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Estresse e Modos de Andar a Vida: uma

contribuição de Canguilhem para a


compreensão da Síndrome Geral de Adaptação
Stress and Ways of Walking Through Life: a contribution of
Canguilhem to the understanding of the General Adaptation
Syndrome

Maurici Tadeu Ferreira dos Santos Resumo


Mestre em Saúde Coletiva.
Endereço: Avenida Celso Garcia, 1907, Ap. 51, Edifício Ipê, Belen- Com a ajuda de Canguilhem – para quem “homem e
zinho, CEP 03015-001, São Paulo, SP, Brasil. meio, considerados separadamente, não podem ser
E-mail: mauricitadeu@yahoo.com.br normais” – empreendemos uma etnografia em um
Mara H. de Andréa Gomes condomínio da cidade de São Paulo tendo como pa-
Profa. Adjunta do Departamento de Medicina Preventiva da Uni- râmetro a noção de normatividade, segundo a qual os
versidade Federal de São Paulo / Escola Paulista de Medicina. organismos, em suas interações com as infidelidades
Endereço: Rua Borges Lagoa, 1.241, 2o Andar, Vila Clementino, CEP
do meio, elaboram normas de adaptação. Ao longo de
04038-034, São Paulo, SP, Brasil.
E-mail: maraandrea@unifesp.br seis meses, dialogamos com 16 moradores a respeito
de suas atividades de vida diária e de suas maneiras
de interpretar e enfrentar eventos considerados
estressantes. Dada a estreita associação com as
con­dições de vida desses moradores, a abordagem
mostrou-se adequada para apreender a multiplici-
dade de sensações apontadas pelos entrevistados.
Para adequar a análise à ideia canguilheniana de
que “vida é polaridade”, traduzimos essas sensações
em categorias “frustrantes” e “gratificantes” e as
consideramos maneiras de engendrar modos de
andar a vida. Assim, pudemos perceber que eventos
considerados prazerosos ou dolorosos e  referidos
de modo difuso e não específico, podem desencadear
desordens adaptativas muitas vezes interpretadas
como estresse por aqueles que os vivenciam.
Palavras-chave: Estresse fisiológico; Condições
Sociais; Síndrome Geral de Adaptação; Etnografia;
Epidemiologia.

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Abstract Introdução
With the help of Canguilhem - for whom “man and A Síndrome Geral da Adaptação (SGA) foi descrita
environment, considered separately, cannot be pelo médico austro-húngaro naturalizado canadense
normal” - an ethnography was undertaken in a con- Hans Selye (1950), e traz as bases para o entendi-
dominium located in the city of São Paulo, having mento da fisiologia do estresse, termo que evoca
as parameter the notion of normativity, according certa confusão. O próprio Selye hesitou em cunhar
to which the organisms, in their interactions with o desconforto, e só o fez alguns anos após a formu-
the infidelities of the environment, develop norms lação de sua teoria baseada nas reações fisiológicas
for adaptation. During six months we interviewed decorrentes de dificuldades adaptativas e de solicita-
16 residents about their daily life activities and their ções exageradas da glândula suprarrenal. Seja qual
ways of interpreting and facing events considered designação adotemos, o fato é que a manifestação
stressful. Given the close association with the do que hoje se reconhece como “estresse” desenca-
living conditions of these residents, the approach deia alterações hormonais, tireoidianas, ovarianas,
proved to be adequate to capture the multiplicity of pancreáticas, imunológicas, das suprarrenais e do
sensations mentioned by respondents. To adapt the fluxo menstrual como resultado de transtornos as-
analysis to Canguilhem’s idea that “life is polarity”, sociados à ansiedade (Ballone, 2002). Como explicar
we translated these sensations into the categories essas alterações na ausência de uma designação
“frustrating” - “gratifying” and considered them inequívoca e específica?
as manners to engender ways of walking through Em uma revisão das escalas, inventários e ques-
life. Thus, we perceived that events considered ple- tionários de avaliação, verificamos que o estresse é
asurable or painful, and referred to in a diffuse and descrito amiúde não só em termos fisiopatológicos
nonspecific way, may trigger adaptive disorders como também psicopatológicos (Sardá, 2004) e na
often interpreted as stress by those who experience interação entre ambos. Pensamos que a carga de
them. subjetividade nesses termos poderia ser apreciada
Keywords: Physiological Stress; Social Conditions; de maneira mais adequada se tivesse significado e
General Adaptation Syndrome; Ethnography; Epi- medida melhor apreendidos pela epidemiologia.
demiology. A esse respeito, Castiel (2005) chamou aten-
ção para o desgaste dos modelos de explicação do
processo saúde-doença na coletividade, sobretudo
devido às limitações impostas por métodos epide-
miológicos que abordam manifestações difusas
cuja previsibilidade não é delimitável. Se a SGA está
bastante documentada pelos inúmeros trabalhos de
Selye, o mesmo não ocorre com as manifestações
do estresse, cuja designação permanece duvidosa
e polissêmica: afinal o que significa a expressão
“estresse” na vida cotidiana? É possível incluir o
estresse na SGA e, assim, compor indicadores de
saúde para a população em geral?

