem parentesco com a ponde-


147
ração de interesses do estado de necessidade , pois só pode ser aceito quan-
do estimáveis correspondentemente a magnitude do risco, sua utilidade e o
prejuízo, em relação de custo e beneficio 148• Apesar disso, admite a existência
de riscos permitidos por legitimação histórica. Ressalva que os riscos permiti-
dos são toleráveis apenas quando a vítima potencial está no máximo vagamen-
te indicada, e jamais se puder ela ser identificada com exatidão e ex ante.
Baseia a permissão do risco em que certas ações não implicam defraudação de
expectativas, já que sua aceitação é necessária ou pelo menos usual para man-
ter o contacto social. A avaliação deve remeter-se ex ante, pois a aceitação
não depende da ausência de resultado e sim da forma da ação149 e a determi-
nação deve ser objetiva150• Quanto aos conhecimentos especiais do agente,
Jakobs resolve o problema vinculando-os ao papel 151 : a atenção que se presta
acima do dever correspondente ao papel traria como conseqüência limitações
do âmbito de liberdade de ação 152• Distingue ele, neste tema, várias situações:
a) a primeira é a hipótese que denomina responsabilidade por organização,
quando o âmbito de organização da vítima está ameaçado por terceiros ou está
organizado para o resultado, na qual não admite a imputação, cabível apenas a
possibilidade subsidiária de resolvê-la como omissão de socorro. O recurso ao
papel exprime a tendência geral de Jakobs de transferir para as ações a estru-
tura das omissões, que o conduz a tomar por simples omissão153 ações que
causam dolosamente o resultado e onde o bem jurídico passa a ser o papel, e
apenas secundariamente a vida. b) O papel se amplia quando, em outra hipóte-
se, o autor é garantidor do domínio de um risco especial: neste caso, integra o
papel tudo quanto for necessário para evitar o resultado, e inclusive a vítima
dispõe da legítima defesa ou do estado de necessidade para diretamente evitar
o dano, caso disso não se ocupe o autor. e) Ativam-se também os conhecimen-

IH Jakobs, p. 237.
146
Acompanha-o nesses pontos de partida Derksen, Roland, Handeln auf eigene Gefahr, pp.
169, 175 ss.
IH Jakobs, p. 243.
10 Ibidem.
1 9
• Ibidem.
150 Ibidem.
151 Jakobs, p. 251.
152 Jakobs, p. 251; igualmente em Lesch, Heiko, op. cit., pp. 257-262.
153
Jakobs, p. 252; lmputación objetiva, p. 54.

191
tos especiais na hipótese da chamada responsabilidade institucional, associ-
ada a papéis como os de pai, cônjuge etc. Quando o autor toma a iniciativa de
introduzir seu conhecimento especial na relação com a vítima, tal conhecimen-
to se incorporaria ao papel que caracteriza essa relação 154.

4. O princípio da confiança se baseia em que, apesar de conhecermos


que outras pessoas por vezes cometem erros, estamos autorizados a confiar, em
princípio, que atuarão corretamente 155 • Sem este princípio estaria inviabilizada
uma eficaz divisão de trabalho em equipes cirúrgicas, fábricas, obras de enge-
nharia, serviços e manutenção de instalações, no trânsito urbano etc, porque se
cada um tivesse que controlar a atividade em seu conjunto seria impossível exer-
cer sua própria atividade; portanto, a falha é da pessoa competente para o res-
pectivo ato 156. Cessa a vigência do princípio da confiança: a) quando se observe
faltar à pessoa competente o conhecimento das regras ou a possibilidade de
observá-las; b) quando seja função de um interveniente compensar a eventual
falha de outro; e) quando o comportamento grosseiro - por exemplo, drastica-
mente delituoso-de um interveniente desfigura os papéis 157. Como característi-
ca geral, afirma Jakobs que não basta a mera expectativa, sendo necessário que
o comportamento defeituoso tenha sido executado para neutralizar o princípio da
confiança 158, argumentando que enquanto existir, de algum modo, tanto para quem
confia quanto para a pessoa na qual se confia, a possibilidade de evitar o resulta-
do danoso, não há razão para transferir desde logo a quem confia a solução do
problema. Somente quando o domínio da situação escapa ao autor do comporta-
mento defeituoso é que o princípio da confiança estaria desativado. Embora cor-
reto o argumento, pode-se objetar que esperar pela perda do domínio, especialmente
quando toque ao sujeito cobrir a falha alheia, problematiza o dever de atuar deste
garantidor, sempre que já tenha ele percebido a falha.

5. Sustenta Jakobs a proibição de regresso (impeditiva da imputação) se


o devedor paga seu débito sabendo que, com o dinheiro, o credor satisfeito
comprará uma arma para matar alguém, baseado em que o devedor não se
encontra em posição de garantidor com respeito à vida da vítima. A imputa-
ção é por ele excluída também por culpa, mesmo que o curso causal seja pre-
visível. Também é incabível a imputação quando o resultado típico só ocorre

154
Jakobs, p. 253.
m Ibidem. Sobre a elaboração jurisprudencial alemã, em meados do século XX, do princípio da
confiança, aplicado no campo do trânsito viário, Welzel, Hans, Culpa e delitos de circula-
ção, em RDP, 3, pp. 13 ss (esp. pp. 25-26).
16
s Jakobs, p. 255.
is, Jakobs, p. 257.
158
Ibidem.

192
porque o âmbito de organização da vítima está orientado para o resultado ou
ameaçado por terceiros 159 • Como se vê, Jakobs equaciona a proibição de re-
gresso em tomo da posição de garantidor, quando talvez remeter tais casos aos
limites impostos pelo princípio da legalidade constituiria solução superior. Dos
casos nos quais o âmbito de organização da vítima está orientado para o resul-
tado, destaca a relevância prática daquele em que o médico interrompe um
tratamento intensivo de continuidade automática numa ocasião em que não
exista o dever de continuar tal tratamento; a morte seria, entretanto, imputada
se a máquina fosse desligada por um herdeiro impaciente, mesmo que o trata-
mento já não fosse indicado 160 • Para Jakobs, o âmbito de organização da vítima
está orientado para o resultado também quando seus bens estejam debilitados
perante atuações comuns, freqüentes e ubíquas, socialmente adequadas (al-
guém que sofra lesões nos tímpanos pelo barulho habitual do motor de um
caminhão, a cujo motorista não cabe imputar o resultado de lesões corporais);
também dessa linha se vale para fundamentar que não sejam imputados os
danos subseqüentes por choque (ao receber a notícia de que o filho foi atrope-
lado, a mãe sofre um infarto e morre, resultado que não se poderá imputar ao
motorista). Ainda nessa linha, Jakobs exemplifica com o caso do terrorista que,
após depositar os explosivos na casa da vítima, predispõe o detonador na ma-
çaneta da casa vizinha, ocorrendo a explosão quando o morador abrir sua por-
ta. Quando o morador conheça, mesmo imprecisamente, as conseqüências de
girar sua maçaneta, negar a imputação, em nome de um jogo fátuo de papéis e
competências, é solução inaceitável.

6. Jakobs rejeita a tese de Roxin, no sentido de excluir a imputação nos


casos de condutas alternativas conforme ao direito ou de cursos causais hipo-
téticos, já que em tais casos, embora o resultado não exprima a realização do
risco criado pelo autor, só pode ser explicado a partir desse aumento de ris-
co 161 • Afirmando que a posição de Roxin conduziria à anulação das garantias
normativas do bem que já não pode salvar-se, Jakobs sustenta a imputação.
Neste particular, sua tese é de que as violações de deveres inúteis são juridica-
mente relevantes, como forma de preservar a proteção normativa do bem; tal
inutilidade não teria repercussão sequer na determinação da pena 162• Talvez
seja esta a mais radical conseqüência do preventivismo normativo. Pode ser
159
Jakobs, p. 260.
160 Jakobs, p. 262; remarque-se que tais construções supõem a distinção entre delitos de
organização (por competência num âmbito de organização) e delitos de infração de dever
(por competência institucional), que não passam de novas designações para a velha distin-
ção entre crimes que qualquer pessoa pode praticar e crimes de prática restrita a pessoas
com alguma característica típica especial ( cf. infra, § 53).
161
Jakobs, p. 270.
162
Idem, pp. 282-283.

193
que se trate, efetivamente, de realização de risco, mas não parece racional
concluir pela imputação quando, pelo iminente e inexorável aniquilamento do
bem jurídico, pode-se afinnar que, enquanto relação de disponibilidade, deixou
ele de existir. Esta circunstância subtrai contlitividade ao pragma, e a conduta
careceria de tipicidade objetiva. Não deixa de ser curioso que o desprezo teó-
rico geral do funcionalismo sistêmico pelo bem jurídico ceda à oportunidade de
uma falsa ofensa, de uma ofensa a rigor simbólica, que por isso mesmo pode
vincular-se à estabilização nonnativa.

7. Por fim, Jakobs substitui a realização do risco no resultado pelo concei-


to de risco que aclara o resultado 163, expressão com a qual parece apelar ao
razoável em seus inúmeros exemplos, cujas soluções, em geral corretas, no
fundo se aproximam muito das teses da causalidade adequada. Frente a Roxin,
admite o critério do aumento do risco, sob a condição de prescindir da realiza-
ção do risco no resultado e dos cursos causais hipotéticos. O risco introduzido
pelo autor é sempre valorado ex ante, como risco que aclara o resultado,
chegando Jakobs a sustentar, como conseqüência, que a relação de imputação
está referida apenas à ação e em sintonia com o modelo de desvalor de ação
que toma como núcleo o injusto da tentativa, pelo que, a despeito da linguagem
sistêmica, parece apegado substancialmente às tradições que remontam a
Binding: os crimes de resultado seriam compreendidos como crimes de perigo
condicionados pelo resultado.

8. Para além do valor que possa ter a teoria dos papéis perante os limites
imputativos na tipicidade culposa ou omissiva, que oportunamente examinare-
mos, não é ela admissível, de modo geral, na tipicidade comissiva (ativa) dolosa,
pelo menos na fonna da autoria. Elogiável que seja o esforço para obter um
critério simplificador válido para todas as estruturas típicas, o fracasso da inici-
ativa se constata desde logo nos tipos comissivos dolosos. Para transplantar a
posição de garantidor da omissão imprópria para o tipo culposo ativo (comissivo),
Jakobs se aproveita do fato de existir sempre na conduta culposa uma falha
(um não acionar o cuidado objetivo), porém a solução fica insustentável quan-
do, pretendendo transferir o critério para os tipos comissivos dolosos, tem que
satisfazer-se com a posição de garantidor que proviria de um suposto papel de
bom cidadão. Embora desenvolvendo as regras da imputação objetiva segundo
quatro instituições dogmáticas {risco pennitido, princípio da confiança, proibi-
ção de regresso e auto-exposição da vítima), o certo é que, em todas elas,
Jakobs apela pennanentemente aos papéis.

163
Idem, p. 274.

194
9. Este é o aspecto mais artificioso de sua teoria no campo dos crimes
comissivos (ativos) dolosos: é absolutamente irreal, e em algumas hipóteses
risível, dizer que quem dispara repetidamente sobre a vítima para matá-la este-
ja violando o dever de evitar o cometimento de delitos que integraria o papel de
bom cidadão. Também no plano jurídico é insustentável a existência de uma
geral posição de garantidor da vida alheia, além das previsões legais que
estatutuem verdadeiros e próprios garantidores (art. 13, § 2º CP); para todos os
demais, como deixa claro a norma mandamental que se deduz da omissão de
socorro (art. 135 CP), não há qualquer posição de garantidor, mas tão somente
deveres gerais de solidariedade.

10. A norma que se deduz do tipo comissivo doloso de homicídio (art. 121
CP) não proíbe defraudar o papel de bom cidadão e sim proíbe matar ou,
no máximo, proíbe assumir o papel de homicida, dominando uma causalida-
de e dirigindo-a à produção da morte de uma pessoa humana. O que interessa
à tipicidade objetiva, aqui, é averiguar se estão presentes os pressupostos obje-
tivos do homicídio (ou, caso queiram, do papel de homicida), isto é, as condi-
ções para que o agente possa dominar a causalidade, o que equivale a determinar
um potencial domínio do fato como etapa preliminar à determinação do do-
mínio do fato em ato, ao nível do tipo subjetivo. Jakobs substitui o conteúdo
dessa proibição pela defraudação de um papel, para o que pretende compreen-
der e subdividir a totalidade da interação social em papéis compartimentados.
Os papéis são definidos, em sociologia, como comportamentos esperados de
uma pessoa que adquire um status particular, ou seja, segundo a posição
dessa pessoa num grupo ou de um grupo em relação a outros, que reme-
tem a relações e privilégios de ordem cultural e que se desenvolvem através
de um complexo processo de socialização 164• Ao converter tais papéis em
personae jurídicas, juridificam-se normas culturais - voltando-se a Max Ernst
Mayer - e se termina por confundir papéis com deveres jurídicos, desvirtuan-
do-se o conceito de papel. Somente deveres juridicamente institucionalizados
são juridicamente exigíveis, não deveres que culturalmente seriam associáveis
a certos papéis, e menos ainda perante papéis ilícitos: é rigorosamente impossí-
vel configurar a imputação objetiva em condutas que integram papéis ilícitos. O
transplante do conceito de papel de uma disciplina descritiva a uma normativa
é metodologicamente incorreto e politicamente perigoso.

11. Antes de chegar às ciências sociais, a metáfora do mundo como tea-


tro e dos homens como atores que nele representam papéis constituiu uma

164 Cf. Horton, Paul - Hunt, Chester L., Sociologia, p. 11 O; Biddle, Bruce J. - Thomas, Edwin
J., Role Theo,y; Luhmann, N., Legitimação pelo Procedimento, pp. 71 ss. (partindo dos
estudos de George Mead).

195
grande tradição literária que, provinda da antiguidade, atravessou a idade mé-
dia e chegou à modemidade 165 ; nessa tradição, recorrentemente assinalou-se
que os papéis eram atribuídos, e não livremente escolhidos pelos "atores" 166•
Foi um merecimento da criminologia norte-americana -do interacionismo sim-
bólico ao rotulacionismo - investigar os delicados e contraditórios caminhos
que resultam na incorporação de um papel infracional, e a uma visão crítica não
escapa que o próprio sistema penal não pode restringir-se a identificar papéis
quando cotidianamente os impõe. Por outro lado, a ciência social ensina que os
papéis jamais são fixos, que a mesma pessoa desempenha múltiplos papéis e
que freqüentemente se esboçam conflitos entre eles. A fragmentação da vida
social e da interação conforme a papéis, ajuridificação dessas relações e a pos-
terior redução da base imputativa objetiva do injusto doloso ativo (comissivo) a
uma violação de papéis teria efeitos insuspeitados e nefastos, não só pela
despersonalização do injusto (ou sua "personalização" na acepção etimológica de
máscara teatral) como também pela impunidade sistêmica de funcionários que,
num aparato de poder estatal, atuassem ciosamente adstritos ao próprio papel.

12. Entre os casos de que se vale para ilustrar sua teoria, alude Jakobs ao
exemplo do camareiro que, sendo biólogo, dá-se conta de que a fruta que lhe foi
detenninado servisse ao hóspede é venenosa, e não se abstém de servi-la;
nega ele a imputação porque o papel de camareiro não foi defraudado, pois o
conhecimento especial de que dispunha é irrelevante por não integrar tal papel.
A solução seria diversa, imputando-se o resultado, se o camareiro(-biólogo)
escolhesse o destinatário da fruta venenosa. Na verdade, entre ambas as hipó-
teses existe a mesma diferença que se observa entre quem dispara contra uma
pessoa individualizada e quem o faz contra um grupo de pessoas. É impossível
duvidar de que o camareiro(-biólogo) reúne as condições para o domínio do
fato, sem embargo de que, no exame do tipo subjetivo, se venha a constatar que
não o exerceu. Se o camareiro não fosse biólogo e alguém o advertisse de que
a fruta sobre a bandeja que portava era venenosa a situação seria a mesma,

16
s Sobre tal tradição, extensamente, Curtius, Ernst Robert, Literatura Européia e Idade Média
Latina, pp. 141 ss. Como disse Calderon de la Barca, através do personagem que represen-
tava o Autor do auto alegórico, "si para ser/ el hombre elección tuviera,/ ninguno el papel
quisiera/ dei sentir y padecer;/ todos quisieran hacer/ el de mandar y regir,/ sin mirar, sin
advertir/ que en acto tan sigularl aque/lo es representar/ aunque piensen que es vivir" (EI
gran teatro dei mundo, p. I 08).
166
Quem atribui o papel numa sociedade é a pergunta que se fez Nino, Luis Fernando, em
Perspectivas criminológicas en el umbral dei tercer milenio, p. 44. Uma crítica cerrada em
Paulo César Busato, Fatos e Mitos sobre a Imputação Objetiva, pp. 145 ss. O caráter
contingente e mutante do conceito de "bom cidadão (buon cilladino)" foi registrado por
Beccaria (Dei DeliIli e dei/e Pene, cap. XXV).

196
cabendo buscar, na tipicidade subjetiva, a resposta sobre o efetivo domínio do
fato (em ato). Se, apesar de seus conhecimentos especiais - por ser biólogo ou
por estar advertido para a circunstância - não dominou o fato, por não ter se
detido sobre a fruta que servia ou por não ter acreditado na advertência (não
seria possível que a cozinha encaminhasse urna fruta venenosa), haverá tipicidade
objetiva, imputando-se-lhe o resultado, não porém tipicidade subjetiva, à míngua
de dolo. Não teria porém sentido algum perguntar pelo dolo quando este envol-
vesse conhecimentos especiais dos quais carecesse completamente o agente.

13. Recorrendo ao papel concebido como fonte de dever jurídico, Jakobs


elimina o problema dos conhecimentos especiais, que substitui por um standard
que definitivamente retira a importância do dolo do autor, dado irrelevante sem-
pre que não tenha defraudado as expectativas correspondentes ao papel. O
engenheiro civil - é outro exemplo de Jakobs - subempregado como capataz
de uma obra, que se adverte de que o material nela utilizado provocará um
desabamento desastroso e, apesar disso, continua a dirigir os pedreiros e a usar
o material, até que sobrevenha a catástrofe e o sepultamento nos escombros
dos trabalhadores, pennaneceria impune porque não defraudou o papel de ca-
pataz; no máximo, teria incorrido numa estranha omissão de socorro ativa
(comissiva). Tanto no caso do camareiro(-biólogo) quanto no do capataz(-en-
genheiro), os partidários da teoria da imputação objetiva confonne a papéis
refutariam a crítica afinnando que se ambos houvessem podido adotar medidas
de cuidado, e não o houvessem feito, incorreriam em tipicidade culposa. Trata-
se de outra estrutura típica, a ser examinada oportunamente; cabe, contudo,
adiantar desde logo que a pesquisa por tipicidade culposa teria conclusão nega-
tiva: nenhum deles tinha a seu cargo o dever de adquirir os conhecimentos em
concreto; o biólogo e o engenheiro, ocupando respectivamente funções de
camareiro e de capataz, bem podem não ter constatado o perigo, sem violar
com isso qualquer dever de cuidado. Mais insustentável ainda é o exemplo
jakobsiano do bom vizinho, que sabe que os terroristas predispuseram a máquina
infernal que fará voar pelos ares a casa ao lado quando ele abrir a porta de sua
própria casa, e não obstante gira a maçaneta e causa a explosão. Não há neste
mundo juiz, no gozo de suas faculdades mentais, que não reconheça neste caso
tipicidade objetiva, porque o agente dispunha de todos os elementos objetivos
necessários para dominar a causalidade, embora possa faltar a tipicidade subjeti-
va por razões tão díspares quanto não ter levado a sério o aviso sobre a máquina
infernal, ou terem-se apresentado motivos para crer que ela estava desativada,
ou mesmo, dado o caráter mecânico do ato de girar a maçaneta, ter-se esquecido
do aviso (não ter atualizado o conhecimento no momento da ação).

197
14. O papel banal considerado em abstrato, ao qual recorre Jakobs para
limitar a imputação objetiva, não tem idoneidade para fazê-lo quando, na situa-
ção concreta, o agente dele se valeu para dominar a causalidade até o resulta-
do e, portanto, para assumir o papel de autor (ou co-autor) de um delito. O
papel banal do bom vizinho, que acende a luz da frente de sua casa para evitar
que seus vizinhos tropecem ou sejam assaltados, deixa de ser banal quando a
acende para iluminar o vizinho escondido na sombra e desse modo realizar um
aporte causal indispensável ao bando de assassinos que o perseguia para matá-
lo. O papel banal do bom funcionário que cumpre com seu dever de deter
pessoas por ordem da autoridade competente (ou de averiguar e proporcionar
as informações necessárias para a detenção) deixa de ser banal quando sabe
que essas pessoas não serão submetidas a processo e julgamento, e sim execu-
tadas ilegalmente. Só em abstrato os papéis são irremissivelmente banais; nas
circunstâncias concretas nas quais são assumidos freqüentemente a banalida-
de esconde atividades extraordinárias. Mas o que escapa a essa tese é que
quando o agente assume o domínio do fato de um injusto penal, trocou de
papel. Os papéis de bom camareiro, bom capataz, bom vizinho e bom policial se
despedaçam quando, pela assunção do domínio do fato, o agente assume outros
papéis, melhor caracterizados pelas condutas típicas do veneficio, do desaba-
mento, do terrorismo e do grupo de extermínio. O erro fundamental dessa teoria
é ignorar que, quando chegam a interessar ao direito penal, os papéis banais não
são mais que disfarces que ocultam condutas típicas objetivas.

15. Embora o critério limitativo referido a papéis possa, às vezes, parecer


mais redutor do poder punitivo do que a posição por nós assumida, trata-se
apenas de uma aparência que desconsidera dados da realidade. A pretensão de
que o autor do delito não incorre em tipicidade objetiva na medida em que não
defraude seu papel, longe de ser redutora do poder punitivo, como à primeira
vista se pode ser tentado a supor, é altamente reforçadora da violência e da
seletividade do poder punitivo, porque na prática estará quase totalmente
reservada a funcionários estatais que o exercem. Não podemos esquecer a
experiência violenta do século XX, quando as guerras produziram mudanças
tecnológicas fundamentais para a agressão estatal massiva, empregada em
empreendimentos genocidas nacionais e regionais efetuados fora do marco
jurídico da guerra: ao contrário daquela do século XIX, a violência estatal massiva
do século XX - e o início do século XXI, que se vale para imigrantes pobres do
modelo dos campos de concentração, parece inclinado a segui-lo - é desfecha-
da através de cuidadosas e assépticas distribuição de papéis, chegando-se ao
extremo de que ninguém vê os mortos, convertidos em cifras 167, já que os

167
Cf. Hobsbawn, Eric, Era dos Extremos - o breve século XX.

198
avanços são avaliados por seu número, ontem no Vietnam 168 como hoje na
"guerra" às drogas. A conseqüência de limitar a imputação com base em pa-
péis fixos e abstratos seria a garantia de impotência frente ao próprio poder
punitivo descontrolado, exercido através de uma distribuição de papéis abstra-
tamente inócuos e concretamente genocidas.

VII. À guisa de síntese

1. Tanto o aumento do risco quanto a defraudação de papéis - duas


teses incapazes de superar os estritos marcos impostos pelo modelo do desvalor
de ação como núcleo do injusto 169 - constituem esforços para fundamentar a
imputação em teorias preventivistas da pena 110, que não apenas têm como
matriz comum a teoria imperativa das normas como ademais não fazem outra
coisa que antecipar todo o exercício do poder punitivo para estágios anteriores
à lesão, seja através do modelo da tentativa inidônea, da culpa ou da omissão,
com o que se retoma a um equivalente funcional da periculosidade do velho
positivismo, onde o perigo não provinha de dados do corpo - embora fosse ele
critério para a seletividade - e sim da amplitude de sua liberdade, que se con-
verte em fonte de risco 171 , e paralelamente o direito penal se transfigura em
material simbólico para a institucionalização e normalização de fidelidades du-
vidosas 172. Trata-se, em suma, de procedimentos distintos para derivar, dessas
teorias legitimantes da pena, conseqüências para o tipo objetivo, assim
subordinável interpretativamente a um desenho preventivo/imperativo da nor-

168 Cf. Karnow, Stanley, Storia de/la Guerra dei Vietnam; Bertrand Russel, Crimes de Guerra
no Vietnam.
169
Percebe essa relação, Donini, Massimo, em RIDPP, 1999, p. 40; também em Teoria dei
reato, p. 161; crítico, Hassemer, Winfried, em NFP, nº 51, 1991, p. 17 e em Três Temas de
Direito Penal, p. 55. Afirma-se que a ilimitada satisfação de segurança através do direito
penal do risco aniquila a liberdade: cf. Denninger, Erhard, em Kritische Justiz, 1998, pp. 1
ss. Afirma-se também que um direito penal de risco parece destinado a reduzir incessante-
mente o âmbito dos direitos: cf. Prittwitz, Cornelius, Strafrecht und Risiko, p. 385.
170 Às vezes expressamente (Bacigalupo, Enrique, Princípios, p. 7; Luzón Pena, Diego-Manuel,
em Fundamentos de un sistema europeo dei Derecho Penal, p. 119); com objeções ao
funcionalismo de Luhmann, Baratta, Alessandro, em DDDP, nº 2, 1985, p. 247 ss.; a partir
de outras coordenadas, Koriath, Heinz, Gnmdlagen strafrechtlicher Z11rechnung, pp. 533-
534. Uma crítica da perspectiva comunicativa à prevenção geral positiva de Jakobs em
Neumann, Ulfrid, Crítica normativa da teoria da prevenção geral positiva - 10 teses, em
RBCCrim, 2006, nº 63, pp. 268 ss.
171
Selmini, Rossella, em DDDP, 2/94, pp. 29 ss; Mosconi, Giuseppe, em DDDP, 3/94, p. 72;
Cadoppi, A. et ai., Introduzione ai sistema pena/e, v. 1, p. 31 O.
172 Especialmente através de antecipações punitivas: cf. Baratta, Alessandro, em Pena y Estado,
nº 1, 1991, p. 46; Marxen, Klaus, Der Kampfgegen das libera/e Strafrecht, pp. 133 e 177.

199
ma penal 173 • A diferença reside em que Roxin, embora refonnule a nonna (não
matarás passa a ser não criarás nem aumentarás risco para a vida), segue
tendo por base o bem jurídico afetado; mas em Jakobs - como na teoria do
puro desvalor de ação - o bem jurídico se faz completamente opaco 174. Para
Jakobs, o papel, entendido como fonte do dever jurídico, tende a transfonnar
todos os tipos em infrações de dever ou a considerar que a confiança de todos
no cumprimento do dever(= no desempenho do papel) é o único bem jurídico;
a função preventiva se limitaria a reaftnnar os papéis através da pena. Ao
fonnatar a tipicidade comissiva (ativa) dolosa no modelo da estrutura típica
omissiva 175 , Jakobs provoca uma generalização do conhecido fenômeno da maior
amplitude semântica da proibição quando o enunciado preceptivo (mandamental)
é invertido, razão pela qual se vê compelido a ensaiar um complicadíssimo e
casuístico arsenal de limitações, entre os quais a criação de uma posição de
garantidor para cada situação, tudo culminando numa contradição: recorre a
uma fórmula geral válida para a omissão imprópria como limite para a impró-
pria tipicidade omissiva, porém no âmbito da tipicidade comissiva (ativa). Tal-
vez por isso, em certo momento, se refira a omissões próprias praticadas
comissivamente.

17
Reconhece-se que, como o critério do desvalor de ação se intensificou nas modernas socieda-
J
des industriais de risco, culmina-se pelo modelo da omissão imprudente, de tal forma que o
exercício da liberdade deve considerar se seu uso perigoso pode desembocar num incremen-
to do risco, o que evoca a tradição de Kiel: Günther, Klaus, em La insostenible situación dei
derecho penal, pp. 502 ss; objeção similar em Muiloz Conde, Francisco, em Revista Penal,
nº 5, 2000, pp. 44 ss.
174
Bustos Ramirez, Juan, Manual, p. 102; outra opinião em Cuello Contreras, Joaquín, E/
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m Em sentido próximo, Herzberg, RolfDietrich, em Cuestiones actuales de la teoria dei delito,
pp. 22 ss.

200
CAPÍTULO XIV

TIPO DOLOSO ATIVO ( OU COMISSIVO DOLOSO):


FUNÇÃO CONGLOBANTE DE SEU ASPECTO OBJETIVO

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211
§ 32. TIPICIDADE CONGLOBANTE COMO LESIVIDADE
OU AFETAÇÃO DO BEM JURÍDICO

1. Lesividade ou afetação do bem jurídico


1. No marco de um empreendimento dogmático que, em seu conjunto,
aspira a reduzir o poder punitivo, a elaboração do conceito de tipo não pode
resignar-se a fazer dele apenas a base para o dolo no tipo subjetivo, num estéril
jogo de simetria teórica. A construção da tipicidade objetiva não se limita, as-
sim, à função de estabelecer o pragma típico, mas também deve constatar sua
conflitividade, como requisito indispensável. Sem conflitividade, como carac-
terística essencial do pragma típico, seria intolerável qualquer exercício de po-
der punitivo.

2. O tipo objetivo não se esgota na correspondência com qualquer pragma,


mas tão somente com um pragma conflitivo; constatar tal conflitividade consti-
tui passo indispensável para a verificação da tipicidade objetiva. O pragma
típico se determina desde logo pela função sistemática, que importa um âmbito
máximo de antinormatividade, porém só se confirma com a simultânea
constatação de sua conflitividade, procedimento que pode culminar em sua
exclusão ou redução, sem jamais ultrapassar o máximo rudimentar estabeleci-
do pela tipicidade objetiva sistemática. Por isso, pela necessidade de constatar
a conflitividade, imposta pela requisição jurídica geral da alteridade e pelo obje-
tivo político redutor da construção, cabe distinguir dentro do tipo objetivo um
tipo que dê conta de tal objetivo: o tipo conglobante.

3. A tipicidade conglobante cumpre sua função redutora constatando a


existência de um conflito (conjlitividade), o que implica uma lesiyidade pbjet\7
vamente imputável a um agente (domin~bilidade) . J\tray~s µ~ fµnç~A
conglobante do tipo objetivo se estabelece a própria existência do conflito, o
que pressupõe comprovar tanto sua lesividade quanto seu pertencimento a
um sujeito. É inconcebível a criminalização de um pragma que não implique
qualquer ofensa a outrem (representado no bem jurídico). Não existe
conjlitividade quando a ação não ofende ninguém, nem tampouco quan-
do, mesmo existindo uma ofensa, não pode ela ser filiada ao sujeito como
obra sua. A tipicidade objetiva do pragma se reconhece nas respostas cumula-
tivas a um quê e a um quem. Não faz sentido perguntar-se sobre a imputação
objetiva de um pragma que não seja lesivo (e, portanto conflitivo); porém um
pragma, mesmo lesivo, que não seja imputável a ninguém não é, na verdade,

212
conflitivo, e sim acidental. Para haver conjlitividade, é preciso que haja
ofensa e sujeito imputado. Na falta de qualquer um desses dois elementos
não há conflito. Uma ação e um resultado não lesivo só constituirão um pragma
juridicamente indiferente; uma ação e um resultado lesivo porém não imputável
objetivamente a alguém só constituirão um acidente. Para cumprir sua tarefa, a
tipicidade conglobante deve constatar tanto a lesividade do pragma quanto seu
pertencimento a um agente: sem a primeira não há conflito porque não há
interação jurídico-penal (sinalizada pela ofensa ao bem jurídico); sem o segun-
do também não há conflito porque, embora presente a ofensa (por lesão ou por
perigo) ao bem jurídico, não decorreu ela de conduta humana. Constata-se a
lesividade verificando-se: a) desde logo, se o pragma afetou verdadeiramente
um bem jurídico (constitucionalmente legitimado e cuja ofensa é proibida por
norma); b) se tal afetação (por lesão ou por perigo) foi substancial, significati-
va; e) se não incidem outras normas que, recortando e limitando o alcance
proibitivo da norma deduzida do sentido semântico do tipo isolado, o invalidem,
descaracterizando assim a afetação do bem jurídico. Constata-se a imputação
verificando-se: a) se o agente, em posição de autor, teve a dominabilidade obje-
tiva; b) se o agente, em posição de partícipe, deu ao fato uma colaboração
causal relevante, não trivial ou corriqueira.

4 . Como operação determinante da lesividade, a conglobação constitui


umafanção claramente normativa. Um pragma não é típico simplesmente por
reunir os elementos característicos do respectivo tipo sistemático, exigindo-se
ademais seja ele antinormativo, ou seja, que efetivamente viole a norma dedutível
do tipo realizando a ofensa ao bem jurídico. O alcance proibitivo dessa norma não
é contudo aferido apenas a partir de sua consideração isolada, a partir de sua
mera dedução lógico-formal: ela integra um universo de normas proibitivas ou
preceptivas, vinculáveis a princípios, que instituem uma ordem normativa. O prin-
cípio republicano postula que as sentenças respeitem o princípio da coerência
ou da não-contradição, e para isto devem elaborar o material legal - e as
normas que dele são deduzidas - como um todo ordenado e coerente, onde ou-
tras normas penais ou de outros ramos do direito público- muito especialmente o
constitucional - ou de direito privado são convocadas a participar da demarca-
ção. Só a partir desse universo de normas será possível demarcar o alcance
proibitivo da norma particular. Sem que previamente se proceda à dedução da
norma (deonticamente ínsita no tipo legal) e sem sua conglobação à ordem
normativa é sempre impossível determinar se a ação que faz parte do pragma
típico afetou um bem jurídico, ou seja, se ela é ou não lesiva do bem jurídico.

5. Para a elementar racionalidade que o princípio republicano requisita


de toda decisão judicial, seria inadmissível criminalizar uma ação que não

213
ofende outrem, ou considerar proibida a ação que outra norma ordena ou fo-
menta. Os juízes estariam exercendo um poder absolutamente irracional se
condenassem alguém cuja ação não ofendeu a ninguém. Não podem os juízes
interferir nas decisões dos cidadãos acerca de seus direitos, pois sob o pretexto
de proteger tais direitos na verdade estariam perturbando seu legítimo exercício
por parte dos titulares que deles, por consentimento ou acordo, resolvam dispor.
Também configuraria intolerável ingerência a pretensão de punir alguém por cau-
sa dos riscos inerentes a suas atividades - no entanto permitidas e até mesmo
fomentadas, como por exemplo a regular fabricação de automóveis, annas,
formicida, seringas etc. -; tais riscos devem considerar-se permitidos.

6. Cabe aqui reafirmar a vigência da teoria da tipicidade conglobante


como construção que enseja soluções para os problemas de lesividade e de
imputação objetiva refugindo a concessões preventivistas. Na sua versão
originaI1, a tipicidade conglobante operava como corretivo da tipicidade objeti-
va e subjetiva. Seus postulados devem, em boa parte, transferir-se à tipicidade
objetiva para resolver os problemas de redução da proibição de modo prévio à
tipicidade subjetiva, porque sem o cumprimento dos pressupostos imputativos
objetivos a pergunta sobre qualquer outra ulterioridade careceria de sentido. A
despeito dessa mudança no momento de análise, segue sendo correto sustentar
que o erro sobre os elementos da tipicidade conglobante constitui, via de regra,
erro de proibição e só excepcionalmente erro de tipo, com o que essa constru-
ção não perde significado prático2, pois sua função é solucionar questões de
lesividade e imputação, sendo indiferente que não promova maiores alterações
na teoria do erro.

7. A consideração conglobada da norma que se deduz do tipo limita seu


alcance em função das outras normas do universo ou ordem normativa de que
faz parte, excluindo a lesividade quando: a) não haja afetação do bem jurídico,
ou tal afetação seja insignificante; b) a exteriorização da conduta do agente
corresponda objetivamente à conduta que teria o dever jurídico de fazer nas
mesmas circunstâncias; e) a exteriorização da conduta do agente corresponda
objetivamente a um modelo de conduta que o direito fomenta; d) interponha-se
um acordo ou uma assunção do risco por parte do sujeito passivo; e) o resulta-
do não exceda o marco da realização de um risco permitido.

8. Esses pressupostos ou requisitos da lesividade, incluídos na tipicidade


objetiva, não derivam da prévia admissão de qualquer dogma do Estado ou
legislador racional, ou seja, não estão fundamentados em nenhuma legitimação
1
Zaffaroni, Manual, 1977.
2
Cf. Sancinetti, Marcelo, Sistema de la teoria dei error, p. 13.

214
do poder punitivo, mas, ao contrário, apenas na necessidade de contê-lo e limitá-
lo. É inegável a absoluta irracionalidade de pretender-se punir a ação que não
ofende - por lesão ou por exposição a perigo - ninguém (seja por não afetar o
bem jurídico, seja por afetá-lo de modo insignificante, seja porque o sujeito
passivo despiu-se desta condição ao concordar com a conduta do agente ou ao
assumir o risco do resultado) ou tomar por proibido aquilo que se ordena fazer,
o que se fomenta e estimula, ou finalmente que configura a realização de riscos
permitidos associados a atividades lícitas e incentivadas.

9. Num segundo momento3, a tipicidade conglobante operará


redutoramente excluindo do âmbito da tipicidade objetiva ações que não
conseguem objetivamente dominar o curso dos acontecimentos. Constitui-
ria inadmissível retomo à responsabilidade penal objetiva transigir com o fato
de responder alguém por algo que não conseguiu controlar ou gerir (dominar).
Um sucesso indominável não pode ser lançado à conta de alguém, como tam-
bém ações triviais e corriqueiras não podem ser criminalizadas4. O estabeleci-
mento desses limites não invoca deduções que partam de pretensas funções
preventivas do poder punitivo; é suficiente convir em que da irracionalidade geral
do poder punitivo não cabe extrair a admissão de uma irracionalidade absoluta.
Também em seu segundo momento (imputativo) a tipicidade conglobante dispen-
sa fundamentar-se em premissas legitimantes do poder punitivo.

II. O conceito de bem jurídico


1. O bem jurídico é um conceito indispensável para dotar de eficácia o
princípio da lesividade5, mas de nenhum modo é um conceito legitimante do

3 Cf. infra, § 33.


4
Ibidem.
5 Isto sempre foi evidente nós momentos teóricos mais liberais, porém encoberto pelo idealismo
hegeliano, pelo positivismo biológico policial e pelas concepções penalisticas de regimes
ditatoriais, como o nazista. A posição liberal originária foi expressa por Feuerbach (Lehrbuch,
Giessen, 1801, p. 20), que no entanto referia a ofensa a um direito subjetivo da vítima ou a
direitos do Estado (Lehrbuch, § 20), tal qual fariam na Itália Carmignani (E/ementa,§§ 119
ss.) e Carrara (Programma, §§ 96 ss.}, cuja influência conduziria tal visão à Exposição de
Motivos do código Zanardelli. Sobre Feuerbach, Cattaneo, Mário, Feuerbach, pp. 86 ss., e
//uminismo e /egis/azione; Eser, Albin, em RIDPP, 1997, pp. I 06 I ss.; Fischl, Der Einjluss
der Aujkliimngsphi/osophie, pp. 88 ss.; Moos, Reinhard, Der Verbrechensbegriff in
Ôsterreich. Deve-se a designação de bem jurídico, embora compreendido como objeto
material afetado, a Birnbaum, Johann Michel Franz, Über das Erfordeniss einer
Rechtsverletwng zum Begriffe des Verbrechens, em Archiv des Criminalrechts, Halle, I834,
nº I 5, pp. I 49 ss. O encobrimento hegeliano provém da idéia reguladora de "vontade geral "
(Hegel, Filosofia do Direito,§§ 84 a 96; no mesmo sentido, Schmidt, Richard em Gerischtssaal,

215
poder punitivo (de lege lata ou de lege ferenda)6. Não se deve confundir o
uso limitativo-redutor do conceito de bem jurídico com seu uso legitimante:
este último acaba cunhando um verdadeiro conceito legitimante diferenciado,
que é o pretenso bem jurídico tutelado. O mito de um bem jurídico protegido
ou tutelado, que se racionalizou na teoria imperativista do direito, pressupõe
aceitar a eficácia tutelar do poder punitivo consagrada de fonna pretensamente
dedutiva: se uma nonna proíbe uma ação que ofende o bem jurídico, é porque
o protege (e, portanto, a pena adquire um sentido policial preventivo). Trata-se
de conclusão que logicamente não se logra extrair da premissa, produzindo um
juízo com valor de verdade falso (as normas penais tutelam os bens jurídi-
cos), como a operatividade real do poder punitivo demonstra.

2. O conceito legitimante de bem jurídico (bem jurídico tutelado) é produto


de uma confusão entre o caráter fragmentário da legislação penal e o seu caráter
sancionador. Na verdade, a legislação penal não cria bens jurídicos: são eles
criados pela Constituição, pelo direito internacional a ela incorporado e pelo resto
da legislação (civil, comercial, administrativa etc) com ela compatível. Nesses
âmbitos, sim, é possível entrever bens jurídicos tutelados pelas respectivas nor-
mas que os criam e disciplinam. A lei penal pode apenas, eventualmente, demar-
car alguma ação que ofenda o bem jurídico de certo modo, porém sua natureza
fragmentária não lhe faculta outorgar uma verdadeira tutela (toda e qualquer
ofensa ao bem jurídico que não observe estritamente o modelo típico é indiferente
para a lei penal). O direito penal recebe o bem jurídico já tutelado e a nonna que
se deduz do tipo não faz mais do que anunciar um castigo para certas formas bem
demarcadas e isoladas de ofensa a ele, mesmo quando o faça por expressa obri-
gação constitucional. Essa obrigação determina a criminalização primária de al-
gumas ações que afetam o bem jurídico, porém mesmo que a obrigação não
existisse o bem jurídico continuaria existindo.

3. O conceito limitativo de bem jurídico exige, como pressuposto de todo


exercício de poder punitivo, a afetação de um bem tutelado pelo direito (cons-

1913, 81, pp. 241 ss.). A lesividade reduzida à afetação do "interesse estatal" em Hegler
(ZStW, 36, 1915, p. 27); em sentido crítico a Hegler, Marx, Michael, p. 6. A lesividade em
sentido naturalístico em Liszt (Lehrbuch, 1919, p. 4; ZStW, 6, 1886, pp. 663 ss., 3, 1883,
pp. 1 ss. e 8, 1888, pp. 1 ss. ); em sentido jurídico, Binding (Die Normen, 1, pp. 132 ss. e
Handbuch, 1, p. 169); pormenorizadamente, Kaufmann, Annin, Lebendiges und Totes in
Bindings Normentheorie - trad. arg. E. Bacigalupo e E. Garzón Valdés, Teoria de las
Normas, B. Aires, 1977, ed. Depalma; trad. bras. R. P. Netto, Teoria da Norma Jurídica,
Rio, 1976, ed. Rio). Monumental reconstrução contemporânea da lesividade em Ferrajoli,
Diritlo e Ragione. Na literatura brasileira, Fragoso, Heleno, Objeto do crime; Regis Prado,
Luiz, Bem Jurídico-penal e Constituição; Pelarin, Evandro, Bem Jurídico-penal.
6
Assim, expressamente, Gropp, Walter, Strafrecht, p. 38; Wessels, Johannes - Beulke,
Wemer, Strafrecht, p. 2.

216
titucional, internacional, privado etc). Sustentar a existência de um bem jurídico
penalmente tutelado importa reconhecer uma função constitutiva - e não
sancionadora-à lei penal, e portanto abrir caminho a uma concepção completiva
- e não fragmentária. Mesmo quando a pretensa tutela jurídico-penal se pro-
clame subsidiária (ou complementar7) e se anuncie limitá-la com a cláusula
da ultima ratio, é inegável que importa numa natureza fundante também com-
plementar, pois leva à distinção entre bens juridicamente tutelados e bens
jurídico-pena/mente tutelados e, em última instância, a extensão dos segun-
dos dependerá da medida em que a ultima ratio seja acolhida pela decisão
política criminalizante, sempre determinada por conjunturas de poder, por de-
mandas publicitárias do populismo penal: as emergências desnudam o uso opor-
tunista da ultima ratio8•

4. Que o conceito limitativo de bem jurídico se tenha pervertido num con-


ceito legitimante, que faculta metodologicamente uma criminalização ilimitada,
é prova suficiente de sua incapacidade para a tarefa redutora. Quem não defi-
ne para quê serve a pena está impossibilitado de distinguir entre poder punitivo
legítimo e ilegítimo, e também de indicar ao poder político até onde seria legíti-
mo criminalizar: simplesmente a criminalização avança até onde não se apre-
sente poder jurídico para contê-la. Em outras palavras: o estado de polícia
sempre avança até onde o estado de direito consentir. Mas os equívocos do
conceito legitimante de bem jurídico não nos devem conduzir a descartar o
conceito limitativo, a despeito de sua inaptidão para a tarefa redutora. Liberto
de toda pretensão legitimante, o conceito de bem jurídico empresta-se como
instrumento de contenção ao juiz, perguntando pela lesividade no caso concre-
to. Toda tentativa de empregar o conceito limitativo como regra para o legisla-
dor o desvirtua e neutraliza, e o desencanto que isso provoca, se traduzido na
renúncia ao próprio conceito, termina por ensaiar um abandono do princípio da
lesividade. Entre os extremos do entusiasmo e da decepção, cabe realisticamente
perceber no conceito limitativo de bem jurídico um útil instrumento para conceder
expressão dogmática ao princípio da lesividade9• Sem embargo das boas
intenções de quem deseja impor limites ao legislador através do bem jurídico,
mesmo baseando-o na Constituição'º, o resultado deságua sempre numa teoria
legitimante, e logo a limitação se converte em legitimação. Por vezes esses esfor-
ços incorporam elementos que não pertencem propriamente ao campo do bem

7
Muito claramente em Roxin, Tratado, p. 25 e JuS, 1966, p. 377.
8
Moccia, Sergio, La perenne emergenza.
9
Reduzindo-o a ataques lesivos a pessoas de carne e osso, Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 477;
em geral, Valenti et alii, lntroduzione, p. 242; Octavio de Toledo y Ubieto, em ADPCP, 1990,
pp. 5 ss.
'º Assim, Roxin, p. 15.
217
jurídico, mas servem para estabelecer as bases do princípio da proscrição da
grosseira inidoneidade da criminalização' 1, cabendo ressalvar-lhes essa virtude.

5. Entre o conceito legitimante de bem jurídico (bem jurídico "tutelado"


pela lei penal) e o conceito limitativo ou garantidor (bem jurídico afetado
pelo delito) existe um abismo: trata-se de duas idéias diferentes, nascidas em
conjunturas históricas distintas e distantes, com objetivos políticos diametralmente
opostos. O bem jurídico exprime um conceito logicamente necessário, do qual
não se pode prescindir 12 • Quando se pretende sua supressão, na verdade se
oculta outro bem jurídico e outro titular13 • A idéia de tutela é indispensável para
legitimar a expropriação do conflito da vítima que introduz a pena pública, apre-
sentando-se desde o estabelecimento do poder punitivo (séculos XII e XIII). O
requisito da lesividade (ou ofensividade, ou conflitividade) como condição da
criminalização aparece no quadro da revolução burguesa, da Ilustração (século
XVIII). É possível reconhecer - avant-la-lettre - o conceito de bem jurídico
tutelado no Malleus Maleficarum, enquanto o conceito limitativo tem sua cla-
ra origem em Feuerbach, embora o identificasse como direito subjetivo, tam-
bém ele trabalhando antes que Birnbaum cunhasse a expressão "bem jurídico"
em 1834, expressão que penetraria na dogmática do século XX como elemento
teleológico na teoria de von Liszt 14 .

6. O desprezo pela importância do bem jurídico na doutrina alemã se


apresenta nos dois momentos de Bonn: o injusto subjetivo e o funcionalismo
de Jakobs 15 • Para o primeiro, cujo caminho fora preparado em parte pela
eticização welzeliana, a redução do ilícito à infração da norma de determina-

11
Supra,§ 12 (v. I, pp. 239 ss.).
12
Ainda que se sustente a impossibilidade de voltar ao "bom e velho direito penal liberal",
Lüderssen, Klaus, Abschajfen des Straji·echts?, p. 383, adquire uma posição relevante agora
em Mir Puig, Santiago, Derecho Penal (prólogo à 4" edição), antes também em ADPCP,
1994, pp. 9 e 27, nota 40; como justificação externa do castigo, Yassalli, Giuliano, em Scrilli
in memoria di Ugo Pio/e/li, p. 35; Trechsel, Stefan, Schweizerisches Strafrecht, p. 76.
13
Claramente sobre o nazismo, Dahm, Georg, em ZStW, 57, 1938, pp. 225 ss.; Schaffstein,
F., em Deutsches Strafrecht, 4, 1937; Gallas, Wilhelm, em Fest.f Gleispach, p. 50; sob o
funcionalismo sistêmico, Jakobs, p. 55. A argumentação chegou ao extremo de considerar
que existem riscos permitidos que afetam bens jurídicos, assim identificando qualitativa-
mente o risco da circulação viária e o genocídio. Chama a atenção que se ignore a evidência
de que efetivamente há fatos que afetam mais diretamente bens jurídicos do que o simples
risco permitido e não constituem delito, e que por efeito do principio constitucional da
legalidade nunca pode haver delito que não lesione nada (assim, Lesch, Heiko Hartmut, Die
Verbrechensbegriff. p. 230; críticos com estas posições, Marinucci, Giorgio - Dolcini,
Emílio, Corso, pp. 352 ss.).
14
Em Der Zweckgedanke, pp. 1 ss.; no Lehrbuch, p. 132 (§ 32, I, 2).
is Cf. Bustos Ramírez, Juan, Manual, p. 102; Hormazábal Malareé, Hemán, Bien jurídico y
estado social y democrático de derecho, p. 68.

218
ção (ato final contrário ao dever) 16 e a relegação do resultado a mera
condição de punibilidade logicamente conduziam a um deslocamento do con-
ceito de bem jurídico e de sua afetação. Para Jakobs, o bem jurídico-penal
é a validade fática das normas, que garante que se possa esperar o
respeito aos bens, aos papéis e à paz jurídica' 1• Tal opinião provém não
só de sua teoria dos papéis, mas também de admitir a existência de delitos
sem afetação do bem jurídico, como seriam certos delitos de dever que ele
constrói como violação do papel (referindo-se a tipos nos quais o autor
descumpre obrigações - funcionais, por exemplo - e a inobservância dopa-
pel significaria a não produção do bem jurídico). Jakobs nega, portanto, que o
núcleo material de todos os delitos seja a ofensa a um bem jurídico, embora
não compartilhe da redução de todos os delitos à violação de um dever, ao
estilo da escola de Kiel 18 • Distingue-se neste aspecto Jakobs da escola nazis-
ta porque, ao contrário dela, não fundamenta a imputação numa Gesinnung,
numa disposição interior, mas sim na violação de um papel, e também admite
a co-existência de delitos de afetação e delitos de violação do papel atribuído
por uma instituição. É inegável a relativização jakobsiana do bem jurídico,
que parece reduzir-se ao interesse estatal no adimplemento das obrigações
derivadas dos papéis normativizados 19 • Não se pode ignorar que sempre que
se enuncia o conceito de bem jurídico através de uma generalização, seja o
são sentimento do povo ou seja a validez das normas, está-se reduzindo a
complexa e multifária diversidade dos bens jurídicos a um bem único, ensaio
que tem como precedente Hegel ao caracterizá-lo como lesão à vontade
geral 20• Do mesmo modo, a essência do injusto como violação da norma re-
mete a Binding. Como antecedente funcionalista - embora ancorado em
Parsons - cabe mencionar Knut Amelung, que busca um conceito material
fundado no dano social, o que também conduz a um bem único, carente de

16 Zielinski, p.160, radicalizou essa colocação, que no entanto provém de muito antes, desde
quando Merkel, contra toda a doutrina de seu tempo, não encontrava diferença essencial entre
o delito consumado e o tentado (Derecho Penal, p. 172). Crítica com a perspectiva ex ante
pela identificação do injusto com o perigo e a infração de um dever do nonnativismo idealista,
que suprime a idéia de lesividade, Gelardi, Michele, // dolo specifico, p. 11 O; a mesma objeção
em Donini, Massimo, em RIDP.P, jan.-mar. 1999, p. 40; colocação também objetada pelo
individualismo liberal, Nozick, Robert, Anarquia, Estado y Utopia, p. 85 e pela moderna
escola de Frankfurt, Günther, Klaus, em La insostenible situación ... , pp. 502 ss.
17 La imputación objetiva, p. 58; mais explícito em ADPCP, 1994, pp. 137 ss. e em Ciencia
dei derecho: técnica o humanística?, p. 27; crítico, Parodi Giusino, Manfredi, / reati di
perico/o Ira dogmatica e politica criminale, p. 88.
11 Sobre a negação do conceito de bem jurídico no estado nazista, Marxen, Klaus, Der Kampf
gegen das libera/e Strafrecht, p. 133.
19 Em sentido aproximado Lesch, H., Jntervención delicliva, p. 40.
2° Filosofia do Direito, §§ 84-96; interessante análise em Bobbio, Norberto, Est11dios de
Historia de la Filosofia: de Hobbes a Gramsci, p. 218.

219
todo poder limitador 1. Como expressão dogmática do princípio da lesividade,
que encarna no âmbito penal o problema geral da exterioridade e alteridade
do direito, corresponde ao bem jurídico representar teoricamente o(s) outro(s),
sem o(s) qual(is) pode existir - salvo no estado de polícia - apenas uma
questão moral, não porém jurídica 22 .

7. É compreensível que a tensão entre dois conceitos com objetivos polí-


ticos antagônicos (o legitimante e o limitativo) tenha propiciado uma enorme
quantidade de visões teóricas sobre o bemjurídico 23 e inúmeras iniciativas para
ocultar seus problemas ou mesmo suprimir o próprio conceito. O ponto de vista
que constrói o conceito limitativamente, empenhado em conter poder punitivo,
aproxima-se inevitavelmente de sua originária concepção liberal. Há muitas
décadas essa idéia foi reformulada em termos atuais, caracterizando o bem
jurídico como relação de disponibilidade de uma pessoa com um objeto24 •
É preferível hoje concebê-lo como relação de disponibilidade de um sujeito
com um objeto, já que às vezes os sujeitos não são pessoas e outras vezes não
são pessoas com existência atual. Embora comumente sejam os bens jurídicos
caracterizados pelo objeto (patrimônio, liberdade etc), sua essência reside na
relação de disponibilidade do sujeito com esses objetos, e não nos próprios
objetos. A idéia de disponibilidade é criticada, principalmente por autores que
classificam os bens jurídicos em disponíveis e indisponíveis, classificação que
se contrapõe frontalmente à disponibilidade como característica essencial do
conceito 25• Este mal-entendido deriva da identificação de disposição com des-
truição. A destruição configura um limite - pouco usual - da disponibilidade,
porém no Estado social e democrático de direito a forma ordinária de disponibi-
lidade é o uso, o desfrute do objeto da relação. Neste sentido, a vida aparece
como o mais disponível de todos os bens jurídicos, já que a cada instante se
dispõe do tempo sempre limitado da vida. Os casos aos quais habitualmente se
recorre para negar o conceito de bem jurídico como disponibilidade são o su icí-
dio e a dissolução do Estado. Perceba-se que esses casos pressupõem a
perda pelo sujeito, de uma só vez e para sempre, de todos os bensjuridicos (e

21
Amelung, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesel/schaft, p. 286.
22
Batista, Nilo, Introdução Critica, p. 91.
23 Cf. Polaino Navarrete, E/ bien jurídico en e/ derecho penal; Honnazábal Malareé, Bien
jurídico y Estado social y democrático de derecho.
24
Sina, Peter, Die Dogmengeschichte des strafrechtliche Begriff Rechtsgut, p. 102; outra
opinião, Marx, M., op. cit., p. 67.
25
Quando os direitos deixam de ser disponíveis na verdade se converteram em direitos de
outro ente distinto do indivíduo, agora reduzido a mero sujeito obrigado; quando não se
reconhece a disponibilidade separa-se o inseparável; sem referência à/acuidade de exercê-
/os os direitos perdem seu sentido; analogamente, Roxin, pp. 462-463; identicamente,
Rudolphi, em ZStW, 1974, p. 87; Stratenwerth, em ZStW, 1956, 68, p. 43.

220
não só da vida ou do Estado): a destruição da própria vida faz desaparecer o
sujeito, e a destruição do Estado aniquila toda possibilidade de categorização jurí-
dica dos objetos. Por isso, no caso do suicídio adota-se geralmente a precaução
de restringir objetivamente a disponibilidade, só exercitável pela prática direta do
próprio sujeito. No caso do Estado, ele mesmo um bem jurídico de sujeito múlti-
plo, não pode um sujeito isolado exercer individualmente a disponibilidade, carac-
terística comum de todos os bens jurídicos de sujeito múltiplo (como o modesto
furto de coisa comum - art. 156 CP - didaticamente nos ensina).

8. Como decorrência do princípio da lesividade, o Estado não pode impor


uma moral: o Estado paternalista - imoral - se choca com a autonomia moral
da pessoa, garantida constitucionalmente26• Portanto, é inadmissível possa a
moral constituir um bem jurídico e, ao contrário, o âmbito da autonomia moral
da pessoa configura sem dúvida um bem jurídico constitucionalmente criado e
protegido. Observa-se na legislação penal comparada - a despeito da onda
conservadora em curso - uma tendência à desaparição de tipos legais autoritá-
rios ou com conteúdos moralistas. Talvez o caso mais notório na legislação
brasileira seja a posse de droga ilícita para uso próprio (art. 28, lei nº 11.343, de
23.ago.06) que enseja extenso debate27• A punição do suicida através da nuli-
dade do testamento desapareceu das leis modernas e a autolesão só é punível
se e quando transcenda da ofensa à própria integridade corporal para afetar o
patrimônio alheio (como na fraude para receber seguro - art. 171, § 2°, inc. V
CP) ou eludir o dever de serviço militar (como na criação de incapacidade
física - art. 184 CPM). Nestes casos, por certo o bem jurídico não é a própria
integridade fisica do sujeito que se autolesionou.

9. Um caso particular de inadmissibilidade constitucional de um bem jurí-


dico reside na chamada legislação penal simbó/ica28 , designação que abran-

26 Cf. v. 1, § \ 1(p. 225).


27
r~ra ampla informação sobre esse debate, Carvalho, Saio de, A Política Cri111inal de Drogas
no Brasil, Rio 2006, ed. L. luris; Karam, Maria Lúcia, De Crimes, Penas e Fantasias,
Niterói, 1991, ed. Luam; Malaguti Batista, Verinha, O Tribunal de Drogas e o Tigre de
Papel, em Rev. Est. Criminais, nº 4, ITEC, 200 I. Os comentadores da nova lei mais antenados
com o debate político-criminal insurgem-se contra a criminalização do uso: assim Bizzotto,
Alexandre - Brito Rodrigues, Andreia, Nova Lei de Drogas, Rio, 2007, ed. L. Iuris, pp. 40
ss.; Sabbá Guimarães, Isaac, Nova Lei Antidrogas, Curitiba, 2007, ed. Juruá, pp. 23 ss. Para
a discussão no marco da doutrina e jurisprudência argentina, Bergalli, Roberto, em NPP,
I 976, pp. 375 ss.; Malumud Goti, J., em DP, 1979, p. 859; Nino, Carlos, Fundamentos de
derecho constitucional, pp. 315 ss.
21 Terradillos Basoco, F unción simbólica y objeto de protección dei derecho penal, p. 9; Hassemer,

Winfried, Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos, p. 23; Baratta,


Alessandro, Funciones instrumentales y simbólicas dei derecho penal, p. 37; Edwards,
Susan, lafunción simbólica dei derecho penal: violencia doméstica, p. 83; Berdugo Gomez

221
ge o conjunto de casos nos quais a criminalização primária constitui mero dis-
positivo publicitário, que acena com uma solução ilusória (punitiva) para confli-
tos que sensibilizaram, por efeitos indesejáveis reais ou por inoculação midiática
de medo, a população. Rigorosamente, sabe-se - e, por vezes, confessa-se -
que nesses casos não se obterá através da legislação penal qualquer dos resul-
tados que a mística preventivista oferece, talvez mesmo agravando o proble-
ma. Contudo, o emprego do sistema penal no tratamento do assunto, ou a
exacerbação de penas, ou a flexibilização de garantias processuais etc, sempre
preconizados pela imprensa, tem um efeito tranqüilizador sobre as redações -
e, logo, sobre a opinião pública. A escassa capacidade transfonnadora do poder
punitivo fica ainda mais evidente quando ele é deslocado, ao sabor de campa-
nhas e emoções, para campos mais adequadamente regidos por modelos de
solução distintos da rígida e infecunda decisão penal. A legislação penal simbó-
lica representa apenas um embuste manipulador do eleitorado.

