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ÜMKHI S.
Antonio Beristain

Nova criminologia à luz do


direito penal e da vitimologia

Apêndice: Declaração sobre os princípios


fundamentais de justiça para as vítimas de delitos
e do abuso de poder (ONU)

Tradução
C â n d id o F u rta d o M a ia N e to

P ro fe s so r d o C u rso de M e s tra d o
em D ireito da U n iv e rs id a d e P a r a n a e n s e - U N I P A R

EDITORA
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E q u ip e e d ito ria l: A irto n L u g a r in h o ( S u p e r v is ã o e d ito ria l); R e ja n e d e
M e n e s e s ( A c o m p a n h a m e n to editorial); W ilm a G o n ç a lv e s R o sas Saltarelli
( P r e p a r a ç ã o d e o r ig in a is ); M a u r o C a ix e ta d e D e u s , W i lm a G o n ç a lv e s
R o s a s S a lta r e lli e S o n ja C a v a l c a n t i ( R e v i s ã o ) ; E u g ê n i o F e lix B r a g a
( E d ito r a ç ã o eletrô nica); W a g n e r S o a re s (C a p a ).

Copyright © 2000 by Editora Universidade de Brasília


T ítulo original: N u e v a crim inología desde el derecho penal y la victim ología

Impresso no Brasil

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E d ito ra U n iv e rs id a d e d e B rasília Im p ren sa O ficial do E sta d o


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T o d o s o s d ire ito s re se rv a d o s. N e n h u m a parte d esta p u b lic a ç ã o p o d e r á ser


a r m a z e n a d a o u r e p ro d u z id a po r q u a lq u e r m eio s e m a a u to riz a ç ã o p o r e s ­
crito d a E d ito ra.

F ich a c a ta lo g rá fic a e la b o ra d a pela


B ib lio te c a Central da U n iv e rs id a d e de B rasília

B eristain, A n to n io
B 511 N ova crim inologia à luz do direito penal e da
v itim o lo g ia / A ntonio Beristain; tradução de C ând i­
do Furtado M aia Neto. - B rasília : E d ito ra U n i­
v e rs id a d e de B rasília : S ão P au lo : Im p re n s a
O ficial d o E stad o, 20 0 0 .
194p.

T r a d u ç ã o de: N u e v a c rim in o lo g ía d e s d e el
d e re c h o penal y la v ic tim o lo g ía.

IS B N 8 5 -2 3 0 -0 5 9 1 -9

1. D ireito crim in al. I. M a ia N e to , C â n d id o


F urtado. II. T ítu lo .
C D U 3 4 3 .2
Às pessoas c às instituições que, inteligente, generosa e
valentemente, trabalham em favor da assistência às vítimas do
terrorismo do ETA.

Àqueles que cientificamente desmascaram e recusam as


ideologias que encobrem e disfarçam o problema de Euskadi
(País Vasco) como mero enfrentamento de duas violências.

Àqueles que, em alto-mar, com barco afundado, crêem,


esperam e amam.

Aqueles que, em plena noite, vêem/criam a aurora.

Às pessoas privadas de liberdade, das que tanto tenho


aprendido a respeito do sentido de viver e de morrer. Perdoem
nosso “esquecim ento” imperdoável e nossa cotidiana
insolidariedade.

A Pedro Láin EntraIgo, autor de Esperança em (empo de crise.


Sumário

P r e f á c io , 11
E u g ê n io R a ú l Z a f f a r o n i

N o ta do tr a d u to r , 15

p a r te I
CRIM INOLOGIA

C a p ít u l o 1
A p r o x i m a ç ã o c r i m í n o l ó g i c a e d e p e n d ê n c i a d e d r o g a s , 19
Interdependência: terrorismo internacional-tráfico de drogas, 19
Contribuição artística e mística, 22
Religião e arte: novos horizontes e respostas, 25
C a p ít u l o 2
T ra b a lh a d o re s v o lu n tá rio s n o m undo de h o je e de
a m a n h ã (a s r e g r a s m ín im a s d e s a n ç õ e s c a r c e r á r i a s
29
E N Ã O -C A R C E R Á R 1 A S ),
Os voluntários estrulunidores da pessoa e da sociedade, 29
Exemplos de voluntários na Europa e na América, 33
Perfil do trabalhador voluntário penitenciário, 35
O voluntariado penitenciário como direito e como serviço, 42
Universitários e trabalhadores voluntários com jovens em risco, 46
As regras mínimas de sanções não-carcerárias, 47
Resumo e conclusões, 49
8 Antonio Beristain

C a p ít u l o 3
EPISTEMOLOGIA CR1MINOLÓGICA: DA RETALIAÇÃO
AO PERDÃO, 53
Resumo histórico-comparativo do Talião na política criminal e
no direito penal, 53
Talião dialético de integração cósmica, não-unidimensional, 54
Direito dos delinqüentes ao perdão, 57
Epistemologia criminológica metarracional, 59
Dessacralização e ressacralização do Talião, 62

PARTL II
V IT IM O L O G IA

C a p ít u l o 4
N ova filo so fia p o lític a de e p a ra a n o v a p o lític a c rim in a l
(o E s t a d o n ã o t e m o m o n o p ó l i o d a v i o l ê n c i a ) , 69
Metas, 69
Pilares fundamentais comuns, 71
Evolução histórica paralela?, 73
Da política criminal privada ao caos e à filosofia política
absolutista, 7 4
Da política criminal sacra à filosofia política do poder que
emana de Deus aos cidadãos, 75
Do poder que rotula e marginaliza ao abolicionismo da pena
de morte, ao abolicionismo do cárcere e ao utópico abolicio­
nismo do direito penal, 75
Da filosofia política assislencial à política criminal vitimo-
lógica, 77
Da política criminal estatal à filosofia política supra e inter­
nacional, 77
Olhando para o futuro, 78
Sum ário 9

C a p ít u l o 5
A S O C IE D A D E /JU D IC A T U R A A T E N D E A SUAS V ÍT IM A S /
TESTEM U N H A S?, 83
Vitimologia, 83
Conceitos básicos e importância da vitimologia, 88
Dificuldades e perigos da vitimologia, 91
Vítimas/testemunhas, 96
Graus de vitimação, 103
Sociedade/judicatura, 109
Conclusões de lege ferenda, 123
A p ê n d ic e
D e c l a r a ç ã o s o b r e o s p r in c íp io s f u n d a m e n t a is de
J U S T IÇ A PARA AS V ÍT IM A S DE D E L IT O S E DO A B U S O DE P O D E R
(ONU), 127
As vítimas de delitos, 127
As vítimas do abuso de poder, 131

P a r t e III
D IR E IT O PEN A L

C a p ít u l o 6
A HISTÓRIA CAMINHA PARA A ABOLIÇÃO DA SANÇÃO CA PITAL, 135
Coordenadas fundamentais, 135
Evolução histórica, 138
Assistência religiosa, 150
Sigamos discorrendo, 152
C a p ít u l o 7
V lN C U L A Ç Ã O H ISTÓRIC A EN I RE R E L IG IÃ O E D IR E IT O PEN AL, 1 5 7
Luzes e sombras, 157
A poenci cullei, 160
indultos e anistia, 163
10 Antonio Beristain

C a p ít u l o 8
J u stiç a p e n a l re c ria d o ra , da re trib u tiv a à
171
re s ta u ra tiv a ,
Uma terceira cosmo visão da justiça penal, 171
Linhas fundamentais das cosmovisões retributiva e restau­
rativa, 173
Comentários a favor da justiça recriadora, 176
Traços fundamentais do novo modelo recriador, 187
C a p ítu lo 9
À R E F O R M A DO C Ó D IG O P E N A L , 191
D A V 1 T IM O L O G IA
Não confundamos o sujeito passivo com as vítimas, 191
A reparação no Código p e n a l do século XIX não é a do
século XXI, 192
0 juiz deve atender primeiro às vítimas, 193
Prefácio

Em algum ponto do infinito desconhecido, achar-se-ão carti­


lhas, porque são comuns os livros de autores latino-americanos
prefaciados por europeus, mas o inverso é tão estranho que quase
pertence ao inexplicável. Essa rara honra confere-me o professor
Beristain, e, por certo, trata-se de uma distinção que - sem falsa
modéstia - não creio merecer. Pode-se afirmar que supõe uma
transgressão, o que por hora chamará a atenção do leitor, mas que
ao final do livro julgar-se-á natural, porque se verá que todo seu
conteúdo é transgressor. Aceito comovido a honra que me confere
o mestre da Universidade do País Vasco e trato de estar à altura de
tamanha infração, o que constitui um singular desafio.
O autor e seu pensamento são amplamente conhecidos e apre­
ciados, de modo que seria vã a tarefa de insistir nisso. Não obstan­
te, nem sempre se interpreta o que se conhece, e creio que por ali
deve ir a via do prefácio.
Os escritos de Beristain não são simples. Não nos devemos
enganar com a prosa clara, a leitura fácil, a ocasional falta de con­
clusões - nada criado está concluído - e as citações que pulam sé­
culos e milênios, continentes e idiomas, disciplinas e culturas, em
forma de terremoto epistemológico; terremoto que faz emergir a
profunda unidade radical. Tudo isso provoca estupor, porque jus­
tamente é esse o efeito buscado pelo autor. E não se creia que por
isso ali acaba a intencionalidade: nada estaria mais longe da verda­
de que pretender sair do estado de surpresa atribuindo sua provoca­
ção à ânsia de originalidade sensacionalista.
A grande transgressão do professor de San Sebastián começa
pela própria estrutura de seu trabalho. Às vezes, contém uma linha
que leva a conclusões que quase se lhe escapam da caneta, o que
oferece como concessão ao clássico, mas, diferentemente do tradi­
1Z Eugênio Raúl Zaffaroni

cional, quase nunca são a idéia central, tampouco a mais valiosa,


porque não quer arrastar-nos a elas, não escreve para isso. Cada um
de nós, ao escrever, propõe-se a ganhar adeptos para sua causa
(nesses termos cabe falar dos difíceis debates das ciências penais),
todos, salvo Beristain, que somente se propõe a desconcertar-nos, e
por certo que o consegue como ninguém. Sua “não-estrutura” pare­
ce calculada na dose necessária para nos desestruturar, porque não
busca convencer-nos de que suas soluções são melhores que as
nossas (até o ponto que, às vezes, nem sequer as menciona), mas
sim pretende quebrar nossos limites para que meditemos livremente.
Foucault ensinou-nos, como poucos, a forma pela qual o poder
nos fabrica como sujeitos cognoscentes. O saber penal, sempre tão
ligado ao poder, caracteriza-se por extremar essa reprodução, por
limitar duramente horizontes científicos, gerando “verdades” ao
preço da marginalização de dados. A moderna tendência progres­
sista orienta-se para a crítica mais ou menos radical ao poder de
fora, ao sistema de reprodução do poder, mas Beristain comete
uma transgressão de maior calibre, porque se opõe ao poder intro-
jetado mediante uma espécie de terapia de choque, e, para conse­
guir seu objetivo, sequer duvida em apelar ao incentivo de soluções
conservadoras, para que, ao responder, devamos esforçar-nos e ultra­
passar os limites que nos traça o poder. Não teoriza nossas limitações
de poder introduzido, mas, sim, diretamente nos força a quebrá-las.
Sem dúvida, trata-se de uma atitude francamente religiosa; a socio­
logia da religião faz muitos anos que chamou a atenção a respeito
dos trabalhos dos benzedores, pais-de-santos, beatos e outros ope­
radores religiosos populares americanos, para os quais sempre o
mal “encerra” , e sua expulsão requer “abrir” , libertar para deixar
que o bem opere.
Em cada página, muito discretamente, Beristain trata de dizer
aos sábios que não são tão sábios, que todas as suas “verdades” são
provisórias pela estreileza de seus horizontes e que não sonhem
com abarcar o universo do inexplicável, porque não é um universo,
mas um infinito. Esse é o máximo da transgressão, e, ainda que
sempre prevenido de que seus trabalhos iam em prol da desestrutu-
ração por meio de uma não-estrutura calculada, neste livro desco­
brirá o leitor que, com elegante citação de Unamuno, o autor o
confessa abertamente.
Prefácio 13

Desse modo, Beristain incorre, continuamente, na mais grave


infração contra a Inquisição, que, desde sua origem até hoje, tem
mudado o discurso, mas não a forma, quando, ao ampliar os hori­
zontes, semeia a dúvida, não fazendo mais que erradicar a “here­
sia” como conceito, ainda que a tipifiquem os mesmos cientistas, e
cai na mais alta “heresia”, ao pôr em dúvida a autoridade dos in­
quisidores. Reprova-lhes o maniqueísmo e convida-os a “re-ligar”.
Mas esse percurso implica um constante trânsito por um fio
suspenso 110 vazio. Sem correr o risco de que a reprovação do ma­
niqueísmo se converta em satanização e, desse modo, se incorra em
um novo maniqueísmo, ou bem que o “re-ligar” vá dar em um
novo dogmatismo. Beristain coloca uma rede de segurança em seu
experimento, contendo uma nova transgressão: apela à fraternidade.
E tem razão, porque não há outra vacina contra o disparate autoritá­
rio e genocida. O eixo superador do “des-encantainento” não pode
passar senão pela fraternidade, que, inclusive, já não se limita a
uma regra ética entre os homens de hoje, mas sim que a ética eco­
lógica deve reconhecer como sujeitos de direitos a respeitar entes
não-humanos e humanos que ainda não estão 110 mundo. Sem fraterni­
dade, a fuga do desencantamento não resultaria 110 “re-encantamento”,
mas sim 11a feitiçaria que continuaria o ciclo das inquisições.
Como já dissemos, essa apelação fraterna de Beristain, que lhe
salva do irracionalismo e lhe permite mover-se com singular ma­
estria e comodidade sobre o fio, constitui outra de suas transgres­
sões. Com efeito, apelar à fraternidade em um mundo em que está
a ponto de desaparecer 0 direito trabalhista, simplesmente porque é
necessário obter preços competitivos, é uma nova transgressão do
professor do País Vasco. Não é possível nenhum reencantamento
sem superar esse holocausto em função da absolutização dos inte­
resses setoriais que antagonizam classes, etnias, países, faixas etá­
rias, religiões, etc. Não há fraternidade sem igualdade para os
desiguais, que é o antídoto da discriminação. E a discriminação é a
arma que hoje se esgrime para suprimir competidores e opositores,
para calar os protestos, para cobrar o que não se deve e para não
pagar 0 que se deve.
Ainda que Beristain não o diga, esta última transgressão leva-o
à busca da utopia, mas não no sentido romântico (e autoritário) de
quem parte de uma utopia para deduzir 0 mundo e impô-la a todos,
14 Eugênio Raúl Zaffaroni

mas que o mundo nos convida a não cessar na sua busca, ainda que
com a advertência de que nunca a alcançaremos, e quando nos de-
temos, satisfeitos do que conseguimos saber, nos desconcerta para
nos moslrar que sabemos pouco.
Sua intolerância às “verdades” que, por indiscutíveis, abrem
vias ao autoritarismo, é quase visceral. Muitos sabem disso, mas
especial testemunho, nós, os argentinos, podemos dar, pois, em
1980, vimo-lo rejeitar toda tentativa limitante de sua voz, falando
de direitos humanos; em plena ditadura genocida, ela nos recordou
o valor da liberdade acadêmica, dando-nos ânimo em meio à ca­
tástrofe. Naquele momento ficou claro que não importavam muito
suas conclusões, mas sim o impulso à utopia como destino, inclu­
sive nas condições mais negativas.
O espírito profundamente religioso do catedrático do País
Vasco (portanto, absolutamente antidogmático) leva-o a assumir a
função que há décadas vem cumprindo, ainda que às vezes resulte
incômoda: é algo assim como o instrutor de vôo do penalismo
atual, que não suporta que mostremos nossa plumagem com orgu­
lho das “cornijas e chaminés” .

Eugênio Raúl Zaffaroni


Catedrático de Criminología e Direito Penal
Universidade de Buenos Aires
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor
Lauro Morhy

Vice-Reitor
Timothy Martin MulhollancI

E d ito r a U n iv e rsid a d e d e B r a s ília


Diretor
Alexandre Lima

C o n s e l h o E d it o r ia l

Alexandre Lima, Airton Lugarinho de Lima Camara, Emanuel


Araújo, Hermes Zaneti, José Maria G. de Almeida Júnior,
Moema Malheiros Pontes

Im p r e n s a O f i c i a l d o E s t a d o

Diretor-Presidente
Sérgio Kobayashi

Diretor Vice-Presidente
Carlos Conde

Diretor Industrial
Carlos Nicolaewsky

Diretor Financeiro e Administrativo


Richard Vainberg

Coordenador Editorial
Carlos Taufik Haddad
Nova criminología à luz do
direito penal e da vitimologia
Nota do tradutor

De igual maneira, ao sentir-se honrado o prof. Raúl Zaffaroni


com o convite para prefaciar a obra do catedrático europeu dr.
Antonio Beristain, devo, também, com muita humildade e sinceri­
dade, dizer o mesmo quanto à tradução, e mais, sinto-me imensa­
mente gratificado espiritualmente, primeiro porque como brasileiro
fui sorteado pela generosidade de Antonio Beristain, e também
porque no seu livro se lêem coisas como: “o efetivo é o afetivo” ; “a
força do amor supera o ódio”; “direito penal medieval em sua cos-
movisão infantil da liberdade...” ; “ unia justiça penal defasada no
tempo é uma injustiça”; “quem exerce o poder se considera dele­
gado da divindade vingativa”; etc., e isso tudo se traduz em um
marco essencial para a definição da compreensão do verdadeiro
sentido das “expressões” e da práxis jurídico-penal dos tribunais
contemporâneos.
Verdadeiramente, o conteúdo das palavras de Ajilonio Beris­
tain e a riqueza da linguagem agradam, indiscutivelmente, a todos
que lutam e pretendem transformar os usos e os costumes da admi­
nistração da justiça criminal - vale dizer, pela sua substanciosa,
preciosa e fluida mensagem. O livro prende, rouba a atenção do
leitor, desde a primeira linha até a última palavra.
Mais do que tentar realizar justiça com o perdão, como asseve­
ra o autor, é preciso aceitar que é impossível dissociar a justiça da
religião, pois são duas coisas que nasceram e caminham juntas, por
séculos e séculos, em todo o mundo, sem exceção, por mais que
determinados regimes de governo ou homens acéticos pretendam
negar a sua íntima relação.
A leitura desta obra de Antonio Beristain é, com certeza, uma
fonte de luz para a reorientação da “justiça” penal, que o homem
16 Cândido Furtado Maia Neto

(profissional do direito) espiritualmente evoluído denuncia com


boa-fé dentro de suas melhores e ingênuas pretensões.
Trata-se de um livro sincero, escrito por um autor-amigo -
amigo de todos os leitores —, porque nos dá bons augúrios de horas
felizes.
Temos plena certeza de que o leitor desta obra poderá - e so­
mente por meio da criminologia, que não é “perfumaria” alguma -
compreender a função verdadeira do direito penal (política crimi­
nal), a finalidade e os objetivos das sanções, em especial quanto à
reação e à punição estatal - como a atual manutenção da pena pri­
vativa de liberdade e dessa hedionda política penitenciária contem­
porânea.
A mediação penal proposta por Beristain é o caminho mais fá­
cil para a transformação da ideologia penal repressiva, já que os
homens de boa vontade não estão conseguindo, por completo, fazer
valer as idéias humanistas no campo das ciências penais e crimi-
nológicas. Penso ser muito mais fácil, e necessário, no primeiro
plano das propostas, falar de direitos da vítima, do que propugnar
por medidas alternativas ou substitutivas da prisão, ou pelos direi­
tos dos presos, também necessários no último estágio do sistema da
administração da justiça penal.
Por todas e infinitas razões é que na tradução deste trabalho -
do espanhol para o português - fizemos o maior esforço para
manter as expressões usadas por Beristain, razão pela qual as cita­
ções literárias permanecem no original, por suas qualidades dentro
da cosmovisão, para facilitar o leitor a buscar o auxílio necessário.
No mais, tudo está perfeito e flagrantemente explicado no prefácio
do ilustre mestre e amigo Raúl Zaffaroni.
O professor Antonio Beristain é a utopia realizável em pessoa,
é a bondade e a perfeição.

Cândido Furtado M aia Neío


Parte I

Criminologia
Capítulo 1

Aproximação criminológica e
dependência de drogas

Interdependência: terrorismo internacional-tráfico de drogas

À luz dos trabalhos do Conselho da Europa, das Nações Uni­


das, do Parlamento Europeu, da Organização Mundial da Saúde,
etc., pretende-se descobrir e descrever a realidade de sua dimensão
econômica, social, terrorista, pedagógica... e indicar como se pode
ajudar o cavaleiro-andante, o cidadão, especialmente o jovem, para
que desperte de seus delírios e de seus vícios.
Se auscultamos a sociedade de hoje, constatamos que se inicia
um novo tempo criminológico para que os controles sociais estru­
turem um programa de prevenção e tratamento global coerente, que
inclua o direito liberador e a arte, sem esquecer o padre (de Dom
Quixote) com seu evangelho, que é uma Boa-Nova ou deve ser,
não um Código pen a l, e ao barbeiro com sua sabedoria de senso
comum que “ trouxe um grande caldeirão de água fria do poço e
derramou-lhe por todo o corpo repentinamente, com o qual des­
pertou Dom Quixote” .
Espero que 110 decorrer destes estudos aperfeiçoemos a logística
de despertar a muitos, com grande satisfação para quem tem cola­
borado nos trabalhos preparatórios, na elaboração das conferências,
dos seminários, do Livro branco da dependência de drogas em
Euskadi (San Sebatian, Espanha), 1987, etc.
As instituições universitárias, os congressos internacionais e a
sociedade “ a pé” devem e podem contribuir para que todos nós
20 Nova criminologia à luz do direito penal e da vitim ologia

abramos os olhos e demos as mãos (deve-se admitir a tese marxis­


ta, deve-se trabalhar, deve-se “discorrer” também manualmente)
para harmonizar uma política social integral que reduza os proble­
mas da droga a dimensões humanas, do viril e do feminino, de
nova convivência criadora, utópica e mais realista.
0 Conselho da Europa, como outras instituições supranacio­
nais, ao falar do problema da dependência das drogas, toca, repeti­
das vezes, nas vinculações da droga com o terrorismo. Faz poucos
dias, de 23 a 28 de agosto 1994, nos Estados Unidos celebrou-se
um congresso internacional sobre “Terrorismo e tráfico de drogas”,
na Universidade de Chicago.
Nesse campo não quero ser dogmático, mas somente sugesti­
vo. Não é fácil entrar nas intrincadas e discutidas relações entre
abusos de drogas, narcotráfico e terrorismo, relações às vezes con­
traditórias e que passam de um branco neve a um negro ou a um
vermelho. Não se mantém uma linha constante nem no narcotrafi­
cante nem no terrorista.
Quando falo de terrorismo não falo de heroísmo, falo do que
em direito penal e em criminologia se considera terrorismo, isto é,
aterrorizar a sociedade tentanto atingir fins que não se conseguem
por esses meios, em definição dialogai. A definição técnica, creio,
é o que menos interessa aqui, nesse momento.
É difícil avançar nos labirintos e nas pontes internacionais en­
tre abuso, tráfico de drogas e terrorismo. No entanto, o Conselho
da Europa tem tido a valentia de, em repetidas ocasiões, falar sobre
a relação entre a droga e o terrorismo. Concretamente, a Recomen­
dação de 1984 diz: para lutar com êxito contra o narcotráfico,
devem-se levar em consideração “ as relações que existem, indis­
cutivelmente, com as redes de tráfico de armas e o terrorismo, ten­
do em conta o fato extremamente preocupante de que grandes
somas de dinheiro que provêm da venda ilegal de drogas são utili­
zadas para financiar o terrorismo internacional”. No congresso
internacional que se celebrou em San Sebastián sobre “ Legislação
e drogas”, de 2 a 5 de julho de 1985, dois representantes do Con­
selho da Europa não se atreveram a manifestar-se em público, mas,
secretamente e com um dos chefes da Erízain/za (polícia), sim,
apresentando provas concretas e absolutas dessas relações. Nos
Antonio Beristain 21

arquivos da sede do Conselho da Europa, em Estrasburgo, há cons­


tatações dessas lamentáveis vinculações.
Conhecidos especialistas afirmam algo parecido a respeito de
determinados países. Assim, I-Iurtado Pozo, catedrático de direito
penal da Universidade de Friburgo, na Suíça, ao analisar o terro­
rismo 110 Peru, afirma: “ Uma hipótese que se apresenta cada vez
com mais insistência é o financiamento dos subversivos pelos tra­
ficantes de drogas” (pode-se ler seu estudo “Terrorismo y tráfico
de drogas”, La droga en Ia sociedad ac (u a i Nitevos horizontes en
criminología, San Sebastián, 1985, p. .169 e ss.). Da mesma manei­
ra, o juiz italiano de 47 anos, Giovanni Falcone, participante da
reunião do Parlamento Europeu, em 20 de março de 1986, afirmou
que a relação entre os narcotraficantes e as organizações terroristas
não está diminuindo.
Em junho de 1987, estudei o tema - o problema na Colômbia
dialoguei com autoridades governamentais, com professores uni­
versitários, com pessoas acusadas de narcotráfico; na prisão de Cali
falei com Gilberto Rodríguez Orejuela, extraditado pelo governo
espanhol para a Colômbia. Como conclusão, reafirmei a complexa
interdependência do terrorismo internacional com o tráfico de dro­
gas, que constatam o Conselho da Europa e os especialistas.
Se defendemos a metologia e a práxis global para responder e
solucionar o problema das drogas, isto se deve à inerente globali-
dade de suas origens, sem excluir as interconexões que vão e vêm,
desde o terrorismo ao narcotráfico e deste para aquele. Os crimes
não-convencionais, os de maior importância e a vitimação (às ve­
zes hecatômbica) - como o genocídio, a tortura, as desaparições
autorizadas pelos governos, etc. - entrelaçam-se em suas raízes e
em suas fontes, ainda que um ou outro delinqüente isolado ignore
ou negue este fato. Em parte, porque lhe interessa e, em parte, por­
que não o tem analisado.
Creio que é interessante comentar a dupla relação, passiva e
ativa, no campo da dependência de drogas da Europa para a Espa­
nha e do nosso país para a Europa. Vivemos cada dia mais na
Europa, e a Europa vive cada dia mais em nós (Espanha). Por isso,
ao abordar as questões, estudamos atentamente as informações e
as recomendações do Conselho da Europa, conscientes de que em
22 Nova crim inología à luz do direito penal e da vitim ologia

suas páginas se encontra (escrito, estudado e sentido), acertada-


mente, o mundo enigmático da toxicomania e do narcotráfico.