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A Falta de Dados para uma A ausência de indicadores epidemiológicos de
estresse nos dados da Secretaria Municipal de Saúde
Descrição Epidemiológica, um de São Paulo conduziu-nos a realizar um levanta-
Dilema mento primário que fornecesse um padrão inicial
de referência. Optamos por uma descrição amparada
Iniciamos nossa peregrinação em busca de dados
por entrevistas e abordada por um certo “cogitar”
sobre o estresse em duas grandes referências: a
epidemiológico. Esses procedimentos foram cote-
“Classificação Internacional das Doenças-CID”
jados com aportes disciplinares da antropologia e
(CID10, 2008) e o “Manual Diagnóstico e Estatís-
da epidemiologia.
tico de Transtornos Mentais - DSM-IV-TR” (APA,
2002). Cientes de que esta busca pressupunha
reconhecer no estresse uma doença, encontramos, Etnoepidemiologia,
mesmo nessas bases de informações, ambiguidades a Interdisciplinaridade Necessária
semelhantes àquelas perpassadas na revisão da li-
teratura. Enquanto o DSM-IV refere estresse como No campo da saúde coletiva, o propósito de aproxi-
“transtorno”, a CID-10 indica “reações” ao estresse mar disciplinas com o objetivo de prover enfoques
ora sugeridas como causa, ora como efeito. e instrumentos para processos de investigação
A categoria F43 encontrada na CID10 (Reações é fundamental. Para Sevalho e Castiel (1998) tal
ao “stress” grave e transtornos de adaptação) ilustra empreendimento não só é possível como inevitá-
esta afirmação: “Embora fatores de stress psicosso- vel em vista do caráter indisciplinado do adoecer
ciais (life events) relativamente pouco graves pos- humano, resistente às tentativas disciplinares de
sam precipitar a ocorrência de um grande número enquadramento.
de transtornos classificados em outra parte neste A possibilidade de construção etnoepidemiológi-
capítulo ou influenciar-lhes o quadro clínico, nem ca nos foi recentemente apresentada por Fernandes
sempre é possível atribuir-lhes um papel etiológico, (2003) para considerar aspectos fragmentados,
quanto mais que é necessário levar em consideração conflituosos, dependentes, ambíguos e incertos de
fatores de vulnerabilidade, frequentemente idios- eventos relativos ao processo saúde-doença. Em-
sincráticos, próprios de cada indivíduo. Em outros bora complexa e de difícil aprofundamento, uma
termos, esses fatores não são nem necessários nem construção interdisciplinar revela-se boa alterna-
suficientes para explicar a ocorrência e a natureza tiva para contemplar questões situadas em níveis
do transtorno observado. Em contraste, para os hierárquicos distintos.
transtornos reunidos aqui sob F43, admite-se que Com os atributos indicados por Fernandes e
sua ocorrência é sempre a consequência direta de com outros emprestados de Canguilhem, buscamos
um stress agudo importante ou de um traumatismo enfocar a Síndrome Geral de Adaptação a partir de
persistente. O acontecimento estressante ou as uma etnoepidemiologia em torno do estresse. A
circunstâncias penosas persistentes constituem o interlocução constante entre a epidemiologia e a
fator causal primário e essencial na ausência do antropologia constitui percurso necessário, ainda
qual o transtorno não teria ocorrido. Os transtornos que saibamos de antemão que não daremos conta de
reunidos neste capítulo podem ser considerados res- uma e de outra extensão, nem como conjunto nem
postas inadaptadas a um stress grave ou persistente, em suas particularidades. Isso não impede de tê-las
na medida em que eles interferem com mecanismos como constituintes da nossa análise, já que a pers-
adaptativos eficazes e entravam assim o funciona- pectiva interdisciplinar ou de uma complementari-
mento social”. (grifos nossos) dade entre disciplinas científicas decorre da própria
Essas considerações serviram de alerta para necessidade engendrada por temas de reconhecida
a característica ambígua que permeia a própria complexidade (Morin, 1991; Santos, 1995).
identificação do estresse no sistema classificatório De fato, a interdisciplinaridade tem sido objeto
de doenças e no Sistema de Informação da Atenção de ampla e recorrente reflexão que “...atravessa o
Básica (SIAB). saber, o poder e o mundo vivido” (Minayo, 1991).