1O. Os pretextos invocados pelo legislador penal simbólico são protéicos,


tão mutantes como as emergências, representando quase sempre uma respos-
ta a campanhas da mídia. Encerrada a campanha, o caudal de poder punitivo
facilitado por essas leis se projeta em situações posteriores, que nada teriam
em comum com os pretextos originais. Seus traços característicos costumam
ser bens jurídicos manifestos pouco definidos, plásticos e coletivos (meio ambi-
ente, ordem econômica, saúde pública, paz pública, crime organizado etc) e
afetação de semelhantes bens jurídicos através do chamado perigo abstrato 29.
Em tais casos apresentam-se dois bens jurídicos: um é manifesto e o outro é
latente ou real. A legislação penal simbólica cumpre ou pretende cumprir uma
função diferente daquela referida ao objeto que menciona: constatada sua fun-
ção meramente simbólica, o bem jurídico manifesto toma-se um personagem
secundário, enquanto o bem jurídico latente ou real é o prestígio do Estado
como provedor de soluções para conjlitos 30 ou ainda, mais especificamente,
a capacidade do poder punitivo de prevenir e solucionar conflitos. Inefi-
caz para preservar ou restaurar o bem jurídico manifesto, a lei penal simbólica
tem por único objetivo salvar a imagem pública da capacidade resolutiva

de la Torre, Sobre /afunción simbólica de la legislación penal antiterrorista espanola, p.


91; Bustos Ramirez, Juan, Necesidad de pena.función simbólica, bien jurídico y medio
ambiente, p. 1O1; Wolf, Paul, Megacrimina/idad ecológica y derecho ambiental simbólico,
p. 111, todos em Pena y Estado, nº I; Sanguiné, Odone, em Revista Port. de Ciencia
Criminal, 1995, 5, pp. 77 ss.
i, Cf. Roxin, pp. 355-356; com objeção a sua classificação para salvar o princípio da culpabi-
1idade, Bohnert, em JuS, 1984, p. 182; no mesmo sentido, Meyer, A., Die
Gefahrlichkeitsdelikte, p. 213; um estudo crítico sobre a disseminação pós-moderna dos
crimes de perigo no Brasil em Cabral, Juliana, Os Tipos de Perigo e a Pós-modernidade.
30
Manna, Adelmo, Bene dei/a personalità e limiti dei/a protezione pena/e, pp. 651 ss.

222
do Estado. O mais importante a seu respeito não é perguntar pelo bem jurídico
manifesto, que sabidamente não está em jogo; a pergunta certeira deve orien-
tar-se na direção da tolerância de que um falso prestígio do Estado possa
erigir-se em bem jurídico. Como é evidente o contraste de tal assertiva com
a ética republicana, é indubitável que um Estado de direito não pode tolerar
que uma falsa imagem de si mesmo se erija em bem jurídico. Nenhuma
disposição constitucional permite outorgar ao embuste (subjacente a toda lei
penal simbólica) a hierarquia de bem jurídico. O juiz que aplica incondicional e
acríticamente uma lei penal simbólica deveria enfrentar problemas de consci-
ência ao julgar um caso simples de publicidade enganosa.

11. Como decorrência do princípio da lesividade, não existe tipicidade sem


ofensa a um bem jurídico, podendo tal ofensa consistir numa lesão (dano) ou
num perigo31 • Nas últimas décadas temos assistido à crescente proliferação de
tipos de perigo ou de antecipação do momento consumativo para estágios prévios
à lesão, o que complicou o tema, pois o âmbito da matéria proibida excede visivel-
mente o dos tradicionais crimes de perigo. É comum a classificação dos tipos
penais, segundo a ofensa ao bem jurídico, em crimes de dano (ou de lesão) e
crimes de perigo, subdividindo-se estes últimos em crimes de perigo concreto
e crimes de perigo abstrato32 • A multiplicação dos tipos de perigo abstrato atraiu

31
Não poderia ser diferente.já que- como requisito da alteridade presente em toda dimensão
do jurídico -começou-se a falar do infrator na medida em que existiu a vítima (cf. Moreno
Hemández, Moisés, em Teorías actuales en el derecho penal, p. 355). Para certos danos
nos quais a punição parece excessiva, Nino, Carlos S., Fundamentos de Derecho Constitu-
cional, p. 261.
32
Maurach, p. 238; outro critério, Mezger, Lehrbuch, 1949, pp. 193 ss.; os delitos de perigo
concreto como crise aguda do bem jurídico, que ocorre quando foi ultrapassado o momento
em que se poderia com certeza evitar um dano mediante providências defensivas normais,
em Demuth, Der normative Gefiihrbegriff, p. 205; em qualquer caso o perigo exige uma
probabilidade qualificada de superveniência do resultado, Figueiredo Dias, Jorge de, Direito
Penal Português, p. 441; aceita a existência de um perigo concreto quando, segundo as leis
causais conhecidas, as circunstâncias deveriam ter ensejado a lesão do objeto, que por
alguma razão inexplicável, contudo, não ocorreu, Horn, Konkrete Geflihrdungsdelikte, p.161;
para Roxin, que equipara os crimes de perigo aos crimes culposos sem resultado, como mera
infração de dever (pp. 356-357), a fórmula de Horn estreitaria demasiadamente o conceito
de perigo concreto (pp. 352-353); já se observou que com o perigo abstrato se expõem a
perigo outros bens jurídicos, como o princípio da culpabilidade (Kratzsch,
Verhaltenssteuerung und Organisation im Strafrecht, pp. 11 O); Kindhaüser sustenta haver
perigo concreto quando já não for possível intervir finalisticamente para evitar o dano
(Gefiihrdung ais Strafrecht, p. 202). Afirmou-se que para Feuerbach os crimes de perigo
eram delitos policiais (de natureza contravencional), que se converteriam em um direito de
perigo ilimitado sob o nazismo (Herzog, Félix, Geseflschaftliche Unsicherheit und
strafrecht/iche Daseinsvorsoge, pp. 7 e 21 ss.); Cramer, Peter, Der Vol/rauschtatbestand
ais abstraktes Gefiihrdungsdelikt, tratou o delito de embriaguez como crime de perigo
abstrato, merecendo a crítica de Arthur Kaufmann (JZ, 1963, p. 425), na qual afirmava que

223
a atenção da doutrina para eles. Para sua caracterização costuma-se recorrer a
dois critérios: para uns, seriam tipos nos quais o perigo se presume juris et de
jure33 , enquanto para outros seriam tipos que se satisfariam com um perigo de
perigo34. Nenhum desses critérios parece aceitável. Devem ser banidas do direi-
to penal presunções juris et de jure, que, por definição 3S, servem para dar por
certo aquilo que é falso ou ignorado, isto é, para considerar que existiu ofensa ao
bem jurídico quando não existiu ou não sabemos se existiu. ·Por isso, Binding
caracterizava tais crimes como delitos de desobediência36, o que reaparece hoje
com a constatação de que não passam de ser meras desobediências à Adminis-
tração 37 • Quanto ao perigo de perigo, basta pensar nas conseqüências que
acarreta em caso de tentativa: seriam hipóteses de triplicação de perigo (perigo
de perigo de perigo), ou seja, de inadmissível tipicidade sem lesividade38 • Portan-
to, a análise dos tipos penais no ordenamento vigente, por imperativo constitucio-
nal, deve partir da premissa de que existem apenas crimes de dano (ou de
lesão) e de perigo, e nesses últimos sempre deve ter ocorrido uma situação
de risco de lesão no mundo real. O critério de entender como perigo abstrato
aquele que só existe na consideração ex ante e como perigo concreto aquele
valorável na consideração ex posi39 não é satisfatório, porque em certo sentido
todo e qualquer perigo é abstrato ex ante e concreto ex post. Por isso, todo
perigo deve ser valorado ex ante, sob condição de que não se trate de um exer-

o conceito de perigo de Cramer era insustentável, pois recorria a uma probabilidade de


probabilidade, perigo de perigo, possibilidade de possibilidade de lesão ao bem jurídico. A
distinção entre crimes de lesão (ou de dano) e crimes de perigo é tradicional no direito
penal brasileiro (Galdino Siqueira, Tratado, v. I, p. 244), tanto quanto a subdivisão dos
crimes de perigo em perigo concreto e perigo abstrato (Aníbal Bruno, Direito Penal, I, t. 2º,
pp. 222-223; Heleno Fragoso, Lições, P.G, p. 174), predominando na doutrina contempo-
rânea: Mestieri, Manual, v. I, p. 242; René Dotti, Curso, pp. 371-372; Cezar Bitencourt,
Tratado, v. 1, p. 266; Regis Prado, Curso, v. 1, p. 241.
33
Por exemplo, Wessels, J. - Beulke, W., Strafrecht, p. 8; Bitencourt, Cezar, Tratado, v. 1, p.
266; Damásio, Direito Penal, v. 1°, p. 189.
34
Por uma interpretação sempre restritiva desses crimes, Ziechang, Frank, Die
Gefiihrdungsdelikte, pp. 37 ~s.; entre nós, Juliana Cabral, op. cit.
3s As presunções iuris tantum importam inversão do ônus da prova; sobre elas, Mata Y
Martin, R.M., Bienes jurídicos intermedios y delitos de peligro, p. 53; Méndez Rodríguez,
C., los delitos de peligro y sus técnicas de tipificación, p. 134.
36
Normen, I, pp. 364 ss.
37
Assim, Jakobs, p. 213; cabe recordar a velha crítica de Soler a Binding (Soler, S., Bases
ideológicas de la reforma penal, pp. 37 ss.).
31
Porque a presunção de perigo não é uma característica do tipo, Baumann, J.-Weber, U. -
Mitsch, W., Strafrecht, p. 108; sobre esses problemas, cf. o tradicional estudo de Kaufmann,
Arthur, em JZ, 1963, p. 425; também, Barbero Santos, M., em ADPCP, 1973, p. 487;
Beristain, A., em Rev. Fac. Der. Univ. Madri, XIII, 1969; Escriba Gregori, J.M., la puesta
en peligro de bienes jurídicos en derecho penal.
39
Jakobs, Estudios, p. 307, nota 20; como indominabilidade do curso da exposição a perigo,
Ostendorf, em JuS, 1982, p. 430.

224
cício de pura imaginação sem qualquer sustentação na realidade ou de carência
de tipo por inexistência do bem jurídico40.

12. A pretensão de criar perigos artificiais, através a) da presunção de


perigos que não existem na realidade, ou b) da previsão de perigos de perigos
potencializados em sua distância da tentativa, ou ainda e) da clonagem de bens
jurídicos, que dá origem a bens jurídicos intermediários (cujo conteúdo lesivo
depende da exposição a perigo de outros bens jurídicos, como se dá em tantos
casos de falsum) afetáveis por perigo mediante a fórmula da tentativa, tem
como resultado a racionalização jurídico-penal da violação do princípio da
lesividade. De outro lado, ao deixar num cone de sombra a determinação da
existência do perigo como indescartável requisito típico, tal pretensão viola tam-
bém seriamente o princípio da máxima taxatividade, facultando à arbitrarieda-
de interpretativa um claro limite típico.

13. Em toda situação real deve ser estabelecido se houve ou não perigo
para o bem jurídico, e à resposta negativa corresponderá sempre atipicidade
objetiva da conduta. A doutrina costuma invocar, como exemplo de tipo de
perigo abstrato, o delito de conduzir veículo automotor em estado de embria-
guez41 , afirmação que parece desconcertante. Se é compreensível o raciocínio
segundo o qual quem dirige embriagado por uma via urbana repleta de pedes-
tres e de outros veículos só excepcionalmente não introduzirá um perigo à
incolumidade de outrem, da mesma conduta, se praticada numa estrada rural
onde não se encontre vivalma, não se pode extrair tenha produzido qualquer
perigo à incolumidade de outrem. Definitivamente, existem condutas que pro-
duzem concretamente perigo para o bem jurídico, e outras que não logram

◄o Embora trabalhe com a categoria de perigo abstrato, chega a conclusões similares Terradillos
Basoco, Juan, Delitos de peligro y criminalidad económica.
41
Roxin, pp. 19-20; Bustos Ramírez, p. 264. No Brasil, a embriaguez ao volante requisitava que
o agente conduzisse o veículo "expondo a dano potencial a incolumidade de outrem" (art. 306
CTB). Luiz Flávio Gomes viu nesta cláusula a exigência da "evidenciação concreta da
potencialidade lesiva" (CTB: Primeiras notas interpretativas); um "perigo concreto de aci-
dente" é exigido por Waldyr de Abreu (Código de Trânsito Brasileiro, p. 151); para Arnaldo
Rizzardo, se o condutor trafega por "via pública sem transeunte algum naquele horário e local,
ou sem passageiros, não expõe ninguém a perigo de dano" (Comentários ao Código de Trân-
sito Brasileiro, p. 670). Na esteira de Enrique Cury, Heleno Fragoso não reconhecia periclitação
do bem jurídico no "caso do motorista algo embriagado que regressasse à casa conduzindo seu
veículo com sumo cuidado, em marcha lenta, por via com escasso ou nenhum trânsito, reve-
lando manifesta vontade de evitar acidente" (Lições, P.G., p. 175).Aalteração do tipo legal do
art. 306 CTB pela lei nº 11.705, de l 9.jun.08, substituindo aquela cláusula pela simples
concentração de álcool igual ou superior a 6 decigramas por litro de sangue, não suprimiu a .
exigência do perigo concreto: cf. argumentos irrefutáveis em TJRJ, 8º C.Cr., HC nº
2009.059.08115, rei. Des. Gilmar Augusto Teixeira. Outra opinião, Damásio de Jesus (Cri-
mes de Trânsito, p. 158) e Rui Stoco (CTB: Disposições penais e suas incongruências).

225
produzi-lo; reconhecer tipicidade objetiva nas últimas constitui frontal violação
do princípio da lesividade. A disciplina legal da tentativa inidônea, no Brasil (art.
17 CP) dispõe de força de expansão lógica para interditar- constatado ex post
42
não ter a conduta produzido perigo para o bem jurídico-a punição do agente •

14. A admissão de tipicidade objetiva sem lesão ou perigo para o bem


jurídico foi racionalizada por caminhos diversos. a) O recurso a riscos remo-
tos, ensejando a criação de crimes de perigo abstrato ou presumido, foi muito
usado e se encontra hoje em expansão 43 • b) Também se recorreu à criação
de bens jurídicos inadmissíveis (uma determinada concepção moral, por
exemplo). e) Por redução ao absurdo descarta-se o argumento fundado no
risco de universalização da conduta, pois não há conduta que, neste senti-
do, não seja perigosa. d) Às vezes, vale-se o legislador da criação artificial
ou clonagem de bensjurídicos44, apelando a conceitos imprecisos ou difusos
como ordem pública, bem comum, defesa nacional etc 45 . Trata-se de valores
gerais, inegáveis porém dependentes, já que não existem neles mesmos se-
não como resultado da efetiva vigência de todos os particulares bens jurídi-
cos. e) Recentemente desenvolveu-se uma tese que constitui uma variante
da anterior: busca-se erigir em bem jurídico uma ordem mais ampla e prévia,
produto de um fracionamento do bem jurídico, que consistiria num geral di-

42
Sobre este aspecto, cf. o importante estudo de Juliana Cabral, Os Tipos de Perigo e a Pós-
modemidade, pp. 170 ss. Aníbal Bruno nunca abriu mão de conceituar perigo como efetiva
"probabilidade de dano" (Direito Penal, 1, 2º, p. 223; Crimes contra a Pessoa, p. 214, nota
1). Salgado Martins via no perigo "possibilidade próxima e relevante de dano" (Direito
Penal, p. 285). Heleno Fragoso, que trabalhou com o conceito de perigo abstrato ou presu-
mido, não obstante advertia que o perigo presumido "deve ser presumível, excluindo-se o
crime sempre que a ação tiver sido praticada em circunstâncias que excluam por completo
a probabilidade de dano" (Lições, P.G, p. 174). Em trabalho recente, Pierpaolo Cruz
Bottino afinna a insuficiência da mera realização da conduta típica para a tipicidade objetiva
dos crimes de perigo abstrato, sendo imprescindível "a constatação da periculosidade da
atividade em relação aos bens" (Crimes de Perigo Abstrato e Princípio da Precaução na
Sociedade de Risco, p. 297).
43 A crítica a tais crimes como formas de antecipação tutelar em Angioni, Francesco, em Bene
gíuridico e riforma dei/a Parte Speciale, p. 72; Baratta, Alessandro, em Pena y Estado, 1,
1991, p. 46; como fenômeno da administração do exercício punitivo, Sgubbi, Filippo, II
reato come ris chio sociale, p. 51; como inquietante sintoma do empreendimento político
neoliberal, Cabral, Juliana, Os Tipos de Perigo e a Pós-modernidade.
44
Crítico pelos limites incertos, Femández, Gonzalo, D., Derecho penal y derechos humanos,
p. 117; Hassemer, W., Três Temas de Direito Penal, p. 55; também em DDDP, nº 1, 1984,
p. 104; Pannaralle, Luigi, em DDDP, nº 1, 1998, p. 86.
45 Insiste-se na defesa nacional mesmo em situações nas quais não existe guerra ou beligerân-
cia, p. ex. Millán, A. - Rodríguez Villasante, J.L. - Calderón, E., los delitos contra la
prestación dei servicio militar, p. 36 ss. Há quase um século, nosso Chrysolito de Gusmão
acreditava que a insubmissão - aquele delito do jovem convocado à incorporação que deixa
de apresentar-se - constituía um "crime contra a nação" (Direito Penal Militar, p. 47).

226
reito à segurança, que seria tutelado por uma pretensa normafranqueante46,
que permitiria o adiantamento da tipicidade a atos que do ponto de vista do
bem jurídico original ou não reproduzido, clonado ou fracionado, seriam atípicos,
mas que afetariam o direito à segurança. Com este argumento seria possí-
vel legitimar a conspiração anglo-americana e, em geral, qualquer conduta,
por mais anterior que seja ao perigo da lesão,já que de todo ato preparatório,
de todo pensamento malvado se pode dizer que implica um certo (embora
remotíssimo) risco à segurança. Na prática, seria possível entrever lesividade
em qualquer conduta retoricamente contraposta aos fundamentos (sobera-
nia, cidadania, dignidade da pessoa humana etc) ou aos objetivos fundamen-
tais (construção da sociedade livre, justa e solidária; garantia do
desenvolvimento nacional etc) da República (arts. 1° e 3° CR).

15. Embora seja certo que a maior parte da legislação penal ecológica é
simbólica, coloca inegavelmente alguns problemas que até agora se restringiam
a âmbitos reduzidos, como a tipificação da crueldade contra animais. A questão
básica é se o sujeito da relação de disponibilidade só pode ser uma pessoa47 .
Invocavam-se dois argumentos: a) para uns, trata-se de ofensa a um sentimen-
to humano de piedade ou similar48; b) para outros, trata-se de ofensa à imagem
do ser humano como administrador da natureza. O primeiro argumento condu-
ziria à atipicidade objetiva da hipótese em que o sujeito fosse tão requintado na
crueldade quanto zeloso em que ninguém mais dela tomasse conhecimento. O
segundo abre a porta para, apelando à natureza e à imagem do humano,
viabilizar a tipificação de todo gênero de conduta negativamente valorada des-
de uma moral determinada por particulares e especiosos conceitos antropológi-
cos. Essa questão nos reenvia às dificuldades do abortamento, onde a tese
exclusivamente paternalista abre um debate inacabado e estéril sobre a condi-
ção jurídica do feto. Não faltaram tentativas de resolvê-lo como um dos casos
nos quais não haveria bem jurídico mas sim meros objetos de regulação
normativa49 • Estes embaraços da tese personalista sugerem a conveniência de
remover os preconceitos que ainda cercam reconhecer bens jurídicos referidos
a seres não-humanos e pré-pessoais. Quanto aos não-humanos (animais), tais
bens jurídicos residiriam na preservação da existência e conservação da espé-

46
Cf. Jakobs, Estudios, p. 314; uma critica a este adiantamento (que chama de "tutela avanzata")
em Patalano, Vicenzo, Significa/o e limite dei/a dommatica dei reato di pericolo, p. 207.
47
Cf. Roxin, pp. 17-18.
48
Na doutrina brasileira, é a corrente- inspirada em Manzini- que prevalece na identificação
da objetividade jurídica da contravenção que versa a crueldade contra animais (art. 64 LCP):
Jardim Unhares, Marcello, Contravenções Penais, 2, p. 556; Damásio E. de Jesus, Lei das
Contravenções Penais Anotada, p. 24.
49
Nesses casos recorre à proteção da paz jurídica(!) Jakobs, p. 52.

227
cie50, o que facilitaria a compreensão dos tipos legais de certos crimes ecológi-
cos, além de permitir uma interpretação menos artificiosa da crueldade contra
animais e do próprio delito de abortamento.

16. Em seu Sistema de Política Positiva, pretendia Comte que a popula-


ção subjetiva estava composta pelas gerações passadas e futuras, enquanto a
objetiva eram os humanos vivos. O fascismo retomou essa idéia, concebendo
o Estado como algo composto pelas gerações passadas, presentes e futuras,
como se vê na Relazione ai Re do ministro Rocco. Essa ideologia identificava
sociedade civil e Estado. Seus ideólogos reivindicavam a estratégica posição
de intérpretes do legado das gerações passadas e, logo, responsáveis pelos
interesses das futuras. Sua essência autoritária é indiscutível, e fora dela não se
havia colocado o problema dos humanos futuros como sujeitos de bens jurídi-
cos. A atenção sobre os problemas ecológicos 51 , especialmente desde o con-
gresso de Estocolmo de 1972, e a enorme quantidade de tratados que configuram
o direito internacional ecológico vigente, impõem - exorcizada a tradição
positivista e fascista - uma nova perspectiva na admissão de humanos futuros
como sujeitos de bens jurídicos. Não se trata da preservação de uma cultura
nacional estagnada, como na proposta fascista, à qual docilmente se integrari-
am as gerações vindouras, mas apenas de seu direito a uma infância e vida
dignas. Não há dúvidas de que tais direitos estão consagrados na Constituição
e que as gerações presentes não podem devastar predatoriamente o planeta,
produzindo perigo para a conservação da espécie humana e para a qualidade
de vida dos humanos do futuro 52 . Ao contrário, pois, da tese personalista estrita,
cabe reconhecer que os seres humanos ainda não existentes podem ocupar o
lugar teórico de sujeitos de bens jurídicos.

III. A afetação insignificante do bem jurídico


1. Os casos de lesões insignificantes a bens jurídicos foram tratados como
53
atípicos por Welzel, dentro de sua teoria da adequação social da conduta •

5-0Cançado Trindade, A. A., Direitos Humanos e Meio-ambiente; também, Tratado de Direito


Internacional dos Direitos Humanos; Cavaliere, Paola, La questione anima/e; Felipe, Sônia
T., Por uma Questão de Princípios.
51
Frisch, Wolfgang, em Walter Stree y Johannes Wessels FS, pp. 74 ss.; Eser, Albin, em Ernst
- Joachim Mestmiicker FS, pp. 1O19 ss.; Mata y Martin, Ricardo, Bienes jurídicos
intermedios y delitos de pe/igro, p. 23; Regis Prado, Luiz, Direito Penal Ambiental, p. 64.
52
Um curioso argumento em sentido contrário em Luhmann, N., Sociologia dei riesgo, p. 39; no
campo do direito privado, pioneiramente entre nós falou dos "direitos do concepturus" Eliasar
Rosa (Noções Básicas e Preliminares do Ordenamento Jurídico do Direito Sucessório, inédito).
53
Das Deutsche Strafrecht, pp. 55 ss.

228
Mais tarde, o velho princípio mínima non curai Praetor serviu de fundamento
para o moderno enunciado do princípio da insignificância ou da bagatela54,
segundo o qual as afetações diminutas do bem jurídico não constituem lesão
relevante para os fins da tipicidade objetiva. Foi o princípio criticado como
proveniente da velha antijuridicidade material55 e rechaçado, propondo-se sua
substituição pela via da interpretação restritiva 56 ou, de lege ferenda, através
do princípio processual da oportunidade57 • A primeira é insuficiente e o segundo
depende de algum critério - seria inaceitável que a oportunidade de propor a
ação penal fosse uma decisão arbitrária-que encontra no princípio da insigni-
ficância seu melhor conteúdo. Mesmo aqueles autores que o negam reconhe-
cem a necessidade de resolver casos nos quais a afetação irrisória do bem
jurídico tomaria iníquo e irracional o exercício do poder punitivo58 •

2. A consideração conglobante das normas dedutíveis dos tipos legais


revela sua tendência de proibir condutas que provoquem conflitos de certa
gravidade59. Não se trata apenas de manifestação do princípio da ultima ratio,
mas também do próprio princípio republicano, do qual dimana o princípio da
proporcionalidade, como requisito de correspondência racional entre a lesão
ao bem jurídico e a pena60: não faz sentido considerar lesão corporal (art.
129 CP) a perfuração nas orelhas da criança para uso de brincos, entrever
furto (art. 155 CP) na subtração de uma caixa de fósforos para acender
cigarros, ou seqüestro (art. 148 CP) no motorista rabugento que só freia o
ônibus e abre a porta no ponto subseqüente, a duzentos metros do solicitado,
!obrigar corrupção (art. 333 CP) no livro com que o advogado presenteia o

54
"Insignificância": Roxin, Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, p. 24; em JuS, 1964, pp.
373 ss.; Ebert, Udo, Strafrecht, p. 3; "bagatela": Tiedemann, Klaus, em JuS, pp. 108-113;
Krümpelmann, Justus, Die Bagatelldelikte. Prevalece no Brasil a primeira designação: Vico
Manas, Carlos, O Princípio da Insignificância como Excludente da Tipicidade no Direito
Penal; Ribeiro Lopes, Maurício Antônio, Princípio da Insignificância no Direito Penal;
Lazzari Prestes, Cássio Vinicius, O Princípio da Insignificância como Causa Excludente da
Tipicidade no Direito Penal.
55
Assim, Zipf, H., Kriminalpolitik, p. 70.
56
Roxin, pp. 242-243.
57
O princípio da insignificância está consagrado no§ 95 do código penal da Índia, sob o nome
de triviality: "Nothing is an offense by reason that it causes, or that it is intended to cause,
or that it is known to be likely to cause. any harm, if that harm isso slight that no person of
ordinary sense and temper would comp/ain o/ such harm" (Gour, Hari Singh, The Penal
Law o/ India, I, pp. 755 ss.).
58
Guzmán Dalbora, José Luis, em Rev. Der. Penal y Criminologia, Madri, I995, UNED, nº
5, p. 491.
59
Haft, Fritjof, Strafrecht, p. 55.
60
Díez Ripollés, José Luís, em Teorias actua/es en e/ derecho penal, pp. 444 ss.; Gross,
Hyman, A Theory of Criminal Justice, p. 438; Batista, Nilo, Introdução Crítica, p. 84.

229
juiz etc61 • Em todos os tipos nos quais seja admissível gradualizar a lesão ao
bem jurídico é possível conceber ofensas insignificantes; com maiores razões
em todos os crimes de perigo, já que o conceito de perigo é essencialmente
graduável.

3. Não tem consistência a objeção de que seria difusa a fronteira entre a


lesão insignificante e aquela juridicamente significativa: as zonas cinzentas não
devem ser aproveitadas como pretexto que legitime a expansão do poder puni-
tivo para todos os casos62 • Bastaria a qualquer ideólogo do Estado policial
radicalizar as dúvidas sobre aquela fronteira para chegar aos mesmos resulta-
dos do direito penal autoritário: punição de atos preparatórios, toda participação
será autoria, toda omissão seria punível, em toda culpa consciente se entreveria
dolo eventual etc. Na perspectiva do princípio da lesividade, o bem jurídico
pode ser concebido como um signo teórico do outro (sujeito passivo), sem o
qual não se estrutura uma relação jurídica (alteridade); na afetação irrisória,
puramente formal, insignificante, está ausente o outro, e a punição se endere-
çaria portanto a uma conduta que não ultrapassa o âmbito da moral.

4. Como, especialmente nas sociedades de classes, os bens jurídicos não


se distribuem igualmente, poderia sustentar-se o critério da valoração relativa
ao sujeito. Como o direito admite, e por vezes garante, tais desigualdades, a
pequena lesão segue sendo uma lesão para quem a sofre, embora sua existên-
cia não se altere minimamente por causa dela. Tal critério pode ser útil para
graduar a pena, não porém para determinar a insignificância. A hipótese inver-
sa - embora ao preço de eventualmente flexibilizar o tipo objetivo perante su-
jeitos passivos deficitários - pode ser considerada, ao escopo de abrandar a
vitimização seletiva. Assim, características especiais do sujeito passivo ou das
circunstâncias em que se encontre podem outorgar relevância ofensiva a uma
lesão normalmente insignificante (um copo d'água no deserto não é a mesma
coisa que num bar de Ipanema).

5. Vários casos de cursos causais hipotéticos, que são considerados


irrelevantes em função de um pretenso valor preventivo da norma63 ou de ga-
rantias normativas que não podem suspender-se mesmo que já não se possa
salvar o bem64, contemplam verdadeiras hipóteses de insignificância. Se o ob-
jeto não é o bem jurídico e sim a relação de disponibilidade, esta se toma insig-
61
A insignificância na jurisprudência em Greco, Rogério, Direito Penal. v. I, pp. 68 ss.
62
Sobre critérios para sua determinação, García Vitor, Enrique, Planteos penales, p. 36;
também, la insignificancia dei derecho penal, pp. 61 ss.
63
Roxin,pp.316e317.
64
Jakobs, p. 371.

230
nificante quando já não restam possibilidades reais de disposição, que é o que
sucede na morte dada a valioso animal alheio (art. 163 CP) que em minutos
seria sacrificado pela autoridade sanitária por causa da moléstia contagiosa
que contraíra, ou com a violenta imobilização física de uma pessoa (art. 146
CP) minutos antes que a polícia nela executasse o mandado judicial de prisão.
Estamos aqui diante de bens jurídicos dos quais o titular já não podia dispor,
reduzidos a restos de bens jurídicos, essencialmente em irremissível extinção.
Bem distante disso está a apropriação de uma carteira perdida em nome de que
outrem dela viria a se apropriar inexoravelmente, não só porque não existe essa
inexorabilidade (alguém que a encontrasse poderia devolvê-la) como também
perante expressa regulação legal da hipótese (art. 169 CP). Quando intervêm
fatos da natureza a solução não se altera: adolescentes que destroem a planta-
ção de trigo momentos antes do granizo arrasá-la não afetam a disponibilidade
do agricultor, que já não poderia dispor de sua colheita; o furacão prestes a
chegar torna insignificantes as janelas quebradas pela gang juvenil (art. 163
CP), sobre as quais já não exerce disponibilidade o proprietário do imóvel, ora em
fuga da borrasca que destruirá todas as janelas da cidade. Não se pode estender
tal raciocínio à vida humana, por ser este o bem disponível por excelência, do qual
seu titular disporá até seu último suspiro; nos países que aplicam a pena de morte,
só no tempo e na forma legalmente estabelecidos pode ela ser executada.

IV Cumprimento de um dever jurídico


1. A tradição dogmática trata o cumprimento de um dever jurídico como
causa de justificação65, critério que- no Brasil, favorecido pela rubrica "exclu-
são da ilicitude" e pela denotação sistemática da expressão "não há crime",
empregada pelo artigo 23 CP, cujo inciso III contempla o estrito cumprimento
de dever legal - permanece até o presente66. A consideração do cumprimento
de um dever como causa de atípicidade foi sempre minoritária67, e assim se

6
s Hungria, Comentários, I, II, pp. 308 ss.; Galdino Siqueira, Tratado, I, pp. 358 ss.; Aníbal
Bruno, 1, 2°, pp. 7 ss.; Frederico Marques, Tratado, 11, pp. 137 ss; Délio Magalhães,
Causas de Exclusão do Crime, pp. 47 ss.; Fragoso, Lições, p. 201; Soler, I, 317; Núiiez, I,
p. 400; Fontán Balestra, II, p. 101; Terán Lamas, I, p. 358; Creus, p. 260.
66
Cezar Bitencourt, Tratado, I, pp. 401 ss.; Regis Prado, Curso, I, p. 393; João Mestieri,
Manual, p. 151; René Dotti, Curso, p. 396; Cirino dos Santos, Direito Penal, pp. 257 ss.;
Francisco de Assis Toledo, Ilicitude Penal, p. 117; Maurach, p. 301; Jescheck- Weigend, p.
407; Roxin, pp. 667 ss.; Jakobs, p. 548; Kõhler, p. 294; Marco Boscarelli, Compendio, p.
74; Antonio Cuerda Riezu, La colisión de deberes, p. 237; Pérez Alooso, Esteban, em CPC,
nº 56, pp. 623 ss.
67
Beling D.L.v. Verbrechen, pp. 129 e 168; Baumgartner, Notstand und Notwehr, p. 30;
Binding, Handbuch, p. 765.

231
mantém68 • Para o tratamento predominante o cumprimento de um dever jurídi-
co estaria emparelhado ao exercício regular de um direito. Essa equiparação se
esquece de que o exercício de direito implica um jogo harmônico e uma prelação
lógica entre a norma proibitiva e o preceito permissivo, enquanto que o cumpri-
mento de um dever constitui uma questão a ser resolvida dentro do âmbito das
nom1as proibitivas. Também no direito positivo brasileiro estão eles emparelha-
dos (art. 23, inc. III): mas enquanto o exercício regular de direito representa um
enunciado geral de justificação, que remete a todo e qualquer preceito permis-
sivo encontrável na totalidade do ordenamento jurídico, o estrito cumprimento
de dever legal acarreta a atipicidade da conduta.

2. Quando a norma dedutível do tipo legal proíbe fazer aquilo que


outra norma jurídica de idêntica hierarquia proíbe omitir (= ordena fa-
zer) estamos perante uma contradição que cabe dissolver-se através da
conjugada interpretação de ambas as nonnas. Seria inadmissível que o poder
punitivo pretendesse exercer-se através de normas que desorientassem o cida-
dão, assim desprovido de orientação normativa, porque lhe seria ilícito tanto
realizar quanto deixar de realizar a mesma conduta. Diante de tal contradição,
cabe à jurisdição promover a compatibilização das normas em presença, esta-
belecendo como uma delas prevalecerá sobre a outra, recortando-a, ou decla-
rando - se for o caso - a inconstitucionalidade de uma delas. Se o legislador
muitas vezes não é racional, o juiz tem o dever republicano de sê-lo e de
eliminar as contradições contidas na legislação.

3. O cumprimento de um dever jurídico é um fenômeno que ocorre


quando um mandado recorta uma norma proibitiva, prevalecendo sobre
ela: o meirinho que arrecada um bem penhorado não pratica furto, o policial
que efetua uma prisão em flagrante não comete constrangimento ilegal, a auto-
ridade sanitária que ingressa numa casa para extinguir um foco de epidemia
nela constatado não incorre em violação de domicílio, o soldado que em comba-
te fere o inimigo não perpetra lesões corporais etc. Pelo contrário, se o meirinho,
o policial, a autoridade sanitária e o soldado não houvessem feito exatamente o
que fizeram, incidiriam, pela violação de seus deveres funcionais, nas penas de
delitos que, segundo as circunstâncias e a motivação de suas condutas, poderiam
ir da prevaricação (art. 319 CP) à cobardia (art. 363 CPM). Isto nada tem a

61 Zaffaroni, em RJV, 1969; Bustos Ramírez, Juan, p. 347. No Brasil, mencionam o debate
entre exclusão de tipicidade ou de antijurídicidade Miguel Reale Júnior, Instituições, I, p.
173 e Álvaro Mayrink da Costa, Direito Penal, 2, p. 1.061; posiciona-se em favor da
exclusão da tipicidade, invocando a função conglobante, Luís Augusto Sanzo Brodt, Do
Estrito Cumprimento de Dever Legal, p. 333; atento para o avanço da concepção conglobante,
Rogério Greco, Curso de Direito Penal, I, pp. 372 ss.

232
ver com justificação, ou seja, com a harmonização de uma norma proibitiva
com um preceito permissivo que provém de qualquer lugar da ordem jurídica,
até porque se o sujeito não se valer do preceito permissivo para realizar a
conduta não sofrerá qualquer conseqüência jurídica, porque essa alternativa -
por exemplo, deixar-se agredir, ao invés de legitimamente defender-se (art. 25
CP); tolerar a turbação de sua posse, ao invés de restituir-se nela "por sua
própria força" (art. 1.21 O, § 1º CC) - também é seu direito.

4. A antinormatividade não se revela apenas na simples oposição entre a


norma deduzida do tipo legal e a conduta, postulando também a consideração
conglobada da norma deduzida do tipo com outras normas dedutíveis de outros
tipos legais. Os juízes não podem trabalhar como se o legislador fosse um cego
na pinacoteca, mesmo que de fato o fosse; portanto, devem eles dissolver raci-
onalmente qualquer contradição que surja entre duas normas proibitivas, reco-
nhecendo uma precedência ou prevalência normativa. À luz dessa
precedência ou prevalência normativa estabelece-se a antinormatividade, e só
então fica aberto o caminho lógico para, num movimento posterior, analisar a
antijurídicidade da conduta, porque de uma conflitividade lesiva imputável a um
agente (antinormatividade) ainda não se deriva uma proibição.

5. Como conseqüência de considerar o cumprimento de um dever jurídico


como causa de justificação a doutrina engendrou os casos da chamada colisão
de deveres 69. Esta posição parte de uma insuficiente concepção da estrutura
do tipo, que dela exclui a questão da antinormatividade, como se o tipo a consa-
grasse tácita ou eufemisticamente, ou como se ela pertencesse à antijuridicidade.
Dentro do modelo que preconizamos, tomando o cumprimento do dever legal
como causa de atipicidade, e, portanto, como um problema de normatividade e
não de juridicidade, todas as colisões de deveres imagináveis são falsas ou
aparentes. No campo da realidade, dois deveres podem concretamente
antagonizar-se ao ponto de que nenhum deles estaria cumprido sem a violação
do outro; mas no campo normativo um dever sempre limita a outro ou deve ser
preferido a outro7°. Toca ao direito decidir qual é o dever que prevalece, resol-
vendo conflitos ou colisões - tal como as normas proibitivas - através da pre-
cedência ou prevalência. Geralmente aqueles conflitos são resolvidos em

69
Welzel, p. 91; Jescheck - Weigend, p. 509; Roxin, p. 658; Jakobs, p.536; Kõhler, p. 294;
sobre a diferença entre colisão de deveres equivalentes ou de hierarquia distinta, cf. Weber,
H., em Fest.fiir Kieselbach, p. 23; Gallas, em Fest.J Mezger, p. 311; Bockelmann, p. 126;
Otto, Harro, p. 139; definições em Stratenwerth, p.144, Mezger-Blei, p. 140; sobre as
demais distinções, Otto, Harro, Pjlichtenkollision 11nd Rechtswidrigkeitsurteil; de modo
geral, Donna, Edgardo, A., Teoría dei delito..., I, p. 250 e Cuerda Riezu, A., La colisión de
deberes en derecho penal.
'º Stratenwerth, loc. cit; cf. Kant, Principios Metafisicos dei Derecho, pp. 32-33.

233
favor de um dever prevalecente e a doutrina se inclina a considerar que confi-
guram causas de justificação, embora no caso de bens equivalentes, particular-
mente se referidos à vida humana, tenda-se a excluir apenas a culpabilidade71 •
Esta última explicação é insuficiente, porque não logra explicar como pode o
direito consagrar como dever jurídico a prática de um injusto,já que qualquer
das duas condutas configuraria um injusto.

6. Assim, afinna-se que quando um pai, durante um incêndio, tem a pos-


sibilidade de salvar apenas um de seus dois filhos em perigo e assim procede,
atua sem culpabilidade. O conhecido caso dos médicos que, durante o nazismo,
se viram forçados a escolher alguns pacientes, que seriam assassinados, por-
que do contrário todos os pacientes seriam assassinados, foi considerado como
inculpabilidade72. Outros exemplos podem agregar-se: o alpinista que vê dois
companheiros pendentes de uma corda próxima de romper-se, e que consegue
fazer chegar uma faca ao que está acima, com a qual este corta a corda abaixo
de seu corpo, precipitando no abismo o de baixo, porém conjurando a iminente
ruptura, salvando-se assim à custa do outro 73 ; o capitão do navio que naufraga
e que só dispõe de equipamentos de salvatagem para uma parte dos passagei-
ros; o médico chamado por um paciente grave que, no caminho, presta assis-
tência a um acidentado também grave com quem se deparou, encontrando já
morto, mais tarde, o paciente que originalmente o chamara. Em todos esses
exemplos, o perigo não foi introduzido por quem atua e o sujeito não faz mais do
que evitá-lo para algum(ns) dos periclitantes porque isso é tudo o que pode
fazer. Mas há também casos, que se pretende solucionar como inculpabilidade,
nos quais o sujeito desvia o perigo na direção de terceiros que não se encontra-
vam anteriormente a ele expostos: o guarda-chaves que desvia para um ramal
desativado o trem de passageiros que colidiria com outro, mas causa a morte
de três operários que trabalhavam nos trilhos do ramal desativado; o coman-
dante militar que, sabendo que o inimigo irá bombardear populosa cidade, con-
segue, através de manobras, fazer com que o ataque se direcione a outra cidade
menos povoada, que não estava sob risco de ser atacada. A consideração do
dever jurídico como causa de atipicidade, em decorrência de que sempre há
uma nonna proibitiva que prevalece e de que os preceitos permissivos ou de
justificação não são aqui pertinentes, soluciona superiormente tais casos pela
exclusão da tipicidade, por estarem diretamente excluídos da norma proibitiva.
Em todos eles os protagonistas são agentes que cumprem com um dever jurídi-
co: o pai cumpre o dever de salvar o filho, os médicos de preservar a integrida-
de do maior número possível de pacientes, o alpinista presta ajuda ao companheiro
71
Assim, Jakobs, loc. cit.
72
Welzel, p.184; como caso de impunibilidade, Peters, Karl, em JuR, 1949, pp. 496-500.
n Welzel, p.185.

234
que pode salvar, o capitão salva os náufragos que consegue resguardar, o mé-
dico cumpre o dever geral de socorro (art. 135 CP), o guarda-chaves o de
evitar a catástrofe e o comandante militar o de salvar a vida de civis. Definiti-
vamente, as dúvidas neste terreno - especialmente nas soluções atiradas ao
campo da culpabilidade - provinham do chamado injusto objetivo, fundado
apenas na causalidade do resultado. Da perspectiva aqui sustentada, essas
dúvidas não existem, pois é perfeitamente possível cometer um injusto valendo-
se de quem se conduz conforme ao direito.

• 7. Existem situações nas quais o conflito entre bens jurídicos não se colo-
ca para o agente, e sim para o Estado: o comandante militar que salva a cidade
populosa pelo desvio tático do ataque inimigo para uma cidade com muito me-
nos habitantes não está em estado de necessidade exculpante mas na verdade
cumpre seu dever de preservar a vida de civis, e se não o cumprisse estaria
sujeito a penas severas, provavelmente à pena capital. Sob o pretexto de res-
peitar a vida humana como valor máximo, o que impede sua mediatização (Kant),
não pode o Estado projetar sua inculpabilidade em outro, mas apenas reconhe-
cer que por vezes impõe certos deveres eticamente discutíveis. Caso contrário,
o Estado seria a única pessoa que, encontrando-se em estado de necessidade,
poderia projetá-la em outrem, eludindo nessa dinâmica sua própria responsabi-
lidade, inclusive civil. Evite-se confundir casos de cumprimento de dever jurídi-
co com situações de exculpação nas quais se salva a própria vida à custa da
alheia: o alpinista que propiciou a faca ao único companheiro que poderia sal-
var-se cortando a corda atua no cumprimento de um dever jurídico, e pois
atípicamente; mas o alpinista que corta a corda e assim, ao mesmo tempo,
precipita no abismo o companheiro de baixo e salva sua própria vida atua em
estado de necessidade exculpante, porque não cumpre nenhum dever jurídico; se
o que propiciou a faca não o houvesse feito, poderia responder penalmente por
isso, mas se o segundo, por inabilidade no momento de cortar a corda, também
caísse no abismo porém miraculosamente sobrevivesse, seria absolvido.

8. A consideração do cumprimento de dever jurídico como causa de justifi-


cação da conduta criou muitas dificuldades na doutrina, ensejando grandes esfor-
ços para remeter a questão ao âmbito da tipicidade. Assim, por exemplo, no caso
do bombeiro que desvia a viga que cairia na cabeça do passante, provavelmente
matando-o, porém graças à mudança de rumo imposta pelo bombeiro acarreta-
lhe uma lesão no antebraço, para evitar resolvê-lo como justificação, procura-se
excluir a tipicidade sob o argumento de que não há imputação objetiva do resulta-
do porque o risco foi diminuído ou faltou a criação de um risco proibido74•

74
Roxin, p. 314.

235
9. Não atua no cumprimento de qualquer dever jurídico - como a inter-
pretação segundo a Constituição do artigo 292 CPP revela- o policial que fere
ou mata quem foge ou resiste à prisão: esses casos devem ser resolvidos no
campo da antijuridicidade, como legítima defesa, se e quando presentes seus
pressupostos (ou seja, quando o policial foi ou ia ser agredido), com especial
atenção para eventual excesso 75 •

~ 1q_uiescência: acordo e consentimento do titular do bem


Juridico
l. Volenti nonfit iniuria: diante de quem o aceita é inconcebível o injus-
to. Nessa parêmia romana se expunha o desconcerto de tomar como iniuria
uma ofensa admitida pela vontade da vítima. Contudo, a este princípio opunha-
se outro, segundo o qual a vontade do imperador tinha força de lei 76, e que,
entre outras conseqüências promoveria absurda expansão do crimen
maiestatis 77 . O chamado confisco do conflito, que se desenrola no entorno do
século XIII, exprimiria a prevalência do princípio da vontade imperial sobre o
princípio da relevância da vontade da vítima para a caracterização da ofensa:
só no século XVIII essa prevalência viria a ser temperada pela novidade que
então exprimiria o princípio da lesividade. A posterior demolição das bases do
direito penal liberal reconduziria ao proscênio o princípio da vontade imperial,
argumentando que a decisão política criminalizante não poderia submeter-se à
vontade de um particular, o que levaria à negativa teórica de qualquer virtude
eximente na aquiescência da vítima. Esta posição implicaria numa sorte de
"estatização" de todos os bens jurídicos: todos eles teriam como titular o Esta-
do, que paralelamente se arrogava a titularidade de um pretenso direito subjeti-
vo à punição dos súditos, o chamado ius puniendi, que em muitas concepções
autoritárias se converteria no único bem jurídico. Esta pretensão é inadmissível:
o conceito juridicamente inviável de ius puniendi78 não passa de ser uma raci-
onalização legitimante da potentia puniendi, que é aquilo que existe no mundo
real. O contrário é claramente paternalismo autoritário, pois quando o poder
punitivo não reconhece a relevância eximente do consentimento, ou ignora a
vítima ou só a admite como instrumento habilitante do confisco do conflito (que

7
$ Francisco de Assis, Toledo, Ilicitude Penal..., p. 118; Luís Augusto Sanzo Brodt, Do Estrito
Cumprimento... , pp. 1S2 ss. Uma tradição legislativa interessante em Ord. Afo., II, VIII, 8,
9 e 10.
76
Ulpiano, D. I, IV, I: quod principi placuit, legis habet vigorem.
n Cf. Sbriccoli, Mario, Crimen lesae maiestatis.
71
Cf. v. I, § Sº, I, 1 (p. 97); Aníbal Bruno, Direito Penal, I, 1, pp. 19 ss.; Nilo Batista, Introdução
Crítica, pp. 106 ss.

236
contribui numa espécie de "arrecadação" de poder punitivo). A eficácia eximente
da aquiescência tem base constitucional: não há lesividade quando uma condu-
ta não afeta, por dano ou por perigo, o bem jurídico, nem quando o sujeito
consente certas condutas que podem ser perigosas ou lesivas. Quando se pre-
tende separar o bem jurídico de seu titular, o que se está fazendo na verdade é
negar o próprio conceito de bem jurídico: se a sua essência reside na relação de
disponibilidade, é impossível negar o valor eximente da aquiescência. Desco-
nhecer sua relevância desativante da proibição representa um novo esforço
para subordinar a vítima79 • A intervenção punitiva alcança um grau intolerável
de irracionalidade quando pretende que o sujeito use o bem jurídico apenas de
certo modo; esta pretensão é própria de um direito que não respeita a autono-
mia moral da pessoa e pretende submeter o humano a metas transcendentes de
sua humanidade, ou seja, idolátricas ("civilização ocidental", "raça", "objetivos
nacionais" etc). A pretensa tutela de um bem jurídico que se arrogue predomi-
nar sobre a vontade de seu titular constitui um pretexto para criminalizar um
pragma não conflitivo.

2. Distingue a doutrina, tradicionalmente, entre um consentimento


excludente da tipicidade e outro justificante (excludente da antijurídicidade)8°.
Segundo essa tese, naqueles delitos que pressupõem uma conduta típica exercida
contra a vontade do titular do bem jurídico (por exemplo, expressamente na
violação de domicílio, terceira modalidade - art. 150 CP - ou tacitamente no
estupro - art. 213 CP) o consentimento excluiria a tipicidade, enquanto quando
a oposição da vontade da vítima não constitui elemento do tipo legal o consen-
timento excluiria a antijurídicidade (por exemplo, nas lesões corporais - art.
129 CP). Segundo esta distinção81 , diferentes conseqüências foram assinala-

79
Sobre isso, Albin Eser, em RIDPP, 1997, p.1061; De la Granada Vallejo, Consentimiento,
bien jurídico e imputación objetiva.
80 Jescheck- Weigend, p. 372; Blei, p. 118; Kõhler, p. 238; Freund, Georg, p. 79; Fragoso, p.
199; Aníbal Bruno, I, 2°, p. 19; Frederico Marques, Tratado, II, p. 142; este entendimento
prevalece hoje no Brasil, Cezar Bitencourt, Tratado, l, p. 383; Regis Prado, Curso, l, p.
400; Rogério Greco, Curso, I, p. 376; Álvaro Mayrink, PG, v. 2, p. 1.071; João Mestieri,
Manual, p. 152; René Dotti, p. 405; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 264;
Cláudio Brandão, p. 127; José Henrique Pierangeli, O Consentimento, passim. Jakobs
distingue acordo e consentimento excludente do tipo e consentimento justificante (pp. 291
e 253 ); sobre isso, também Manuel da Costa Andrade, Consentimento..., p. 516; de Vicente
Remesal, Javier, em Lúzon Pei\a, D.M. e Mir Puig, S. (orgs.) Cuestiones actuales de la
teoria dei delito, pp. 149 ss.; Cancio Meliá, M., Conducta de la víctima e imputación
objetiva, pp. 146 ss.
81
Outras distinções mencionaram consentimento no risco e no resultado, projetando-se no
campo da imputação objetiva ("alcance do tipo") em Roxin, pp. 334 e 462; Jakobs (pp.
291, 295, 304) distingue entre acordo e consentimento final e não final e entre autolesão e
heterolesão, conforme quem domine a ofensa ao bem jurídico (Estudios, pp. 395 ss.).

237
das, entre as quais cabe mencionar: a) para a justificação seria indispensável
sua exteriorização e conhecimento do agente 82, enquanto para a atipicidade
bastaria a simples existência, mesmo não exteriorizada83; b) o vício de vontade
elimina o consentimento justificante84, porém no excludente da tipicidade enseja
outra ou nenhuma tipicidade; e) o consentimento justificante é claramente
revogável 85 , enquanto aquele excludente da tipicidade só consente revogação
conforme a direito86; d) o erro sobre o consentimento justificante é de proibi-
ção, sobre o outro é de tipo 87 •

3. A doutrina não só distinguiu um consentimento excludente da tipicidade


e outro excludente da antijuridicidade (justificante) mas também pretendeu valer-
se (Roxin, Jakobs) de uma falsa distinção entre consentimento do risco e con-
sentimento da lesão (impensável o primeiro sem envolver o segundo, a menos
que se renunciasse ao próprio conceito de risco: o risco é sempre risco de lesão;
é a probabilidade de dano que caracteriza o perigo; não existe risco nem perigo
que não se projete na ofensa real que concretamente possa advir; não há risco de
nada, que opere no vasio88 ) para separar desse âmbito todos aqueles resultados
que se produzem por auto-exposição a perigo. Entretanto, como não existem
riscos de nada, as auto-exposições a perigo, em sua variegada gama de situa-
ções, que reconheçam como pressuposto a livre e consciente assunção de sofrer
um dano em decorrência da conduta devem ser resolvidas como casos de con-
sentimento no campo dos delitos culposos, pois nos raros casos de provocação
intencional dificilmente o agente causante possuirá a dominabilidade da ação
requerida para que o resultado possa ser-lhe imputado como obra dolosa sua.
Mesmo que um agente aconselhe outrem (ou determine a um subordinado) a
realizar uma cobertura jornalística perigosa, para que morra, dando-se conta o
repórter do risco que temerariamente assume, não pode haver imputação dolosa,

12
Welzel, pp. 95-97; Jescheck - Weigend, p. 374; Geerds, p. 264; Stratenwerth, p. 125;
Maurach, p. 287; Mayer, H., p. 167; Mezger - Blei, p. 123; Sauer, 1955, p. 136; do
mesmo, em ZStW, 72, 1960, pp. 42-92; Schõnke - Schrõder, 1969, p. 403 ; Dreher, em
Schwarz- Dreher. StGB, 1966, p. 208; em sentido contrário, Frank, StGB, 1931, p. 150; v.
Hippel, II, p. 248; Binding, Normen, li, p. 125; Liszt - Schmidt, p. 218. •
n Welzel, p. 95; Jescheck - Weigend, p. 374; Geerds, p. 265.
"' Welzel, p. 97; Stratenwerth, p. 129; Maurach, p. 228; Aníbal Bruno, I, 2°, p. 20; Juarez
Cirino dos Santos, p. 267.
15
Welzel, p. 96; Aníbal Bruno, p.20.
16
Honig, Richard, Die Einwilligung des Verletzen, p. 152.
17
Quando é justificante a maioria da doutrina recorre diretamente ou por analogia às regras da
tentativa; Roxin, p. 460.
11
Assim, Berdugo Gómez de la Torre, lgnacio, Ensaios penales, p. 66; um exame crítico em
Costa Andrade, Manuel da, Consentimento e Acordo em Direito Penal, p. 347; uma posi-
ção intermediária em Albeggiani, Ferdinando, Profili problematici dei consenso dei/ 'avente
diritto, pp. 11 O ss.

238
por falta absoluta de dominabilidade do fato por parte do investigado "autor"
(quem aconselhou ou determinou). Igualmente, se A- com a esperança de que
B sofra algum distúrbio grave de saúde - fornece-lhe heroína, estando ambos
plenamente cônscios dos perigos de um consumo excessivo do narcótico; igual-
mente, na hipótese de um pega entre dois motociclistas algo embriagados, embo-
ra totalmente capazes de perceber e avaliar os perigos da disputa, caso um deles
deseje que o outro sofra um acidente e venha a ferir-se; também nesses exem-
plos a evidente ausência de dominabilidade impede de forma cabal a imputação
dolosa do resultado. Não se altera a solução quando a vítima provocou conscien-
temente o risco realizado por outrem, como o passageiro que induz o motorista a
dirigir em velocidade temerária, e este o satisfaz almejando que, caso ocorra um
acidente, o passageiro se fira gravemente. Em nenhum caso se vislumbra a
dominabilidade requerida para a autoria de crimes comissivos dolosos, restando
apenas analisar o consentimento para eventual imputação por culpa.

4. Ampliou-se nos últimos anos o grupo de autores que consideram que o


consentimento sempre exclui a tipicidade89, negando a distinção que estuda-
mos anteriormente e, portanto, suas conseqüências. Essa opinião se fundamen-
ta, geralmente, na inexistência de conflito, sendo por isso mais adequada à
tradição penalística liberal. Há razões, extraídas da própria função historica-
mente essencial do direito penal, que tomam preferível essa tendência moder-
na: a) por um lado, ela é mais eficaz na tarefa de reduzir o poder punitivo; b)
por outro lado, é difícil sustentar a existência de um conflito quando o titular do
bem jurídico consentiu na lesão. Tratar-se-ia, portanto, de considerar o con-
sentimento sempre como excludente da tipicidade. Contudo, as diferenças
assinaladas pela doutrina tradicional podem ser recicladas dentro de nosso marco
teórico. Assim, seria preferível denominar aquiescência ao gênero, distinguin-
do entre a) o acordo, que exclui a tipicidade objetiva sistemática e b) o con-
sentimento, que exclui a tipicidade objetiva conglobante. É inquestionável a
existência de tipos legais integrados por elementos normativos de recorte, ou
normativos-valorativos, sem os quais não se conseguiria formatar
conceitualmente a própria conduta. Enquanto uma amputação constitui uma
ofensa ao bem jurídico integridade corporal, haja ou não aquiescência, a con-
junção carnal não constitui estupro se, independentemente de que o homem
estivesse disposto a recorrer à força para mantê-la, não se realizou contra a
vontade da mulher. Quando o acordo elimina um elemento normativo de recor-

89
No Brasil, Paulo Queiroz, Direito Penal, p. 208. Rechaça a distinção entre acordo e consen-
timento Roxin, p. 461; Schmidhauser, 1982, p. 111; Zipf, Einwilligung und Risikoiibernahme
im Strafrecht; Armin Kaufmann, em Fest.f Welzel, p. 397; Rudolphi, em ZStW, 1974, p. 87;
Bacigalupo, 1987, p. 238; Bustos Ramirez, p. 3O3;Tamarit Sumalla, J. M., La víctima en e!
Derecho Penal, p. 65.

239
te, é uma causa de atípicidade objetiva sistemática; nos demais casos, o
consentimento é uma causa de atipicidade objetiva conglobante. No primei-
ro caso, o erro sobre o acordo configura erro de tipo; nos demais, o erro sobre
o consentimento configura erro de proibição.

5. Sustenta-se que essa diferença não ultrapassa o nível da linguagem, sen-


do assim pouco importante, e logo todos os erros sobre aquiescência configurari-
am erro de tipo90• Sem dúvida a questão envolve a linguagem, mas nem por isso
é pouco importante. Tipos são instrumentos conceituais que se exprimem em
linguagem porque não há outro modo de fazê-lo, de sorte que a compreensão da
linguagem interfere nos conceitos, não cabendo descartá-la como estéril figurino.
Quando um conceito requisita para sua compreensão que tenha como ingredien-
te estrutural indescartável a ausência de acordo, está sinalizando que aquele que
atua acreditando dispor do acordo do outro inevitavelmente crê estar fazendo
algo diferente do que realmente faz, e, por isso, não age com dolo. Homogeneizar
as soluções, sob o pretexto de uma limitação de linguagem, porque em nenhum
dos casos há conflito, seria equivocado: no primeiro caso não há conflito porque o
próprio pragma do tipo sistemático não se apresenta, por causa do acordo; no
segundo caso também não há conflito, mas o pragma existe - embora o consen-
timento do titular do bem jurídico exclua a conflitividade do tipo conglobante.