Contribuição artística e mística

Conhecidas a imaturidade de nosso campus universitário e a


nossa crise criminológico-judiciai, parece natural que acolhamos
com gratidão - ainda que não às cegas - as autorizadas lições do
Conselho da Europa, das Nações Unidas, etc., em todos os terrenos
e, especialmente, no das drogas. Somos conscientes de que o mo­
vimento deve ser de vinda e ida. Escutamos e recebemos o que nos
dizem o Conselho da Europa e as instituições supranacionais, mas
também temos algo a dizer-lhes. Fixar-me-ei, agora, 11a contribui­
ção artística e mística da Espanha. Em um problema global como 0
das toxicomanias e seu correspondente mercado, influem muito e
têm uma incidência extraordinária a arte e a cosmovisão (vivência)
religiosa ou espiritual.
É uma lástima que o Conselho da Europa e outras instituições
similares não se refiram mais expressamente à incidência da arte na
enigmática subeultura dos viciados em drogas e nas substâncias
psicotrópicas. Indiretamente, trata-se da arte quando se fala da
educação, na Recomendação de 1983, relativa aos meios culturais
e educativos para reduzir a violência.
Uma obra de arte pode contribuir mais e melhor que mil frases
nos trabalhos pedagógicos de conscientização, sensibilização, etc.,
para solucionar nossos problemas concretos. Assim, vem a reco­
nhecê-lo a Conferência Internacional das Nações Unidas sobre o
uso indevido e o tráfico de drogas, celebrada em Viena de 17 a 26
de junho de 1994, em Background information, de 28 de abril de
1987. Diz textualmente que importantes artistas de nosso tempo
têm contribuído com suas obras para promover eloqüentes mensa­
gens para 0 progresso de toda a humanidade e, em seguida, apre­
senta um posíer (distribuído a todos os assistentes), que para esta
Conferência Internacional o artista árabe Mohamed S. Burhaud
pintou em várias cores a frase: “Sim à vida, não à droga” . Deste
poster foram feitas edições com a frase em seis idiomas.
Antonlo Beristain 23

Passando ao campo de nossa arte, limito-me a insinuar parte


da mensagem artística vinculada por alguns dos artistas que ulti­
mamente têm ornamentado publicações do Instituto Vasco de Cri­
minologia. Recentemente, Jorge Oteiza, na capa do livro La droga
en !a sociedad aclual. Nuevos horizontes en criminologia, coloca
um pé-base na parte inferior e separa-o do alabastro resplandecente
que coloca acima “como a estrutura (é um comentário escrito por
ele) espiritual alucinada, transparente, que a enfermidade separa de
sua atadura racional, quando no inferno se destrói o abraço sagrado
indivisível da alma com seu terrenal suporte” . Frases de Oteiza,
como sempre densas, ajudam a compreender tudo o que ele trans­
mite nessa enfermidade (que pode ser superada, e nessa separação
pode se reunir em fusão indivisível). A maior parte das obras artís­
ticas de Oteiza leva o selo direto do misterioso, do vazio, do trans­
cendente.
Eduardo Chillida envolve e abre o livro Ciência penal y crim i­
nal ogía com sua ímpar força e ternura, com um abraço ao delin­
qüente e um grito contra a injustiça. Quem sentir em suas veias o
abutre da heroína compreenderá e consentirá este símbolo bipolar.
Nele, Chillida “utiliza códigos que se podem rastrear e nos levam
até a pré-história. Esses códigos são precisos e livres, estão basea­
dos na percepção e seus limites, assim como na razão da intuição e
seus constantes conflitos” .
“Nesta hora de urgente e vital renascimento coletivo, cultural e
político, Néstor Basterretxea trabalha com o sentimento claro do
poder testemunhai da arte, que é a ferramenta definidora de novas
luzes e enriquecimento espiritual”, e em várias páginas do volume
Estúdios vascos de criminologia mostra que, quando se fala por
meio da própria vitimação (fala por meio de uma ferida na mão, o
profeta que recria Néstor Basterretxea), quando um ex-viciado di­
aloga com outro “colega” , brotam a escuta e a sintonia que facili­
tam a desejada repersonalização.
Andrés Nagel, nas capas de Presondegiak, Gazíeen Gaizkin/za
Drogak e de Cuesiiones penales y criminológicas, desnuda o ho­
mem caído, tira-lhe a roupa da falsidade, dos ritos falsos e insigni­
ficantes da nossa sociedade atual; na solidão do vício, o homem
exposto à intempérie, sem conseguir decifrar a caixa do enigma do
mistério que leva nas mãos, porque, sobretudo, é o jovem que leva
24 Nova crim inología à luz do direito penal e da vitim ologia

o mistério da vida, da dor e, inclusive, da morte, e é ele também


que, com os braços cruzados, os olhos fechados e no silêncio, aju­
dado, talvez, pela sociedade, deve intuir, preparar e aprofundar o
significado desse “ além” que está dentro.
Entre as apertadas e harmônicas pétalas do Egnzkilore que
pintou Rafael Ruiz Balerdi, conseguiu-se recolher toda a energia
do sol para proteger-nos da epidemia e da bruxaria do haxixe, da
coca, do álcool, do craque, contra a crença das coisas mais precisas
de que padece a juventude, “ a droga não é causa, mas sim resultado
de unia desconformidade (doença) profunda que afeta mais e mais
a uma parte importante da juventude de todo o mundo”, como
afirmou Regine, em Viena, no dia 17 de junho de 1987.
Se a resposta ao problema social (e, portanto, problema espi­
ritual) da toxicomania deve ser global, logicamente há de se levar
em consideração, também, a dimensão espiritual. Esta agíutinante
estrutura, base de qualquer povo, integra-o e amortiza-o com seus
conflitos - como testemunha a moderna antropologia (Julio Caro
Baroja, Los fundamentos dei pensamiento antropológico moderno,
Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madri, 1985). Seu
aspecto negativo e, sobretudo, seu aspecto positivo devem ser levados
em conta para responder às questões que aqui nos preocupam.
Toda sociedade amadurece por meio de um agíutinante espi­
ritual, ainda que este, talvez, em muitas épocas, a prejudique.
Não falo agora de uma religião concreta e, desde já, prescindo
de todo o “dogmático” que possa dar-se nas religiões. Falo so­
mente do valor espiritual próprio (e transcendente) à pessoa, pres­
cindindo dos dogmas, porque destes, com freqüência, brotam
fontes muito potentes de violações de direitos humanos: inquisição,
guerra e religião, etc.
Neste setor, o povo vasco (e outros povos da Espanha) tem
tido algo peculiar para oferecer a outros povos, como eles o reco­
nhecem com freqüência: refiro-me aos místicos. Sem nenhum mé­
rito nosso, apesar de nossa culpabilidade e finidade, ontem e hoje
pessoas místicas, como Inácio de Loyola, Angeles Sorazu, Francis­
co Javier, Juan de la Cruz, Teresa de Ávila, encontram acolhida em
todos os países, suas obras se traduzem para os idiomas de qualquer
ideologia, de qualquer pensamento, de qualquer postura política,
porque contêm algo que leva à realidade básica do eu profundo, do
Antonio Beristain 25

mais humano. A doutrina de nossos místicos, com seu silêncio so­


noro - estou recordando uma obra de Chi Ilida com sua vida es­
condida, com seu vazio (os apóstolos de Aránzazu), com seu
integrar a morte na vida, com suas lágrimas, com seus êxtases e
visões, com suas viagens (110 duplo sentido), com sua caridade ili­
mitada, comunica-nos (com força imponente) um sentido da vida,
da dor e do gozo, um transpassar o horizonte que, se soubermos
pô-lo ao alcance de todos e se soubermos senti-lo, tiraremos o solo
onde se apóiam os pés do viciado e do traficante, e colocaremos
em suas mãos um báculo com que se apoiar para andar e uma
ferramenta para cravar nos cumes para subir e transcender, reco­
nhecendo a lição de Immanuel Kant (Die Reiigion innerhaib der
Grenzen der blossen Vernunft - A religião dentro dos limites da
mera razão): a especificidade e a irredutibilidade do campo da
transcendência são indiscutíveis.
Com satisfação, pode-se ler que —e por que - o Grupo Pompi-
dou convida para alguma de suas reuniões um representante do
Vaticano, pois a dimensão religiosa pode beneficiar a prevenção
geral, e a especial, assim como a repersonalização do toxicômano e
do narcotraficante.

Religião e arte: novos horizontes e respostas

Opinamos que durante a preparação e a realização da primeira


conferência das Nações Unidas, celebrada em Viena em 1994, pres­
tou-se menos atenção à arte (ainda que se tenha preparado e difun­
dido o posier a que antes nos referimos) e à religião.
Merecem aplausos algumas referências parciais e indiretas aos
valores espirituais no documento de antecedentes 11° 5, de janeiro
de 1987, que, ao tratar das “Atividades para as horas livres”, diz:
devem-se

conccb cr e iniciar atividades para que, c o m o alternativas positivas


às d ro g a s , as re a liz e m o s g r u p o s p ro p e n s o s a in c o rre r no uso in ­
d e v id o das d ro g a s . P re p a ra r p ro g ra m a s que p r o m o v a m e stilo s
d e vida salu tar e liv res de d ro g a s e fa z e r p a rtic ip a re m to d o s os
s e g m e n to s d a c o m u n id a d e g o v e r n a m e n ta l e n ã o -g o v e rn a m e n ta l
26 Nova criminologia à luz do direito penal e da vitim ologia

na integração plena dessas pessoas e atividades dentro do a m b ien te


cultural. P articip aç ão ativa d o s o c ia l-c o u n s e llin g (referen te à
c o n s c ie n tiz a ç ã o da c o m u n id a d e ), e d u c a ç ã o p re v e n tiv a e ativ i­
dad es de proteção em nível da fam ília, da escola, d as instituições
r e lig io s a s (m e lh o r se n ão s ã o g o v e r n a m e n ta i s ) e d e o r g a n i s ­
m o s e n c a rre g a d o s de fazer c u m p rir a lei.

Este mesmo grupo de trabalho reconheceu a necessidade de


criar uma visão e um enfoque amplo da prevenção como solução
prioritária para combater o uso indevido de drogas. Destacou tam­
bém a conveniência de que membros da sociedade (das instituições
não-governamentais, não-piramidais) proclamem a necessidade de
restabelecer a “dimensão espiritual” e a importância dos valores.
Nesse sentido, Regine, a presidenta da Asociación S.O.S. Drug
International, em Viena, em 17 de junho de 1994, disse: “O pro­
blema reside na capacidade de nossa sociedade para desenvolver os
valores nos quais a juventude possa acreditar e aos quais deseja
aderir”. Considero que quem opina que a dimensão espiritual do
homem está hoje em descrédito não tem examinado devidamente
os símbolos dos tempos. Muitos especialistas concordam em que a
juventude está cada dia mais faminta de religiosidade, mas que os
adultos não lhes damos, nem a oferecemos, nem cooperamos
(cf. Croyanls en Hausse, em L'ActuaIité Religieuse, 15 de outubro
de 1986).
Parece patente, por outra parte, o perigo da sacralização desses
temas, sobretudo quando se admitem posturas dogmáticas “ reve­
ladas” , indiscutíveis, o qual, em criminologia, se considera equi­
vocado e criminógeno. Nessa linha, em 15 de janeiro de 1987, os
professores Ferracuti e Bruno, na Reunião Científica da Comissão
do Comitê Europeu da Direção-Geral de Emprego, Assistência So­
cial e Educação, que se celebrou em Luxemburgo, de 14 a 16 de
janeiro de 1987 (o tema era “Abuso de cocaína, bases clínicas e
programas de tratamento farmacológico”), nas conclusões

la m e n ta m (trad u z o literalm en te d o italiano), c o m o p o s sív e l, q u e


p ro b le m a s éticos c filo só fic o -re lig io so s, de não fácil s o lu ç ã o ,
te n h a m co n trib u íd o para inibir to d o in tento serio de in v e s tig a ­
ç ã o a resp eito da c a p a c id a d e hed o n ística d o h o m e m .
Antonio Beristain 27

Não poucos coincidem com estes autores. Preconceitos éticos


e filosófico-religiosos foram obstáculos que detiveram — e ainda
detêm, embora menos — a nave da cultura, da investigação, da ci­
ência e da capacidade hedonística do homem.
Atinadamente, Don José Miguel de Barandiarán destaca outro
perigo (no que tem caído parte do povo vasco) ao interpretar o
Evangelho com excessiva coloração política e com excessivo
dogmatismo e fanatismo.
Oxalá atinemos e colaboremos todos para a necessária dessacra-
lização da idolátrica sociedade e da justiça, oxalá tiremos (pondo
uin dado simbólico concreto) os crucifixos dos palácios de justiça.
Mas, oxalá também, atinemos (abramos os olhos e manchemos
as mãos) para conseguir a oportuna ressacralizaçao espiritual,
não-confessional, ecumênica, da nossa sociedade e da nossa justi­
ça. Ma veremos de colocar pedras similares na casa onde devemos
morar, trabalhar, descansar, dormir, sonhar, comer e beber fraternal
e gozosamente tudo.
Nestes dois aspectos — religião e arte —, partindo do nosso
povo, podemos brindar o Conselho da Europa e talvez a todos os
países com algo - não muito - que contribua para abrir novos hori­
zontes de melhor qualidade de vida, com menor abuso e tráfico de
drogas. Fora de nossas fronteiras, conhecem-se e apreciam-se, de
maneira peculiar, os artistas e os místicos vascos. Por intermédio
deles, permitimo-nos oferecer novas respostas pessoais e humanas
ao holocausto do vício.
Capítulo 2

Trabalhadores voluntários no
mundo de hoje e de amanhã
(as regras mínimas de sanções
carcerárias e não-carcerárias)

O homem perfeito é aquele


que é mais útil aos demais.
Corão

Os voluntários estruturadores da pessoa c da sociedade

Considerando que o objetivo do Conselho da Europa - como


se reconhece na Recomendação nB R(85) do Comitê de Ministros
do Conselho da Europa aos Estados-membros sobre o trabalho
voluntário em atividades de bem-estar social - é o de realizar uma
união mais estreita entre seus membros, a fim de, singularmente,
favorecer seu progresso social, seu Comitê de Ministros estima que
c conveniente promover e desenvolver ações voluntárias a serviço
da comunidade e reconhecer a necessidade de lixar algumas regras
para o exercício de tais ações, sem privá-las de seu caráter espon­
tâneo, e recomenda aos Estados-membros que reconheçam o papel,
as características e o valor do trabalho voluntário realizado, de ma­
neira desinteressada, por pessoas que, por sua própria vontade,
30 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

participam na ação social e que tomam medidas apropriadas a fim


de definir e melhorar as modalidades de realização de tal trabalho.1
Diante da variedade e da complexidade - inclusive do parado­
xo - dos processos históricos supranacionais, temos de reconhecer
que a estratégia empresarial e econômica de nossas sociedades oci­
dentais - e das não-ocidentais - pode incidir, e incide positiva e/ou
negativamente, no desenvolvimento, na mudança social. Temos de
reconhecer o perigo de que essas técnicas empresariais e econômi­
cas avoquem o capitalismo e o neocapitalismo extremos; assim
como temos de admitir o perigo de que alguns anátemas contra a
economia de mercado conduzam à ditadura e à miséria...(como o
patentizam movimentos de abertura atuais nos países do Leste eu­
ropeu. Para que não caiamos nesses perigos, é necessária a existên­
cia de atitudes e estruturas sociais humanitárias, de instituições
não-governamentais, como a do voluntariado, que freiem os abusos
inerentes aos poderes políticos, econômicos e, inclusive, culturais e
religiosos. Esses freios podem ser uma das funções do voluntaria­
do. Ele pode e deve atuar contra os abusos do poder e, simultanea­
mente, promover o desenvolvimento social-humanitário. Pode ser
um eficaz modelo cultural inovador e favorável à mudança social
progressiva. Como escreveu Meurant, “certos grupos de voluntários
questionam a estrutura e, inclusive, o lundamento da sociedade” .
O voluntariado pode ser, em última instância, um reparador dos
fundos residuais, dos buracos negros do capitalismo e das ditaduras
da Nomejiclatura (não nos esqueçamos do arquipélago de Gulag e
que dentro deste gênero brotam diversas espécies).
O voluntariado pode apresentar seus grãos de areia para muitas
construções fomentadoras do progresso humanitário. Também para
romper e superar a excessiva e consolidada estratificação social,
contra a qual se levantam as vozes de Karl Marx, Max Weber,

1 Cf. Conselho da Europa. Recomendação n“ R (85), do Comitê de Ministros aos


Estados-membros. sobre o trabalho voluntário em atividades de bem-estar social.
2 Cf. F. de Ia Sierra, Los dircctores de las grandes empresas espanolas ante e!
cam bio social, Madri, CIS, J981.
3
Jacques Meurant, El servicio voluntário de la Crtiz Roja en Ia sociedad de hoy,
Cruz Vermelha Espanhola, Madri, 1986, p. 21 ss.; Cruz Vermelha Espanhola,
Departamento de Voluntariado, Conferência Nacional sobre Voluntariado, Se-
vilha, 8-10 de maio 1986, 110 p.
Antonio Beristain 31

Talcott Parsons, etc. Pode introduzir em seu tronco uma cunha de


mobilidade social (facilidade de passos de um estrato social a outro) e
uma cunha de superação do acesso diferencial (isto é, privilegiado
e desproporcionado à dignidade comum de todas as pessoas) e fo­
mentar a igualdade de oportunidades. Assim, pode propugnar con­
tra a acumulação de desigualdades institucionalizadas.
Quando falamos do voluntariado como estruturacior da pessoa
e da sociedade, empregamos esta palavra (estruturador) no sentido
técnico, mais amplo e, quiçá, ambíguo, à luz das modernas e diver­
sas doutrinas sociológicas do estruturalismo.
Talcott Parsons, em sua obra PolHics and social stm cture
(Nova York, The Free Press, 1969), faz alusão a processos de
implicação relacionai, realmente observáveis, subjacentes (mas
observáveis) aos fenômenos sociais, que têm caráter (rasgos) de
composição e de permanência, com incidência nos comportamentos,
inclusive nos criminosos. Da diversa, ainda que parecida, perspec­
tiva, à luz das obras de Gurtvich, Merton e outros, referimo-nos a
um conjunto estabilizado de interações sociais. Como declarei, em
Buenos Aires, em meus Diálogos com Elias Neuman:

C o n v é m c o n f ia r a s o lu ç ã o d e c e rta s s itu a ç õ e s a s e rv iç o s n ão -
ju d ic ia is . E x istem p a íse s de direito c o n s u e tu d in á r io e o u tro s s o ­
cialistas q u e p r o p o rc io n a m , a b u n d a n te m e n te , e x e m p lo s d esta
té c n ic a p r o f u n d a m e n te a rra ig a d a na trad ição p o p u la r. O País
V a s c o e a C a ta lu n h a d is p õ e m d e u so s e c o s tu m e s c o m rico
c o n te ú d o “ p riv a tis ta ” , isto é, o n d e a atu a ç ã o de p e s s o a s não-
p ú b lic a s c h e g a a co tas altas e b e n e fic io s a s . O s a n te c e d e n te s
n iu ltis s e c u la re s da H e r m a n d a d e d o A p e llid o v a s c o s e d o So-
m a té n catalá n e stão p o r s e r e s tu d a d o s .4

A relativa privatização do sistema penal, propugnada nestas


páginas, encontra, também, argumentos em seu favor, ao constatar
o aumento das empresas privadas de segurança e/ou empresas de
polícia privada em alguns países, por exemplo nos EUA.
Diante da estruturação da sociedade competitiva, capitalista,
que confere caráter básico (estrutural) aos binômios “dar para re-

4
A. Beristain, E. Neuman, Criminología y dignidad hum ana (Diálogos), Buenos
Aires, Depalma, 1989, p. 119 s.
32 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

ceber”, “oferecer para esperar”, etc. (recordemos algumas leituras


das vantagens criadas, de Jacinto Benavente), o voluntariado tece
a estrutura social da gratuidade e brinda outra da frugalidade e tes­
temunha também outra da austeridade, sem perda do lúdico/
Nosso voluntariado elabora um tecido gratuito das pessoas e
das sociedades, consciente de que o efetivo é o afetivo, e que a for­
ça do amor supera a do ódio. Consciente de que a paz, da qual
tanto se fala, é algo mais e distinto que a ausência de guerra, se­
gundo vêm propugnando pessoas como Gandhi (e muito antes Só­
crates e Jesus Cristo) e instituições internacionais, como a Anistia
Internacional, a Assembléia Ecumênica em Basiléia (maio 1989),
etc. Esta paz se logrará quando - e não antes que - a maioria dos
cidadãos atuar por motivações mais altruístas, quando aumentarem,
notavelmente, o número e a qualidade dos voluntários.
Outro ponto concreto: a lentidão da administração de justiça,
que foi estudada e universalmente lamentada na XXI Conférence
de Recherches Criminologiques, em Estrasburgo, no final de no­
vembro de 1989, não poderá ser superada até que um número alto
de voluntários trabalhe na administração de justiça, com a paralela
modificação estrutural desta/’
O voluntário, como toda pessoa que trabalha nas instituições
judiciais - mais especialmente ele, por seu altruísmo - , deve saber
que o delito “é resultado de um extenso processo de marginaliza-
ção de muito difícil detecção”7 e que exige outro extenso processo
de acompanhamento respeitoso, mais do que reincorporador. Não
se nega a liberdade jurídica, mas sim evita-se o simplismo do “di­
reito penal medieval em sua cosmovisão infantil da liberdade e da

5 Constituição pastoral do Concilio Vaticano II sobre a Igreja no mundo atual,


Gaudium et Spes, nü 64 ss., Roma, 7 de dezembro de 1956.
Enrique Ruiz Vadillo. “ La crisis dei D eredio y el recurso de casación penal”,
em Varios, Estúdios de Derecho p e n a iy criminologia (em homenagem ao prof.
José Maria Rodríguez Devesa), Universidad Nacional de Educación a Distan­
cia, Madri, 1989, p. 249 s., p. 266, p. 260: “ A situação atual é gravemente
injusta e intolerável. Entre todos, com objetivos elevados, haveremos de buscar
soluções práticas que garantam plenamente a justiça. O que não é nem mini­
mamente aceitável é seguir assim: uma justiça penal defasada no tempo é unia
injustiça” .
7 Raul Pena Cabrera, “Pena y Estado capitalista” ,...p. 57.
Antonio Beristain 33

culpa”, e corrige-se a miscelânea primitiva, submissa e heterônoma


com a moral.

Exemplos de voluntários na Europa e na América

Falemos agora de certas associações de voluntários, na Europa


e na América Latina, que pretendem colaborar com esse tecido es­
trutural da gratuidade, com essa privatização e melhora da justiça
penal e com esse desenvolvimento dos direitos humanos.
José Lu is L. Aranguren, em suas recentes publicações,8 insiste na
necessidade de intensificar os movimentos com unitários e asso-
ciacionistas (ressaltando a diversidade entre ambos) em todos os
campos da convivência. Não se refere, obviamente, às associações
de gente de vida irregular, que em outros momentos tanto interes­
sam aos criminólogos.J
Atualmente, no final do século XX, o voluntariado (sobretudo
o juvenil), como instituição nova em muitos sentidos (apesar de
seus antecedentes multisseculares), apresenta resultados positivos -
e cada dia mais - a todos os setores da sociedade, também aos
jovens em gerai, e não somente aos marginalizados. Os setores
marginalizados beneficiam-se da assistência que lhes prestam os
voluntários. E, simultaneamente, os trabalhadores voluntários (em
particular os juvenis) beneficiam-se duplamente: porque se dão aos
marginalizados e porque recebem dos mesmos marginalizados.
Esse movimento do voluntariado (especialmente o juvenil) en­
contra ampla acolhida em diversos ambientes, sobretudo em alguns
países estrangeiros.
Merecem ser citadas, estudadas e imitadas muitas associações
e comunidades de voluntários mais além de nossas fronteiras, e
também várias instituições jesuíticas de voluntários que vão se es­
tendendo por não poucas cidades do mundo.

José Lu is L. Aranguren, “ Eli ca y comunidades adultas” , Etica de la fe lic id a d y


otros lenguajes, Madri, Tecnos, 1988, p. 133 ss.
y
Julio Caro Baroja, Realidad y fa n ta sia eu ei mundo crim inai. Consejo Superior
de Jnvestigaciones Científicas. Madri, 1986, p. 45 ss.
34 Nova crim inología à luz do direito penal e da vitim ologia

Na Europa, a Jesuit European Volunteers, que reúne um gran­


de número de jovens, apóia-se nas quatro coordenadas seguintes:
1) Compromisso com a justiça. Compromisso e opção, como Jesus,
compromisso e opção pelos pobres à luz do Concilio Vaticano
II, das publicações de Medelim e de Puebla. Compromisso que
exige algo mais que pura teoria; que exige conhecer e mudar o
mundo, como indicou Marx em sua tese de número onze, e
muito antes Jesus Cristo.
Desenvolvimento da semente conhecida já no livro do Gênesis,
quando Jeová pede que o homem domine todo o mundo. Este
compromisso inclui um conhecimento e uma atuação político-
social nas estruturas.
2) Espiritualidade. A relação profunda e existencial entre os ho­
mens e do homem consigo mesmo é fonte e efeito da relação
V

sobrenatural com Deus. A luz do Evangelho, os voluntários je-


suíticos europeus procuram encontrar Deus em todas as coisas e
todas as coisas em Deus, como celebra a Bibiia. Cultivam a li­
turgia e a contemplação pessoal.
3) Comunidade. Mais que em associação, estes jovens pretendem
viver em comunidade. Comunidade que inclui uma diversidade,
uma variedade. Uma unidade radical apoiada nos direitos huma­
nos e na mensagem evangélica, a qual supõe uma ocasião e uma
missão. Ocasião de complementar-se mutuamente, e missão de
respeitar e desenvolver o direito de ser diferente para conseguir
a unidade que harmoniza o mistério trinitário.
4) Vida simples. É fundamental nos grupos dos JEV optar por uma
alternativa contra a sociedade de consumo que predomina em
muitos campos da humanidade atual. Tomando consciência da
situação no Terceiro Mundo e do conflito Norte-Sul, esses voluntá­
rios comprometem-se a desenvolver a cultura da simplicidade e
da sobriedade e descobrir a felicidade que se encontra melhor no
dar que no receber e a solidariedade com os marginalizados e os
pobres.
Vários grupos de voluntários austríacos trabalham em Viena e
em outras cidades próximas. Na Alemanha, há uma dúzia de grupos.
Também encontramos voluntários na América do Norte e do
Sul. Por exemplo, nos EUA, o Jesuit Volunteer Corps (JVC) de­
nomina-se um importante movimento de leigos dirigido pelos
Antonio Beristain 35

jesuítas. Esse movimento nasceu 110 ano 1956, promovido por


Kack Morris. S. J., 110 Alasca, e atualmente conta com muitos gru­
pos de voluntários que vivem em pequenas comunidades. Grupos
de seis a dez jovens, que se comprometem a viver um ou dois anos
trabalhando em favor dos marginalizados, sem nenhum ganho.
Em novembro de 1983, na Universidade de Georgetown, de
Washington, nasceu outra organização similar: Jesuit International
Volunteers (JIV).
Na América de língua espanhola, também existe voluntariado
jesuítico. Assim, o superior geral, Peter-Hans Kolvenbach, quando
visitou El Salvador, de 29 de fevereiro a 5 de março de 1988, falou
desses Voluntários do Serviço Jesuíta aos cristãos do Refúgio San
José em Calle Real.

Perfil do trabalhador voluntário penitenciário

Recentemente, descreveu-se o voluntário penitenciário como a


pessoa especialmente sensibilizada e formada, associada livre­
mente, que colabora altruisticamente respeitando e potenciando o
assistido, e sendo consciente de que seu trabalho lhe enriquece não
menos que ao interno na instituição penitenciária.10
Aqui acrescento algumas considerações a respeito da obriga­
ção de que o cárcere cumpra sua missão ressoeializadora e a im­
prescindível colaboração do voluntário devidamente instruído e
formado. Resta dizer que a este se deve considerar dentro do pes­
soal penitenciário como um a mais, porém muito diferente. As
“ Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos De­
tentos” (de 1955), como a Ensemble des règles minimes poitr le
traiíemení des déleiuts do Conselho da Europa (de 1973), acerta-

10 Cf. A. Beristain, “ Voluntários y/o benévolos en favor de los presos y en contra


de nuestras cárceles”, Revista cie Estúdios Penitenciários, nL> 239, 1988, p. 17;
idem, “Relaciones enlre los privados de libertad y el mundo exterior (El volun­
tariado)”, Eguzkiiore. Cuaderno dei Instituto Vasco de Crim inologia, número
extra, San Sebastián, 1988, p. 29 ss.; idem, Crimen y castigo. Crislianos ante la
ju sticia penal aciuai (vídeo produzido por Audiprol, 28006 Madri, Maldonado
l-A-1989).
36 Nova criminología à luz do direito penal e da vitim ologia

damente falam dele quando se referem ao pessoal penitenciário."