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O mútuo sombreamento entre a epidemiologia e a Georges Canguilhem trouxe enorme contribui-
antropologia remonta às suas respectivas origens, ção para a reflexão e prática interdisciplinar, ao in-
conforme diversas notas históricas sobre a colabo- corporar aportes da filosofia e da fisiologia. Guiado
ração entre elas (Trostle, 1986), embora, como tam- pela interlocução entre essas disciplinas, aliou mais
bém sabemos, os conflitos constituam certa marca do que confrontou, e trouxe à tona a relevância da
dessas relações. vida sobre qualquer postulado técnico utilitário.
Retomemos o alerta de Canguilhem para não A ênfase quantitativa que reinou no nascimento
dissociar o organismo de sua cultura e valorizar da clínica anatomopatológica teve sua hegemonia
cientificamente a experiência antropológica ou contestada.
cultural. Daí a relevância desta concepção para o Reconhecemos os percalços de uma proposta de
entendimento da doença e da saúde sob o prisma da intersecção dessas áreas do conhecimento. Desde a
interdisciplinaridade, na medida em que amplia o construção dos instrumentos de coleta de informa-
olhar “localizante” invocando outros sentidos, como ções à reflexão que se seguiu, nossas ações foram
“ouvir e apreender”, numa trajetória “totalizante”. conduzidas por diálogos entre as técnicas e os mar-
Mesmo a constatação de testes diagnósticos não cos de referência, cuidando de uma interconexão que
permite compreender o todo; a patologia pode gerar resta, ainda, potencial.
confusão do ponto de vista filosófico e é, às vezes,
até mais perigosa do ponto de vista terapêutico: “a Condomínio Projeto Viver Celso
doença não está no nível da célula, supostamente
autônoma, e sim que para a célula a doença consiste
Garcia (CPV) como locus de um
nas relações com o sangue e o sistema nervoso, com Levantamento
o meio interno” (Canguilhem, p. 173, 2009). Situado na região leste do município de São Paulo, o
É certo que Canguilhem não fala explicitamente CPV concentra 6.273 moradores de estratos médios
a partir da antropologia nem da epidemiologia. Suas e representa 15% dos habitantes da população do
observações oferecem oportunidades para pensar distrito do Belenzinho, motivo pelo qual constituiu
uma proposta de aproximação entre uma certa epi- nossa base etnográfica de levantamento acerca de
demiologia e uma certa antropologia. Essa ideia de condições de vida relacionadas ao estresse, tendo
suporte interdisciplinar ofereceu mais “chances” de sido aceito tanto pela Administração local quanto
nos aproximarmos do estresse. pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unifesp.
As infidelidades do meio, as vicissitudes, suces- Segundo Canguilhem (2009), a vida urbana e
sos ou insucessos da vida, constituem a própria vida as exigências da economia moderna perturbam os
para Canguilhem. A maneira pela qual preferimos grandes ciclos fisiológicos, daí nossa presunção
ou excluímos determinadas normas de conduta sobre a interdependência entre modos de andar a
caracteriza nossos modos de andar a vida. Nesta vida e os necessários processos de (re)adaptação.
perspectiva ampliada, a epidemiologia também pode Supomos que em uma cidade como São Paulo, as
contemplar informações obtidas em contextos refe- escolhas e as justificativas de mudança e/ou rea-
rentes a escolhas, melhor apreensíveis por meio da daptação requerem, quase dramaticamente, o que
interpretação do assim chamado “senso comum”. este autor considera como organismo normativo – a
Pensar numa dimensão justa de abordagem capacidade de elaborar normas diante das infideli-
(Geertz, 1989) requer conhecer os fundamentos da dades do meio em que se vive.
epidemiologia e tomar a antropologia como uma Mas quando se trata de explicar doenças é ne-
ciência interpretativa à procura de significados. cessário estar atento para estados de falso equilíbrio
Essa convicção pode ser uma ponte teórica e fun- adaptativo, uma vez que o cosmopolitismo joga im-
cional para uma etnoepidemiologia em construção, portante papel na teoria da labilidade responsável
fruto também de uma negociação científica capaz por inconstâncias fisiológicas. Estas não consti-
de contornar as disparidades e de assumir certos tuem propriamente doenças, são, antes, normas que
riscos de intelecção. definem modos de andar a vida e denotam capaci-