6. Ao contrário do que defendeu a doutrina tradicional, a aquiescência -


na forma do acordo (que afeta a tipicidade sistemática) ou do consentimento
(que afeta a tipicidade conglobante)-produz efeitos com sua mera existência,
independentemente de que o agente a conheça. Tampouco é correto que o
acordo somente admita revogação conforme a direito, havendo casos nos quais
esta opinião é insustentável, como no estupro; não estamos aqui diante de uma
distinção estrutural, dependendo a solução do bem jurídico de que se trate e da
modalidade que o acordo ostente.

7. Há diversas posições sobre a forma da aquiescência: enquanto a opi-


nião predominante sustenta poder ela revestir-se de qualquer forma91 , uma
velha doutrina sujeitava-a ao modelo dos negócios jurídicos92• Partindo da su-
posição de que basta a existência da aquiescência, trata-se de um ato individual
do titular do bem jurídico, e por conseguinte é desnecessário revista-se ela de
qualquer rigor fonnal, e tampouco que a conheça o agente93. Bem ao contrário,

90
Assim Roxin, p. 471.
91
Roxin, p. 467; Jakobs, p. 297; Jescheck-Weigend, p. 372; em geral, Fahmi Abdou, Antonio,
Le consentement de la victime, pp. 184 ss.
92
Frank, StGB, ( 11-14 ), § 51, II, nº I 09; Oscar Stevenson, Da Exclusão de Crime, pp. 131 ss.
93
Schmidhauser, p.117; contra, Pierangeli, p. 154.

240
a revogação da aquiescência deve ser expressa e o agente deve conhecê-la.
Para sua validade, é mister que a aquiescência seja prestada por quem tenha
efetivamente a real disponibilidade do bem jurídico, sendo insuficiente quando
prestada por alguém cujo poder de disposição é apenas parcial ou condiciona-
do94 ; se a titularidade for compartilhada, quem concede a aquiescência só po-
derá fazê-lo na medida em que não impeça a disponibilidade do co-titular. A
aquiescência deve, como regra geral, ser prestada antes do início da execução
do fato95 , embora não se possa elidir de seus efeitos certas hipóteses nas quais
seja ela outorgada durante o fato, tendo até então sido insignificante a afetação
do bem jurídico. A vontade de quem aquiesceu não deve estar viciada, ou seja,
requer-se no aquiescente uma plena capacidade de compreensão da situação e
que não intervenham fraude, violência, coação ou erro96• Evidentemente tais
vícios, para dispor de relevância jurídica, devem referir-se ao bem jurídico de
que se trate e não a outras circunstâncias97 : não há estupro se a aquiescência
da mulher esteve viciada por erro instalado por falsa promessa de matrimônio
ou de generoso pagamento. Esta regra admite exceções, especialmente quan-
do o bem jurídico consista na saúde e integridade fisica da pessoa98 • Quando o
erro for provocado por terceiro, sem que o agente o conheça, teremos um
interessante caso de autoria mediata, respondendo pelo crime quem determi-
nou o erro (art. 20, § 2º CP)99 • Quanto à maturidade psicológica ou emocional
do aquiescente, nem sempre se requer a maioridade civil ou a imputabilidade
penal. Em alguns casos a aquiescência poderá ser prestada pelo curador ou
tutor do incapaz, sempre que se trate de bens acerca dos quais esteja em posi-
ção de garantidor 100• O erro não provocado só afeta o agente quando tenha ele
o dever de informar cabalmente ao titular, o que deve ser averiguado segundo
a natureza da ação. Quanto à violência e à ameaça, constituem meios de exe-
cução típicos por si mesmos. Não é correto excluir-se a aquiescência perante a
objeção de violar os bons costumes ou de não contribuir para o desenvolvimen-
to do indivíduo 1° 1, não só pela inexistência de norma restringindo essa liberdade

94
Welzel, p. 96; Schunknecht, Heinz, em DA, 1966, pp. 17-18.
9
$ Schmidhãuser, p. 116.
96
Amelung, Knut, em ZStW, 1997, p. 440; Juarez Cirino dos Santos, p. 267; Cezar Bitencourt,
p. 383; Rosa Oiticica, Luís Pereira, O Consentimento..., pp. 54 ss.; José Henrique Pierangeli,
O Consentimento..., pp. 136 ss.; Mezger, Lehrbuch, 1949, p. 211; Mezger- Blei, p. 122;
Maurach, p. 343; Welzel, p. 96; Jescheck- Weigend, p. 383; Schmidt, Eb., em JZ, 1954, pp.
369 ss.; Roxin, p. 495; Jakobs, p. 298.
97 Jescheck- Weigend, p. 383.
91
Roxin, p. 491.
99
Jescheck- Weigend, p. 383; Jakobs, p. 299.
100
H. Mayer, p. 167; Welzel, p. 96; Stratenwerth, p. 128.
101
Cf. Jakobs, p. 294.

241
- como em outras legislações 102 - como também pelo paternalismo da propos-
ta, que comete ao Estado definir aquilo que favorece ou embaraça o portador
do bem jurídico. Além do mais, não se pode ignorar que enunciar um conceito
de bem jurídico nesses tennos representa um reducionismo artificioso similar
ao empreendido, lá se vão dois séculos, por Hegel, ao identificar delito com
ofensa à vontade racional do Estado.

8. Um dos problemas mais complexos é colocado pelo tipo do homicí-


dio 103 • Dado que se trata de uma disposição radicalmente extrema do bem
jurídico, a lei a cerca de garantias que na verdade a limitam drasticamente,
embora a constitucionalidade dessas limitações seja inquestionável. Perante
situações nas quais normalmente é incompreensível a conduta do sujeito, a lei
exclui a validez do consentimento a respeito de qualquer outro que não seja o
titular do bem jurídico. A norma proibitiva que se deduz do tipo legal da partici-
pação em suicídio (art. 122 CP) interdita cabalmente o homicídio a rogo, esta
forma dramática de co-autoria em suicídio 104 • Isto não exclui que, em alguns
casos, a conduta não resulte tão incompreensível e, portanto, o consentimento
opere como atenuante 105 •

102
Por exemplo, o§ 226-A do código penal alemão; sobre isso produziu-se extensa bibliogra-
fia: Jakobs, loc. cit.; Roxin, p. 469; do mesmo, em JuS, 1964, p. 373; Leckner, Th., JuS,
1968, p. 304; Breithaupt, Walter, em JZ, 1964, p. 283; Hanack, Ernst-Walter, em JZ, 1964,
p. 393; Kohlhass, Max, em NJW, 1963, pp. 2.349 ss.; Romano, Mario, Commentario
sistematico, l, p. 496; Armaza Galdos, Julio, EI consentimiento, p. 22.
103
Sobre isso, Cerezo Mir, José, Curso, p. 331.
104
Cf. Marx, Michel, Zur Definition, pp. 64-65.
105
Os problemas da eutanásia têm sido muito discutidos: Giunta, F., em RIDPP, 1997, pp. 89
ss.; Nino, Luis, Eutanasia, morir con dignidad, esp. p. 137; Farrel, ~artín, La ética dei
aborto y la eutanasia; Nino, Carlos, Fundamentos, p. 252; García Alvarez, Pastora, La
puesta en peligro de la vida, p. 53 7; Giusti, Giusto, L 'eutanásia. Pádua, 1982, ed. Cedam;
Núiiez Paz, Miguel Ángel, Historia dei Derecho a Morir, Oviedo, 1999, ed. Forum; do
mesmo, Homicidio Consentido, Eutanasia y Derecho a Morir con Dignidad, Madri, 1999,
ed. Tecnos; Tomás-Valiente Lanuza, Carmen, La disponibilidad de la propia vida en el
Derecho Penal, Madri, 1999, ed. Centro Est. Pol. Const.; Jakobs, Günther, Suicidio,
eutanasia y derecho penal, Valência, 1999, ed. T. lo blanch; Roxin, C. et alii, Eutanasia y
suicidio, Granada, 2001, ed. Comares; um exíguo prefácio de Alcântara Machado em Royo-
Villanova y Morales, R., O Direito de Morrer sem Dor, S. Paulo, 1933, ed. Brasil; Mendes
de Carvalho, Gisele, Aspectos Jurídico-penais da Eutanásia, S. Paulo, 2001, ed. IBCCrim;
da mesma, Considerações acerca do impacto da Resolução 1.805/2006 CFM no tratamento
jurídico-penal da eutanásia no Brasil, em Ciências Penais, v. 6, pp. 227 ss.; Fascículos de
Ciências Penais, ano 4, out.-dez. 1991, Porto Alegre, ed. Fabris. Embora não exista nada
parecido com um direito geral e indiscriminado a curar, do qual seriam titulares os médicos,
cabendo reconhecer-lhes nada mais que uma faculdade (assim, Iadecola, Gianfranco, Potestà
di curare e consenso dei paziente, p. 38), é preciso reconhecer que em certas situações pode
se converter em dever jurídico. Sobre greve de fome, suicídios tentados e autolesões, Luzón
Peila, Diego - Manuel, em Revista de Est. Penitenciários, nº 238, Madri, 1987, p. 55.

242
9. Sobre as lesões corporais, uma ampla discussão ocupou-se das cirúrgi-
cas e das desportivas, porém existem muitos casos de consentimento excludente
da tipicidade fora daquelas hipóteses. Na definição jurídico-penal de lesões
corporais incluem-se sem dúvida lesões praticadas com sentido muito distinto:
a perfuração do lóbulo das orelhas para o brinco, a acupuntura para a tatua-
gem, as escoriações no fragor do ato sexual (mesmo sado-masoquistas), as
intervenções estéticas e cosméticas, a circuncisão judaica, as lesões leves no
curso de rixa - como em certos bailes funk - na qual todos consentiram em
participar, o corte de unhas e cabelo etc. Nesses casos, a eficácia do consenti-
mento se realimenta na autonomia moral que, particularmente no espaço priva-
do, a Constituição garante a todos 106: no caso da circuncisão, o consentimento
se nutre da liberdade de culto; no das escoriações, da inviolabilidade da vida
privada etc. O Código Civil brasileiro de 2002 estabeleceu definitivamente na
vontade do paciente o fundamento de licitude da lesão cirúrgica 1°7.

10. Um problema especial é suscitado pelo chamado consentimento pre-


sumido, que na terminologia aqui proposta dir-se-ia acordo presumido108. Só
é admissível o acordo presumido quando teria sido impossível obter o
assentimento real e efetivo, em situações nas quais seja razoável supor que,
conhecesse ele as circunstâncias ou pudesse manifestar-se, teria aquiescido 109•
A expressão presumido, referida ao acordo, costuma criar confusões que po-
dem esclarecer-se com a identificação do sujeito da presunção. É possível
que a) presuma o direito; ou que b) presuma o agente. O direito presume iuris
tantum o acordo em todos os casos nos quais o agente atuou em estado de
necessidade em beneficio do titular do bem jurídico: assim, presume que ao
proprietário da casa importa mais conservá-la do que a estrita observância da
garantia constitucional de sua inviolabilidade, no caso em que o vizinho a invade
para apagar um incêndio 11 º. Esta aquiescência presumida opera como causa
de justificação, ou seja, como estado de necessidade justificante. Também ha-
veria estado de necessidade justificante quando, presentes seus requisitos, quem
presumisse o acordo fosse o agente, atuando em interesse próprio ou de
terceiro, embora nessa hipótese o acordo não tivesse qualquer importância,

106
Cf. v. 1, § 11, 1 (p. 225).
107
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento
médico ou a intervenção cirúrgica. Cf. Nilo Batista, Novas Tendências, p. 236.
108
Bacigalupo, E., em Derecho Penal, I, Santa Fé, 1992, p. 64; distingue entre tácito e presumi-
do Cerezo Mir, José, em Est. Hom. Rodríguez Devesa, pp. 201 ss.; Segura García, Maria
José, EI consentimiento... , p. 200; Roxin, p. 696; Juarez Cirino dos Santos, pp. 265 e 270.
109 Stratenwerth, p.130; Mezger, 1949, pp. 2 I 9 ss. e Tratado, I, p. 414; Álvaro Mayrink, 2, p.

1.073.
110
Em sentido aproximado, com distinto fundamento, Roxin, p. 704.

243
pois não o requisita o estado de necessidade. O problema surge quando não
há estado de necessidade e, apesar disso, o agente tem razões objetivas
para crer que o titular consentiria, isto é, quando quem presume é um agen-
te que não se encontra em estado de necessidade. Confinnada a presunção
pelos fatos, não haverá tipicidade, reduzida a questão ao caso do agente que,
fora do estado de necessidade, presumiu equivocadamente o acordo do
titular. Quem usa o automóvel alheio, porque a amizade íntima com o dono e as
diversas ocasiões anteriores em que autorizadamente o usou o convenceram
de que, caso consultado o titular, ele pennitiria; a secretária que habitualmente
abre a correspondência e o faz também no dia em que seu chefe aguardava
uma carta que não desejava fosse aberta por ela; temos nesses casos erros
invencíveis de tipo, porque recaem sobre elementos normativos de recorte
do tipo objetivo sistemático, sendo inegável que não há dolo de furto em
quem crê tomar emprestado nem dolo de violação de correspondência em quem
cumpre com seu dever empregatício.

VI. Realização de ações fomentadas pelo direito


1. Há inúmeras atividades fomentadas pelo direito, cujo tratamento ins-
pira políticas pública~ amplamente discutidas: assim, as atividades educacio-
nais, sanitárias, desportivas, de investigação científica, produtivas etc. As
Constituições estaduais, bem como a Constituição Federal, ocupam-se delas,
tanto quanto uma extensa legislação, da lei orçamentária111 aos inúmeros diplo-
mas legais que especificamente fomentem certa atividade. Assim como não é
racional que o direito proíba a mesma conduta que ordena (cumprimento de
dever jurídico), tampouco o será a proibição daquilo que o próprio direito fo-
menta. Como se poderia considerar típica uma lesão corporal que exprime um
resultado possível numa atividade regulamentada e fomentada? Duas dessas ati-
vidades colocaram problemas muito discutidos na doutrina, que a seguir serão
examinados: as atividades desportivas e as médicas terapêuticas ou curativas.

2. A atividade desportiva está claramente fomentada, como "dever do


Estado", pela Constituição (art. 217 CR) e por inúmeras leis vigentes. No curso
dessa atividade podem acontecer lesões corporais, inclusive com resultado morte,
em decorrência dos riscos para a integridade fisica que por vezes tal atividade
implica. Sem essa legislação de fomento, caberia reconhecer no box casos de

111
A juridicidade das lesões em jogos esportivos era extraída por Soler da lei do orçamento: "se
da lei do orçamento se merece um prêmio, do Código Penal não se pode em conseqüência
receber uma pena" (Causas de justificação da conduta, em RDP 5/13).

244
tipicidade dolosa de lesões corporais e nos demais esportes, mais ou menos
violentos, casos de tipicidades culposas. Os próprios regulamentos prevêm me-
didas para rápido socorro aos esportistas lesionados. A exclusão da responsabi-
lidade penal nesses casos experimentou diversos caminhos, que invariavelmente
remetiam à aquiescência prestada pelo próprio participante 112, compreendida
por alguns como atípicidade e por outros como justificação113 . Pelas razões já
expostas, não cabe recorrer à justificação (às pennissões excludentes da
antijuridicidade) quando claramente trata-se de um problema de nonnatividade,
a resolver-se no plano da tipicidade conglobante.

3. Convém distinguir entre: a) os esportes arriscados, com exclusão do


box; b) o box. Nos primeiros, a aquiescência do esportista elimina a tipicidade
conglobante nas condutas sistematicamente típicas (geralmente, culposas) que
ocorrem dentro da estrita prática regulamentar do esporte. Violadas, contudo,
as regras do jogo, a conduta será típica (dolosa ou culposa, segundo os princípi-
os comuns). A violação do regulamento esportivo não deve ser confundida com
a lesão que dela possa resultar: pode uma intencional infração da regra condu-
zir a uma lesão corporal culposa. A intenção de violar o regulamento não equi-
vale à intenção de lesionar o adversário. Como as regras do esporte
estabelecem o limite do risco assumido pelo esportista aquiescente, pode-
se entrever em sua infração uma violação do dever de cuidado. No caso do
box, a questão se modifica, por tratar-se de atividade esportiva que contempla
condutas subsumíveis ao tipo sistemático de lesões corporais dolosas, através
das quais se busca prostrar o adversário pelo tempo mínimo de dez segundos.
Por isso, quando no box ocorrer uma infração das regras, e da conduta infracional
resultar para o adversário uma lesão corporal grave ou mesmo a morte, será
mais adequado trabalhar o caso no modelo complexo do crime preterintencional,
e não apenas culposo. Essas orientações são aplicáveis tanto a competições
oficiais quanto aos esportes como lazer. Um sistema corporativo de justiça e
disciplina esportiva tem constitucionalmente a prioridade para decidir a respeito
dos incidentes lesivos (art. 217, §§ 1° e 2° CR), reservado pois o tratamento
penal apenas para aqueles casos nos quais a agressão esteja limpidamente
dissociada das regras do jogo.

112
Mezger, Studienbuch, II, p. 44; Quintano Ripollés, A., Tratado, l, p. 689; Magalhães
Noronha, Direito Penal, I, p. 200; Frederico Marques, II, p. 146; com peculiares fundamen-
tos, Fernando Capez, Consentimento do Ofendido e Violência Desportiva.
lll Prevalece no Brasil o entendimento de tratar-se de causa de exclusão da antijuridicidade, mais
especificamente exercício regular de direito: Aníbal Bruno, I, 11, p. 15; Cláudio Brandão, p. 126;
Damásio, 1°, p. 399; Cezar Bitencourt, 1, p. 403; Mirabete, 1, p. 191; Regis Prado, 1, p. 397;
Miguel Reale Júnior (Instituições, I, p. 175) recorre à categoria welzeliana da adequação social
(como Fragoso, P.G, p. 199, com respeito às lesões cirúrgicas); Hungria propunha resolver a
questão no campo da culpabilidade, como "um caso forhtito" (Comentários, I, II, p. 311 ).

245
4. Na atividade médica, notoriamente fomentada, "dever do Estado"
(art. 196 CR), distingue a doutrina entre a intervenção cirúrgica terapêutica e
aquela que não tem a finalidade curativa, como a estética, a extração de órgão
do doador para transplante etc. A primeira é invariavelmente fomentada; já a
intervenção cirúrgica não terapêutica às vezes é fomentada (como a legislação
sobre transplante de órgãos revela 114), às vezes não (como a cirurgia plástica).
Nas cirurgias fomentadas pelo direito 115 não se /obriga antinormatividade
da conduta médica, resolvendo-se como atípicidade conglobante; nas ci-
rurgias não fomentadas, chega-se à atípicidade pelo consentimento do ofen-
dido, segundo disciplina já examinada. Embora nas fomentadas também caiba
exigir o consentimento do paciente, sua falta não outorga às lesões cirúrgicas
tipicidade de lesões corporais (art. 129 CP). O artigo 15 CC revogou o inciso Ido
§ 3º do artigo 146 CP: o perigo de vida do paciente já não dispensa seu consenti-
mento. No direito penal brasileiro, alguns casos -pense-se em alguém que, sem
ser médico, para salvar vida do acidentado preso às ferragens do carro e com
hemorragia intensa, conduzindo-o ao hospital, amputa-lhe um dedo - só encon-
trarão solução justificante através do estado de necessidade (art. 24 CP).

5. Essa questão foi extensamente debatida na doutrina, formulando-se


muitas sugestões. Autores mais velhos consideravam que na hipótese havia
lesões típicas, porém justificadas 11 6, incorrendo na contradição de tomar por
típica uma ação claramente fomentada pelo direito e por vezes imposta como
dever de quem age. Posteriormente buscou-se excluir a tipicidade construindo
critérios objetivos fundados na observância das regras da arte médica' 17 , crité-
rios que entravam em colapso perante os inúmeros casos de lesões e homicídi-
os resultantes de meios formalmente medicinais. Poucas dúvidas se formularam

114
Cf. lei nº 9.434, de 4.fev.97, cujo art. 9° pennite "à pessoa juridicamente capaz dispor
gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fins de transplante
ou terapêuticos", outorgando fundamento legal ao consentimento do ofendido. Cf. também
os arts. 13 e 14 CC.
115
Costuma-se diferenciar entre aquelas que têm resultado positivo (que seriam atípicas)
daquelas cujo resultado é negativo (que seriam típicas mas justificadas). Assim, Bockelmann,
Paul, em JZ, 1962, pp. 258 ss.; Frank, StGB, p. 478; Hardwig, Wemer, em GA, 1965, pp.
161 ss.; Mayer, H., 1967, p. 86; Maurach, B. T., 1969, pp. 76 ss.; Schaefer, August, em
Leipziger Kommentar, 1958, p. 258. Consideram-nas sempre atípicas: Schmidt, Eberhard,
Der Arzt im Strafrecht, pp. 67 ss.; Welzel, p. 289; Engisch, ZStW, 58, 1939, pp. 1 ss.; do
mesmo em Heidelberg Jahrbücher, 1960, p. 47; Kohlrausch-Lange, StGB, 1956, p. 444.
Sobre a diversidade de motivos nos quais se funda a atipicidade, cf. Niese, W., em Fest.f
Eb. Schmidt, pp. 364 ss.; Schrõder, Horst, em NJW, 1961, p. 951; Frias Caballero, Jorge -
Codino, Diego - Codino, Rodrigo, Teoria dei delito, p. 299; Jorge Barreiro, Agustín, La
imprudencia punible en la actividad médico-quirúrgica, p. 72; do mesmo, em CPC, 1982,
nº 16, pp. 5 ss.
116
Beling, D.L. v. V., p. 152; Stoos, Karl, Chirurgische Operation und iirtzliche Behand/ung.
117
Eberhard, Schmidt, Der Arzt im Strafrecht; Soziale Handlungslehre.

246
acerca da tipicidade objetivo-fonnal das lesões cirúrgicas, com ou sem finalida-
de terapêutica: do estrito ponto de vista do tipo objetivo sistemático, uma inter-
venção mutilante constitui sem dúvida uma lesão. Por isso, logo após concebido
o tipo complexo, procurou-se excluir a tipicidade ao nível do tipo subjetivo,
fundando-se na ausência de dolo 118; tais argumentos não satisfizeram, já que
remetiam na verdade a um elemento de ânimo, a um elemento subjetivo
extratípico mais característico de uma causa de justificação que do tipo subje-
tivo. Para um setor doutrinário, quando a intervenção cirúrgica tem bom êxito
curativo, a ação seria atípica, e quando ela fracassa seria típica porém
justificada 119, o que não parece responder a um critério sistemático claro, por-
que definitivamente a natureza da eximente dependeria de um efeito que é -
desde que as regras da arte médica tenham sido observadas - sempre aleató-
rio. Em linhas gerais, a doutrina atual resolve a questão no campo do consenti-
mento, que para alguns sempre exclui a tipicidade, embora para outros, em
certos casos, só disponha de eficácia justificante12º. No Brasil, ainda predomi-
nam as soluções justificantes, que ora combinam exercício regular de direito e
estado de necessidade, ora combinam consentimento do ofendido e exercício
regular de direito 121 •

6. A consideração conglobada da nonna deduzida do tipo legal pennite re-


solver a questão ao nível da nonnatividade, sem recorrer ao consentimento quan-
do for evidente o fomento jurídico da ação, tal qual se dá nas intervenções
cirúrgicas de finalidade terapêutica, qualquer que seja seu resultado sobre a
saúde ou a vida do paciente, desde que tenha o médico procedido segundo as
regras de sua arte. A violação dessas regras, acrescida de resultado lesivo da
saúde ou da vida, ensejará lesões corporais culposas ou homicídio culposo122•

118
Welzel, Nuevo sistema, p. 39.
119
Bockelmann, em JZ, 1962, p. 525 ss.; Frank, StGB, 1931, p. 478; Mayer, H., 1967, p. 86;
do mesmo, 1953, p. 170; Maurach, Bes. Teil, 1969, pp. 76-77.
120
Jakobs, p. 295.
121
Para a primeira combinação, Damásio, 1, p. 398 e Cezar Bitencourt, 1, p. 403; para a segunda
combinação, na qual se pode entrever influência residual da tradução brasileira de von Liszt
(Tratado, 1, p. 245) e da doutrina italiana que discutiu o famoso caso Salvatori (cf. Petrocelli,
Biagio, Saggi di Diritto Pena/e, pp. 221 ss.), Frederico Marques, 2, p. 146; Mirabete, 1, p.
192 e Regis Prado, 1, p. 397. A literatura médico-legal contribuiu para fortalecer e divulgar um
amplo "direito de curar", que Leonídio Ribeiro tematizou em 1932 na sua livre-docência; cf.
Flamínio Fávero, Medicina Legal, 3, pp. 77 ss. Trabalhando na metade do século XX, Aníbal
Bruno registrava a tendência doutrinária européia: "grande número de autores têm encaminha-
do a questão para o domínio da tipicidade" (Direito Penal, 1, II, p. 12, nota 3).
122
Schõnke - Schrõder, p. 1.087; sobre erro de diagnóstico, Rechtsfragen des Artzes. Übersicht
iiber das schweizeriche Artzrecht, p. 18; Sunn, Ántor, Errores Médicos, pp. 95 ss.; Nouah
Moraes, Irany, Erro Médico e a Lei, pp. 163 ss.; Coutinho, Luiz Augusto, Responsabilida-
de Penal do Médico, pp. 59 ss. Uma coletânea de erros médicos na jurisprudência espanho-
la em López-Munoz y Larraz, Gustavo, E/ Error Sanitario.

247
Quando estivermos diante de intervenções cirúrgicas sem finalidade terapêu-
tica, a falta de consentimento deixa típica a lesão, que igualmente não se ampa-
rará em qualquer causa de justificação. O erro sobre a normatividade da ação
por parte do médico, seja por ter acreditado que o consentimento lhe fora outor-
gado, seja por supor que poderia ter atuado sem ele, constitui erro de proibição.
Nesta chave caberia resolver o caso do cirurgião que, após uma cesariana, este-
riliza a paciente sem obter seu prévio consentimento, diante do risco para a vida
dela que poderia resultar de nova gravidez 123 • É claro que a cirurgia poderia, sem
qualquer perigo para a vida da paciente, aguardar por sua decisão, que poderia
optar por abrigar-se do risco em outros meios que igualmente impediriam a nova
gravidez. Nas intervenções não terapêuticas consentidas com resultado negativo
as lesões por violação às regras da arte médica serão culposas, mas se faltar o
consentimento e houver violação das regras médicas que conduza a resultado
negativo mais grave do que o proposto, as lesões ou a morte submeter-se-ão à
figura complexa do crime preterdoloso. De nenhum modo será cabível por em
relevo elementos de ânimo no âmbito da tipicidade, como o prazer que tenha o
médico sentido pela dor do paciente ou por tocar seu corpo 124, bastando que
objetivamente não tenha ele ultrapassado os limites impostos pela /ex artis.

7. Já que a questão jurídico-penal nas intervenções cirúrgicas ganha relevo


quando ocorre resultado negativo, é preciso conceituar o resultado positivo,
como tal entendendo-se a obtenção do restabelecimento da saúde, Ol! sua
conservação, ou a permanência no estado precário em que se encontrava,
ou o alívio de conseqüências desse estado ou ainda a neutralização ou
postergação de males maiores, sempre que isso fosse possível a partir das
oportunidades oferecidas pelo conhecimento cientifico e pelos meios dis-
poníveis na concreta emergência. Extrái-se daí que as intervenções mutilantes
podem ter resultado positivo, como tantas vezes se dá na ablação de um órgão. O
mesmo se diga de intervenções preventivas menores, tais como vacinações e
colheita de amostras para fins diagnósticos 125• A solução dos casos dependerá
também do preciso conhecimento das regras da arte médica, cristalizadas em
atos normativos ou preceituadas na literatura científica (em ambos os casos,
sempre sujeitas a se verem invalidadas ou ultrapassadas por novas descobertas)
ao escopo de indicar os adequados procedimentos cirúrgicos, diagnósticos ou
curativos, e as medidas de precaução das quais sua execução deverá cercar-se.
Todos os erros, inclusive os de diagnóstico, que poderiam representar- ou não -
violação das regras técnicas da profissão médica devem ser apreciados ex ante 126•
123
Roxin, p. 700.
124
Em sentido contrário Mayer, M. E., 1915, p. 185.
m Cf. Schaefer, op. cit.; Mezger - Blei, Bes. Teil, p. 51.
126
Schõnke - Schrõder, p.1087.

248
8. A existência, expressamente requisitada pela lei e por diversos atos
normativos dos órgãos representativos da corporação médica, de um "diretor
técnico médico", não implica de nenhuma forma pressupor sua responsabilida-
de penal por qualquer delito ocorrido no ambiente hospitalar administrativa-
mente, sim, sob sua responsabilidade: o contrário significaria consagrar a
responsabilidade objetiva nesse terreno. A divisão de tarefas e a alta especiali-
zação demandada por cada uma delas torna evidente que tais situações de
compartilhamento, simultâneo ou sucessivo, de atenção médica a um mesmo
paciente ou grupo de pacientes deve submeter-se ao princípio da confiança 127•
Especial atenção merecem as intervenções cirúrgicas denominadas mudança
de sexo (transexualismo). Constituem elas, sem sombra de dúvida, interven-
ções de finalidade terapêutica: embora não disponhamos de um regulamento
legal, a Resolução nº 1.482/97 do Conselho Federal de Medicina, revendo pare-
ceres anteriores (nº. 11/91 e 12/91) em sentido contrário, autorizou a realização
de cirurgias transexuais, ainda que restritas a serem executadas gratuitamente
em hospitais universitários ou públicos ligados à pesquisa. 128

9. Não têm finalidade terapêutica as colheitas de amostras destinadas a


perícias médico-forenses e as aplicações de álcool ou outras substâncias utili-
zadas para diagnosticar embriaguez patológica ou sensibilidade a certas dro-
gas. A aplicação, autorizada pelo suspeito, do chamado soro da verdade constitui
uma lesão dolosa consentida. Um caso especial de intervenção cirúrgica sem
finalidade terapêutica está no abortamento de gravidez resultante de estupro
(art. 128, inc. II CP), no qual a própria lei dá relevo ao consentimento da mulher
que, conjugado ao exercício de direito (à regular prática profissional) do médi-
co, é concebido pela doutrina brasileira predominante como justificação da con-
duta (exclusão de antijurídicidade). No caso do aborto necessário (art. 128, inc.
I CP), cabe pensar num estado de necessidade justificante tanto para a gestan-

127
Para o diretor técnico médico, cf. dec. nº 20.931, de 11.jan.32, art. 28; dec.lei nº 4.113, de
14.fev.42; Res. CFM nº 788, de 13.mai.77; Res. CFM nº 1.342, de 8.mar.91, art. !º; Res.
CFM nº 997/80, art. li; no Estado do Rio de Janeiro, cf. dec. est. nº 1. 754, de 14.mar. 78 e
Res. CREMERJ nº 17, de 27.mai.87. Para o princípio da confiança em atividades médico-
cirúrgicas, cf. Nilo Batista, Novas Tendências, pp. 177 ss.; de forma ampla, Mário Pimentel
Albuquerque, Princípio da Confiança no Direito Penal.
128
Heleno Fragoso, Transexualismo - Cirurgia. Lesão corporal, em RDP 25/25; uma posição
conservadora em Valdir Sznick, Aspectos Jurídicos da Operação de Mudança de Sexo;
amplo painel em Ana Paula A. Barion Peres, Transexualismo - o Direito a uma Nova
Identidade Sexual; Antônio Chaves, em Justitia, 1977, nº 98, pp. 63 ss.; do mesmo, RT 707/
8; na Argentina tal círurgia é ainda proibida (lei nº 17.132); as tendências européias - na
Alemanha, autorizada desde 1969- podem ver-se em Transsexualisme, Médecine et Droit,
atas do XXlll Colóquio de Direito Europeu, 1993 (ed. Un. Amsterdã); sobre questões
jurídicas associadas à alteração de nomes no registro civil, cf. Patti, Salvatore e Will, Michael
R., Mutamento di Sesso e Tutela de/la Persona.

249
te quanto para o médico, tomando como mais valiosa a vida socialmente expe-
rimentada e exercida do que a intra-uterina.

1O. O consentimento do paciente tem sempre como pressuposto que o


médico cumpra com um dever de informação, que nas intervenções sem fina-
lidade terapêutica deve ser ampla e minuciosa, incluindo todos os riscos possí-
veis 129 • Nas intervenções terapêuticas a extensão desse dever é mais
problemática, ao influxo de que as próprias regras da arte médica indicam que
por vezes será conveniente limitá-lo; nas últimas décadas tende a impor-se na
opinião médica o dever incondicional de informação, o que do ponto de vista
jurídico é mais conveniente, na perspectiva do respeito à pessoa do paciente.
Não existe, como regra geral, qualquer exigência formal para o consentimento;
mesmo para a doação de órgãos ou tecidos para transplantes, a forma escrita é
apenas preferencial, não obrigatória (art. 9º, § 4º da lei 9.434, de 4.fev.97).
Quando não for possível obter o consentimento do paciente e existir perigo
para sua vida, ao invés de invocar um dubitável consentimento presumido ca-
berá antes considerar o dever jurídico que obriga o médico a intervir e salvar a
vida, resolvendo-se no cumprimento de dever a exclusão da tipicidade
conglobante. O dispositivo do artigo 146, § 3º, inc. I CP, que levava a solução
para a antijuridicidade (como especial estado de necessidade justificante) ou,
segundo minoria doutrinária, para a tipicidade (a partir da expressão "não se
compreendem na disposição deste artigo", excluída formalmente, enquanto
tipicidade sistemática), foi revogado pelo artigo 15 CP. Quando aquele que
intervém para salvar a vida ou evitar uma lesão maior não for médico, incidirá
- então, sim - o estado de necessidade justificante (art. 24 CP).

129
De Vicentis - Zangani, em La Giustizia Pena/e, Roma, 73, 1968, p. 321 ; Altavilla, E., La
culpa, p. 535; Bockelmann, em NJW, 1961, pp. 945 ss.; Engisch- Hallennann, Die iirtzliche
Aujkliirungspflicht bei iirtzlichen Eingriffen ais zivilrechtliches Prob/em; Gründwald, Gerald,
em ZStW, 73, 1961 , pp. 5 ss.; Roemer, Hans, em JZ, 1960, pp. 137 ss.; Fraga Mandián, A.
e Lamas Meilán, M.M., E/ Consentimiento Informado; Casta1'o de Restrepo, M .P., E/
consentimiento informado dei paciente en la responsabi/idad médica. Quando o médico
descumprir seu dever de infonnação poderá responder como autor mediato: Jakobs, La
autoría mediara con instrumentos que actúan por error como problema de imputación
objetiva, p. 33.

250
§ 33. IMPUTAÇÃO COMO PERTENCIMENTO AO AGENTE
I. Dominabilidade do fato pelo autor
1. É inconcebível possa alguém dirigir (ou governar, ou conduzir, ou contro-
lar) um curso causal quando não lhe for concretamente possível orientá-lo até a
mutação mais ou menos determinada do mundo físico. Só podemos atribuir a
título doloso um fato a alguém (podendo considerar-se o fato como próprio dele,
como sua obra) quando o autor arquiteta um plano racional, segundo o qual calcu-
lou que se desenvolveria a causalidade, e interpõe uma causa necessária para
seu êxito, sem a qual o plano não se realizaria. Essa constatação é indispensável
para que a tipicidade conglobante cumpra a função imputativa, permitindo consi-
derar o agente como autor doloso, pois foi o "senhor" (dominus) daquele aconte-
cimento, teve o domínio do fato 130. O plano racional deve ser elaborado em
concreto e somente a partir de sua particular configuração (plano concreto do
fato) pode-se estabelecer o domínio. Em nenhum caso cabe deduzir o domínio
diretamente da fórmula esquemática legal (tipo legal), necessariamente abstrata;
jamais acontecem, na vida, ações abstratas de furto ou de homicídio, servindo o
tipo para reconhecer, ou não, concretas ações de subtração de certas coisas ou
de matar alguém, segundo modos particulares integrantes de específicos planos.

2. A previsibilidade é um pressuposto necessário da dom inabilidade de um


curso causal, mas insuficiente, pois nem todos os cursos causais previsíveis são
domináveis, a exemplo de uma inundação. Daí provém o fracasso da teoria da
adequação social: através dela se excluía a tipicidade nos chamados cursos
causais inadequados, subsistindo contudo cursos causais adequados de imputa-
ção dolosa inadmissível, como disparos de arma de fogo com ínfima ou remota
possibilidade de produzir o resultado (atingindo o alvo), e que não podem ser
tomados como parte de um plano racional. Por isso a teoria da adequação foi
reformulada sobre a base da possibilidade e da probabilidade 131 •
130
"Espécie de esfera de domínio, fundado em seu poder cognoscitivo e volitivo" - Antolisei,
Francesco, Manuale , p. 184; para a mesma problemática -e como corretivo-sem conceituá-
la, mas empregando o mesmo termo (Beherrschbarkeit), Ebert, Udo, Strafrecht. p. 44; a uma
"planejabilidade racional" se refere Toepel, Kausalitat und Pflichtwidrigkeilszusammenhang
beim fahrlassig E1folgsdelikt; o conceito de "controlabilidade" é empregado por Otto, em
Fest.f Maurach, p. 91; também emJuS, 1974, p. 702; sobre a origem-que remonta a Hegler
- e o desenvolvimento do conceito de domínio do fato, na dogmática, cf. Roxin, Taterschafi
und Tatherrschaft, pp. 60 ss. Contudo, Tomás de Aquino observou que "um ato (humano) é
imputado ao agente quando está sob seu poder, e assim tenha domínio sobre ele (actus
imputatur agenti, quando est in potestale ipsius, ita quod habeat dominium sui actus )"; cf.
Summa Theologiae, II, I, Q. 21, art. 2, resp.
131
Engisch, K., Die Kausa/itiit, pp. 44 ss.; Rudolphi, SK, §1º, p. 24.

251
3. Existe um vínculo indescartável entre autoria e limites da imputação
objetiva: o termo autor é relacional, requisitando um complemento (autor de
quê), e portanto a imputação de alguma coisa a uma pessoa como produto de
sua vontade supõe a presença de certas condições objetivas. O equívoco de
Welzel, em seu momento, foi perguntar-se pelo dolo no tipo subjetivo esquecen-
do-se de que há casos nos quais desde o tipo objetivo está evidente ser impos-
sível o dolo. Não está errado Jakobs ao afirmar que o direito penal define o
autor e que este conceito sob a teoria finalista era mais reduzido do que sob o
causal ismo. Mas a definição de autor, enquanto aquele que dá origem, inventa
ou institui algo, é indissociável deste algo dele originado ou por ele inventado ou
instituído. Sendo impensável um autor (Tiiter) sem seu fato (Tat), não pode
haver autoria se não houver domínio do fato (Tatherrschaft) pelo autor, ou
seja, quando não se puder considerar o fato como obra própria do autor. Autor
e fato são termos de um juízo analítico e não sintético. Sem domínio do fato
não existe autoria dolosa; sem a possibilidade objetiva de dominação do
fato (dominabilidade) é supervacânea a pergunta sobre a existência real
e efetiva de domínio; a dominabilidade constitui o pressuposto objetivo
do domínio do fato.

4. A renúncia ao domínio do fato para distinguir a autoria da participação


nos crimes comissivos dolosos importa em ampliar o conceito de autor e criar
uma nova concepção extensiva de autor: para a velha concepção extensiva, todo
causante era autor e a participação não passava de uma modalidade atenuada de
autoria; para a nova concepção extensiva, todo causante que viola papéis é autor
e somente a envergadura da intervenção os distingue 132. Isso importa em renun-
ciar à acessoriedade como característica da participação e em afirmar arbitrari-
amente que toda contribuição é necessária para a produção do resultado, o que a
experiência desmente, já que sempre existem planos concretos segundo os quais
certas contribuições não são necessárias para seu êxito 133 . O esforço para bus-
carum novo critério imputativo que substitua a velha causalidade lisztiana, e que
seja válido para todas as formas típicas, obriga a negar qualquer diferença
imputativa entre elas e, logo, a reconstruir um conceito único de autor, que há um
século era o causante e agora se pretende seja o não evitante. A negação da
categoria do domínio do fato no autor comissivo doloso aparece assim como um
estratagema de harmonização sistemática, porque do contrário não se poderiam
parificar imputativamente todas as formas típicas 134.

132
Jakobs, la imputación objetiva, p. 69; para o conceito, Tratado, p. 798; no mesmo sentido,
Lesch, H., lntervención de/ictiva e imputación objetiva, p. 73; também Sancinetti, M., Ilícito
personal y participación; Pimentel Albuquerque, Mário, Princípio da Confiança, pp. 119 ss.
133
Jakobs, la imputación objetiva, p. 65.
m Küpper, George, Grenzen der normativierenden Strafrechtsdogmatik.

252
5. A tipicidade objetiva se integra com um sujeito que dispõe da possibili-
dade objetiva de dominar o fato: sem dominabilidade uma autoria comissiva
dolosa é inconcebível. A dom inabilidade abre as portas à pesquisa sobre a exis-
tência efetiva de um plano concreto dirigido à produção do resultado, porém tal
pesquisa será realizada no tipo subjetivo. Quatro regras podem auxiliar no
equacionamento desse problema. a) A primeira regra postula que naqueles
cursos causais que, no atual estado da ciência e da tecnologia, não po-
dem ser dominados por ninguém, a análise não precisa esperar pelo tipo
subjetivo para só então pesquisar e excluir o dolo, porque não tem senti-
do pesquisar o dolo quando no tipo objetivo não se apresente um curso
causal capaz de ser dirigido por iniciativa humana. Pouco importa seja a
causalidade explicada ex post: que um curso causal seja explicável não signifi-
ca seja também dominável.

6. O caso do parente enviado à montanha com a esperança de que o


fulmine um raio não deve ser resolvido na falta de dolo e sim na atípicidade
objetiva, perante a ausência de uma causalidade dominável como requisito bá-
sico do tipo objetivo, e nenhum observador externo poderia ex ante vislumbrar
naquele fato um plano de homicídio. Quando ninguém pode aspirar ao domínio
do fato - quem é capaz de determinar o local exato onde os raios caem? - a
autoria comissiva dolosa é impensável. O mesmo se passa naquelas situações
similares ao chamado caso Thyrén 135 : quando um sujeito em movimento dispa-
ra, a quinhentos metros de distância, com um rifle de cano meio torto, em
terreno escarpado, com vento forte e baixa luminosidade (ao crepúsculo), con-
tra alguém que está correndo, ativou uma causalidade que ninguém pode domi-
nar, pois não existe técnica disponível para, sob tais condições, atingir o alvo
com margem mínima de acerto. O resultado, nesses casos, aparece como um
efeito fortuito, casual, da conduta. Arquetípica é a história de Davi que, ambici-
onando casar-se com Bate-Seba, já grávida de Salomão, remeteu seu marido
para o front, com a esperança - que veio a realizar-se - de morrer ele em
combate 136. Analogamente, não se pode imputar ao diretor de uma rede de
televisão a morte do repórter enviado a uma zona da cidade na qual poderia
defrontar-se com membros de uma quadrilha cuja identidade, em reportagem
anterior, ele divulgara, ainda que o diretor desejasse secretamente sua morte.
Certos casos que, no direito penal brasileiro, são tratados como interrupção do
nexo causal (art. 13, § 1º CP), têm a indominabilidade como conteúdo: não se

135
Um homem inexperiente com armas disparou, necandi animo. contra outro, de uma distân-
cia da qual um atirador de elite não conseguiria acertar, ocorrendo contudo que a bala atingiu
e matou a vítima; sobre a hipótese, Gimbemat, Ordeig, Delitos cualificados, p. 39; Martínez
Escamilla, M., La imp111ación objetiva dei resultado, pp. 108 ss.
136
Samuel, 2, 11.

253
pode imputar ao autor dos disparos de anna de fogo a morte da vítima pelo
incêndio do hospital, ou por subseqüente ação dolosa ou culposa de terceiro.
Sobre erros e omissões médicas que causam a morte de quem tinha sido
dolosamente lesionado propuseram-se distinções sutis 137• Parece razoável afir-
mar que a imputação não pode ser excluída apenas quando os erros ou omis-
sões médicas forem produto da própria situação de necessidade excludente da
responsabilidade médica, gerada pela emergência provocada pela ação dolosa.
Ao contrário, cabe pensar que a imputação se exclui quando a vítima se nega
ao tratamento 138, quando contrái outra enfennidade, quando sobre ela recái
outro atentado doloso, quando o médico incorre em erro ou omissão não gera-
dos pela emergência clínica provocada pela ação dolosa. Igualmente, não se
poderá imputar o resultado qualificante morte quando a vítima de seqüestro
está sendo transladada com todo o cuidado, sobrevindo acidente de trânsito, de
responsabilidade total e exclusiva do motorista do outro veículo, que a mata
(art. 159, § 3º CP). Tampouco haveria homicídio se alguém engravida a mulher
tuberculosa esperando que ela morra; nem instigação ao suicídio se o sujeito
abandona o lar conjugal, ainda que com a mulher gritando "vou me matar!";
etc. Pedir ajuda a Deus costuma ser um sintoma seguro da indominabilidade de
um curso causal presente.

7. Observemos agora os cursos causais humanamente domináveis. Con-


vém distingui-los entre aqueles cursos causais domináveis por qualquer pessoa,
que não oferecem maiores problemas, daqueles domináveis apenas por quem
disponha de conhecimento ou de adestramento especial. Assim se formula b) a
segunda regra: o curso causal é dominável quando o agente reúne as
condições de conhecimento e adestramento especiais necessárias para
assumir o domínio do fato. Tradicionalmente se afinna que tal conhecimento
e adestramento especiais não podem ter significação no âmbito da tipicidade
objetiva, remetendo-se sua análise ao dolo 139• Há quem os insira na tipicidade
objetiva, desde que estejam abrangidos pelo papel, sendo os demais irrelevantes,
ensejando no máximo omissão de socorro 140. Em verdade, isso se funda na
confusão entre os conhecimentos efetivos e atuais requeridos pelo dolo

137
Roxin, p. 350.
Ili Essa vertente se enraíza no debate histórico, anterior ao causalismo, sobre lesão mortal,
presente em nosso C.Cr. 1830 (cujo art. 194 minorava a pena do homicídio consumado "não
porque o mal causado fosse mortal, mas porque o offendido não aplicasse toda a necessária
diligência para removê-lo") e em nosso CP 1890 (cujo art. 295, § 2°, também minorava a
pena quando o resultado morte proviesse de "ter o offendido deixado de observar o regimen
medico-hygienico reclamado pelo seu estado").
9
ii Assim Kaufmann, Annin, em ADPCP, 1985, p. 805; Struensee, Eb., em Hom. a David
Baigún; Sancinetti, Marcelo A., em Teorias actuales, cit., pp. 187 ss.
140
Jakobs, la imputación objetiva, pp. 54-55.

254
(dados eminentemente subjetivos) e as qualidades objetiváveis que habili-
tam a dominabilidade de um curso causal, sem que antecipem ou possam
antecipar nada sobre a efetividade do domínio do fato 141 • A condição de enge-
nheiro eletrônico é tão objetivável quanto a de analfabeto digital, e para o pri-
meiro pode-se reconhecer, no tipo objetivo, a dominabilidade de um curso causal
que ocorra na operação de um computador, enquanto para o segundo isso seria
tão absurdo quanto investigar o dolo em quem enviou seu parente à montanha
com a esperança de que o fulminasse um raio; isto, sem prejuízo da possibilida-
de de que o engenheiro, ao invés de ter realmente exercido o domínio do fato
para o qual estava habilitado, tenha acionado o curso causal com uma involuntária
cotovelada no computador para evitar que nele caísse café - questão, aí sim, a
analisar-se na tipicidade subjetiva.

8. A circunstância de que alguém tenha sido informado sobre um possível


curso causal- o camareiro a quem avisaram que conduzia na bandeja um prato
envenenado, o ator que soube que o contra-regras municiara a arma com balas
verdadeiras, o parente avisado de que poriam uma bomba no avião - é tão
objetivável quanto por exemplo a qualidade de funcionário público, e unicamen-
te aporta a mera possibilidade objetiva do dolo. Para que haja dolo, ou seja,
para que o fato objetivamente típico seja também subjetivamente imputável
como doloso, será preciso que o camareiro, o ator e o parente tenham acredita-
do piamente na seriedade da informação, que a tenham registrado em sua me-
mória e que a atualizem no momento de agir (servindo o prato, disparando
contra a atriz, embarcando o parente); tais questões integrarão a análise do
dolo no tipo subjetivo. Para que aquele outro camareiro, o biólogo deslocado,
atue com dolo será necessário tenha ele efetivamente aplicado seus conheci-
mentos, que haja se advertido para as propriedades peçonhentas do prato que
estava servindo, que o tenha claramente identificado e associado a efeitos le-
tais etc. A condição de biólogo apenas assevera a possibilidade de seu dolo.
Pretender que a ele não se imputaria a morte do cliente porque não atuava
enquanto biólogo, como resultado da normativização de papéis, equivale are-
duzir a interação social a um jogo de dramaturgia jurídica, ao custo insuportável
de abrir mão da verdadeira vontade dos atores e das respectivas possibilidades
de atuar com essa vontade. No âmbito da tipicidade objetiva, dada a qualidade
objetivada do agente, o observador externo poderá supor ou não a existência de
um plano. Assim, não se pode imputar a morte do tio ao sobrinho que o conven-
ceu a viajar de avião e o levou ao aeroporto; mas será diferente se alguém
houvesse informado ao sobrinho que naquele avião um agente da CIA iria pôr
uma bomba. No primeiro caso, o observador externo não pode supor a existên-

141
Analogamente, embora referido ao risco, Frisch, W., Tipo penal e imp11tación objetiva, p. 105.

255
eia de um plano, mas, no segundo, a circunstância objetiva de alguém ter infor-
mado ao sobrinho a bomba viabiliza tal suposição.

9. Também é impossível dominar o fato quando a ação se apresenta como


irracional à luz de um juízo de conseqüência entre meios e fins. Daí provém
uma e) terceira regra, segundo a qual não há dominabilidade quando os
meios são notoriamente inadequados para a obtenção dos fins através
deles perseguidos. Aqui, já não se trata de uma causalidade que não seja
dominável por ninguém, ou que apenas se sujeite ao domínio por peritos ades-
trados. Aqui se trata de uma falta de dominabilidade provocada pela escolha de
meios grosseiramente inidôneos para alcançar o resultado. A ação humana é
compreensível porque os humanos costumam agir racionalmente. Suas cren-
ças podem, no entanto, confundi-los sobre o que é ou não possível fazer. Essas
crenças, que asseveram sobre certos aspectos do mundo, constituem um modo
de conhecê-lo; independentemente de suas eventuais ambigüidades e incerte-
zas, emprestam freqüentemente subsídios para a ação. Aquilo que se chama
"fisica popular' 142 permite à maioria dos humanos saber que não se pode
caminhar sobre a água. Parte da tisica popular é inata, mas outra parte é apren-
dida. A dominabilidade está sempre condicionada por essas crenças, que em
certo sentido configuram uma espécie de valoração paralela na esfera do
leigo referida ao mundo tisico.

10. O observador externo que vê o sujeito dirigir-se à estação ferroviária


pode inferir um plano de viagem de trem, não porém de navio: neste último caso
haveria grosseira inconseqüência entre meios e fins, descartada toda
dominabilidade desse agente que pretenda atravessar o Atlântico a bordo da
locomotiva 143 • Na desavença menos burda entre meios e fins, produzindo-se o
resultado desejado, só se pode imputá-lo à fortuna. Freqüentemente hábitos,
tradições, preconceitos e superstições - devido à tendência de pensar que as
coisas são como se gostaria que fossem - fazem com que meios escolhidos
não apenas não sejam os mais indicados, mas por vezes sejam grosseiramente
inadequados e absurdos. É isto o que se dá nas chamadas tentativas aparen-
tes com resultado. Não se trata apenas de tentativas mágicas ou supersticio-
sas, mas de erros grosseiros sobre a causalidade: o sujeito crê dominar um
curso causal quando é carecedor de todo pressuposto objetivo para fazê-lo.
Por isso, não se pode reconhecer a tipicidade objetiva da ação. O sujeito que
endossa um cheque cruzado nominal a terceiro e o deposita em sua conta,

142
Dennett, Daniel, La actitud intencional, p. 21 .
143
Sobre esta subversão da racionalidade nas ações, Davison, Donald, Ensayo sobre acciones
y sucesos, p. 112; Naishtat, Francisco, La raciona/idad... , p. 335.

256
sendo creditado por um erro em cadeia de todos os controles bancários, do
caixa ao clearing, em nenhum momento teve o domínio do fato, simplesmente
porque era indominável, e o resultado é inteiramente fortuito.

11. Por fim, chegamos à d) quarta regra, segundo a qual quando não
há dominabilidade não é possível imputar objetivamente no delito doloso,·
mas como este critério imputativo circunscreve-se ao delito doloso, nada
impede a possibilidade de tipicidade culposa da conduta. Não obstante,
convém realçar que na tipicidade culposa também pode haver dominabilidade
do fato, porque em certas situações um observador externo ex ante assevera-
ria a existência de um plano criminal e o aporte de uma causa suficiente para
sua realização por parte do agente, porém isto não se confirma no tipo subjeti-
vo, porque o agente não assumiu efetivamente o domínio. Seriam os casos de
culpa temerária, únicos nos quais pode apresentar-se uma questão defrontei-
ras com o dolo eventual 144•

li. Exigência de colaboração não banal do partícipe


1. Por definição carece o partícipe do domínio do fato, e portanto para o
partícipe a dominabilidade não pode operar como critério irnputativo limitador na
tipicidade objetiva. À míngua desse critério, qualquer contribuição causal, por mais
trivial e corriqueira que fosse, poderia ser imputada como cumplicidade, restringida
tão somente no campo do tipo subjetivo pelo dolo de cooperar ou favorecer. Para
evitar essa conseqüência, Jakobs propõe a exclusão dos aportes realizados em
função de papéis banais ou papéis cotidianos inócuos145 , o que permitiria esta-
belecer uma proibição de regresso na imputação por cumplicidade146• A proposta,
inconvincente na autoria (na qual o domínio do fato gera mudança de papel), parece
aceitável na cumplicidade, à qual se outorgaria então um limite objetivo.

2. Não é possível subscrever a proposta de Jakobs na medida em que,


nesses casos, define os limites do papel com a infração de deveres administra-
tivos 147, o que se aproxima muito do vesari in re illicita e esvazia a perspectiva

144
Cf. infra §§ 34 e 36.
5
" Jakobs, pp. 258 ss.; La imputación objetiva, pp. 30 e 62 ss.
146
Sobre o conceito, Roxin, p. 928; também em Fest.f Trondle, pp. 177 ss.; vinculando-o ao
princípio da confiança, Schõnke - Schrõder- Cramer, § 15, nº 154; sobre a impunidade de
cooperação culposa em delitos dolosos, Wehrle, Fahrliissigkeit Beteiligung am Vorsatzdelik
- Regressverbot?, pp. 126 ss.; Otto, H., em Fest. f Maurach, p. 91; um amplo painel das
teorias fundamentadoras em Luís Greco, Cumplicidade por Ações Neutras.
147
Cf. La imputación objetiva, p. 75.

257
redutora do poder punitivo. Cabe, portanto, incorporar a tese da colaboração
não banal como exigência para a relevância típica do aporte objetivo na cumpli-
cidade tão somente in bonam partem, sem admitir nenhuma conseqüência
derivada de infrações administrativas.

3. Incorporada, por motivos funcionais redutores, a tese do papel no cam-


po da tipicidade objetiva do partícipe, é preciso distinguir entre papéis banais 148
e não banais. Embora a colaboração realizada em função de um papel banal
tome sempre tipicamente irrelevante o aporte do partícipe, não se reconhece-
rá um papel banal sempre que ele implicar perigos dos quais se extraiam
deveres de abstenção ou de cuidado para evitar lesões do gênero daque-
las produzidas pela causalidade para a qual se contribui, independente-
mente de que alguma violação desses deveres constitua ilícito civil, administrativo
ou mesmo penal. Por outro lado, o papel banal deixa de sê-lo quando as
circunstâncias objetivas concretas e evidentes alteram significativamente
a banalidade original.

4. O bom padeiro não repudia ou viola seu papel quando vende pão,
mesmo se o freguês lhe disser que pretende usá-lo para, envenenando-o, matar
toda a sua família 149• O ferreiro está na mesma situação enquanto vende talhe-
res de mesa, embora o cliente lhe diga ser sua intenção valer-se deles para
assaltar passantes ou seqüestrar aviões. Mas quando o boticário vende um
veneno a solução é diferente, por causa do perigo que objetivamente aí reside,
o qual lhe impõe cuidados tendentes a evitar uma destinação lesiva ou letal,
independentemente das interdições e restrições administrativas para comerciá-
lo. Idêntica seria a situação do vendedor de armas, submetido a deveres de
cuidado que não vinculam o padeiro. O vizinho abelhudo que escutasse o diálo-
go do boticário que vende o veneno a alguém que afirma pretender matar toda
a família ficaria muito mais preocupado do que se ouvisse o diálogo do padeiro.
Em outras palavras: o fornecedor de arame farpado não pode ser considerado
cúmplice do genocídio de Auschwitz, porém não cabe o mesmo raciocínio liminar
perante o fornecedor de gás ou o construtor das câmaras disfarçadas de ba-
1
" Dos quais se originaria uma participação aparente, Jakobs, p. 842.
°
1
Casos com a mesma questão em Jakobs, pp. 259 ss. e 843 ss.; La imputación objetiva, p.
75; Lesch, H., Die Verbrechensbegriff, pp. 257 ss.; também, Frisch, Tatbestandsmiissiges
Verhalten und Zurechnung des Erfolgs, pp. 230 ss.; objeções em Roxin, tanto no que se
refere a uma proibição de regresso absoluta, que não pode prevalecer quando uma conduta
estimula a perceptível propensão ao cometimento do crime de um potencial autor doloso
(delito culposo), quanto à amplitude que implica a tese de Jakobs (Tratado, p. 844) de
imputar ao primeiro interveniente culposo, em caso de segunda ação dolosa, quando seu
sentido objetivo só possa estar a serviço da realização de um crime, até porque mesmo uma
arma de guerra pode ser utilizada para finalidades lícitas (Roxin, p. 929; Bemerkungen zum
Regressverbot, p. 186).

258
nheiros coletivos. A banalidade do papel não se detennina jamais em função de
deveres administrativos, pois estes podem ser violados sem que o papel perca
sua banalidade, nos casos em que o resultado não integra a classe de riscos
próprios do papel (o padeiro vende ao freguês homicida pão impróprio para o
consumo); inversamente, pode-se observar estritamente os deveres adminis-
trativos e o papel deixar de ser banal (o anneiro vende munição ao homicida
que possui legalmente arma registrada; o fornecedor de gás a Auschwitz está
habilitado legalmente a vendê-lo e transportá-lo, cumprindo todas as regras
pertinentes). Não se pode comparar o fornecimento de gás a Auschwitz com o
fornecimento de pão e bebidas a um bordel, como participação em casa de
prostituição, pois não há como vincular o cuidado na venda de alimentos com a
liberdade sexual das pessoas. O transporte público de um terrorista, ou o deve-
dor que paga sua dívida sabendo que o credor empregará o dinheiro na compra
de uma arma para matar alguém 150, são outros exemplos de colaborações ba-
nais, pela distância entre o cuidado devido nessas ações e as ofensas.