Todo legislador - também o espanhol - deve tê-lo em conta ao atua­
lizar a legislação penitenciária.
As regras penitenciárias européias do Conselho da Europa do
ano de 1987, em sua Regra 57. 2, que trata do pessoal penitenciário,
nos dizem que este pessoal deve normalmente estar assentado
sobre uma base permanente, mas também se podem convocar au-
xiliares em tempo parcial ou voluntários, no caso de necessidade,
quando sua participação seja considerada oportuna.
Ainda que seja muito difícil,12 o Estado necessita ressocializar
o interno nas instituições penitenciárias. Manilesta-o claramente o
art. 25 da Constituição Espanhola. E, também, Pena Cabrera o re­
conhece quando assinala que:

afirm a -s e c p o stu la -se n as c o n s titu iç õ e s e n as leis p e n a is q u e as


s a n ç õ e s e as m e d id a s dc s e g u r a n ç a e stão o r ie n ta d a s p a ra a res-
so c ia liz a ç ã o e a rein serç ão social. S eria a b s u rd o re c u s a r qu e
essa p ro p o s ta tenha rea lm e n te re p re s e n ta d o um p r o g r e s s o . R e ­
je ita n d o -s e a pena c o m o e x p ia ç ã o e retrib u içã o , n ão há d ú v id a
dc q u e se tem a v a n ç a d o . D essa m a n eira, o E sta d o n ã o é o Levi-
alã o n ip o te n te e ind iscutível, n e m a p e n a é o r e m é d io a to d o s o s
m a les q u e se p re te n d e co n d e n a r. O im p o rta n te é q u e d e trá s d e s ­
sa d e s m istific a ç ã o d o Estado as p en as a b re m c a m in h o s dc d e ­
b ate e de c rític a .13

Para que o Estado consiga este fim repersonalizador, necessita


do voluntário, necessita de pessoas que ajudem a “apresentar dife­

11 Regras Mínimas da ONU, na 49. 2; “Ensemble Conseil de PEurope, regra 49.2;


e de especial interesse as Regras 128 a 135, dos “ Minimum standard guidelines
for corrections in Auslralia and New Zealand”, 1987, em International Pena!
and Penitentiary Foundation, The elaborai ion o f standard inininuini rides fo r
non-institucioiial treatment, Bonn, 1989, p. 154-167, cf. Anexo I.
12
Miguel He má n dez, quando recebe a notícia de que seu filho já aprendeu a an­
dar, lhe escreve da prisão: “Manolito de mi alma... Puesto que ya andas, ven
aqui conmigo y aprenderás a ser hombre en la cárcel, donde tantos hombres de­
saprendeu”. em Josefina Manresa. Recuerdos da la vinda de Sfignel ílernández,
Madri, Ediciones de la Torre, 1980, p. 129.
13
Raúl Pena Cabrera, “ Pena y Estado capitalista”, Libro Homenaje a Alfonso
Reyes Echandia, Bogotá, Temis, 1987, p. 309.
Antonio Beristain 37

rentes alternativas para a solução tios conflitos propriamente indi­


viduais e os sociais” que implicam a maior parte dos delitos.14
Não esqueçamos a obrigação do Estado democrático de pro­
porcionar a participação dos cidadãos nas decisões gerais do Esta­
do e, portanto, na política criminal e 11a política penitenciária, pois,
como se indica 110 livro Estado mundial da infância, do Fundo das
Nações Unidas para a Infância, do ano de 1989:

A té a d ata, a e x p e riê n c ia d o s p r o g r a m a s d e d e s e n v o lv i m e n ­
to...ind ica q u e e x iste u m a d ife re n ç a a b s o lu ta m e n te cru cial e n tre
o tipo de aju d a q u e c a p a c ita e p ro m o v e a p a rtic ip a ç ã o e a aju d a
cjuc alien a a c o n fia n ç a e cria d e p e n d ê n c ia . O êx ito o u o fracasso
de q u a lq u e r a tiv id a d e de d e s e n v o lv im e n to , 110 g eral, d e p e n d e r á
d e cm q u e lado d esta linha divisória., às v e z e s tê n u e, se situe a
a ju d a em q u e s tã o . 15

Pena Cabrera insiste que “ a potestade punitiva deve andar de


mãos dadas com o humanitarismo”.16 Para alcançar essa meta, re­
sulta indispensável a colaboração dos voluntários antes, durante e
depois do internamento dos delinqüentes, isto é, na tarefa preventi­
va, 11a ressocializadora penitenciária e na crítica das estruturas so­
ciais injustas. Dito com outras palavras, na luta pacífica contra a
macrovitimação carcerária, no empenho constante por uma justiça
penal (destacando a justiça versus o penal).
A nossos voluntários compete trabalhar, se possível em equipe,17
para cooperar de “fora” (da esfera privada, não-estatal), para elaborar
e levar a cabo diversas tarefas que podem consistir em assessorar,
controlar, avaliar, etc. o que se passa nas instituições penitenciárias,
antes que 0 marginalizado ingresse na instituição penitenciária.
Também, e sobretudo, durante o tempo do internamento para lograr,
na medida do possível, múltiplas metas: a ressocialização do interno,

14 ibidem . p. 310.
Fundo cias Nações Unidas para a Infância, Estado mun dia! da infância, 1989, p. 57.
Raúl Pena Cabrera, “Pena y Estado capitalista”,.- p- 311.
Alfonso Paslore, Pastoral carcerária e você. Experiências, estudos e perguntas
de um trabalho com presos. Aparecida (Brasil), Ed. Santuário, 1986, p. 18 ss.;
Joaquín Gimenez, “ E! juez y la cárcel”, Eguskilore, Cuaderno dei Instituto Vas­
co de Criminologia, n- extra, San Sebaslián, 1988, p. 71.
38 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

os impedimentos aos profissionais funcionários de instituições pe­


nitenciárias de excessivas deformações profissionais, etc., etc.
E, não menos, corresponde aos voluntários, durante esse tem­
po, estar próximo dos familiares dos internos para possibilitar, par­
tindo do seu lar, essa desejada e difícil recuperação do delinqüente.
Fazer-lhe ver e perceber, compreender e sentir que, como já afir­
mou Platão, em seu diálogo mais moderno, mais do homem de
18 •
hoje, o Górgias, “o melhor gênero de vida consiste em viver e
morrer praticando a justiça e todas as demais virtudes” .
Conseguir essa tão problemática e difícil recuperação do de­
linqüente exige, antes de tudo, uma mais justa e humana estrutura­
ção do trabalho penitenciário, como indica José Lu is da Costa.19
Também lhes cabe conhecer e difundir “que a pena privativa
de liberdade assinala uma espécie de justiça seletiva, visto que em
todo o mundo cai nela, preferentemente, quem pertence aos setores
sociais mais desfavorecidos” e que os novos progressos criminoló-
gico-vitimológicos e os novos sentimentos humanitários superem
as teses retribucionistas e consigam sobrepujar o freqüente instinto
de buscar um “bode expiatório” para levá-lo ao cárcere/"
A sensibilidade feminina (como indicamos em outro lugar)-1
capacita, de uma maneira especial, a mulher para atuar como
bálsamo nas feridas de todas as pessoas presas e de seus familiares.
A história nos mostra a ação eficaz de muitas dessas mulheres vo­
luntárias - pessoas como a religiosa Magdalena de São Gerônimo,
Concepción Arenal e Victoria Kent, na Espanha, e Mary Bell Harris,
nos Estados Unidos, para só citar algumas.
Convém insistir que ao voluntariado feminino competem tare­
fas, em certos casos mais urgentes e mais peculiares — e, desde
logo, mais profundas - que aos homens. Re feri mo-nos, particular-

18
Platão, Górgias, 527 e.
19
José Lu is de la Cuesta. Ei trabajo penitenciário resociolizador. Teoria y Regu-
lación Tos Uiva, San Sebastián, Caixa de Ahorros Provincial de Guipúzcoa,
1984. p. 403 ss.
Raúl Zaffaroni. “Tratado c!e derecho penal”, torno V, Buenos Aires. 1983. p. 123;
Raúl Pena Cabrera. “Pena v Estado capitalista” ,... p. 311.
Cf. Anlonio Beristain, “ La mujer víctima y proctetora en la cárcel”, em A. Be­
ristain, J. L. de la Cuesta (compiladores). Cárcel de mujeres. Ayer y hoy de la
m ujer deiincuente y víctim a, Bilbao, Mensajero, 1989, p. 159 ss.
Antonio Beristain 39

mente, à atenção e à assistência aos menores inocentes, mas “con­


denados” e internados durante anos e anos (na Espanha, até os seis
anos, e em outros países, inclusive, até mais tarde).22
Alguns especialistas das religiões e das etnias primitivas, por
exemplo Mircca Eliade e José Miguel de Barandiaráu, descrevem
os mitos da Deusa Mãe sentada na entrada da caverna com um es­
pelho e penteando sua longa cabeleira. Com esse espelho, entram
também mulheres voluntárias 110 cárcere para ensinar a quem sofre
ali, dentro das celas, o que Sonia ensina a Raskolnikoff, o protago­
nista de Crime e castigo: “ És delinqüente, sim, mas podes estabe­
lecer o diálogo eu e tu, podes ver-te em meu espelho com todo meu
apreço. Podes nascer de novo” .
O espelho 11a mão da mulher voluntária mostra ao delinqüente
(se é cristão) sua identificação com Jesus, porque alguém lhe de­
volve uma vida nova. A mulher, não menos a voluntária, sempre
pode ser mãe. Também dos presos.
No âmbito propriamente religioso, 0 voluntário pode ajudar o
interno. Também pode aprender com ele, pois, entre os internos,
não faltam - hoje como ontem ~ pessoas que encontram Deus com
profunda experiência de gozo e exultação.
Algo assim recorda Cario Maria Martini, cardeal de Milão, em
23
seu livro Palavras sobre a Igreja, quando escreve:

E r e c o r d e m o s ta m b é m a P aulo, c o lo c a d o 110 fu n d o d e u m a p r i­
são. F erido , c o m c h a g a s e a c o rre n ta d o , até a m e ia-n o ite. P a u lo e
S ila s e s ta v a m e m o ra ç ã o c a n ta n d o hin os a D e u s ( A to s d o s
A p ó s to lo s 16, 25). E sla p le n itu d e d e c o n s o lo em m eio a o s o fri­
m e n to se e x p e rim e n ta la m b e m , hoje, sob fo rm a s q u e às vezes
p a re c e m m ila g re s e q u e rev elam a p re s e n ç a do E sp írito S an to ,
s e m p re p ro n to a c o n fo rta r c s a n tific a r seu pov o. S eria fácil a p r e ­
s e n ta r e x e m p lo s q u e c o n h e c i no c árc ere, nas prisões.

2^
“ Cf. E. Gimenez-Salinas. “Condena o privilegio?”, em J. L. de la Cuesta, I. Den-
daluze, E. Echeburua (compiladores), Criminología y derecho penal al servicio
de la persona. Livro em homenagem ao professor Antonio Beristain, San Se-
bastián. Instituto Vasco de-Criminologia. 1989. p. 1.153 ss.: Ms L. Lima, Cri-
m inalidad fem enina (teorias v reacción social). México. Ed. Porrúa. 1988.
2^
Cf. Cario M' Martini, Pa/abras sobre la Iglesia. Puehlo de Dios para la vida
deI m undo, Santander. Sal Terrae. 1988, p. 106 ss.
40 Nova crim inología à luz do direito penal e da vitim ologia

Como detalham Pierre Raphael e a irmã franciscana Bernade-


tte, capelã da prisão de Rikers Island, em Nova York: “Os voluntá­
rios influem muito nas questões religiosas”.24 Também diversos
internos americanos de língua espanhola testemunham a vida pu-
jante religiosa dentro do cárcere."
Com sobra de razão, as Regras penitenciárias européias 46 e
47 (do ano 1987) recordam o direito dos internos à sua vida reli­
giosa, às suas crenças. Mas não esqueçamos as atinadas e “bené­
volas” considerações de Nils Christie, quando escreve:

C la ro eslá qu e, ao abrir-se para a im p o rtâ n c ia d a s cren ç as, ta m ­


b é m se está a b rin d o às c re n ç a s q u e d e m a n d a m dor. O P a lá c io da
In q u is iç ã o cm C a rta g e n a é um ed ifíc io m u ito b o n ito , o n d e v iv e ­
ram c o m d ig n id a d e e c o m o d id a d e b e n é v o lo s sa c e rd o te s , c o m a
c â m a ra dc to rtu ras s o m e n te a um p iso m ais a b a ix o . E uso aqui a
p a la v ra b e n é v o lo sem n e n h u m a ironia. E sto u c o n v e n c id o de qu e
e n tre ele s havia p e sso a s justas e b o a s q u e a c re d ita v a m e m D eus,
c q u e re s g a ta v a m as p o b res alm as. P ara o s in q u isid o res, o in fe r­
no era u m a realidad e, e rep a rtia m a d o r c o m um p ro p ó sito p re-
26
venhvo.

Nos cárceres, a religião pode e deve ser não o ópio do povo. e


sim a fonte de uma critica não desesperada que, como o Evange­
lho, simultaneamente com a crítica, comunica a força para que o
criticado atue melhor.
Por desgraça, múltiplos casos concretos patentizam que as
instituições penitenciárias em muitos países (quiçá em todos) vio­
lam direitos humanos fundamentais. Mas, afortunadamente, não
faltam vozes religiosas que se atrevem, “voluntariamente”, a criti-

24
Cf. Pierre Raphael. com a colaboração de Menri Tincq. Dans I 'enfer de Rikers
Island. Un prêire fra n ça is dans la plus grande prision des Etats-Unis, Paris,
Cenlurion, 1988, p. 103 ss.; Adolfo Bachelet, S. J. “ La preghiera nelle carceri” ,
Oración y Servicio, nü 4, Roma, 1989, p. 61 ss.
25
Pierre Raphael, com a colaboração de Henri Tincq, Dans ie n fe r de Rikers Is-
land..., p. 119 ss.
26 Nils Christie, Los limites dei dolur, trad. Mariluz Caso, México, Ed. Fondo de
Cultura Econômica, 1984, p. 123 s.
Antonio Beristain 41

cá-las. Basta recordar um exemplo: o cardeal Wyszynski, em seu


Diário de la cárcel,27 no dia 18 de fevereiro de 1955, escreve:

O c o m a n d a n te - P ad re, nos lhe tra ia m o s c o m a m a b ilid a d e .


Q u a n to à c o rr e s p o n d ê n c ia , olhe, m e lh o r é q u e se ja lida q ue
p ro ib id a.

Eu - D is p e n s o seu s b o n s m o d o s . P o d e -s e fazer m u ito mal


c o m to d a a m a b ilid a d e . 12 o s s e n h o r e s m e v ê m m a ltra ta n d o há
u m a n o c m eio. N ão c o m p a rtilh o d a s u a o p in iã o a resp eito d e
m in h a c o r re s p o n d ê n c ia . P or isso, e sc re v o raras veze s a m eu pai,
para ev itar-lh e o mal d e q u e leiam m in h a s carlas e fiq u em co m
elas. C o m o m e ex p lic a o sen h o r, v a m o s ver, este tip o d e in te r­
v e n c io n is m o , jam ais u sad o c o m o u tro s p ris io n e iro s ? ... O s s e ­
n h o res são os q u e tê m o r g a n iz a d o o b o ic o te co n tra m in h a
c o r re s p o n d ê n c ia , a tal p on to que, de o u tu b r o de 1953 a abril de
1954, não recebi n e n h u m a caria. N e m s e q u e r a fe lic ita ç ã o de
N atal. N ã o se c h a m a a isto v io lação d o s d ire ito s h u m a n o s ?

Muitíssimos são os presos que recordam como tal ou qual sa­


cerdote lhes ajudou durante sua detenção, e como se atreveram a
criticar os abusos de autoridade. A viúva de Miguel Hernández
recorda a ajuda dos sacerdotes: Don Monserrate Abad Huertas,
vigário de Cox, graças a quem pôde falar três vezes em comunica­
ção extraordinária com Miguel, no cárcere de Alicante.28 Também
recorda o vigário anterior, Don Manuel Serna,

q u e d isse às n o v a s a u to rid a d e s q u e, se não tira s se m o s p reso s,


sairia dali. D e p o is d e três ou q u a tro m eses, saiu d e s p re z a n d o -o s ,
pois lhe d o ía e não a c h a v a ju s to q u e e s tiv e s s e m n o c á rc e re lio-

27
Stefan Wyszynski, Diário de la cárcel, trad. José Luís Ixgaza, Madri, Bibliote­
ca de Autores Cristãos, 1984, p. 163.
Josefina Manresa, Recuerdos de la vinda de M iguel H ernández, Madri, Ed. de
la Torre, 1980, p. 139. Também podemos recordar Francisco de Quevedo. que
três séculos antes agradece aos jesuítas o muito tjue lhe ajudaram durante sua
prisão em San Marcos de León, como indica a atual reilora da Universidade de
Sorbonne, Michèle Gendreau-Massaloux, Heritage et creation: recherches stir
riiiim anism e de Ouevedo, Paris, 1977, p. 36 j ss.
42 Nova criminología à luz do direito penal e da vitim ologia

n iens q u e lhe h av iam s a lv a d o a vida, tan to a dele c o m o a de


29
o u tr o s d o p o v oado.

Não esqueçamos que uma alta porcentagem (mais de 50%) dos


cidadãos encontra apoio na religião, como constatam os estudos
socioiogicos.

O voluntariado penitenciário como direito e como serviço

O voluntariado é mais que, e diferente de, uma profissão


socioassistencial. O voluntário distingue-se em mil facetas do tra­
balhador social. Pode-se considerá-lo como um recurso social e,
sobretudo, como um direito e também um serviço muito diferentes
^1
em países desenvolvidos do que em países em desenvolvimento.
Como “recurso”, todos podemos recorrer ao voluntariado.
Concreta mente, ao voluntário, no âmbito prisional, recorrem os
internos, suas famílias, seus amigos, os companheiros funcionários
penitenciários e, não menos, qualquer cidadão ou instituição que se
ocupe e/ou se preocupe com o mundo carcerário, sobretudo com
sua humanização e democratização.
Também nós, que nos ocupamos e nos preocupamos em con-
seguir sua maior privatização. A luz do art. 1, 1, da Constituição
Espanhola, que desenha um modelo de Estado democrático, deve­
mos reservar um papel importante ao indivíduo e às associações
dos cidadãos em todos os campos, também no da justiça penal, isto

2 l)
Ibidem, p. 113. Podem-se ler também as diversas manifestações orais e escritas
dos pontífices romanos Pio XII, “ Mensaje a los encarcelados de todo e! mun­
do”, Ecclesia, n° 548, 1952; Paulo VI, “Alocución en la cárcel ‘Regina Coeli’
de Roma” , Ecclesia, n~ 1.188, 1964; João Paulo II. “ Encuentro con los presos”.
Ecclesia, na 2.156, 1983; João Paulo II, “Mensaje radiado a los presos de Fran-
cia”, L 'OsseiTatore Rom ano, 19 de outubro 1986, p. 4 (664).
Jan Kerkhofs, “ Cambio de valores en Europa?”, em Varios, Jío n ib rey religión,
Universidad de Deusto (centenário), Bilbao, 1988, p. 32. Segundo estatísticas,
quanto mais avançada a idade das pessoas, maior é o seu apoio à religião.
31
Pierre-Henri Bolle, “General Report”, em International Penal and Penilentiary
Foundation, The e laborai ion o f standard minimum rui es fo r non-institudonal
treatm ent, Bonn, 1989, p. 186.
Antonio Beristain 43

é, devemos abrir as portas a uma democrática privatização da justi­


ça penal.
Como “direito” , todo cidadão (individual ou coletivamente)
tem direito a colaborar e/ou participar, livre e eficazmente, no
desenvolvimento político, social, econômico, cultural e espiritual
dos concidadãos, com base no que se diz na Constituição Espa­
nhola, art. 9. 2 e 48, e na Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948, arts. 20 e 27:
Artigo 9. 2. Compete aos poderes públicos promover as condi­
ções para que a liberdade e a igualdade do indivíduo e dos grupos
em que se Íntegra sejam reais e efetivas; remover os obstáculos que
impeçam ou dificultem sua plenitude e facilitem a participação de
todos os cidadãos na vida política, econômica, cultural e social.
Artigo 48. Os poderes públicos propiciarão as condições para
a participação livre e eficaz da juventude no desenvolvimento po­
lítico, social, econômico e cultural.
Artigo 20.1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e
de associação pacíficas.
Artigo 27.1. Toda pessoa tem direito a tomar parte livremente
na vida cultural da comunidade, a gozar das artes e a participar 110
progresso científico e nos benefícios que dele resultem.
O poder político tem o dever de regulamentar esse direito de
todos os cidadãos ao trabalho voluntário para coordená-lo com os
demais direitos e deveres. Em muitos países existem normas con­
cretas, mais ou menos setoriais. Por exemplo, a Cruz Vermelha na
Espanha, a partir dos anos setenta, tem descrito com nitidez seu
voluntariado.
Para nós e para tantos especialistas, a desejada formulação legal
da figura do voluntariado na normativa penitenciária pode servir de
orientação, apesar de suas limitações, à Lei italiana de 26 de julho
de 1975; especificamente, seu artigo 78, que trata dos assistentes
voluntários, e também diversos artigos do Regulamento de execu­
ção desta Lei 354; sobretudo, os artigos 4, 63, 103 e, mais especi­
almente, 0 107. Este último reconhece que a autorização que
proclama o artigo 78 da lei se concederá àqueles que demonstrem
interesse e sensibilidade em relação à condição humana dos priva­
dos de liberdade e que dêem prova de capacidade concreta na as­
sistência a pessoas necessitadas.
44 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

Em certo sentido, Platão pode ajudar-nos a entender como os


voluntários servem, acompanham e animam o marginalizado, não
lhe oferecem resistência, senão que cedem a seu movimento. Pla­
tão, no único diálogo que trata da linguagem como problema, o
Crátilo, explica o nome “voluntário” : hekoúsion como “ o que
cede” (o eikon) e não oferece resistência. “ Como digo, estaria re­
presentado por este nome, que está em conformidade com a ‘von­
tade’ (boulé), ‘o que cede ao movimento’ (o eikon lôi iónti)” .32
Ao voluntariado como “serviço” competem missões próprias e
de suplência para cobrir as lacunas dos diversos poderes e das
diversas instituições. Mas não somente missões de suplência. A luz do
princípio geral (ainda que às vezes esquecido) de subsidiariedade,
às instituições políticas, econômicas, sociais, religiosas, etc., não
lhes é permitido “cortar” os campos do voluntariado, nem expulsar
deles quem leva a cabo suas tarefas próprias e específicas. Parece
desacertada a postura do Conselho da Europa, em sua Resolução
sobre as associações sem fins lucrativos na Comunidade Européia,
de 13 de março de 1987, quando afirma:

C o n s id e r a n d o a a m p litu d e d o m o v im e n to a s s o c ia tiv o no seio da


C o m u n id a d e , o ap o io co n s ta n te q u e rec e b e p o r parte d o s c i d a ­
d ã o s cm to d o s os E sta d o s, o im p o rtan te se rv iç o q u e as a s s o c ia ­
ç õ e s p re s ta m à C o m u n id a d e , se rv e m , c o m efic ácia , a o interesse
geral, d e fo rm a c o m p le m e n ta r ia à a ç ã o d o s E stad os.

Em nossa opinião, o voluntariado não é somente uma forma


complementaria. Quiçá, ao contrário, seja complementaria a ação
dos Estados. Acerta o Concilio Vaticano H33 quando reconhece e
pede que se reconheça, se respeite e se promova o direito de todos
os cidadãos a participar na vida pública, e quando exige que se res­
peite, como um direito peculiar, como uma parcela própria da ação
da Igreja, a assistência aos mais necessitados (por meio de seu vo­
luntariado). Instituições eclesiásticas (privadas), como a Caritas,
devem ter - e merecer —certa preferência, antes mesmo de outras
instituições estatais e similares, com fins lucrativos.

Platão, Crátilo. 420 d.


33
Gaudium et Spes, t f 42.
Antonio Beristain 45

Há muito tempo, existe o voluntariado como serviço, ainda


que sem esta denominação concreta. Ajudar aos demais gratuita­
mente é algo inerente à humanidade, por isso tem acompanhado
desde sempre o homem, como sua sombra, ainda que com rasgos
muito distintos. Algo que vem sendo exigido desde as raízes antro­
pológicas da pessoa, e tende a seu topo mais elevado (também en­
tre os animais constatamos a lei da ajuda mútua).
Sobre o que hoje chamamos voluntariado ou, melhor dito, suas
coordenadas fundamentais, dissertaram alguns grandes pensadores,
Kant (1724-1804) nunca menciona a expressão “voluntariado”,
mas, em vários de seus livros, formula princípios, metas e comen­
tários que são o alfa e o ômega do atual voluntariado. Assim, em
// religião dentro dos limites da mera razão (Die Religion hvierhalb
der Grenzen der biossen Venmnft), escrito em 1793, na terceira
parte “O triunfo do princípio bom sobre o mau e a fundação de um
reino de Deus sobre a terra” , fala de “a ganância suprema que pode
alcançar o homem: ser liberado da escravidão sol) a lei do pecado,
para viver a justiça” ,., “manter-se sempre preparado para a luta” .
Essas afirmações podem aplicar-se a qualquer voluntariado, e mais
ao que se dedica gratuitamente a sua tarefa no labirinto carcerário;
ele vive para a justiça e se mantém sempre preparado para a luta.
Pouco depois, Kant contrapõe o estado civil do direito sob leis
coativas ao estado civil ético, no qual os homens estão reunidos
sob leis não-coativas. Os homens em estado civil ético, segundo
Kant, chegam a lograr o que não se alcança com leis e meios de
coação. Também se pode aplicar esta consideração aos voluntários,
pois eles alcançam muito mais do que se consegue com as sanções
penitenciárias como resposta às faltas dos internos (e/ou dos fun­
cionários).
Como “serviço”, o voluntariado alcança as metas que deseja
Kant (p. 188 s.), pois tende a promover o bem (moral), é um servi­
ço dos corações, e um conjunto de ações destinadas aos homens,
não exclusivamente a Deus.
Segundo o filósofo de Kõnigsberg, o homem, para superar o
estado originário de interna amoralidade (p. 98), deve procurar sair
desse estado “tão logo seja possível” , e tem um dever de índole
peculiar de todo o gênero humano para consigo mesmo, “ pois to­
dos estamos determinados” à promoção do bem supremo como
46 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

bem comunitário ou como “ uma contribuição efetiva ao bem do


mundo” (p. 169). Essas considerações de Kant encontram cumpri­
mento na maioria dos voluntários penitenciários.
Esperamos que, entre os universitários e todos os cidadãos, a
cada dia, encontre mais amplo eco este novo e velho movimento do
voluntariado em favor dos menos favorecidos, marginalizados e/ou
condenados.
Muitos investigadores, que com afinco buscam sanções alter­
nativas à privação da liberdade, insistem em que um pivô dessas
futuras sanções deve ser o voluntário, e desde a idade juvenil. Com
satisfação, encontramos em algumas salas e corredores de univer­
sidades anúncios e posters de estudantes que se oferecem para tra­
balhar e organizar tarefas de voluntariado em campos diversos e,
concretamente, 110 campo penitenciário. Pode servir de exemplo a
atividade de muitos universitários no GENEPI - Groupe Étudiant
National d ’Enseignement aux Personnes Incarcerées (247 rue St.
Honoré, 75038, Paris, Cedex 01, telef.: 1-49270463).