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dade (re)adaptativa dos organismos. Aqui, o estado de andar a vida diante também da diversidade que
patológico referido como doença decorre do fato de o constituem as infidelidades do meio. A partir de uma
doente ser doente por só poder admitir uma norma. pré-enquete elaboramos os significantes-incluídos,
O doente não é anormal por ausência de norma, e tendo em vista a descrição das situações cotidianas
sim por incapacidade de ser normativo. Canguilhem de aborrecimento ou prazer.
alerta para um fato biológico fundamental: a vida
não conhece reversibilidade, mas admite reparações,
e estas, sim, configuram inovações fisiológicas.
Percepções, Sinais e Sintomas: em
Complementarmente à observação etnográfica, busca de significado da expressão
entrevistamos 16 moradores por meio de um for- estresse
mulário enriquecido com aportes dos inventários
de Holmes e Rahe (1976), Cohen e colaboradores As facilidades que a cidade oferece foi o item gratifi-
(1983), Lipp (1999) e Peluso e Blay (2008). Levamos cante mais destacado, seguido pelas oportunidades
em consideração itens que os testes mais indicados de lazer, amizade e acolhimento. Falta de respeito foi
nos inventários sobre estresse reconhecem como o descritor frustrante com maior frequência, segui-
associados à percepção de eventos de (re)adaptação do por trânsito, transporte, violência e falta de ética,
social. Em função de pressupostos ancorados em impunidade e desrespeito dos governantes.
Georges Canguilhem, optamos por eleger moradores É interessante notar que os homens mostraram
com idade entre 21 e 65 anos, faixa etária em que pos- maior registro de estresse ao dirigir, por serem
suem maiores chances de vínculo com mudanças e obrigados a ficar parados em “...ruas e avenidas
adaptações em conformidade com as experiências da abarrotadas de carros...”, o que significava perda de
vida economicamente ativa e eventos migratórios. tempo e consequente perda de dinheiro.
A escolha desses moradores seguiu a técnica de Para as mulheres, a percepção mais forte de es-
“amostragem sistemática estratificada implícita” tresse referiu-se ao item “má qualidade no transpor-
(Berquó, 1981), considerando a porcentagem de te” (“...apertadas, esmagadas, enlatadas, imprensa-
blocos de dois e três dormitórios no conjunto do das, sufocadas, amassadas...”). Para entender essa
condomínio, o andar do apartamento e a visão das discrepância, é relevante destacar que enquanto os
varandas em função de seus diferentes valores de homens entrevistados se deslocavam para o trabalho
mercado. em seus próprios automóveis, todas as mulheres
Após adaptarmos a técnica de análise de conte- utilizavam transporte público como ônibus, trens e
údo de Pondé e colaboradores (2009), selecionamos metrôs superlotados.
como domínio cultural o evento “adaptabilidade” e O mesmo motivo contribuiu para que o alegado
como significantes-chave os termos “frustrante” incômodo no joelho também fosse diferente entre
(para eventos que mais aborreceram, desgostaram os sexos: para os homens, em virtude do uso dos
e desagradaram os entrevistados) e “gratificante” pedais dos carros e, para as mulheres, pelo fato de
(eventos mais prazerosos). Para aqueles autores, a ficarem em pé no transporte durante o percurso
análise de dados qualitativos em dois níveis propicia para o trabalho.
uma interpretação mais adequada, desde que sejam De modo geral, as condições de trabalho são
identificados o domínio cultural que se ajusta ao frustrantes quando envolvem relações pessoais
objeto pesquisado e os significantes-chave relacio- coercitivas e excesso de trabalho; enquanto oportu-
nados às perguntas. Em nosso caso, entendemos nidades de crescimento, aprendizado e satisfação
que o domínio cultural seja “adaptabilidade”, já que pessoal foram identificadas como gratificantes. Uma
pesquisamos a síndrome adaptativa e os transtornos singularidade, no entanto, chama atenção: fatores
de adaptação. O necessário respaldo para eleger normalmente considerados estressantes, como o
esta capacidade “adaptabilidade” como domínio estado de prontidão e de assertividade típicos de
cultural encontra-se nas escolhas e nos processos situações de pressão e conflito, são gratificantes
normativos que engendram diversificados modos quando considerados como atributos positivos pela