5. A exclusão da imputação na tipicidade objetiva conglobante tendo em


conta a banalidade da colaboração é válida na medida em que as circunstânci-
as objetivas concretas e presentes não dotem de relevância o aporte prestado.
O ferreiro que vende talheres de mesa não será cúmplice no homicídio no qual
porventura uma faca seja empregada como arma, porém sua colaboração terá
natureza diversa, consubstanciando cumplicidade, quando vende talheres aos
contendores que travam uma rixa tumultuária diante de sua loja.

6. Os limites imputativos em função de colaborações banais ou cotidia-


nas e inócuas, com as restrições assinaladas, constituem critério idôneo para
fundamentar uma proibição de regresso garantidora na tipicidade objetiva por
cumplicidade, já que a acessoriedade retira dos partícipes o domínio do fato.
Ante a orfandade limitativa dessa forma de extensão da tipicidade, a banalida-
de do papel oferece solução aceitável para um problema característico da par-
ticipação. A colaboração não banal do partícipe nos brinda um instrumento
idôneo para distinguir a participação da mera e impunível conivência.

iso Jakobs, p. 259; Luis Greco, Cumplicidade através de Ações Neutras, p. 165.

259
260
CAPÍTULO XV

TIPO DOLOSO ATIVO ( OU COMISSIVO DOLOSO):


ASPECTO SUBJETIVO

Ambrosius, Jürgen, Untersuchungen zur Vorsatzabgrenzung, Berlim,


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de la criminalidad de! acto, em JA, 1975, pp. 471 ss.; Canestrari, Stefano,
Dolo eventuale e colpa cosciente. Ai confini tra dolo e colpa nella struttura

261
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262
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ohne Vollendugsvorsatz und Vollendugsschutz? Zugleich ein Beitrag zum
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269
§ 34. DOLO: O NÚCLEO REDUTOR SUBJETIVO DA
TIPICIDADE

/. Conceito e fundamentos
1. Dolo é a vontade de realizar o tipo, guiada pelo conhecimento dos
elementos do tipo objetivo necessários para sua configuração. No dolo,
este conhecimento é sempre efetivo e recái sobre os elementos do tipo obje-
tivo sistemático (incluindo os elementos normativos de recorte ou normativos-
valorativos) e também sobre os elementos imputativos do tipo objetivo
conglobante. Sua base construtiva legal mais sintética reside na querença do
resultado (art. 18, inc. I CP)1. Cumpre o dolo sua função redutora como uma
das duas únicas pautas alternativas de imputação subjetiva (a outra é a culpa)
que interditam a mera responsabilidade objetiva ou pelo resultado, excluindo
toda vigência ao versari in re illicita. Por certo, não pode o dolo cumprir tal
função em sistemas jurídicos que conservam a responsabilidade objetiva, como
na strict liability anglo-saxônica2• Os tipos dolosos cumprem a função reduto-
ra da imputação subjetiva postulando certos conteúdos finais como condição
para sua relevância típica, enquanto os culposos o fazem exigindo uma forma
particular de realização daqueles conteúdos.

2. Os tipos dolosos deixam filtrar maior poder punitivo do que os culposos,


constituindo assim a forma de imputação subjetiva com maior tradição históri-
ca3• Isso foi explicado de diversas maneiras: recentemente invocava-se, da
perspectiva do desvalor da ação, um critério eticizante4 e, da perspectiva
sistêmica, um maior desconhecimento da configuração do mundo imposta pelo
direito\ ou seja, uma maior afetação da norma6, embora também se recorresse
ao argumento de que as condutas culposas costumam arrostar o risco de pena

Repetindo a redação de 1940 (art. 15, inc. I CP). A opção por um conceito de dolo
desvinculado das concepções dependentes da teoria do dolo (dolus malus) remonta à Pri-
meira Conferência Brasileira de Criminologia, realizada em 1936, no Rio; cf. supra, § 25, VI,
6; cf. Revista de Direito Penal, v. XV, fase. 1 a Ili, ano VI, Rio, 1937, ed. lmp. Nac.
2
Por todos, Smith - Hogan, pp. 114 ss.
3
Jescheck - Weigend, p. 292; Kühl, Kristian, p. 2; costuma-se remontar essa tradição a
Covarrubias, De homicídio (Salamanca, 1560,p. 23 ); cf. Pereda, Julián, Covarrubias pena/ista,
pp. 13 ss.
4
Zielinski, Handlungs- und Erfolgsunwert in Unrechtsbegriff, Armin Kaufmann, Lebendiges
und Totes in Bindings Normentheorie.
5
Jakobs, Estudios, p. 138.
6
Jakobs, p. 312; próximos, Jescheck - Weigend, p. 563.

270
natural 7• Buscou-se também explicação, do ponto de vista objetivo, na maior
probabilidade de lesão (maior perigo para os bens jurídicos), pois é sempre mais
provável resulte a ofensa de um plano a ela dirigido do que de outra atividade
que não a tenha como meta8• Esta última consideração, no entanto, parece
mais idônea para explicar que a tipicidade culposa se limite a casos nos quais
sobrevenha um resultado. De qualquer modo, a partir de uma perspectiva
negativa da pena, é dispensável encontrar um fundamento legitimante
para a maior gravidade do dolo, bastando descartar exista aí uma intole-
rável irracionalidade. Portanto, basta constatar que essa característica geral
da criminalização primária é inteligível, sendo em princípio mais censurável a
conduta de quem voluntariamente produz o conflito do que a de quem apenas o
produz como resultado involuntário da realização de uma ação diferente. Esta
constatação se funda tanto numa arraigada tradição cultural e ética quanto na
experiência cotidiana, o que basta para descartar a irracionalidade grosseira
porém não implica aceitar sua total racionalidade porque, do ponto de vista
da afetação do bem jurídico, a gravidade da lesão é equivalente em uma e outra
modalidade (dolosa e culposa) comissiva, e também porque a revolução
tecnológica questionou seriamente a posologia axiológica da maior gravidade
(censurabilidade) do dolo, perante a possibilidade crescente de que a febre da
acumulação capitalista conduzisse a crimes culposos (financeiros, ecológicos,
nas relações de consumo, no domínio de mercados etc) com lesões massivas a
bens jurídicos que resultem na concreta privação de direitos essenciais para
contingentes humanos majoritários ou mesmo na extinção da vida planetária.

3. Na sua formulação mais sintética, a doutrina dominante conflui na ca-


racterização do dolo como conhecer e querer os elementos objetivos do tipo

Jakobs, Sobre la función de la parte subjetiva dei delito en derecho penal, p. 641. Sobre o
fundamento da pena natural, cf. infra, § 64.
8
Assim Frisch, Vorsatz und Risiko, p. 99; também por razões objetivas Donini, Massimo,
Teoria dei reato, p. 87.
9
We1ze1, p. 54; Jescheck- Weigend, p. 293; Stratenwerth, p. 91; Blei, p. 103; Otto, p. 84;
Maurach, p. 253; Niese, W., Finalitiit, Vorsatz und Fahrliissigkeit, p. 12; Rodolphi, p. 107;
Watennann, Friedrich, Die Ordmmgsfunktion von Kausa/itiit zmd Finalitiit im Recht, p.
134; Schõnke - Schrõder - Kramer, § 16, nº 9; Kõhler, p. 149; Spendel, Zum Begriff des
Vorsatzes, p. 167; Prittwitz, Das "AIDS-Urteil" des B11ndesgerichtshofs, pp. 123 ss.;
Donini, Massimo, op. cit., p. 286; de Toledo y Ubieto - Huerta Tocildo, p. 135; Oliveira
Leal - Simas Santos, M.J.H.C., p. 140; Juarez Tavares, Espécies de dolo e outros elemen-
tos subjetivos do tipo; Heleno Fragoso, Lições, P.G., p. 175; Cláudio Brandão, Teoria
Jurídica do Crime, p. 71; Paulo Queiroz, Direito Penal, p. 146; Luiz Regis Prado, v. 1, p.
350; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 132; Cezar Bitencourt, Tratado, v. l, p.
332; críticos, Engish, Derfinale Hand/11ngsbegriff, p. 156; Gimbernat Ordeig, Finalitiit 1md
Vorsatz, pp. 533 ss.; Mayer, H., 1976, p. 49; Frisch, Wo1fgang, Vorsatz und Risiko, p. 344;
Kargl, Walter, Der strafrecht/iche Vorsatz; relativizando o mero conhecimento, Laurenzo
Capello, Patrícia, Dolo y conocimiento.

271
legal, com a qual parecia superada a velha polêmica10 entre a teoria da vontade
( Wil/enstheorie) e a teoria da representação ( Vorstellungstheorie), sustenta-
das respectivamente por Beling 11 e Frank 12• Objurgara-se à teoria da representa-
ção que o elemento intelectivo do dolo é insuficiente para conceituá-lo porque
todas as pessoas dispõem dos mesmos conhecimentos que o homicida 13• Frank
acabou reconhecendo a existência de uma confusão terminológica 14 . No entanto,
nos últimos anos surgiram opiniões que, reeditando em certo sentido o velho de-
bate sobre a essência do dolo, sustentam tratar-se do conhecimento da ação e de
suas conseqüências, abandonando o elemento volitivo 15• O punctum pruriens é
o dolo eventual, já que uma corrente doutrinária não reconhece a existência de
vontade nele: enquanto a doutrina tradicionalmente reconhecia no dolo eventual
uma querença das conseqüências acessórias 16, opiniões mais recentes a negam17•

4. Não distingue a doutrina entre o dolo como finalidade concreta e típica


projetada no mundo (como pressuposto de fato fático ), o dolo como exigência
típica pertencente à lei (como pressuposto de fato legal) e o dolo como carac-
terística da ação típica dolosa, embora às vezes surjam referências à dolosidade
para indicar a última acepção 18• Diante da inconveniência de criar sutilezas
técnicas, perfilharemos este uso indiferenciado da expressão dolo, sempre que
do contexto exsurja o sentido no qual estiver ela empregada: como um dado da

10
Schultz, I, p. 127; Bockelmann, p. 71; naquela polêmica predominaram soluções concilia-
tórias: Finger, August, Lehrbuch; Schmidt, Richard, Grundriss, pp. 95 ss; Mezger, Lehrbuch,
p. 53; Hafter, Ernst, Lehrbuch, pp. 108 ss.
11
Beling, D.L. v. Verbrechen, p. 186.
12
Frank, Über den Aujbau des Schuldsbegriff. Uma bibliografia sobre essa polêmica em
Hippel, Robert von, Vorsatz, Fahrliissigkeit, /rrtum, pp. 488 ss.
13
Engisch, Karl, Untersuchungen über Vorsatz und Fahrliissigkeit im Strafrecht, p. 129.
14
Frank,StGB, 1931,p. 179.
" Assim, Jakobs, p. 316; Schmidhauser, p. 197; Frisch, Vorsatz, cit., p. 255; Grünwald, Der
Vorsatz des Unterlassungsde/ikts, p. 281 ; Kindhauser, Der Vorsatz ais Zurechnungskriterium,
pp. I ss.; Gaitas, Der dogmatische Teil des Alternatif-Entwurfs, pp. 1 ss.; Engisch,
Untersuchungen, pp. 126 ss.; Zielinski, p. 162 (refutando suas concepções, Rodrigues Montanés,
Teresa, Delitos de peligro, dolo e imprudencia, p. 103); Bacigalupo, Enrique, 1997, p. 225;
Cuello Contreras, Joaquín, p. 507; Kargl, Der strafrechtliche Vorsatz; há quem o identifique com
a Gesinnung numa concepção psicodinâmica (Morselli, Elio, // ruo/o de/1 'atteggiamento interiore
nel/a struttura dei reato, p. 141) ou o considere presente no simples levar a sério um perigo
(Frisch, Vorsatz und Risiko, p. 484 ); criticam-no Roxin, p. 441; Herzberg, Die Abgrezung von
Vorsatz und bewusster Fahrliissigkeit, p. 259; Küper, Vorsatz und Risiko - zur Monographie
von Wolfgang Frisch, p. 503; do mesmo, em ZStW, 100, 1988, p. 758; destaca ser impossível
identificar dolo eventual sem vontade Cerezo Mir, p. 153.
16
Welzel, Derecho Penal (4" ed.), pp. 78 ss.
17
Jakobs, p. 315. Os problemas de dolo eventual remontam ao século XVIII, embora sem ter
então atingido uma definição: cf. Riccio, S., li dolo eventua/e, p. 9.
11
Schmidhauser, p. 179.

272
realidade psicológica do sujeito, como um requisito legal ou como resultado de
constatação sobre o caso concreto.

II Aspectos cognitivo e volitivo do dolo


1. Coincidem no dolo a prelação lógica e a cronológica: o aspecto cognitivo
deve sempre antepor-se ao volitivo 19 • Os atos de conhecimento e de resolução
precedem os atos de ação, pois estes não podem existir sem um prévio conhe-
cimento que enseje certa resolução. Sendo o dolo o fim tipificado, é a finalidade
que confere sentido à unidade do conhecimento. Para haver finalidade é im-
prescindível conhecimento, embora possa haver conhecimento sem finalidade.

2. O conhecimento é sempre efetivo, ou seja, referido a conteúdos efetivos


da consciência20 • Portanto, excluem-se de seu conceito: a) o chamado conheci-
mento potencial, em verdade um não-conhecimento, mera possibilidade de co-
nhecimento (tal possibilidade, quando alusiva à ilicitude, bastará para a culpabilidade,
sendo contudo inadmissível para o dolo21 ); b) o chamado conhecimento inconsci-
ente, que fundamentaria uma querença inconsciente, sempre que a tipicidade re-
quisite condutas manifestas, sendo indiferente para o dolo tudo aquilo que não esteja
psíquicamente presente na consciência como seu efetivo conteúdo22• Não se igno-
ra que a ação humana tenha motivações inconscientes nem que a atividade psíqui-
ca não pode ser reduzida à de nível consciente, porém, por elementares razões de
funciona/idade politica, tais fenômenos não são criminalizáveis. O tipo não pode
considerar a atividade inconsciente nem mesmo in bonam partem: quando o in-
consciente bloqueia o consciente (ato falho), não cabe tomar em conta a atividade
não consciente, e sim a ausência de um conhecimento efetivo (atualizado).

3. Enquanto conteúdo da consciência, o conhecimento é disponível por-


que é atualizável, mas nem sempre é atual: atualizá-lo é pensar nele (daran
denken) 23 . O dolo sempre requer certa medida de atualização do conhecimen-
to 24 . Existem certos conteúdos da consciência que se não estiverem atualizados
no momento da ação não podem orientar a finalidade: quem, distraído, deixa a
19
Kühl, Kristian, p. 75; Trechsel, Stefan, p. 85.
2° Cf. Engisch, Karl, p. 129; Platzgummer, Winfrid, Bewusstseinform des Vorsatzes, p. 63;
para a psicologia da consciência, cf. Rohracher, H., Einfiirung in die Psychologie, p. 450.
21 Welzel, 4ª ed., pp. 60 e 144; Mezger, Leipz. Kommentar, 8ª ed., p. 482.
22
Platzgummer, op. cit., p. 57.
23
Platzgummer, pp. 81 ss.; Bockelmann, Paul, Das Verhiiltnis des Strafrechts zur Moral und
zur Psychologie, p. 255.
24
Aqueles que exigem certo grau de interiorização da informação recebida pelo agente manifes-
tam-se contrariamente a uma automática incorporação da informação pelo simples fato de

273
chave do gás aberta não realiza uma ação final lesiva, muito embora, caso
houvesse refletido, pudesse ter atualizado o vazamento de gás como conteúdo
efetivo de sua consciência. Inversamente, quem mantém conjunção carnal co-
nhecendo a idade da parceira usualmente não pensa neste dado no momento
da ação. Assim, em cada caso é preciso provar-se que o agente dispunha
do grau de atualização de conhecimentos necessário para reconhecer-se
a finalidade típica2 5• Sobre isso observou-se que existem conhecimentos que
dispensariam o pensar neles no momento da ação, por serem indissociáveis de
outros conhecimentos, aos quais se agregariam por um co-pensar nele(s),
ocorrendo assim uma co-consciência quanto a eles26: seria dispensável pensar
na qualidade de funcionário público da vítima quando o agente está golpeando o
policial fardado. Tal critério foi criticado sob o argumento de que acabaria con-
siderando dolosas hipóteses culposas27 , o que se exemplificaria com o crime
militar de rigor excessivo (art. 174 CPM), no qual se reconheceria claramente
a co-consciência se acontecesse em serviço, porém constituiria uma questão
de fato a dilucidar-se se ocorrido num ambiente privado28 • A rigor, as conseqü-
ências de uma distinção entre um pensar na linguagem (lingüístico) e um
pensar nos objetos (material), que funda um conhecimento à margem, não
seriam muito diferentes daquelas postuladas por seus críticos: só seria co-pen-
sado eco-consciente aquilo que não se pode separar, e não aquilo que não se
deveria separar. Seja como for, freqüentemente se apresentarão situações du-
vidosas a serem resolvidas como questões de prova. Os esforços para resolvê-
las por outros caminhos são insatisfatórios: a iniciativa de recorrer à teoria da
Gestalt amplia demasiadamente o conceito de consciência29; a procura restrita a
um critério normativo termina incorporando como pensado aquilo que deveria
ter sido pensado30• Mais dúvidas ainda despertariam os crimes passionais, onde
nem sempre se atualizam todos os conhecimentos da consciência, daí provindo a
consideração de que por vezes a intensidade das emoções eliminaria o dolo 31•

entrar em contacto com ela: Kõhler, Vorsatzbegriff und Bewusstseinform des Vorsatzes, p.
290; Roxin, p. 474.
25
Jakobs, p. 318; Roxin, p. 4 74.
26
Platzgummer, pp. 83 ss.; Jescheck - Weigend, p. 294; Schmidhauser, p. 209; em sentido
contrário, rumo a uma solução normativista, Frisch, Vorsatz und Mitbewusstsein, pp. 311
ss.
27
Roxin, p. 420.
21
Kõhler, p. 166.
29
Schwebe, Günther, Bewusstsein und Vorsatz, pp. 110 ss.
30
Assim em Frisch, W., Vorsatz und Mitbewusstsein.
31
Stratenwerth, em Fest f Welzel, p. 304; Montt Diaz, Bernardo, Contenido de voluntad
necesario ai dolo, p. 55.

274
4. Segundo seu elemento volitivo, o dolo se distingue em dolo direto ou
intencional em sentido restrito e dolo indireto ou eventual, este último quando o
agente incorpora seriamente à sua vontade as conseqüências da ação final,
excluído o caso no qual confiou ele em que tais conseqüências não se produzi-
riam32 . Embora a terminologia varie em alguns autores, que distinguem entre
intencional, direto e eventual ou condicionado33 ou entre dolo de conseqüências
principais e dolo de conseqüências secundárias (este, subdividido em dolo dire-
to de segundo grau e eventual ou condicionado 34), o certo é que predomina a
tradicional classificação que identifica as seguintes espécies: a) dolo direto de
primeiro grau; b) dolo direto de segundo grau e e) dolo eventual35•

5. Existe dolo direto de primeiro grau36 quando a vontade abrange a


produção do resultado típico como um fim em si mesmo (quando o agente "quis
o resultado" - art. 18, inc. I CP); daí sua denominação alternativa como "dolo
imediato"37 • A vontade direta e imediatamente referida ao resultado típico não
se desnatura pela procura simultânea de outros objetivos ulteriores38 ou pela
circunstância de não ser totalmente segura a superveniência do resultado dese-
jado39• Existe dolo direto de segundo grau, também chamado mediato, quan-
do o resultado típico constitui inexorável efeito dos meios escolhidos pelo agente,
meios estes que devem estar abrangidos por sua vontade tanto quanto o próprio
fim por ele procurado. Por isso, é também designado dolo de conseqüências
necessárias. Quem, para matar seu desafeto que embarcou num vôo transa-
tlântico, coloca uma bomba na aeronave que explode sobre o oceano, pode, até
sinceramente, não desejar as mortes inexoráveis dos demais passageiros e da
tripulação, porém a incorporação que sua vontade fez do meio executivo (ex-
plosão), nas circunstâncias em que o empregou, exprime que essas "conseqü-

32 Kõhler, p. 161.
n Assim Jescheck - Weigend, p. 297; Roxin, pp. 363 ss.; outra opinião em Puppe, 1., Vorsatz
und Zurechnung, p. 63 (dela dissentindo, já que o conceito de dolo como mera atribuição
objetiva violaria o princípio da reprovabilidade individual, Prittwitz, Strafrecht und Risiko,
p. 347).
34
Jakobs, pp. 321-324.
35 Welzel, p. 66; do mesmo, Vorteilabsicht beim Betrug, pp. 20-22; Mezger - Blei, pp. 182 ss.;
Wessels, p. 4S; Maurach - Zipf, p. 32S; Oehler, Dietrich, Neue strafrechtlichen Probleme
des Absichtsbegriff, pp. 1.633 ss.; Engish, Unters11ch1111gen, p. 141; Juarez Tavares, Espé-
cies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo; preferindo para o dolo direto de segundo
grau a designação "de conseqüências necessárias", Fragoso, P.G., p. 177; Régis Prado, I, pp.
35S ss.; Aníbal Bruno divide o dolo direto em determinado e indeterminado, subdividindo-
se o último em eventual ou alternativo (Direito Penal, 1, 2°, p. 71 ).
36
Para sua origem hegeliana, Lesch, Heiko, Die Verbrechensbegriff, p. 142.
37
Blei, p. I04; Álvaro Mayrink, v. 2, p. 893.
38
Samson, Absicht und direkter Vorsatz im Strafrecht, p. 452; Roxin, p. 369.
39
Roxin, p. 368.

275
ências necessárias" - as demais mortes - também eram diretamente deseja-
das por ele.

6. Existe dolo eventual, também chamado indireto ou condicionado, quando


o resultado típico constitui um efeito apenas possível dos meios escolhidos pelo
agente, que não obstante, o incorpora à sua vontade. Nossa lei se vale da
fónnula "quando o agente(...) assumiu o risco de produzi-lo" (art. 18, inc. I
CP), e convém realçar que o verbo "assumir" deve aí ser interpretado em sua
acepção forte de "arcar", "avocar", "apropriar-se", "imputar-se", a única com-
patível com a incorporação à vontade realizadora do agente de um efeito pos-
sível dos meios por ele escolhidos. Surge aqui uma das mais dificeis questões
jurídico-penais, aquela da diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente
(também chamada culpa com representação)4°. É preciso distinguir o fim dos
resultados concomitantes abrangidos pela vontade realizadora como possíveis.
Quando o agente busca certo resultado como fim, mesmo sem a certeza de
alcançá-lo, o dolo continua sendo direto; quando, ao contrário, o resultado
concomitante provém dos meios por ele escolhidos e empregados, poderemos
encontrar dolo direto de segundo grau (se a probabilidade de produção do re-
sultado é elevadíssima, configurando praticamente uma conseqüência neces-
sária dos meios), dolo eventual (se a conseqüência apenas possível dos meios é
assumida pelo agente, isto é incorporada à sua vontade realizadora) ou culpa
consciente (se a conseqüência apenas possível dos meios está excluída da von-
tade do agente, confiante - mesmo leviana ou temerariamente - que o resulta-
do não sobreviria).

7. Os limites entre dolo direto de segundo grau (ou de conseqüências


necessárias) e o dolo eventual são teoricamente claros: no primeiro, o resulta-
do se representa como inexorável, enquanto no segundo apenas como possí-
vel 41 • Contudo, podem apresentar-se dúvidas em alguns casos, pois existe
igualmente dolo direto quando a probabilidade de que não se produza o resulta-
do esteja reduzida a mera esperança42, o que se pode exemplificar com o fa-
moso caso Thomas, citado por toda a doutrina. Alexander Kaith, que se
autodenominava Thomas, em l 875, num hotel de Bremen, instalou num tonel
com dinamite um dispositivo de relojoaria que, decorrido detenninado tempo,
liberaria um cilindro de aço o qual, golpeando a dinamite, causaria terrível ex-
plosão. Predispondo o mecanismo para acionar-se passados oito dias, transpor-
tou o tonel até o porto de Bremen. Thomas pretendia embarcá-lo no vapor

4G Cf. Jescheck- Weigend, p. 302; Roxin, p. 372; Cuello Contreras, Joaquín, p. 516; Aníbal
Bruno, I, 2°, pp. 73 ss.; Cezar Bitencourt, 1, pp. 338.
1
' Roxin, p. 372.
'2 Jescheck- Weigend, p. 299.

276
Mosel em l l de dezembro de 1875, contratando na Inglaterra valioso seguro
sobre o tonel, que explodiria entre Southhampton e Nova Iorque; depois, ele
receberia o valor do seguro. Ocorreu que na manipulação do tonel, nas docas
de Bremen, escapou ele acidentalmente da mão dos estivadores, em frente ao
Mosel, ocorrendo a explosão. Somente oito dias depois concluiu-se o inventário
dos efeitos da explosão: cinqüenta e nove mortos, vinte e quatro desaparecidos e
cinqüenta feridos43• A doutrina reconhece aí um caso de dolo direto, ainda que
dissintam as soluções concretas44, porque o encaminhamento mais exato envolve
também a aberratio ictus45, sobre a qual também há muitas divergências.

8. Em conclusão, temos dolo eventual quando, segundo o plano concreto


do agente, a realização de um tipo é reconhecida como possível, sem que tal
reconhecimento oriente o agente a renunciar ao projeto de ação46, ressalvado,
claro está, que o reconhecimento da realização do tipo como possível corresponda
aos dados da realidade. Assumir o risco de produzir o resultado típico significa
aceitar seriamente47 que ele ocorra, como efeito da indissociabilidade48 entre
os meios escolhidos e empregados pelo agente e o fim ao qual não renunciará.
Como observou Kühl, este evaporado elemento do conhecimento é compen-
sado pela forte presença da vontade que é o seguro vínculo entre o fim procu-
rado e o resultado produzido, e mesmo os autores que constroem um dolo
puramente cognoscitivo vêem-se na contingência de introduzir, meio à socapa,
dois dedinhos de vontade em seu conceito49• Essa possibilidade considerada
pelo agente como parte do plano distingue o dolo eventual da culpa consci-
ente, pouco importando se aceita de bom ou de mau grado o resultado, bastan-
do que seriamente o aceite, que o assuma como algo que teve que ser feito.
Quando se trata de conceituar o dolo eventual como mera "decisão pelo injus-
to" 50, tais distinções se inviabilizam.

43
Binding, Die Normen, li, 2, pp. 851 ss.
44
P. ex., Wemer, Anhur, p. 139; Cousii\o Maclver, L., p. 705.
45
Jescheck - Weigend, loc. cit.
46
Welzel, p. 65; Gallas, em Niederschrifíen überdie Sitzungen der Grossen Strafrechtskomission,
p. 121; Gennann, O.A., Grundlagen der Strajbarkeit, p. 161; do mesmo, Vorsatzprobleme,
em Rev. PenaleSuisse, p. 376; Schwanz-Dreher, StGB, p. 241; Blei,p. 106; Bockelmann, p.
86; Wessels, p. 45; Rudolphi, p. 118; Roxin, Zur Abgrenzung... , cit., pp. 53-61 e Tratado, p.
425; Schünemann, Die Deutschtsprachige Strafrechtswissenschaft..., p. 364.
47 A idéia reguladora não pode ser o "confonnar-se com", que remete a consideração vinculada
ao ânimo, que pode estar ausente: Behrendt, Vorsatzgrenze und verfassungsrechtlicher
Bestimmtheilsgrundsatz, p. 20.
41
Correa Ossa, C., EI dolo eventual, p. 33.
49
Op. cit., pp. 93 ss.
so Díaz Pita, M. dei Mar, EI dolo eventual, pp. 321 ss.

277
9. Quando o agente adquire consciência do possível curso lesivo de sua
conduta pela advertência ou infonnação de um terceiro, não haverá dolo eventual
se confiar ele em que conseguirá evitar a lesão. Contudo, não exclui o dolo even-
tual um mero deixar ao acaso 51 : a confiança na evitação deve estar respaldada
por dados objetivos, e quem efetua um disparo de arma de fogo na direção da
cabeça da vítima não se beneficiará da simples alegação de que esperava que o
resultado não sobreviesse. O simples anelo de que não sobrevenha o resultado,
quando contraposto a uma conduta que objetivamente o torne irracional, não
exclui o dolo eventual, como nos revela o chamado caso dos mendigos russos 52•
Os mendigos mutilavam crianças para excitar a compaixão, porém algumas cri-
anças morreram em decorrência das mutilações. É claro que os mendigos não
desejavam este resultado possível de sua conduta, e se pudessem prevê-lo abs-
ter-se-iam dela; à parte os afetos envolvidos nessa história triste, uma criança
morta não serviria à mendicância. Ou seja, os mendigos desejavam sinceramente
que o resultado não sobreviesse, porém ao mutilarem as crianças, a despeito de
saber que algumas delas poderiam morrer, incorporavam a sua vontade o resulta-
do eventual possível, assumiam o resultado. Outra seria a solução caso os mendi-
gos confiassem seriamente em que não ocorreria a morte, até porque em mutilações
anteriores jamais ocorrera: tratar-se-ia, então de homicídio preterintencional (le-
são corporal seguida de morte, art. 129, § 3° CP).

1O. Poder-se-ia objetar que assim se defere um tratamento penal pior


para quem se representa a possibilidade da lesão do que para quem negligente-
mente a ignora. Tal crítica não leva em conta que quem, consciente do perigo,
nada faz para evitá-lo, o aceitou com indiferença ou despreocupação, enquanto
que o sujeito imprudente, que levianamente supõe que a lesão não ocorrerá,
não tem nenhum plano delitivo final. De qualquer modo, cabe recordar que a
teoria do dolo eventual recebeu fortes críticas, destacando-se ter sido utilizada
para perseguições políticas53 , ou que só servia para criminalizar pobres dia-
bos54, críticas recentemente reiteradas 55• Extraía-se dessas críticas o inquie-
tante denominador comum de fundar-se a distinção numa disposição ou

51
Para relações sexuais com perigo de contágio, Herzberg, Die Strafandroung ais Wajfe im
Kampfgegen AIDS!. p. 1.466; deixar ao acaso constitui para este autor um risco desprotegido,
cf. Das wol/en beim Vorsatzdelikte 1111d dessen Unterscheid1111g vom bewusstenfahrliissigen
Verhalten, p. 639.
52
Lõfller, A., Die Scl111ldfor111e11 des Strafrechts. Distintas soluções em Mezger, 1949, pp.
347 ss.; Mezger - Blei, p. 185; Grossmann, Hans, Die Grenze von Vorsatz und
Fahrliissigkeit, p. 78.
51
Cf. von Liszt, Die Beha11dl1111g des dolus eventualis im Strafrecht 1111d Strafprozess.
1
• Liepmann, M., Die Reform des De11tsche11 Strafrecht.
55
Bustos Ramirez, J., p. 287 e também em Política criminal y dolo evenfllal, p. 309; Gimbemat
Ordeig, E., Acerca dei dolo eventual, p. 139.

278
elemento de ânimo que pode facilmente dissimular um componente de direito
penal de autor, quando não derive diretamente dele.

11. Muito embora, no estado atual da doutrina, não exista teoria que possa
superar completamente essa inquietação, é forçoso reconhecer que com a
tipicidade conglobante o âmbito de delimitação problemática se reduz, pois não
se colocará qualquer dúvida entre dolo eventual e culpa consciente na falta de
imputação (dominabilidade do fato): se um observador externo não puder
reconhecer no caso concreto a existência de um plano dirigido à produ-
ção do resultado típico, não cabe suscitar a dúvida56 . Do âmbito da dúvida
se excluem todas as produções de resultado nas quais não exista a
dominabilidade do fato no tipo objetivo: aqui só se poderia pensarem culpa. São
os casos de culpa não temerária, que cabe portanto excluir da discussão a
partir de sua tipicidade objetiva. Na verdade, a dúvida se coloca, tão somen-
te, entre os predicados teóricos da culpa consciente temerária e do dolo
eventual. Nenhuma confusão com o dolo eventual surge nos casos de culpa
consciente que não seja também temerária57, e, por efeito da própria definição
de dolo, da culpa inconsciente (ou sem representação).

12. Embora prevaleça o entendimento de que para configurar-se o dolo


eventual basta que o agente tenha acreditado seriamente na possibilidade de
sobrevir o resultado, resignando-se com isso 58, muitas teorias se elaboraram
para discernir o dolo eventual da culpa consciente, teorias essas que, segundo o
critério de distinção privilegiado, são classificáveis em três grupos: a) teorias
centradas no aspecto cognitivo; b) teorias centradas no aspecto volitivo 59

" Em sentido similar Canestrari, Stefano, Dolo eventuale e colpa cosciente, p. 319; frisa-se aqui a
necessidade de estabelecer um umbral normativo objetivo mínimo para o grau de perigo da
atividade que possa conceber-se como dolo eventual e, para isso, acode-se também a um obser-
vador externo, como fizeram os autores do Mode/ Penal Code para a recklessness. Esse terceiro,
essa "pessoa razoável na situação do sujeito" não pode descartar o risco da conduta, embora seja
insuficiente o simples aumento do risco; o decisivo é a exterioridade de um plano (dominabilidade).
Parece basear-se na figura anglo-americana da reck/essness Weigend (Zwischen Vorsatz und
Fahrliissigkeit, p. 657). Sobre a recklessness, Fletcher, George P., Conceptos Básicos, p. 176;
Smith, J.C.,- Hogan, B., Criminal Law, p. 60; Allen Michel, J., Criminal Law, p. 65.
57
Cf. infra, § 36; similarmente, Herzberg, Die Abgrenzung... , cit., p. 256.
51
Jescheck- Weigend, p. 299; Stratenwerth, Dolus event11alis und bew11sste Fahrliissigkeit, pp.
51 ss; Rudolphi, SK, § 16, nº 43; Frisch, Vorsatz 1md Risiko, p. 484; Geppert, Z11r Abgrenzung
vom bedingtem Vorsatz und Bewusster Fahr/iissigkeit, p. 612; Ziegert, Vorsatz, Schuld und
Vorverschulden, p. 142; Küpper, Z11m Verhiiltnis von dolus eventua/is, Gefiihrdungsvorsatz
und bewusster Fahrliissigkeit, p. 766; Hillenkamp, Dolus evenlllalis und Vermeidewil/e, p.
351; Aníbal Bruno, l, 2º, p. 73; Magalhães Noronha, I, p. 135; Fragoso, Lições, P.G., p. 178.
59
Só a vontade poderia precisar o dolo eventual: por todos, Graven, Philippe, L 'infraction
pénale punissable, p. 201.

279
e e) teorias centradas no ânimo (ou numa disposição interna)6°. Ensaiemos
uma síntese delas. a) No primeiro grupo se enquadram todas as teorias do dolo
como representação ou consciência de um perigo concreto, como a chamada
teoria da possibilidade61 ; com maior nível de exigência temos a teoria da
probabilidade62; recentemente, sustentou-se que dolo é conhecimento do ris-
co não permitido pela norma63 , o que bastaria para o dolo eventual64, ou ainda
que o dolo eventual se funda no juízo do agente sobre a probabilidade da reali-
zação do tipo65• Ao omitirem qualquer referência ao elemento volitivo, essas
teses não conseguem evitar os equívocos que travestem de dolo eventual um
amplo setor da culpa consciente. b) No segundo grupo aglutinam-se teorias
que concebem o dolo como vontade; uma de suas mais tradicionais e influentes
propostas constrói um dolo direto hipotético, reconhecendo dolo eventual
quando o agente, caso pudesse previamente ter como certa a superveniência
do resultado, ainda assim agisse66• O Supremo Tribunal Federal, em caso rela-
tado pelo Min. Evandro Lins e Silva, entendeu que um simples agir na dúvida
(sobre se o resultado sobreviria ou não) não configura dolo eventual67 • e) No
terceiro grupo, por fim, encontramos aquelas teorias que priorizam o critério de
existir no dolo eventual um mais elevado grau de indiferença para com o bem
jurídico do que na culpa consciente68, havendo quem prefira referir-se a um
maior grau de desprezo69 e mesmo a exigir uma satisfação pela superveniência
do resultado 70• São teorias referenciadas a disposições internas de caráter

60
Ponnenorizadamente, em Prosdoscini, Salvatore, Dolus eventua/is; Kühl, pp. 94 ss.
61
Cf. von Bar, Ludwig, Gesetz und Schuld im Strafrecht, p. 322; Sauer, Wilhelm, Grundlagen
des Strafrechts, p. 618; Schmidhãuser, p. 197; Zielinski, p. 116.
62
Mayer, H., 1953, p. 250; uma reelaboração em Puppe, Der Vorstel/ungsinhalt des do/us
eventualis, pp. 1 ss.; distinguindo consciência da probabilidade (onde há dolo) da consciên-
cia da possibilidade, van Bemmelen, J.M. -van Hattum, W.F.C., Hand-er Leerboek van het
Nederlandse Strafrecht, p. 249; Brammsen, lnhalt und Elemente des Eventua/vorsatzes, p.
80; Joerden, Strukturen des strafrechtlichen Verantwortlichkeitsbegriffes, p. 151; Schumann,
Zur Wiederbe/ebung des "voluntativen" Vorsatzelemente durch den BGH, p. 433.
63 Reconstrói a teoria da probabilidade no dolo eventual como "conhecer um perigo qualificado"
Puppe, Der Vorstellungsinhalt, cit., p. 31.
64
Frisch, Vorsatz und Risiko, p. 97; sustentava Maggiore que no dolo de perigo quer-se o
perigo, enquanto na culpa não se o quer, e manobrava, há mais de três décadas, argumentos
contundentes contra a pretensão de converter toda culpa consciente em crime doloso even-
tual de perigo (p. 590).
65
Jakobs, p. 327.
66
Frank, StGB, 1897, p. 90; adotaram e divulgaram suas teorias, como "fónnulas de Frank",
entre nós, Nélson Hungria (Comentários, I, II, pp. 117 ss.) e Aníbal Bruno (Direito Penal,
II, 2, pp. 75 ss).
67
Heleno Fragoso, Jurisprudência Criminal, 41 ed., p. 259 (nº 205).
61
Engisch, Untersuchungen, p. 233; Bockelmann, Strafrechtliche Untersuchungen, p. 52.
69
Baumann, p. 416.
70
MUiier, lngo, Der Vorsatz des Rechtsbeugung, p. 2.392.

280
afetivo, mais delicadas, ambíguas e profundas do que os estratos de pesquisa
da vontade71 • Como reação a essas subjetivações grosseiras, Armin Kaufmann
elaborou sua teoria da manifestação objetiva da vontade de não evitação12 ,
que praticamente é uma teoria processualista73 •

13. O dolo, sob quaisquer de suas formas, não pode jamais ser presumido:
só diante de sua efetiva presença pode-se habilitar poder punitivo74. Já foi, no
entanto, observado que quando a febre da reação punitiva sem lacunas toma-se
obsessiva, o in dubio pro reo é percebido como obstáculo liberal; diante disso, e
também de que o mito da emergência não consegue derrogá-lo, optou-se por um
recurso dogmático: a presunção do dolo, uma ameaça equivalente que tem por
inimigo ao conceito psicológico75• Como o conceito psicológico oferece dificulda-
des para sua prova processuat76, é ele substituído por uma ficção de dolo, afir-
mando-se que haverá dolo quando assim o indicar seu inequívoco sentido social.
Embora categorias assim imprecisas não sejam escassas na doutrina, o caráter
abertamente reacionário fica patente quando se busca legitimá-lo em perspectiva
constitucional, afirmando que a pretensão dos cidadãos de se verem protegidos
pelo Estado é irrealizável sem uma certa renúncia de sua parte à correlativa
pretensão de nunca serem condenados sem ter cometido efetivamente um delito;
chegou-se mesmo a qualificar este erro judiciário como risco permitido77. Não
poderia ser mais clara a invocação de um argumento que, definitivamente, evoca
a surrada afirmação de que em toda guerra morrem inocentes.

71
Tampouco é relevante para o dolo eventual a/alta de um elemento especial de ânimo ou a
presença de um ânimo positivo em relação ao portador do bem naqueles tipos que permitem
claramente todas as formas de dolo, como no homicídio (a indiferença ante a morte ou não
desejá-la para a vítima); no máximo podem servir de indícios, Kühl, pp. 98 ss. Essa refuta-
ção refletiu-se jurisprudencialmente no chamado "caso do cinto de couro" (Eser- Burkhardt,
pp. 157 ss. ), e, não mediando consentimento, na hipótese de contacto sexual com perigo de
contágio, que se resolveu concretamente como condenação por lesões corporais com dolo
eventual; sobre isso, Kühl, p. I00.
72
Der dolus eventua/is im Deliktsaujbau, p. 73; crítica em Rudolphi, p. 118.
73
Sobre essa discussão, Corcoy Bidasolo, Mirentxu, em ADPCP, 1985, pp. 961 ss; Zugaldía
Espinar, J.M., em ADPCP, 1986, pp. 395 ss.
74
Sobre presunção de dolo, por todos, Artega Sánchez, Alberto, p. 247.
7
s Ultimamente perfilhando tal conceito de dolo Walter Kargl, Der strafrechtliche Vorsatz, cit.
76
Sobre essas dificuldades, Feijoó Sánchez, Bernardo, em CPC, nº 65, pp. 269 ss.
77
Assim, Ragués i Vallés, Ramón, EI dolo y su prueba en el derecho procesa/ penal, p. 352;
antes dele, Klaus Volk, Wahrheit und materiel/esrecht im Strafprozess; com argumentos
preventivistas, Georg Freund, Normative prob/eme der "tatsachenfestsel/ung', pp. 60-64;
Andreas Hoyer, Der Konflikt Zwischen richterlicher beweiswürdigungsfreiheit und das
Prinzip in dubio pro reo, p. 523; e Ulrich Stein, Gewissheit und Wahrscheinlichkeit im
Srrafverfahren, p. 234. A interlocução entre categorias dogmáticas e processo penal em
Pérez dei Valle, Carlos, Teoria de la pn1eba y derecho penal; decididamente pela coessencial
garantia processual do contraditório e da motivação, Licci, Giorgio, em RlDPP, p. 1.512.

281
III. O conhecimento no dolo e sua diferença da consciência
(compreensão) da ilicitude
1. A antijuridicidade, entendida como resultante do jogo da antinormatividade
e da não-permissão (não-justificação), requer no plano da culpabilidade uma com-
preensão de natureza completamente diversa do conhecimento dos elementos do
tipo objetivo requerido pelo dolo. A chamada consciência da antij'uridicidade
ou consciência da ilicitude (da antinormatividade e da não-permissão) não ul-
trapassa o nível da mera possibilidade do conhecimento (fala-sede "conhecimen-
to potencial"), não implicando um conhecimento efetivo e atual; para que uma
ação típica e antijurídica (injusto) seja culpável basta que o agente tenha podido
saber e compreender que tal ação era antijurídica, ainda que nunca o tenha efe-
tivamente sabido e menos ainda compreendido.

2. O conhecimento requerido pelo dolo distingue-se, assim, não apenas


pelo objeto mas também pela efetividade e atualidade. Em cada caso será
preciso apontar discriminadamente, segundo o tipo legal de que se trate, os
conhecimentos necessários para fundamentar a querença do resultado típico.
Quando falte ao agente o conhecimento sobre qualquer "elemento constitutivo
do tipo legal de crime", não haverá dolo (erro de tipo- art. 20 CP). A chamada
consciência da ilicitude não integra esses conhecimentos: pouco importa, e ne-
nhum efeito produz no âmbito da tipicidade, erre o agente sobre a
antinormatividade78 ou suponha atu~r amparado por uma permissão19 , pois isso
não altera em nada a natureza da ação que realiza, ou seja, em cada caso,
seguirá sabendo que mata, que furta, que estupra etc. De outro lado, para a
antijurídicidade basta apenas a possibilidade de sua compreensão, isto é, de
interna/ização ou introjeção do desvalor jurídico da ação 80, que é algo bem
distinto do conhecimento e que bem pode existir sem este: atua culpavelmente
quem desconhece a ilicitude de sua ação porque não se interessou em conhecê-
la, quando teve a possibilidade de fazê-lo e lhe era exigível que o fizesse. Con-
tudo, mesmo nos casos em que realmente se dispõe do efetivo conhecimento
da antijuridicidade da conduta, não se exige seja ele atual: jamais se exige um
pensar nele no momento da ação, tampouco se colocando a questão do co-
pensado; definitivamente, um conhecimento apenas atualizável81 pelo sujeito
que dele dispõe.

71
Por exemplo, quando se pretenda incluir no dolo o significado lesivo da ação, cf. Schlüchter,
/rrtum über normative Tatbestandsmerkma/e im Strafrecht, p. 116.
79
Contra, Hruschka, Joachim, Strafrecht nach logisch-ana/ytischer Methode, pp. 197 ss.
1
°Cf. infra, § 45.
11
Welzel, p. 65.

282
3. Quanto aos elementos nonnativos eventualmente requeridos nos tipos
legais, sua captação pelo dolo é idêntica ao conhecimento requerido sobre os
elementos descritivos. Em ambos os casos exige-se um conhecimento efetivo,
e o erro a respeito de qualquer "elemento constitutivo do tipo legal" (art. 20
CP) - não distinguiu a lei entre descritivos e nonnativos - configura erro de
tipo82 excludente do dolo pela falta do conhecimento requerido. Para os ele-
mentos normativos bastam os conhecimentos nonnativos das pessoas comuns,
aquilo que, com variantes mais concisas, chamou-se valoração paralela na
esfera do autor, do leigo ou do profano83, por outros autores referido como
compreensão do significado social84. Freqüentemente devem intervir conheci-
mentos normativos para a delimitação de elementos típicos francamente des-
critivos, cabendo também aí uma apreciação "paralela" similar à requisitada
para os elementos nonnativos 85•

IV. Outras classes e momentos do dolo


1. Pode ocorrer que o dolo direto e o dolo eventual se combinem numa
vontade que abrange dois ou mais resultados queridos, embora excludentes
entre si, originando-se então o chamado dolo alternativo86• Examinemos os
casos paradigmáticos87 : a) o agente faz um disparo contra duas pessoas, que-
rendo ferir ou matar qualquer delas (ação dirigida contra algum de dois objetos
materiais equivalentes); b) o agente faz um disparo contra o guarda ou o cão
que o perseguem (ação dirigida contra algum de dois objetos materiais não

82
Toledo, Francisco de Assis, O Erro no Direito Penal, p. 49; Gomes, Luiz Flávio, Erro de
Tipo e Erro de Proibição, p. 130; Bitencourt, Cezar Roberto, Erro de Tipo e Erro de
Proibição, p. 97; Muiioz Conde, Francisco, El Errar en Derecho Penal, p. 62.
ll Mezger, Lehrbuch, 1949, p. 332; Dohna, Aztfbau, 1941, p. 17; Welzel, pp. 75 e 168; do mesmo,
Der parleiverrat und die Jn·111mprobleme, pp. 276 ss.; também, Zum lrrtum iiber normative
Tatbestandsmerkmale, pp. 1.207 ss.; Maurach, p. 245; Blei, p. 11 O; Wessels, p. 49; Stratenwerth,
p. 96; Schultz, 1, p. 128; Bockelmann, p. 77; Platzgumrner, W., Vorsatz und Unrechtsbewusstsein,
pp. 34 ss.; Maurach-Zipf, p. 309; Jescheck-Weigend, p. 295; Aníbal Bruno, 1, 2°, p. 68; Heleno
Fragoso, Lições, P.G, p. 213; Cláudio Brandão, Teoria Jurídica do Crime, p. 154.
84
Roxin, pp. 407 ss; proximamente, Jakobs, p. 350.
81
Rudolphi, p. 112.
86
Welzel, p. 72 (arrolando diversas opiniões); Jescheck-Weigend, p. 304; João Mestieri,
Manual, p. 132; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 149; Aníbal Bruno, 1, 2°, p. 71;
negam sua utilidade, entre nós, Juarez Tavares, Espécies de dolo, cit., p. 22 e Luiz Regis
Prado, 1, p. 359; chamou-o dolus generalis Binding, Normen, li, 2, p. 843; Schõnke-
Schrõder, pp. 469 ss.; Jagusch, Leipziger Kommentar, § 292, notas 6 e 43; Mezger, também
em Leip. Kommentar, § 59; Maurach, p. 260; Nowakowski, Friedrich, Der Alternative
Vorsatz, pp. 465 ss.; sobre todas as classes de dolo na legislação penal alemã, Gehrig, K.,
Der Absichtsbegri.ff... passim.
87
Assim os menciona Schmitz, Roland, em ZStW, 112, 2000, pp. 304 ss.

283
equivalentes); e) o agente dispara contra um vulto que se move na escuridão,
sabendo que pode ser uma pessoa ou um animal grande (ação dirigida contra
objetos materiais identificados alternativamente). Estamos diante de questões
que se resolvem respectivamente como concurso aparente de tipos, concurso
formal, ou como um único tipo: a) o princípio da subsidiariedade é convocado
perante ofensas mais ou menos graves ao mesmo bem jurídico, e o dolo de homi-
cídio (consumado ou tentado) prevalece sobre o dolo das lesões corporais; b)
nessa hipótese, teremos um concurso formal perfeito (art. 70 CP, primeira parte)
entre um homicídio consumado e um dano tentado ou um dano consumado e um
homicídio tentado ou um homicídio e um dano tentados; e) aqui, o agente comete
homicídio (consumado ou tentado) ou dano (consumado ou tentado), segundo o
que efetivamente seja o vulto que persegue e o resultado de sua ação (a alterna-
tiva não é real, observando-se quanto a ela ausência de tipo).

2. A moderna dogmática abandonou, há tempos, o conceito de dolo de


ímpeto88, que faria contraponto a um dolo de propósito89• Na antiguidade, a
regulamentação da vingança privada e o esforço da cidade para impedir sua
ilimitada reprodução levou à consideração de um menor merecimento penal
para o homicídio de ímpeto, emparelhado nas leis, na reflexão jurídica e na
literatura grega, a um homicídio involuntário90. Vestígios dessa tendência po-
dem ser encontrados na lei penal brasileira, como lembrava Hungria, no homi-
cídio privilegiado por estar o sujeito "sob o domínio de violenta emoção, logo em
seguida a injusta provocação da vítima" (art. 121, § 1º CP), no perdão judicial
para a injúria provocada ou retorquida (art. 140, § 1°, incs. I e II CP) e na
atenuante genérica da "violenta emoção provocada por ato injusto da vítima"
(art. 65, inc. III, ai. e CP)91 • Não estamos aqui, por certo, no âmbito do moder-
no conceito de dolo, mas sim no campo da culpabilidade (onde são versados os
motivos, que não integram o dolo) ou mesmo da chamada "teoria das circuns-
tâncias"92• Portanto, um conceito de dolo de ímpeto93 não oferece maior inte-
resse para o direito penal brasileiro.
11
Para Juarez Tavares, tal conceito apenas traria "confusão à matéria" (Espécies de dolo, cit.,
p. 22); considerando-o uma classe de dolo inferior, Rafael Díaz Roca, Derecho Penal
General, p. 155.
19
Mouyart de Vouglans, I, pp. 6-7.
90
Para as leis, cf. os fragmentos de Dracon estudados por Biscardi, Arnaldo, Diritlo Greco
Antico, pp. 284 ss.; para a reflexão jurídica, cf. Platão, As Leis, Livro IX, pp. 375 ss.; para
a literatura, cf. Homero, A Ilíada, Livro XXIII, vs. 74-75 ("Porque, ao jogo irritado,
involuntário I Matei sem tento o filho de Antidamas").
91
Comentários, cit., I, II, p. 181.
92
Costa e Silva já advertia que o dolo de ímpeto-que ele também designava por dolo repentino
- "só tem importância para a graduação da pena" (Código Penal, 1930, p. 141 ).
93
Sobre ele, Bettiol, p. 450; Mantovani, F., p. 289; Pessina, p. 344; Alimena, B., Principii, I,
p. 299; Carrara, I, pp. 106 ss.; Carmignani, 1822, pp. 54-55 (trad. it., pp. 77 ss).

284
3. O momento do dolo deve coincidir com o momento da execução da
ação: a vontade anterior ao início da execução (chamada impropriamente dolo
antecedente) não é dolo e, portanto, é irrelevante para fins de tipicidade subje-
tiva. A vontade posterior à consumação do tipo objetivo (chamada impropria-
mente dolo subseqüente) também não é dolo, porque não pode reger a
realização de algo já realizado94. Os chamados dolos antecedente e subseqüen-
te constituem apenas disposições internas irrelevantes penalmente. Os proble-
mas que sob tais rótulos costumam agitar-se não se equacionam na estrita
referência a essas classes de dolo, que na verdade não configuram dolo. No
crime permanente não há dolo subseqüente se alguém dele participa durante o
estado consumativo (o cúmplice recrutado para cuidar da vítima de seqüestro
já no cativeiro). Tampouco existe dolo subseqüente quando se interrompe uma
ação e se começa outra, como fruto de uma nova decisão95 •

94
Cf. Luzón, p. 429; Jescheck-Weigend, p. 294.
95
Jakobs, p. 31 O.

285
§ 35. AUSÊNCIA DE DOLO: ERRO DE TIPO

/. A classificação do erro e o error iuris nocet


1. Durante muito tempo distinguiu-se entre o erro de fato (error facti) e
o erro de direito (error iuris)96, afirmando-se que o primeiro eximia de culpa-
bilidade e que o segundo era irrelevante, irrelevância que se enunciava recor-
rendo ao apotegma error iuris nocet97 • Embora este enunciado tenha raízes
canônicas98, sua rígida utilização é própria do Estado moderno, porque a tradi-
ção canônica distinguia, desde Graciano, entre ignorantia iuris natura/is e
ignorantia iuris civilis, e tal distinção viabilizaria eximir o rústico ou o ausente,
como faria Gandino, ou autores de infrações a direitos locais que não repetis-
sem o ius natura/e, como faria Julio Claro~ as Partidas consagraram essas
exceções99. Glosadores e pós-glosadores, de modo geral, reconheciam efeito
eximente quando, pela natureza da conduta, fosse verossímil ignorasse o agen-
te a proibição 100, opinião que se acentuaria no pensamento liberal, exigindo
Feuerbach até mesmo o conhecimento da punibilidade 1º1 e outorgando
Carmignani eficácia eximente quando o erro versar sobre uma lei "não deduzida
do direito natural e não conhecida universalmente" 1º2• A radicalidade do error
iuris nocet foi uma criação jurisprudencial dos Estados modernos de cariz
bonapartista, sustentada pelo velho Reichsgericht e criticada por quase toda a
doutrina1°3, cujo caráter marcadamente autoritário provém de que a imputação

96
Sobre ele, Díaz y Garcia Conlledo, Miguel, Los elementos normativos dei tipo penal y la
teoría dei errar, pp. 673 ss.; o erro de direito na jurisprudência italiana em Mantovani,
Ferrando, lgnorantia legis scusabi/e e inescusabile, pp. 379 ss.
97
Hungria, Nelson, Comentários, 1, li, pp. 216 ss.; Nútiez, II, pp. 94 ss. (embora outorgue
relevância ao erro sobre elementos normativos do tipo).
98
Uma fundada crítica ao aforismo errar juris nocet em Dorado, Pedro, pp. 396 ss.
99
P. Iª, t. 1, lei XXI. Kiefner, Die gegenwiirtige Bedeutung der maxime "nu/ n 'est censé ignorer
la /oi", p. 87; Kuttner, Stephen, Kannonistiche Schu/dlehre von Gratian bis auf die
Dekretalien Gregors IX, pp. 164 ss.; Batista, Nilo, Matrizes Ibéricas, p. 208; distinção
similar em Francisco de Vitoria (cf. Biasco y Femández de Moreda, E/ va/orexculpatorio de
la ignorancia, e/ errar y la obediencia debida en e/ pensamiento de Francisco de Vitoria, pp.
848 ss.). A ignorância da lei civil como escusa para "quem se encontrar num país estranho"
em Hobbes, Leviatã, cap. XXVII, p. 172.
100
Cf. Pereda, Julian, Covarrubias Pena/isto, pp. 137 ss.; Mouyart de Vouglans, 1, p. 12.
101
Lehrbuch, p. 83; cf. Maurach, Das Unrechtsbewusstsein ..., pp. 301 ss.
102
E/ementa, § 195.
103
No Brasil, Galdino Siqueira a chamava "concepção absolutista" (Tratado, 1, p. 509); Costa
e Silva frisava que "o código fascista conserva-o (o aforismo error iuris nocet) em toda a sua
antiga rigidez" (Direito Penal, p. 102); sua contradição com o princípio da culpabilidade foi
ressaltada por Aníbal Bruno (Direito Penal, 1, 2º, p. 115), Frederico Marques (Tratado, 2,
p. 241 ), Magalhães Noronha (Direito Penal, 1, p. 150) e Heleno Fragoso (Lições, P.G, p.