Universitários e trabalhadores voluntários com jovens em risco

Um exemplo que pode iluminar a teoria e a prática do volunta­


riado nos oferece Manuel Segura Morales,34 quando fala da insti­
tuição que se encontra na cidade de Chatham, na zona rural de Kent
(Inglaterra): 0 Medway Center. Está orientado para menores entre
os dez e os dezesseis anos que, sem ser delinqüentes habituais, te­
nham cometido uma ou várias infrações não-graves: são os meno­
res considerados oficialmente em risco, aí risk.
No centro - localizado em uma casa antiga, um pouco som­
bria, que parece muito atrativa para os jovens que a utilizam —, tra­
balha, junto ao pessoal profissional assalariado, uma dezena de
voluntários. Esses voluntários levam o peso dos sete grupos, que
vêm do Community Service Volunteers, ou Voluntários para o
Serviço Social, ou outros simplesmente universitários ou trabalha­

14
Manuel Segura Morales, Trotamientos ejicaces de delincuentes ju v en il es. Mi­
nistério da Justiça, Madri, 1985, p. 379 ss.
Antonio Beristain 47

dores locais: tiveram também algum universitário vindo da Cali­


fórnia para fazer sua tese.
Na atualidade, estes voluntários são recrutados amistosamente,
por meio de amigos que trazem outros amigos. Evita-se, por prin­
cípio, pôr anúncios nos jornais, pois esse procedimento atraiu um
alto percentual de neuróticos no passado. Mas, ainda que se realize
informalmente, o sistema de recrutamento e seleção de voluntários
é cuidadoso e eficaz: depois da apresentação, feita por quem o
trouxe ao Centro, e de ter tido com ele a primeira entrevista, é
contratado por um mês, como experiência. Para contratá-lo, são
tomados em consideração, principalmente, dois aspectos: a maturi­
dade pessoal do condi d ato, e que possua algum conhecimento ou
habilidade técnica que possa ensinar aos menores em tratamento.
Por exemplo, se oferece: carpintaria, mecânica de motos, montanhis­
mo, música e teatro, pintura e filatelia, além dos esportes comuns.
Durante o mês de experiência, avalia-se, preferencialmente, a
capacidade de relação do voluntário com os menores. Se o voluntá­
rio é mulher, aprecia-se também sua aptidão para oferecer aos mais
novos uma figura materna, que provavelmente nunca tenham tido.
Como mínimo, se exige de cada voluntário que coordene e anime
um dos sete grupos uma vez por semana, durante três horas; mas
existem alguns voluntários que, tendo terminado seus estudos e
estando sem trabalho, colaboram três ou quatro dias na semana.

As regras mínimas cie sanções não-carcerárias

Foram publicadas pela International Penal and Penitentiary


Foundation (Fundação Internacional Penal e Penitenciária) as re­
gras mínimas para o cumprimento das sanções e das medidas não-
carcerárias que implicam uma restrição de liberdade.35
Convém ressaltar o que se afirma na introdução deste docu­
mento:36 para o correto cumprimento dessas normas orientadoras

35 International Penal and Penitentiary Foundation, Standard minimun m /es fo r the


im plementation o f non-custodiai sanctions and mesures involvíng rcstriction o f
liberíy, Bonn, 1989.
36 ibidem, p. 19.
48 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

de como devem ser cumpridas as sanções não-carcerárias, fazem


falta muitas pessoas responsáveis e organizações não-governamentais.
As pessoas responsáveis pelo cumprimento dessas sanções devem
ser, portanto, capazes de organizar a ajuda do voluntariado. Os tra­
balhadores voluntários devem ser selecionados, formados e ajudados,
de maneira que possam desenvolver as competências profissionais
necessárias. Em particular, os profissionais devem estar capacita­
dos para vigiar e ajudar os benévolos que estão aptos a participar
nos processos de vigilância.
Entre todas essas regras, merecem especial atenção a 16 e a 34.
A Regra 16 diz:

O s vigilantes, q ue têm a seu c a rg o o s d e lin q ü e n te s, d e v e rã o s e r


r e s p o n s á v e is p eran te u m a a u to rid a d e estatal c o n s titu íd a p ara
este fim. O s vo lu n tário s e x e rc e rã o u m a tarefa de s u p e rv is ã o
s o m e n te a título d e d e le g a d o s d e um fu n c io n á rio , d e u m a a u t o ­
rid ad e estatal, ou co n stitu íd a p a ra este fim.

C om entário. Se b em c o n v ém fom entar o trabalho dos v o lu n ­


tários e o c o m p ro m is s o da c o m u n id a d e no que se refere à e x e ­
c u ç ã o d as s a n ç õ e s e m e d id a s n ã o -c a rc e rá ria s, p o r o u tra p a rte o s
d ire ito s d o s d e lin q ü e n te s d e v e m e s ta r p ro teg id o s, p e r m a n e c e n ­
d o a a u to rid a d e estatal resp o n sáv el pelo c u m p r im e n to d e v id o
d e s s a s sa n ç õ e s ou m e d id as não-carcerárias. Isto é ta m b é m n e c e s­
sário p ara garantir que o d e lin q ü en te d isp o n h a da p ro teç ão de u m
instrum ento de recursos.

De modo semelhante, o comentário à Regra 8 fala também a


favor do trabalho e do compromisso dos voluntários e das organi­
zações comunitárias, e, indiretamente, insistem no mesmo os co­
mentários às Regras 29 e 33.
Segundo a Regra 34,

...fo m e n ta r a c o la b o ra ç ã o c o m p ro m e tid a d o s v o lu n tá rio s. E stes


d e v e rã o ser se le c io n a d o s e, se nece ssário , g u ia d o s p e lo p essoal
profissional, e cap acitad o s para c u m p rir as tarefas q u e c o r r e s p o n ­
d e m às su a s q u a lid a d e s e p o ssib ilid ad es. O b r ig a -s e -lh e s ta m b é m
o se g re d o pro fisssion al.

C o m en tá rio , O s voluntários p o d em prestar um a c o n trib u içã o


im p o rta n te na e x e c u ç ã o das p e n a s e m e d id a s n ã o -c a rc e rá ria s.
Antonio Beristain 49

S u as m iss õ e s estarã o re la c io n a d a s c o m s u a s c a p a c id a d e s , que


p o d e m ser d e s e n v o lv id a s , q u a n d o resu lte n e c e ss á rio , m e d ia n te a
o rie n ta ç ã o do p esso al p ro fissio n al.

Todos esses textos podem ajudar na, por nós desejada, parcial
privatização da justiça penal. Um passo nesta direção significou o
convênio de colaboração entre o governo vasco e o Conselho Geral
do Poder Judiciário para a criação de um serviço de assistência e
orientação social ao detento, firmado em 27 de novembro de 1987.37

Resumo e conclusões
V

A luz do indicado nas páginas anteriores, podemos formular,


telegraficamente, as proposições-conclusões seguintes:
l 3 - Em alguns países, a teoria, a prática e a legislação correm o
perigo de ignorar e/ou menosprezar o trabalho do voluntariado.
Também podem esquecer os direitos prévios e inalienáveis das
pessoas individuais e das associações privadas, à luz do princípio
da subsidiariedade. As competências do Estado começam onde
terminam as dos cidadãos; não antes.
2a - As autoridades devem tomar as medidas apropriadas para de­
finir e melhorar as modalidades de realização dos diversos traba­
lhos dos voluntários. Aos voluntários masculinos e femininos cabe
um papel imprescindível, rentável e fecundo na administração da
justiça penal e em sua desejada privatização. Essa missão do vo­
luntariado exige - para seu eficaz desenvolvimento - uma modifi­
cação estrutural do funcionamento da administração da justiça.
33 - Atualmente, o perfil do voluntariado, em geral (e do penitenciá­
rio, em particular), pede que seja uma pessoa especialmente, sensi­
bilizada e formada, associada livremente, que trabalhe
altruísticamente no serviço aos demais (especialmente os menos
favorecidos) e colabore com seus colegas profissionais.
4a - Diversos exemplos da legislação, da teoria e da práxis provam
a grande importância, no passado e 110 presente, do voluntário
(também o penitenciário), isto é, todo aquele que trabalhe em favor

37Joa(|uín Gimenez, “ El juez y la cárcel”, em Varios, Eguzkilore, Cuaderno dei


fm iiiitto la sc o de Criminologia, número extra, San Sebastián, 1988, p. 74 ss.
50 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

de uma maior justiça social, da prevenção da delinqüência e da as­


sistência às vítimas. Olhando para um futuro próximo, convém in­
tensificar, remodelar e melhorar este campo.
5a —Compete, também, ao voluntariado (inclusive ao penitenciário)
- devidamente formado como “técnico” - estar aberto à dimensão
teológico-espiritual, sobre a base do direito fundamental da liber­
dade religiosa.
63 - Nossos voluntários penitenciários devem trabalhar em equipe
para cooperar, elaborar e levar a cabo múltiplas tarefas, que podem
consistir em assessorar, controlar, avaliar, etc., tudo aquilo que contri­
bua para a prevenção da delinqüência, antes do internamento em
instituições penitenciárias, durante o tempo em que permanece a pes­
soa em privação de liberdade e depois de sua saída da instituição
penitenciária.
T - De acordo com as Regras Mínimas das Nações Unidas (1955),
do Conselho da Europa (1973 e 1987) e da Fundação Internacional
Penal e Penitenciária (1989), o voluntariado penitenciário deve en­
contrar acolhida expressa na legislação, nos artigos referentes ao
pessoal penitenciário — ainda que não-profissional —, assim como
nos artigos correspondentes à assistência social.
8~ - Para que o Estado cumpra sua missão social, deve fomentar a
participação dos cidadãos, e não menos dos jovens, também nos
trabalhos de reabilitação dos delinqüentes. Também na assistência
aos familiares e amigos dos internos.
Ao Estado compete estruturar de tal maneira as instituições
penitenciárias que elas permitam o trabalho do voluntariado e sir­
vam para a repersonalização do condenado.
9Ü- Interessa conhecer diversos exemplos concretos do voluntaria­
do penitenciário, em sentido estrito (e em sentido amplo), no exte­
rior, para superar as lacunas teóricas, legais e práticas acerca do
voluntariado espanhol (não obstante, a Direção-Geral de Institui­
ções Penitenciárias, com data de 2 de novembro de 1989, redigiu
uma circular a respeito do trabalho do voluntariado nos cárceres
espanhóis e forãneo; em muitos países onde falta a regulação for­
mal, infelizmente, não se cumpre, a este respeito, nem o mínimo
das Regras Mínimas do Conselho da Europa, das Nações Unidas e
da Fundação Internacional Penal e Penitenciária.
Antonio Beristain 51

10° - Pani conseguir uma privatização aconselhável do direito pe­


nal, da criminología e da vilimologia, podem e devem ajudar a
acertada legislação e a práxis do voluntariado penitenciário, incluin-
do-o junto aos funcionários profissionais (nestes, claro, está incluí-
do o criminólogo, formado em nossas universidades).'

Antonio Beristain, “Ensenanza eriminológica desde y liacia las eapellanías pe-


nitenciarias”, em XLt Curso Internacional de Criminología, La ensenanza uni-
versitaria de la criminología en el mundo de hoy, llguzkilore. C u a d en w deI
Instituto la sco de Criminología, ntJ 3. extra, San Sebastián, 1990. p. 111.
Capítulo 3

Epistemologia criminológica:
da retaliação ao perdão

Resumo histórico-comparativo üo Talião na política criminai e


no direito penal

Uma investigação diacrônica desde o momento zero1 através


dos séculos e sincrônica ao longo do mapa geográfico dos países
modernos acerca do Talião, ou seja, das respostas sociais e g o­
vernamentais às condutas criminais e às pessoas marginalizadas,
mostra-nos, em enfrentamcnto dialético, dois critérios e duas práti­
cas de controle social:
- por uma parte, a sanção severa, punitiva, que hoje se centraliza
na privação da liberdade como castigo, sem concessões ao trata­
mento e, em casos extremos, logicamente à pena de morte;
- e, por outra parte, as sanções alternativas ao cárcere, como a
multa, a “ provação”, os arrestos de fins-de-semana, a prestação de
serviços à comunidade, a plea bargaining, a diversion, a não-
intervenção e (segundo alguns teóricos extremos) a substituição
do direito penal por medidas de segurança ou por instituições pa­
ralelas ao direito civil ou ao direito administrativo.2

1 Ernst Bloch, N a tw rech t m ui menschliche Wiirde, Frankfurt am Main, Et!.


Suhrkamp, 1961, p. 276 ss. Jacques Leclercq, “Réflexions sur le droit de punir”.
Estúdios Renal es. Homenaje o1P. Julián Pereda (preparado por A. Beristain),
n"s 25-26, Universidad de Deusto, Bilhão, 1965, p. 473 ss.
2
Jacqueline Bernal de Celis, “Aboiitionisme du système péual et politique crimi­
nei le en faveur des viclimes”, em L. Hulsman/J. Be mal de Celis, Peines perdues.
54 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

Essa descrição panorâmica ou telegráfica, a vôo de pássaro,


omite muitos pontos e deforma outros, pois pretende descrever um
problema sumamente complexo que exigiria mil detalhes e matiza-
ções. Entretanto, para nos introduzir no tema que desejamos expor,
resulta suficientemente orientativa. Esta visão de conjunto nos le­
vanta (e se aclara com) três considerações fundamentais, que des­
envolveremos a seguir:
a. Diante da criminalidade e da marginalidade, temos de responder
com critérios de integração cósmica. Temos de evilar as respostas
unidimensionais vindicativas, tanto as totalmente permissivas ou
simplesmente mecânicas, técnicas, amorais, sem sentido humano,
como as utopias exclusivas de tratamento.
b. A faceta criadora de todo ser humano deve gerar algo novo no
sistema penal (especialmente na seníencing) de finais do século
XX. Concretamente, deve criar (e/ou desenvolver) o direito ao -
maior ou menor - perdão a toda pessoa, também ao delinqüente.
c. Os até hoje desconhecidos horizontes que vai alcançando a
consciência da pessoa pós-moderna exigem ler e formular o Talião
como uma original epistemologia metarracional.
d. Ainda mais, com uma epistemologia espiritual, mística, não-
dogmática; com o único freio do razoável (não do radonal-lógico)
e do real “de seu”, além do fenomenológico.'

Talião dialético de integração cósmica, não-iinklimensionai

Por respostas (ao delito e ao desvio) de integração cósmica


entendemos, dito brevemente, algo assim como aqueles controles
sociopenais que, quase sem julgar,4 vão além do juízo; pois procu­

Le systèm e pénale en question, Paris, Le CerUurion, J982, p. 123 ss. Ver Lola
Aniyar de Castro* Alternativas ai sistem a penitenciário.
* Peter Noll, Diktate iiber Sterben ct Tod, com Totenrede von Ma.\ Frisch Pendo,
Zurique, 1984, p. 132 ss. Xavier Zubiri, Inteligencia y razón, Madri, Alianza
Editorial, 1983, p. 91 ss., p. 263 ss.
4
Thomas Merton, Zen and birds o f apetite, tradução para o espanhol de Rolando,
Hanglin, 3a ed., Barcelona, Kairós, 1979, p. 43. Ninguém nega que existem - e
devem existir - as estruturas e as instituições jurídicas. Ninguém opina que deve-
Antonio Beristain 55

ram refletir, como um espelho,5 a realidade (além da aparência) do


conflito-delito e facilitar a harmônica simbiose da ação-reação-
criação, isto é, dar a cada um o que necessita mais do que merece,
pela sanção-compensação dinâmica e solidária.
A história sociológica e a filosofia jurídica ensinam que sem
sanções penais resulta impossível a convivência, ao menos nos
tempos historicamente conhecidos e na atualidade. Talvez e oxalá,
as próximas gerações possam prescindir da sanção penal. Nossa
geração não pode evitar as penas como resposta a certos delitos. Há
séculos, Platão, em seu Górgias, repete com diversas matizações:
“o que tem sido injusto e ímpio deve ir ao cárcere da expiação e do
castigo que chamam Tártaro” {Górgias, 532 b); “se alguém faz al­
gum mal, deve ser castigado e satisfazer a culpa por meio do casti­
go” {Górgias, 527 b).6
Em semelhante sentido se expressam, posteriormente, muitos
penalistas e criminólogos em todos os tempos e lugares.7
Entretanto, esta necessidade de defender-nos aplicando sanções
penais não significa, ou não deve significar, que os deliqüentes te­
nham que ser encarcerados entre quatro paredes para castigá-los
com intuito unicamente vingativo, sem gastar um minuto para sua
integração na sociedade.
Atualmente, muitos países islâmicos, os Estados Unidos, etc.,
exageram no aspecto severo das leis e esquecem a dimensão eqiii-
tativa e conciliadora da justiça.
Muitos governos e muitos tratadistas, decepcionados com o
escasso resultado dissuasivo e repersonalizador obtido pela ideolo­
gia penitenciária do tratamento, que tanto eco encontrou na década
de 1960 e começo da de 1970, têm sido vítimas de uma reação
excessiva em sentido contrário; reacionariamente, pedem que os
policiais, os juizes e os funcionários das prisões adotem posturas
técnicas exclusivamente punitivas, inclusive vingativas. Ao delin-

mos tratá-las como não existentes e necessárias...Realmente, no fundo, a estru­


tura é vazia em si mesma.
O espelho reflete a realidade, carece de pré-juízos...O espelho carece de uma
mente que distinga, julgue, categorize e classifique.
Platão. D iálogos, G órgias. trad. J. Ca longe, Madri, Gredos. 1983, p. 145 ss.
Giuseppe Bettiol. Diriito penale. parle generale. 203 ed., Pádua, Cedam, 1966,
p. 779 ss.
56 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

qüente, dizem, deve-se dar o que lhe corresponde legalmente (just


de ser t). A cada um, segundo seus méritos. Aos assassinos com
agravantes dever-se-á aplicar uma injeção letal. Os cárceres devem
ser de máxima segurança, e sempre com orçamento menor ao dos
pobres e dos desempregados não-deIinqüentes.v
Por desgraça, não poucos cidadãos e especialistas em direito
penal e em criminologia olham o Código penal, a lei penitenciária
e a norma policial como instrumentos para acusar e encontrar -
criar? - delinqüentes puníveis.
Ao contrário, segundo nossa opinião, os princípios básicos re­
pressivos dos controles sociais admitem e devem admitir exceções
e formas de benefício em todos os estratos. O oposto (exigir que se
apliquem sem dar certa chance ao perdão, à generosidade, à indul­
gência) seria suma injustiça, como declararam, há mais de vinte
séculos, os romanos em seu adágio summum ius sitmma injuria.™
Antes, Platão, em seu Proíágoras (324 b), ensina-nos que:
Ninguém sanciona os criminosos prestando atenção ao que te­
nham delinqüido ou pelo fato dc haver delinqüido, a não ser
quem se vingue, irracionalmente, como uni animal. Mas aquele
que tenta sancionar com razão não se vinga por causa do crime
cometido - pois não se lograria que o fato não tenha acontecido -
senão com vistas ao futuro, para que não obrem mau dc novo
nem este mesmo nem outro, ao ver que este sofre sua sanção...
pois sanciona para efeito de dissuasão.

A eqüidade e a epiquéia devem protagonizar a interpretação e a


aplicação do direito penal."

No âmbito da psiquiatria forense, tende-se hoje a substituir o conceito de não-


imputabilidade ou imputabilidade diminuída pelo conceito de mérito, desert,
como afirmam F. Ferracuti e F. Bruno, Enciclopédia Médica Italiana, vol. XH,
Florença, 1985, coluna 1691.
Manuel Lopez-Rey y Arrojo, Compêndio de criminologia v política criminal,
Madri, Tecnos, 1985, p. 190 ss., 215 ss.
1(1Elias Neuman, “El sistema penal y sus víctimas” , Estudios de derecho p en a l en
homenaje a í prof. Luis Jittténez de Asúa, Revista Facultad de Derecho, Univer-
sidad Complutense, Monográfico 11, Madri, junho 1986, p. 483 ss.
11 Horst Schüler-Springorum, “ Was làsst der Strafvollzug für Gefühle übrig?”,
F estschriftfür Giinter Blau zuni 70 Geburststag am 18, dezembro 1985, Berlim,
Nova York, Walter de Gruyter, 1985, p. 259 ss.
Antonio Beristain 57

Outros especialistas propugnam que os controles sociais se


limitem aos dados puramente fenomenológicos e prescindam de
toda a atenção à culpabilidade, apoiados em que ninguém pode
provar cientificamente a liberdade de uma pessoa. Alguns teóricos
(vítimas de sua boa vontade, de sua compaixão diante da violação
dos direitos humanos nos cárceres e nos patíbulos) colocam pela
borda, sem prévio discernimento, um valor adquirido pelos esfor­
ços culturais de muitos séculos: a culpabilidade jurídica.12
Entretanto, todos deveríamos ver nos controles sociais a prote­
ção dos cidadãos inocentes e criminosos, a Carta Magna da liber­
dade, a arte da compreensão, da solidariedade, da mútua criação.

Direito dos delinqüentes ao perdão

A moderna psicologia mostra que, afortunadamente, supera­


mos o antigo homo fa b e r, trabalhador, e o homo sapiens, que
constata a realidade exterior a ele. Chegamos ao homo p iu s, com­
passivo e solidário,13 ao homo creator, que do seu interior vai fa­
zendo e refazendo as coisas, inclusive as pessoas às quais gera e dá
vida ao material corporal, ao instintivo animal e também ao espi­
ritual. Toda pessoa é fundamental e essencialmente criadora, auto-
criadora e heterocriadora.14
Claramente aparece essa força criadora 110 âmbito dos direitos
elementares, pois ao longo dos séculos constatamos como vão
crescendo e desenvolvendo-se. Hoje, com relação ao direito à li­
berdade, estamos muito longe de pensar como pensavam os gregos
contemporâneos de Aristóteles a respeito de seus escravos. Hoje
desapareceu 0 ius vitae et necis do pciter-familias romano, e a pena

P
~M unoz Conde, “ Culpabilidad y prevención en derecho penal”, Cuadernos de
Poli fica Criminal, n'J 12, 1980, p. 41 ss. Angel Torio Lopez, “ El concepto indi­
vidual de culpahilidnd”, Crime and Criminal Policy, em homenagem a M. Ló-
pez-Rey, Milão, Franco Angeli, 1985, p. 675 ss.
*' A. Beristain, “ La dimensión religiosa en la filosofia de la política criminal (El
derecho penal dei homo p iu s)”, Estúdios Vascos de Criminologia, Bilbao, Men-
sajero. 1982, p. 330 ss.
14
Xavier Zubiri, Infeligencia y logos, Madri, Alianza Ed., 1982, p. 209 ss.
58 Nova criminologia à luz do direito penal e da vitim ologia

de morte encontra cada dia mais abolicionistas.15 Hoje, o direito


trabalhista difere diametralmente do vigente nos lins do século
XIX: nenhuma criança menor de dez anos trabalha nas minas de
carvão.
Essa energia inovadora - Vèlcm vital de I-Ienri Bergson16 - te­
mos de aplicá-la urgentemente no campo das respostas ao delito, e
á subcontracultura. Concretamente, temos de criar o direito ao per­
dão. Melhor dizendo, temos de recriá-lo, pois, em certo sentido, já
existia antes. Pensemos no secular direito ao asilo, no direito de
graça dos monarcas, no indulto em casos de pena de morte, como
no julgamento de Jesus.17
O direito ao perdão - ativo ou passivo, total ou parcial - como
direito básico de todas as pessoas e, portanto, também dos autores
de faltas, de delitos e de crimes graves não está formulado expres­
samente em nenhuma das declarações, nem nos pactos internacionais.
Mas, segundo nossa opinião, deve reconhecer-se teórica e eficaz­
mente, em nível universal, nacional e local.
Muitos estudos jurídico-sociológicos, muitos textos e usos
legais, muitas práticas jurídicas e extrajurídicas oferecem apoio
suficiente para que tal direito se coloque junto a outros inquestiona­
velmente consagrados em nossas Constituições e em nosso convívio.
Se lermos os jornais, se escutarmos o rádio, eles nos dirão que
existem conflitos e delitos. Mas, se olharmos a realidade com pu­
pila iluminada, sem preconceitos, veremos a realidade, o alfa e o
ômega de perdões e conciliações. A indulgência generosa precede
e supera o ódio fratricida. Por isso, o poeta Jorge Guillén, depois
de contemplar e descrever a guerra e a tortura, vislumbra algo mais
real e harmônico que lhe faz exclamar concluindo:18 “ O mundo
está bem-feito” .

15 Marino Barbero Santos. Pena de nuterte (Ei ocaso de itn mito). Buenos Aires,
Depalma, 1985. Idem “ La peine de mort en Espngne. Histoire de son abolition”,
Mélanges en 1'honneur dtt Doyen Pierre Bouzat, Paris, Pedone, 1890, p. 103 ss.
Henri Bergson, Les deitx sources de la morale et de la religion, 1932 (trad. esp.:
Las dos fuentes de la moral y de la religión, 1942).
Jean imbert, La peine de mort, Paris, Press Universitaires de France, 1972, p. 20 ss.
Jorge Guillen, Aire Nuestro. Cântico. Clamor. Ilom enaje, A ll’Insegna dei Pesce
d ’Oro, 1968, p. 245, 524-527.
Antonio Beristain 59

Para os cristãos, o sentido evangélico do pecado realiza-se uni­


camente na revelação do perdão: se esquecêssemos isto, estaríamos
falseando radicalmente a concepção neoteslamentária do pecado e
esqueceríamos o que confessamos no Credo: “Creio no perdão dos
pecados” , que é algo muito diferente de crer 110 pecado. Em relação
a este tema, há um episódio extraordinariamente eloqüente 11a vida
de Jesus, o da mulher adúltera (João 8, 3-1 1).1<J

Epistemologia criminológica mctarracional

O mundo ocidental, por mil motivos, não somente pela rapidez


das comunicações, encontra-se cada dia mais próximo do mundo
oriental, e este faz com que nos demos conta de como nossas po­
tências interiores possuem uma consciência quadridimensional, um
“sexto sentido” (chamemos assim), que em muitos de nós jaz cala­
do, oculto, esquecido 110 fundo do nosso porão subconsciente. No
interior da “pessoa-cosmos” , aninham mundos mais grandiosos,
luminosos, quentes e dinâmicos que todas as galáxias.
Como explicam historiadores, antropólogos e outros especia­
listas, passamos 2uda cultura mágica à cultura mítica e depois ao
homem racional, ...onde permanecemos estancados, ancorados,
por muitos séculos.
Urge abrir os olhos para dentro, para a realidade harmônica
além do fenomenológico, para descobrir todo 0 horizonte redondo
que temos diante de nosso nariz...mas não vemos. Esta cegueira faz
com que venham as drogas como um deus ex machina, permitindo
que a consciência cartesiana autoperceptiva expanda sua percepção
de si mesma com aparência de sair de si mesma. Em outras pala­
vras, as drogas proporcionam ao eu autoperceptivo um substituto
da autotranscendência metafísica e mística.21

19
Bernard D. Marliangeas, Culpabdidad, pecado, perdòn, Santander. Ed. Sal
Terrae, 1985, p. 101.
■>!)
Hugo-M. Enomiya-Lassa!!e, A dònde va ei hombre'!, (rad. do alemão A. M.
Schliiler, Santander, Sal Terrae, 1982.
21 Jose Luis L. Aranguren, “El problema de la drogodependencia en el momento
actual, desde una perspectiva ética”, La droga en la sociedad actual y iiuevos
60 Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

O ministro da Justiça alemão e penalista, Radbruch, fala em


não fazer um direito penal melhor, mas sim de fazer algo melhor
do que o direito penal.22
Depois de tantos decênios desde 1845, quando Marx escreveu
sua tese XI sobre Feuerbach, esta há de ser entendida por meio de
outra leitura: “Os filósofos não têm feito mais que interpretar, de
diversos modos, o mundo, porém o que se trata é de transformá-
lo”. Sim, mas esta transformação não se consegue, principalmente,
com as mãos, nem com a razão, nem com a ciência lógica, nem
com a prática revolucionária.
Recordemos Aurobindo quando afirma que a pessoa consegue
mais, faz mais, quando sobe ao topo de um monte, senta-se em si­
lêncio e cruza os braços.
No campus universitário, há e haverá sempre espaços para
falar, salas para explicar lições. Mas, já que um fundamento da
ciência é o espelho, necessitamos de mais espaços para estar simples­
mente em silêncio, para converter nosso tempestuoso mar interno em
um lago tranqüilo que reflita a realidade “de cima”
Nos cárceres, oxalá haja escolas para ensinar a ler e escrever,
mas convém que haja mais locais para aprender e exercitar em paz
as técnicas de relaxamento, de ioga, de meditação transcendental e
as práticas correspondentes para poder auscultar, conhecer e con­
templar sem tanto alvoroço passional.
Salomon Asch, em seu artigo “Opinions and social pressure” ,
publicado no Scieníific Am erican, comenta a incapacidade de
muitos jovens de perceber e “registrar” (arquivar) detalhes diferen­
ciais nos comportamentos humanos, tanto que jovens de uma inte­
ligência, por dizer assim normal, podem chegar a qualificar como
branco o negro, e o inverso. Isto se deve à socialização que nos
educa mal a ver somente o que queremos perceber.
Segundo Jean Pi age t,23 não é fácil traçar a linha divisória entre
a capacidade de percepção herdada e a aprendida ao longo da con­

h o h zo n íes en crim inologia, San Sebastián, Caja Ahorros Provincial de Gui-


púzcoa, 1985, p. 17 ss.
22
Gustav Radbruch, Rechtsphilosophie, 4a ed., Stuttgart, 1960, p. 269 ss. Ideni,
Einfiihrung in die Rechtswissenschoft, 9a ed., Stuttgart, 1950, p. 143 ss.
' Jean Piaget, Eíudes d'épistém ologie génétique.
Antonio Beristain 61

vivência com os adultos. Mas o mestre francês afirma que a socia­


lização nos ensina a ver, discernir e constatar “o que consideramos
conveniente”.
Em sentido parecido, uma investigação apresentada na Uni­
versidade de Londres, pelo professor John Wilson, comenta que
depois de projetar um filme a trinta aldeães de uma tribo primitiva
de tradição oral na África (o filme versava sobre diversos métodos
sanitários), nenhum dos trinta espectadores foi capaz de “ ver” o
conteúdo do filme, que haviam contemplado com seus olhos bem
abertos.
Unicamente puderam responder às suas perguntas, dizendo
que lhes havia agradado a galinha...que em um momento secundá­
rio aparece na cena.
A trilogia de Xavier Zubiri sobre a inteligência viva, o íogos e
a razão,24 avança nessa direção e chega mais adiante; já o intuiu no
ano 1931, quando em sua conferência sobre “ Hegel e o problema
metafísico” , depois de recordar com Ortega que o saber até nosso
século tem vivido de duas metáforas - o saber como pegada sobre
a superfície de uma lâmina de cera, e o saber como conteúdo da
mente humana profetiza que hoje o saber pode expressar-se com
outra terceira metáfora: “ não se trata de considerar a existência
humana como um pedaço do universo, nein como uma envoltura
virtual dele, senão (de pensar) que a existência humana não tem
mais missão intelectual que a de iluminar o ser do universo. Não
consistiria o homem em ser um pedaço do universo, nem em ser
sua envoltura, mas simplesmente em ser a verdadeira luz cias coisas.
Portanto, o que elas são, não o são mais que a luz dessa existência
humana. Segundo esta terceira metáfora, o que se constitui em uma
luz não são as coisas, senão seu ser; não o que é, senão o que seja;
mas, reciprocamente, essa luz ilumina, funda, o ser das coisas e
não do eu, não as faz pedaços meus. O grave do caso está - acres­
centa ~ em que toda luz necessita de um foco luminoso, e o ser da
luz não consiste, em definitivo, senão na presença do foco lumino-
so na coisa iluminada” .