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chefia: “...existem problemas que tenho que resolver, à flor da pele; sensação de pressão subindo; face
mas não tenho autoridade; sinto-me impotente e vermelha que descama e começa a coçar; dor nas
pressionado. Só que eu sinto que desta forma eu pernas; sensação má no corpo; arritmia; garganta
estou merecendo o meu salário” e “...tem um estresse que “esquenta”, olho que “pipoca”; bochechas es-
mas meu chefe é bom, ele reconhece. Não tenho o que quentam e ficam vermelhas; sensação de sangue e
reclamar”. coração acelerados; dificuldade de ler de perto; al-
Quanto à vida em condomínio, revelou um coti- teração da pressão arterial; sensação de labirintite;
diano gratificante na descrição dos entrevistados. sensação de algo na região do estômago; dores na
A aglomeração presumida só é referida como região para-vertebral e abaixo das escápulas; dor no
frustrante pelas mulheres, ao relatarem seus des- sacro, peso na cervical; formigamento nas plantas
locamentos em transportes coletivos lotados. Para dos pés e acima do tendão de Aquiles; sudorese no
algumas, locais de aglomerações como shoppings corpo inteiro; dor na região do osso frontal; dor no
são apontados como atividade gratificante e até osso temporal; aperto na região pré-cordial; dor nos
necessária : “...fazer compras é um momento em que joelhos; dor na região do músculo trapézio, dor atrás
saio com minhas amigas...comprar faz bem...”. do olho e no coração; sensação de língua gelada;
Diferentemente das mulheres (com exceção de mãos geladas; dor na coluna na altura da cintura e
duas entrevistadas celibatárias), predomina en- nas coxas; tremedeira, vista turva.
tre os homens a resistência em reconhecer como Em comparação com paulistanos, chamou nossa
“problema” algumas infidelidades do meio. Alguns atenção o fato de que mais da metade dos entrevis-
chegam a insistir, inclusive, que dissabores “...não tados que referiram dor e pontada no peito eram
são problemas e sim situações...”, apresentando migrantes. Uma entrevistada nascida no norte do
uma reação que não deixa de constituir um modo País, por exemplo, comentou não se sentir 100%
de excluir situações frustrantes. adaptada em São Paulo “...parece que fica um pedaço
O tempo gasto no trânsito, nas filas e noutras seu, sinto falta de minha terra por pior que era... meu
situações que poderiam ser evitadas foi identificado coração palpita”. O programa de televisão que ela
como atividade frustrante podendo gerar impaciência mais assistia e gostava era “De volta para sua terra”,
e ansiedade. Quando as condições de trabalho exigem exibido pelo SBT e apresentado por Gugu Liberato.
grande carga horária, o tempo restante para atividades E completou: “... lá o Gugu dá chances para eles
consideradas gratificantes é considerado escasso. voltarem. Eles voltam, pegam muitos ônibus para
De nossa parte, podemos afirmar que a grande chegar naquela terra esturricada”.
maioria dos entrevistados associou a expressão Notemos que percursos de migração amiúde são
estresse a eventos frustrantes. Selye (1950) já havia acompanhados de esforço adaptativo assim como
descrito certos desarranjos de comportamentos em de possíveis frustrações decorrentes do afasta-
função do estresse que, posteriormente, também mento de laços afetivos familiares e de amizade, de
foram reconhecidos por Canguilhem (2009, pg. 4). fadiga, isolamento, apreensão e ansiedade. Enfim,
Encontramos enorme quantidade de significados a ação de migrar pode ser acompanhada de altera-
e descrições de estresse, reforçando ainda mais as ções desencadeadas pelo novo e pelo estranho, nos
dificuldades de delimitá-lo. Abaixo, listamos todas seus modos de andar a vida, supondo que se viram
as expressões utilizadas pelo conjunto dos nossos levados a encontrar ou a criar normas adaptativas
entrevistados quando solicitados a descrever o que para enfrentar estas infidelidades do meio, ação não
sentem quando se percebem estressados: cogitada pelos nativos.
Dor; cansaço; contração dos músculos; veias Ao relacionar doenças isquêmicas do coração
que se apertam; respiração ofegante; irritação; im- (DIC) e mortalidade em nativos e migrantes em
paciência; corpo contraído; aceleração do coração; São Paulo, Marcopito (2003) aponta que estas são
palpitação; respiração curta; dor de cabeça; sensa- responsáveis pela maioria das mortes de migran-
ção de estar num furacão; sensação de tudo estar tes provenientes da região nordeste. Com base em
rápido; taquicardia; sudorese; boca seca; nervos estudos estrangeiros, o autor mostra que em grupos