286
104
se baseia apenas no pertencimento do sujeito a uma comunidade jurídica ; não
admira que o conhecimento da lei tenha sido tratado como "dever cívico"1º5•

2. Para remediar as soluções notoriamente injustas da aplicação intransi-


gente do errar iuris nocet, procurou-se assimilar o erro de direito extrapenal
ao erro de fato. Assim, teriam capacidade escusante o erro de fato e o erro de
direito extrapenal, ao contrário do erro de direito então reduzido ao erro de
direito penal 106• Mas tarde, a classificação erro de fato - erro de direito seria
superada e substituída por outra (erro de tipo - erro de proibição), segundo
recaia o erro sobre os elementos do tipo objetivo (conhecimento daquilo que se
faz) ou sobre a proibição e antijuridicidade da ação (conhecimento da ilicitude
daquilo que se faz). Algumas questões ficaram em aberto, destacando-se entre
elas, por sua notoriedade, aquela que versa sobre a natureza do erro que incide
sobre as circunstâncias objetivas de uma causa de justificação1°7•

3. A velha distinção entre errar facti e errar iuris nunca foi clara, porque
o errar iuris é sempre um erro sobre o fato da sanção ou da vigência de uma
lei 108• A subclassificação do errar iuris em erro de direito penal e extrapenal
foi severamente criticada por Binding porque, frente ao caráter sancionatório
do direito penal, o principal erro de direito penal tem sempre um objeto
extrapena/ 109 . Devido à estrutura fragmentária da legislação penal, a
subclassificação do errar iuris configura uma impossibilidade lógica e práti-
ca 110• Transportar o raciocínio para a nova classificação (erro de tipo - erro de
proibição) não ajudaria em nada, pois não apenas tanto o erro de tipo quanto o
erro de proibição podem apresentar-se como errar facti ou errar iuris, como
também o erro de tipo tennina por afetar a consciência da ilicitude111 • Mesmo

212). Na Alemanha, Binding, Beling, Mittennaier, Birkmeyer, Mezger e muitos outros; cf.
Baumann, p. 384; na Áustria, Mayer-Naly, Theo, Rechtkenntnis und Gesetzjlllf, pp. 57 ss.;
na Itália, Impallomeni, Jnstifllzioni, p. 245; mesmo onde o aforismo é reconhecido no valor
de princípio, são tantas as exceções que o tratamento acaba se equiparando ao preconizado
pela doutrina, cf. Stuart, Don, p. 268.
104
Hruschka, Joachim, Strukwren der Zurechmmg, p. 57.
105
Manzini, Vicenzo, Trattato, II, p. 27, ecoando em Hungria, Nelson, Comentários, 1, II, p. 221.
106
Destacou-se entre nós na defesa dessa tese - redutoramente benvinda diante do mau
compromisso assumido pelo CP 1940 no tema - Basileu Garcia (Instituições, I, I, p. 276;
também RT 146/22). Cf. Toledo, Francisco de Assis, O Erro no Direito Penal, pp. 36 ss.
107
Jescheck-Weigend, p. 308.
108
Os conceitos e os problemas básicos em Pérez, Felipe, Estudio sobre e/ e,ror de hecho y de
derecho, pp. 17 ss.
109
Die Normen, III, p. 399.
11
° Cf. H. von Weber, A11.fba11, p. 22.
111
Como frisa Da Cruz, Flávio Antônio, "ao se equivocar sobre o substrato correspondente à
descrição típica, impede-se automaticamente que o autor seja atingido por qualquer 'função

287
atenuada em sua autoritária rigidez pelo invento jurídico que outorgou efeito
eximente ao erro de direito extrapenal, a classificação erro de fato - erro de
direito corresponde-se historicamente com a parêmia error iuris nocet, hoje
rechaçada por toda a doutrina como violadora do princípio da culpabilidade 112 •

4. A reforma da Parte Geral, realizada em 1984 (que adotou a classifica-


ção erro de tipo - erro de proibição) baniu o errar iuris nocet que do código
fascista chegara ao nosso, em 1940 113, circunscrevendo-o à mera ignorantia
legis, em contraste com o efeito escusante atribuído ao erro de proibição 11 4.
Por seu turno, a disciplina legal do erro de tipo abrange todo e qualquer "ele-
mento constitutivo do tipo legal", independentemente de sua natureza (descriti-
vo, normativo, normativo-valorativo ou de recorte) 115 • O erro de tipo exclui o
dolo, porém permite a punição a título de culpa - quanto exista a modalidade
culposa - em caso de erro inevitável (ou vencível, ou inescusável). O erro de
proibição exclui - se inevitável- ou reduz- se evitável-a culpabilidade (e, por
conseqüência, a pena). Em linhas gerais, é como a matéria se organiza no
direito penal brasileiro.

li. O erro de tipo como face negativa do dolo


1. O erro de tipo, como face negativa do dolo, é uma construção redutora
da imputação subjetiva que exerce sua função na dialética da tipicidade. Embo-
ra a teoria do erro, em seu conjunto, tenha sido submetida a inúmeras iniciativas
para neutralizar sua função redutora a pretexto de assegurar-se a vigência do
direito (embora, de fato, expandindo o poder punitivo), como o percurso do
error iuris nocet revela, no caso do erro de tipo essa polarização se potencializa
como efeito da natureza dialética da sede de seu objeto 116•

de apelo nonnativo'. Não terá, portanto, qualquer razão para se preocupar com o efetivo
desvalor da conduta, se sequer sabe o que faz" (O Tratamento do Erro, p. 204).
112
Kohlrausch, E., lrrtum und Schuldbegriffim Strafrecht; Maurach, p. 457; Stratenwerth, p.
168; Baumann, p. 388; Roxin, pp. 407 ss.; com argumentos constitucionais Bacigalupo,
Sistema dei errar sobre la antijuridicidad en el Código Penal; Spolansky, Norberto E., El
errar o la ignorancia en el derecho penal; para a doutrina brasileira, cf. supra, nota nº 103.
113 An. 16. A ignorância ou a errada compreensão da lei não eximem de pena. A Exposição de Motivos
defendia ardorosamente a opção doutrinária (nº 14). O frustrado CP 1969 experimentava wna
solução igualmente desastrosa (cf. Francisco de Assis Toledo, O Erro no Direito Penal, p. 85).
11
• Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se
inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminui-la de um sexto a um terço.
115
Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite
a punição por crime culposo, se previsto em lei.
116
Cf. supra,§ 29; próximo, Femández Carrasquille, Juan, Delito y error, perspectiva palítica-
criminal, p. 30; Munoz Conde, F., EI error en Derecho Penal, p. 21.

288
2. A classificação do erro em erro de tipo e erro de proibição é quase
pacificamente adotada por toda a doutrina 117, com clara base legal em vários
códigos modernos (brasileiro, português, espanhol, alemão, austríaco etc). Pou-
cas vozes isoladas arengam ainda em favor do velho paradigma do
Reichsgericht118• O critério diferencial dessa categorização responde a que:
a) o erro de tipo incide sobre elementos do tipo objetivo e exclui invariavel-
mente o dolo, restando apenas a possibilidade de considerar uma tipicidade
culposa (art. 20 CP) quando a.a) exista previsão legal expressa de correspon-
dente modalidade culposa 119 e a.b) seja o erro vencível (ou evitâvel, ou
inescusável ou ainda superável, expressões sinônimas); b) o erro de proibição
incide sobre a natureza antinormativa e antijurídica da conduta, donde se origi-
na uma subclassificação em b.a) erro de proibição em sentido estrito (sobre a
antinormatividade) e b.bJ erro de permissão (sobre a antijuridicidade). Ao con-
trário do erro de tipo, o erro de proibição de nenhuma forma afeta o dolo, que
subsiste íntegro ao nível do tipo subjetivo. O erro de proibição, quando invencível,
exclui a culpabilidade como conseqüência de eliminar um de seus elementos
estruturais, a consciência (ao menos potencial) da ilicitude; porém se o erro de
proibição for vencível (ou evitável, ou inescusável, ou ainda superâvel, expres-
sões sinônimas), ele reduz a culpabilidade (e, conseqüentemente, a pena - art.
21 CP, segunda parte). Portanto, neste momento, em que estudamos o tipo
subjetivo nos crimes comissivos dolosos (ou dolosos ativos), interessa-nos ape-
nas o erro de tipo. O erro de proibição será examinado na teoria da culpabilida-
de, da qual faz parte.

117
Toledo, Francisco de Assis, O Erro no Direito Penal; Gomes, Luiz Flávio, Erro de Tipo e
Erro de Proibição; Bitencourt, Cezar Roberto, Erro de Tipo e Erro de Proibição; Reale
Júnior, Miguel, Instituições, I, p. 229; Fragoso, Heleno, Lições, P.G., p. 182; Mestieri,
Manual, p. 136; Armaza Galdós, Julio - Annaza Galdós, Jorge, Error de tipo y error de
proibición; Hippel, Robert von, II, pp. 31 ss.; Schmidt, Eb., Rechtsnot im
Wirtschaftsstrafrecht ... , pp. 570 ss.; Welzel, p. 76; Jescheck-Weigend, pp. 307 ss.; Maurach,
p. 274; Bockelmann, P., Strafrechtliche Untersuchungen, pp. 66 ss.; Busch, Richard, Über
die Abgrenzung von Tatbestands und Verbotsirrtum, pp. 165 ss.; Dohna, Aujbau, 1941,
pp. 17-19; Niese, Wemer, op. cit., pp. 13 ss.; Weber, Grundriss, pp. 61 ss.; Roxin, p. 459;
outra solução em Mezger, Lehrbuch, 1949, pp. 303 ss.; Mezger-Blei, pp. 188 ss.
118
Kuhlen, Lothar, Die Unterscheidung von vorsatzausschliessendem und nichtsvor-
satzausschliessendem Irrtum, p. 370 ( que chama de "vertical" a classificação erro de fato -
erro de direito e "horizontal" a classificação erro de tipo - erro de proibição); também
Puppe endossa a opinião do Reichsgericht (Die Unterscheidung ... , p. 892 e Tatsirrtum,
Rechtsirrtum und Subsuntionsirrtum, pp. 180 ss.; traduzido em CPC, 1992); Bruzzone,
Gustavo, em Lecciones y Ensayos, 1994, 60-61, pp. 13 ss.; crítico, Belfiore, Elio R.,
Contributo alia teoria dell'error in diritto pena/e, pp. 198 ss.
119
Dispõe o parágrafo único do art. 18 CP: Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser
punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

289
3. O erro de tipo não é, assim, mais do que a falta da representação, do
aspecto cognitivo requerido pelo dolo. Ao caçador que, em lugar enno, dispara
contra uma sebe, na qual supunha ter-se alapado a caça, e mata uma pessoa que
surpreendentemente ali donnitava, falta a consciência de "matar alguém" (art.
121 CP), e portanto falta-lhe o dolo (a tipicidade subjetiva da ação). A lei brasileira
conceitua o erro evitável num dispositivo topologicamente referido ao erro de
proibição, porém aplicável analogicamente ao erro de tipo: "considera-se evitável
o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando
lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência" (art. 21, par.
ún. CP). O erro de tipo é vencível(= evitável, inescusável, superável) quando o
sujeito, nas circunstâncias concretas em que se deu a ação, empenhando a dili-
gência cabível para inteirar-se da realidade, pudesse adquirir consciência sobre
os elementos típicos objetivos. Se, no exemplo acima fonnulado, o caçador não
estivesse em lugar enno e sim no subúrbio de uma cidade, tal circunstância impo-
ria um maior rigor na certificação de que não havia alguém oculto na sebe; esta-
ríamos, então, diante de um erro vencível, que abre as portas para a investigação
acerca de um crime culposo, quando exista a modalidade (no caso, o homicídio
culposo é previsto - art. 121, § 3° CP). Ressalte-se que a "punição por crime
culposo" que a lei "permite" (art. 20 CP) não decorre automaticamente da duplà
condição (ser o erro vencível+ existir previsão legal expressa de correspondente
modalidade culposa), impondo-se a constatação da tipicidade culposa, segundo
seus próprios requisitos objetivos e subjetivos. Quando o agente, empenhando a
diligência cabível nas circunstâncias concretas, não tinha a possibilidade de ad-
quirir consciência sobre os elementos típicos objetivos, a ação será atípica quanto
ao tipo doloso e quanto ao tipo culposo. Numa síntese: a) o erro de tipo exclui
sempre a tipicidade dolosa, seja ele vencível ou invencível; b) sendo o erro
vencível e existindo previsão legal expressa de correspondente modalidade
culposa, pode o sujeito responder pelo crime culposo, desde que presentes
todos os requisitos, objetivos e subjetivos, do tipo culposo; e) sendo o erro
invencível, estará eliminada não só a tipicidade dolosa mas também a pos-
sível tipicidade culposa.

4. O erro de tipo pode incid_ir sobre qualquer dos elementos do tipo


objetivo abrangidos pelo conhecimento do dolo: ao valer-se da irrestrita
expressão "elemento constitutivo do tipo legal de crime" (art. 20 CP), a lei
dirimiu toda dúvida quanto a não só os elementos descritivos, mas também os
normativos e os norrnativos-valorativos ou normativos de recorte ensejarem,
quando sobre eles incidir, erro de tipo 120. Contudo, cabe recordar que o aspecto

12
º Bitencourt, Cezar Roberto, Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 97; Toledo, Francisco de Assis,
O Erro no Direito Penal, p. 49; Gomes, Luiz Flávio, Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 130.

290
cognitivo do dolo não abarca a totalidade do tipo objetivo: não integram o
campo do dolo os aspectos da tipicidade conglobante que exprimem a
antinormatividade da conduta. Não se trata de uma arbitrária assimetria, e
sim de mera conseqüência da constatação de que o tipo objetivo, para exercer
sua função conglobante, é composto por elementos que dispensam seu objeto
do conhecimento doloso. O conhecimento sobre a própria ação típica que se
realiza, ou seja, sobre aquilo que se faz, postula conteúdos efetivos e atuais,
porém para a antinormatividade, assim como para a ilicitude da ação, basta a
possibilidade do conhecimento, jamais se requerendo sua atualização no mo-
mento da ação.

5. A necessidade de construir um tipo de erro, sem cabal correspondên-


cia (sempre mais restrito) com o tipo objetivo, já que não compreende os as-
pectos da tipicidade conglobante que fundamentam a antinormatividade, proveio
de que aquela perfeita simetria entre tipo objetivo e tipo de erro do finalismo
não facultara espaço teórico para a antinormatividade na tipicidade e passara
por alto certos problemas de imputação objetiva. Embora sem dúvida a simetria
finalista homenageasse a regra iheringuiana da estética jurídica, ela não pode-
ria prevalecer metodologicamente - e fracassaria - perante a exigência de
caracterizar a diversidade de erros e efeitos que podem apresentar-se segundo
o momento, a efetividade, a natureza, a intensidade e a forma dos conhecimen-
tos requeridos. A simetria é um expediente construtivo secundário, e se assim
não fosse seria preciso proclamar que a elaboração sistemática mais simétrica
foi a de von Liszt.

6. Admitida a dominabilidade do fato como critério imputativo (como


pertencimento do fato ao sujeito), tanto no tipo objetivo quanto no tipo de
erro, compreende-se deva ela ser abrangida pelo dolo. Assim, encontraremos
erros de dominabilidade, que podem assumir as formas de a) ignorância da
dom inabilidade ou de b) falsa suposição de dom inabilidade. a) Como a
dominabilidade é que abre a possibilidade de domínio, quem a ignora
não pode exercer o domínio do fato. a.a) Quem introduz a causa de um
resultado num curso causal que supõe ninguém poderia dominar, quando na
verdade se trata de uma causalidade tranqüilamente dominável segundo o atual
estágio de conhecimento científico ou técnico, claramente não atua com dolo,
porque sua ignorância impediu-o de assumir o domínio do fato. a.b.) Tratando-
se de cursos causais domináveis apenas por quem disponha de adestramento
ou de conhecimentos especiais, um observador externo, ciente do especial ades-
tramento ou conhecimento, reconheceria a existência de um plano destinado à
realização do tipo; mas pode ocorrer que no caso concreto tenha o sujeito
esquecido a informação (não atualização efetiva do conhecimento especial,

291
amnésia ou ato falho) ou não possa valer-se de suas habilidades (não aplicação
do adestramento especial); em ambas as hipóteses, exclui-se o dolo, porque
tampouco aqui houve domínio do fato, senão que apenas em potência (o agente
poderia ter dominado o acontecimento, porém não o fez). a.e.) Quem maneja
meios de execução cuja idoneidade ignora também erra por ignorar a
dominabilidade: assim, quemjocandi animo aponta a pistola- da qual retirara
o pente e pensava estar descarregada - para seu colega e aciona o gatilho,
sobrevindo o disparo pela presença insuspeitada de um cartucho na câmara. b)
Na falsa suposição de dominabilidade, ou seja, quando alguém crê falsa-
mente dispor do domínio do fato, temos em geral atípicidade objetiva,já que o
sujeito introduz um curso causal que é apenas imaginário, e não seria percebido
como plano destinado à realização do tipo por um observador externo. O único
caso relevante, aqui, seria aquele em que o sujeito, supondo falsamente domi-
nar o fato, pretenda-se autor e na verdade é apenas partícipe, situação que
podemos denominar erro de domínio 121 .

7. Também constitui um erro de tipo aquele que incide sobre a bana-


lidade da colaboração na participação. Quem crê ministrar uma coopera-
ção corriqueira ao fato, quando na verdade presta uma contribuição importante,
não atua com o dolo de participação. Inversamente, quem supõe estar colabo-
rando significativamente e apenas presta uma contribuição trivial, age
atipicamente, pois a relevância fática de sua colaboração é apenas um compo-
nente imaginário de sua conduta, que não rompe com a inocuidade do papel
banal por ele realmente desempenhado.

Ili. O erro de tipo por incapacidade psíquica


1. Pode o agente incorrer em erro de tipo quando, por distúrbios psíquicos
(doença mental ou desenvolvimento mental incompleto - art. 26 CP) ou por
imaturidade, não tenha, no momento da ação, a capacidade de conhecer ou de
atualizar os elementos conscientes necessários para configurar a finalidade
realizadora do tipo, e portanto atua sem dolo. Não se trata aqui apenas de
hipóteses de autismo esquizofrênico e alterações da percepção sensorial (ilu-
sões e alucinações) que impedem reconhecer os elementos objetivos do tipo (o
sujeito percebe animais, porém na verdade são pessoas). Outras situações po-
dem configurar-se: a) os oligofrênicos que não podem compreender certos con-
ceitos abstratos, como a "alheidade" da coisa; b) as crianças, a cuja
compreensão escaparia a maior parte dos elementos normativos dos tipos le-

121
Cf. infra, § 54.

292
gais; e) as pessoas que atuam sob o efeito de medo grave (pânico) que pertur-
ba sua percepção sensorial ou impede a atualização de conhecimentos; d) as
pessoas que, em decorrência do cansaço ou da falta de sono sofrem alterações
na percepção sensorial. Não se confundem tais situações com as alterações da
percepção sensorial que ensejam a suposição ilusória de uma causa de justifi-
cação ou a interpretação aberrante de fatos reais, como sói ocorrer em delírios
paranóides e persecutórios em geral: esses seriam erros de proibição indire-
tos patologicamente condicionados, com o efeito de excluir a imputabilidade
( e, pois, tratados no âmbito da culpabilidade).

2. A despeito da predominância doutrinária da opinião que sedia o dolo no


tipo, esses casos de ausência de dolo não foram suficientemente estudados, por
influência da concepção estrutural objetiva do tipo, para a qual bastava remeter
tais casos à disciplina -e às soluções - da imputabilidade. Tampouco se cogi-
tou de trabalhar os embaraços que distúrbios psíquicos podem acarretar para
os elementos especiais do tipo subjetivo, distintos do dolo. A relevância da ques-
tão, por exemplo perante os casos de tipos plurissubjetivos, indica a urgência de
se aprofundar essa linha de investigação.

TV. Erro sobre elementos normativos


1. Ao asseverar indistintamente que "o erro sobre elemento constitutivo
do tipo legal de crime exclui o dolo" (art. 20 CP), nossa lei removeu toda e
qualquer dúvida sobre constituir o erro sobre os elementos normativos, tanto
quanto aquele sobre os elementos descritivos, erro de tipo. Não obstante, existe
um enorme esforço doutrinário para reduzir a abrangência do erro de tipo,
transportando em diferente medida o conhecimento desses elementos para o
âmbito da culpabilidade. Este esforço corresponde claramente à chamada
administrativização do direito penal: a riqueza de elementos normativos que
os tipos legais dessa corrente legislativa comumente ostentam tem no erro de
tipo um instrumento redutor do poder punitivo que essa corrente gostaria de
neutralizar, deslocando-os do tipo para a culpabilidade, e substituindo o conhe-
cimento efetivo e atual requisitado pelo dolo pelo conhecimento potencial que
supre a consciência da ilicitude.

2. É importante observar que certa política criminal conservadora mani-


festa na teoria do erro sua tendência autoritária a privilegiar funcionários das
agências do sistema penal com tratamento distinto daquele dirigido aos cida-
dãos. Assim, na medida em que cresce o número de elementos normativos
inseridos nos tipos legais e em que seu conhecimento seja convertido na mera

293
potencialidade cognoscitiva requisitada pela consciência da ilicitude, no âmbito
da culpabilidade diminuem as possibilidades do cidadão amparar-se no erro Uá
não mais de tipo, e sim de proibição). Inversamente, o velho esforço para resol-
ver como erro de tipo aquele que incide sobre os pressupostos fáticos de uma
causa de justificação pennitiria que sempre se ampare na ausência de dolo o
policial que atua em erro vencível. Ambos os esforços doutrinários coincidem
em ampliar o poder punitivo em detrimento do cidadão em caso de vencibilidade
e reduzi-lo em beneficio do agente do sistema penal no mesmo caso.

3. Na posição correta, redutora do poder punitivo, encontram-se os auto-


res que, ressalvadas expressões que clara e redundantemente se refiram à
antijuridicidade, consideram que todos os erros sobre elementos nonnativos do
tipo configuram erro de tipo 122. Aí se incluem também os elementos nonnativos
de recorte (nonnativos-valorativos). Quando estes últimos elementos configu-
ram requerimentos negativos do tipo, como a falta de consentimento do mora-
dor na violação de domicílio (art. 150 CP, terceira modalidade), seu conhecimento
deve ser tão efetivo quanto o seria no caso de exigências típicas positivas 123 ,
sendo insuficiente que o autor apenas não conheça seu reverso (equiparando o
conhecimento do dissenso do morador ao desconhecimento de seu consenti-
mento), critério que parece próprio dos partidários da teoria dos elementos
negativos do tipo 124 •

4. O conhecimento dos elementos nonnativos do tipo e o erro a seu res-


peito se obscureceram quando se pretendeu recorrer à categoria do chamado
erro de subsunção, cuja polissemia dificulta seu emprego. a) Entendeu-se por
tal o erro sobre noções jurídicas que em nada afetam o dolo 125 , desde que
desnecessárias para seu conhecimento, como ignorar que um cachorro é uma
coisa móve/1 26 ou que decompor um mecanismo sem destruí-lo configura dano
na modalidade de inutilização (art. 163 CP). Precisamente a velha insistência
no conhecimento e na valoração paralelos exclui a relevância desses pretensos
erros. b) Também foi usada a categoria erro de subsunção para aquele que

122
Toledo, Francisco de Assis, O Erro no Direito Penal, p. 49; Bustos, p. 401; Bitencourt,
Cezar Roberto, Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 97; Suay, Celia, em ADPCP, 1991 , pp.
97 ss.; Politoff Lifschitz, S., p. 615; Mufioz Conde, Francisco, El errar en derecho penal,
pp. 130 ss.; Gomes, Luiz Flávio, Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 130; Cirino dos
Santos, Juarez, Direito Penal, p. 152; Mayrink da Costa, Álvaro, Direito Penal, v. 2, p. 91 O.
123
Assim Welzel, Die Regelung von Vorsatz und lrrtum im Strafrecht, em ZStW, 1955, p. 196;
Armin Kaufmann, Tatbestandseinschankung und Rechtsfertigung, p. 37.
124
Cf. Weber, H., Negative Tathestandsmerkmale, p. 185; Arthur Kaufmann, em JZ, 1954, p.
657.
125
Jakobs, p. 348; Roxin, pp. 461 e 872.
126
Haft, Grenzfiille des Irrtums iiber normative Tatbestandsmerkmale im Strafrecht, p. 284.

294
incide sobre o enquadramento típico de uma ação 127 , que será relevante quan-
do afete a possibilidade de compreensão da antijuridicidade ou da magnitude do
injusto. e) O desconhecimento de que certa substância integra a lista de drogas
ilícitas, que complementa a criminalização do porte, configura erro de tipo que
exclui o dolo. Para chegar a essas conclusões não precisamos recorrer à cate-
goria do erro de subsunção, mas sim observar rigorosamente os requisitos
dogmáticos do dolo, distinguindo entre o erro que o elimina (ou abre a possibilida-
de da punição a título de culpa) e o erro que elimina ou reduz a culpabilidade128,
prescindindo de uma categoria que complica mais do que explica.

V. Problemas de disparidade entre o plano e o resultado ("erros


acidentais")
1. Existe um conjunto de problemas, derivados da disparidade entre o
plano do agente e aquilo que realmente aconteceu no mundo, tradicionalmente
tratados como desvios do curso causal ou "erros acidentais" sobre o curso
causal. A rigor, dentro desse conjunto encontram-se hipóteses nas quais a cau-
salidade não se desvia do plano do autor, a ele pelo contrário ajustando-se
inquestionavelmente (como no error in personam e, em geral, nos erros sobre
objetos materiais equivalentes), enquanto outras hipóteses não configuram, ao
menos em sentido jurídico-penal, erro (como na aberratio ictus, o desvio do
golpe). Por isso, é preferível reunir esses problemas sob a referência genérica
da disparidade entre o plano e o resultado.

2. A maior parte desses problemas se soluciona com observância dos


critérios de imputação que operam no âmbito da tipicidade objetiva, especial-
mente em função conglobante. Muitos exemplos clássicos, que se resolviam
pela ausência de dolo em razão dos chamados desvios essenciais (ou "interrup-
ções") do nexo causal - como, por força do art. 13, § 1º CP, cabe ainda resolvê-
los no direito penal brasileiro - encontram na dominabilidade um critério
satisfatório, que toma desnecessária a transposição do problema para o campo
do tipo subjetivo 129 •

3. Contudo, pode existir dominabilidade (tipicidade conglobante) e pode


suceder que o agente assuma o domínio do fato atuando dolosamente: a per-
gunta é até que ponto se pode imputar subjetivamente (ao dolo) a transforma-

127
Sobre essas diferentes acepções, cf. Luzón, p. 449.
128
Em sentido análogo, Jescheck-Weigend, p. 315.
129
Por todos, Luzón Pena, p. 454.

295
ção do mundo exterior que não coincida exatamente com o plano. Nem sempre
a imputação objetiva coincide com a subjetiva, ainda que o sujeito queira assu-
mir dolosamente o domínio do fato 130• Permanece válido para esse modelo
discernir entre desvios essenciais e acidentais da causalidade, sendo os pri-
meiros relevantes para o dolo, e os segundos indiferentes. Perante esse modelo,
é indispensável discernir a essencialidade ou a acidentalidade da discordância
entre o plano do autor e aquilo que realmente aconteceu no mundo, sempre que a
questão não houver obtido solução anteriormente, ao nível da tipicidade objetiva.

4. Será importante, aqui, a chamada concreção do dolo. O dolo sempre


assume uma forma concreta em cada caso, obedecendo pois a um plano mais
ou menos preciso de execução do fato. Enquanto fórmula que se extrai do tipo
legal de delito (do Tatbestand legal), o dolo se contém numa vontade descrita
de maneira tão abrangente e geral quanto o tipo objetivo; mas no pragma con-
creto (no Tatbestand fático) o dolo busca sua concreção numa vontade ajusta-
da a um plano mais ou menos especificado e definido. Embora não haja
capacidade de previsão humana de um curso causal que contemple todos os
pormenores de seu desenvolvimento, o plano do autor engloba as circunstâncias
presentes, e até mesmo as pressentidas, com muito mais elevado grau de determi-
nação (concreção do dolo). Quem pretende matar um membro da gangue rival,
com a qual se depara inopinadamente (sendo-lhe indiferente de que membro se
trate), deve de qualquer modo mirar e disparar sobre alguém; quem quer furtar
numa casa de praia, penetra nela à procura de objetos valiosos, independentemente
de sua nature?.a (jóias, eletro-domésticos etc); ao contrário, para aquele que planeja
matar seu cônjuge a morte do cunhado está longe de ser indiferente, tanto quanto
para o colecionador que deseja apoderar-se de certo quadro não seria indiferente
que a tela efetivamente subtraída fosse uma reprodução.

5. A partir dessa perspectiva, a essencialidade ou a acidenta/idade da


desavença entre o planejado e o sucedido deve ser estabelecida segundo o
plano concreto do autor, ou seja, segundo o grau de concreção do dolo
nesse plano. Por intuitivas razões político-criminais, será irrelevante para esta-
belecer a essencialidade ou a acidentalidade aquela concreção do plano que tiver
como objetivo a ocultação do fato,já que sua inclusão importaria num invariável
seguro de benignidade, em caso de fracasso parcial do plano. Existe uma opinião
que nega radicalmente a necessidade desse limite, porque imputa qualquer muta-
ção, sempre que o agente tenha querido causá-la ou causar outra equivalente,
independentemente da forma, momento ou curso causal impulsionado e mesmo
em divergência com o planejado: trata-se da tese etici?.ante do dolus generalis,

uo Cf. Roxin, pp. 433-436.

296
que renuncia a relevar sua concreção. Essa tese, para a qual basta o dolo ge-
ral' 31 , remonta à doutrina italiana dos pós-glosadores, tendo sido enunciada por
Farinácio (sufjicit animus occidendi si non in specie saltem in genere) 132 •

6. A decisão sobre a relevância da disparidade é claramente uma questão


de imputação subjetiva ao dolo, e, portanto, uma questão normativa. Decorre
daí que, respeitados os fundamentos ônticos que embasam a construção jurídi-
ca do dolo, seja necessário outorgar relevância a todas as circunstâncias
concretizantes dele, excluídas apenas aquelas que tendam à ocultação do fato,
porquanto sua indefectível presença em quase todos os dolos concretados tam-
bém constitui um dado da realidade. Ensaiou-se ultimamente a busca de crité-
rios normativos que se afastam da concreção do dolo em diferente medida133,
buscando equacionar-se a matéria pela via do risco criado 134, sem contudo
apontar limites certos, a despeito de, na maioria dos casos, coincidirem as solu-
ções. Assim, é correto entender que a disparidade é acidental quando a vítima
vem a morrer no hospital e não diante da casa do amante, como pretendera o
agente, ou quando a vítima falece da lesão no figado e não no coração, alvo do
agente 135 • Pelo contrário, a disparidade é essencial quando alguém deseja lesionar
com deformidade permanente (art. 129, § 2º, inc. IV CP) o rosto da mulher que
o abandonara, porém a baixa acidez do vitríolo que lhe atira ao rosto produz tão
somente debilidade permanente da visão (art. 129, § 1º, inc. III CP) ou propri-
edades tóxicas extraordinárias do vitríolo determinam a morte da vítima (art.
121, § 3º CP). Em todos esses casos, a solução do concurso formal entre a
tentativa do crime planejado e o delito efetivamente ocorrido - que muitas
vezes introduzirá um concurso aparente 136 - deve sempre excluir a possibilida-
de de dolo eventual com respeito ao delito ocorrido, que obviamente unificaria
a solução. A regra que, no direito penal brasileiro, disciplina os resultados diver-
sos do pretendido pelo agente (art. 74 CP) remete à solução do concurso for-
mal (art. 70 CP) os casos nos quais tenha igualmente sobrevindo o resultado
pretendido, sempre que o resultado diverso seja punível a título de culpa. O
surrado caso do agente que arremessa a vítima, que não sabe nadar, da ponte
para que ela morra afogada, resultando a morte de concussão cerebral por
choque da cabeça na queda contra os alicerces, é geralmente resolvido como
131
Cf. Kõhler, p. 154; entre nós, criticamente, Fragoso, Lições, P.G, p. 185; Cirino dos Santos,
Direito Penal, p. 159.
132
Cf. Engelmann, Woldemar, Die Schuld/ehre der Postglossatoren und ihre Fortentwick/ung,
p. 63.
m Parece mais próximo da concretização do dolo Roxin, p. 489.
134
Jakobs, p. 356; Jescheck-Weigend, p. 312; Schmidhãuser, p. 203; Luzón Pena, p. 435.
135
Como uma espécie de valoração paralela na esfera do leigo, Frisch, Wolfgang,
Tatbestandsmiissiges Verha/ten und Zurechnung des Erfolgs, p. 620.
136
Cf. infra, § S8.

297
disparidade acidental. Embora tal solução seja geralmente correta, não se pode
descartar a possibilidade de que tal circunstância integrasse o plano concreto
do agente, como no caso em que a morte por afogamento se destinasse ao
recebimento fraudulento de um seguro, cuja apólice não cobrisse a morte pela
queda; então, a disparidade seria essencial 137 •

7. Um extenso debate acompanha a chamada aberratio ictus, o desvio


do golpe: o agente dirige a ofensa contra um objeto material e atinge outro
equivalente 138. A doutrina sempre se dividiu neste campo, onde prevaleceu a
máxima de Farinácio, que na hipótese se pode assim exprimir: quis matar um
homem e matou um homem 139• Predomina hoje o entendimento que, afastan-
do-se da tese medieval do dolo geral, considera a cumulação, em concurso
formal, de uma tentativa de homicídio (contra a vítima visada) e um homicídio
culposo 140, sempre que a identidade da vítima não careça de relevância para o
autor 141 • Entre nós, a despeito de prevalecer doutrinariamente a solução analí-
tica 142, a lei acolheu o critério unitário (art. 73 CP), remetendo à disciplina do
concurso formal os casos nos quais também o objeto material visado fosse
atingido, além do outro, lesionado pelo desvio do golpe; na presença de dolo
eventual com relação ao segundo, a despeito da unidade de ação, haveria para
alguns cúmulo material de penas (concurso formal imperfeito) 143 , solução que
não parece satisfatória, porque o requisito legal de "desígnios autônomos"
(art. 70 CP, infine) só pode ser atendido por dolo direto, cabendo pois resolver
todos os casos como concurso formal perfeito (exasperação da pena mais gra-
ve). Neste passo, pois, a regra geral concernente ao dolo eventual sobre o
resultado ocorrido cede perante uma exigência legal que não é por ele suprida.

117
Sobre esse caso, em geral, Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 159.
131
Sobre a distinção com a preterintencionalidade, Estrada Vélez, Federico, p. 342; em geral,
Silva Sánchez, Aberratio ictus und objektive Zurechnung, p. 352 (trad. em ADPCP, 1984);
Gómez Benítez, José Manuel, pp. 229 ss.; Costa Jr., Paulo José da, Riflessioni sul/a
aberratio ictus.
119
Frank, StGB, p. 188; Liszt-Schmidt, p. 179; Welzel, p. 73; Hungria, Comentários, I, II, p.
248; Lõwenheim, Ulrich, em JS, 1966, pp. 31 Oss.; Weber, Aujbau, p. 22; Noll, em ZStW,
77, 1965, p. 5; Kuhlen, Die Unterscheidung, pp. 480 ss.

1
Jescheck-Weigend, p. 313; H. Mayer, p. 120; Rudolphi, p. 115; Stratenwerth, p. 102;
Schmidhiiuser, p. 315; Wessels, p. 50; Roxin, p. 494; Jakobs, pp. 356 ss; Maurach-Zipf, p.
318; Blei, p. 121; Baumann-Weber, p. 414; Bockelmann-Volk, p. 72; Frisch, Wolfgang,
Tatbestandsmassiges Verhalten, pp. 480 ss.
1
" Roxin, p. 439; Herzberg, Aberratio ictus und error in objecto, p. 473; de outra opinião,
Kuhlen, pp. 486 ss.
2
" Cf. a polêmica entre Lima Drummond e Batista Pereira, em Macedo Soares, Oscar de,
Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, pp. 66 ss.; Costa e Silva, pp. 111
ss. e 239 ss.; Aníbal Bruno, pp. 124 ss.; Heleno Fragoso, p. 3 71.
10
Assim, Hungria, Comentários, p. 251 .

298
Observou-se que, para a tese unitária, em caso de legítima defesa contra o
destinatário do golpe a morte do terceiro atingido sempre seria dolosa 144. Não
faltaram esforços para distinguir entre bens personalíssimos -que teriam solu-
ção analítica - e outros bens, para os quais se aplicaria a tese unitária 145 •

8. Nossa lei adotou expressamente a tese unitária, preconizando que "quan-


do, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de
atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como
se tivesse praticado o crime contra aquela" (art. 73 CP). Essa adoção expres-
sa, que remonta a 1940, e nomeadamente à opinião de Nelson Hungria, pertur-
ba a aplicação dos insumos teóricos que facilitam a equânime solução dos casos.
Segundo a tese da concreção do dolo, a solução da aberratio ictus dependeria
de que aquilo que realmente aconteceu fosse ou não indiferente para o plano do
autor. Haverá hipótese em que a tese unitária adotada pela lei e a solução
dogmaticamente escorreita se superpõem: aquele que pretende matar um mem-
bro (qualquer membro) de certa seita religiosa, e que, deparando-se com um
grupo deles na rua, de madrugada, dispara contra o mais alto, que caminhava à
frente, e, por imperícia no manejo da pistola, mata o baixinho de trás, obteve
sem dúvida o resultado que se propusera. Aqui, não é apenas o mandamento
legal, mas também a reflexão teórica, fulcrada na concreção do dolo, que apon-
ta para a tese unitária. Distinta seria a situação do agente que, para receber
valioso seguro de vida, pretendesse envenenar a esposa, terminando por matar
o filho: a solução analítica, que neste caso articula uma tentativa de homicídio
qualificado (contra a esposa) a um homicídio culposo (contra o filho), é incom-
paravelmente superior à unitária, que nossa lei perfilhou (art. 73 CP). Quando
for também atingida a pessoa visada pelo plano do autor, a solução é remetida
à disciplina do concurso formal, tal como exposto no parágrafo anterior. Não é
contraditório admitir que quem legitimamente se defende de um grupo de pes-
soas, todas elas injustas agressoras, disparando sobre uma delas e matando
outra (resultado indiferente para o plano defensivo concreto do autor) praticou
um homicídio doloso Uustificado ); mas se o atingido for alguém alheio à agres-
são, a disparidade essencial torna inadmissível o dolo do homicídio consumado,
ressalvada, como sempre, a possibilidade de dolo eventual.

9. O do/us genera/is, essa pretensão eticizante através da qual se procu-


ra sustentar a acidentalidade do desvio do golpe (aberratio ictus) no caso da
equivalência de objetos (visado e atingido), é também empregado para resolver
hipóteses nas quais o resultado se retarda ou se adianta em relação ao

144
Blei, p. 112.
145
Assim, Hillenkamp, Die Bedeutung von Vorsatzkonkre1izie111ng; Jescheck-Weigend, p. 314.

299
planejado pelo autor, consideradas como disparidades acidentais que não
afetam o dolo. Os exemplos de adiantamento falam de quem mata a vítima
com o primeiro golpe, que se destinava apenas a atordoá-la para posterior con-
dução a outro lugar, onde aí sim seria morta 146 ou da pistola que dispara en-
quanto era apontada para a vítima147 • O retardamento é exemplificado com o
caso de quem, supondo já ter matado a vítima, atira-a ao mar para esconder-lhe
o corpo, quando então ocorre a morte por afogamento 148• Convém distinguir
três situações. a) Nos adiantamentos em que o resultado sobrevém antes do
início da execução, não é possível imputá-lo mais do que a título de culpa 149 •
Quem sorrateiramente ministra tranqüilizantes à vítima para, adormecida esta,
lançá-la na ferrovia para simular um suicídio, provocando sua morte com a
ingestão dos comprimidos 150, sequer iniciou a execução do homicídio, tendo
praticado um ato preparatório autonomamente típico de lesão corporal seguida
de morte (art. 129, § 3° CP). Quando houver início de execução, o adiantamen-
to do resultado permite a imputação por tentativa (art. 14, inc. II CP) 151 • b) Nos
casos de retardamento em que haja duas ações, por ter havido duas resoluções
distintas, a solução se deslocaria para o concurso material (art. 69 CP): quem
pretende matar e, acreditando que já o tenha feito, resolve arrojar o corpo ( que
ignora ainda viver) ao mar para ocultá-lo, praticou na verdade uma tentativa de
homicídio e, depois, um homicídio culposo (a menos que uma postura cataléptica
e a face exangue do "morto" impeçam a configuração típica subjetiva do homi-
cídio culposo). e) A questão da essencialidade ou acidentalidade da disparidade
entre o planejado e o acontecido se apresentará apenas nesta última classe
pensável, quando há uma única resolução (matar e arrojar ao mar) e a altera-
ção ocorre ao menos no estágio da tentativa 152 • Regem aqui as mesmas regras
acerca da concreção do dolo examinadas para a aberratio ictus: em geral, o
adiantamento ou o retardamento será indiferente, ou seja, tratar-se-á de uma
disparidade acidental. Contudo, tal desavença poderá ser essencial quando o
momento da alteração tenha rompido o plano concreto do autor por razões
distintas da mera ocultação do fato.

l O. O chamado error in persona vel in obiecto, que incide sobre o


objeto material da ação, e cuja irrelevância jurídica em princípio nossa lei con-

1
" Rudolphi, pp. 115-116.
147
Welzel, p. 74.
141
Schultz, I, p. 137; Maurach, p. 282; Rudolphi, p. 116; Jescheck-Weigend, p.314.
149
Welzel, p. 73.
,so Jakobs, p. 362.
151
Frisch, Tatbestandsmiissiges Verhalten ... , p. 623.
152
Há quem a faça depender de ter ou não o autor consciência de que o desvio é possível; em
caso contrário, só haveria tentativa (Frisch, op. cit., p. 622).

300
sagra (art. 20, § 3° CP), pode no entanto ensejar situações de ausência de
tipicidade objetiva ou de erro de tipo, quando se confundam objetos não equiva-
lentes: quem golpeia um manequim supondo tratar-se de uma pessoa1S3, quem
dispara contra uma pessoa crendo que é um animal etc. A equivalência não é
material e sim jurídica, sendo possível que a não equivalência elimine a tipicidade
objetiva, como no caso de quem subtrai a coisa própria supondo que fosse
alheia. Dúvidas se apresentam perante equivalência de objetos; o sujeito quer
matar alguém que identifica mal, ou quer subtrair um quadro que supõe ser o
original mas é simples reprodução. São casos nos quais o sujeito elaborou todo
o plano, e o colocou em execução, tendo um objeto por referência e obtém o
resultado pretendido sobre este mesmo objeto; apenas, havia escolhido errone-
amente. Salvo as hipóteses de erros sobre minorantes e majorantes, essa errô-
nea identificação do objeto material da ação não possui relevância excludente
do dolo. Tal solução não se contradiz com a concreção do dolo enquanto crité-
rio determinante da essencialidade ou da acidentalidade da discordância com o
plano, porque nas hipóteses figuradas o plano foi levado a termo e esgotado
segundo as circunstâncias concretizantes do dolo do autor, apenas intervindo
um puro erro sobre a motivação 154 •

11. Merece atenção especial a regra, pertinente tanto ao error in persona


(art. 20, § 3° CP) quanto à aberratio ictus (art. 73 CP), segundo a qual, na
solução unitária preconizada, deveriam ser consideradas as condições e quali-
dades não da pessoa efetivamente atingida pelo autor, senão as daquela pessoa
por ela visada. Tomada ao pé da letra, essa regra viola ostensivamente o prin-
cípio da lesividade, criminalizando o desejo por sobre o feito do autor. Por outro
lado, tal regra parece ignorar que quando a condição ou qualidade da vítima
integra o tipo objetivo, desapareceu a equivalência jurídica entre os objetos
materiais, inviabilizando o ponto de partida da solução unitária: se perante os
crimes contra a honra (arts. 138 ss. CP) a equivalência entre todas as pessoas
humanas é verdadeira, a qualidade de Presidente da República rompe tal equi-
valência, introduzindo um tipo qualificado (art. 141, inc. I CP) ou, presente
finalidade política, um crime contra a segurança do Estado (art. 26, lei nº 7.170,de
14.dez.83). Já então, o erro sobre tal elemento constitutivo do tipo constituiria
essencial erro de tipo, e a aplicação da regra em exame colidiria também com
o princípio da legalidade 1ss_ A única interpretação capaz de evitar o reconheci-
mento da cabal inconstitucionalidade dessa regra é aquela que a toma como

153
Welzel, p. 75; Jescheck-Weigend, p. 311 ; Aníbal Bruno, referindo-se ao crime putativo,
frisava a inexistência de "tipo legal a que o ato praticado corresponda" (p. 127).
154
Wessels, p. 50.
155
Cf. Zaffaroni-Pierangeli, Manual, p. 492. Costa e Silva ensinava que o erro sobre qualidades
típicas da pessoa é essencial (Comentários, p. 110).

301
limitação à responsabilidade objetiva provinda do princípio da culpabilidade: sua
função é proibir que seja imputado ao dolo do sujeito, por mais grosseiro tenha
sido o desvio de seu golpe ou seu erro sobre o objeto material, aquilo que não
fora por ele representado em seu plano como alvo livremente escolhido. Essa
interpretação, que superpõe ao casual (ao erro, ao desvio) o voluntário (o plano
do autor), na velha trilha aristotélica, converte a regra numa proibição de que o
poder punitivo habilitável pelo erro de pessoa e pelo desvio de golpe ultrapasse
aquele que seria habilitado se eles (erro e desvio) não tivessem existido. A
regra jamais poderá ser aplicada para criar uma tipicidade objetiva ficcional. A
mãe que, sob influência do estado puerperal, logo após o parto dirige-se ao
berçário e, por engano, mata o bebê alheio, tem na escala penal do infanticídio
o limite político máximo de sua pena, em função dessa regra. A solução analíti-
ca, reconhecendo aí uma tentativa de infanticídio (art. 123 CP) em concurso
fonnal com um homicídio culposo (art. 121, § 3º CP), mantém-se neste limite.
Nos casos de aberratio ictus a tentativa contra a vítima visada pelo golpe é
geralmente clara; nos casos de error in persona, a radical inidoneidade do
objeto pode tomá-la impunível (art. 17 CP). No próximo tópico retomaremos a
algumas dessas questões.

VI. Erros sobre circunstâncias qualificadoras e privilegiantes


(majorantes e minorantes)
I. A classificação secundária dos tipos penais em a) básicos e b) deriva-
dos atende a que os segundos provêm dos primeiros, pelo acréscimo ou su-
pressão de alguma(s) circunstância(s) que sinaliza(m) um conteúdo de injusto
maior ou menor. Quando a(s) circunstância(s) acrescentada(s) ou suprimida(s)
sinaliza(m) maior conteúdo de injusto(= majorantes), temos um tipo qualifi-
cado (cuja construção envolveu o tipo básico e a[s] circunstância[s]
qualificadora[s]); quando ela(s) sinaliza(m) menor conteúdo de injusto (=
minorantes), temos um tipo privilegiado (cuja construção envolveu o tipo
básico e a[s] circunstância[s] privilegiante[s]). Os tipos derivados ou dispõem
de nova escala penal, compatível com seu próprio conteúdo de injusto, ou se
valem da escala penal do tipo básico, majorada (no tipo derivado por qualifica-
ção) ou minorada (no tipo derivado por privilégio). No aspecto subjetivo dos
tipos derivados considerou-se que quando o agente supõe erroneamente que na
tipicidade objetiva existe(m) a(s) circunstância(s) (qualificadora[s] ou
privilegiante[s]) que fundamenta(m) a majoração ou minoração, de qualquer
modo haveria de sua parte um dolo realizador do tipo básico, por constituir a
definição genérica da ação, na qual estaria ele formalmente incurso, tanto obje-
tiva quanto subjetivamente.

302
2. A partir dessa dinâmica do dolo nos tipos qualificados e privilegiados, os
erros sobre as circunstâncias típicas (qualificadoras ou privilegiantes) poderi-
am ser resolvidos satisfatoriamente segundo algumas regras. a) Nos casos de
falsa suposição de circunstâncias qualificadoras, a tipicidade objetiva do
tipo básico impede que a imputação subjetiva exceda essa medida, só cabendo
a imputação pelo tipo básico, não pelo qualificado. b) Nos casos de ignorância
de circunstâncias privilegiantes existentes na tipicidade objetiva, pelo
mesmo critério cabe concluir que a imputação subjetiva não pode dilargar a
objetiva e, portanto, só cabe a imputação pelo tipo privilegiado, não pelo bási-
co 156 • e) Nos casos de ignorância de circunstâncias qualificadoras da
tipicidade objetiva, como está presente o dolo do tipo básico, cabe também
concluir que a imputação subjetiva deve reduzir a objetiva, imputando-se por-
tanto pelo tipo básico.

3. Uma dificuldade surge no caso de falsa suposição de circunstâncias


privilegiantes: como o dolo abrange os elementos do tipo objetivo básico, e
como a suposição de circunstâncias privilegiantes não pode alterar a tipicidade
objetiva, caberia tout court imputar o tipo básico. Tal conseqüência é geral-
mente rechaçada pela doutrina, invocando a subjetivação das minorantes151 ,
consagrada pelo código alemão, porém sem clareza em seus fundamentos teó-
ricos. A regra do direito penal brasileiro, estudada ao final do tópico anterior158,
impede que, em casos de error in persona ou aberratio ictus, circunstâncias
privilegiantes que digam respeito às condições e qualidades das vítimas visadas
pelo agente (integrantes, pois, de seu dolo) sejam desconsideradas em favor
das condições e qualidades da pessoa efetivamente atingida. Recordemos que
o dolo é um conceito jurídico construído para reduzir o exercício de po-
der punitivo como pauta de imputação subjetiva, excluindo toda forma de
responsabilidade objetiva ou de aplicação do princípio versari in re illicita.

4. Diante disso, impõe-se considerar as regras sobre erros nos tipos deri-
vados conforme à idéia funcional do dolo e não como efeito de um jogo
dedutivo dependente da formulação legal dos tipos, freqüentemente arbitrária e
contraditória. Cumpre estabelecer um critério seguro, infenso a violações dos
princípios da legalidade, da lesividade e da culpabilidade: em qualquer caso de
escalas penais alteradas em razão de maior ou menor conteúdo de injus-
to de uma conduta típica, aportado por circunstâncias qualificadoras ou

u 6 Há quem impute a tentativa do tipo básico, Roxin, p. 479.


157
Assim, Schõnke-Schrõder, p. 1.109; Jescheck-Weigend, p. 249; Maurach, p. 277; sobre
isso, Hall, Karl Alfred, Jrrtum iiber Strafmilderungs und Strafhol111ngsgriinde, p. 107;
Küper, Wilfred, Zur irrigen Annahme von Strafmilderungsgriinde, pp. 234 ss.
151
Cf. supra, V, 11.

303
privilegiantes, o dolo, como conceito destinado a eliminar a responsabili-
dade objetiva: a) em nenhum caso pode ampliar os limites demarcados
pela imputação objetiva no sentido de fundamentar uma imputação sub-
jetiva correspondente a um injusto maior (assim, tanto na falsa suposição
de majorantes como na ignorância de minorantes); b) tampouco podem
imputar-se subjetivamente elementos objetivos que estabeleçam um injus-
to maior quando sejam desconhecidos pelo agente (assim, na ignorância
de majorantes como na falsa suposição de minorantes).

VII. Elementos especiais do tipo subjetivo (distintos do dolo)


1. Além do dolo, que constitui o elemento geral do tipo subjetivo, podemos
encontrar em certos tipos legais a requisição de certos elementos especiais.
Esses elementos especiais do tipo subjetivo, distintos do dolo, podem assu-
mir a forma de intenções, que ultrapassam o puro querer a realização do tipo
objetivo, ou de particulares disposições anímicas, que necessariamente de-
vem apresentar-se na execução de tal realização. Apesar da larga polêmica
sobre a existência de tais elementos especiais, hoje o seu reconhecimento é
quase unânime, e o debate se concentra em sua caracterização distintiva das
meras referências à culpabilidade 159• Eles foram designados também elemen-
tos subjetivos do injusto, o que não era incorreto já que o tipo é o suporte do
injusto; mas, para evitar qualquer confusão com os chamados elementos sub-
jetivos da justificação (como, p. ex., a vontade de defender-se na legítima
defesa própria), é preferível chamá-los elementos subjetivos do tipo ou ele-
mentos especiais do tipo subjetivo.

2. Esses elementos foram descobertos em investigações no campo do


direito privado 160, tendo sido introduzidos no direito penal por Hegler e M.E.
Mayer 161 , embora se mencionem outros antecedentes 162• Foram negados pela

159
Roxin, pp. 257 ss.; Luzón Pena, p. 395.
160
Fischer, Hans Albrecht, Die Rechtswidrigkeit mit besonderer Berücksichtigung des
Privatsrecht.
161
August Hegler, Merkmale des Verbrechens, pp. 31 ss.; do mesmo, Die Systematik der
Vermogensde/ikte, p. 6; também, Subjektive Rechtswidrigkeitsmomente im Rahmen des
allgemeinen Verbrechensbegriffs, p. 251; M.E. Mayer, 1923, p. 185 (na recente tradução
de Sergio Politoff, B. Aires, 2007, ed. B.de f., pp. 231 ss.).
162
Recorrentemente se menciona Johannes Nagler, Der heutige Stand van der Rechtswidrigkeit,
pp. 289 ss., e anteriores vislumbres de Carrara (Programma, § 152); cf. Politoff, Sergio,
Las elementos subjetivas dei tipa penal, pp. 13 ss.; Polaino Navarrete, Miguel, Los elemen-
tos subjetivos dei injusta en e/ Código espanal, p. 217.

304
escola austríaca 163 , à exceção de Zimmerl 164 , e também por Beling165 e
Goldschmidt 166• Helmuth Mayer os considerava lesivos do princípio cogitationis
poenam nemo patitur161 • No Brasil, ressalvado o insight precursor de Eduar-
do Durão, em 1891, estritamente sobre o delito de injúria 168, tais elementos,
reduzidos à modalidade da intenção, apareceriam na velha categoria do "dolo
específico", enfeudada à culpabilidade por uma teoria do delito causalista169•
Sem embargo da antecipação de Anibal Bruno170 e de Frederico Marques 171, e
da circulação no Brasil da tradução de Mezger, somente com o giro finalista o
debate se aprofundaria e o assunto se inscreveria topologicamente, nos manuais,
no âmbito do tipo subjetivo 172; algo similar estava ocorrendo em todo o continente
latino-americano 173 • A extensão da polêmica sobre os elementos subjetivos do
tipo é explicável porque seu reconhecimento colocava em xeque a sistemática
fundada na divisão entre um injusto objetivo e uma culpabilidade subjetiva.

163
Rinler, Theodor, Lehrbuch des osterreichischen Strafrechts, pp. 121 ss.; Malaniuk, Wilhelm,
Lehrbuch des Strafrechts, pp. 105 ss.; Kadecka, Ferdinand, Wi/Jensstrafrecht und
Verbrechensbegriff, pp. 9 ss., com nota de Nowakowski, p. 9; Esser, Wolf, Unrecht, Schuld
und Strafe im Lichte der materialen Wert/ehre; Nowakowski, Friedrich, Das osterreichsische
Strafrecht in seinen Grundzügen, p. 47.
164
Zimmerl, Leopold, Zur Lehre vom Tatbestand.
165
D. L. v. Tatbestand, pp. 1O ss.
166
Goldschmidt, James, Normativer Schuldbegriff, pp. 428-468.
167
H. Mayer, 1953, p. 104.
161
"O animus iniuriandi (...)éa vida mesma, a alma, por assim dizer, da injúria. A palavra, o
gesto, os actos (...) nada são por si, se não os caracteriza o dolo específico da injúria, que
pertence à sua essência de facto (... ). Desaparecendo o ânimo de injuriar, desaparece o
delicio" - Durão, Eduardo Teixeira de Carvalho, Crime de injúria verbal.
169
Assim, por exemplo, Nelson Hungria, Comentários, I, II, p. 177 e Basileu Garcia, I, II, p.
257.
170
Sob influência alemã, em 1956, tratando dos elementos subjetivos do injusto (Direito Penal,
I, 1º, pp. 346 ss.).
171
Sob a influência de Ricardo Núnez, em 1965, trata dos elementos· subjetivos do tipo
(Tratado, II, pp. 70 ss.). Núnez foi pioneiro nesse estudo na Argentina: Elementos subjeti-
vos dei tipo penal e também La cu/pabilidad en e/ código penal, p. 123. Cf. ainda Finzi,
Marcelo, E/ //amado dolo específico en e/ derecho penal argentino y comparado; Fontán
Balestra, E/ elemento subjetivo dei delito. Sobre a moderna doutrina italiana, Gilardi, M., li
dolo specíflco, pp. 73 ss.
172
Fragoso, Heleno, Elementos subjetivos do tipo; Tavares, Juarez, Espécies de dolo e outros
elementos subjetivos do tipo; Reale Jr., Miguel, Teoria do Delito, p. 46; Regis Prado, Luiz,
Curso, I, pp. 559 ss.; Bitencourt, Cezar Roberto, Tratado, I, pp. 340 ss.; Cirino dos Santos,
Juarez, Direito Penal, pp. 161 ss.
173 Por exemplo, Novoa Monreal, I, p. 321; Bayardo Bengoa, I, p. 245; Cousifio Maclver,
Luís, p. 579; Hurtado Pozo, p. 226; Politoff, Sergio, op. cit.; Franco Guzmán, Ricardo, G/i
elementi de/1 'antigiuridicità secando la teoriafinalistica de/l'azione.

305
3. A discussão doutrinária sobre esses elementos contribuiu para clarificá-
los: enquanto a mais radical opinião objetivista os negava, aqueles que os acei-
tavam sem contudo admitir a natureza complexa do tipo lhes atribuíam dupla
incrustação, no tipo e na culpabilidade 174• Posteriormente, a introdução dos
chamados elementos da Gesinnung (sentimento ou inclinação interior), tais
como a crueldade, a cobiça e outros, ensejou mesmo que se pensasse num
direito penal da inclinação interior (Gesinnungsstrafrecht)m. Essas referên-
cias a um sentimento interno incidem geralmente sobre a motivação da condu-
ta, como indicador de seu desmerecimento jurídico, e pertencem portanto à
culpabilidade 176 , alterando escalas penais em razão da maior desaprovação que
tais motivos de agir introduzem, sem afetar o injusto. Excepcionalmente essas
referências podem fundamentar o injusto, quando o legislador recorre a elas
para evitar que o tipo assuma uma amplitude intolerável; o exemplo comum é a
crueldade contra animais (art. 64 LCP), que reduz a amplitude de um
inconstitucional "maltratar animais", muito embora a discussão se coloque aí fora
de eixo,já que para as contravenções penais, em princípio, basta a voluntariedade
da conduta (art. 3° LCP). Só excepcionalmente, pois, caberá reconhecer em
sentimento ou inclinação interior que mobilize o sujeito um elemento subjetivo do
tipo. Mais claramente, estão fora dessa categoria aqueles estados que reduzem o
desmerecimento jurídico da conduta (a culpabilidade), como a violenta emoção
subseqüente à provocação da vítima (art. 121, § 1º CP).

4. Eliminadas do campo dos elementos subjetivos do tipo distintos do dolo


as referências à motivação, que cabe remeter à culpabilidade, podemos agora
reconhecer duas classes deles. a) A primeira é constituída por claras
ultrafinalidades, presentes naqueles tipos nos quais a conduta do agente se
orienta por uma intenção que transcende o tipo objetivo. Geralmente, nos tipos
legais, encontraremos expressões como "com o fim de" (art. 131 CP), "com o
intuito de" (art. 158 CP) etc, referidas a um sucesso ou a um objetivo (que
pode ou não realizar-se) posterior à consumação do delito. b) A segunda classe
é constituída pelas particulares disposições de ânimo, ou seja tendências,
atitudes ou expectativas do agente que acompanham sua ação, de alguma for-
ma se manifestando objetivamente ou pelo menos sendo incompatíveis com a
falta de certos dados objetivos, como a tendência lasciva nos crimes sexuais.

m Frank, Mezger e outros; Polaino Navarrete, op. cit., pp. 321 ss.
115
Sobre esses elementos, Schmidhliuser, Die Gesinnungsmekmale im Strafrecht; sobre um
direito penal que deles se utilize, Bettiol, Giuseppe, Estado de direito e Gesinnungsstrafrecht.
176
Cf. Kõhler, p. 170; em sentido exatamente inverso, Jakobs, p. 374; Luzón Peiia, p. 397. No
Brasil, muitos autores consideram que certos motivos, como os motivos "torpe" e "fútil"
que qualificam o homicídio (art. 121, § 2°, incs. I e II CP) constituem elementos subjetivos
especiais do tipo: Fragoso, Heleno, Elementos subjetivos do tipo, p. 81; Lições, P.G, p.
181; Bitencourt, Cezar Roberto, Tratado, I, p. 343.

306
5. Como critério geral, a distinção entre elementos do tipo e da culpabili-
dade repousa em que os primeiros respondem a um para onde?, e os segun-
dos a um de onde?: intenções ultrafinais e particulares disposições de ânimo
constituem direções da vontade e dos desejos do autor; motivos são rastreados
para explicar causalmente a vontade e os desejos do autor. A mesma direção
de vontade pode conhecer diferentes motivos, assim como o mesmo motivo
pode gerar direções de vontade radicalmente diversas.

6. Muitos autores ensaiaram classificar os elementos especiais do tipo 177,


sendo muito corrente a classificação de Mezger 178, que distingue entre: a) de-
litos de intenção (ou de tendência interna ultrapassante), que por seu turno se
subdividem em a.a) delitos de resultado cortado e a.b) delitos atrofiados de dois
atos; b) delitos de tendência e e) delitos de expressão. Considerando as
duas primeiras classes, será fácil observar na primeira a presença de
ultrafinalidades e, na segunda, de particulares disposições de ânimo. A
terceira classe, que uns chamam de delitos de expressão e outros de
exteriorização 179, na qual se incluiria o falso testemunho, não parece configu-
rar um elemento especial do tipo subjetivo distinto do dolo 180•

7. Nos delitos de intenção o autor tem em vista um resultado, situado


além do tipo objetivo, que não necessariamente - e às vezes nunca - alcança-
rá; Wittgenstein observou que a expressão natural de uma intenção está num
gato que se aproxima de mansinho de uma ave 181 • Nos delitos de resultado
cortado o tipo se consuma com a ação, porém é indispensável que o sujeito
vise um sucesso que deveria ocorrer depois dela e sem sua intervenção (como
no tipo legal do art. 333 CP). Nos delitos atrofiados de dois atos a conduta
típica constitui o meio para a realização de uma segunda ação do autor (como
na segunda modalidade do tipo legal do art. 290 CP). O grupo dos delitos de
tendência se caracteriza porque a vontade da ação assume um especial con-
teúdo subjetivo, que não se exterioriza completamente. O propósito de ofender,
nos crimes contra a honra (que não se projeta para depois da ofensa, qual faria
uma intenção, mas acompanha e anima contemporaneamente a palavra ou o
gesto ofensivo) constitui um bom exemplo 182 • Também no homícidio aleivoso

177
Cf. Hegler, op. cit.; Maurach, pp. 240 e 269 ss.; Welzel, 1967, pp. 75 ss.
171
Lehrbuch, 1949, pp. 172 ss.; seguem-na Blei, p. 61; Roxin, p. 316; e muitos outros.
179
Assim, Mezger, lehrbuch, 1949, pp. 173; Wolf, Erik, Die Typen der Tatbestandsmiissigkeit,
p.63 .
18
° Cf. Luzón Peiia, p. 397.
181 Wittgenstein, Ludwig, Investigações Filosóficas, p. 221 (nº 647).