24
Xavier Zubiri, Jnteligenciay razón, Madri, Alianza Editorial, 1983, p. 350 ss.
^ Lain Entralgo, “ Zubiri hacia el futuro”, Zubiri ( 1898-1983). Ed. I. Teilechea
Idfgoras, Depto. de Cultura do Governo Vasco, Vitoria, 1984, p. 161 ss.
62 Nova criminologia à luz do direito penal e da vitim ologia

Dessacralização c ressacralização do Talião

Os juizes primitivos foram sacerdotes vingadores da ira ceies*


te. Depois “ revelaram” a lei divina do Talião. Hoje, afortunada­
mente, dessacraiizaram-se; mas a justiça secular, sem abandonar o
critério do razoável, deve recuperar alguma dimensão transcen­
dente, melhor diríamos, mística.
Tanto a mística ocidental como a oriental devem oferecer suas
claridades escuras (porque profundas e substanciais) à exegese
científica e à práxis penal-criminológica não menos que à física
nova.2r>
Entre suas múltiplas possíveis contribuições, destaco agora
duas: a conveniência de (superando o enfrentamento maniqueísta
dos mitos primitivos) descobrir a realidade harmônica do dia e da
noite, do inocente com o criminoso, como duas faces de uma mes­
ma moeda; e a utilidade de atualizar as instituições de Heráclito
sobre a justiça que brota da injustiça, como a luz brota das trevas,
como a vida da morte.
Se Zubiri, em 1934, escreveu que “no fundo da evolução da fí­
sica atual se assiste à elaboração de uma nova idéia da realidade
física da natureza”, de modo semelhante, em 1988, podemos escre­
ver que no fundo da evolução do direito penal de hoje se assiste à
elaboração de uma nova epistemologia da realidade “criminalidade”
e da realidade “controle social”.27 Esta idéia não cabe em expressões
meramente racionais, nem pode transmitir-se somente em for­
mulações literais, porque, antes de ser idéia, é também experiên-
cia-realidade pessoal.

26 A ciência jurídico-penal dispõe de uma capacidade muito limitada de autotrans-


formação, como indica Baralta, “Criminologia y dogmática penal. Pasado y
futuro dei modelo integral de la ciência penal”, La reforma dei derecho penal,
Barcelona, Ed. de S. Mir, 1981, p. 59. O mesmo autor. na continuação, mostra
que a teologia tem maior capacidade de renovação, quanto à sua estrutura con­
ceituai e axiológica. Igualmente, em Papers, Revista de Sociologia, Univ. Au­
tônoma de Barcelona. 1980. p. 13 ss.
"7 Ferrando Mantovani. “ II problema delia difinizione di criminalità", Studi in
m em ória d i G. D elitala, cit. vol II, p. 725 ss. Ericli Buchholz, “The term of
criminality today” , Crime and crim inal policw homenagem a López-Rey, F.
Angeli, 1985, p. 133 ss. Em todos os países diz-se que se busca maior humani-
zação, também nos países ditatoriais. Cf. pp. 137,139, 141.
Antonio Beristain 63

O “ foco” dessa experiência não deve localizar-se 110 ser indi­


vidual como ego sapiens, mas como vazio,28 na autotranscendên-
cia. As vezes, não se trata de compreender, senão de iniciar a ver e
a escutar 0 crípüco, o cabalístico.
Assim como os místicos Juan de la Cruz, Teresa de Ávila e
Inácio de Loyola sentiam e viam eles e os demais como pecadores,
mas amados de Deus, de modo semelhante os juizes e penalistas de
hoje e de amanhã devem sentir a experiência de nossa própria e
alheia culpabilidade jurídica e de nossa própria e alheia sanção ge-
nerosa-perdoadora, difícil de formular, mas experimentável.
A nova espistemologia tem de prestar atenção ao direito penal
solidário, fra te rn a l generoso e criador, que saiba converter o es­
terco do delito em flores do companheirismo, o direito talional no
direito premial.29
Devemo-nos aprofundar na capacidade da pessoa para escutar
0 silêncio interior, para desenvolver cuidadosamente as potenciali­
dades do hemisfério cerebral direito.
O centro do epistemólogo futuro tem de estar mais 11a cabeça
que no coração ou, melhor ainda, 110 ponto central do ventre, o que
os japoneses denominam Hara. Mais que grandes pensadores e
mais que pessoas de grande coração, necessitamos de pessoas intros-
pectivas, pessoas que vivam de seu interior, onde tudo desemboca
e de onde tudo brota, como 0 mar. No oceano desembocam as pes-
tíferas cloacas, mas, paradoxalmente, nesse oceano se encontram
as nuvens da água purificadora.
Essa epistemologia inovadora surge de raízes multisseculares,
pois já a conhecia o mundo grego com seus mitos, com sua Sofro-
sine (deusa grega), sua medida não-exagerada para reagir perante a
dor, a morte e o delito; com sua força purgativa do delito nas tra-
gédias.' Estava latente e patente na “ iluminação” aristotéhca, na
“ luminosidade” heideggeriana, 11a “luz derramada sobre as coisas”
orteguiana, 11a “ inteligência viva” zubiriana.

Ademais, como vazio, também como ou por meio da intuição vital (H. Ber-
gson), fenomenológica (Husserl), emotiva (M. Scheler), ética (H. J. McCIoskey,
Afeía-eíhfcs and normafive eíhics, 1969).
29
Mario Pisam, “ Lu is Jiménez de Asúa e il diritto premi ale” , Estudios de derecho
penai. En homenaje a Luís Jim énez de Asúa. Re v. Facidtad de Derecho, Univ.
Complutense, Monogrâfico I I , Madri, 1986. p. 541 ss.
30 E. Wo!f, Griechisches Rechtsdenken, Frankfurt am Main, 195U. 1952,1954,1956.
61 Nova crim inología à luz do direito penal e da vitim oiogia

Na Universidade de Salamanca, seu reitor, Unamuno, compre­


endeu e falou, com freqüência, da morte cotidiana como manancial
do realmente pessoal, satisfatório e vital comunitário. São experi-
ências-limite (peak experience, na terminologia de alguns psicólo­
gos contemporâneos) que despertam as pessoas de seus sonhos
teatrais para distinguir seu ser real de seu “papel’7 no cenário.31
Desde o ano de 1973, os recentes simpósios internacionais de
vitimoiogia, iniciados em Jerusalém, assim como destacados mem­
bros da Sociedade Internacional de Vitimoiogia, vão abrindo portas
que mostram como até a vitimoiogia pode e deve ser fecunda em
resultados de convivência, de melhor qualidade de v id a /2
Os documentos internacionais das Nações Unidas, do Conse­
lho da Europa, da Sociedade Internacional de Criminología, da As­
sociação Internacional de Direito Penal e da Nova Defesa Social33
entrevêem algo desta epistemologia da realidade profunda, cósmi-
co-mística, quando enfatizam tanto a dignidade da pessoa. Por
exemplo, o preâmbulo do pacto relativo aos direitos civis e políti­
cos, quando estabelece que “o reconhecimento da dignidade ine­
rente a todos os membros da família humana e de seus direitos
iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça
e da paz do mundo”.
Como ponto de partida para a hermenêutica de dimensão
espiritual mística, muitos abandonamos o dogmatism o e o so-
brenaturalismo, pois preferimos a clara e sólida sobriedade das vias
da justiça e da dignidade humana. Claro está que, partindo da
ordem natural, a justiça, para salvar o hiato que introduz sua pró­
pria finidade, terá de abrir-se à claridade e desembocar no trans­
cendente.34

31 Lain Entralgo, “ Zubiri hacia el futuro”, Zubiri (1898-1983). Depto. de Cultura


do Governo Vasco, Vitoria, 1984, p. 143 ss. M. de Unamuno, Diário intimo, Ma­
dri, Alianza, 1979.
32
A. Beristain, “Proyecto de declaración sobre justicia y asistencia a las vícti-
mns”, Estúdios de derecho penal. Homenaje a Jim énez de Astia, Uev. Fac. De­
recho, Univ. Complutense, Monográfico 11, Madri, 1986, p. 117 ss.
33
" Conseil Superior de la Poli tique Penitenciaire, “ Rapport sur les travaux, avis et
grands options de politique pénilentiaire, 1978-1982”, Revue de droit pénal et
de criniinologie, nL’ 7 (julho 1986), p. 693 ss.
34
J. L. L. Aranguren, Etica, 3a ed., Madri, Alianza Universidad, 1983, p. 225.
Antonio Beristain 65

Não desfrutará da liberdade quem não experimentar as exigên­


cias básicas da estrutura antropológica, quem não compreender que
é melhor dar que receber e quem não compreender que o bem é
dilusivo de sua própria natureza.
Não haverá justiça enquanto os homens, os juizes, se atreverem
a formular condenações sobre a moralidade do interior-teológico
de outras pessoas. Não haverá paz verdadeira até que à agressão, à
vitimizaçao se responda com o mimetismo da misericórdia divina,
como escreveu o insigne penalista Dorado Montero.?s
Não haverá paz verdadeira até que se compreenda e se “sinta”
a dignidade infinita de toda pessoa, também a do vitimário, como
proclama a sentença, de 11 de abril de 1985, do nosso Tribunal
Constitucional, por seu “valor espiritual e moral inerente à pessoa,
que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que leva a pretensão ao respeito por
parte dos demais”.

Dorado Montero, Bases para un mievo derecho penal, Barcelona, M. Soler


Editores. 1902, pp. 15, 19 ss., 43. 171, 190. No senlido parecido, escreve Eno-
miya-Lassalle, A dônde va el h o m b rel, p. 32: “O homem que chegou à auto-
realizaçíio, ao encontro com seu verdadeiro “eu” e à experiência de Deus não se
escandaliza facilmente com as limitações (infrações) humanas que existem sem [ire
em qualquer parte onde convivam seres humanos”. Sem misericórdia, não existe
justiça. Melhor dito, sem misericórdia religiosa. B recordo-me da profunda
formulação de Radbruch quando, em 1974, escreveu: “ Débil é todo direito
carente de dimensão religiosa” (Ein Recht, das der religiõse Weihe entbehrt, ist
schwacht). “ Die Erneurung d es Recht”, Die IVand/ung, 2 Jarhg. p. 39.
Parte II

Vitimoiogia
Capítulo 4

Nova filosofia política de e


para a nova política criminal
(o Estado não tem o monopólio
da violência)

Principis est facere suos súbditos felices.


É próprio dos políticos fazer felizes seus súditos.

Francisco de Vitoria, R eled io de Imiis, Salamanca, 1538.

E chi ha responsabilità politiche non sarà schiavo dei consenso sociale,


bensl un ministro, cioè un saggio servitore. preoecupalo dei bene di tutti.
E quem tem a responsabilidade política não será escravo do consenso
social, senão um ministro, como um sábio servidor, preocupado com o
bem de todos.

Cario Maria Marlini. St o alia porta. Milão. 1992. p. 53.

Metas

Ao abordar as “ novas perspectivas da filosofia e da sociologia


políticas”, convém formular uma breve introdução, desenhar com
grandes traços os caminhos que projetamos andar e algo sobre as
metas que desejamos alcançar.
Podemos dizer que a filosofia e a sociologia têm, mais ou menos,
fracassado. Assistimos aos “funerais” da modernidade e temos de
ajudar a criar uma nova ciência, e consciência de filosofia política.
A comoção produzida pela queda do muro de Berlim, em novem­
70 Antonio Beristain

bro de 1989, não somente provocou conseqüências econômicas e


sociais, como também científicas. É necessário um novo modo de
confrontar as linhas do pensamento que unem o que até agora ha­
via estado separado: o empirismo e a especulação, a ortopráxis e a
ortodoxia.
Já não tem vigência a máxima marxista: “Temos passado
muito tempo conhecendo o mundo, vamos transformá-lo” ; mas
sim, ao contrário, “ Levamos já vários anos transformando o
mundo, vamos conhece-lo” . Entre os nossos diversos objetivos,
desejamos, pois, que se fale e se reflita sobre pós-capitalismo,
pós-comunismo, pós-sabinismo, pós-zubirismo e, inclusive, sobre
algum pós-catolicismo.
Ao final do século XX, depois dos acontecimentos políticos
que convulsionaram e estão convulsionando o Leste da Europa e
que, por extensão, têm afetado a política mundial, vivemos um
“tempo” novo e uma consciência nova. Como cientistas, devemos
rebater o materialismo marxista, pois durante anos se pensou que a
realidade era a que configurava as idéias; entretanto, os aconteci­
mentos têm demonstrado que quem mais dinamiza e dirige o mun­
do são os sentimentos lúcidos e, segundo alguns, concretamente, os
sentimentos profundos metarracionais, os religiosos (sem que isto
implique confessionalidade de nenhum Estado, mas, ao contrário,
evita o fanatismo que tanto nos ameaça em nossos dias).
Concretamente, em algum sentido, pode-se dizer que aqui per­
siste certa política do “ nacional-catolicismo” vasco, e que ainda,
em alguns aspectos, não superamos a pré-modernidade. Enquanto
muitos lares já celebraram os funerais da modernidade, aos nossos
não chegou ainda a Revolução Francesa. A universidade do País
Vasco e as universidades espanholas carecem de uma cátedra de
teologia, enquanto todas ou quase todas as universidades alemãs
conservam e desenvolvem cátedras de diversas teologias. A Espa­
nha mantém dimensões religiosas católicas que atuam com menta­
lidade pré-conciliar e não-ecumênica, como já não admite nenhum
país de nosso âmbito cultural.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 71

Pilares fundamentais comuns

Depois desta breve introdução, começo a refletir sobre minha


tarefa concreta: estudar a nova filosofia e sociologia política desde
e para a nova política criminal. Muitos estranharam este enunciado,
dado o pouco conhecimento-reconhecimento (e grande desconhe­
cimento) da política criminal e da criminologia na Espanha, muito
menor que na América e 110 resto da Europa.
Desde que - há séculos - apareceu o homem (“animal político”),
este convive cm sociedade e, para isso, elabora uma filosofia polí­
tica mais ou menos madura. Também desde a primeira geração
(mito de Adão e Eva) emerge uma política criminal mais ou menos
desenvolvida, para responsabilizar 0 fratricida Caim. Da evolução
dessa política criminal e suas relações com aquela contemporânea
filosofia política, convém refletir sobre estas páginas para deduzir
algumas conseqüências concretas, iluminadoras de ambas as disci­
plinas, como escreve D. Glaser (“Science and politics as crimino-
logists’ vocations”, C rim inal Justice, Research B ulletin, vol. 5,
11a 6, 1990).
Freqüentemente, a política criminal influi na filosofia política
com incidência importante, por vários motivos. Entre outros, por­
que os governos de alguns países - não só os EUA - constatam que
0 problema mais grave, ou um dos mais graves, que devem resol­
ver seus governantes - e seus cidadãos - é a criminalidade e sua
cada dia mais sangrenta vitimação. Recordemos os inumeráveis
jovens vítimas do narcotráfico, a hecatombe da criminalidade or­
ganizada, etc. Recordemos o montante do orçamento anual das
instituições policiais, judiciais, penais e penitenciárias. Um dado
concreto: 11a maioria dos países de nosso âmbito cultural, para cada
cem mil habitantes existem quarenta a oitenta pessoas privadas de
liberdade, mas em outros (como os Estados Unidos e, até a um par
de anos, a URSS) existem mais de quatrocentas pessoas dentro dos
muros carcerários.
Resta dizer que essas realidades incidem, radicalmente, nas
decisões e teorias dos políticos, e estas últimas retroalimentam as
dos criminólogos, pois 0 crime brota como um “ fato social” a mais,
e o delinqüente emerge como produto de sua liberdade individual
em interação com suas circunstâncias comunitárias.
72 Antonio Beristain

Enquanto tentamos conhecer os pilares fundamentais de nossa


filosofia política européia atual, detectamos que provêm de múlti­
plas fontes, mas todas elas comuns à nossa moderna política crimi­
nal (cf. Ch. Lazerges, La poliíique criminelle, Paris, PUF, 1987):

- o monoteísmo judeu com suas duas Tábuas da Lei;


- a filosofia helênica de Aristóteles e de Platão;
- a concepção jurídica da antiga Roma;
- a cosmovisão medieval cristã (atualmente em mudança radical);
- a Revolução Francesa com í\ Aujklarung;
- a superação do modernismo, ou melhor, a superação do raciona-
lismo e o começo de um novo paradigma da ciência e da consciên­
cia, da ética e da filosofia política.

Especial consideração merece a cosmovisão medieval cristã do


poder, observada com a ótica de hoje. Como prova com sólidos
argumentos Oswaid von Ncll-Breuning (Unsere Verantwortung.
Fiireine solidarische Gesellschaft, Freiburg, Herder, 1987, p. 107 ss.),
para o cristão, contra o que alguns asseveram, o poder nunca deve
considerar-se como algo questionável, senão como algo eternamente
bom, se o homem ou a mulher souberem usá-lo com sabedoria e
amor.
Ainda que alguns afirmem (não o afirma Max Weber, segundo
depois veremos) que o poder estatal tem o monopólio da violência;
ainda que muitos repitam tjue o poder corrompe ao que o exerce e
que o poder absoluto corrompe absolutamente, tal como constata a
experiência de modo bastante preocupante, deve-se proclamar que
a cosmovisão cristã sobre a onipotência de Deus criador como cau­
sa primeira também vale, conseqüentemente, para o poder do que
faz de suas criaturas causas segundas: falamos de algo completa­
mente inequívoco.
Entretanto, a nossa experiência mostra muito questionavel-
mentc esse axioma cristão. Ocorre com o poder o mesmo que com
a técnica; também se lhe reprova a influência perigosa que exerce
sobre a convivência, quando na realidade são estas ou aquelas pes­
soas que podem usar dela para fins reprováveis, sem se verem re­
almente obrigadas a isso. No entanto, pode suceder que, às vezes, a
pessoa que detém o poder se encontra - em certo sentido - obriga­
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 73

da a tomar decisões que superem sua capacidade de conhecer e


para as quais lhe falta a qualificação requerida, ou os correspon­
dentes conhecimentos teóricos, ou a experiência prática, ou o tem­
po requerido, ou a firmeza necessária diante de nossas debilidades
da pressão externa, etc. Por mil motivos, pois, quem exerce o poder
muitas vezes se deixa levar pela ética da responsabilidade e “es­
quece” a ética da convicção. Em algumas dessas suposições, tor­
nou-se sumamente difícil precisar o grau de reprovação ética pela
conduta dessa pessoa; não tão difícil é precisar a determinação da
reprovação jurídica.
A partir do ponto de vista da teologia cristã, comprende-se
que, em não poucos casos, as decisões a tomar e o peso da conse­
qüente responsabilidade superam, em muito, o que uma pessoa
“média” é capaz de suportar, e não nos faz eticamente responsáveis
de todas as conseqüências objetivas de nossas decisões, senão de
nosso honesto esforço subjetivo, por preparar e formular resolu­
ções com a dose de cuidado que corresponda ao positivo que pro­
duzem e ao negativo que inevitavelmente causam. Sabemos que
quem ocupa um posto de direção, às vezes, se lhe exigem decisões,
diante das quais reconhece sua total ou parcial incompetência, sua
falta de conhecimento..., mas está (ou “se sente”) obrigado a assu­
mir uma postura e a “arcar” com as conseqüências. Em casos ex­
tremos, alguns juizes e, com maior freqüência, alguns políticos têm
de formular respostas importantes sem possibilidade de conseguir a
certeza a respeito da correção delas; além do mais, os políticos
(mas não os juizes) têm de aparecer diante do público como se es­
tivessem firmemente convencidos, sem fissuras nem dúvidas.
(Aqui não nos podemos deter em analisar a sobrevivência da grave
responsabilidade jurídica e social e ademais, às vezes, da leve - ou
nula - responsabilidade moral, interna.)

Evolução histórica paralela?

Também nos interessa observar de que maneira e até em que


grau ambas as disciplinas têm evoluído, paralelamente, através dos
séculos até hoje. Podemo-nos referir, arbitrariamente, às cinco eta­
pas seguintes que, às vezes, se superpõem e/ou se deslocam:
74 Antonio Beristain

Da política criminal privada ao caos e à filosofia política


absolutista

Nos povos primitivos, à infração respondem - direta e exclu­


sivamente - os sujeitos passivos do delito e/ou seus familiares.
Este sistema leva a múltiplos abusos de vinganças exageradas. Para
limitar esses excessos, vai intervindo, cada dia, mais e mais, o po­
der político para desbancar as vítimas e monopolizar a resposta,
mediante a coerção soberana. Com freqüência, quem exerce o po­
der considera-se delegado da divindade vingativa; além disso, essa
autoridade pública opina que, para superar o caos e a extralimita-
Ção das respostas privadas à criminalidade, ela pode e deve julgar,
sentenciar e castigar sem limite algum, inclusive buscando causar a
maior dor possível.
Apesar de sua aparente contradição, comprovam essas considera­
ções a história de Castela entre 1500 e 1700, com sua maremagnum
de pleitos inacabados, encaixotados nos armários dos Tribunais (R.
L. Kagan, “A golden age of litigation: Castile, 1500-1700” , em 1.
Bossy, Disputes and sett/ements. Law and human relations in the
West, Cambridge, Cambridge University Press, 1983) e a história
do País Vasco do século XI ao XVI, com sua repetida súplica à
autoridade superior para que controlasse os desmandos, os confli­
tos e a delinqüência “onipotentes” (cf. A. Beristain, Maria A. Lar-
rea, R. Maria Mieza, Fuentes de derecho penal vasco (siglos XI-
X V I), Gran Enciclopédia Vasca, Bilbao, 1980, p. 169 ss).
Com sólido argumento, em sua obra El derecho peitai de la
m onarquia absoluta. Siglos XVI-XVII-XVI1I (Madri, Tecnos, 1969,
p. 409), Francisco Tomás e Valiente concluem:

A im p r e s s ã o d o m in a n te q u e sc d e s p r e n d e d e s te livro, o u ao
m e n o s a que em m im fica ao te rm in a r d e escrevê-lo , é triste e
penosa. D em asiad os sofrimentos, desgraças e castigos; dem asiad as
o f e n s a s e v in g a n ç a s . D e m a s i a d a v io l ê n c ia , e n f i m .. .E q u e m
d e s a ta essa vio lên cia?
Nova crim inología à luz do direito penal e da vitim oiogia 75

Da política criminal sacra à filosofia política üo poder que


emana de Deus aos cidadãos

Inteligentes conhecedores e herdeiros da doutrina dos cano-


11 ist as de nosso Século de Ouro (Vitoria, Suárez, J. de Acosta,
Bartolomé de las Casas, etc.) divulgam seus argumentos de que às
pessoas leigas não compete sancionar os delinqüentes. Recordam,
por exemplo, Lugo, em sua Disputai ionwn de justitia et jure, tomo I
(Venetiis, 1718), disput. X, sec. 2, n“ 56 ss., quando utiliza inteli­
gentes razões para manter o que a autoridade pode sancionar; mas
não, ao contrário, os leigos. Somente ao monarca corresponde tal
poder. Este o recebe não diretamente, mas de Deus, por intemédio
dos cidadãos, com as ricas matizes que aparecem em F. Suárez, e
nas diversas doutrinas do pacto social, de Rousseau e de seus se­
guidores, etc.
Praticamente, a política criminal durante este longo período
estrutura a resposta ao delito como uma virtude/obrigação do poder
absoluto que aplica as penas com crueldade arbitrária, sem partici­
pação alguma da vítima, O reflexo desta política criminal abarcará
depois (também por reação) uma filosofia política liberal burguesa
preocupada, especialmente, em proteger o delinqüente. O Código
pena! e a Lei de Procedimento Criminal (CPP) são elaborados e
interpretados como a Carta Magna de liberdade do criminoso; por
isso, in dubio p ro reo (em caso de dúvida, em favor do réu), o juiz
haverá de sentenciar em favor do réu, ao qual jamais se pode tortu­
rar (José Luis de la Cuesta, El delito de tortura. Concepto. Bien
jurídico y estructura típica dei art. 204 bis dei Código Penal, Bar­
celona, Bosch, 1990).