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de mesma etnia, os mais pobres têm hábitos dieté- não estava dando resultados”. Lembremos Cangui-
ticos “menos saudáveis” para as DIC, e em etnias lhem, mais uma vez, a propósito de “patologias de
diferentes, mas de estrato social semelhante, o função” ou “modos de sentir-se doente” sem que se
consumo de gordura é maior onde é mais elevada a possa atribuir-lhes causas objetivas e notamos que
morbimortalidade por DIC. esta entrevistada só aceitou como mais adequada a
Em 1981, num artigo intitulado “Hipertensão explicação que lhe foi dada quando compreendeu a
e atividades econômicas em São Paulo”, Myriam relação que o profissional fez entre seu joelho e “...a
Ribeiro e colaboradores especularam a importante pressa, ansiedade e medo...”.
associação entre pressão no trabalho, condições de
transporte e outros itens relacionados às condições
de vida em São Paulo como possíveis indutores do
Relato de Experiência
estresse social. A palavra estresse origina-se do latim stringere,
Em 1986, Naomar de Almeida Filho e Vilma que pode significar: constranger, apertar, sufocar,
Santana por seu lado, analisaram a contribuição exigir, apertar, estrangular. Nossos entrevistados a
da alta densidade demográfica para esse agravo. consideraram com esses significados e procuraram
Este estudo de área ecológica em um setor de baixa formas de enfrentar as situações advindas desse
renda em Salvador-BA relaciona espaço urbano e reconhecimento.
doenças mentais, e aponta duas constatações que O termo estresse foi reconhecido por todos os
nos interessam. entrevistados em associação aos descritores “cons-
Primeiro, depararam-se com o que denominaram trangedor, ameaçador e perigoso” e usaram mais de
“estresse urbano de quantidade”, evento indisso- uma referência para designá-lo: nervoso, irritação,
ciável daquelas condições de vida. Em segundo raiva, pressão, esgotamento e fadiga. Para dois en-
lugar, não apenas registraram um efeito complexo trevistados: “há diferença entre o estresse pequeno,
pela quantidade e qualidade de covariáveis, como a que é normal nas pessoas de São Paulo e o estresse
incompatibilidade destas serem enquadradas em grande, ou bola de neve ... O extremo máximo pode
pressupostos dos modelos de regressão estatística. acontecer com uma gota d’água... surgir por uma
Os autores partem de trabalhos anteriores, nos situação aparentemente insignificante, se tornando
quais a tensão arterial e a densidade demográfica perigoso para a saúde”.
já eram relacionadas com sintomatologia associada Temos aí a convergência do que Canguilhem
ao estresse, com fortes indícios de repercussões nas chamou de “modos de andar a vida”: para alguns,
taxas de morbidade e mortalidade. A partir desses foi primordial escolher (preferência ou exclusão)
estudos, podemos reforçar as hipóteses que asso- “a priori” o significado da situação, enquanto para
ciam o estresse com outras comorbidade, como as outros a possibilidade de escolha “a posteriori” é
doenças do sistema cardiovascular. que determinou resultados mais gratificantes do
Neste sentido, buscamos entre os entrevistados que frustrantes.
agravos que tenham ocorrido nos últimos 12 meses Dentre os recursos apresentados para enfrentar
e as possíveis associações com o estado percebido o estresse, tanto homens como mulheres procuram
como estresse. A maioria dos entrevistados relacio- primeiramente por familiares, seguidos de amigos,
nou as seguintes sensações de dor e desconforto com culto religioso, uso de medicação, massagem e acu­
estresse: problemas de memória, tontura, problemas puntura. Os homens não recorreram a qualquer
no nariz, dores na coluna vertebral, dores na nuca, especialidade médica, enquanto as mulheres não
dermatite, problemas renais, dores de garganta, citaram psicólogo.
mal-estar geral e dores no joelho. Tomar água, ler a bíblia, tomar chá calmante,
Uma enfermeira relatou “mal-estar” e “dor no joe- tomar suco de maracujá, fazer reiki, sair e andar,
lho” para a qual havia procurado um fisioterapeuta- fazer yoga, passear com o cachorro, foram os re-
acupunturista como recurso complementar, uma vez cursos mais alegados enquanto “outras” técnicas
que “...a medicação anti-inflamatória era paliativa e de enfrentamento.