182
Fragoso. Elementos subjetivos do tipo, p. 81; Regis Prado, Curso, l, p. 361; um raro
Mangabeira Unger, Roberto, A culpabilidade nos crimes contra a honra, discutia o tema.

307
(art. 121 § 2°, inc. IV CP) se requer uma particular disposição de ânimo que se
manifesta no aproveitamento da indefensão da vítima 183 ; também no homicídio
piedoso a vítima freqüentemente está indefesa, porém à míngua dessa particu-
lar disposição de ânimo não teremos aí homicídio qualificado por aleivosia.

8. O uso desmedido desses elementos de ânimo é perigosamente ampliativo


do poder punitivo, trazendo o risco de afastamento de um direito penal de
autor até mesmo na direção de um direito penal do inimigo; procura-se evi-
tar esse efeito argumentando tratar-se de uma atitude que a ação expressa e
não uma característica do autor 184, ao que se replica com sua proximidade de
uma ação sintomática ou de um direito penal do sentimento 185• Para outros,
trata-se de um recurso eticizante e não de um dispositivo individualizador da
conduta 186•

9. Também nos chamados crimes habituais existe uma particular disposi-


ção de ânimo, que é a habitualidade ou, em certos casos, o profissionalismo.
Nesses crimes, cuja execução supõe uma reiteração da conduta típica (p. ex.,
art. 229 CP; art. 284, inc. I CP), não haverá tipicidade subjetiva se, a despeito
da objetiva reiteração da ação, faltar o elemento especial do tipo subjetivo.

113
Sobre isso, Nilo Batista, Decisões Criminais Comentadas, pp. 33 ss.
IM Schmidhauser, Eberhard, Gesinnungsethik und Gesinnungsslrafrecht, pp. 81 ss.; Gallas,
Wilhelm, Zum gegenwartigen Stand der Lehre vom Verbrechen.
115
Bettiol, p. 294.
186
Stratenwerth, p. 112.

308
CAPÍTULO XVI

TIPO ATIVO CULPOSO


( OU COMISSIVO CULPOSO)

AA. VV., Sobre el estado de la teoría dei delito (Seminario de la


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problemas actuales, em Hom. a Marino Barbero Santos, Cuenca, 2001, pp.
1399 ss.

313
§ 36. TIPICIDADE POR CULPA
I. A estrutura do tipo culposo
1. Nosso Código Penal não prevê um crimen culpae, ou seja, um delito
de culpa que permitisse construir junto a cada tipo doloso outro culposo ou
admitir um crime culposo genérico. Uma regra estabelece a excepcionalidade
da punição dos crimes culposos'; embora seja geralmente concebível uma
modalidade culposa correspondente a cada tipicidade dolosa, ela será absoluta-
mente impunível em todos os casos não tipificados2, em todos os casos nos
quais, ao lado do tipo legal doloso, a lei não prevê expressamente seu cometi-
mento culposo. Trata-se de modalidade legislativa mais limitadora do poder
punitivo e, portanto, menos irracional 3. Cabe observar que a velha técnica do
crimen culpae - hoje praticamente desaparecida na legislação comparada -
revelava a aspiração por urna punitividade sem lacunas, incompatível com o
caráter fragmentário da legislação penal: é irracional que em todos os casos se
exiga do cidadão não apenas que não empreenda ações lesivas mas também
que jamais lesione por falta de cuidado4, ao preço de ampliar insolitamente a
seletividade do poder punitivo5.

2. A característica essencial do tipo culposo reside em sua forma


peculiar de individualização da conduta proibida: ao contrário do tipo
comissivo doloso (ou doloso ativo), no qual a conduta é individualizada através
de sua descrição ou da descrição de um resultado precisamente demarcado
por ela produzido, no tipo culposo ela permanece inicialmente indefinida, e só
será possível individualizá-la em cada caso após capturar a ação que causou o
resultado tipicamente relevante. Os tipos culposos não criminalizam ações en-
quanto tal; através deles são proibidas particulares formas de realização da
ação que produzem o resultado. O tipo culposo não pretende criminalizar o
autor pela forma mediante a qual certa finalidade foi procurada, mas sim
porque o resultado (diferente da finalidade procurada) proveio da

1
Art. 18, par. ún. CP: Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato
previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
2 Sobre o numerus clausus, por todos, Silva Sãnchez, Jesús-María, em Cobo dei Rosal,
Manuel, Comentarios ai Código Penal, p. 587.
3
O que não impediu propostas de abolição: Puglia, Ferdinando, Manuale, p. 124.
4
Cf. Bustos Ramírez, p. 362.
5
Especialmente quando, perante a especial complexidade dos tipos culposos, pretenda-se
negar-lhes culpabilidade; cf. Kaufmann, Armin, Das fahrliissige Delikt; Stratenwerth, p.
297; Bindingjá afirmara a maior complexidade da teoria da culpa frente ao dolo (Normen,
IV, pp. 336-337).

314
causação por ele de um perigo proibido evitável e previsível, e isto se
explica porque a simples criação de um perigo não é suficiente para a
imputação culposa. Certamente isto não significa que a ação não tenha
uma finalidade, mas apenas que ela não está proibida em razão dessa
finalidade. Sempre será necessário averiguar a finalidade diante de cada fato
concreto, para conhecer de qual ação se tratava e, a partir daí, demarcar qual
era o cuidado correspondente ao exercício dessa ação, providência indispensá-
vel para fechar o tipo e comprovar a tipicidade.

3. A confusão idealista entre o proibido e a forma na qual se o proíbe levou


a sustentarem equivocadamente que a finalidade seria irrelevante para a tipicidade
culposa, e até mesmo que a ação culposa não teria finalidade. Esta foi uma
importante passagem do debate finalista, que dificultou a elaboração de Welzel,
quem chegou a referir-se, em certo momento, a uma finalidade "potencial" na
culpa, o que logo corrigiu, atento às críticas de Rodríguez Mufioz e Niese6 • Não
obstante, esses argumentos não desapareceriam na doutrina posterior7•

4. Os tipos culposos são tipos abertos: eles dependem da pesquisa e


identificação de uma norma de cuidado que os complete ou "feche", o que
provém não de qualquer arbítrio legislativo questionador do princípio da máxi-
ma taxatividade legal8, mas sim da cabal impossibilidade de serem previstas e
elencadas todas as inumeráveis formas sob as quais a realização de uma con-
duta pode violar um dever de cuidado e criar um perigo9. Sem dúvida os tipos
abertos ostentam o defeito de facilitar a passagem de mais poder punitivo do
que os tipos fechados, porém nos tipos culposos essa estrutura típica é inevitá-
vel, à míngua de alternativa técnico-legislativa distinta da radical abolição da
criminalização por culpa. Nos tipos culposos, portanto, o juízo de tipicidade será
formulado em dois momentos; não, porém, o de antijuridicidade, o que nem
sempre é reconhecido'º porque muitas vezes a violação do dever de cuidado
foi considerada um momento integrante da própria antijuridicidade 11 •

6
Rodríguez Muiioz, J.A., La doctrina de la acciónfinalista; uma resposta a esta crítica em
Cerezo Mir, J., EI concepto de la acciónfina/ista como fundamento dei sistema dei derecho
penal, pp. 561-570; Niese, Wemer, Finalitiit, Vorsatz 11nd Fahrliissigkeit, p. 53.
7
Roxin, p. 922.
8
Cf. v. 1, pp. 206 ss. (§ 1O, III).
9 Assim Heitor Costa Júnior, Teoria dos Delitos Culposos, p. 55; sobre o conceito de tipo
aberto, Schõne, Wolfgang, Jmpmdencia, Tipo y Ley Penal.
'º Outra opinião em Roxin, Ôffene Tatbestiinde.
11 Assim Welzel, Das De11tsche Strafrecht in seinen Gnmdziigen, pp. 83-84; Niese, Wemer, Die
Moderne Strafrechtsdogmatik 11nd das Zivilrecht, p. 460; Boldt, Gottfried, Zur Str11ktl/r der
Fahrliissigkeit, pp. 335-373; em outra angulação, a violação do dever de cuidado como ele-
mento indiciante, Fukuda, Taira, Vorsatz und Fahrliissigkeit ais Unrechtselemente, p. 49.

315
5. Nossa lei afinna ser o crime "culposo quando o agente deu causa
ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia" (art. 18, inc. II
CP), fónnula da redação original de 1940, inspirada no Código Penal de 1890 12;
já naquela ocasião, tal fónnula era considerada "deplorável atraso" 13 • Nessa
fónnula estão recolhidas expressões clássicas do direito romano, que a doutri-
na tentou diferenciar14• Já na primeira metade do século XX, quando a dogmática
dos crimes culposos ainda engatinhava, percebia-se não haver "razão para se
distinguir, em essência, a culpa por negligência da culpa por imprudência ou
imperícia, de vez que esses conceitos se fundam em um idêntico critério jurídi-
co"15 • Hoje, afinna-se que "estas velhas modalidades já perderam a razão de
ser, diante da moderna investigação do conteúdo do injusto penal" 16• A literatu-
ra recente procura substituir a antiga expressão culpa (predominante na dou-
trina italiana: colpa) por negligência ou imprudência 11 , como tradução da
Fahrlassigkeit alemã; trata-se, contudo, de questão puramente terminológica.

12
CP 1890, art. 24: "As ações ou omissões contrárias à lei penal que não forem commetidas
com intenção criminosa, ou não resultarem de negligência, imprudência ou imperícia, não
serão passíveis de pena". Por seu turno, o legislador de 1890 aprimorara o disposto no art.
19 da lei nº 2.033, de 20.set.1871, que introduzira o homicídio culposo no Brasil, suprimin-
do a "falta de observância de algum regulamento", cláusula verberada por Costa e Silva por
"transportar para o domínio da culpa o abominável princípio do versari in re illicita"
(Código Penal dos Estados Unidos do Brasil Commentado, v. I, p. 152), mas tolerada pela
maior parte dos penalistas da Primeira República (p. ex., Macedo Soares, Código Penal da
República dos Estados Unidos do Brasil, p. 63 ). Sobre a suposta omissão do Código
imperial de 1830 em matéria de crimes culposos, cf. v. I, p. 437 (§ 18, II, 6).
13
Costa e Silva, op. cit., p. 152; recentemente Selma Pereira de Santana reafirmava ser tal
fórmula "absolutamente insatisfatória" (A Culpa Temerária, p. 116).
14
A única distinção que os textos romanos parecem autorizar é aquela que atribui à expressão
imperícia um conteúdo de violação de deveres de cuidado profissionais, vinculados ao
oficio ou atividade própria do sujeito, como aquele oleiro que, ao tornear um cálice, o quebra
por imperícia (quidem imperitiafregit- Ulpiano, D. IX, II, 27, § 29), ou aquele tropeiro que
por imperícia não pôde conter o ímpeto das mulas (per imperitiam impetum mularum
retinere non potuit- Gaio, D. IX, II, 8, § 1º). Sob influência da doutrina italiana, ensaiou-se
entrever na negligência uma conduta omissiva e na imprudência uma conduta comissiva (por
todos, Magalhães Noronha, Do Crime Culposo, pp. 93 ss.), a despeito da irrelevância de tal
dado na investigação da violação do dever de cuidado. Mesmo os autores que apostavam na
diferenciação, contudo, estavam sensibilizados para o fato de que essencialmente as três
expressões designavam um único fenômeno: é nessa linha que Basileu Garcia dizia que "em
rigor, a palavra negligência seria suficiente para ministrar todo o substrato da culpa" (Insti-
tuições de Direito Penal, v. I, t. I, p. 259).
15
Raul Machado, A Culpa no Direito Penal, pp. 258-259.
16
Juarez Tavares, Direito Penal da Negligência, p. 252.
17
No Brasil, por exemplo, JuarezTavares (op. cit.) e Fábio Roberto D' Ávila (Crime Culposo
e Teoria da Imputação Objetiva, p. 13) preferem negligência, enquanto Juarez Cirino dos
Santos prefere imprudência (Direito Penal, p. 165); contudo, predomina a tradicional desig-
nação culpa.

316
6. Arraigada doutrina distingue entre culpa consciente (ou culpa com
representação) e culpa inconsciente (ou culpa sem representação) 18 . Na
culpa consciente, o sujeito representa a possibilidade de produção do resultado
(ou, o que dá no mesmo, tem consciência de que o resultado típico pode origi-
nar-se do perigo por ele criado); na culpa inconsciente, a despeito de dispor o
sujeito de conhecimentos que lhe permitiriam representar a possibilidade de
produção do resultado, não os atualiza (não pensa neles), e portanto não repre-
senta tal possibilidade (ou, o que também dá no mesmo, não tem consciência de
que está criando um perigo de produzir o resultado típico). Em qualquer caso, é
suficiente para a tipicidade culposa o conhecimento atualizável, dispensável a
efetiva atualização (o "pensar naquilo" ou a consciência da criação do perigo).
Essas espécies de culpa não se relacionam como diferentes graus da culpa: do
ponto de vista do injusto, a gravidade da culpa será indicada por sua temerida-
de, que se revela pela presença de dominabilidade. Esta culpa temerária
pode, quando for também consciente, confundir-se com o dolo eventual, e
essa é a única razão pela qual é necessário sustentar a distinção entre
culpa consciente e inconsciente. A identificação da culpa temerária, que
tem velhos antecedentes legislativos e doutrinários 19 e que volta a ser adotada
em legislações contemporâneas20, pode realizar-se dogmaticamente no direito
vigente, com efeitos teóricos e práticos muito mais importantes do que qualquer
aporte provindo da distinção culpa consciente-culpa inconsciente. Nem mesmo
se pode pretender que a culpa consciente seja mais grave do que a inconscien-
te21 , pois freqüentemente é maior o conteúdo de injusto da ação de quem nem
sequer se representa a criação de perigo com altíssima possibilidade de concreção.

7. Inscrever-se a culpa numa estrutura típica autônoma foi o resultado de


um longo percurso, paralelo à migração do dolo da culpabilidade para o tipo. A
consideração tradicional da culpa como modalidade da culpabilidade criava di-
ficuldades para a teoria psicológica (que concebia a culpabilidade como elo
subjetivo entre o sujeito e seu feito), chegando-se mesmo a postular que a culpa
inconsciente deveria excluir-se do delito ou que nela não havia culpabilidade22,

11
A empostação tradicional dessa distinção, como exemplo, em Rokofyllos, Christos, Le
Concept de Lésion et la Répression de la Délinq11ance par lmprudence, p. 7; atribuindo à
distinção relevância para a quantificação penal, Freund, Georg, Strafrecht, p. 144.
19
No código bávaro, a grasse Fahr/êissigkeit era prevista nos artigos 65, 66 e 67; Moyart de
Vouglans, 1, pp. 7-8.
°
2
Cf. Pereira de Santana, Selma, A Culpa Temerária, pp. 78 ss.; Jakobs, p. 392; Roxin, p. 944;
Jescheck-Weigend, p. 569; Luzón Pena, p. 515.
21
Assim sustentava Concha, José Vicente, p. 88; no mesmo sentido, Nui'iez Barbero, Ruperto,
E! Delito Culposo, p. 37.
22
Kohlrausch, E., Die Schufd, em Aschrott-Liszt, Reform der Reichsstrafgesetzbuchs, 1, p.
208; Baumgarten, Arthur, Der Aujban, p. 116; Gennann, O.A., Das Verbrechen in neuem

317
o que por outras razões - de certa fonna análogas - volta a ser sustentado
hoje23 • Dentro da concepção limitadamente normativa da culpabilidade tam-
bém se colocaram problemas para distinguir entre o dever de cuidado e sua
exigibilidade. Com o finalismo 24, situar a culpa na estrutura típica passou a ser
opinião quase unânime na doutrina 25• Nos últimos anos surgiu uma tendência
que aproxima a culpa dos delitos dolosos de perigo 26, com o que reapareceram
problemas do início do século XX e mesmo anteriores, coincidindo com alguns
autores que entreviam na culpa um momento voluntário 27, e a consequente
proposta de erradicar a culpa inconsciente do delito28. Este velho problema foi
proposto a partir da culpabilidade29 e muitos teóricos se manifestaram contra
suas últimas conseqüências30 . Outros critérios sobre a conduta imprudente bus-
cam centrar-se na previsibilidade, cognoscibilidade, advertibilidade e
evitabi/idade, termos dos quais a doutrina se vale para caracterizar sua essên-
cia31 • Jescheck distingue no injusto culposo a ação e o resultado: a primeira é
caracterizada pela violação do dever de cuidado e deve conectar-se ao segun-
do pelo nexo de antijuridicidade32• Não falta quem renuncie completamente à

Strafrecht, pp. 88 ss.; Galliner, Die Bedeutung des Erfolges bei den Schuldformen des
geltenden StGB. pp. 18 ss.; Busch, 1949, p. 43, nota 56: mais tarde, Kaufmann, Arthur,
Das Schuldprinzip, p. 162.
21
Kõhler, p. 201.
2
' Welzel, pp. 127 ss.
25
Jescheck-Weigend, p. 576; Jakobs, pp. 380 ss.; Roxin, pp. 922 ss.; Bustos, p. 356; Luzón
Pena, p. 495; Heitor Costa Junior, pp. 53 ss.; Juarez Tavares, pp. 265 ss.; Giunta, F., em
RIDPP, 1999, pp. 86 ss.
26
Assim Struensee, Eberhard, Objektive Zurechnung und Fahrliissigkeit, pp. 97 ss; segue-o
Serrano González de Murillo, José Luis, Teoria dei Delito Imprudente, p. 220; a questão
reduzida a um problema de graduação em Marinucci, Giorgio, Non e 'é dolo senza colpa, pp.
3 ss; em sentido contrário, Cerezo Mir, José, 1998, p. 166; peremptoriamente Maggiore,
Giuseppe, p. 590, ao argumento de que no dolo de perigo o sujeito quer o perigo, não porém
na culpa. A identificação promovida por Zielinski é criticada, com matizes distintos e nem
sempre claros, por Horn, Jakobs e Frisch (cf. Rodríguez Montafiés, Teresa, Delitos de
peligro, dolo e imprudencia, pp. 58 e 103).
27
Feuerbach, II, pp. 50-70; Binding afirmou que Feuerbach "caça a culpa no dolo" (Normen,
IV, p. 328); Moyano Gacitúa, Comelio, p. 148.
21
Cf. Struensee, Eb., Der Subjektive Tatbestand desfahrliissigen Delikt, pp. 53 ss.; do mesmo,
"Objektives" Risiko und Subjektives Tatbestand, pp. 541 ss.; Schõne, W., lmprudencia, tipo
y lei penal; Sancinetti, Teoría dei delito y disvalor de la acción, p. 257; posteriormente, outra
opinião em Fundamentación subjetiva dei ilícito y desistimiento de la tentativa, p. 270.
29
Kaufmann, Anhur, Das Schuldprinzip, pp. 156-162.
1
° Kaufmann, Armin, em Zeitschriftfor Rechtsverg/eichung, p. 41; remarcam que a maior parte
dos crimes culposos reveste a forma da culpa inconsciente Delitala, Giacomo (RIDPP, 1-2,
1956, pp. 3 ss.) e Aníbal Bruno, II, p. 92.
11
Carrara afirmava que "la essenza delia co!pa sta tutta nella prevedibilità" (Programma, § 83 ).
32
Jescheck-Weigend, p. 577.

318
idéia de dever de cuidado, substituindo-a pelos conceitos de evitabilidade e
cognoscibilidade do risco, sobre uma base comum com o dolo que evoluiria até
o conhecimento, o que não sucederia com a culpa33 • Por outro ângulo, a partir
das posições minoritárias que mantêm a culpa como forma da culpabilidade,
postula-se como característica a ausência da consciência da ilicitude34• Outros
entendem que, embora não caiba descartar a violação do dever de cuidado, na
verdade se trataria de manejar critérios eventuais de imputação objetiva, como
a evitabilidade ou a previsibilidade, que seriam pautas indiciárias para determi-
nar se foi criado um perigo não permitido35 •

8. Não é recente a posição doutrinária que procura compreender a natu-


reza da culpa como um caso especial de omissão. Sustentava Feuerbach que a
culpa só pode obedecer à culpável omissão de diligência 36• Remarcou-se
que tanto a culpa quanto a omissão requerem uma dupla antijuridicidade37 , e
quiseram mesmo demonstrar que em nenhuma dela existiria ação38 ; foram ambas
concebidas como um particular momento normativo 39, e o chamado dever de
diligência não consistiria em nada além de uma parte do dever de omitir o
injusto que, por cognoscível, é evitável 40. Esta aproximação e, para alguns,
identificação entre culpa e omissão dispõe de fundamentos etimológicos: a
Fahrliissigkeit alemã contém o verbo lassen (deixar); na negligence
anglossaxônica ou latina, e nafaute francesa também existe algo de omissivo41 •
É evidente que algo se omite na culpa42, porém não é menos evidente que
também existe pretipicamente uma ação, e que se trata de uma ação abarcada
por uma estrutura típica que requer um momento omissivo, mas como modali-
dade dela43 . Não se ordena a conduta final de dirigir cuidadosamente senão

33
Jakobs, p. 382.
34
Schmidhãuser, p. 220.
35 Roxin, p. 922.

36
Revision, II, p. 59. Quintano Ripollés atribui a Carrara certa responsabilidade na difusão
dessa concepção, que levou autores espanhóis a entrever na culpa uma "omissão espiritual"
(Derecho Penal de la Culpa, p. 189).
37
Radbruch, p. 112.
38 Cf. Dohna, p. 113.
39
Goldschmidt, p. 114.
40
Binding, p. 115.
" A conotação omissiva da culpa foi frisada por Bustos Ramirez (Culpa y Fina/idad, p. 12);
a uma "aparente face omissiva" da culpa referiu-se Malamud Goti (E/ Delito Jmprodente, p.
68); para os equívocos teóricos aos quais pode conduzir tal assimilação, Heitor Costa
Júnior, Teoria dos Crimes Culposos, pp. 37-38.
42 O momento omissivo da culpa como foco de perigo em Gimbernat Ordeig, Causalidad,
omisión y improdencia, p. 38.
43 Bustos Ramirez, op. cit., pp. 50-51 .

319
que se proíbe a conduta final de dirigir descuidadamente; do contrário, surgiri-
am casos nos quais se imporia ao sujeito algo que ele não pode humanamente
realizar, violando-se assim o princípio ultra posse nemo obligatur44•

9. Dentro da estrutura típica culposa, a tipicidade objetiva sistemática é


sumamente débil: requer tão somente um pragma muito estrito, integrado por
uma conduta que tenha causado o resultado típico45• Tais componentes são visi-
velmente parcos para caracterizar a tipicidade objetiva culposa, a qual para al-
guns autores praticamente é tragada pela questão imputativa46• Na verdade, diante
da minguada significação caracterizante da tipicidade objetiva sistemática na es-
trutura típica culposa, a necessidade e os efeitos teóricos da tipicidade conglobante
se apresentam com maior nitidez do que na estrutura típica dolosa. No âmbito da
culpa, a dominabilidade somente opera como critério limitador da imputação ex-
clusivamente quando se tratar de culpa temerária; portanto, para todas as demais
(e mais freqüentes) modalidades deve ser considerado o incremento proibido
do risco para o bem jurídico como outro limite imputativo, próprio da ex-
tensa culpa não-temerária. O chamado nexo de antijuridicidade ou relação de
determinação específica entre a violação do dever de cuidado e o resultado cons-
titui outro limite que a tipicidade conglobante impõe à tipicidade sistemática, sem
prejuízo de todos os demais limites provindos do princípio da lesividade que foram
analisados no tipo doloso, se e quando adaptáveis à estrutura típica culposa.

10. A existência de um tipo culposo subjetivo é motivo de opiniões


48
desencontradas, que variam desde a cabal negação47 até sua admissão , ha-
vendo quem sustente que a essência da culpa estaria precisamente no tipo
subjetivo49• Geralmente, o tipo culposo subjetivo é admitido por autores que
questionam a culpa inconsciente. De fato, não é simples conceber um tipo
culposo subjetivo na hipótese de culpa inconsciente, sendo por isso freqüente

" Kaufmann, p. 122; Jakobs, p. 384; Heitor Costa Jr., p. 37.


4
s Cerezo Mir, p. 187; Cirino dos Santos, p. 173; Laurenzo Copello, Patricia, EI resultado en e/
derecho penal, p. 60; Feijóo Sánchez, EI injusto penal, pp. 93 ss.; em sentido contrário, Righi-
Femández-Pastoriza, p. 250; sobre a exclusão do resultado perante o direito penal do risco que
equipara delitos de resultado a delito de perigo, Donini, Massimo, Teoria dei Realo, p. 161.
46
Assim Roxin, pp. 922 ss.; em sentido contrário, Luzón Pena, p. 500.
47
P. ex., Stratenwerth, p. 298; Heitor Costa Junior, Teoria dos Crimes Culposos, pp. 69 ss.;
Juarez Tavares, Direito Penal da Negligência, p. 278.
41
Welzel o admitia (Der Allg. Teil des deutschen Strafrecht in seinen Grundzügen, p. 81; 2ª
ed., Berlim, 1943, p. 98; 3ª ed., Berlim, 1944, p. 118; 4ª ed. - suprimida do título a
referência à Parte Geral - Berlim, 1947, p. 83), porém abandonou tal entendimento; Struensee,
Eb., Der Subjektive Tatbestand des fahrliissigen Delikt, pp. 53 ss.; João Mestieri, Manual,
p. 192; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 192.
49
Jakobs, p. 380.

320
uma solução conciliatória, que o admite na culpa consciente porém o nega na
culpa inconsciente50• Trata-se de solução criativa, embora cumpra expor-lhe
razões e alcance. Não parece correto negar o tipo subjetivo na culpa inconsci-
ente ao argumento da inexistência de componentes subjetivos no tipo, mas sim
porque tais componentes integram antes a tipicidade conglobante, enquanto
pressupostos da própria imputação objetiva: sem esses conhecimentos
objetiváveis não seria possível atribuir ao autor, como obra dele, a ação que
incrementou o perigo proibido.

11. a) Se a culpa inconsciente é temerária, o observador deve considerar


os conhecimentos objetiváveis dos quais, por adestramento ou informação, dis-
põe o agente, pois do contrário não conseguiria verificar exteriormente a apa-
rência de um plano criminoso. Se a culpa inconsciente não é temerária, o
observador não pode imputar à conduta do agente um aumento de perigo proi-
bido, posto que ele não dispõe dos conhecimentos objetiváveis que, atualizados,
lhe teriam permitido prever o resultado como possível. b) É por isso que, na
culpa inconsciente, não cabe referir-se a um tipo subjetivo em sentido análogo
ao do tipo comissivo doloso, porque todos esses conhecimentos ganham rele-
vância quando objetivados para o efeito de determinar-se a tipicidade objetiva
conglobante. No âmbito da culpa inconsciente, o tipo subjetivo - ainda que
concebível a partir desses conhecimentos objetiváveis do sujeito - não seria
teoricamente útil, porque nunca se apresentaria a hipótese de uma tipicidade
objetiva sem tipicidade subjetiva (erro de tipo),já que todos os casos de erro de
tipo são resolvidos antes, excluindo a tipicidade objetiva. e) Tampouco na culpa
consciente é possível considerar um erro de tipo, porque também nela todos os
casos de erro de tipo se resolvem na tipicidade conglobante. O que acontece é
que na culpa consciente e temerária, ou seja, na conduta culposa em que há
dominabi/idade, e na qual um observador externo poderia desconfiar
fundamentadamente da existência de plano criminoso, o tipo subjetivo é indis-
pensável, como elemento redutor que permite distinguir tal forma de culpa do
dolo eventual. Fique claro, desde logo, que este tipo subjetivo, circunscrito à
culpa consciente temerária, é substancialmente diferente do tipo subjetivo dos
crimes comissivos dolosos.

12. Vale reiterar enfaticamente que não utilizaremos a categoria de tipo


subjetivo na culpa inconsciente e na culpa consciente não-temerária apenas
pelo escasso aporte sistemático que dela proviria, e de modo algum porque
neguemos a óbvia existência de componentes subjetivos nessas modalidades:
ocorre que a falta de tais componentes acarreta atípicidade objetiva. Na culpa

'º Roxin, p. 943.

321
inconsciente, o agente dispõe dos conhecimentos necessários para represen-
tar-se a probabilidade do resultado, porém não o fez, ao contrário da culpa
consciente, na qual. também dispondo daqueles conhecimentos, logra repre-
sentar-se a probabilidade do resultado. A distinção entre culpa consciente e
inconsciente se fulcra em que, na primeira, o agente tem um conhecimento
atualizado do incremento do perigo, enquanto na segunda ele tem um conhe-
cimento atualizáve/51 . Na ausência deste conhecimento atualizável ( o agente
nunca poderia saber que dirigia na contramão, porque alguém maliciosamente
inverteu o sinal estatigráfico correspondente) não haveria tipicidade objetiva,
porque o incremento de perigo para o bem jurídico não é objetivamente imputá-
vel à conduta do agente; se ele desconhecia a mão de direção correta apenas
por não ter olhado para o sinal estatigráfico, em todo caso sabe que dirigir sem
obedecer (pressuposto olhar para) aos sinais reguladores do trânsito é sem
dúvida incrementar o perigo. Em síntese: a) tanto na culpa consciente quanto
na inconsciente existem conhecimentos efetivos; b) não é verdadeiro que na
culpa inconsciente haja apenas mera exigência de conhecimento; pelo contrá-
rio, a exigência é de atualização de conhecimentos existentes, sem os quais não
se poderia falar de culpa; e) a circunstância de que os conhecimentos não
atualizados na culpa inconsciente devam ser considerados para decidir sobre a
imputação objetiva do resultado ao sujeito torna descartável o tipo subjetivo,
cuja elaboração é assim desnecessária - não pela falta de matéria subjetiva
tipificável, mas pela falta de utilidade dogmática.

13. Pode parecer estranho que o erro invencível afaste o tipo subjetivo na
estrutura típica dolosa e cancele a tipicidade objetiva na estrutura típica culposa,
ou seja, que não haja espaço para o erro de tipo invencível (inevitável, escusá-
vel) no tipo culposo. Mas isso é claramente explicável pela natureza subsidiária
do tipo culposo no campo do erro, embora não seja exato que toda conduta
culposa possa ser assimilada a um caso de erro52. Na verdade, os tipos culposos
implicam a decisão político-criminal de exercer poder punitivo apenas em al-
guns casos de erro vencível (evitável, inescusável) de tipo, deixando outros ao
largo da sanção penal, ao contrário dos programas punitivos sem lacunas do
crimen culpae. Um instrumento legislativo que procura limitar o exercício do
poder punitivo a apenas alguns casos de erro vencível tem como pressuposto
que todos os casos de erro invencível estão excluídos de seu âmbito, o que

si Sobre isto, Corcoy Bidasolo, M., E/ delito imp111dellle, p. 287 ss. Tradicionalmente chamava-
se previsão (da ocorrência indesejada do resultado) ao conhecimento atualizado e
previsibilidade ao conhecimento atualizável, e em tal oposição se centrava a distinção entre
culpa consciente e inconsciente; por todos, Magalhães Noronha, Do Crime Culposo, p. 71 .
si Jakobs, p. 380;já se pronunciavam, há muitos anos, Alimena (Apunti, p. 27) e Antolisei, p. 288.

322
sistematicamente obriga a que sejam eles descartados na própria tipicidade
objetiva. A relação entre os tipos dolosos e os tipos culposos, do ângulo da
decisão político-criminal de habilitar poder punitivo, traduz-se numa espécie de
subordinação teórica dos segundos, que, por se formatarem apenas com certos
elementos extraídos dos primeiros, supõem refutar toda hipótese de habilitação
de poder punitivo já descartada na tipicidade dolosa. Esta subordinação - que a
excepcionalidade da punição dos crimes culposos (art. 18, par. ún. CP) ressalta
- confirma a indispensabilidade de construir a teoria do delito tomando como
eixo central a estruturação típica comissiva dolosa.

II. Tipo objetivo sistemático

1. No campo dos delitos culposos, o tipo objetivo sistemático é considera-


velmente reduzido. São válidas para ele as considerações expendidas sobre o
tipo objetivo dos crimes comissivos dolosos, cabendo destacar apenas a proble-
mática particular da/unção do resultado53 . O resultado, na tipicidade culposa,
exprime um limite intransponível, porém da pretensão de vinculá-lo diretamente
à vontade nada se logra extrair. A ênfase exagerada sobre o resultado obscure-
ceu durante muito tempo o reconhecimento da relevância típica da conduta
juridicamente desvalorada, como se o desvalor de resultado respondesse sozi-
nho pela tipicidade. O tipo culposo, bem ao contrário, não pode ser compreen-
dido a partir do resultado: é essencial que este seja causado pela conduta culposa,
que o será na medida em que a programação da causalidade dentro da finalida-
de seja defeituosa em relação ao dever de cuidado exigido. É deste ângulo que
se deve apreciar o defeito de programação. A culpa é, portanto, uma progra-
mação defeituosa da causalidade por não responder ao cuidado devido, o que
só se pode determinar quando se conhece qual era a finalidade da programa-
ção que acabou por causar o resultado.

2. Embora o tipo culposo não possa ser compreendido a partir do resulta-


do, tampouco pode sê-lo numa extremada posição oposta, que concentre a
atenção exclusivamente na criação de um perigo. Tal posição extremada che-
ga a negar ao resultado qualquer relevância típica limitadora, anulando a fun-
ção redutora do chamado nexo de antijuridicidade e terminando por admitir a
tentativa culposa54 . Essa tese radical sustenta que o resultado não integra o tipo
51
Há quem sustente não haver diferença entre o tipo objetivo dos delitos culposos e dos
delitos dolosos (cf. Feijóo Sánchez. Bernardo José, Homicidio y Lesiones Jmp111dentes, p.
• 27 e passim); excelente resenha das concepções teóricas sobre o papel do resultado na
economia do crime culposo em Vega, Pablo Daniel, E! Derecho Penal Reductor en la
Sistematica dei Tipo Imprudente.
54
Jakobs, p. 395; Sancinetti, Teoría dei delito, p. 291.

323
dos delitos culposos, reduzindo-o a uma condição objetiva de punibilidade55,
esquecida de que o resultado é decisivo para determinar se a conduta culposa
configura mero ilícito administrativo de trânsito, ou um crime de lesões corpo-
rais culposas ou de homicídio culposo56. Quem admite que o resultado desem-
penha um papel limitador e, não obstante, o exclui do tipo, está ignorando a
função do Tatbestand, que não é outra senão definir e caracterizar, com a
maior precisão possível, a matéria proibida57 •

3. A extremada opinião que exclui o resultado dos tipos culposos provém


de uma particular interpretação da afirmativa de que, nesses tipos, o resultado
representa um componente de azar. Exner afirmava que a punibilidade ou a
impunibilidade da culpa, isto é, da conduta descuidada, é demarcada
pelo momento objetivo da produção do resultado, que assim funcionaria
como elemento de azar condicionante58. Engisch também reconhecia que a
lesão à norma será castigada apenas quando o resultado ocorra (. ..) ou
dito sinteticamente: a lei penal normatiza um âmbito maior do que aquele
em que castiga 59. A doutrina predominante admite, de modo geral, este caráter
de componente de azar do resultado60, porém só um pequeno grupo de autores
pretende encontrar uma responsabilidade pelo resultado61 •

4. A consideração do resultado como componente de azar, até certo ponto


correta, não equivale a tomá-lo como tipicamente indiferente. Tal equivalência
deriva da pretensão de excluir o azar do direito penal, o que é a rigor impossível,

55
Assim, Lange, Richard, em ZStW, 59, p. 574; radicalizadamente, Zielinski, Hand/ungs - und
Erfolgsunwert in Unrechtsbegriff. p. 200. Os motivos de Welzel para realçar o resultado no
tipo em Binavince, Emílio S., Die vier Mamente der Fahrliissigkeit, pp. 225 ss.; Welzel
jamais confundiu o delito culposo com um perigo abstrato seguido de uma condição objetiva
de punibilidade. Na Itália, tomou o resultado nos crimes culposos por condição objetiva de
punibilidade Manzini (Trattato, v. I, p. 687). Entre nós, sufragaram essa tese Nelson Hungria
(Comentários, I, II, p. 201) e CarlosAdalmyrCondeixa da Costa (Da Natureza Formal dos
Crimes Culposos, pp. 190 ss e 211 ).
56
Cf. Bockelmann, p. 159. Pablo Daniel Vega lembra que o desvalor do resultado constitui um
dos "limites imprescindíveis" para controlar o exercício do poder punitivo, sem o qual
estaria ameaçada a segurança jurídica (EI Derecho Penal Reductor. .. cit., p. 74).
57
Sobre o assunto, Schõne, W., em CPC, 1977, pp. 63 ss; Castaldo, Andrea, em RIDPP, 1981,
pp. 881 ss.; Rodriguez Ramos, Luís, em CPC, 1977, pp. 49 ss.; Laurenzo Copello, Patrícia,
E/ resultado en el Derecho Penal.
" Exner, Franz, Das Wesen der Fahrliissigkeit, pp. 82-83.
59
Untersuchungen, p. 342.
60
Bockelmann, Maurach etc (referências bibliográficas em Kaufrnann, Armin, Dasfaharlãssige
Delikt, cit., p. 43; também Lilderssen, Klaus, em ZStW, 85, 1973, pp. 288 ss.; Serrano
González de Murillo, J.L., Teoría dei delito imprudente, p. 252).
61
Assim Mayer, Helmuth, 1953, p. 272; em última análise, também Baumann, pp. 85 ss.

324
já que também existem componentes de azar na produção dolosa de resultados,
assim como na situação em que um ato preparatório conserve tal condição ou
se converta em ato de execução (atraindo punição a título de tentativa) e em
outras. Sem o resultado - que em toda tipicidade pode ostentar certo compo-
nente desafortunado - não há pragma típico, porque não há conflito, ou este
tem envergadura menor ou insignificante. Do ponto de vista da conflitividade
social, não podem equiparar-se os casos de quem viola o dever de cuidado sem
produzir qualquer resultado e de quem o faz com a subsequente produção de
muitas mortes. Tampouco é verdadeiro que a desvinculação do resultado com
relação à vontade afete o princípio da culpabilidade em sentido amplo: o resultado
culposo apenas se desvincula da vontade como conteúdo desejado dela, perma-
necendo a ela ligado pela violação do dever de cuidado que o determina62 •

Ili. Tipicidade conglobante: culpa simples (não-temerária)


e previsibilidade

1. Na culpa temerária o terceiro observador percebe a criação de um


perigo proibido tão nitidamente que a exterioridade da conduta lhe aparece
como um plano criminal dirigido à produção do resultado; o que, evidentemente,
para que exista culpa, não pode confirmar-se subjetivamente. Existindo
dominabilidade e descartado o dolo (direto ou eventual), teremos cu! pa temerá-
ria. Quando não houver dominabilidade, não haverá também culpa temerária,
porém pode haver culpa simples (não-temerária), consciente ou inconsciente.
O conceito de culpa temerária cumpre sua função redutora demarcando, em
casos duvidosos, as fronteiras com o dolo eventual.

2. Na culpa o agente sempre cria um perigo proibido através da


violação do dever de cuidado63 • A pretensão de caracterizar a culpa recor-
rendo à causalidade e à previsibilidade fracassou há muito tempo64, sendo hoje
opinião generalizada que a falta de cuidado exterior65 é seu componente central

62
Uma causalidade absolutamente insólita e inimaginável entre a conduta infratora do dever de
cuidado e o resultado não gera uma tipicidade culposa, desvirtuação à qual pode chegar a
consideração do resultado como condição objetiva de punibilidade; cf. Feijóo Sánchez, 8.,
EI injusto penal, pp. 93 ss.; Corcoy Bidasolo destaca a jurisprudência do BGH quanto à
necessidade de constatar que o resultado foi produzido por causa e não por ocasião da
infração (EI delito imprudente, p. 430).
63
Vives Antón, T.S., Comentarias ai Código Penal de 1995, v. I, p. 90; Corcoy Bidasolo, M.,
op. cit., p. 57.
64
Cf. Welzel, p. 128; Malamud Goti, La estruct11ra, pp. 36-37.
65
Engisch, Unters11ch11gen, p. 277; Kaminski, Ralf, Der objektive Masstab im Tatbestand des
Fahrliissigkeitsdelikte.

325
indispensável66, ainda que insuficiente67• Qualquer que seja o valor atribuído à
violação do dever de cuidado, sempre se reconhecerá como criação de um
perigo proibido a infração de normas jurídicas orientadas à evitação do resulta-
do como realização desse perigo.

3. Existem muitas atividades que, por sua própria natureza, implicam previ-
síveis produções de resultados lesivos. No entanto, nessa previsibilidade - que
freqüentemente é previsão - uma limitação de caráter normativo pode indicar os
conteúdos tipicamente relevantes, excluindo do tipo os demais. Da mesma lei
material que demarca os limites do dever de cuidado se podem extrair tais con-
teúdos. No entanto, jamais se pode extrair da mera infração regulamentar, mecâ-
nica e inexoravelmente, a violação do dever de cuidado típica. Não existe mais no
direito penal brasileiro, desde 1940, uma culpa cuja conduta se contente com a
violação de regulamentos68 • As infrações regulamentares constituem simples
indícios de violação do dever de cuidado69, e ainda assim sob condição de sua
vigência, apreciada não como questão formal e sim material. A violação do limite
de velocidade, estabelecida em 60 km.p.h. nas vias urbanas arteriais7°, não indicia
violação do dever de cuidado quando a autoridade municipal de trânsito, através
de uma placa estatigráfica, autorizou trafegar a 80 km.p.h., por exemplo. Solução
similar se impõe quando a regulamentação foi superada por técnica que mais
eficazmente consegue evitar o perigo, e também, evidentemente, quando a infra-
ção regulamentar não estiver vinculada à produção do resultado (o condutor do
veículo está com sua carteira de habilitação vencida, porém sua visão e audição
estão perfeitas e sua perícia no manejo do veículo está íntegra).

4. Por mais regulamentada que esteja uma atividade por lei, a realidade
sempre propiciará situações inéditas, sempre será mais rica que o cálculo ou a
imaginação do legislador. Portanto, não existe alternativa senão confiar todos
os casos a padrões sociais de prudência. Neste ponto surgiria o temor de
limites típicos indefinidos pelo recurso à velha fórmula civilística do bom pai de
família, ora reciclado no motorista prudente e consciencioso 71 , ora no
homunculus normalis 72, ora no reasonable man anglosaxão73• Aqui se situa o

66
Welzel, loc. cit.; Maurach, p. 556; Stratenwerth, p. 259; Mezger-Blei, p. 212; Bustos
Ramírez, pp. 46-47; Fontán Balestra, II, pp. 268-269; Juarez Tavares, pp. 279 ss.; Juarez
Cirino dos Santos, Direito Penal, P.G, pp. 171 ss.
67
Roxin, p. 924.
6
R Cf. supra, nota de rodapé nº 12.
69
Juarez Tavares, p. 292.
10
Art. 61, § 1º, inc. I, ai. b CTB.
71
Welzel, Culpa e delitos de circulação.
72
Kitzinger, em JW, 1933, p. 407.
73
Hall, Jerome, General Principies, pp. 147 ss.; Bassiouni, pp. 449 e 470.

326
complexo problema de resolver qual o parâmetro a utilizar-se para caracterizar
a violação ao dever de cuidado, ou seja: se tal violação deveria aferir-se a partir
de um critério standard de previsão, atenção e prndência, ou se em cada caso
caberia considerar as capacidades individuais do agente 74. Para quem se filia à
primeira opção, toda conduta compatível com o standard não pode ser imputa-
da por culpa. O maior obstáculo a esta opção teórica reside na indefinição
desses standards75 , sempre um pouco imaginativos. De outro lado, é polêmica
a pergunta sobre a medida na qual se devem tomar em conta as capacidades
individuais do agente para detenninar sua culpa76 •

5. Em busca de um padrão social de prudência, costuma-se chegar a um


artificial bom pai de família, a um inconcebível artífice de todos os oficios, sábio
em todas as ciências, informado sobre todos os mecanismos, praticante de
todos os esportes77• Este imaginário homem médio renascentista é completa-
mente manipulável pelo intérprete e não consegue oferecer fronteiras típicas
nítidas. Mas essa figura imaginária não pode ser confundida com um dado da
realidade bem distinto, que é a existência de um standard mínimo de
previsibilidade, compartilhado por quase todos os integrantes de uma mesma
cultura, dado este perfeitamente verificável. Enquanto o standard médio é
imaginário, o mínimo é real e constatável.

6. Para a tese predominante do standard médio, não empregar o sujeito


conhecimentos e habilidades superiores às dele não autoriza imputação por
culpa, enquanto que capacidades pessoais inferiores às dele são resolvidas pela
exclusão da culpabilidade78 . Além da impossibilidade de ver-se objetivado, o
standard médio consagra uma teoria estática dos papéis sociais, grosseira-
mente incompatível com a realidade: aquele que pode evitar um acidente por
sua perícia de piloto de rally deve fazê-lo, porque tal papel é adaptável a toda
situação na qual ele esteja posto como motorista. Uma opinião minoritária sus-
tenta que conhecimentos e habilidades individuais acima do standard devem
ser consideradas, mas igualmente as capacidades abaixo dele excluem a cul-
pa79. Nesta última solução o standard não cumpre nenhuma função, já que em
todos os casos a imputação é dete1minada pelas capacidades individuais.

1
• Assim Freund, Georg. Stra/recht, p. 154.
7
s. Malamud Goti, la estruct11ra, p. 74; Juarez Tavares, pp. 275 ss.
76
Roxin, pp. 935 ss.; Juarez Cirino dos Santos, op. cit., pp. 167 ss.
77
Sobre isso, Paredes Castaiión. J.M., E/ riesgo permitido en derecho penal, p. 331 ; também
Schünemann, Bemd, em ADPCP, 1994, pp. 307 ss.
71
Jescheck-Wcigend, p. 564; Welzel, pp. 131 ss.; Maurach-Gõssel, II, pp. 43-110.
79
Jakobs, pp. 380 ss.; Corcoy Bidasolo, M., E/ Delito Jmprudente, pp. 112 e 145.

327
7. Descartada, por sua insegurança, a apelação a um inexistente standard
médio, a pergunta crucial é se cabe optar decididamente pela capacidade
individual como padrão referencial para a tipicidade da conduta. A res-
posta afirmativa poderia ser objetada sobre a base: a) do princípio da isonomia
e b) da função redutora do direito penal. Examinemos ambas objeções. a)
Quanto ao princípio da isonomia, a objeção se fundamentaria em que o âmbito
da proibição estaria dilargado na razão direta dos conhecimentos e habilidades
do sujeito. Mas é trivial que na sociedade quase todos dispõem, em certas
atividades, de maior capacidade de previsão que outros. Ora, enquanto os de-
veres de cuidado forem repartidos segundo as respectivas capacidades dos
obrigados, a isonomia não parece lesionada: de cada um segundo sua capacida-
de. O médico turista que ajuda a socorrer um mecânico ferido na estrada está
obrigado, nessa atividade, a um dever de cuidado compatível com seus conhe-
cimentos, tanto quanto o mecânico turista que ajuda a consertar o automóvel do
médico que ali sofrera uma pane. Seria inadmissível pretender constringir o
dever de cuidado em função da teoria dos papéis: em ambas as situações, vê-
se um papel de colaborador solidário, mas o médico não estaria obrigado a
permanecer no hospital para o qual foi removido o ferido afim de ministrar-lhe
tratamento de sua especialidade, tanto quanto o mecânico não estaria obrigado
a esperar por uma peça indispensável para o conserto, que só chegará no dia
seguinte. Idêntico critério é aplicável aos casos do biólogo empregado como
camareiro e do engenheiro civil contratado como capataz80 : nenhum deles tem
o dever de velar pela qualidade do alimento servido ou do concreto virado. No
entanto, se ao servi-lo o camareiro suspeita que o alimento esteja envenenado
(o capataz desconfia da fragilidade do concreto), essa suspeita - e não o papel
que se encontra desempenhando - é que gera o dever de cuidado que o obriga
à advertência cabível ou à abstenção da conduta. Na realidade social, os papéis
são cambiantes e dinâmicos, e se é verdadeiro que o papel de camareiro não
implica um dever de observar ou analisar a qualidade do alimento a ser servido,
este mesmo papel impõe o dever de não servir alimentos envenenados. Por
acaso não constituiria conduta culposa aquela do camareiro que, sem ser biólo-
go, desprezasse a advertência de um biólogo, presente na festa, sobre a apa-
rência envenenada do alimento que ele está a servir?

8. b) Quanto à função redutora do direito penal, não é correto afirmar


que recorrer à capacidade individual de previsão amplie o âmbito da proibição
(e, conseqüentemente, a passagem de poder punitivo) mais do que resultaria da
utilização do critério do imaginário bom pai de família, pois a carência de base
empírica bem delimitada não permite nunca conhecer a amplitude da proibição

'° Cf. supra,§ 33.

328
dele decorrente. De outro lado, o pretendido standard médio de previsibilidade
acabaria sendo aplicado até mesmo a quem não o alcance, como se dá com as
propostas de elevar tal standard segundo a capacidade do melhor especialistc/'1.

9. O standard mínimo, enquanto padrão verificável da previsibilidade


comum a todos que compartilham da mesma cultura, cumpre inquestionavelmente
uma função processual como elemento crítico de declarações gratuitas sobre o
grosseiro desconhecimento de elementares noções acerca da criação de peri-
gos. Não obstante, sustenta-se que também cumpre uma função propriamente
penalística, afirmando-se que conhecimentos e habilidades especiais devem
ser considerados para determinar a violação do dever de cuidado (elemento da
tipicidade) sob a condição de que superem o standard mínimo; capacidades
individuais abaixo dele seriam resolvidos no âmbito da culpabilidade82 • Tal solu-
ção implicaria reconhecer a violação do dever de cuidado por parte de quem
não tinha como observá-lo. De certa forma, tratar-se-ia de um caso de respon-
sabilidade objetiva ao nível do injusto, que deve ser rejeitado neste mesmo nível,
proclamando-se a atípicidade da conduta, e não remetido ao sanatório geral da
culpabilidade. A existência de um patamar mínimo de previsibilidade generali-
zada e o reconhecimento de que algumas pessoas não o alcançam exprimem
uma dívida social, que não seria razoável quitar-se às custas do credor, instado
a cumprir um dever que não teve como conhecer.

l O. Descartada a utilização de um standard médio de previsibilidade, vago


e imaginário; reconhecida a existência de um standard mínimo empiricamente
verificável; refutadas as objeções ao uso dos conhecimentos e habilidades indivi-
duais, que nem afronta o princípio da isonomia nem perturba a função redutora do
direito penal; impõe-se a conclusão de que a imputação conforme a capacida-
de individual de previsão determina o limite da culpa.

11. A capacidade individual de previsão não se confunde com outras hipóte-


ses que ensejam imputação culposa. Incorre em culpa pelo empreendimento83
aquele que inicia uma atividade perigosa sem informar-se dos riscos envolvidos
ou sem habilitar-se tecnicamente para realizá-la. É indubitável que, nesses casos,
o dever de cuidado impunha ao agente não realizar a atividade, prevalecendo a
regra segundo a qual, diante de uma atividade perigosa, "quem não sabe, infor-
me-se; quem não pode, abstenha-se". Ao médico que se lança à intervenção

11
Schünemann, Neue Horizonte der Fahrliissigkeitsdogmatik?, p. 176.
12
Roxin, p. 937; Heitor Costa Jr., pp. 58 ss.; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, pp. 167
ss.; Juarez Tavares, pp. 441 ss.
u Jakobs, p. 389; Roxin, p. 931; Maurach-Gõssel, II, pp. 43 e 62; Juarez Tavares, p. 283;
Juarez Cirino dos Santos, op. cit., p. 173; TACrimSP, RJD 28/130, J. Eduardo Goulart.

329
cirúrgica sem os exames clínicos recomendados por sua arte, resultando a morte
do paciente, não falta previsibilidade do perigo, porém ele viola o dever de cuida-
do que lhe impunha infonnar-se mais antes de intervir. O aprendiz iniciante na
auto-escola que se apossa do carro do pai e atravessa toda a cidade, atropelando
alguém, viola o dever de cuidado que lhe impunha não dirigir no trânsito urbano
sem adestramento. Nos dois casos é possível discernir entre a tipicidade e outros
estratos analíticos do delito: as duas condutas típicas estaríam justíficadas pela
necessidade (art. 24 CP) se o facultatívo houvesse antecipado a intervenção pela
maior possibilidade de bom êxito, referendada pela experiência médica, da cirur-
gia prestamente realizada, ou se o aprendíz de motorista, sem dispor de alternati-
va eficaz, estivesse conduzindo o pai enfartado ao hospital.

IV. Tipicidade conglobante: princípio da confiança e nexo


de determinação
1. Os crimes culposos oferecem problemas complexos de tipicidade quando
envolvem condutas que integrem uma atividade compartilhada, como se dá no
trânsito viário ou numa intervenção cirúrgica. Perante uma atividade regida
pela divisão de trabalho 84, muitos desses problemas podem ser resolvidos
pelo princípio da confiança, segundo o qual não há violação do dever de
cuidado na conduta de quem confia que o outro se comportará correta-
mente, desde que não existam motivos para duvidar disso ou mesmo acre-
ditar no contrário85 • A eficácia do princípio da confiança está limitada, em
geral, pelo próprio dever de observação: violaria o dever de cuidado manter a

"' Cf. Choclán Montalvo, J.A., E/ deher de cuidado y e/ delito imprudente, p. 106.
u Welzel, pp. 132-133; do mesmo, Culpa e delitos de circulação; Deutsche, Erwin, Fahrliissigkeit
1111d erfordeliche Sorgfalt, p. 215; Floegel, J.- Hartung, F.-Jagusch, H.. Strassenverkehrsrecht,
pp. 49 ss.; Drees, B. - Kuckuck, G. - Wemy, K.J., Strassenverkehrsrecht, pp. 213 ss.;
Cramer, Peter, Strassenverkehrsrecht, pp. 69 ss.; Müller, Fritz, Strassenverkehrsrecht,
pp. 722-723; Kaiser, Günther, Verkehrsde/inquenz 1111d Genera/priivenlion, p. 38; Wimmcr,
August, A11dehn1111g oder Ei11schriink1111g des Vertrauensgrundsiitzes?, pp. 369 ss.; do
mesmo, Die Rechtspjlicht zum de/ensiven Fahren, pp. 37 ss.; Martin, Ludwig, Das de.fensive
Fahren und der Vertrauensgrundsatz, pp. 299 ss.; do mesmo. Vertrauensgrundsatz und
Kinder im Strassenverkehr, pp. 117 ss.; Claus, Karl, Vertrauen zwn Vertrauensgr11ndsatz,
pp. 207 ss; Bõhmer, Emil, Des Vertrauensgrzrndsatz im Strassenverkerhr in der
Rechsprechung, pp. 291 ss.; Maurach, p. 563; Sanders, Theodor, Vertrauensgrundrntz und
Verkehrssicherheit, pp. 8 ss.; Mittelbach, Hans, Kinder au/der Strasse und am Srrassenrand,
pp. 315 ss.; Roxin, p. 926; Jakobs, p. 253; Kõhler, p. 189; Kirchbaum, Der Vertrauenssclwtz
im deutschen Strassenverkehrrecht; Choclán Montalvo, J. A., E/ deber de cuidado, cit .. p.
112; Heleno Fragoso. Lições, P.G., p. 233; Juarez Tavares, pp. 293 ss.; Miguel Reale
Júnior, Instituições, P.G, p. 239; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, P.G., p. 175; no
âmbito de atividades médico-cirúrgicas, Nilo Batista, Novas Tendências, pp. 177 ss.

330
confiança na atuação alheia quando existam sinais de que o outro não está se
comportando conforme deveria 86, sem que seja preciso esperar que ele perca o
domínio do fato 87, e mesmo quando o sujeito perceba os sinais da conduta
deceptiva alheia excedendo sua própria incumbência de observação fixada pela
divisão do trabalho, seja por acidente, seja por suas características obsessivas,
seja por conhecimentos ou habilidades pessoais. Não há falar-se em princípio
da confiança onde a tarefa do agente é precisamente exercer vigilância sobre
a execução das tarefas dos demais envolvidos na atividade compartilhada88•

2. Reconhecida a violação do dever de cuidado e a causalidade entre a


conduta descuidada e o resultado, ainda não se pode afirmar a tipicidade culposa:
será sempre indispensável averiguar se o resultado foi efetivamente determi-
nado pela violação normativa, ou seja, se media uma conexão ou nexo de
determinação entre a antinormatividade e o resultado, também chamado pela
doutrina de conexão ou nexo de antijuridicidade, expressão que não denota
com clareza seu sentido89 • Este requisito foi rechaçado, alavancando a concep-
ção do resultado como componente de azar90 até convertê-lo numa condição
objetiva de punibilidade91 ou numa situação de pura responsabilidade pelo re-
sultado92• A relevância deste requisito foi questionada pela consideração de
tratar-se de juízos hipotéticos que implicam um enfraquecimento da função
preventiva das normas em relação aos bens jurídicos que já não possam ser
preservados, pretendendo-se por esse motivo atribuir-lhe efeito de mera atenu-
ação da pena93 • Tal opinião supõe absolutizar radicalmente o pensamento
preventivista, acrescendo-lhe uma ênfase igualmente radical no desvalor da
ação: de outro modo seria incompreensível que a norma pretendesse tutelar
bens jurídicos insalváveis. É um preventivismo tão idealista que recorre à ame-
aça penal para proteger algo já inexoravelmente perdido.

86
A confiança cega e incondicional não poderia escusar: Montovani, Marco, li principio di
afjidamento nel/a teoria dei reato colposo, p. 155; do mesmo, Sui limiti dei principio di
affidamento, p. 1195.
87
Jakobs, p. 257.
88
Roxin, p. 927.
89
Como exigência constitucional, Mazzaéuva, Nico la, li disvalore di evento ne/1 'il/ecito
pena/e, pp. 185 ss. Sobre o nexo de determinação, Heitor Costa Júnior, pp. 65 ss.; Juarez
Tavares, pp. 255 ss.; Feijóo Sánchez, B.J., Homicídio y lesiones lmpmdentes, pp. 130 ss.;
Gõessel, Karl-Heinz, pp. 22 ss.; Malamud Goti, J., El Delito Imprudente, p. 65; Bustos
Ramirez, Juan, Culpa y Finalidad, pp. 69 ss.; Goransky, Mima, Criterios jurisp111dencia/es
en e/ ámbito de la impn,dencia de la actividad medica, em Maier, Julio B.J. (org.), Questi-
ones Particulares de la Improdencia, pp. 124 ss.
90
Assim Baumann, Kausa/zusammenhang bei Fahrliissigkeit, p. 210.
91
Cf. Jakobs, pp. 394-395.
92
Por exemplo Arthur Kaufmann, Schuldprinzip, pp. 162 ss.
93
Jakobs, p. 271.