Do poder que rotula e marginaliza ao abolicionismo da pena de


morte, ao abolicionismo do cárcere e ao utópico abolicionismo
do direito penal

No início do século XX, os estudos empírico-sociológicos (e


em parte também os psicológicos) mostram que o Estado e suas
instituições não se limitam a responder (com freqüência, indigna­
mente) ao delito e ao delinqüente, mas também (prévia e posterior­
76 Antonio Beristain

mente) estruturam o delito e rotulam o delinqüente mediante a ela­


boração de leis que outorgam tratamentos preferenciais para os
detentores do (e os próximos ao) poder. Também, mediante a apli­
cação das leis nos campos judicial e penitenciário que beneficia
escandalosamente os membros das classes privilegiadas. Essa triste
e inegável constatação, ainda que às vezes exagerada, advoga por
uma crítica contra o poder de coerção e punição. Logicamente,
pede-se que nas tarefas políticas haja uma maior participação dos
especialistas e de todos os cidadãos como indivíduos e como insti­
tuições, associações, etc. Postula-se uma mais real democratização
do poder, que permitirá e/ou exigirá a intervenção mais direta pos­
sível do povo na tarefa legislativa e nos organismos judiciais,
como, por exemplo, o jurado (cf. artigo 125 da Constituição Espa­
nhola de 1978).
Conseqüentemente, o delito fica estruturado como um com­
plexo que resulta de todos os ingredientes sociais, adquire impor­
tância sua “ normal” dimensão social, e a intervenção comunitária
limita e controla o abuso do poder, já não teocrático, mas plutocrá-
lico. Logicamente, deseja-se, e em muitos países se consegue, a
abolição da sanção capital. Também, ainda que com menos força,
se propugna o desaparecimento do cárcere, substituído por sanções
alternativas. Também alguns excelentes criminólogos chegam a
pedir, com forte dose dc utopia irrealizável, o desaparecimento do
direito penal (cf. L. Hulsmann, A. Baratta, E. R. Zaffaroni).
Nessa direção, encontram atentos e bifrontes comentários os
sólidos argumentos de Elías Neuman, quando planeja a legalização
das drogas (cf. Neuman, La legalización de las drogas, Buenos
Aires, Ed. Depalma, 1991), e as reflexões de Rubert de Ventos e
outros quando explicam que em alguns setores de política criminal
o impotente é o poder, tal como hoje se exerce (por exemplo,
quando as autoridades policiais e/ou penitenciárias não conseguem
evitar os maus tratos, ou a tortura, que praticam seus subordina­
dos). Por isso, a filosofia política procura limitar mais ainda o po­
der, enquanto a política criminal leva em consideração as vítimas
(A. García-Pablos, M anual de criminologia. Iníroducción v teorias
de la criminalidad, Madri, Espasa-Universidad, 1988, p. 76 ss.; G.
Landrove, Vicdmologia, Valência, Tirant lo Blanch, 1990).
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 77

Da filosofia política assistencial à política criminal vitiniológica

Desde o Primeiro Simpósio Internacional de Vitimologia, ce­


lebrado em Jerusalém no ano de 1973, a grande novidade dos últi­
mos tempos é a atenção assistencial preventiva e reparadora que a
atual política criminal presta às vítimas. Estas, ainda que às vezes
tenham colaborado na mesma gênese do delito, devem sempre in­
tervir 110 iter, o caminho, dos operadores da justiça restauradora,
para destacar menos punição, e mais prevenção, o indenizatório, o
compensatório e, sobretudo, o reconciliador, e para facilitar ao de­
linqüente o caminho rumo à reconciliação com a vítima, consigo
mesmo e com a sociedade. Seguindo esse programa, a filosofia po­
lítica defenderá e assistirá a vítima mais que o delinqüente: em lu­
gar do tradicional axioma in clubio pro reo, se dirá /'// efubio pro
victima: em caso de dúvida, em favor da vítima.
Essa cosmovisão reclama amplas modificações nos orçamentos
estatais para poder arcar com os gastos da mais completa atenção
médica, psicológica, sociológica, policial, etc. às vítimas da crimi­
nalidade e das estruturas sociais injustas. Ainda não foi alcançada a
mentalização desejável da comunidade (Elias Neuman, Victimologia.
E l rol de la victima en los delitos convencionales y no convencio-
nafes, Buenos Aires, Ed. Universidad, 1984; A. Beristain, J. L. de la
Cuesta (comps.), Victimologia, San Sebastián, UPV/EHU, 1990).

Da política criminal estatal à filosofia política supra


e internacional

Os protagonistas da política criminal contemporânea, com sua


orientação supra-estatal (cf. M. C. Bassiouni, trad. e notas de J. L.
de la Cuesta, Derecho penal internacional. Proyecto de Código
penal internacional, Madri, Tecnos, 1984), influem fortemente na
filosofia política, como registram os documentos do Conselho da
Europa e das Nações Unidas; também os trabalhos dos especialis­
tas teóricos e dos operadores da criminal justice. Os juizes e os
magistrados, os diretores do voluntariado, os protetores da ecolo­
gia, etc. pretendem a criação de um espaço europeu de política
criminal. Os cultivadores da filosofia política que assistem aos
78 Antonio Beristain

congressos das Nações Unidas aceitam e aplaudem suas declara­


ções e pactos internacionais, que propugnam visões e resultados
que alcançam toda a aldeia planetária, em dinâmica e ininterrupta
conexão sincrônica.
Essa filosofia política supera as nacionalidades e tenta conse­
guir a defesa e o desenvolvimento dos valores fundamentais da di­
gnidade pessoal. Constata que cada dia suscita menos entusiasmo o
sentimento pátrio, e encontra menos eco o grito do “Tudo pela pá­
tria” ; mas, ao contrário, o fanatismo étnico semeia cadáveres nas
cidades do Leste da Europa e alimenta o terrorismo em muitos paí­
ses, como na Espanha.
Conseqüentemente, muitos especialistas da atual filosofia política
fomentam tendências - e pactos internacionais - que exigem maior
conteúdo social, ético, religioso, econômico, político e cultural;
pretendem e conseguem superar propostas burguesas, ditatoriais,
marxista-totalitárias, etc., mediante a reformulação básica da digni­
dade de toda pessoa, com especial atenção à infância, à mulher, aos
indivíduos e aos povos marginalizados; recordam, também, que os
povos geralmente carecem de soberba exclusivista de algumas
etnias (Peter Waldman, Ethnischer Radikalisnms. Ursachen und
Folgen gewaltsamer Minderheitenkonflikte, Opladen, 1989, passim ,
p. 188 ss.).

Olhando para o futuro

Olhando para o futuro, os especialistas em filosofia política


deparam com questões - e também com soluções - muito similares, e,
em parte, idênticas às dos especialistas em política criminal - por
exemplo, as que enuncio, telegraficamente, a seguir:
1. Segundo Ignacio Sotelo {Sociologia de América Latina. Estrnctu-
ras y problem as, 2~ ed., Madri, Tecnos, 1975, p. 203), pode-se
afirmar que em um amanhã próximo as já grandes diferenças
entre os países latino-americanos tendem a aumentar e que os
últimos vinte anos demonstram a impossibilidade, para a Améri­
ca Latina, de um desenvolvimento capitalista segundo o modelo
europeu e norte-americano do séculos XIX e XX. Algo parecido
afirmam alguns (não todos) criminólogos a respeito da diferente
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 79

e deficiente política criminal na América Latina, em comparação


com a européia e/ou a norte-americana. Basta a esse respeito re­
ler o Manifesto do México assinado no ano de 1981, com forte
ideologia marxista (cf. Capítulo Criminológico, nQS 9/10, ano
1981/1982).
2. No entanto, enquanto podemos dizer que a pós-modernidade
reintegra a ciência à filosofia política (cf. Ignacio Sotelo, “Filo­
sofia y ciência social: la actualidad de la ‘Escuela de Francfort” ’,
Barcelona, Working Papers, 1989, p. 21 s.), no mesmo sentido
podemos afirmar que a pós-modernidade reintegra a ciência à
política criminal, por exemplo, no campo das investigações cri-
minológicas sobre o prognóstico criminal, tão importante para a
concessão das permissões penitenciárias aos condenados e aos
internos preventivos (cf. Ley Orgânica General Penitenciaria,
arts. 47 e 48; Reglamento Penitenciário, arts. 45.7, 254. 255).
3. Entre os filósofos e os políticos abundam hoje os “ intelectuais
proletaróides” (na terminologia de Max Weber) que se opõem ao
estilo da filosofia política “oficial” , que contestam a estrutura
política de seu partido, por motivos diversos: desde o excessivo
laicismo até o extremo fundamentalismo (cf. G. Kepel, La re-
vanche de Dieu. Chrétiens, ju ifs et musulnmns à la recoucptête
du monde, Paris, Editions du Seuil, 1990). Diante dessa realidade,
convém investigar se (e provavelmente concluir que) a religião,
ou melhor, as religiões fomentarão, em um futuro próximo, a
filosofia política, pois sem a religião como base ninguém cons­
trói ciência nem consciência alguma de perenidade. Por isso, de­
pois de meio século de regime comunista, os Leinder orientais da
Alemanha (nos quais o poder marxista havia feito desaparecer a
instrução religiosa em todos os centros docentes, com a preten­
são foucaultiana de que seu poder chegasse até a domesticação
das almas dos jovens) voltam a estabelecer aulas de religião em
todas as instituições docentes da juventude (cf. B ildung und
Wissenschafl, n~ 7/8, Bonn, Inter Nationes, p. 17). (Oxalá se imi­
tasse esta norma na Espanha.)
4. A filosofia política necessita ter presente e respeitar mais -
muito mais - os critérios básicos da política criminal para poder

E no Brasil também. (N. do T.)


80 Antonio Beristain

conseguir a difícil harmonização da ética de convicção com a


ética da responsabilidade (cf. J. R. Recalde, “Gobierno legítimo
y ética dcl gobernante” , em J. L. de la Cuesta, I. Dendaluze,
E. Echeburúa, Criminología y derecho penal al servicio de la
persona, San Sebastián, Instituto Vasco de Criminología, 1989,
p. 1.191-1.202). Nunca é permitido ao governante malversar
nem fraudar tantos e tantos milhões de pesetas, como nos revela
a imprensa diariamente, aqui e acolá, nem cometer um delito de
tráfico de influências (cf. o Projeto de Lei Orgânica do Código
Penal espanhol de 1992, artigo 409 ss., Boleiín Oficial de las
Cortes Generales, Congreso de los Diputados, 23 de setembro
de 1992), nem autorizar e conseguir escutas telefônicas dos adver­
sários políticos, etc.
De modo semelhante, o operador da política criminal deve ob­
servar e cumprir os princípios político-jurídicos que foram se
formando ao longo da evolução jurídico-penal como necessários
e irrenunciáveis, e não pode prescindir de valorizar os dados
empíricos, se traia de ser convincente. Concretamente, no pro­
cesso de valorização, devem-se resolver todas as dificuldades
relacionadas com a transposição do saber experimental às deci­
sões jurídico-políticas e à unificação de numerosos pontos de
vista, em parte opostos, tão opostos como a ética da convicção à
ética da responsabilidade.
5. Tanto a política criminal como a filosofia política, ao programar
seu futuro imediato, devem resolver os gravíssimos problemas
que cria a violência que exercem membros do poder político e —
também por mimetismo —minorias éticas em facções terroristas
em todos os continentes. Basta ler os relatórios anuais da Anistia
Internacional para constatar que na maioria dos países o poder
comete atrozes abusos, e que, por desgraça, grande parte deles
fica impune.
Para se conseguir que diminua tanta violência estabelecida,
subversiva e repressiva, convém esclarecer algumas noções fun­
damentais, e em concreto atualizar a diferenciação entre a vio­
lência, por uma parte, e a potestade punitiva, por outra (cf. Cobo
dei Rosai, Vives Antón, Derecho penal. Parle general, 39 ed.,
Valência, 1990, p. 51 ss.).
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 81

Hoje, a filosofia política coincide com a política criminal em que


ao poder político compete a coerção; somente ao poder político,
não aos leigos. Também ontem os canonistas escolásticos do
Renascimento proclamavam esse axioma. Pelos mesmos critérios,
a Anistia Internacional - teórica e praticamente —exclui da lista
dos presos de consciência, e de seus lógicos benefícios, os con­
denados que cometem delitos de violência ou que fazem apolo­
gia desta.
Max Weber resume uma de suas leses fundamentais afirmando
que o Estado possui o monopólio da Gewalt. Muitos mal interpre­
tam e traduzem, equivocadamente, sua formulação; em alguns
idiomas, por exemplo em castelhano e em francês (cf. G. Picca,
La criminologie, Paris, PUF, 2~ ed., 1988, p. 94, e sua tradução
para o castelhano, México, Fondo de Cultura Econômica, 1987,
p. 111), dizem que o Estado tem o monopólio da violência. Esta
versão, radicalmente inexata, dá margem a doutrinas e a práticas
violentas e terroristas. Urge aclarar o sentido autêntico de
Gewalt 110 contexto weberiano. A palavra alemã G ewalt engloba
muitos significados. Emprega-se para designar realidades diver­
sas. Em cada caso, deverá traduzir-se, tendo em conta o contexto.
Max Weber, em seu esludo sobre o poder estatal, não equipara a
G ewalt com a violência, senão com a coerção da autoridade
estatal (cf. P. Hafner, “ Überlengungen zu Freiheit und Macht” ,
O rieniierung, nü 1, 56 Jahrgang, Zurique, 15 de janeiro de 1992;
110 mesmo sentido, os comentaristas weberianos K. Rõttgers, G.
Holzherr, etc.).
Outro exemplo paradigmático do perigo das traduções no tema
do poder e da violência nos oferece a excelente revista Seleções
de Teologia (n~ 101, vol. 26, 1987, p. 17). Cita um parágrafo de
KarI Rahner (Escritos de Teologia, IV, p. 499), com estas pala­
vras:

Q u e m c o n s id e ra s s e o p o d e r c o m o o m ais ce rto c o m ais claro,


q u e m p e n s a s s e q u e c o m ais real e no fu n d o o ú n ic o a c re d ita d o ,
q u e m não tra b a lh a s s e para s u p c rá -lo e s u p rim i-lo s eria o c u l ta ­
m e n te um h ereg e c um a p ó s to lo d o v e rd a d e iro c ris tia n is m o ,
p o r q u e não afirm a ria q u e tal p o d e r p ro v é m d o p e c a d o e qu e, p o r
isso. tem de ser. c o m o ele. su p e ra d o .
82 Antonio Beristain

Essa versão castelhana emprega nessa citação, equivocadamen-


te, a palavra “poder” em lugar de dizer “força bruta” . O leitor
desse texto (como aparece na referida revista, sem o contexto)
fica com um idéia falsa da opinião do teólogo alemão. K.
Rahner, em todo o artigo, comenta positivamente que “o poder é
uina criatura de Deus” (p. 517) e que “em uma ordem paradisíaca
haveria também, naturalmente, poder como faculdade de eficiên­
cia física, haveria realidade social e, com isso, subordinação e
superioridade, direção e lei” . Como se vê, a opinião de Rahner
coincide com a opinião da maior parte da teologia cristã (de que
antes falávamos) e não com quem, por ignorância ou por malí­
cia, traduz mal e formula textos fora do contexto, de maneira
que muda radicalmente seu sentido.
6. O desencantamento que Max Weber detecta em sociologia e em
filosofia política suscita um amplo eco em política criminal, so­
bretudo em alguns pontos centrais, como o da ressoeialização do
delinqüente. Muitos desencantados consideram equivocada a
exigência de nossa Constituição, quando seu artigo 25 proclama
que “as penas privativas de liberdade e das medidas de seguran­
ça estarão orientadas para a reeducação e a reinserção social”.
Nós, sem dúvida, e muitos especialistas de política criminal,
pretendemos superar qualquer desencantamento em um proble­
ma, do qual depende a felicidade de tantas pessoas e famílias.
Esperemos que as mútuas relações que medeiam a filosofia
política e a política criminal sejam catai is adoras de uma sociedade
com mais respeito à dignidade e aos direitos humanos, com menos
criminalidade e com mais filosofia, enquanto esta significa encon­
trar “sabor” e “sentido” nas realidades da convivência das pessoas
no seu ecossistema, em seu ambiente, tanto social como físico.
Capítulo 5

A sociedade/judicatura atende
a suas vítimas/testemunhas?

Vitimoiogia

Origem da vitimoiogia

Pode-se dizer que a atual vitimoiogia nasceu como reação à


macrovitimação da II Guerra Mundial e, em particular, como res­
posta dos judeus ao holocausto hitleriano/germano, ajudados pela
reparação positiva do povo alemão, a partir de 1945.
Em 1973, celebrou-se em Jerusalém o Primeiro Simpósio In­
ternacional sobre Vitimoiogia, e ali encontraram eco os poucos tra­
balhos que, anteriormente, haviam sido publicados a respeito das
vítimas de delitos. Pode-se dizer que oficialmente nasce a vitimo­
iogia, no âmbito científico e mundial, no ano de 1979, no Terceiro
Simpósio Internacional de Vitimoiogia, celebrado em Münster
(Alemanha), quando é fundada a Sociedade Mundial de Vitimoio­
gia, à qual pertencem, atualmente, umas trezentas pessoas, e que tem
dado impulso a inúmeros livros, revistas, estudos, cursos, simpó­
sios, congressos, etc.
Entre os trabalhos da vitimoiogia, destaco o de Hans von Hen-
tig, do ano de 1948.1 Segundo ele, convém ter em conta três noções
fundamentais:

1 Mans von Hentig. The crim inal and his victim, 1948.
84 Antonio Beristain

Primeiramente, a possibilidade de que uma mesma pessoa pos­


sa ser delinqüente ou criminoso segundo as circunstâncias, de ma­
neira que comece no papel de criminoso e siga no de vítima, ou ao
contrário. Também cabe a possibilidade de ser ao mesmo tempo
delinqüente e vítima. Esta figura dual dá-se, com freqüência, atual­
mente, nos jovens viciados que, para conseguir o dinheiro de que
necessitam para comprar drogas, se vêem compelidos a cometer
delitos contra a propriedade.
A segunda noção é a “vítima latente”, que inclui aquelas mu­
lheres e aqueles homens que têm uma predisposição a chegar a ser
vítimas, ou seja, uma certa atração para o criminal. Concretamente,
escreve von Hentig:

O indivíduo frágil, tanto entre os an im ais c o m o c n trc as pessoas,


é a q u e le q u e v e ro s s im ilm e n tc será v ítim a d e u m ataq u e. A lg u n s,
c o m o as crianças, os velhos, são frágeis fisicamente: outros, com o
as m u lh eres, p e rte n c e m ao se x o frágil, o u tro s são frá g e is de e s ­
pírito.

Hoje, poucas pesquisas levadas a cabo por mulheres mantêm o


critério formulado, há meio século, pelo professor alemão.
Por fim, a terceira noção básica refere-se à relação da vítima
com o delinqüente, relação que pode provocar uma inversão dos
papéis do protagonismo. A vítima pode ser o sujeito, mais ou me­
nos desencadeante, do delito.
Sobre esses problemas escreveu, acertadamente, também o
professor espanhol Luis Jiménez de Asúa, já no ano de 1961, páginas
♦ » 2 '*
pioneiras, dignas de serem relidas. Assim mesmo, poucos anos
antes havia tratado do tema Benjamin Mendelshon,'1 e J. Pinatel,

2
Luis Jiménez de Asúa, “ La llamada vietimología”, Estudios de derecho penal y
criminologia, Buenos Aires, Oineba, 1961, p. 19 ss.; A. Beristain, “ Proyeclo de
declaración sobre justicia y asistencia a Ias víclimas”, Estudios de derecho penai
en hom enaje a l P rofesor Luis Jim énez de Asúa. R evista de la F a cid ta d de
D erecho de la U n iversid a d C o m p h iten se, M onográfico nü 11, junho 1986,
p. 117, 120; Idem. “ La vietimología en un momento clave”. Noias dei III Sym-
posio internacional sobre Vietimología”, Anuário de derecho penal. 1980, p. 93 ss.
B. Mendelshon, La victiniologie, Revue Française de Psychoanalyse, 1958, p. 96 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 85

nos oferece ampla informação do que durante o começo dos anos


1960 se publicou sobre vitimologia.4
Quanto à legislação de auxílio sobre as vítimas de delito, re­
cordemos que já 110 ano de 1891 o Terceiro Congresso Jurídico
Internacional, em Florença, aprovou a proposição de Garofalo de
instituir um fundo de compensação estatal para assistir as vítimas
de certos delitos. Prescindindo-se de outros muitos dados, na Nova
Zelândia, no ano de 1963, formulou-se um programa importante de
compensação às vítimas de delitos. Na América Latina, foi o M é­
xico o pioneiro, no ano de 1969. No Distrito Federal, elaborou-se e
aprovou-se, por inspiração de Sergio Garcia Ramirez, então procu­
rador-geral da Justiça, uma lei de proteção e auxílio às vítimas de
delito. Num de seus artigos, fixa-se, claramente, a maneira de
comprovar o estado econômico das vítimas as quais a lei protege.
Consegue-se por meio de um organismo de antigas raízes em vários
estados do país: o Departamento de Prevenção e Readaptação So­
cial. Fixam-se as formas de arrecadar os fundos (recursos) necessá­
rios para o auxílio previsto, sem necessidade de recorrer a impostos
dos contribuintes. Oferecer-se-á ajuda econômica ao maior número
de pessoas, outorgada com um fundo de reparação integrado com
as seguintes percepções, que expressa o artigo 3° da lei:
1 - - A quantidade que o Estado arrecada por conceitos de fianças
que se façam efetivas nos casos de não-cumprimento de obri­
gações inerentes à liberdade provisória sob fiança, a suspensão
condicional da sentença e a liberdade condicional, segundo o
previsto pelas respectivas leis.
2 ~ - A quantidade que o Estado arrecada por conceito de multas
impostas como pena, pelas autoridades judiciais.
3S- A quantidade que, por conceito de reparação do dano, devam
cobrir os réus sentenciados a tal pena pelos Tribunais do
Estado, quando o particular beneficiado se abstenha de recla­
mar a tempo a referida reparação, ou renuncie a ela, ou quando
a mesma se deva ao Estado em qualidade de prejudicado.
4 - - C i n c o por cento da renda líquida anual de todas as indústrias,
serviços e deniais atividades lucrativas existentes nos reclusó-
rios estatais.

4
J. Pinatel. Criminologia. tomo III do Tratado de derecho p e n a l y crim inologia.
trad. Ximena Rodriguez de Canestri. Caracas, 1974, p. 492 ss.
86 Antonio Beristain

5 ~ - A s aportações que para este fim façam o próprio Estado e os


particulares.5
Dada a situação econômica nacional mexicana, e por outros
motivos, muito poucas vítimas têm recebido a compensação devida.
Como já sabemos, em 1979 celebrou-se em Münster o Terceiro
Simpósio Internacional de Vitimoiogia, e comentou-se a necessi­
dade de institucionalizar, de alguma maneira, os conhecimentos, as
idéias e os projetos que, desde 1973, têm surgido com tanta apro­
vação internacional. No último dia do simpósio, decidiu-se a criação
da Sociedade Mundial de Vitimoiogia, que, imediatamente, conse­
guiu quase duzentos membros. Esta sociedade, com seu impulso
juvenil e eficaz, conseguiu criar e propagar a todo 0 planeta uma
doutrina e uma práxis que tornam realidade o que antes de 1979 era
somente uma idéia quase utópica.
Com o transcorrer dos anos, a vitimoiogia encontrou acolhida
11a maioria dos países e nas instituições supranacionais. Basta re­
cordar a Convenção Européia sobre a assistência às vítimas de de­
litos violentos, do Conselho da Europa, dentro do Comitê Europeu
para os problemas criminais (Estrasburgo, 1983), a Declaração so­
bre justiça e assistência para as vítimas, que se elaborou no encon­
tro inter-regional de especialistas das Nações Unidas, em Otawa
(Canadá) no ano de 1984, a Recomendação n9 R (85) 11, do Co­
mitê de Ministros aos Estados-membros, sobre a posição da vítima
no campo do direito penal e processual penal (adotada pelo Comitê
de Ministros 110 dia 28 de junho de 1985, 11a Reunião número 387
dos Delegados dos Ministros),6 a Declaração sobre os princípios
fundamentais de justiça para as vítimas de delitos e do abuso de
poder, aprovada na Assembléia-Geral das Nações Unidas (Resolução
4U/34) 110 dia 29 de novembro de 1985, o Documento do Comitê II
do Oitavo Congresso das Nações Unidas, em Havana, sobre “Pro­
teção dos direitos humanos das vítimas da delinqüência e do abuso
de poder” , no que o Congresso das Nações Unidas

5 BI ias Neuman, i'ictimologia. El rol de Io víctima en los delitos convencionales y


no convencionales. Buenos Aires. Ed. Universidad, 1984. p. 279 s.
A. Berisiain, De leyes penales v de Dios legislador (Alfa v O m ega de! control
p en a l humano), Madri, Edersa, 1990, p. 253 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 87

...re co m en d a q u e o s listad o s p re p a re m p r o g r a m a s de fo rm a ç ã o
b a s e a d o s nos p rin c íp io s d esta D e c la ra ç ã o , c o m o o b je tiv o de d e ­
finir c d ar a c o n h e c e r os d ireito s d a s v ítim a s d a d e lin q ü ê n c ia c
do ab u so de po der, q u e d e v e ria m in c o rp o ra r-s e a o s p r o g r a m a s
de e s tu d o s d as f a c u ld a d e s de d ireito, institu tos de c rim in o lo g ia ,
ce n tro s d e fo rm a ç ã o de pesso al p a ra a a p lic a ç ã o c o e rc itiv a do
d ireito e e sc o la s ju d ic ia is

e a Convenção do Conselho da Europa sur la responsabilité civile cies


dommages résultant d 'activités dangereuses poitr {'environnement,
Lugano, 21 junho 1993, cujo arligo 9 estabelece:

Si la v ic tim e ou une p e rs o n n e d o n t la v ic tim c est re s p o n s a b le en


vertu du d ro it intern e a, par sa faute, c o n trib u é au d o m m a g e ,
1'ind em n ité peut être ou s u p p rim é e , en len an t c o m p te d e to u tes
les c irc o n sta n c e s , ctc.

Do desenvolvimento teórico da vitimologia dão provas os


numerosos estudos apresentados no 1~ Simpósio Internacional
de Vitimologia, celebrado no Rio de Janeiro, em agosto de 1991
(uma pequena parte de suas teses e comunicações aparece no
livro compilado por Ester Kosovski)9 e no XI Congresso Inter­
nacional da Sociedade Internacional de Criminologia, que teve
lugar em Budapeste, de 22 a 28 de agosto de 1993. Neste, as
questões vitimológicas têm sido, provavelmente, as mais co ­
mentadas e debatidas: como tema central em uma seção plená­
ria, nos programas da Sociedade Húngara de Criminologia, em
oito grupos de trabalho, etc.