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Entendemos que certos comportamentos ou, AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual
melhor dizendo, certos modos de andar a vida, são diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.
meios não indiferentes desta mesma vida. Meios nos 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2002.
quais as infidelidades que se apresentam configu- BALLONE, G. J. Estresse e alterações
ram o cenário das pequenas e grandes adaptações hormonais. PsiqWeb, 2002. Disponível em:
que ocorrem em forma de soluções baseadas num http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/
impulso básico: escolher. Excluir ou preferir são LerNoticia&idNoticia=63. Acesso em: 28 ago.
ações que traduzem o conceito “vida é polaridade” 2008.
em um jogo de preferências variáveis e instáveis,
como sabemos. Nosso levantamento foi inscrito nes- BERQUÓ, E.; SOUZA, J. M. P, GOTLIEB, S. L. D.
ta zona de instabilidade, com o pressuposto de que Bioestatística. São Paulo: EPU, 1981.
decisões por esta ou aquela escolha “com-formam” CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed.
os modos de andar a vida. Estes traduzem nossa São Paulo: Forense Universitária, 2009.
satisfação ou insatisfação diante do que nos cons-
CASTIEL, L. D. O estresse na pesquisa
trange ou desagrada, como a constituir desordens
epidemiológica: o desgaste dos modelos de
adaptativas que, por sua vez, mobilizam ações para
explicação coletiva do processo saúde-doença.
criação de normas.
Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro,
A esta dinâmica, podemos acrescentar que a
v. 15, p. 103-20, 2005. Suplemento.
normatividade joga papel decisivo, quando inves-
tigamos os modos de enfrentamento do que foi CID 10 - Classificação Estatística Internacional
considerado frustrante no cotidiano dos moradores. de Doenças e Problemas Relacionados_Saúde.
A falta de dados secundários que sustentem uma São Paulo: Centro Colaborador da OMS para a
descrição epidemiológica em torno do estresse não Classificação de Doenças em Português (Centro
pode constituir impedimento para pesquisar a sub- Brasileiro de Classificação de Doenças): Faculdade
jetividade que envolve a experiência do sofrimento, de Saúde Pública da Universidade de São Paulo/
ainda que tenhamos necessidade de apelar para Organização Mundial de Saúde/Organização Pan-
outros campos disciplinares. Tomamos Cangui- Americana de Saúde, 2008. 10 rev., v. 1. Disponível
lhem como exemplo de interdisciplinaridade para em: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.
construir nossa observação etnoepidemiológica, htm. Acesso em: 15 ago. 2008.
com a certeza de que não podemos renunciar ao seu COHEN, S.; KAMARCK, T.; MERMELSTEIN, R.
aprofundamento. Neste sentido endereçamos esta A global measure of perceived stress. Journal of
incursão numa trajetória processual que contribua Health and Social Behavior, Austin, TX, US, v. 24,
em estabelecer prerrogativas auxiliares para as pos- n. 4, p. 385-96, Dec. 1983.
síveis associações do estresse com a Síndrome Geral
FERNANDES, R. C. P. Uma leitura sobre a
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coorte que colaborem na construção de indicadores
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modos de andar a vida. Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
HOLMES, T. H.; RAHE, R. H. The social
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Recebido em: 07/04/2011


Aprovado em: 03/02/2012

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