331
3. A constatação do nexo de determinação do resultado pela criação do
perigo proibido provém de um duplo juízo hipotético, em concreto e em abs-
trato, o segundo como corretivo do primeiro. Concretamente, cabe imaginar a
conduta do autor dentro do marco normativo, isto é, sem violar o dever de
cuidado, e logo sem criar nenhum perigo. Faltará o nexo de determinação sem-
pre que a ação assim imaginada houvesse igualmente produzido o resultado 94.
Essa hipótese é geralmente chamada de exclusão da imputação por falta de
realização do risco não permitido 95 , e com ela se evita castigar o
descumprimento de deveres inúteis. Assim deveria resolver-se o famoso caso
dos pelos de cabra: o patrão não desinfetou a lã que as operárias manipularam,
e por causa da qual contraíram carbúnculo e morreram, tendo ficado provado
mais tarde que os detergentes que os regulamentos sanitários prescreviam para
a assepsia da lã não teriam evitado a contaminação. Assim também se resolve
o caso do motorista que conduz acima da velocidade pennitida, diminuindo-a
depois para a autorizada, e após alguns quilômetros atropela uma pessoa que
cai sobre a pista96, ou do motorista que ultrapassa o sinal vennelho e atinge um
suicida cem metros adiante, ou ainda o caso da novocaína (um médico injetou
cocaína em lugar de novocaína e a paciente morreu, constatando-se logo que
ela também teria morrido caso aplicada a novocaína97). Em todos esses casos,
embora possa o autor ter introduzido um risco não permitido, o resultado não
exprime a realização desse risco.

4. Há casos em que não se pode afirmar com segurança que a conduta alterna-
tiva conforme ao dever do cuidado teria evitado o resultado, mas tão somente afirmar
que provavelmente o teria. Com argumentos preventivistas pretendeu-se que só cabe
excluir o nexo de determinação quando a conduta alternativa tivesse com certeza
evitado o resultado98• É uma estranha situação esta, na qual o preventivismo chega ao
extremo de cancelar o princípio in dubio pro reo. Em última instância, isso significa
demitir o requisito do nexo de determinação da estrutura do tipo culposo, porque
nunca se poderá obter certeza absoluta. do que teria ocorrido num curso hipotético.
Como tampouco basta uma mera possibilidade da evitação para afastar o nexo de
determinação, parece claro que se trata de uma questão processual, a dirimir-se pelo
paradigma da dúvida razoável, que sempre socorre o réu.

5. Contudo, nem todos os casos de realização do risco no resultado se


resolvem em tipicidade culposa: mesmo superado o juízo em concreto, pode
94
Reitmaier, Andrea, Die objektive Erfolgszurechnung im osterreichischen Strafrect, p. 251.
9
s Roxin, p. 323.
96
Roxin, loc. cit.
97
Jakobs, p. 281.
91
Roxin, p. 330; segue-o Corcoy Bidasolo, p. 521.

332
ocorrer que a norma de cuidado violada não tenha por pretensão tutelar a
evitação do perigo desses resultados. Daí a necessidade de um segundo
juízo, em abstrato, como corretivo do primeiro. Quem estacionou seu automó-
vel em lugar proibido, embora iluminado e visível, não lesiona culposamente o
motociclista que colide contra o veículo. Há, sem dúvida, causalidade (se o
veículo não estivesse ilicitamente estacionado ali, não haveria a colisão nem as
lesões corporais), criação de um perigo (o estreitamento da rua) e realização
desse perigo no resultado (do estreitamento decorreu a colisão e as lesões
corporais); mas a norma de cuidado violada não tem a pretensão tutelar de
evitar colisões, e sim de facilitar a circulação de veículos. É análogo o caso dos
dois ciclistas que pedalam em fila sem luzes, vindo o da frente a colidir com um
terceiro que vinha em sentido contrário: não se pode imputar o resultado de
lesões corporais ao segundo ciclista, sob o argumento correto de que se ele
houvesse ligado seu farolete muito provavelmente não teria ocorrido o choque,
porque a pretensão tutelar da norma violada (manter as luzes acesas ao circu-
lar à noite) é evitar as próprias colisões, e não as alheias99•

6. A velha fórmula de Frank sobre a proibição de regresso


(Regressverbot' 00 ) pretendia evitar que a causalidade se estendesse até aqueles
que haviam favorecido um delito doloso em situações nas quais não parecia razo-
ável imputar o feito: o caçador que deixou sua arma num armário da taberna não
é partícipe do homicídio que um freguês praticará contra outro. Entendia-se que
a intervenção dolosa cortava a relevância da causalidade (ou interrompia o nexo
causal), posição hoje muito minoritária na doutrina'º'. Atualmente, essa questão
não pertence à causalidade: aquelas situações que a proibição de regresso pre-
tendia resolver constituem problemas de imputação ou de participação' 02, que
excluem a tipicidade conglobante nos tipos dolosos por considerar banal o aporte
do partícipe 103 , e nos tipos culposos, nos casos em que a conduta banal não pode
considerar-se típica, porque impediria a realização de uma amplíssima gama de
ações correntes na interação social, integrantes do âmbito do risco permitido,
como é o comércio de ferramentas ou de medicamentos. Nesses casos, a bana-
lidade da ação exclui a tipicidade culposa à míngua da criação de um risco proi-
bido e na medida em que o princípio da confiança não tenha sido violado.
99
Roxin, p. 325.
100
Frank, Reinhard, Das Strafgesetzb11ch for das Deutsche Reich, Tubinga, 1931, ed. Mohr, p.
14; Mayer, Hellmuth, 1953, p. 138.
101
Rechaçam-na Jescheck-Weigend, p. 280; Maurach, p. 208; Rudolphi, p. 29; Baumann, p.
231; Welzel, p. 44; Wessels, p. 37; Roxin, Problemas Básicos, p. 184; acata-a, por exemplo,
Otto, Harro, Ka11saldiagnose und Erfolgszurechnung im Strafrecht, pp. 91 ss.
102
Jakobs a denomina participação aparente, p. 842; sobre isso, Hruschka, Joachim,
Regressverbot, Anstiftungsbegriff zmd die Konseq11enzen, p. 581.
103
Cf. supra, § 33.

333
Assim, o núcleo da velha proibição de regresso 104 reparte-se hoje entre a banali-
dade ou inocuidade do aporte na participação dolosa e o âmbito do risco permitido
na tipicidade culposa, confonne resulta da aplicação do princípio da confiança.
Por isso, não há razão alguma para negar-se a possibilidade de tipicidade culposa
quando se favorece uma ação dolosa: quem imprudentemente provê uma arma
mortal ao rixento, pode ser um autor culposo.

V. Tipicidade conglobante: insignificância, fomento, cum-


primento de um dever jurídico e consentimento
1. A insignificância, nos crimes culposos, pode apresentar-se ou no resulta-
do - e, neste caso, podemos aproveitar tudo o que foi dito a propósito dos crimes
comissivos dolosos-ou na violação do dever de cuidado. Nesta última hipótese,
as soluções se encaminharão antes pelo nexo de detenninação do que pelo prin-
cípio da confiança: a conduta do motorista que excede em apenas um quilômetro
por hora a velocidade pennitida (dirigindo a 81 km.p.h. onde a placa estatigráfica
autoriza 80) é atípica não tanto pela irrisória violação do dever de cuidado padro-
nizado, mas sim porque a hipotética conduta alternativa conforme o dever de
cuidado (dirigira 80 km.p.h.) não faria desaparecer o resultado. A violação insig-
nificante do dever de cuidado situa-se no extremo oposto da culpa temerária: se
nesta a grosseira violação do dever de cuidado faz com que o terceiro observador
perceba aparentemente um plano criminoso, naquela tal observador teria que
empregar muita atenção e até mesmo refletir para identificar a violação.

2. Nos esportes violentos o fomento e o acordo eliminam a tipicidade


conglobante das condutas que, sem elas, constituiriam lesões corporais culposas.
Se a atividade que cria o perigo é fomentada e mediante consentimento os atletas
submetem-se ao risco dela decorrente, não há tipicidade. Violando o regulamento
esportivo, a conduta será típica, dolosa ou culposa segundo as circunstâncias. A
intenção de violar as regras do jogo não deve ser confundida com o dolo das
lesões (que assim estaria presumido): embora o atleta tenha voluntariamente trans-
gredido o regulamento esportivo (como não alcançaria a bola com a cabeça,
estica a mão fechada para tentar o gol) as lesões podem ser culposas (o atleta
erra a bola, porém sua mão fechada atinge o rosto do goleiro). As regras do jogo
constituem os limites do risco ao qual os atletas consentem expor-se, e sua viola-
ção deve ser valorada pelos padrões usuais. A Constituição da República atribui
à justiça desportiva uma prioridade no tratamento deste assunto (art. 217, §§ 1º e
2° CR), que não vincula a solução judiciária mas pode auxiliá-la substancialmente

104
Roxin, pp. 928 ss.

334
no reconhecimento da violação das regras do jogo. Competições não oficiais de
alto risco requerem autorização, e a patticipação naquelas não autorizadas por si
só indicia a violação do dever de cuidado.

3. Existe um conjunto de condutas, impostas pela ordem jurídica, que geram


perigos suscetíveis de concretar-se em resultados lesivos. Isto é muito claro em
certas atividades regulamentadas, como as dos bombeiros, das ambulâncias de
socorro a acidentados etc. Por certo não podem ser tomados por perigos permi-
tidos todos os que emergirem de qualquer conduta exercida no marco dessas
atividades, mas tão somente aqueles produzidos por condutas que a) lenham
observado estritamente os limites regulamentares, b) lenham observado as
regras da arte, do qficio, da profissão ou da função, e e) como esses deveres
são impostos fundamentalmente em nome da necessidade, o limite de licitude
dos perigos criados também estará dado pelas causas de justificação para
terceiros em circunstâncias análogas (recordando que aquilo que para os não-
obrigados constitui permissão, para os obrigados se converte em dever).

4. Quanto aos limites do perigo proibido, não existe um dever jurídico de agir
com culpa temerária em relação a terceiros não expostos a perigo ou que não
tenham o dever de arrostá-lo ou o tenham assumido. Em relação aos que estão
expostos ao perigo, a necessidade pode impor condutas que envolvam até mesmo
culpa temerária e que seriam atípicas também no caso de funcionários jurídicamen-
te obrigados a enfrentar o perigo ou que tenham consentido em submeter-se a ele
(o motorista da ambulância pode conduzi-la em velocidade muito superior à permi-
tida numa estrada sem trânsito, a despeito de um sério risco para a vida do paciente
agonizante e do paramédico socorrista, porém não pode fazê-lo numa rua movi-
mentada, criando o mesmo sério risco para outros motoristas, pedestres, crianças
que saem da escola etc). Sempre que forem observados os limites regulamentares,
os limites impostos pelas regras da arte, oficio, função ou profissão e os limites
derivados da necessidade ou da legítima defesa, desde que ausente culpa temerária
com relação a terceiros, é irrelevante a magnitude do resultado, porque estare-
mos diante de ações que apenas geram perigos proibidos e eventualmente
concretáveis, ou seja, que não estão dirigidas à produção do resultado e, pelo con-
trário, estão orientadas exatamente à evitação do resultado (a ambulância colide
contra um poste, sucedendo-se a morte do paciente e lesões no paramédico
socorrista; o policial dispara sua arma em legítima defesa de Caio, na iminência de
ser morto por Mévio, e atinge o próprio Caio que pretendia defender).

5. Como vimos anteriormente'º5, a aquiescência nos tipus comissivos dolosos


pode assumir a forma do acordo ou do consentimento: o primeiro exclui a tipicidade
101
Cf. supra, § 32.

335
sistemática e o segundo exclui a tipicidade conglobante. A simplicidade do tipo siste-
mático culposo não enseja espaço para o acordo, e portanto no campo da tipicidade
culposa a aquiescência só se manifesta como consentimento. O consentimento
nos crimes culposos pode oferecer distintos formatos 106: a) a contribuição a ações
perigosas alheias; b) lesões jurídicas resultantes de ações salvadoras com as
quais voluntariamente a vítima se expõe a perigo; e) lesões jurídicas resultan-
tes de ações de um terceiro determinadas pela própria vítima; d) resultados
lesivos produzidos na esfera de responsabilidade assumida por outrem.

6. a) Quanto à contribuição a ações perigosas alheias, apesar da ampla


discussão doutrinária 1°7, não há razões válidas para refutar a eficácia do con-
sentimento, sempre que a medida do consentimento outorgado não tenha sido
ultrapassada. Quem se dispõe a cruzar a nado um rio perigoso ou a participar
de um pega consente em se expor ao risco imanente a tais atividades, não
cabendo responsabilizar-se penalmente seu acompanhante 108 ; quem entrega
heroína a outrem responderá pelo delito correspondente previsto na lei sobre
drogas ilícitas, não porém por homicídio culposo quando o drogadicto, com cons-
ciência do perigo, se injeta uma overdose 109 ; quem vende ilicitamente uma
arma não responde pelas lesões que o comprador possa sofrer pelo manejo
desastrado dela; quem aceita viajar no automóvel cujo motorista esteja mani-
festamente embriagado, tendo-lhe sido possível seja impedir que o ébrio dirigis-
se, seja abster-se de viajar, também consentiu em expor-se ao risco ( se, entre
três condutas, uma das quais evitaria o próprio risco e outra resguardaria bens
próprios e de terceiros, o sujeito escolhe a terceira, que o expõe ao risco, o
consentimento é claro). A temeridade de um terceiro nunca pode tornar
uma ação típica. Embora se trate apenas de um argumento de reforço, que na
Alemanha costuma-se usar em sentido inverso 11°, parece convincente deduzir
da expressa criminalização da participação em suicídio (art. 122 CP) que a
contribuição a meras auto-exposições a perigo não estão criminalizadas.

7. b) As ações salvadoras não institucionais, nas quais a vítima voluntari-


amente se coloca em perigo, são resolvidas com critério análogo: ao banhista

106
Nisto, Roxin, p. 335, valendo observar que as distinções entre formatos que impliquem
especial atuação do causante desaparecem desde a perspectiva da vítima para afinal reduzi-
rem-se a uma só: a auto-exposição voluntária ao perigo; sobre isto, Cancio Meliá, M.,
Conducta de la víctima e imputación objetiva, pp. 177 ss.
101
Welzel, p. 98. Uma síntese em Floegel-Hartung, Strassenverkehrsrecht, pp. 885-886;
Schunknecht, Heinz, Einwil/igung und Rechtswidrigkeit bei Verkehrsdelikten, p. 17; sobre
a questão na França, Brunet, Jean, em Recuei/ Sirey, II, pp. 161 ss.
10
• Incisivos, Schõnke-Schrõder, p. 498.
109
Roxin, p. 337.
110
Roxin, p. 335.

336
imprudente não pode imputar-se a morte de quem espontaneamente se lançou
ao mar para salvá-lo; a quem provoca uma agressão ilegítima não se podem
imputar as lesões que o agressor infligiu no terceiro que tentou defendê-lo. e)
Quanto às lesões jurídicas resultantes de ações determinadas pela própria víti-
ma, não é diferente a solução. Como imputar ao barqueiro a morte do passagei-
ro que insistiu, triplicando o preço habitualmente cobrado pela travessia, que ele
a empreendesse em meio a uma tempestade, sobrevindo o oaufrágio? 111 A
conduta de quem conscientemente produz o risco através de outrem não pode
fundamentar a tipicidade culposa da ação de quem foi determinado ao risco,
pela intercorrência óbvia do consentimento.

8. d) Quando alguém assume, voluntária ou institucionalmente, o controle


da situação de risco, cessa a oportunidade - até então presente - de imputar
culpa ao primitivo criador do perigo. Assim, quando uma equipe da defesa civil
municipal assume a demolição de uma casa arruinada prestes a desabar, cujo
proprietário negligenciou demoli-la oportunamente, todo e qualquer resultado lesi-
vo (como as lesões corporais em um funcionário sobre quem cai um teto) não
poderá doravante imputar-se ao proprietário negligente. A partir do momento em
que outrem se encarrega da situação, cessa a responsabilidade do criador origi-
nário do perigo por todos os resultados lesivos subseqüentes. Embora haja diver-
gências sobre o fundamento dessa regra112, parece claro que a imputação não é
cabível em razão da objetiva transferência na gestão do perigo, até porque nin-
guém duvida da validade da regra nos casos em que tal transferência não é
voluntária. O militar que dolosamente pratica ato de hostilidade contra país es-
trangeiro pode ter seu crime (art. 136 CPM) qualificado se dele resultar guerra
(§ 2°), porém jamais caberia imputar-lhe culposamente as mortes em combate de
todos os soldados. Os autores do atentado de Sarajevo em 1914 foram condena-
dos pelo magnicídio, mas - se não houvessem sido executados - não lhe seriam
imputáveis por culpa todas as de mortes ocorridas na primeira guerra mundial,
por eles provocada. A própria existência de figuras típicas complexas, especial-
mente crimes qualificados por certos resultados culposamente produzidos, indica
que as demais situações, a despeito de sobrevirem resultados lesivos, são atípicas.

VI. Tipo subjetivo na culpa consciente e temerária


1. Vimos que o tipo subjetivo culposo só dispõe de maior utilidade dogmática
na culpa consciente e temerária, precisamente para possibilitar sua adequada
111
Roxin, p. 341.
112
Cf. Roxin, p. 347, e Jescheck-Weigend, p. 288.
113
Cf. supra, § 34.

337
diferenciação do dolo eventual 113 ; apesar da existência de componentes subje-
tivos na culpa, estes integram a tipicidade conglobante, como pressupostos da
própria imputação objetiva. O tipo subjetivo culposo não é semelhante ao tipo
subjetivo doloso, pois não se concebe o erro de tipo como sua negação. Casos
que poderiam configurar erro de tipo afetam diretamente a tipicidade objetiva
conglobante, excluindo-a. Não se pode confundir essa tipicidade subjetiva com
a assimilação do tipo culposo aos tipos dolosos de perigo, que levaria à admis-
são da tentativa nos crimes culposos. A tentativa culposa permanece sendo
aquela monstruosidade lógica insustentável 114, na medida em que não se pre-
tenda que o tipo culposo seja um tipo doloso. A dominabilidade, como dado
objetivo da culpa consciente e temerária, significa que existe uma aparência
externa de plano criminoso, mas toda vez em que essa aparência não estiver
ratificada no plano da subjetividade, a tentativa será inconcebível. Não é que a
tentativa culposa seja impunível 115 , e sim que é inconcebível pretender a
punibilidade de uma ação porque tenha a finalidade de causar um resultado
que, por definição, não tem por finalidade causar. Para evitar essa contradição,
os partidários da teoria do dolo recorreram em seu momento a uma pretensa
culpa de proibição 11 6• Algo análogo se passa em tema de participação, que só
seria concebível analogamente à do tipo comissivo doloso na medida em que se
negasse originalidade estrutural ao tipo culposo 117. Bem ao contrário, diferen-
tes aportes culposos caracterizam hipóteses de autoria, e a participação com-
preende unicamente casos de dolosa colaboração no delito doloso de outrem 118•

2. Observou-se que na culpa existe sempre uma assimetria entre a repre-


sentação do sujeito e a realidade, o que também se dá na tentativa, embora de
forma inversa. Nesta linha de raciocínio sustentou-se também que invariavel-
mente a culpa abrange casos de erro ou de verdadeira cegueira diante dos
119
fatos • Dessas observações talvez se possa extrair a consequência de que
seria inútil construir um tipo subjetivo, pelo efeito excludente da própria tipicidade
objetiva que caracteriza o erro. Não obstante, é preciso manejar com cuidado
esses conceitos, pois o esquema da teoria do dolo ou da culpabilidade limitada
pode, por via oblíqua, nos conduzir à velha culpa iuris.

114
Ultimamente a rechaçou Trechsel, Stefan, Schweizerisches Strafrecht, p. 83.
m Jakobs a aceita de Jegeferenda (p. 394); somente para a culpa consciente, Jescheck-Weigend, p. 573.
116
Schõnke-Schrõder, pp. 482-483; Engisch, Karl, Tatbestandsirrtum und Verbotsirrtum bei
Rechtfertigungsgründe, p. 575.
117
Embora considerando-a impunível, admite participação Luzón Pena, Diego-Manuel, Derecho
Penal de la Circulación, p. 120; contra, Trechsel, Stefan, op. cit., p. 83; sobre este debate,
Giraldo Marín, Luis Carlos, 1, p. 528.
118
Nilo Batista, Concurso de Agentes, pp. 157 e 79 ss.; Heitor Costa Júnior, op. cit., pp. 111
ss.; Juarez Tavares, op. cit., pp. 420 ss.
119
Jakobs, p. 381.

338
§ 37. FIGURAS COMPLEXAS E VERSARJ JN RE JLLJCJTA
1. O princípio da culpabilidade ou da impunibilidade pela mera causação
objetiva do resultado obriga, no plano da tipicidade, a que não haja conduta
típica que não se subsuma aos conteúdos subjetivos que integram os conceitos
de dolo ou, pelo menos, de culpa. A violação desse princípio é tradicionalmente
designada por versari in re illicita, e tem por consequência a responsabilidade
objetiva, que a dogmática contemporânea se esforça para evitar, não só na
tipicidade subjetiva mas também na objetiva120: todos os esforços de desenvol-
vimento da tipicidade conglobante se situam neste marco. Reduzir os espaços
ao versari é um dos mais importantes compromissos do Estado de direito, vital
para sua sobrevivência. Inversamente, provém de interesses do Estado de po-
lícia toda a condescendência ou mesmo estímulo ao avançar do versari na
doutrina e na jurisprudência: os chamados crimes qualificados pelo resulta-
do 121 e os estados de inculpabilidade provocados pelo próprio agente.
Deste último embate do versari se tratará na culpabilidade122 •

2. Certas disposições legais abarcam uma complexidade de ações ou


aportam uma particular solução para casos que, à míngua de previsão expres-
sa, seriam resolvidos pelas regras do concurso formal, como se dá nas chama-
das figuras preterintencionais na tradição italiana123 ou combinações típicas
na alemã 124• O conceito de preterintenção (ou preterintencionalidade) cau-
sou enorme confusão, dentro da qual sustentou-se desde a existência de um

120
Roxin, p. 169; o percurso do versari e a preterintencionalidade nos comentaristas clássicos
em Cardenal Murillo, Alfonso, La responsabilidad por e/ resultado en derecho penal, pp.
118 ss.; também Patemiti, Cario, La Responsabilità Obiettiva nel Diritto Pena/e; Faria
Costa, J., Aspectos fundamentais da problemática da responsabilidade objectiva no direito
penal português.
121
Cf. Dolcini, Emilio, Dai/a responsabilità oggettiva ai/a responsabilità per colpa; Küpper,
Georg, Zur Entwicklung der erfolgsqualifizierten Delikte, p. 785; Luzón Pei'ía, pp. 531 ss.
122
Cf. infra, § 46.
123
Pannain, p. 445; Santoro, p. 415; Pagliaro, p. 415; Antolisei, p. 305; De Marsico, p. 309;
Chiossone, p. 104; Lanza, Yincenzo, Diritto Pena/e Italiano, l, pp. 124 ss.; lmpallomeni,
lstituzioni, p. 252; Carrara, Programma, § 271; Bettiol, p. 466; Santaniello, p. 149; Ferran-
do Mantovani, p. 306; Marco Boscarelli, p. 183; Canestrari, Stefano, L 'l/lecito Pena/e
Preterintenziona/e; Amelio, Pasquale, Le Fattispecie Penali Miste di Dolo e Colpa; Riccio,
Stefano,/ Delitti Aggravati dai/ 'Evento; Ardizzone, Salvatore,/ Reati Aggravati dai/ 'Evento.
124
Jescheck-Weigend, p. 370; Jakobs, p. 395; Freund, Georg, Strafrecht, p. 143. Sobre os
problemas gerados no âmbito da prova, Gómez Benítez, J.M., Causalidad, imputación y
cualificación por e/ resultado, p. 79. Mencionem-se ainda os trabalhos de Lieber, Max,
Ueber die durch den Erfolg qualifizierten Delikte; Gimbemat Ordeig, Enrique, Delitos
Cualificdos por e/ Resultado y Causalidad; Schunnann Pacheco, Rodolfo, E/ Delito Ultra o
Preterintencional.

339
dolo de preterintenção 125 ( ou preterdolo) até o cabimento de uma terceira for-
ma de culpabilidade 126, passando por abertas soluções de responsabilidade ob-
jetiva. Emanações dessa confusão introduziram para certas qualificadoras o
conceito de crimes qualificados pelo resultado.

3. Para superar essa enorme confusão em torno dessas figuras, impedindo


suas desastrosas conseqüências, é preferível admitir clara e lisamente que exis-
tem figuras complexas, entre as quais a) algumas combinam tipicidades
dolosas e culposas; e) outras, qualificam tipos dolosos pelo advento de
resultados dolosos mais graves; e, por fim, e) outras qualificam tipos culposos
por resultados culposos mais graves. Constitui princípio básico, neste terreno,
que em nenhuma hipótese se admitirá uma pena mais grave em razão de um
resultado que não tenha sido causado por dolo ou culpa, porque violaria
frontalmente o princípio da culpabilidade e consagraria uma inadmissível respon-
sabilidade objetiva. Tal princípio está expressamente proclamado no direito penal
brasileiro, desde a reforma da Parte Geral de 1984 (art. 19 CP).

4. Apesar desse princípio constituir a base irrenunciável para o tratamen-


to dogmático das figuras complexas, não se resolvem com ele todos os proble-
mas que delas podem derivar. Estabelecido o princípio, é preciso, diante da
figura complexa, verificar a qual das três modalidades, acima enunciadas, per-
tence ela. Às vezes isso é simples, como no homicídio preterintencional (art.
129, § 3º CP) 127, porém há casos onde não se encontram pautas interpretativas
tão claras, o que levou a colocar sua inconstitucionalidade 128 e a pretender que
em todos os casos caberia requerer, para a imputação do resultado mais grave,
ou culpa temerária 129 ou dolo 130• Foi igualmente observado, com razão, que a
pena não pode ser desmedidamente elevada pelo resultado culposo 131 • A drás-
tica majoração da pena do roubo quando seguido de morte (art. 157, § 3º CP)
conduziu a doutrina a considerar que a produção dolosa de tal resultado (latro-
cínio) integrava a figura 132 • Embora se trate de uma questão a aprofundar-se
na Parte Especial, no estudo individualizado de cada estrutura típica, a orienta-

125
Gómez, Eusébio, Tratado, li, pp. 95 ss., e I, p. 443; Magalhães Noronha, Do Crime
Culposo, p. 117.
126
Battaglini, Diritto Pena/e, pp. 244 ss.; Camaí\o Rosa, A., Régimen de la culpabilidad, p. 183.
127
Peris Riera, J.M., La preterintencionalidad.
121
Roxin, p. 277; Jakobs, p. 402; Lorenzen, Zur Rechtsnatur und verfassungsrechtliche
Problematik der erfolgsqualiflzierten Delikte, p. 168; Hirsch, Zur Problematik des
erfolgsqualifizierten Delikte, p. 65.
129
Roxin, loc. cit.; Jescheck-Weigend, p. 262.
130
Lorenzen, loc. cit.
111
Soler, II, p. 121.
132
Sobre essa questão, Heleno Fragoso, Jurisprudência Criminal, pp. 394 ss.

340
ção interpretativa fundante está fornecida pela Parte Geral, dos princípios que
regem o concurso aparente de tipos aos dispositivos que exigem pelo menos
culpa para a imputação de resultados lesivos que ultrapassam o tipo básico (art.
19 CP) e regulam o concurso fonnal de crimes (art. 70 e par. ún. CP).

5. Na legislação comparada a solução mais repressiva é aquela que pro-


põe o cúmulo aritmético das penas (concurso material de crimes). Tal solução
representa como que um limite superior que jamais pode ser excedido no trata-
mento das figuras complexas, porque aplicar uma pena superior à soma das
penas de todos os delitos concorrentes significaria impor alguma pena sem
delito. Este é o substancial fundamento da regra prevista no parágrafo único do
artigo 70 do Código Penal. Em todos os casos, é preciso estar atento para
impedir o versari. Ele pode apresentar-se quando se pretenda imputar ao feito
doloso todas as consequências que devem ser excluídas da tipicidade objetiva
em função da tipicidade conglobante: ao autor do roubo não pode imputar-se a
morte do co-autor em confronto com a polícia, por ter ele voluntariamente
assumido tal risco; tampouco responderá o sequestrador pela morte do refém
causada por disparos de policiais, porque o perigo estava sendo gerido pela
própria polícia; nem ao perseguido cabe imputar as lesões corporais decorren-
tes da queda que sofreu o policial na perseguição; etc. Frequentemente a
casuística corrente contradiz as regras estabelecidas para a imputação objetiva
3
do resultado 13 , embora não faltem iniciativas para estabelecer regras próprias
para a imputação ao chamado delito base. Assim, sustentou-se que um resul-
tado lesivo mais grave só pode ser imputado ao delito base: a) quando provém
134
diretamente da ação ; b) quando o resultado mais grave constituir consequência
13
característica do delito base 5; e) quando o resultado provier de circunstâncias
conhecidas pelo autor'36; ou d) se o resultado exprimir a realização de um risco
37
evidentemente gerado pelo delito base 1 . De modo geral, se o resultado lesivo
não configurar produto da própria conduta típica, e sim de uma ação negligente
que pode ser praticada em interações sociais atípicas, não cabe reconhecer a
figura complexa: no caso do refém que morre pela ingestão de alimento deteri-
orado, imprudentemente servido pelo sequestrador, é mais correto combinar o
crime de sequestro(art. 159 CP) com um homicídio culposo (art. 121, § 3ºCP),
pelo ângulo do concurso fonnal (art. 70 e seu par. ún. CP), do que reconhecer
a figura complexa do sequestro seguido de morte (art. 159, § 3° CP).

m Roxin, p. 278.
134
Cf. Maiwald, Zurechnungprobleme im Rahmen erfolgsqualifizierter Delikte, pp. 439 ss.
m Jakobs, pp. 399 ss.; Geilen, em Fest.j Lange, p. 219; Küpper, Der unmittelbare Zusamenhang
zwischen Gr11ndelikt und schwerer Folge; Hirsch, em Fest.j Oehler, pp. 111 ss.
16
i Horn, Kommentar, § 226, nº 11.

tn Wolter, Zur Struktur, cit., p. 168.

341
342
CAPÍTULO XVII

TIPOS OMISSIVOS

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346
• § 38. FUNDAMENTOS DA OMISSÃO PENAL
1. A omissão típica
l. Ao lado das estruturas típicas comissivas (ou ativas) dolosa e culposa,
existe também uma estrutura típica omissiva1• Enquanto no tipo comissivo
doloso a tipicidade é constatada pela identidade entre a conduta realizada e
aquela descrita no tipo legal, no tipo omissivo busca-se a tipicidade na diferen-
ça entre a conduta realizada e aquela descrita2. Em função de duas técnicas
legislativas distintas, empregadas para individualizar condutas criminalizadas, a
norma deduzida de um tipo comissivo assume um enunciado proibitivo, en-
quanto a norma deduzida de um tipo omissivo assume um enunciado prescritivo.
Decorre daí que no tipo omissivo estejam proibidas todas as ações diferentes
daquela prescrita, ou seja: será típico qualquer outro agir (aliud agere) distinto
daquele ordenado pela norma, tese que foi exposta por Luden no século XIX3 .
Tal tese foi objeto de histórico debate, argumentando-se que a ação diferente
da prescrita não causava o resultado\ o que colocava problemas que o saber
jurídico daquela conjuntura, para o qual a imputação do resultado se fundamen-
tava na pura causalidade da conduta, não ofereceria soluções. A tese do aliud
agere foi retomada na Itália5 e mais tarde na Alemanha6, quando o redimensio-
namento teórico da causação física o permitiu.

2. A norma deduzida do tipo comissivo, enunciada proibitivamente, e a


norma deduzida do tipo omissivo, enunciada prescritivamente7, não podem
transvasar-se livremente, porque a conversão de um enunciado proibitivo num

Kaufmann, Armin, Die Dogmatik der Unter/assungsdelikte; Welzel, p. 211; Bacigalupo,


Delitos Jmpropios de Omisión; Novoa Monreal, Eduardo, Fundamentos de los Delitos de
Omisión; Cadoppi, Alberto, li Reato Omissivo Proprio; Grasso, Giovanni, li Reato Omissivo
improprio; Silva Sánchez, Jésus Maria, E/ Delito de Omisión; Fiandaca, Giovanni, li Reato
Comissivo mediante Omissione; Struensee, Eberhard,Act11ar y Omitir; Munhoz Netto, Alcides,
Os crimes omissivos no Brasil; Bierrenbach, Sheila de Albuquerque, Crimes Omissivos Im-
próprios; Tavares, Juarez, As Controvérsias em tomo dos Crimes Omissivos; Fragoso, Heleno,
Crimes omissivos no direito brasileiro; Costa Júnior, Heitor, Teorias acerca da omissão.
2 Bacigalupo, pp. 22 ss.
3
Luden, Abhand/11ngen, li.
4
Krug, Commentar zu dem Strafgesetzbuch fiir das Kõnigreich Sachsen; do mesmo, Über
Unterlass11ngsverbrechen; von Rohland, Die strajbare Unter/assung.
5 Antolisei, Francesco, L ·azione e/ 'evento nel reato, embora tenha posteriormente mudado de
opinião (Man11ale, p. 170).
6 Kaufmann, Armin, op. cit.
7
Kaufmann, op. cit.; Bacigalupo, p. 96; outra opinião em Kelsen, Hauptprobleme der Staatsre-
chtslehre, p. 669.

347
enunciado prescritivo implica uma amplitude muito maior, e às vezes inusitada,
do original alcance proibitivoª. O que é possível fazer, sem risco de ampliar o
conteúdo da proibição, é reduzir todos os enunciados prescritivos a proibi ti vos:
se se ordena uma conduta, proíbem-se todas as que sejam diferentes ( o inverso
não é sempre admissível). Essa possibilidade de redução enunciativa é que
permite determinar a matéria da proibição nos tipos omissivos.

3. A restrição nas reduções recíprocas dos enunciados não tem caráter


lógico, mas provém de limitações da linguagem (não matarás não é idêntico a
velarás pela vida do próximo) que não podem ser eludidas perante exigênci-
as do princípio de reserva, cuja estrutura privilegia primariamente o enuncia-
do proibitivo da norma deduzida do tipo, e só por exceção admite o prescritivo9 •
Parece evidente a incompatibilidade com o princípio da reserva de uma Parte
Especial integrada em sua totalidade, ou amplamente dominada, por tipos
omissivos. Esta excepcionalidade, fundada em limitações da linguagem e deri-
vada de normas de hierarquia superior, é que impede a assimilação das estrutu-
ras omissivas às comissivas, como se pretendeu na doutrina neokantiana 10 ou,
em outro extremo, a redução das comissivas às omissivas 11 , o que se aproxima
perigosamente da atual posição sistêmica, que identifica ação e comissão no
dever de assegurar ou evitar que da organização de uma pessoa não derive um
risco proibido (deveres de salvamento por ingerência) 12.

4. A construção de um injusto para a omissão remonta a Schopenhauer,


quem o fazia de forma análoga à do pensamento sistêmico contemporâneo,
pois para esse filósofo a exigência da justiça seria não lesionar outrem (daí que
o injusto fosse a negação de algo negativo). Com tal concepção o injusto é
construído de modo particular: dever é uma ação cuja omissão lesiona ou-
trem, ou seja, introduz um injusto. Manifestamente, isto só é possível quando
o omitente se havia comprometido com aquela ação 13•

1
Cadoppi, Alberto, li reato omisivo proprio, t. I, p. 375.
9
Sobre a impossibilidade da equivalência, Capella, Juan Ramón, Elementos de analisisjurídico,
p. 68.
10
A favor de tal assimilação desde o plano ético, Nino, Carlos Santiago, em LL, 1976-C, pp.
801 ss.; Farrel, Martin D., Privacidad, autonomia y tolerancia, pp. 156 ss
11
Jakobs, p. 941; Herzberg, Ralf Dietrich, EI delito comisivo doloso, pp. 41 ss.; Sánchez-Vera
Gómez Trellez, Javier, em ADPCP, 1995, p. 207; contra tal identificação Silva Sánchez,
J.M., EI delito de omisión, pp. 175 ss.
12
Abrangendo também deveres de salvamento institucional e aquelas situações nas quais o
agente que cria o perigo o faz convicto de que ele será seguramente conjurado, o que é
denominado assunção de domínio do risco (Jakobs, La competencia por organizacíón en e/
delito omisivo, pp. 351 ss.; também Bacigalupo, Enrique, Princípios, p. 406).
u Cf. Engisch, Aufder Suche, pp. 89-90.

348
5. Do ponto de vista do direito em geral, é possível observar que um
ordenamento jurídico que prescreve ações invoca em princípio mais solidarie-
dade social do que outro que se limite a proibi-las 14• Tal afirmação, válida para
o direito em geral, só pode ser trasladada para a programação criminalizante
ao preço de ignorarem-se completamente os dados da realidade operativa dos
sistemas penais: a seletividade converte, na prática, todos os crimes em delicta
propria ( concretamente puníveis na medida que se apresente um autor que
corresponda ao estereótipo criminal 15); nos delitos impróprios de omissão, a
correspondência ao estereótipo constituirá a verdadeira fonte da posição
de garantidor; o paroxismo da seletividade expandiria esse mecanismo até
viabilizar essa correspondência como fonte da posição de garantidor em qual-
quer delito, o que conduziria a tese dos deveres de salvamento por ingerên-
cia 16 ao insólito patamar de exigir da pessoa estereotipada o dever de evitar o
próprio estereótipo ( o estado de vulnerabilidade). Longe de refletir um
ordenamento jurídico mais solidário, chegar-se-ia a um exercício de poder
punitivo quase exclusivamente sobre aqueles que receberam menos solidarie-
dade, ao mesmo tempo em que se neutralizariam as prescrições para aqueles
que efetivamente poderiam transformar as relações sociais.

li. Inexistência da omissão pré-típica


1. A adoção da teoria do aliud agere tem como consequência negar a
existência, em nível pré-típico, de omissões penalmente relevantes: nesse nível,
só existem ações. A omissão não é puro e simples nada fazer (omissão não
é ausência de ação) 17• Como a omissão não é mera não-ação, e sim um não
fazer algo (não há omissão de nada), será sempre indispensável referenciá-la
valorativamente: o conceito de omissão é necessariamente normativo 18 •
Quando se prescinde da indispensável referência normativa, incide-se no apa-

14
Cf. Novoa Monreal, op. cit., p. 30. Tem interesse especial para nós o debate político-
criminal que, sobre o tema, Novoa Monreal estabeleceu com Alcides Munhoz Netto (pp.
27 e 57). Sobre o uso histórico da criminalização omissiva por Estados autoritários, Cadoppi,
Alberto, op. cit., v. l, pp. 184 ss.; doutrina e legislação nazistas tendiam a ampliá-la (Grasso,
Giovanni, op. cit., p. 172); de suas "conexões óbvias com regimes autoritários" falam
Ricardo Andreucci e David Azevedo (Omissão e política criminal, p. 76).
,i Cf. supra§ 29; cf. § 2º, 1 e li (v. 1, pp. 43 ss).
16
Jakobs, op. cit., pp. 352 ss.; do mesmo, Tratado, p. 948.
17
Androulakis, Nikolas K., Studien zur Problematik der unechten Unterlassungsdelikte, p. 47.
11
Kaufmann, pp. 17 ss.; Capella, Juan Ramón, Elementos, pp. 67 ss.; Fragoso, Crimes
omissivos, cit., p. 44; Heitor Costa Júnior, Teorias, cit., p. 71; Juarez Tavares, As Contro-
vérsias, cit., p. 30.

349
rente paradoxo de que "a omissão é uma ação", que se dissolve perante a
adequada distinção entre pragma e tipo e, portanto, adverte para que a omis-
são constitui uma forma típica de proibir ações. Em síntese, a) no plano
pré-típico só existem ações, enquanto b) no plano típico existem duas estrutu-
ras: b.a) uma que proíbe as condutas que descreve (comissiva ou ativa) e b.b)
outra que proíbe as condutas distintas daquela que descreve (omissiva) 19•

2. Não foi este o entendimento que orientou o desenvolvimento dogmático


do assunto. Partindo da concepção naturalista dominante, reforçada no Brasil
pela tradução de von Liszt, quem via na ação uma inervação muscular2°,
entendeu Beling que a omissão seria uma distensão muscular2 1. Radbruch
renunciou a um critério unitário de ação porque chegou a negar a voluntariedade
na omissão22 • Algo similar fez M.E.Mayer subtraindo a omissão culposa do
conceito de ação 23 • Não seria dificil, na falta de um conceito básico unitário, a
desaparição do conceito de ação como tal e sua substituição pelo tipo, o que
ocorreria anos depois com a ação realizadora do tipo nas variantes de
Radbruch e Beling, que se coroaria com a pretensão de Gallas 24. Radbruch
procurou apoiar-se em afirmações de von Liszt, quem pretendia sem dúvida
uma base unitária25 • A pretensão de conciliar o inconciliável não pode obter
êxito. Se se parte da existência pré-típica da omissão - como se pretende - é
ineludível dispor de uma referência valorativa. Nenhum problema pareciam ver
nisso os partidários da desacreditada teoria da ação esperadcr6 . Para eles,
havia omissão quando o sujeito não realizava uma ação esperada, mas a per-
gunta que se impunha era quem a esperavd 7• Era inadmissível que fossem as
pautas culturais, porque conduziria a uma pré-iluminista eticização do direito;
tampouco poderia ser o ordenamento jurídico, para o qual as ações não são
esperadas e sim devidas, confundindo-se portanto níveis de análise. Maurach
buscou uma solução através da consideração da ação na omissão como mera

19
Não aceita um conceito supracompreensivo de ação Roxin, p. 185; no mesmo sentido, Huerta
Tocildo, Suzana, Problemasfundamentales; também em CPC, 1982, pp. 281 ss.; para mais
pormenores, cf. supra§ 27.
20
Von Liszt, Franz, Tratado de Direito Penal Allemão, trad. José Hygino Duarte Pereira, Rio,
1899, ed. F. Briguiet, t. I, p. 198.
21
D.L. v. Verbrechen, p. 15.
22
Der Handlungsbegriff, pp. 132-133.
23
Mayer, M. E., 1923, pp. 109- 11 O.
24
Radbruch, Zur Systematik der Verbrechenslehre, pp. 158 ss.; do mesmo, Handlungsbegriff,
pp. 151-166; Gallas, Zum gegenwãrtigen Stand; do mesmo, Strajbare Unterlassen im Fali
einer Selbst6tung, p. 649.
25
Lehrbuch, pp. 105-106; na tradução brasileira, v. I, pp. 193 ss.
26
Mezger, Lehrbuch, 1949, pp. 130 ss.
27
Mayer, M. E., 1923, p. 108.

350
categoriajurídica28, o que significava uma dicotomização do próprio conceito
de ação, por essa via entendida como realidade nos tipos comissivos e como
categoria jurídica nos omissivos. Ante essa disjuntiva, pretendeu-se ampliar o
conceito de conduta humana até limites inaceitáveis, afetando assim a base
unitária, como por exemplo Michaelowa29, para quem conduta seria a resposta
do ser humano ao mundo exterior. A amplitude deste conceito, análogo ao de
Androulakis, é insustentável, por disfuncional para o nullum crimem sine
conducta3°, perdendo assim seu objetivo e utilidade teórica.

3. Contra o aliud agere pode-se ainda argumentar que a conduta efetiva-


mente realizada seja por completo ajustada a direito e inofensiva. Não conven-
ce o argumento: quem admite a existência de omissão pré-típica, o faz
inscrevendo a conduta humana numa constelação situacional na qual a omissão
é um dos caminhos reativos. Ora, a função do tipo é capturar descritivamente
tal constelação situacional e, dentro dela - e não de outra qualquer - valorar a
ação efetivamente realizada. Brincar com torrões de açúcar é ajustado a direi-
to e inofensivo, não quando o folguedo é empreendido pelo futuro herdeiro da
tia rica que, a um metro de distância, está morrendo em plena crise de
hipoglicemia. Ninguém pode pretender seja inofensiva a tão ridicularizada cer-
zidura das meias quando o filho da costureira esteja morrendo de fome no
berço. O tipo capta um marco situacional e, dentro dele, desvalora unicamente
aquilo que pode desvalorar: uma ação.

28
Maurach, pp. 577 ss.; opinião idêntica em Cousifio Maclver, p. 476.
29
Michaelowa, Klaus, Der Begrijf der strafrechtlichen Handlzmg, p. 85.
30
Androulakis, Studien, p. 52; contra, Bacigalupo, op. cit., p. 65.

351
§ 39. ESTRUTURA DO TIPO OMISSIVO
I. O tipo objetivo sistemático
1. Tanto quanto o tipo comissivo ou ativo, também o omissivo apresenta
um aspecto objetivo e outro subjetivo, ambos com características peculiares
que decorrem de sua específica estrutura. O tipo omissivo, em sua função
objetivo-sistemática, é integrado por todos os elementos que devem estar pe-
culiarmente abarcados pela consciência, pela cognoscibilidade ou pela vontade
do sujeito. Já em sua função objetivo-conglobante, o tipo se compõe com os
requerimentos de conflitividade (lesividade) e dominabilidade.

2. Antes de mais nada, o tipo objetivo sistemático deve captar uma con-
juntura relacional objetivo-social que tecnicamente se chamará situação típi-
ca 31 • O encontro com uma "criança abandonada ou extraviada" é uma das
situações típicas captadas pelo tipo omissivo denominado omissão de socorro
(art. 135 CP). Apenas diante da situação típica a ação preconizada pelo tipo
passa a ser devida, dado que todos os tipos omissivos são circunstanciados,
e da presença dos elementos integrantes da situação típica depende a vigência
da norma prescritiva deduzida. Tal característica confere à análise dos elemen-
tos da situação típica uma prioridade analítica irrecusável.

3. O núcleo do tipo objetivo reside numa conduta diferente daquela


ordenada pela norma prescritiva, a ser exteriorizada pelo sujeito. Em todos os
crimes omissivos existe uma conduta ordenada. Serão típicas todas as condu-
tas que não tendam à realização do fim prescrito (enquanto nos tipos ativos ou
comissivos será típica a conduta que tenda à realização do fim proibido). É
indiferente que a conduta tendente à realização do fim prescrito logre efetiva-
mente realizá-lo: caso o sujeito, embora desenvolvendo a conduta ordenada,
não consiga evitar a afetação do bem jurídico, não haverá omissão dolosa,
podendo talvez havê-la culposa 32•

4. Deve o omitente dispor da possibilidade de agir, ou seja, da efetiva e


concreta oportunidade de realizar a conduta ordenada: caso contrário, sua condu-
ta, embora diferente daquela ordenada (aliud agere) será atípica. Cabe distinguir
a falta da possibilidade de agir daqueles casos nos quais se fala de ausência de
ação33 porque nesses últimos o sujeito está impedido de realizar qualquer ação
31
Welzel, p. 204; Jescheck-Weigend, p. 615; Jakobs, pp. 944 ss.; Struensee, pp. 44 ss.
32
Welzel, p. 206; Kaufmann, pp. I 09 e 133; Munhoz Netto, p. 32.
31
Cf. supra § 36.

352
(inconsciente, comatoso, manietado e amordaçado por coação física irresistível
etc), enquanto o omitente impossibilitado de agir pode realizar ações diferentes
da ordenada, porém por impedimento físico irremovível não pode realizar a con-
duta ordenada (a mãe que não sabe nadar não tem como salvar o filho que está
se afogando na praia traiçoeira e deserta). Quando o sujeito pode realizar ações
de igual natureza daquela ordenada, porém estas seriam ineficazes para evitar a
afetação do bem jurídico, o problema-cuja solução convocará um juízo hipotéti-
co - se desloca do tipo objetivo sistemático para o tipo objetivo conglobante.
Assim, cabe reconhecer ausência de ação quando alguém não salva outrem por
ter desmaiado: aqui, nada temos para submeter ao juízo de tipicidade objetiva.
Teremos, sim, atípicidade objetiva sistemática no caso da mãe que não sabe na-
dar. E o problema se deslocará para o tipo objetivo conglobante quando o omitente
sabe nadar e não o faz: aqui, a questão residirá em saber se, diante das condições
do mar e da distância de quem está se afogando, o omitente teria conseguido
chegar à vítima a tempo de salvá-la. A exigência da possibilidade de realizar
condutas de igual natureza daquela ordenada constitui elementar requisito jurídi-
co, pois é inadmissível que se ordene aquilo que é fisicamente impossível realizar.
O direito antigo conhecia essa limitação: Nihil peti potest ante id tempus, quo
per rerum naturam persa/vi potest; ultra posse nemo obligatur4 •

5. Talvez o tema que mais provocou confusões tenha sido a causalidade


da omissão. Na tipicidade omissiva não existe um nexo de causalidade,
justamente porque deve existir um nexo de evitação. O resultado típico sempre
há de proceder de uma causa, porém tal causa, na estrutura típica omissiva,
não é introduzida pelo omitente. Aqui, ao contrário do que se passa na estrutura
típica ativa (ou comissiva), o sujeito não interpõe a ação que teria interrompido
a causalidade em marcha que deságua no resultado. A relevância típica da
causalidade no tipo objetivo omissivo não provém do nexo de causalidade e sim
do nexo de evitabilidade. Não há inconveniente algum nesta solução, desde que
se assuma a causalidade como um dado do ser. Tal solução é sem dúvida
superior àquela postulada pelo idealismo que, tomando a definição de causali-
dade como conceito de relação, pretende obter um critério imputativo na veri-
ficação de que, houvesse o sujeito realizado a conduta ordenada, o resultado
não teria ocorrido35• Quando a causalidade é entendida como categoria do ser,
a conclusão inevitável é que não há nexo de causalidade entre a conduta proi-
bida (aquela efetivamente realizada pelo sujeito) e o resultado lesivo36 : suprimi-

3
~ Cf. Engisch, Aufder Suche, p. 239. Impossibilium nu/la obligatio est (D. L, XVII, 185 [ 145]).
35
Weber, Bemerkungen zur Lehre vom Handlungsbegriff, p. 328; no mesmo sentido, entre outros,
Engisch, Diefina/e Handlungsbegriff, p. 163; Wolff, E.A., Kausalitiit von Tun und Unter/assen, p.
33; Mezger,Lehrbuch, 1949,pp. 111-112; Mezger-Blei,p. 71; Sauer, Allg. Strafrechtslehre,p. 70.
36
Maurach, p. 588; Welzel, p. 42.

353
da mentalmente tal conduta, o resultado sobreviria igualmente. Portanto, na
estrutura típica omissiva não se exige causalidade. Embora tanto o nexo de
causação quanto o nexo de evitação se baseiem no princípio causal, cumprem
tarefas distintas: enquanto, nos tipos comissivos ou ativos, o nexo de causalida-
de se determina constatando que com a hipotética supressão da conduta proibi-
da o resultado não teria ocorrido, nos tipos omissivos o nexo de evitabilidade
se determina constatando que com a hipotética realização da conduta
ordenada o resultado teria sido evitado. Assim, o nexo da evitação cons-
titui, na tipicidade omissiva, o equivalente típico do nexo de causalidade
na tipicidade ativa ou comissiva. Ambos constituem artefatos teóricos
sediados no tipo que facultam o uso da causalidade para fins de individualizar a
conduta proibida.

6. Seja tratado como um problema de causalidade, seja como um critério


verificador imposto pelo tipo omissivo, há coincidência prática em que a ação
não será típica sempre que, substituída hipoteticamente a conduta reali-
zada pela devida, o resultado também se houvesse produzido 31• Para aqueles
que trabalham a causalidade como categoria jurídica ou lógica, essa verifica-
ção permite afirmar a presença de causalidade na omissão; os que compar-
tilham posições mais realistas falarão de causalidade potencial ou
hipotética, ou seja, de mera possibilidade de causação. As divergências
sobre o objeto do juízo hipotético conduzem a designações díspares: a doutrina
austríaca se referiu a quase-causalidade38 , embora logo Kienapfel tenha alu-
dido à própria causalidade na estrutura omissiva39; Soler mencionou uma in-
versão da relação causarº; Stratenwerth falou de causalidade hipotética e
Armin Kaufmann de causalidade potencial; Welzel fez referência a uma
fórmula causal eurística e à possibilidade física de evitar o resultado41 •

ll Classificação dos tipos omissivos


l. Há tipos nos quais a estrutura omissiva não guarda correspondência
com uma análoga estrutura ativa ou comissiva, de sorte que a norma deles
deduzida é sempre prescritiva. São tipos cujos sujeitos são indiferenciados, po-

n Stratenwerth, p. 282; Kaufmann, p. 57; Cadoppi, A. e Veneziani, P., Elementi, p. 224;


Munhoz Netto, p. 17; Heleno Fragoso, Conduta Punível, p. 51; Juarez Tavares, p. 56;
pioneiro entre nós, Tobias Barreto, p. 188 (incorporando Glaser}.
11
Nowakovski, F., p. 49; Rittler, Th., p. 111 ; Freund, Georg, p. 54.
9
J Kienapfel, p. 91 .
~ Soler, v. I, p. 306
41
Welzel, p. 212; Juarez Cirino dos Santos, Direito Penal, p. 207.

354
<lendo pois ter como autor qualquer pessoa que se encontre na situação típica,
porque o dever de agir provém da mera condição de cidadão, e não de particu-
lares relações jurídicas. São eles os usualmente chamados crimes omissivos
próprios (p. ex., art. 135 CP), pouco frequentes na legislação penal42.

2. Ao contrário desses, a doutrina denomina crimes omissivos impróprios


aos delitos cuja estrutura guarda correspondência com outra, comissiva, com a
qual se equipara. Como consequência de que a estrutura omissiva é equiparada à
estrutura comissiva, exige-se na omissão imprópria uma afetação do bem jurídico
que seja equivalente à afetação na tipicidade ativa (comissiva). Os autores são
aqui sempre qualificados, pois a lei não se limita a construir tipos enunci-
ando a norma deduzida prescritivamente, e sim, devido ao maior espectro
proibitivo dessa formulação, restringe o círculo de autores às pessoas que
se encontrem numa particular relação jurídica que se considera fonte da
obrigação na situação típica.

3. A classificação dos tipos omissivos não foi uniforme ao longo dos últi-
mos cento e cinquenta anos, e continua assim. O recurso a múltiplos critérios
classificatórios gerou um panorama intricado no qual frequentemente denomi-
nações coincidiam e conceitos dissentiam. Entre os múltiplos critérios
classificatórios utilizados citem-se o enunciado da norma, a qualificação (em
posição de garantidor) ou não do autor, a mera atividade contra a exigência de
um resultado, a equivalência com um tipo comissivo, o suporte escrito contra o
modelo aberto-integrativo etc43 • O critério distintivo observado aqui entre cri-
mes omissivos próprios e impróprios é sustentado por Jescheck, Stratenwerth,
Pfander, Schwarz44 etc. Tem um conteúdo positivista a distinção calcada em
que os crimes omissivos próprios estão expressamente previstos na lei, ao con-
trário dos omissivos impróprios45 • É muito generalizado, por sua simplicidade, o
critério que busca o paralelismo da omissão própria com os crimes comissivos
de mera atividade e da omissão imprópria com os crimes comissivos de resul-
tado material46 • Convém ter presente que do fato de, nos crimes omissivos

42
Nas pegadas de Bobbio, trata de uma função promocional deles Cadoppi, A.,// reato... , v.
I, pp. 376 ss.
43
Jakobs, p. 944; Schünemann, Omisión e imputación objetiva, pp. 1I ss.; Muiioz Conde-
García Arán, p. 254; Silva Sánchez, p. 319.
44
Jescheck-Weigend, p. 605; Stratenwerth, p. 270; Pfander, Heinz, Die Rechtspflicht zum
Handeln aus Vertrag unechten Unterlassungsdelikte, p. 64; Schwarz, Joachim, Die
Unterscheidung zwischen echten und unechten Unterlassungsdelikte.
,s Kaufmann, p. 206; Welzel, p. 202; Schõnke-Schrõder, p. 30.
46
Blei, p. 273; Sheila Bierrenbach, p. 23; Cezar Bitencourt, Tratado, v. I, p. 235; Regis Prado,
Curso, v. I, p. 310, Miguel Reale Júnior, Instituições, v. I, p. 223; Paulo Queiroz, Direito
Penal, pp. 174-175.

355
impróprios, procurar-se uma equivalência entre a omissão e a ação 47 , sendo a
respeito significativa a designação corrente de crimes comissivos por omis-
são, não significa que a norma violada seja proibitiva nem que sua estrutura
seja assimilável à dos crimes comissivos. Em todos os delitos omissivos a nor-
ma violada é prescritiva (em sentido estrito, imperativo, mandamental), e toda
iniciativa para contrapor uma omissão a uma norma proibitiva parece condena-
da ao fracasso 48 • Mesmo entre os autores que compartilham o critério
classificatório escolhido, ou seja, o da equiparação com a conduta que produz a
afetação do bem jurídico nos tipos omissivos impróprios, há quem se valha do
paralelismo omissão própria - crimes de mera conduta e omissão imprópria -
9
crimes de resultado material, como Jescheck-Weigenl • Registre-se que o
decisivo não é a produção de um resultado material, mas sim a equiparação à
conduta que viola a norma proibitiva (a conduta que viola a norma preceptiva é
equiparada àquela que viola a norma proibitiva, e por isso se exige a mesma
afetação - em termos de dano ou de perigo - do bem jurídico e, tão somente
quando o tipo assim requer, que a conduta condicione o resultado material típi-
co). Nos crimes omissivos próprios essa equiparação não existe e isto nada
tem a ver com o resultado material 5º; apenas e simplesmente não estão equipa-
radas as condutas (na omissão de socorro- art. 135 CP-a conduta do omitente
não se equipara à conduta de quem comissivamente abandona a criança - art.
133 CP -, como as respectivas escalas penais ajudam a demonstrar).

4. A nota diferencial dos crimes omissivos impróprios consiste em que, ao


postular-se uma estrutura equiparável ou equivalente à dos correspondentes
crimes comissivos ou ativos, seus autores devem manter, em relação ao bem
jurídico afetável, aquilo que a doutrina chama de posição de garantidor
( Garantenstellung). A posição de garantidor foi originalmente concebida como
um componente não escrito que se agregaria ao correspondente tipo cornissivost ,
porque se considerava que a omissão imprópria violava uma norma proibitiva,
tendo mais tarde a opinião doutrinária confluído na direção contrária (as omis-
sões sempre violam mandados normativos52), observando-se com razão que

47
Baumann, p. 266; Hippel, II, pp. 153 ss.; Rudolphi, Hans-Joachim, Die
G/eichstellungsprob/ematik der unechten Unter/assungsde/ikte und der Gedanke der
Ingerenz, pp. 93-94; Fontán Balestra, I, p. 455.
41
Schilnemann, Bemd, Grund und Grenzen der unechten Unter/assungsdelikte, pp. 44-45;
Kaufmann, pp. 257 ss.
49
Op. cit, p. 606.
50
Schilnemann, Die G/eichstellungsproblematik, p. 44.
" Nagler, Die Prob/ematik der Begehung durch Unterlassung.
n Welzel, p. 211; no mesmo sentido Grilnwald, Zur gesetzlichen Regelung der unechten
Unterlassungsdelikte, p. 412; Kaufmann, p. 251; Busch, Zur gesetzlichen Begründung der
Strajbarkeit unechten Unter/assen, p. 192.