7 Oitavo Congresso ilas Nações Unidas sobre prevenção do delito e tratamento do


delinqüente, Havana (Cuba), agosto-setembro 1990, A/Conf. 144/C.2/L.5.5, 3 de
setembro de 1990, p. 2 s.
Conseil de L ’Europe. Convention sur la responsabilité civile des clommages
résultant d ’activités dangereuses pour renvironnement, Lugano, 21 junho 1993,
Série dos irniiés tiuropéens nü 150, p. 7.
Ester Kosovski, Vitim ologia: enfoque inierdisciplinar, Rio de Janeiro, 1993,
380 p.
88 Antonio Beristain

Conceitos básicos c importância da vitimologia

A vitimologia é filha da criminologia, muito mais que do di­


reito penal. Desta afirmação se deduzem conseqüências muito es­
clarecedoras, já que a ciência e a práxis jurídico-penal diferem
notavelmente da ciência e da práxis criminológica."1 Diferem nos
princípios básicos, nas propostas dos problemas e na exagerada
(ainda que necessária) divisão do trabalho científico para evitar a
superficialidade.
Convém superar algumas das discrepâncias radicais entre ambos
os campos - o jurídico-penal e o criminológico - e, para consegui-lo,
recordar a necessidade da interdísciplinaridade, intradisciplinaridade e
transdisciplinaridade no controle social penal pós-moderno. O pena-
lista ocupa-se de temas parcialmente diversos e conduz um estilo
de pensamento muito diferente. Preocupa-se com a igualdade for­
mal e com a legalidade real. procura evitar a valorização do ato,
assim como a culpabilidade do autor, e pretende prevenir, controlar
e reconciliar mais que castigar, mais que “ fazer justiça”.
Se alguém duvida de que a vitimologia deriva da criminologia
muito mais que do direito penal, é só recordar que, ao se criar em
Münster, no ano de 1979, a Sociedade Mundial de Vitimologia,
seus membros fundadores discutiram se deveriam formar uma seção
dentro da Sociedade Internacional de Criminologia ou constituir
uma sociedade autônoma independente. A ninguém passou pela
idéia a possibilidade de integrar-se à Associação Internacional de
Direito Penal. Outra prova de que a vitimologia nasceu e cresce
mais perto da criminologia que do direito penal nos oferece o fato
de que a reparação, tal e qual se concebe e pratica o direito penal,
tem muito castigo (perto da multa) para repreender e sancionar o
delinqüente; por isso, se diz “aquele que fez, que pague” . Ao con­
trário, os vitimólogos concebem a reparação, antes e sobretudo,
para dar assistência à vítima.

1,1 Kaiser, Kriminologie. 73 ed., C. F. Miiller Juristischer, Heidelberg. 1985. p. 28 s.:


Idem, Krim inologie. 9a ed., 1993, p. 23 ss., p. 184 ss.; H. J. Schneider, Krim i­
nologie, Berlim, Walter de Gruyler, 1987, p. 89 s.; A. García-Pablos, M anual
dc criminologia. Introducción y teorias de la erintinalidad, Espasa Universidad,
1988, p. 76 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penat e da vitim oiogia 89

Isso pode explicar por que a vitimoiogia encontra tão pouca


acolhida entre a polícia, a judicatura e as instituições penitenciárias,
em alguns países “afastados” da criminologia. (Recordemos, entre
parênteses, que 110 âmbito universitário e penitenciário espanhol se
tem marginalizado a criminologia; não se apreciam, suficientemente,
seus estudos, nem sua diplomação, nem seu mestrado. Tampouco
se respeita o regulamento penitenciário no que se refere ao crimi-
nóíogo, em seu artigo 281
Hlías Neuman acerta, quando afirma:

N ão há d ú v id a d e q u e se d ev a a m p lia r o c a m p o n o s o ló g ic o ( e s ­
tu d o d a s m o lé s tia s) e co n c e itu a i d a v itim o io g ia . P o d e r - s e - ia d i­
z e r q u e a s o c ic d a d c dc capital e c o n s u m o tem c ria d o m a rc o s de
id e o lo g iz a ç ã o q u e lhe p erm ite m v itim a r u m a q u a n tid a d e no tável
de seres hum anos: delinqüentes, loucos, doentes, m inorias raciais,
m e n o re s, o lig o frê n ic o s , anciãos.

Dentro do círculo da política criminológica, que é conseqüên­


cia de outro círculo concêntrico maior de política social geral, a
vitimoiogia deve proclamar-se uma ciência para a liberdade e a
liberação moral e material de todo tipo de vitimados (delinqüentes
marginalizados e submergidos sociais), que engloba também atin­
gidos pelos acidentes de trabalho, sem esquecer da sociedade, ou
grande parte dela, quando se trata do abusivo poder governamental,
econômico, religioso, acadêmico 011 jornalístico, etc.
Se os criminólogos alemães Günther Kaiser e II. .1. Albrecht
afirmam que existe um déficit de investigação 110 campo vitimoló-
gico, com muito maior motivo devemos nós, na Espanha, insistir
11a urgência de aumentar os estudos correspondentes para conseguir
metas de alto valor humano, científico e criminológico, como indi-
12
ca A. García-Pablos.

11 Elias Neuman, Victimología, p. 291 ss.


12
A. García-Pablos. “El moment actual de la criminología", De ies causes dei delicie a
la producció de! control. El debat actual de la criminologia, Juslfcia Í Soeietat. Bar­
celona, Centre d :Esütdís Jurídics i Formado Especialitzada tle la Generalitat de Ca-
talunya, 1992, p. 81; Kaiser, “Victim-research at the Max-Planck-Institut. Point of
deparlure, issues and problems”, Victims and Criminal Justice, editado por Kaiser-
Kury-Albrecht, Freíburg i. Br., 1991, vol. 50, p. 3 ss.: H.-J.-Albrecht, “ Kriniinolo-
gische Perspecliven der Wiedergutmachiing. 'ITieoretische Ansatze und empirisehe
90 Antonio Beristain

Segundo Kaiser, as investigações vitimológicas contribuem


para a legitimação do sistema penal e para sua maturidade.13 Nas
últimas décadas, têm aportado, em alguns países, importantes avanços
para a ciência criminológica e para o controle do crime. Na opinião
de H. Arnold,14 também se pretendem e se podem atingir fins políti­
cos, no amplo e positivo sentido da palavra; isto é, para conseguir
melhorar a qualidade da vida em vários níveis sociais.
A atual hecatombe nos territórios da ex-Iugoslávia e em tantos
oulros lugares patentiza a urgência de prestar mais atenção aos di­
reitos humanos das vítimas coletivas.1' Por exemplo, em casos de
guerras, genocídio, tortura, crimes contra a humanidade, terrorismo,
discriminação racial e étnica, pirataria, seqüestro de diplomatas,
crianças maltratadas, etc. Esse campo tem sido pouco investigado,
mas o suficiente para que se possa afirmar que é um setor em evo­
lução, intimamente relacionado com o direito internacional, que
vem crescendo, paralelamente, com novos capítulos em todas as
!6
ciências.
Com toda razão, Herman e Julia Scliwendiger17 propugnam
que os delitos sem vítimas não se qualifiquem “como delitos dentro
dessa nova perspectiva” (p. 183); isto é, quanto mais se pretender

Befunde”, em A. Eser, G. Kaiser e K. Madlener, Neite liege der Wiederguímadnmg


im Strafrecht, Freiburg i., Br., 1992, p. 43-72.
1^
' G. Kaiser, “ Victim survey. Stocktaking, needs, and prospects: a German view”,
V ictim ohgr in comparative perspective, editado por Koichi Miyazawa, Mtnoru
Oliya, Tóquio, 1986, p. 133 ss.
14 t É
H. Amold, “ Krimínalilãt, Viktimisierung, (Un-) Sicherheitsgefühl und Wohnzufrie-
denheil. Effekte objektiver und subjektiver Krimiualitatsindikatoren in der Bewer-
tung vou Nachbarschaft und Gemei nde”, em G. Kaiser, H. Kury (comps.),
C riw inological Research in lhe Í990's, t. 66/2, Freiburg. 1993, p. 1 ss,
M. Joutsen, The role o f lhe victim o f crime in Etiropean crimina! justice systeins.
A crossnational stitdy o f the role o f the victim, Euni (Helsinki Institute for Cri­
me Prevention and Control). Helsinki. Government Printing Centre. 1987.
’ Ph. Coppens, “Médiation et philosophie du druit”. Archives de Politique Crinti-
nelle, nü 13, 1991, p. 13 ss.; C. Lazerges, “Essai de classificalion des procedures
de médiation”, Archives de Politique Criminelle, i r 14, 1992. p. 17 ss.; G. llu-
ber, “Heraklit íiber Krieg und Frieden”, em M. Siguan (ed.), Plnlosophia pacis.
Homenaje a Raimon Panikkar, Barcelona. Símbolo editorial, 1989, p. 37 ss.
17
Herman e Julia Schwendiger, “ Defensores dei orden o custodios de los dere-
chos humanos?”, em Taylor. Walton, Young (comps.), Criminologia crítica,
México, Siglo Veitiuno Editores, 1981, p. 149 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 91

manter a ordem legal estabelecida, mais se procurará proteger e


desenvolver os direitos humanos das pessoas e instituições mar­
ginalizadas. O progresso desses direitos, segundo veremos nas
seguintes reflexões teológicas, pede que a vitimologia leve em
consideração as fundamentais cosmovisões de todas as grandes
religiões, sabendo que estas podem também enriquecer com as
propostas dos vitimólogos.

Dificuldades c perigos da vitimologia

Está claro que a intensificação indiscriminada da assistência às


vítimas, assim como certas críticas sem piedade (ainda que em
grande parte fundadas) ao sistema penal atual, pode avocar um
esquecimento ou um enfraquecimento das bases metafísicas ele­
mentares do sentido de justiça em geral e da justiça penal em
particular.18
Ninguém duvida de que, mediante as estratégias do delin­
qüente - vítima, mediação, reconciliação - se conseguem, com
certa freqüência, maiores satisfações imediatas que por meio dos
sistemas do direito penal tradicional; mas essa constatação não
basta para justificar o desenvolvimento sem limites das práticas da
mediação e da compensação e, também, da reconciliação. Por esse
caminho, pode-se chegar ao funesto sistema punitivo germânico
medieval de deixar total e unicamente em mãos das vítimas e seus
familiares a sanção ilimitada contra os delinqüentes, sem participa­
ção alguma racional e moderadora da sociedade e da autoridade.
Certas investigações vitimo!ógicas em alguns países, sobretudo nos
EUA, têm servido, paradoxalmente, para reforçar as tendências
favoráveis a sancionar com mais dureza o delinqüente, como mos-

IS
II. J. Hirsch, “Acerca de la posición de la victima e» el derecho penal y eti el
dereclio procesal penal”, Ji/slicia Penai y Sociedad, Revista Guatemalteca de
Ciências Penafes, nu 2, Guatemala. 1992, p. 5 ss.; R. Panikkar, “ La faute origi-
nante...”, Archivio d i Filosojia, Roma, 1967. p. 65 ss.; E. A. Fattah, “ Beyond
metaphysics: the need for a new paradigm. On aclua! and potentia! contributions of'
crimmology and the social sciences to the reforni of the criminal law” (manuscrito).
92 Antonio Beristain

tra Kaiser.Iv Entre nós, na Espanha, estamos ainda em véspera des­


se excessivo abuso da vitimoiogia. Mas, de todas as maneiras, con­
vém ter presente que também a vitimoiogia deve reconhecer suas
fronteiras. Como recordam alguns especialistas, o diálogo e a me­
diação, concretamente, nem evitam nem cobrem toda a missão da
justiça penal tradicional.20
Algumas publicações de vitimoiogia podem, por excesso de
zelo, confundir a participação da vítima 110 iter do delito com sua
co-culpabilidade, se se limitarem a descrever os fatos, sem se dete­
rem em sua análise científica e metodológica.21 Especialmente,
trata-se da vítima “reincidente”. Para superar esse perigo, convém
analisar as linhas de sua personalidade e as modernas técnicas de
possível superação de sua vitimação freqüente e repetida.
Aqueles que trabalham em escritórios de assistência à vítima
devem evitar alguns perigos - por exemplo, o de esquecer os mui­
tos métodos e caminhos de soluções conciliadoras que a sociedade,
tradicionalmente, exercita para alguns delitos22 - ou, também, o de
transferir para a vítima suas características de personalidade viti­
mai, isto é, influenciar negativamente a vítima, fortalecendo alguns
* 2^
pontos negativos, psíquicos, psicossomáticos e sociais. ' Por sua
vez, pode-se dizer o mesmo da possível influência negativa sobre
as testemunhas da vitimação, especialmente durante o processo
penal, mas também antes dele.
E falsa a opinião, geralmente admitida, de que o fato de sofrer
um delito seja um acontecimento do qual se recorda a vítima du­
rante muito tempo. Por isso, nas investigações, convém limitar-se a
delitos sofridos nos últimos seis ou doze meses. Além do mais, as
vítimas correm o perigo de transladar a data de sua vitimação ao
período a que se refere a investigação, se elas conhecem esse período.

|9
Kaiser. Introducción o la crim inología (trad. A. Rodríguez Núnez). Madri,
Dykinson, I98S, p. 474.
2(1
P. Coppens, “Médiation et philosoptiie...”, 1991, p. 16 ss.
“ I Schneider, Kriminologie, Berlim. Nova York, 1987. p. 87 ss., p. 188 ss., p. 693 ss.
E. Vescovi, “ Le réglement des conflils hors des tribunaux”, em H. Kotz. R.
Ottenhof (comps.), Les conciliateurs. la conciliation. Un elude com par ative,
Paris, Econômica. 1983, p. 173 ss.; a respeito da Espanha, p. 178 s.
L. Rodriguez Manzanera, Victimología. Estúdio de la víctinta, México, Porríia,
1988, p. 349 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 93

Por desgraça, muitos cidadãos carecem de motivação para colabo­


rar em estudos sobre essas questões. Para superar essa limitação,
convém que quem leve a cabo a pesquisa conheça as técnicas para
incentivar o pesquisado a expor tudo o que lhe sucedeu e tudo o
que sabe.
Maiores dificuldades obstruem as investigações acerca da vi-
timação dos menores, especialmente quando se trata de delitos se-
24
xuais. Com atinadas considerações, Martinez Arrieta argumenta
que, durante o processo, nem sempre se exige ao menor estar pre­
sente diante do suposto delinqüente. Ainda que o exijam as normas
processuais vigentes, e alguma excepcional sentença do nosso T ri­
bunal Supremo (em geral, suas sentenças transbordam sensibilida­
de jurídica e vitiniológica, especialmente nos últimos anos, sob a
presidência do professor e magistrado Enrique Ruiz Vadillo),25 pa­
rece que à luz do artigo 40, 3.b, da Convenção das Nações Unidas
sobre os direitos do menor, de 1989, se se interpreta com critério
progressivo, quando nos casos extremos não se possa evitar o re­
correr aos procedimentos judiciais, muitas vezes deverá evitar-se o
cumprimento de alguns preceitos formais, em detrimento de novos
direitos humanos dos menores. Ninguém negará a possibilidade de
novos direitos nesse campo. Basta ler a Convenção de 1989, à qual
estamo-nos referindo.
Muitos vicíim services podem, às vezes, pretender chegar à
conciliação e à reconciliação sem antes solucionar o conflito, acre­
ditando que conseguem abortar um problema quando este, na reali­
dade, há tempo nasceu; correm o perigo de tapar uma ferida sem
limpá-la previamente. Essa falta de realismo debilita o ligamento
social e a estrutura jurídica; esquece a força imponente do mito da
pena, superior ao poder dos deuses.26 Em alguns casos, não se pode
prescindir da sanção exigida pelo princípio da culpabilidade; ne­
cessita-se de um “ bode expiatório1’, no sentido positivo da expres-

24
Martinez Arrieta. “ La victima en el proceso penal", A ctualidad Pena!. 11“ 5,
janeiro - fevereiro 1990, p. 50 s.
E. Ruiz Vadillo, “El futuro inmediato dei derecho penal. Los princípios básicos
sobre los que debe asentarse. Las penas privativas de liberlad. La jurisprudência
dei Tribunal Constitucional v dei Tribunal Supremo” , E guzkihre. Cita der no dei
Instituto l asco de Crim inologia. nü I extr.. 1988. p. 162.
2(,
R. Panikkar, “La faule ongm ante...”, p. 70.
94 Antonio Beristain

^7
são, tal como fala René Girard.“ Além disso, se se exagera na pu­
blicidade sobre os direitos da vítima, pode-se aumentar suas frus­
trações e cair-se em um angelismo que esqueça a necessidade da
28 *
justiça penal humana para a convivência.
\ 29
Kaiser reúne as investigações de A. Reiss e de outros, que
constatam os erros que cometem alguns vitimólogos. Em certos
casos, esquecem que o ponto de vista da vítima é grandemente di­
ferente do ponto de vista do juiz, por exemplo, nos delitos sexuais e
nos delitos de perigo, e em casos de tentativa ou delito frustrado.
Também são distintos os critérios em diversos países; mas, apesar
disso, convém levar a cabo investigações in cross cultural perspective.
Também se toma difícil a investigação vitimológica nos delitos
socioeconômicos de conhecida importância, pois muitas pessoas
implicadas não consideram delitos algumas ações sancionadas no
Código penal, mas localizáveis subjetivamente na moral fronteiriça.™
Algumas investigações levadas a cabo no Max-Plank-Institut, de
Freiburg, constatam essas dificuldades. Os informes das vítimas
não oferecem suficientes dados de interesse para completar e con­
cluir a investigação. A delinqüência econômica, investigada no ano
de 1980, implica um número relativamente pequeno de processos
(3.226) e de acusados (5.896), mas, com um grande número de ca­
sos particulares (single cases, 145.209), e de pessoas prejudicadas
(156.004) e um considerável prejuízo econômico total: 2.600 mi­
lhões de marcos alemães. Por razões diversas, nessa delinqüência
econômica, os questionários e os diálogos com as vítimas não têm
^J v
sido suficientes para recolher os dados totais.' As vezes, os méto­
dos de controle privado são mais eficazes.

R. Girard, El mistério de nuestro mundo. Claves para uno inlerpreíación antro­


pológica, Salamanca, Ed. Sígueme, 1982, p. 478 ss.
A. Beristain, “ Los límiles dei perdem”, Cuadernos de Política Crim inal, n" 49,
1993, p. 5 ss.; João Paulo II. Encíclica Dives in m isericórdia, Roma, 1980.
29
Kaiser, fic tim surveys - stocktaking, needs, and prospecfs: a German víeir,
Tóquio, 1986, p. 136. p. 140.
M. Bajo Femandez, Derecho penal econômico aplicado a la actividad empresarial,
Madri, 1978, p. 53 ss.; A. Beristain, “Delincuencia econômica: eficacia de las
sanciones penales”, em idem, Ciência penal y Criminologia, Madri, Tecnos, 1986,
p. 182 ss.
Kaiser, Viciim surveys..., 1986, p. 139.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 95

Apesar dos múltiplos estudos que estão sendo realizados, ain­


da restam muitos aspectos importantes desconhecidos que devem
ser objeto de futuras investigações, como indica Gottfredson, em
seu trabalho de 1989. Como ele demonstra, sabemos ainda pouco
acerca da percentagem de vítimas que sofrem perturbações emoti­
vas, muito pouco dos fatores que fazem a vitimação mais traumáti­
ca em umas pessoas que em outras, menos ainda sobre a evolução
desses diversos efeitos, ou sobre a capacidade de superação desses
prejuízos causados pelo delito. Existem fortes obstáculos para in­
vestigar cientificamente todos os efeitos da vitimação, como, por
exemplo, os efeitos perturbadores de qualquer intervenção do ci­
entista observador que se introduz na vida privada das vítimas; a
dificuldade e os custos de levar a cabo investigações longitudinais
dessas conseqüências da vitimação; a tendência de quem assiste às
vítimas, prestando-lhes serviços que não estão incluídos no con­
texto da investigação e que, portanto, “perturbam” os resultados
científicos; a difícil imparcialidade dos investigadores, que geral­
mente procuram atender mais às metas das instituições de poder
que aos interesses das vítimas, etc.
Diante da intensificação dos estudos e das ações para proteger
as vítimas dos delitos, eminentes especialistas detectam alguns ex-
cessos e perigos de orientações/posturas extremas. As vezes, pola­
rizam-se demasiado ou quase exclusivamente ao redor dos delitos
convencionais mais ou menos graves.32 E, ao contrário, não aten­
dem devidamente aos delitos econômicos, de colarinho branco,
ecológicos, de produção e venda de produtos perigosos.‘,;, Tam pou­
co atendem, na devida proporção, às vítimas da injustiça social, da
discriminação étnica, do abuso do poder público, econômico, reli­
gioso, etc.34

Fíiltali, “Prologue: 011 some visible and hidden tlangers of victim movements”.
em idem (comp.). From crime policy (o victim policy. Reorientiiig the ju stice
system , Londres, Macmillan, 1986, p. 5, p. 14.
B. Schuenemann, “Allernative control o f economic crime”, em A. Eser e J.
Tliormundsson (comps.), O ld irc/vs and m \v needs in crimina! legislatioif. Frei-
burg L Br., 1989, p. 187 ss.
34
R. Ottenliof, “ Crime and abuse of power”, informe apresentado ao 5th Joint
Collot|uium 011 Crime and Abuse of Power, Bellagio, 21-24 abril 1980; A. Be­
ristain, “ Elogio criminológico de la locura erasmiana imiversitaria”. Lección
96 Antonio Beristain

35
Graças aos estudos de J. Shapland,' na Inglaterra e em Gales,
conhecemos as diversas posturas das pessoas encarregadas do poli­
cial e do judiciário a respeito da vítima. Este especialista realizou
uma pesquisa, em nível nacional, baseada em questionários envia­
dos pelos correios aos chefes de polícia, ao pessoal que trabalha na
administração da Justiça e aos juizes, com o fim de conhecer os
principais problemas das vítimas ao longo do processo penal. De-
duz-se que a polícia avalia e estima, de maneira distinta do pessoal
do Judiciário, os problemas da vítima, e também difere no que se
refere aos desejos de como e em que sentido se deve melhorar o
sistema de controle social. A polícia declara-se interessada em
atender às necessidades de quem sofreu um delito, deseja sensibili­
zar a quem ingressa nela com esta finalidade e indica algumas re­
formas concretas que devem ser realizadas. Ao contrário, grande
parte do pessoal do Judiciário opina que as vítimas não necessitam
de um tratamento especial e demonstra não possuir suficientes es­
truturas adequadas para atendê-las. Além disso, desconhece algu­
mas das facilidades que o sistema judicial oferece às vítimas.

Vítimas/testem unhas

Enquanto o acordo “ interpartes” for possível, sem perda do


interesse social, p o rq ue não tentá-lo?

José Ricardo Palacio,


“A assistência às vítimas do delito em
Biscaia”, Eguzkiiore ne 6, 1992, p. 164.

Conceitos básicos

Neste momento, convém chamar a atenção, brevemente, sobre


o conceito de vítima (e de testemunha), que pode ser uma pessoa,
uma organização, a ordem jurídica e/ou a moral, ameaçadas, lesa-

inaugural dei curso acadêmico 1990-91, Universidatl dei País Vasco-Euskal


Herriko Umbertsitatea, Bilbao, 1990. p. 39 ss.
35
“ J. Sliapland, “ Victims and the criminal justice system”, em E. A. Fattah, Front
crime poUcy to victim policy, 1986, p. 210-217; J. Sliapland, “ Victim assistance
and the criminal justice system: the victim‘s perspective”, From crime policy...,
p. 218-233.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 97

el as ou destruídas/* Além disso, ainda que resulte difícil, evil a re­


mos a identificação da vítima como o sujeito passivo do delito.
Dentro do conceito das vítimas, há que se incluir não somente os
sujeitos passivos do delito, pois aquelas superam muito freqüente­
mente a estes. Por exemplo, nos delitos de terrorismo, os sujeitos
passivos de um delito são cinco, dez ou cinqüenta pessoas; em lu­
gar disso, as vítimas podem ser cem ou, ainda, mil pessoas. Em
alguns casos, podem ser mil os militares ou os jornalistas que, di­
ante do assassinato de um militar ou de um jornalista por grupo
terrorista, se sintam diretamente ameaçados, vitimados, se antes
sofreram também ameaças dos terroristas. Ou um grande número
de funcionários de instituições penitenciárias que, diante do fato de
que o grupo terrorista assassina um funcionário de prisão, se sin­
tam aterrorizados pelo medo de que o seguinte sujeito passivo do
delito seja ele ou um familiar seu.
Seria interessante, ainda que indiretamente, comentar algumas
sentenças sobre o delito de omissão de socorro à vítima de acidente
causado pelo omisso (artigo 489 do Código penal espanhol, mas su­
pera o espaço de que dispomos).37
Nas literaturas alemã e norte-americana, presta-se merecida
atenção, também, às testemunhas da vitimação, que tanto podem e
devem levar à devida atividade processual e à compensação, assis­
tência posterior, ressoeialização, etc.38 A. R. Roberts comenta que
muitas pessoas têm seu primeiro e desagradável contato com o apa­
rato judicial como conseqüência de ter sido testemunha de um de­
lito; que em muitos juízos não se consegue o fruto desejado pela
cooperação das testemunhas. Essas tristes realidades motivaram o
início de dez programas de assistência às testemunhas, outro pro-

' (' H. J. Sehneider, “Das Opfer im Verursachungs - und Kontrollprozess der K.H-
minalitãt” , em idem (comp.), Kriminaiitüt und ahweichendes Verhalten, t. 2,
Beltz, Weinheim und Basel, 1983, p. 81.
37
Poder Judiciai, nL> 7, setembro 1987, p. 276 ss. (sentença de 3 março de 1987).
Poder Judiciai, ne 11, setembro 1988, p. 214 ss. (sentença de 23 março de 1988).
A esse respeito, ver o artigo 135 do Código penal brasileiro. (N. do T.)
G. Norquay, R. VVeiler, Service o f victims and wifness o f crime in Canada.
C om m unication Division. Ministry o f the Solicitor General, Ottawa. 1981.
A. R. Roberts. “ Victim/witness pragrams. Questions and answers'’, em FBI.
Law Enforcement Bulleiin, dezembro de 1992, p. 12 ss., p. 16.
98 Antonio Beristain

grania de assistência às vítimas/testemunhas, em Palm Beacli County,


Flórida, etc. Entre 1981 e 1985, 28 estados norte-americanos criaram,
por lei, novos programas de assistência às vítimas e às testemunhas.
A. R. Roberts, depois de responder a sete perguntas acerca
dos serviços de assistência às vítimas e às testemunhas, conclui:
“A evolução dos programas de assistência às vítimas e às testemu­
nhas está sendo cada dia mais estimada e reconhecida legalmente
em uma crescente rede de escritórios de assistência”.