356
sempre que tal elemento for requerido já o tipo será outro, será um tipo de
mandado de garantidor53. O critério aqui sustentado a respeito dos crimes
omissivos impróprios abandona toda consideração que os remeta a uma
subclasse ou apêndice dos crimes comissivos para tratá-los, ao lado dos crimes
omissivos próprios, como categoria delitiva estrutural independente54, introdu-
zindo a distinção entre omissões de qualquer pessoa ( omissão própria) e
omissões de garantidores (omissão imprópria)55•

Ili. Problemática dos tipos omissivos impróprios não escritos;


dever de agir e garantidor
1. É entendimento dominante que como os tipos omissivos impróprios não
estão todos escritos, ojuiz deve complementá-los, individualizando as caracterís-
ticas dos autores conforme os modelos legais dos que se encontram escritos:
dessa forma, os tipos omissivos impróprios não escritos seriam tipos aber-
tos, como os tipos culposos. Nos tipos omissivos impróprios escritos a posição
de garantidor (a delimitação do círculo de possíveis autores) está definida na lei,
como se pode constatar por exemplo na modalidade omissiva de maus-tratos
(art. 136 CP)56. Até a reforma da Parte Geral de nosso Código Penal, ocorrida
em 1984, precisaríamos, nos tipos omissivos impróprios não escritos, recorrer a
critérios gerais que a doutrina, desde o início do século XIX, elaborou para a
captura dogmática da posição de garantidor. Com a introdução do § 2° do artigo
13 do Código Penal, promovida por aquela reforma, passamos a integrar o peque-
no mas expressivo grupo de países cuja legislação dispõe expressamente sobre a
posição de garantidor (o modelo foi o art. 13 do CP alemão, sendo a solução
também adotada pelo art. 2º do CP austríaco, art. 11 do CP espanhol e art. 1Odo
CP portuguêsf. Nossa lei adotou, temperando-o, o clássico critério formal, que
situa na lei, no contrato e na conduta perigosa anterior (ingerência) as fontes do
53
Welzel, loc. cit.
54
Kienapfel, Diethelm, Aktuelle Prob/eme der unechten Unterlassungsdelikte, p. 79
55
Idem, ibidem; também Schmidhauser, p. 523.
56
Ar/. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade guarda ou
vigilância, para fins de educação, ensino, tratamento ou custódia(. ..) privando-a de ali-
mentação ou cuidados indispensáveis (...). Para o tratamento teórico deste delito omissivo
pela doutrina brasileira, cf. Nilo Batista, Novas Tendências do Direito Penal, pp. I 64 ss.
57
Sobre a cláusula do CP espanhol, Silva Sánchez, La comisión por omisión, p. 40; vendo no
art. 13 do CP alemão um mandado de analogia de duvidosa constitucionalidade, Seelmann,
Kurt, em Nomos Kommentar zum StGB, § 13, § 5°; a introdução da cláusula desde a Alemanha
e a Áustria e a reserva da jurisprudência belga em Tulkens, Françoise - von der Kerchove, M.,
lntroduction au Droit Pénal, p. 224; crítica ao art. 40 do CP italiano por ofensa ao princípio
da taxatividade em Contento, Gaetano, Corso di Diritto Pena/e, p. 91; cf. o art. 15 do CP
uruguaio; até nos Estados Unidos da América, cf. Sect 2.01 III, b do Model Penal Code.

357
dever de agir, nos seguintes tennos: "o dever de agir incumbe a quem: a) tenha
por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra fonna, assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado; e) com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do resultado" (art. 13, § 2° CP).

2. Nessa corrente legislativa, é comum que se procure estabelecer no texto


legal uma equiparação entre a omissão e a ação, criando assim por um lado uma
cláusula de equivalência a qual, por outro lado, funciona como cláusula de cor-
respondência que introduz um corretivo para a posição de garantidor, útil para
casos em que a conduta não exprima um conteúdo de injusto (desvalor) equiparável
ao da tipicidade ativa58• Se original.mente a cláusula de equivalência procurava
resolver o irremissível deficit causal da omissão (como no art. 40 do CP italiano),
ela permite hoje uma leitura redutora diante de casos nos quais, embora o obrigado
não tenha agido, a equiparação entre sua omissão e a obtenção cornissiva do resul-
tado seja valorativamente inadmissível 59. Na disciplina brasileira da matéria60 cabe-
ria falar em omissão irrelevante também nesses casos (ao lado daqueles em que
o sujeito não é garantidor e daqueles em que, embora garantidor, não displlllha da
possibilidade tisica de agir: "a omissão é penalmente relevante quando o omitente
devia e podia agir para evitar o resultado" - art. 13, § 2° CP). Contudo, para
contornar violações do princípio da legalidade que sempre rondam a integração
judicial de estruturas típicas, deveria o legislador, na Parte Especial, assim como fez
quando habilita a modalidade correspondente culposa, assinalar expressamente os
tipos ativos que admitiriam a fonna omissiva imprópria61 •

3. O critério do dever jurídico formal, tendo por fontes a lei, o contrato e a


ingerência (atividade precedente perigosa para o bem jurídico) tem sido doutrinari-

51
Freund, Georg, Strafrecht, p. 181; Antón Oneca, José, Derecho Penal, p. 196; Vives Antón,
Tomás S., Comentarias, p. 84; Gimbemat Ordeig, Enrique, Comentarios, pp. 437 ss.; para
Silva Sánchez, a chave dessa correspondência está na organização do risco não permitido da
própria esfera à alheia como violação de um compromisso de atuar como barreira de
contenção de riscos ( Comentários, pp. 470 ss.); próximos, Frias Caballero, Jorge - Codino,
Diego - Codino, Rodrigo, Teoría dei Delito, p. 206.
59
Mais do que a "mera equivalência", Juarez Tavares postula "a afirmação da identidade entre
a não execução da ação possível para impedir o resultado e o conteúdo social de sentido do
delito comissivo correspondente" (As Controvérsias, p. 79).
60
O Anteprojeto Alcântara Machado continha expressa cláusula de equivalência, inspirada no
art. 40 do CP italiano. Tal cláusula foi considerada redundante pela Comissão Revisora, de
vez que o art. 11 disciplinava a imputação do resultado por uma causalidade (teoria da
conditio) que emparelhava a omissão à ação: a equivalência funcional supriria, assim, uma
formal declaração de equivalência. Cf. Nelson Hungria, Comentários, v. I, pp. 69-70; Miguel
Reale Júnior, Instituições, v. I, pp. 257-258.
61
Alcides Munhoz Netto, op. cit., p. 27; Juarez Tavares, op. cit., pp. 70-71; Kaufmann (trad.),
p. 288.

358
amente muito questionado, propondo-se sua substituição por critérios materiais in-
teressados no estreito relacionamento entre o sujeito e o bem jurídico a ser salva-
guardado. Sustenta-se, assim, que o decisivo não é o próprio dever de agir, e sim a
especial posição na qual se encontra o sujeito na proteção de wn bem jurídico ou na
gestão de wna fonte de perigo62 • Privilegia-se, assim, mais o conteúdo do dever de
atuar do que suas fontes formais, observando-se que embora todo garantidor tenha
o dever de atuar, nem toda pessoa que tenha tal dever é ipso facto garantidor. Daí
que alguns orientem o tema pela classificação dos deveres, originados do âmbito de
responsabilidade pororganização ou provenientes de responsabilidade institucional.
Ao primeiro grupo pertenceriam os deveres de preservação da indenidade alheia
diante de perigos introduzidos por certos objetos ou por atividades empresariais,
abarcando-se também a conduta precedente, o perigo de outras pessoas (particu-
larmente o associado à prática de delitos), o controle de fontes de perigo utilizadas
por terceiros, de cursos causais perigosos, e a assunção de deveres similares. Ao
segundo grupo pertenceriam os deveres originados das relações familiares, da tute-
la e da curatela, e aquelas relações de especial confiança genuinamente estatais,
que envolvem da "preservação da ordem pública e da incolwnidade das pessoas e
do patrimônio", que a Constituição atribui a policiais e bombeiros (art. 144 CR), até
os deveres funcionais que têm como conteúdo a integridade de bens jurídicos. O
fato de ter nosso Código Penal adotado critérios formais nos obriga a receber com
reservas toda a construção doutrinária em tomo dos critérios materiais, para não
violar o princípio da legalidade. Muito do debate em favor dos critérios materiais
argumentava com lacunas de punitividade, que jamais podem ser colmatadas com
ofensa à legalidade.

4. No direito penal brasileiro, o dever de agir é atribuído, em primeiro


lugar, a quem "tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilân-
cia" (art. 13, § 2°, ai. a CP). Neste primeiro grupo de casos, é indispensável
que o dever de atuar provenha de lei em sentido material e formal, sem o que
teríamos ofensa ao princípio da legalidade63. Pertencem a este campo o fa-
moso caso da mãe que deixa o filho morrer de desnutrição (obrigada pelos
arts. 229 CR, 1.634 CC e 22 ECA), o caso do bombeiro militar em função de
salva-vidas na praia (obrigado pelo art. 144 CR e por leis estaduais), o caso

62
Kaufmann, p. 283; Jescheck-Weigend, p. 621; Schmidhauser, Lehrbuch, 16/39; Mir Puig,
p. 308; Munoz Conde-Garcia Arán, p. 262; Bustos-Honnazábal, 1999, p. 231 ; Romeo
Casabona, C.M., Limites de los delitos de comisión por omisión, p. 38; sobre as fontes da
posição de garantidor, Mazzacuva, /ntroduzione ai sistema pena/e, p. l 06; Giunta, F., em
Diritto pena/e e processo, 1999, 5.
63
Sheila Bierrenbach, op. cit., p. 77; Heleno Fragoso, Lições, P.G, p. 243; Rogério Greco,
Curso, v. I, p. 235; Cezar Bitencourt, Tratado, v. 1, pp. 238-239; em sentido contrário,
admitindo que "ordem legítima de autoridade" e "decisões judiciais" obriguem o garantidor,
Paulo José da Costa Jr., Comentários, v. J, p. 135.

359
do agente penitenciário (obrigado pelos deveres assistenciais previstos nos
arts. l O ss. LEP) e outros similares. A pesquisa sobre a existência de um
dever de cuidado (no sentido de zelo, de atenção para com riscos que pos-
sam vir a afetar o bemjurídico),proteção (no sentido de defesa, de resguar-
do do bem jurídico periclitante) ou vigilância (no sentido de observação, de
acompanhamento da integridade do bem jurídico) não esgota a questão, pois
nem todo obrigado por um dever dessa natureza é automaticamente um ga-
rantidor. Temperando o esquematismo do critério formal, é indispensável que
o obrigado se encontre concretamente numa estreita e especial relação vital
com o bem jurídico64, cuja integridade depende concretamente de sua inter-
venção: só no plano do concreto se pode vislumbrar com clareza o garantidor
(enquanto o obrigado tem existência puramente normativa). Todos os polici-
ais em serviço sujeitam-se abstratamente ao dever de zelar pela incolumidade
das pessoas (obrigados); mas o policial incumbido da proteção da testemu-
nha ameaçada mantém concretamente com o bem jurídico uma específica
relação material funcional (garantidor). Por outro ângulo, a despeito de esta-
rem os pais vinculados abstratamente ao dever de sustento de sua prole
(obrigados), da vida do filho adolescente válido, que sabe cozinhar e ao qual
propiciam recursos e víveres, só excepcionalmente (acidente, enfermidade
etc) seriam garantidores65 . A simples relação civil de parentesco não é sufi-
ciente; uma prolongada separação de fato também eliminaria a posição de
garantidor. É que na figura do garantidor reside um eixo axiológico para a
equivalência entre a omissão e o correspondente delito comissivo, e consti-
tuiria um absurdo- e também uma falácia-que tal equivalência pudesse ser
extraída simplesmente da pura condição normativa do obrigado. A
transferibilidade da posição de garantidor66 , admissível salvo expressa
vedação legal, ilustra essa distinção, ocorrendo frequentemente entre obri-
gados sob o mesmo título (os médicos trocam de plantão) ou sob títulos dife-
rentes (os pais, que vão viajar, contratam a babá): a menos que a transferência
recáia em pessoa evidentemente inabilitada para resguardar o bem jurídi-
67
co , o garantidor original perde essa qualificação tão logo o novo garantidor
assuma de fato sua posição. Costuma-se discutir aqui aquilo que seria um
"dever de vigilância" dos pais sobre os filhos 68 ; convém avançar com pru-

64
Welzel, p. 213; Galiani, Tullio, p. 170; Sgubbi, Filippo, p. 205; Novoa Moreal, p. 138.
65
Neste sentido, Mir Puig, Santiago, Derecho Penal, P.G., p. 318 (lição 12, nº 36); para Sheila
Bierrenbach, o garantidor deve estar "na linha dinâmica do perigo" (p. 93 ).
66
Sgubbi, Filippo, p. 191; Novoa Monreal, p. 148.
67
Para o medico de plantão que confia o paciente em estado grave a um aprendiz inexperto,
cf. RT 755/766.
61
Stratenwerth, p. 272; Schünemann, p. 323; Sheila Bierrenbach, p. 78.

360
dência nesse terreno, para evitar situações de responsabilidade objetiva atra-
vés da introdução no âmbito penal da culpa in vigilando69 .

5. Em segundo lugar, a lei penal brasileira atribui o dever de agir a


quem "de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resulta-
do" (art. 13, § 2°, ai. b CP). Constata-se aqui a infiltração de critério materi-
al, deslocando para segundo plano o elemento formal do contrato, posição no
Brasil sustentada pioneiramente por Aníbal Bruno 70 • O verbo "assumir", tal
qual na definição do dolo eventual, está aí empregado em sua acepção forte
de "avocar", "arcar", "imputar-se", "apropriar-se": através da assunção
voluntária o sujeito se assenhora da tarefa de manter ileso o bem jurídico
periclitante, com o qual, portanto, passa a manter aquela estreita e especial
relação sem a qual não há garantidor (nem equivalência entre sua omissão e
o correspondente tipo comissivo). A demonstração de que o decisivo é a
assunção voluntária e não o contrato (ainda que a primeira se motive no
segundo) emerge de inúmeros casos recorrentemente invocados: assim, a
babá regularmente contratada que entretanto não assume de fato suas ftm-
ções não responde pelas queimaduras (lesões corporais) que a criança so-
freu, por falta de vigilância, naquele que teria sido seu primeiro dia de trabalho
(se ela não houvesse desistido do emprego); ao contrário, se a enfermeira
contratada, cuja jornada de trabalho por cláusula expressa se encerra às 18:00
horas, permanece voluntariamente ao lado do paciente em crise muito depois
daquele horário, segue sendo garantidora; aqui se colocaria também o famo-
so caso do jardineiro recém despedido que ao retirar-se assiste impassível ao

69
Nenhum texto legal brasileiro impõe aos pais um "dever de vigilância" em sentido policialesco,
no qual o filho seja visto como uma fonte de perigo. Além do dever genérico (atribuído
difusamente à familia, à sociedade e ao Estado - arts. 227 CR e 4° ECA) de garantir os
direitos da criança e do adolescente, entre os quais por certo não figura o direito de ser
vigiado, nossas leis impõem aos pais os deveres de sustento, guarda, criação, educação e
representação dos filhos (arts. 229 CR, 1.634 CC e 22 ECA). A vigilância que toca aos pais
tem o sentido, enfatizado no texto, dé observação preventiva da integridade da saúde e da
vida do filho que lhes cabe sustentar, guardar, criar, educar e representar. Trata-se essenci-
almente de uma vigilância sobre perigos e danos que possam afetar o próprio filho. Respon-
sabilidade penal omissiva imprópria dos pais por danos causados a terceiros por seus filhos
pode no direito penal brasileiro ser concebida no modelo da assunção de responsabilidade,
e não na constelação dos garantidores vinculados a dever legal.
70
Escrevendo em 1956, Aníbal Bruno situava a segunda fonte do dever •~uridico, não simples-
mente moral" de agir na "particular aceitação(...) por parte do agente", na "voluntária aceita-
ção de fato( ...) de uma situação geradora do dever", que poderia "resultar de um contrato, do
exercício de emprego ou função, ou de qualquer posição equivalente" (Direito Penal, v. I, t. 1º,
pp. 299-300). Cf. Welzel, p. 2 I4; Schõnke-Schrõder, 1969, pp. 40-41; Jescheck-Weigend, p.
620; Card, Richard (Card-Cross-Jones), Criminal Law, p. 36; Sheila Bierrenbach, p. 79; ainda
com ênfase nos "deveres contratuais" Paulo José da Costa Jr., Comentários, P.G., v. 1, p. 136.

361
afogamento num tanque do filho do patrão 7 1• Quando existir contrato, é mis-
ter verificar se ele impõe ao sujeito uma obrigação de tal intensidade que
possa convertê-lo em garantidor; da mesma forma que ocorre com as obriga-
ções derivadas de lei, nem todas aquelas derivadas de contrato são
constitutivas do dever de garantir a indenidade do bem jurídico. Por isso,
afirma-se que o contrato só se converte em fonte do dever de agir quando a
confiança depositada no sujeito exprime uma especial obrigação de cuidado,
proteção ou vigilância 72, cabendo exemplificar com o guia de alpinismo, o
instrutor de vôo, a enfermeira de terapias intensivas, o salva-vidas do horário
infantil na piscina do clube, o professor que chefia o convescote escolar, o
médico de plantão na unidade coronariana e assim por diante. Em tais casos,
verifica-se claramente que a fonte do dever de agir reside na confiança
imanente à assunção voluntária, e não no contrato73, dispensável a confiança
recíproca: para a responsabilização do salva-vidas que omite resgatar o ba-
nhista que se afoga é irrelevante se a vítima conhecia a vigilância e nela
74
confiava • Aliás, o contrato pode nem existir, como no caso de quem se
oferece voluntariamente para ajudar um cego a atravessar movimentada ave-
nida (e tem o dever de concluir a travessia), ou da moradora que se oferece
para cuidar do filho da vizinha que precisa ausentar-se momentaneamente (e
tem o dever de velar pela criança até a volta da mãe ou a transferência do
dever a terceiro habilitado), ou mesmo do banhista que na praia aceita velar
pelo filho enquanto a mãe mergulha (e tem o dever de fazê-lo até seu retor-
75
no) • Cabe aqui equacionar o problema dos irmãos, aos quais a lei não impõe
deveres similares aos dos pais com relação aos filhos, mas que podem -
pense-se num irmão de vinte anos, ao qual a mãe confia o caçula de cinco,
enquanto sai à compra de redes de proteção para as janelas do novo aparta-
mento, no décimo andar- ser garantidores sob o título da assunção voluntá-
76
ria • Na falta de um dever legal de vigilância dos pais 77, é também na assunção
voluntária que cabe equacionar e resolver os casos em que eles omitem con-
dutas que salvariam bens jurídicos ameaçados por seus filhos menores. O
pai, controlador de vôo ou operador de usina nuclear, que leva para o trabalho
seu filho irrequieto e hiperativo, assume voluntariamente o dever de impedir
71
Para a babá, Alcides Munhoz Netto, p. 28; para a enfermeira, Heleno Fragoso, Lições, P.G.,
p. 243; para o jardineiro, Paulo José da Costa Jr., Comentários, p. 136 (nota 362), Jimenez
de Asúa, li, p. 424 e Soler, 1, p. 296.
72
Stratenwerth, p. 254.
73
Maurach, p. 514; Welzel, p. 214; Jescheck-Weigend, p. 620.
74
Stratenwerth, p. 276.
7
~ Para os três exemplos, respectivamente, Sheila Bierrenbach, p. 79; Cezar Bitencourt, Tratado,
1, p. 239 e Juarez Tavares, p. 83.
76
Outra solução em Juarez Tavares, loc. cit.
77
Cf. nota 69.

362
que a criança consiga manejar qualquer equipamento. A falta de providências
que impeçam o filho inabilitado de apossar-se e dirigir o veículo do pai, na
qual nossa jurisprudência costuma vislumbrar omissão imprópria, desgarrou-
se, após o Código de Trânsito Brasileiro, da perspectiva exorbitante de impu-
tação do eventual delito praticado pelo motorista inepto, para circunscrever-se
aos limites da equivalência com o delito específico (art. 31 OCTB)78• No di-
reito brasileiro, aqui é também o lugar de tratamento, sempre que inexistam
deveres previstos em lei, da gestão de uma fonte de perigo, como seria o
transporte rodoviário autorizado de substância química corrosiva ou a posse e
criação doméstica clandestina de uma fera 79• É igualmente no âmbito da
assunção voluntária que, em nosso direito penal, cabe examinar as chamadas
comunidades de vida e de perigo80 , ancoradas no compartilhamento de
vivências sociais ou de atividades arriscadas; Fragoso objetava que tais hipó-
teses ampliavam arbitrariamente o campo da omissão imprópria, não se apre-
sentando nelas o imprescindível dever jurídico, e tão somente deveres morais81 •
Muito divergentes são as opiniões sobre o fundamento da posição de garan-
tidor que eventualmente toque ao empresário (fornecedor) quanto a ofensas
a bens jurídicos de terceiros (consumidores) provindas de produtos defeituo-
sos ou de condutas de subordinados. Compatibilizar as divergentes elabora-
ções doutrinárias e jurisprudenciais européias 82 à disciplina legal brasileira
nos conduziria a distinguir três situações: 1ª) quando presente um dever im-
posto por lei, como por exemplo as obrigações de infonnação e advertência
sobre a nocividade de um produto, seja como efeito colateral pennitido ou
seja como defeito posteriormente percebido, previstas no Código de Prote-
ção ao Consumidor (arts. 8º ss. da lei nº 8.078, de 11.set.90), a solução é

78
Cf. Damásio E. de Jesus, Crimes de Trânsito, S. Paulo, ed. Saraiva, pp. 202 ss.(vencido o
absurdo de, após a descriminalização da direção de veículo sem habilitação, criminalizar-se
autonomamente o mero auxílio à direção inabilitada).
79
O segundo exemplo é de Stratenwerth, p. 272; Schilnemann denomina tais situações de
domínio material sobre coisas perigosas (op. cit., p. 359); sobre o conceito de "fonte de
perigo", Sgubbi, Filippo, op. cit., p. 230; Juarez Cirino dos Santos trabalha a criação de
animais ferozes no âmbito da ingerência (Direito Penal, p. 212).
80
Tal como Aníbal Bruno ( op. cit., p. 301) e Cirino dos Santos ( op. cit., p. 212).
81
Heleno Fragoso, Crimes omissivos no direito brasileiro, p. 46; no mesmo sentido Eduardo
Novoa Monreal, Fundamentos, cit., pp. 143-144, e Paulo José da Costa Jr., Comentários,
cit.,v.1,p. 139.
82
Sobre isso, Hassemer, W. e Muiioz Conde, F., La Responsabilidad por el Producto, pp. 158
ss.; Frisch, W., Problemas fundamentales ..., pp. 111 ss.; Bottke, W., Reponsabilidad por la
no evitación, pp. 132 ss. ; Meini, Iván, Responsabilidad Penal dei Empresario... , pp. 299
ss.; Rodríguez Montai\és, T., /ncidencia dogmática... , p. 124; Juanatey Dorado, C.,
Responsabilidad penal omissiva dei fabricante ... , pp. 136 ss.; Cuadrado Ruiz, M.A., La
Responsabilidad por Omisión ... , pp. 133 ss.; Crespo, E. Demetrio, Sobre la posición de
garante dei empresario... , pp. 41 ss.

363
evidente e simples (art. 13, § 2º, ai. a CP); ZU) quando a empresa regular-
mente instalada desenvolve atividades potencialmente perigosas (risco per-
mitido) para bens jurídicos de terceiros, caberia - recorrendo-se ao modelo
teórico da gestão de uma fonte de perigo ou ao modelo do domínio material
sobre a causa do resultado- situar aqui, na assunção voluntária (art. 13, § 2º,
ai. b CP), a fonte do dever de agir, sempre com as cautelas que promanam do
princípio da confiança na divisão do trabalho, da lícita transferibilidade da
posição de garantidor e das limitações imputativas do risco permitido; 3ª)
quando a empresa se instala e funciona clandestinamente, sem regular
licenciamento, ou, regularmente instalada, adota processos produtivos não
autorizados e potencialmente perigosos, cabe deslocar a questão para o âm-
bito da ingerência (art. 13, § 2º, ai. e CP).

6. Em terceiro e último lugar, o dever de agir é atribuído por nossa lei a


quem "com seu comportamento anterior criou o risco da ocorrência do
resultado" (art. 13, § 2º, ai. c CP). A responsabilidade do omitente por sua
ingerência, a terceira das fontes clássicas formais elaboradas teoricamente
no século XIX83 , parte da admissão de que, dentro de determinados limites, as
condutas perigosas obrigam quem as realizou a controlar o perigo gerado, de
sorte a impedir ofensa ao bem jurídico ameaçados4 • A despeito de sua história
respeitável, à qual se associam os nomes de Stübel, Luden, Krug, Glaser, Merkel
e Binding85 (não o de Feuerbach, que só admitia como fontes do dever de agir
a lei e o contrato86), até hoje o princípio da ingerência não obteve uma formula-
ção totalmente satisfatória, reinando inúmeras desavenças quanto à solução de
questões particulares. Para superar a "idéia simplória"87 de que todo ingerente
converte-se ipso facto em garantidor, algumas restrições foram construídas, e
sua invocação será aqui mediada pelo texto legal brasileiro. Desde logo, cons-
titui exigência legal que o "comportamento anterior" - que, portanto, pode

83
Sobre o percurso teórico, Krause, Dietmar, Entwicklung 1md Wandel des Begriffs der
Rechtspflicht bei den unechten Unterlassungsdelikte bis zur Rechtspressung des Reichsgericht~;
Ptleiderer, Klaus, Die Garantenstellung aus vorangegangenen Tun, p. 48. No Brasil, o
primeiro autor a contemplar a ingerência, embora sem empregar tal termo, foi Tobias Barreto,
no exemplo do porta-licor (Dos delictos por omissão, p. 191 ); sobre este estudo pioneiro,
Heitor Costa Júnior, A Teoria da Omissão no Pensamento de Tobias Barreto.
14
Cf. Stratenwerth, p. 276; atualmente Jakobs, pp. 972 ss.
85
Ludcn, Heinrich, Abhandlungen aus dem gemeinen deutschen Strafrecht, pp. 219-220;
Stübel, Christoph, Über die Teilnahme mehrerer Personen an einem Verbrechen, pp. 60-
61; Krug, August Otto, Abhandlugen aus dem Strafrecht, pp. 34-40; Glaser, Julius,
Abhandlungen aus dem osterreichischen Strafrecht, pp. 301 ss.; Merkel, Adolf, op. cit.,
pp. 111-112; Binding, Karl, Normen, II, p. 552.
86
Lehrbuch, p. 25.
87
Sheila Bierrenbach, p. 84.

364
consistir numa ação ou em outra omissão88 - do sujeito tenha criado o
risco, e não apenas incrementado risco pré-existente. Assim, a intervenção
desastrada (que involuntariamente vem a aumentar o perigo, ao invés de contê-
lo) sobre processos causais perigosos instaurados por terceiros deve no direito
brasileiro ser remetida ao campo dos tipos comissivos culposos; no caso de
mera passividade, o horizonte da responsabilidade do omitente se desloca para
os deveres gerais de solidariedade (art. 135 CP). O exemplo de Welzel (o·
capitão está obrigado a alimentar o passageiro clandestino descoberto no navio,
a despeito de não ter criado o perigo de morte dele por inanição) deve ser
resolvido do ângulo dos deveres legais, e não da ingerência 89• É preciso tam-
bém que o risco criado pelo ingerente seja adequado ao resultado: quem
em seu terreno ateia fogo ao monturo pode responder por incêndio (art. 250
CP), por homicídio qualificado (art. 121, § 2º, inc. III CP) ou ainda pelas quei-
maduras (art. 129 CP) que porventura provenham das chamas por ele criadas
(perigo adequado ao resultado), jamais pelas lesões corporais do cavaleiro que
caiu de sua montaria, assustada pela imagem do fogo 90• Este requisito, limitador
da amplitude da responsabilidade do ingerente, não dispensa o subsequente
exame do nexo de evitação: embora o risco criado possa ser adequado ao
resultado, se este provier da superveniência de outro curso causal relativamen-
te independente não será imputável ao omitente (art. 13 CP). Embora respeitá-
veis autores não o exijam, a conduta precedente também tem que ser
objetivamente antijurídica91 . Seria grosseiramente contraditório que o sujeito
que sem abuso atuou confonne o direito (e que, portanto, dispunha de um "di-
reito de ingerir-se"92) fosse responsabilizado por não impedir um efeito de sua

88
Juarez Cirino dos Santos, p. 21 O.
89
Welzel, p. 216. Remonta ao direito romano o princípio segundo o qual toca ao capitão zelar
por todo o navio (D.XIV, 1, 1, § 1º); embora originalmente tal cuidado tivesse conotação
mais patrimonial, modernamente "a lei atribui ao capitão detenninadas funções de ordem
pública" (J.C. Sampaio de Lacerda, Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico,
Rio, 1963, ed. F. Bastos, p. 94 ). Nosso Código Comercial de 1850 estipulava que "toda a
tripulação lhe está sujeita, e é obrigada a obedecer e cumprir as suas ordens'' (art. 497); tinha
ele "a faculdade de impor penas correcionais" à tripulação e podia prender o autor de crime
"ainda mesmo que o delinquente seja passageiro" (art. 458), respondendo civilmente "pelos
furtos ou quaisquer danos praticados a bordo" pela tripulação na carga (art. 259). Mas a lei
nº 9.53 7, de 11.dez.97, que atribui ao capitão (agora, "comandante") responsabilidade pela
segurança também dos "tripulantes e demais pessoas a bordo" (art. 2º, inc. IV), obriga-o a
"cumprir e fazer cumprir a bordo os procedimentos estabelecidos para a salvaguarda da
vida humana" (art. 8°, inc. li). Assim, no direito penal brasileiro, o exemplo de Welzel se
resolve no dever legal (art. 13, § 2º, ai. a CP) e não em ingerência (art. 13, § 2°, ai. e CP) do
capitão, que definitivamente não "criou o risco" para a vida do passageiro clandestino.
90
Stratenwerth, Stra.frechr, 1971, p. 266 (nº 1.069).
91
Jeschek, Lehrbuch, 1969, p. 416; Fiandaca, Giovanni, op. cit., p. 205; Juarez Cirino dos
Santos, p. 211 ; Sheila Bierrenbach, p. 84.
92
A um Eingriffsrecht se refere Stratenwcrth, op. cit., 1971, p. 267 (nº 1.074).

365
reta conduta. Assim, o motorista que dirige atentamente e com estrita obser-
vância das regras do trânsito viário, à frente de cujo carro se lança de repente
um bêbedo93 ; assim também quem, legitimamente se defendendo de uma agres-
são injusta, fere o agressor94• Nem o motorista nem o agredido defendente, que
atuaram confonne o direito, são garantidores da vida do bêbedo e do agressor,
embora persistam para ambos os deveres gerais de solidariedade (art. 135
CP), quiçá inexigíveis- segundo as circunstâncias -para o agredido defendente.
Aliás, o caso do motorista atropelador que omite socorrer a vítima não pode
entre nós ser resolvido pela ingerência, diante do fato de tal omissão oferecer o
conteúdo de causas especiais de aumento de pena para o homicídio culposo e
para as lesões corporais, seja no regime do Código Penal95, seja após o advento
do Código de Trânsito Brasileiro, e agora com maiores razões, pela inovadora
previsão, como crime emissivo próprio, da omissão de socorro de vítima de
acidente de trânsito por condutor de veículo, independentemente de prévio de-
lito culposo96. A solução do debatido caso de quem serve bebidas alcoólicas
passa no Brasil pelo crivo da contravenção correspondente (art. 63 LCP) para
saber-se se a conduta precedente é ou não objetivamente antijurídica: apenas
quando a pessoa servida for criança ou adolescente, ou já se encontrar
embriagada, ou visivelmente sofrer de doença mental, ou por fim estiver proibi-
da judicialmente de frequentar a taverna é que tal elemento poderá ser reco-
nhecido, excluída qualquer outra hipótese. De qualquer modo, restringe-se a
responsabilidade omissiva imprópria do taverneiro aos riscos à integridade fisi-
ca e à vida do bêbedo enquanto estiver este no interior e nas imediações da
taverna e desprotegido diante de riscos concretos, não alcançando nem os ris-
cos que porventura venha o bêbedo a introduzir para bens jurídicos de terceiros
nem resultados ocorridos longe da possibilidade de intervenção do taverneiro; a
chegada de um innão do bêbedo que vai levá-lo para casa transfere a posição
de garantidor (da ingerência do taverneiro para a assunção voluntária do ir-
mão). A tendência a que o dever de agir encompasse impedir condutas de
terceiros, que inevitavelmente debilita e quase sempre agride o princípio da
responsabilidade pessoal, foi levada pela jurisprudência alemã a limites inacei-
táveis, como no caso de um indivíduo que omitira impedir que sua amante adúl-

93
Welzel, p. 216.
94
Paulo José da Costa Jr., op. cit., p. 139; Juarez Cirino dos Santos, p. 211; Sheila Bierrenbach,
p. 90.
" Arts. 121, § 4º e 129, § 7; cf. a análise de Sheila Bierrenbach, pp. 87 ss., endossada por Juarez
Tavares, pp. 71-72.
96
Cf. arts. 302, par. ún., inc. III, 303, par. ún. e 304 CTB. A ressalva cominada à pena da
. •omissão de socorro viária ("detenção de 6 meses a 1 ano, ou multa, se o fato não constitui
• elemento de crime mais grave") sinaliza sua subsidiariedade perante o homicídio e as lesões
corporais majorados pela omissão de socorro. O parágrafo único do art. 304 viola aberta-
mente o princípio da lesividade.

366
tera cometesse um falso testemunho: a conduta precedente seria a relação
adulterina. Com ironia, comentou Stratenwerth que o dever de impedir o falso
testemunho não depende de que a relação amorosa seja contrária ao dever97.
Os requisitos de que tenha o omitente criado o risco, e de que o risco por ele
criado seja adequado ao resultado e objetivamente antijurídico contribuem para
remover da ingerência um olhar moral, que descure da delicada estrutura típica
om issiva imprópria para privilegiar uma espécie de julgamento ético da conduta
do omitente em sua globalidade98•

7. As grandes divergências teóricas que o tema suscita põem-se de mani-


festo nas diferentes metodologias empregadas para a determinação da equi-
valência entre a omissão imprópria e a ação. Esta equivalência (Gleichstellung,
igual posição, igual lugar) é procurada através de muitos caminhos. Pfleiderer
partiu daqueles casos nos quais a punibilidade da omissão estava fora de dúvi-
das, desenvolvendo toda a sua construção por analogia 99 quanto à conduta
precedente, o que Schmidhãuser estendeu a toda a questão da equivalência 100•
Welp ensaiou a comparação da omissão com a ação partindo da análise da
relação entre o autor e a vítima na ação e na omissão, enquanto Wolffjá havia
usado a comparação porém baseado na estrutura causal 1º1. Bãrwinkel encon-
trou a similitude fundado em critério a um só tempo normativo e sociológico,
considerando como essência do injusto a lesão de um bem comum necessário
do ponto de vista ético-social 102 • Pela via fenomenológica, Androulakis susten-
ta que certa omissão corresponderia a uma ação quando fosse comparável a
uma ação plena de sentido, escolhida e possível 1°3. Vogt recorreu a uma formu-
lação sociológica, encontrando que no marco da limitada ordem social para o
funcionamento comunitário uma omissão pode ser tão importante quanto uma
ação 1°4. De um critério combinado se vale Rudolphi, fazendo depender a posi-
ção de garantidor, nos casos de ingerência, de uma dupla característica: de um
lado, exigindo que a conduta precedente tenha provocado um perigo concreto
para um bem jurídico, ou um estado de desproteção para certos bens jurídicos

97
Stratenwerth, pp. 267-268; Welzel, p. 215; Jescheck-Weigend, p. 625; Bockelmann,
Strafrechtliche Untersuchungen, pp. 216 ss.; Paulo Queiroz, p. 190.
98
Como adverte Filippo Sgubbi, op. cit., p.236.
99
Pfleiderer, Klaus, op. cit., pp. 109 ss.
100
Schmidhauser, pp. 534 ss.
101
Wolff, Ernst Amadeus, Kausalitiit von T11n 1111d Unterlassen, pp. 11 ss.; Welp,
Vorangegangenes Tim ais Gnmdlage eines Handlz111gséiq11ivalenz der Unterlass11ng, pp.
111 e 50.
102
Bãrwinkel, Richard, Zur Struktur der Garantieverhéiltnisse hei den unechten
Unterlassungsde/ikte, p. 65.
103
Androulakis, op. cit., pp. 206 ss. e 272.
104
Vogt, Das Pjlichtprohlem hei der kommisiven Unterlassung, p. 381.

367
mais valorados positivamente pelo legislador; de outro, esclarece que a
desproteção que perturba a ordem social pode ser a consequência tanto de
uma ação quanto de uma omissão anterior'°5 • Henkel analisa a divisão do estu-
do do problema da equivalência da omissão com a ação através das caracterís-
ticas do autor e do fato, coincidindo com a divisão que seguem Kaufmann,
Welp e outros 106. Gelder e Bõhn ensaiam, por seu turno, critérios de corte
jurídico 107 • Stratenwerth trabalha a questão tratando de individualizar em pri-
meiro lugar o autor, para o que é mister estabelecer sua posição, da qual derivam
seus deveres de garantia 1°8 . Esta síntese permite compreender o precário grau
de certeza que a teoria oferece.

8. Uma síntese do percurso do pensamento penalístico em tema de omis-


são registraria, antes de mais nada, que a tradição do velho canonismo foi
observada pelo direito anterior ao Iluminismo, afirmando-se que qui peut et
n 'empêche, pêche 109 • Assim, sustentavam os glosadores que aquele que não
evita o crime, estando a isto obrigado por sua condição e tendo o poder de fazê-
lo, como os pais, os mestres, os magistrados e os maridos, eram responsáveis;
e já então incorporavam a regra da correspondência, considerando que a pena
deveria sempre ser menor, conforme a máxima gravior semper reputatur
culpa in committendo quam in ommittendo 11 º. A equiparação entre ação e
omissão foi prevista pelo Código Penal fascista de 1930, em dispositivo (art.
40) segundo o qual "não impedir um resultado, que se tem a obrigação jurídica
de impedir, equivale a causá-lo", encarregando-se a doutrina de perceber na
estranha causalidade da omissão uma "causalidade jurídica" 111 • Nesse percur-
so o efeito mitigante da conduta omissiva em comparação com a comissiva se

105
Rudolphi, Hans-Joachim, op. cit., pp. 188-189.
106
Kaufmann, Annin, Methodische Probleme der Gleichstellung des Unterlassens mit der
Begehung, p. 177; Henkel, Das Methodenproblem bei den unechten Unterlassungsde/ikte,
pp. 178 ss.
10
' Van Gelder, Die Entwicklung der Lehre von der sog. Erfolgsabwendungspjlicht aus
vora11gegangenen Tun im Schriftum des 19. Jahrhunderts ; Bõhm, Alexander, Die
Rechtspjlicht zum Handeln bei den unechten Unter/assungsde/ikten.
108
Stratenwerth, p. 272; Welzel, pp. 206-211 .
109
Loysel, lnstitutes, apud Pradel, p. 426.
110
Mouyard de Vouglans, Jnstitutes du Droit Criminel, I, p. 18. Arraigada tradição, que de
Tomás de Aquino ("manifestum est quod [. ..] transgressio est gravius peccatum quam
omissio" - Summa, II, li, q. 79, art. 4°) chega a Kaufmann ("dadas as mesmas circunstân-
cias, omitir impedir o resultado é menos grave que realizá-lo dolosamente" - Dogmática ...,
trad., p. 306), reafinna tal diferença axiológica entre ação e omissão, negada entre nós por
Sheila Bierrenbach (op. cit., p. 136). Um debate sobre se não fazer equivale a fazer foi
travado entre Bentham e Macaulay: para o primeiro, a omissão de salvar constituía delito;
para o segundo, não (cf. Stuart, Don, Canadian Criminal Law, pp. 67 ss.).
111
Assim, Saltelli-Romano di Falco, I, p. 242.

368
perdeu, embora viesse a ser redescoberto mais tarde. Entre nós, o legislador de
1940 entendeu dispensável reproduzir o dispositivo do código fascista, tal como
fizera o anteprojeto Alcântara Machado, por desnecessário, já que a regra ge-
ral de imputação objetiva por causalidade, comprometida com a teoria da
conditio, equiparava ação e omissão através da capacidade que ambas teriam
de produzir o resultado (então art. 11; hoje art. 13 CP) 112• A refonna de 1984
aprimorou extraordinariamente a disciplina legal da omissão imprópria, porém a
falta de previsão específica na Parte Especial dos respectivos tipos ainda re-
presenta uma violação da exigência de estrita legalidade, de reserva absoluta
de lei. A existência de tipos omissivos não escritos, sob o argumento canhestro
de que só eles esgotam o conteúdo proibitivo dos tipos comissivos (ou ativos),
inscreve-se em inadmissível pretensão de completitude incompatível com o
caráter fragmentário da ilicitude penal. Da mesma fonna que o quase desapa-
recido crimen culpae, que pretendia vislumbrar um tipo culposo junto a cada
tipo doloso, os crimes omissivos não escritos operariam como falsete dos cri-
mes comissivos, ambos postulando uma legislação penal sem lacunas, sob a
qual nada poderia escapar ao poder punitivo 113 . Não por acaso a existência
desses tipos não escritos foi rechaçada pela tradição francesa" ◄, tendo sua
constitucionalidade sido arguida na Alemanha 115 ; mesmo na família
anglosaxônica sua aceitação foi objeto de muito debate' 16, objetando-se com
razão que diante da inexistência de tipos escritos a culpabilidade se complica
pela inevitável ignorantia iuris 111• Especialmente perturbadora é a constatação
de que o legislador foi capaz, quando quis, de construir tipos omissivos impró-
prios escritos, seja de omissão dolosa (como a omissão de impedir tortura [art.
1º, § 2° da lei nº 9.455, de 7.abr.97] ou as modalidades omissivas dos delitos de
maus-tratos [art. 136 CP], de facilitação de contrabando [art. 318 CP] ou de
fuga de preso [art. 351 CP]), seja de omissão culposa, como na realização
omissiva do peculato culposo (art. 312, § 2° CP). Tal constatação desmente a
invocação de supostas dificuldades de técnica legislativa para demarcar expres-
samente na Parte Especial, e por certo apenas nos títulos que tratam dos bens
jurídicos constitucionalmente mais valiosos, os tipos omissivos impróprios. No Bra-
sil, poucas vozes questionam a violação ao princípio da legalidade que os crimes
omissivos impróprios não escritos implicam 118, e a timidez reverencial de nossa
Corte Suprema em proclamar a inconstitucionalidade de leis penais, somada ao

112
Cf. Nelson Hungria, Comentários, I, II, p. 70.
113
Romeo Casabona, C.M., Los delitos de comisión por omisión, p. 95.
114
Pradel, p. 426; Jacques-Henri, Robert, p. 231; Desportes-Le Gunehec, p. 334.
IIS Schõne, Wolfgang, Unterlassene Erfolgsanwendungen im Strafrecht, p. 355.
116
Smith-Hogan, p. 47.
117
Assim Jerome Hall, p. 199.
118
Por exemplo, Juarez Tavares, op. cit., p. 70; Paulo Queiroz, op. cit., p. 190.

369
aprimoramento que a refonna de I984 deu à matéria, sugere ser mais indicado
cercá-Ia de dispositivos teóricos limitadores do que sonhar com uma quimérica
declaração de inconstitucionalidade dos tipos omissivos impróprios não escritos.

9. Numa síntese, poderíamos enumerar os elementos integrantes do tipo


objetivo sistemático da omissão imprópria da seguinte forma: a) situação típi-
ca (presença objetiva das circunstâncias típicas que envolvem risco de afeta-
ção do bem jurídico); b) garantidor (autor qualificado pelo dever de agir para
impedir o resultado lesivo do bem jurídico, com o qual mantém estreita relação
vital); e) efetiva possibilidade de agir do garantidor (é preciso que o autor
qualificado disponha objetivamente da capacidade fisica de intervir sobre a
situação típica evitando o resultado, ou seja, de realizar conduta de igual nature-
za daquela que seu dever lhe ordena realize); d) omissão da conduta ordena-
da (seja por inércia, seja pela realização de qualquer outra atividade diferente
da ordenada, o garantidor omite realizar a conduta tendente a impedir o resulta-
do, isto é, a conduta que seu dever lhe impunha); e) resultado (afetação do
bem jurídico); f) nexo de evitação (é indispensável determinar, com o mais
elevado grau de probabilidade, que se o garantidor houvesse realizado a condu-
ta devida, teria evitado o resultado). Nessa estrutura típica, o pragma está refe-
rido na omissão da conduta ordenada, salvo no caso da ingerência, quando
abrangerá também a situação típica.

IV. O tipo objetivo conglobante


I. Uma particularidade da tipicidade conglobante nesses tipos está em
que a efetiva possibilidade de agir do garantidor representa apenas um pressu-
posto mínimo da objetividade típica, sendo também indispensável determinar se
a conduta ordenada (e omitida), caso realizada, poderia eficazmente in-
tervir na situação típica, evitando o resultado 119 • Evidentemente tal eficá-
cia da hipotética intervenção do garantidor se expressará num juízo de
probabilidade próxima da certeza 120 • É nesta particularidade que a
dominabi/idade se apresenta no campo da estrutura omissiva, enquanto possi-
bilidade objetiva de domínio do curso causal por parte do garantidor, através da
ação ordenada. Pense-se no sobrinho, curador do tio rico, que não o impede de
subir o monte onde o matará um raio. Contornando as dificuldades de reconhe-
cer-se neste caso a situação típica, e admitindo francamente que o monte fosse
119
Cf. Welzel, p. 212; Cadoppi, Alberto, "Non evento" e beni giuridici "relativi": spunti per
una reinterpretazione dei reati omissivi propri in chiave di offensività, p. 141.
12
º Welzel, loc. cit; Jescheck-Weigend, p. 619; Maurach, p. 503; Stratenwerth, p. 282; Baumann,
p. 248; Blei, p. 279.

370
um lugar perigoso para um incapaz, a conduta do sobrinho seria objetivamente
típica do ponto de vista da tipicidade sistemática pela presença de todos os
elementos, da situação típica (embora algo artificial) ao nexo de evitação (se o
garantidor houvesse impedido que o tio subisse o monte, ele não teria morrido).
Não obstante, não se poderia afinnar a dominabilidade do fato, porque não há
poder humano que adivinhe o local e o horário exatos em que os raios cairão: o
terceiro observador jamais poderia perceber nesse acontecimento um plano
criminoso dirigido a não intervir no curso causal que conduzirá à morte do tio,
por não ser dominável.

2. Também nos tipos omissivos quando um curso causal não pode ser
dominado no atual estágio da ciência e da técnica, embora possa ser
explicado, exclui-se a tipicidade conglobante, apesar de reconhecido o
nexo de evitação no âmbito do tipo sistemático. Quanto aos cursos causais
humanamente domináveis, a informação e o adestramento do omitente devem
ser considerados, posto que a consciência da situação típica e da possibilidade
de realização da ação salvadora depende frequentemente desses dados que,
objetivados, permitem, a partir da observação neutra da objetividade típica, que
se perceba ou não a exterioridade da conduta como um plano criminoso que
optou por produzir o resultado mediante simples inércia ou mediante qualquer
ação não-salvadora.

V. O tipo subjetivo
1. As investigações teóricas das últimas décadas sobre as características
do dolo na omissão duvidaram fundamentadamente fossem elas idênticas às do
dolo na estrutura típica comissiva, sustentando um setor doutrinário serem elas
completamente diferentes, chegando-se mesmo a afinnar que só impropriamen-
te se pode aqui falar de dolo, tratando-se na verdade de um quase-dolo 121 . Se-
gundo essa perspectiva, o dolo na omissão careceria de conteúdo conativo; quanto
a seu conteúdo cognoscitivo, as diferenças sempre foram consideradas menores.

2. Tomando o conteúdo cognoscitivo, é evidentemente indispensável que o


omitente conheça a situação típica. Todos os tipos objetivos omissivos são cir-
cunstanciados e, portanto, o conhecimento de tais circunstâncias, com todos os
componentes descritivos e normativos, constitui um pressuposto para que o dever
de atuar ganhe vigência. O erro sobre a situação típica configura um claríssimo erro
de tipo (art. 20 CP), que pode ensejar um resíduo culposo punível quando o garan-

121
Assim, Kaufmann, Dogmatik, pp. 66, 110, 120 e 130.

371
tidor negligencia em informar-se adequadamente sobre a situação típica 122• Nos
delitos com resultado individualizado deve o sujeito dispor dos conhecimentos que
lhe permitam a previsão do curso causal que o produzirá. Até aqui, o dolo na omis-
são - restrito a seu conteúdo cognoscitivo - não difere do dolo que exprime o
elemento central dos tipos subjetivos comissivos dolosos. Há, porém, um aspecto
potencial, um conhecimento latente que se requer no tipo subjetivo omissivo: o
sujeito deve ser capaz de representar-se a realização da conduta devida e, quando
houver resultado tipicamente relevante, os meios e métodos com os quais evitá-lo.

3. Nos tipos omissivos impróprios o autor é necessariamente alguém quali-


ficado especificamente pela posição de garantidor que, perante a situação típica,
obriga-o a intervir. Discute-se a posição que deve ocupar o conhecimento da
própria posição de garantidor, havendo divergências acerca de onde situar os
chamados elementos especiais de autoria na estrutura do delito omissivo. Para
aqueles que acreditam pertencerem eles à antijuridicidade, é dispensável estejam
cobertas pelo dolo, e o erro a seu respeito configura erro de proibição. Segundo
essa perspectiva, o erro que recái sobre o dever de agir que vincula o garan-
tidor é um erro de proibição, chamado usualmente erro de mandado ou de
mandamento, e sobre tal solução há um amplo acordo doutrinário 123• Contudo,
descarta-se aí uma distinção prévia entre o estado que fundamenta a posição de
garantidor, que evidentemente há de integrar o tipo objetivo, e os deveres impos-
tos por esse estado, questão que determina a substância do mandado, e portan-
to, da proibição. Observada essa distinção, as características descritivas da
posição de garantidor pertencem ao tipo objetivo, não porém o dever jurí-
dico de evitar o resultado dele emergente, que pertence à antijuridicidade' 24.
Em consequência, o erro que incidir sobre o estado fundamentador da posição de
garantidor (por exemplo, ignorar ser o pai do nadador prestes a afogar-se) cons-
tituirá erro de tipo, com o efeito de eliminar a tipicidade dolosa da conduta, sem
prejuízo de que, caso se trate de erro vencível, possa ensejar- presentes todos os
requisitos- uma tipicidade culposa (art. 20 CP). Ao contrário, o erro que incidir
sobre a existência ou o alcance do dever jurídico (por exemplo, ignorar que o pai
deve conjurar perigos para a vida do filho) constituirá um erro de proibição (erro
de mandado ou de mandamento) 125 que, segundo seja ou não vencível, respecti-
vamente reduzirá ou eliminará a culpabilidade (art. 21 CP) 126 •

122
Francisco de Assis Toledo, O Erro no Direito Penal, p. 65.
123
Welzel, p. 219; Kaufmann, p. 306; Stratenwerth, 1971, p. 275; Grilnwald, em ZStW, 70, p.
416; Maurach, p. 596; Busch, Über die Abgrenzung von Tathestand- und Verbotsirrtum;
Bacigalupo, op. cit., p. 103.
124
Rudolphi, p. 75; Bockelmann, pp. 137-138.
12
s Jakobs, p. 1015.
126
Spolansky, Norberto E., La estafa y e/ silencio, p. 93.

372
4. Muitas dúvidas foram geradas pelo querer da omissão (o chamado
dolo de omitir). De quem, perante um acidente, não se representa a possibili-
dade de agir ajudando a(s) vítima(s), não se pode dizer que queria omitir127•
Entre as diversas soluções para essa questão, uma sustenta que existe omissão
dolosa quando existe a decisão de permanecer inerte 128 • Outra solução propõe
deslocar para a omissão o conceito de dolo dos crimes comissivos dolosos, ou
adaptá-lo 129• Uma terceira corrente simplesmente nega que na estrutura típica
omissiva exista dolo propriamente dito 130• Parecendo intuitivamente claro que
no tipo omissivo não se requer uma específica decisão de omitir, a primeira
solução deve ser descartada, restando sopesar a segunda e a terceira.

5. Recordemos, como ponto de partida, que a essência pré-típica da


omissão está na conduta efetivamente realizada: esta é precisamente a ação
final que o sujeito realiza e, diante da situação típica, essa finalidade está proi-
bida por ser distinta da finalidade devida. Essa finalidade também existe na
omissão culposa, sendo necessário distinguir entre ambas: embora seja
irrenunciável o conhecimento da situação típica e a representação da possibili-
dade, envolvendo meios e métodos, de realização da ação ordenada 131 , isso não
basta, porque na tipicidade omissiva dolosa o sujeito empreende a conduta dis-
tinta da devida precisamente porque se representa o curso causal que provoca-
rá o resultado e, portanto, sabe que deve deixá-lo desenvolver-se para que
sobrevenha o resultado. É pela realização da ação distinta que o omitente, não
intervindo no curso causal presente na situação típica, dirige a causalidade para
o resultado. Aliás, tampouco no tipo comissivo o agente manobra a causalidade
real, e sim a sua representação dela, porque se trata sempre de um curso
causal que se projeta no futuro: o dolo, no tipo comissivo como no omissivo,
ocupa-se de uma causalidade futura e imaginada; ocorre apenas que, para a
obtenção do resultado no tipo omissivo, o sujeito sabe que não deve intervir na
situação típica, que basta deixar as coisas andarem, basta realizar qualquer
conduta distinta da devida.

6. 9 mero cpnh~cim~nto da situação típica e a representação da possibi-


lidade de realização da ação ordenada não bastam, pois suprida a exigência da
finalidade proibida não haveria diferença entre omissão dolosa e culposa. Para
isso, restringir a esses dois elementos a substância do dolo na omissão equiva-

127
Stratenwerth, p. 286.
128
Lampe, Jngerenz oder dolus subsequens?, pp. 93 ss.; Mayer, H., 1953, pp. 247.
129
Grünwald, Der Vorsatz des Unter/assungsdelikte, pp. 281 ss.; Hardwig, Vorsalz bei
Unter/assungsdelikte, p. 27; adaptado em Jescheck-Weigend, p. 630.
130
Welzel, p. 204; Kaufmann, pp. 66 ss., e Unter/assung und Vorsatz, pp. 207 ss.
n, Welzel, p. 215.

373
leria a admitir um dolo totalmente despido de conteúdo conativo. Este raciocí-
nio rompe com a base ontológica sobre a qual foi erguida a construção típica.
Não se trata aqui de finalidade potencial nem de uma conduta potencial e
sim de uma conduta real e efetiva, que o legislador pode condicionar acrescen-
tando-lhe outros elementos cognoscitivos, porém tal qual ela existe e é captura-
da pelo tipo. O aliud agere tem uma estrutura final que não se esgota na
confecção das meias, no famoso exemplo da mãe, e sim na morte por desnutri-
ção do filho, para o qual a mãe tece as meias porque sabe que deve fazer
exatamente isso como ação distinta da ordenada (que interromperia a causali-
dade fisiológica em curso). Tecendo as meias a mãe domina a causalidade até
o resultado letal, até a morte do filho.

7. A finalidade de que o resultado vitando se produza não representa


uma motivação que se remeteria à culpabilidade: a mãe não tece porque o filho
morre, senão para que o filho morra 132. Desde a perspectiva do aliud agere
também se requer no dolo dos crimes omissivos a aprovação ou ratificação
antecipada do provável resultado 133 como mínimo de dolo (dolo eventual). De
modo similar ao que se passa nos tipos comissivos (ou ativos), quando a condu-
ta distinta é realizada para que o resultado sobrevenha, haverá dolo direto;
quando a conduta distinta é realizada apesar da probabilidade de que o resulta-
do sobrevenha, haverá dolo eventual. Ambas as formas de dolo, com as dife-
renças que ostentam no conteúdo conativo, podem apresentar-se na estrutura
típica omissiva.

8. Opina Rudolphi que o dolo da omissão exibe um conteúdo diferente do


dolo da ação, posto que neste encontramos uma vontade ativa dirigida à produ-
ção típica do resultado injusto, enquanto que esse desempenho ativo da vontade
por definição falta em toda omissão. De qualquer modo, Rudolphi destaca que
os dois conceitos de dolo permanecem conectados, porque sua conexão ocorre
no âmbito do normativo e não no substrato material subjacente: têm em co-
mum, diz ele, que o ponto de vista valorativo de que o conteúdo injusto de
todo delito doloso radica na decisão do autor pelo advento do injusto
típico 134. Precisamente nesta observação se assinala o conceito comum de
dolo do qual ambos se nutrem, ou seja, na vontade de realização do tipo objetivo
que, necessariamente, deverá reunir requisitos diferentes segundo se trate de
uma estrutura típica omissiva ou comissiva. A claríssima opção da lei brasileira por
um conceito de dolo centrado na vontade (art. 18, inc. I CP) encerra o debate.

132
Cf. Terragni, M.A., Omisión impropia y posición de garante.
133
Bacigalupo, op. cit., p. 89.
134
Rudolphi, p. 74; semelhante Stratenwerth, p. 286.

374
VI. As omissões culposas
1. Há quatro situações nas quais pode surgir a culpa por inobservância do
dever de cuidado: a) na apreciação da situação típica (o policial ouve os gritos
de socorro porém supõe, sem procurar certificar-se, ser uma brincadeira, e não
lhes atende); b) na execução da conduta ordenada (na pressa de apagar o
fogo, o bombeiro inadvertidamente arremessa gasolina sobre as chamas, ao
invés de água); e) na avaliação da possibilidade fisica de agir (o pai, que não
sabe nadar, deixa de salvar o filho pequeno que se afoga num açude com pro-
fundidade máxima de oitenta centímetros, o que desatentamente não perce-
beu) 135; d) nas circunstâncias que fundamentam sua posição de garantidor (o
médico, por erro vencível, acredita não estar de plantão na noite em que se dá
a situação típica). A segunda hipótese (b) se resolve numa tipicidade culposa
comissiva (ou ativa) 136.

2. O aliud agere oferece a inquestionável vantagem de solucionar com


naturalidade os chamados crimes de esquecimento, ou seja, as condutas típi-
cas omissivas culposas com culpa inconsciente (sem representação), que havi-
am atraído a dogmática para caminhos tão equivocados que chegou-se a
sustentar a existência de crime sem vontade e até mesmo sem ação nem von-
tade. A rigor, a teoria do a/iud agere e particulannente a afinnação de que o
dolo na estrutura típica omissiva não é substancialmente diferente do dolo na
estrutura típica comissiva (ou ativa) exorcizam outro fantasma que provém, em
última análise, das velhas concepções duais de dolo (natural e desvalorado).
Quem admite que nos tipos omissivos não há dolo mas tão somente um equiva-
lente ou quase-dolo deveria arcar com a consequência de que na omissão
culposa bastaria uma espécie de quase-culpa e não uma verdadeira culpa. De
fato: se se sustenta que na omissão não há causalidade e, portanto, tampouco
dolo em sentido estrito, igualmente não se poderia admitir um defeituoso plane-
jamento da causalidade referido ao dever de cuidado, mas apenas um equiva-
lente disso 137•

135
Welzel só menciona as três primeiras situações, p. 207; Kaufmann trabalha (dentro de sua
concepção de "omissão consciente") o caso do açude (Dogmática, p. 127).
136
Outra opinião, com referência à criação de um foco de perigo, em Gimbemat Ordeig,
Enrique, Causalidad, omisión e imprudencia, p. 38.
137
Sustenta-se que, em caso de dúvida sobre a natureza comissiva (ativa) ou omissiva da culpa,
prevalece a comissão (princípio da subsidiariedade); cf. Silva Sánchez, Jesús Maria, Comisión
y omisión: criterios de distinción, p. 24.

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