Predisposições das vítimas

Sobre a possível predisposição de algumas pessoas e de alguns


membros de certas profissões a sofrer os efeitos da vitimação, m e­
recem ser recordados os trabalhos de E. A. Fattah. Já no ano de
1979, encontra como fruto de sua investigação a existência de três
diferentes tipos de predisposições específicas na vítima: as biopsi-
cológicas, como a idade, o sexo, a raça, o estado físico, etc.; as so­
ciais, como as condições econômicas, seu trabalho e lazer; e as
psicológicas, como os desvios sexuais, a negligência e a imprudên­
cia, a extrema confiança em si mesmo, os traços do caráter de cada
pessoa, etc.
Posteriormente,40 o mesmo professor constata que diversos
estudos de tipo psicossocial e vitimológico evidenciam que muitos
delinqüentes, antes de cometer o delito, antes de passar ao ato, fa­
zem uma racionalização e uma maturação dos processos mentais e
do desenvolvimento real de uma vitimação, com a pretensão de
justificar seu crime, anular as possíveis inibições e apagar os nor­
mais sentimentos de culpa ou de remorso subseqüentes ao delito.
Já Dostoievski, em seu romance Crime e castigo, adiantou-se com
sua minuciosa análise psicológica de Raskolnikov, e coincide, no
fundo, com as pesquisas atuais. Certamente, muitos delinqüentes
conseguem com essa técnica - mais ou menos inconsciente - neu­

39
E. A. Fatlah, La victime est-elle coupable? La rôle de la viefime dans te meuríre
en vite de vol, Montreal, Les Press de PUniversité de Montréal, 1971.
40
E. A. Fattah, “Some recent theoretical developments in Victimology”, 1’ieti-
m o!og\\ 1979. 4. 198; idem, “ Victims of abuse of power: the David/Goliath
Syndrome”, em idem (comp.), The plight o f crime victims in m odem society,
Londres, Macmillan. 1989, p. 68 s.
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia 99

tralizar sua consciência e estigmatizar a vítima, convertendo-a em


vítima culpável ou culturalmente legitimada. Fattah sugere o que
depois amadureceram outros investigadores: a possibilidade de
que, em alguns tipos de delito - por exemplo, os de terrorismo a
vítima se ligue afetivamente à pessoa e à “causa75 de seu vitimador
(e, em certo sentido, bem-feito), de maneira tal que brote a síndro-
me de Estocolmo.41
Merece também ser lembrado o estudo de R. F. Sparks42 sobre
como pode a vítima contribuir para a sua própria vitimação de ma­
neiras diversas, segundo os diferentes tipos de sua personalidade e
suas circunstâncias. Pode dar-se a “precipitação” , isto é, que a ví­
tima com seu comportamento anima e excita o vitimador; assim,
com freqüência, em supostos delitos de estelionato e sexuais. O u­
tras vezes, a “vítima, por negligência ou por excessiva audácia”,
facilita o comportamento do vitimador, isto é, expõe-se voluntaria
e inconscientemente ao perigo. Outras vezes, não é por negligência
nem inconsciência, senão por vulnerabilidade, que pode consistir
em sua situação social ou em suas qualidades pessoais. Por fim, em
não poucos casos, as “vítimas atrativas”, por sua maneira de com-
portar-se, ou por seu estilo de trabalho ou de diversão, atraem o
vitimador.
Hilda Marchiori, segundo o Relatório da Sociedade Mundial
de Criminologia, de 25 de setembro de 1992, investigou atenta­
mente a influência que tem, na comissão dos delitos, a relação en­
tre o delinqüente e sua vítima. Esta relação pode ser dividida em
três grupos. Primeiro: dentro da família, são muitos os delitos co­
metidos contra menores; estes, facilmente, se convertem em delin­
qüentes quando chegarem a certa idade: também é freqüente o
homicídio pela “identificação emocional” ou ciúmes; o álcool con­
tribui para um maior número deste tipo de delitos. No segundo,
entram os casos em que as vítimas são conhecidas do vitimador,
mas não são familiares; a aproximação profissional, a domiciliaria,

41
F. Alonso-Femandez, Psicologia dei terrorismo, Barcelona, Salvat. 1986, p. 314 ss.,
p. 364.
42
R. F. Sparks. Research on victims o f crime: accomplishmenis. issues. and new
directions. U.S. Department of Health and Human Services. Rockville (Md.).
1982.
100 Antonio Beristain

etc. permitem a ocorrência de situações e costumes das vítimas


para facilmente cometer os delitos de roubo, sexuais, inclusive
homicídio, por vingança, etc. O terceiro grupo vem composto por
aqueles que não se conhecem pessoalmente; mas o autor do delito,
com freqüência, tem notícias prévias de algumas circunstâncias do
lugar, da profissão ou dos costumes da vítima - por exemplo, quem
comete algum delito de roubo, abuso sexual ou lesões a uma pros­
tituta.43
José Luis da la Cuesta Arzamendi dirigiu um estudo, no Insti­
tuto Vasco de Criminologia, sobre as vítimas de roubos e agressões
violentas na cidade de Vitória-Gasteiz, para comparar os resultados
com a pesquisa de Johan Goethals e Tony Peters, do Departamento
de Criminologia da Universidade Católica de Lovaina. Constata-se
que, na capital de Alava, em 53 casos (70,7%), as vítimas não co­
nheciam o agressor e supõem que eram viciados em drogas (19
casos; 25,3%), pessoas com problemas psicológicos (11 casos;
14,7%), jovens (5 casos; 6,7%), pessoas que já estiveram em pri­
sões (2 casos; 2,7%)...
Em 22 casos (29,3%), a vítima conhecia o agressor, por ter
uma relação pessoal ou profissional, ser vizinho...; em trinta casos
(40%), havia pessoas que viram o sucedido e cuja reação foi valo­
rizada pela vítima, de maneira positiva, em 76,7% dos casos e ne­
gativamente só em 16,7%.44
Paralelamente, ou melhor dito, algo depois das pesquisas a
respeito das coordenadas clínico-individualistas da vítima, intensi­
ficaram-se os estudos a respeito da situação e do contexto sociai
que, sem dúvida, influem mais ou menos no perigo da vitimação. J.
Garofalo, M. Hindelang e M. Gottfredson4 trabalharam sobre o
modelo de vitimação baseado no estilo de vida e na exposição ao
perigo e a colocação em perigo {Life style/exposure model o f victi-
mization). Esses autores entendem por estilo de vida a costumeira

43 Elias Neuman, Personal idad dei delincuente, México, Porrúa, 1978, p. 67.
44
J. L. de la Cuesta, Informe sobre víctimas de robos y agresiones violentas en la
ciudad de Vitoria-Gasteiz, Annales Infernationales de Criminologie, vol. 31. n - 1-2,
1993. n. 107 ss.
45
M. Hindelang e M. Gollfredson, Victims o f personal crime: an em pírica/ fo ttn -
da t ion fo r a theory o fp erso n a l viciimization, Cambridge (Mass.). Ballinger.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 101

atividade cotidiana que desenvolve a pessoa 110 campo de trabalho,


de lazer e de tempo livre. Pela “colocação cm perigo” , o grau de
perigo da pessoa concreta, levando em conta o lugar e o momento
que influenciam no fato de serem vítimas do delito; por “associa­
ção”, a freqüência com que a pessoa estudada se relaciona ou se
associa com outros indivíduos, mais ou menos inclinados a come­
ter delitos. Analisam em que percentual cada uma dessas variáveis
influi 11a sua vitimação.
J. G aro falo chama a atenção sobre 0 paralelismo que existe
entre “o modelo baseado no estilo de vida” e o “ modelo baseado 11a
atividade rotineira ou cotidiana”, que haviam estudado L. E. Cohen
e M. Felson, 110 ano de 1979.46 Finalmente, destaca a importância
da conduta e do comportamento do grupo social mais que os dados
e as características pessoais.
47
Seguindo essa linha de trabalho, S. Smith investiga, na cida­
de de Birmingham, a influência das atividades realizadas 110 tempo
livre. Observa que quem desenvolve sua atividade mais de três
dias por semana é vítima em 40% dos casos, enquanto quem a
desenvolve em atividades de tempo livre unicamente dois ou um
dia por semana só é vítima em 30% ou 10%. Naturalmente, influem
muito o dia, o momento (a tarde ou os fins-de-semana) e as situa­
ções: contatos diretos pessoais. Em resumo, a probabilidade de
vitimação diminui para quem se envolve menos nas atividades
de tempo livre.
Eminentes especialistas chegam à conclusão de que, em muitos
casos, convém considerar o crime como uma forma de interação
social que brota de específicos contextos sociais; neles, a distinção
entre delinqüente e vítima nem sempre aparece como conceitual-
mente útil.
Fattah, em sua conferência pronunciada em 4 de novembro de
1992, na Si 111011 Fraser University, no Halperna Centre, sobre a vi-

4 ri
J. Garofalo, “Social change and crime rate trends: a routine aetivity approach” .
Am erican Socioloqical Review, 1986, 44, 588.
47 .
S. Smith, “ Victimization in lhe inner city". British Journal o f Criminolngy,
1982. 22. 386: idem, Crime, space and societv, Cambridge, Cambridge Univer-
sity Press. 1986.
102 Antonio Beristain

48
limação como antecedente do delito, estuda atentamente a não-
dualidade “delinqüente e vítima”, a relação entre suas duas condu­
tas, e comenta o laço que une a vítima ao delinqüente, pois são dois
lados da mesma moeda. Por isso, torna-se impossível conhecer o
delinqüente sem conhecer a vítima. A personalidade daquele e desta
coincidem muitas vezes.
Contra o que se costuma crer, as pessoas vítimas e as pessoas
delinqüentes não são coletivos distintos e que se excluam. Em
certo grau, são homogêneas e se encobrem mutuamente. A pessoa
vítima de ontem com freqüência é a delinqüente de amanhã, e a
delinqüente de hoje é a vítima de amanhã. Os papéis de vitimador e
de vitimado não são fixos, nem estáticos, nem permanentes, mas
sim dinâmicos, mutáveis, intercambiáveis. O mesmo indivíduo
pode, sucessivamente ou simultaneamente, passar de um papel a
outro.
Dentro dessa problemática, Smith diversifica três classes de
delitos:

a. Aqueles em que a ausência de elo entre delinqüente e vítima é


patente, porque não existe entre eles comunicação alguma. Por
exemplo, quando a vítima cai ferida por um desconhecido que
dispara em direção a todos os que passam em um lugar público
muito concorrido.
b. Aqueles em que existe uma certa, mas frágil, relação entre de­
linqüente e vítima. Por exemplo, o jovem ao qual o mesmo gru­
po de vizinhos lhe roubou, repetidas vezes, a bicicleta.
c. Aqueles em que existe uma intensa conexão entre delinqüente e
vítima. Por exemplo, quando o delito é levado a cabo entre fa­
miliares e/ou amigos.
Essas conclusões confirmam a intuição inicial de Luis Jinienez
de Asua e Hans von Hentig, â qual nos referimos antes.

4K
E. A. Fattah, “ Victimization as antecedent to offendmg. The revolving and in-
terchangeable roles of victim and victimizer”, Simon Fraser Universily. Hal-
pern Centre. 4 de novembro de 1992 (ma n use ri (o); W. liasse me r. F. Mu noz
Conde. Introducción a Ia criminologia y al derecho pen a l. Valência, Tirant !o
blanch, 1989, p. 30.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 103

Graus de vitimação

Vitimação prim ária

Sobre os graus de vitimação, estão sendo realizadas várias


pesquisas, porque nesle problema não basta o sentido comum, nem
os critérios tradicionais. Esses estudos matizam os diferentes fato­
res etiológicos e as diversas conseqüências e soluções a respeito do
primeiro, do segundo e do terceiro danos. Por primeiro dano enten­
de-se o que deriva diretamente do crime. Ao contrário, o dano se­
cundário emana das respostas formais e informais que recebe a
vítima; e o terceiro dano procede, principalmente, da conduta poste­
rior da mesma vítima. Outra terminologia, mais freqüente, fala de
vitimação primária, secundária e terciária.
Agora recordemos 11111 par de pesquisas sobre a primária. E.
Amanat,JV como resultado de um exame clínico em 54 pacientes,
vítimas de agressões sexuais, distingue entre uma resposta inicial
de “ alarme” e uma subseqüente reorganização. A reação inicial
provoca intensos efeitos múltiplos negativos, como desespero dos
pacientes (86%); lembrança de outros pretéritos sucessos traumáti­
cos (76%); hiperemotividade intensa, como ansiedade, medo, sen­
sação de abandono, de humilhação, depressão, raiva, sensação de
culpa (86%); sintomas físicos, como espasmos musculares e náuseas
(43%); perturbações 110 sono (68%); bloqueio do pensamento (72%);
dificuldade de concentrar-se (72%); idéias hipocondríacas (78%);
problemas sexuais (78%).
A pesquisadora do Ministério do Interior do Reino Unido Pat
Mayhew, em seu trabalho “Les effets de la délinquance: les victí-
mes, le public et la peur”,50 opina que a delinqüência comum em
suas formas mais freqüentes não produz conseqüências muito gra­
ves. Mas o número de pessoas afetadas é alto em termos absolutos,
e merecem grande consideração os traumatismos afetivos, etc.

4*>
E. Amanal, “ Rape trauma syndrome: developmentat variations", em 1. R. Stu-
art, J. G. Greer (comps.). Victims o f sexual agression: treatment o f chiidren.
wonien and men. Nova York, Van Nostrand Reinhold, 1984.
P. Mayhew, “ Les effets de la délinquance: les victimes, le public et la peur",
Recherches sur la victimisalion. Consejo de Europa, Comi té Europeo de pro­
blemas penales, Estrasburgo. Í9S5. p. 69 ss.
104 Antonio Beristain

(p. 76 s). Comenta alguns dados do British Crime Survey, de 1982,


1983 e 1984, a respeito dos efeitos imediatos em três mil vítimas e
suas famílias; ressalta que 40% declararam que não sofreram efeitos
notáveis; ao contrário, 12% das vítimas afirmam que têm sofrido
muitíssimo, também 24% de quem sofreu um roubo, e de modo
semelhante 20% das pessoas as quais lhes haviam furtado seu veí­
culo e 30% dos sujeitos passivos de lesões ou roubo com armas.
Segundo Miguel An gel Soria Verde e Aiigel Rincon Gascon,51
no estudo realizado nas delegacias de La Bonanova e Saut Gervasi,
em Barcelona, durante os meses de janeiro e fevereiro de 1992,
com um questionário aplicado a cem vítimas no horário da manhã,
tarde e noite, repartidos ao acaso, e realizado por estudantes de
quinto ano de psicologia; - deles, 53 do sexo masculino, contra 47
do sexo feminino deduz-se que em sua primeira reação, ao sofrer
o descobrimento do delito, predominam o aborrecimento e o cho­
que diante do sucesso, transformando-se, posteriormente, em um
sentimento de aborrecimento/ansiedade, ao tempo que, progressi­
vamente, a pessoa se acalma.
No estudo dirigido por José Luis de la Cuesta Arzamendi, ao
que nos referimos anteriormente, observa-se que os sentimentos das
vítimas no momento exato da agressão foram, sobretudo, de impotên­
cia, raiva, aborrecimento (30 casos; 40%), medo, susto, nervosismo,
angústia (30 casos; 40%). Depois da agressão, em 29 casos (38,6%)
continuaram nervosas, com medo, susto, angústia, indefesos, inse­
gurança, intranqüilidade e se manteve o sentimento de impotência,
raiva, enfado, em 16 casos (21,3%), dez vítimas (13,3%) indicaram
que se sentiam mal, muito mal.52
Lamentamos as lacunas de investigação vitiniológica no pro­
blema do terrorismo53 e dos imigrantes. Estes, cada dia mais ire-

51 Miguel An gel Soria Verde e An gel Rincon Gascon, “ Análisis descriptivo de las
víctimas denunciantes en comisaría”. Ciência Policial, n- 18, julho-selembro de
1992, p. 75 ss.
' “ J. L. de la Cuesta, Informe sobre víctimas de robos y agresiones violentas en la
ciudad de Vitoria-Gasteiz. Atm ales Internationales de C rim inologie, vol. 31,
nc* 1-2,1993. p. 107 ss.
A. Serrano dedica inteligentes páginas ao tema das vítimas do terrorismo, em El
cosfo dei delito y sus víctimas en Espana. Madri, Universidad Nacional de Edu-
cación a distancia. 1986, p. 92 s.. e em “ El terrorismo en el derecho espanol*’,
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 105

qüentes na Espanha e na Europa, com gravíssimos problemas. Como


indica Separovic, a principal característica do imigrante não é a de
delinqüente, mas sim a de vítima.54 Atualmente, a crescente onda
de imigrantes na Espanha e na Europa aumenta seus problemas
vitimológicos e merece que se lhe preste mais atenção.

Vitimação secundária e terciária

Por vitimação secundária entende-se os sofrimentos que às


vítimas, às testemunhas e majoritariamente aos sujeitos passivos de
um delito lhes impõem as instituições mais ou menos diretamente
encarregadas de fazer “justiça” : policiais, juizes, peritos, criminólo­
gos, funcionários de instituições penitenciárias, etc.
Segundo Bernhard Villmow,55 a história do sistema penal de­
monstra que a vítima nos últimos séculos se encontra desamparada,
e também vitimada durante o processo penal; ela praticamente não
é levada em conta; somente atuam o poder estatal, por uma parte, e
o delinqüente, por outra. Ambos abandonam e desconhecem a
vítima. “ Muitas declarações oficiais e muitos estudos científicos
lamentam que as vítimas se encontrem marginalizadas, reduzidas à
impotência e que padeçam de importantes problemas afetivos”.
Durante o processo, a vítima é, no mais, um convidado de pe­
dra. Outras vezes, nem convidado. Tão injusta postergação do su­
jeito passivo do delito produz nele uma segunda vitimação, que
aparece patente em todos os países de nossa cultura. Mais margi-
nalização sofrem as vítimas que não são imediatamente sujeito
passivo do crime. Por exemplo, em dezembro de 1992, uma autori­
dade judicial do País Vasco afirmou que o escultor Agustín Ibar-
rola não tinha nada a dizer no processo em que se julgava quem
havia destruído uma obra artística dele, em Vitoria, porque a obra

em de la Cuesta, Dendaluze, Echeburua (comps.). Crim inología y derecho p e ­


nal aí servicio de la persona, Libro-homenaje al Prof. Antonio Beristain, San
Sebastián, Instituto Vasco de Criminología, 1989. p. 919.
54
Zvonimir Paul Separovic, l'ictimo!og};. Studies o f victims. Zagreb, 1985. p. 161 ss.
5:> Bernhard Vi 11mo w. “ Les implications de la recherche sur la victimisation en ce
qui concerne la politique criminalle et sociale". em Consejo de Europa. Comitê
Europeo de problemas penales. Recherches sur la victim isation. Estrasburgo.
1985, p. 113 ss.. p. 116.
106 Antonio Beristain

era propriedade da municipalidade, não de A. Ibarrola. “ O autor da


obra artística não é parte no processo penal”, disse.
Graças a numerosas investigações, vamo-nos conscientizando
de que quem padece de um delito, ao entrar no aparato judicial, em
vez de encontrar a resposta adequada às suas necessidades e d i­
reitos, recebe uma série de posteriores e indevidos sofrimentos,
incompreensões, etc., nas diversas etapas em que transcorre o pro­
cesso penal: desde a policial até a penitenciária, passando pela ju ­
dicial, sem esquecer a pericial.
Durante o curso sobre assistência às vítimas do delito, cele­
brado em San Sebastián de 8 a 10 de abril de 1992,56 um dos
conferencistas, Inaki Garcia Arrizabalaga, expôs, com detalhes
concretos, as múltiplas dificuldades que encontram as vítimas do
terrorismo em Guipúzcoa, concretamente, para receber informa­
ções do que devem fazer para solicitar ajuda e assistência. Nos
centros oficiais encarregados desse serviço, são recebidos com
estranheza e distanciamento; somente lhes são oferecidos um for­
mulário impresso, ou pouco mais; e, por certo, o pessoal parece
carecer dos conhecimentos necessários, assim como de interesse e
da sensibilidade desejável.
Ao longo do processo penal (já desde o começo da atividade
policial), os agentes do controle social, com freqüência, se despreo­
cupam com (ou ignoram) a vítima; e, como se fosse pouco, muitas
vezes a vitimam ainda mais. Especialmente em alguns delitos,
como os sexuais. Não é raro que nessas infrações o sujeito passivo
sofra repetidos vexames, pois à agressão do delinqüente se vincula
a postergação e/ou estigmatização por parte da polícia, dos médi­
cos forenses e do sistema judiciário.57 Durante todo o processo, que
termina no sistema penitenciário (dirigido majoritariamente por
homens), observa-se, freqüentemente, que os agentes masculinos
têm mais medo de condenar e/ou tratar injustamente os homens
que as mulheres; nesse aspecto, move-lhes menos que o devido o
princípio de justiça e eqüidade. Não observam a Declaração das
Nações Unidas sobre a eliminação da discriminação contra a mu-

56 Eguzkilore, Cuadernos dei Instituto la sco de Criminologia. nL>6, 1992, p. 123 ss.
E. Neuman, Los víctimas deI sistema pen a l. Opúsculos de Derecho penal y
Criminologia. Córdoba (Argentina), Marcos Lerner, p. 37 ss.
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitim ologia 107

!her, de 7 de novembro de 1967, nem a Convenção, também das


Nações Unidas, sobre a eliminação de todas as formas de discrimi­
nação contra a mulher, de 18 de dezembro de 1979.
Especial consideração merecem as investigações longitudinais
de J. Shapland e D. Cohen,5* que junto com outros colaboradores,
depois de estudar 278 delitos violentos, lesões e agressões sexuais,
chegam à conclusão de que suas vítimas, nos primeiros contatos
com a polícia, se encontram satisfeitas com o comportamento poli­
cial, mas esta sensação vai piorando ao longo do tempo (os casos
foram conseguidos durante três anos). No começo, a polícia acode
de imediato, dá mostras de apreciar a gravidade do delito. Mas,
depois, geralmente a vítima vai encontrando menos compreensão e,
sobretudo, se queixa da falta de informação. Raríssimas vezes lhe é
comunicado se o delinqüente foi preso, julgado, condenado, etc.; se
reparou os danos, se devolveu o que roubou, etc. Também muitas
vítimas manifestam que a polícia não está à altura devida para
prestar-lhes a ajuda necessária ou esperada. Algumas vítimas de­
claram que jamais voltarão a recorrer à polícia. Outras investiga­
ções, em vários países, coincidem com essa avaliação negativa de
Shapland e Cohen a respeito da atuação da polícia. Talvez essa fa­
lha se deva, em grande parte, à escassa formação científica e hu­
mana que receberam nas academias policiais. Não se esqueça de
que ainda hoje existem muitas denúncias por casos de tortura
policial em inúmeros países, segundo detalham, por exemplo, os
relatórios anuais da Anistia Internacional, que os meios de comuni­
cação poderiam divulgar e dar a conhecer com mais amplitude.
A atitude da vítima, quanto ao seu desejo de que ao delin­
qüente se lhe imponha a justa sanção punitiva, vai mudando com o
transcorrer do tempo de maneira distinta que a exigência de receber
ela sua devida compensação. Esta permanece proeminente ao lon­
go de todo o processo, como indicam Günther Kaiser e seus cola­
boradores no Max-Plank Institut für auslãndisches und
internationales Strafrecht.'

58
J. Shapland e D. Cohen. “ Facilities for victims: the role o f the police and the
courts”, The Criminal Law Review, 1987, 34. 28.
G. Kaiser, “Criminology in a society o f risks. Looking backward and ahead”,
em G. Kaiser e H. Kury (comps.), Criminológica! Research in the J990's, t. 66/2,
Freiburg i. Br., 1993, p. 20 s.
108 Antonio Beristain

O pessoa! judicial, às vezes, se esquece de que as vítimas ne­


cessitam de um tratamento especial e não cumpre as medidas ade­
quadas para a sua atenção. Com freqüência, desconhece algumas
das facilidades que o sistema judicial oferece às vítimas,60 ou essas
facilidades não chegam ao grau desejado.
Apesar das pesquisas realizadas em diversos países, parece
que ainda restam importantes pontos obscuros para aclarar. Con­
vém estudar mais detalhadamente os motivos pelos quais tanto po­
liciais como pessoa] judicial contribuem, com freqüência, para uma
ampla vitimação secundária daquelas pessoas a quem eles deveriam
prestar unicamente justiça e assistência eficaz. Como indica Marti-
nes Arrieta,61 também na Espanha, no âmbito judicial, temos de
lamentar a vitimação secundária.
No estudo anteriomente citado de Soria Verde e Rincon Gas-
con (Rev. Ciência Policial n2 18, julho-setembro, 1992), constata-
se o diferente grau de satisfação e de desagrado das vítimas em su­
as relações com a polícia. Em mais da metade dos casos, conside-
ram-nas como positivas, 18% eiogiam-nas como muito positivas, e
o mesmo percentual como mais negativo que positivo. Os dados
seguintes detalham o grau de satisfação das vítimas em seu trato
com a polícia: extremamente positivo, 7%; muito positivo, 18%;
positivo, 55%; mais negativo que positivo, 18%; negativo, 2%.
Merecem ser estudados, principalmente, a vitimação secundária
nas instituições penitenciárias e, concretamente, o caso de assédio
sexual às mulheres internas e também às funcionárias.62 As vítimas
queixam-se, especialmente, de atos como os seguintes: contatos
físicos não desejados, comentários desagradáveis com alusões se­
xuais, agressões psicológicas - como comentários de mau gosto ou
humilhantes - , olhares mal-intencionados, imagens e ilustrações
pornográficas, fotos degradantes, etc.

60
Michael Kaiser. “ Implementation and evaluation o f legai provistons. Objectíves
and enforcement of lhe Victim’s Protection Act” , em G. Kaiser e H. Kury
(comps.), Crim ino/ogica/ rcsearch in the 1)90 's, t. 66/2. Freiburg i. Br., 1993,
p. 45 s.; G. Landrove Diaz, “La víctima y el ju e z”. Victimología, San Sebastián,
199Ü, p. 188 ss.
Cf. Martinez Arrieta, A ctualidadpenal, 22-28-29 de janeiro e 4 de fevereiro de
1990, p. 121-132.
Lisa Hitch, “Creating a harassment-free workplace”, The correctional se/ vice o f
Canada, Report on the Conference for Wonien in CSC, Montreal, 1992, p. 23 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 109

A respeito da vitimação terciária, limitamo-nos a recordar que,


às vezes, emerge como resultado das vivências e dos processos de
atribuição e rotulação, como conseqüência ou “valor acrescentado”
das vitimações primária e secundária precedentes. Quando alguém,
por exemplo, consciente de sua vitimação primária ou secundária,
avoca um resultado, em certo sentido, paradoxalmente bem-sucedido
(fama nos meios de comunicação, aplauso de grupos extremistas,
etc.), deduz que lhe convém aceitar essa nova imagem de si mes-
mo(a), e decide, por meio desse papel, vingar-se das injustiças
sofridas e de seus vitimadores (legais, às vezes). Para vingar-se, se
autodefine e atua como delinqüente, como viciado em drogas,
como prostituta.63 Talvez a biografia de alguns mártires e santos
possa ilustrar, com novas luzes e novas valorizações, a relação e o
paralelismo que necessitam de profunda revisão entre vítimas, he­
róis e canonizados/’4 Convém estudar mais a possível relação entre
certos martírios e a vitimação terciária. Entre a pessoa heróica ou
canonizada e a vítima terciária, podem ocorrer não poucos pontos
comuns. Tão difícil é sair do círculo virtuoso como do vicioso.

Sociedade/jmlicatura

Haverá que dar aos jovens, drogados e não-drogados, elementos que


lhes permitam fazer fluir sua criatividade. Que seus sentimentos e suas
mãos possam concretizar para eles e para os demais, para a sociedade
toda, um mundo mais imaginativo e em paz. Dar-lhe um conteúdo para
essa dessacralização do homem que temos criado, e ter o tino, a har­
monia interior, de oferecer a esses jovens coisas concretas para viver
e ideais pelos quais sonhar.

Elias Neuman.
C rim inologiay dignidad humana (Diálogos), 2a edição. 1991, p. 200.

63 F. Dunkel, “Fundamentos victimológicos generales de la relación entre victima


y autor en derecho penaP’, em A. Beristain, J. L. de la Cuesta (comps.), Victimolo­
gia, VIII Cursos de Verano, UPV/EHU. San Sebastián, 1990. p. 170; G. Landrove.
“La victimización dei delincuenle”, Victimologia, San Sebastián, 1990, p. 153 ss.
64
A. Beristain, “ La victimologia ante las persecuciones a Ignacio de Loyola y los
jesuitas", em J. Caro Baroja, A. Beristain (comps.). Ignacio de Loyola, M agis-
ter A r ti um, p. 95 ss.
110 Antonio Beristain

Controles informais e arf. 117 da Constituição Espanhola

Por “sociedade/judicatura” entendemos aqui todas as pessoas


individualmente consideradas e também enquanto associadas em
instituições privadas, não-governamentais, e públicas, especialmente
o Poder Judiciário e as relacionadas com ele: a judicatura.
Atualmente, a mulher e o homem da rua - queiram ou não
queiram - necessitam recobrar seu protagonismo no controle social,
também 110 campo da justiça penal, que têm abandonado, excessi­
vamente, em mãos do Poder Judiciário, com funestos resultados,
não somente o de sua lamentável lentidão. Com muita freqüência,
grande número de sentenças chega tarde, quando o trem já saiu da
estação, quando os interessados já faleceram. Os controles sociais
formais hoje em uso - polícia, juizes, cárceres - não funcionam
como devem. Quando os acudimos, às vezes, é pior o remédio que
a doença. Por isso, Marc Ancel propugnou a desjuridização do di­
reito penal.65 Por isso, muitos abolicionistas (não só L. Hulsmann)
pedem 0 desaparecimento total (melhor dito, quase total) do direito
penal. Já ninguém, ou quase ninguém, nega que os cidadãos hão de
participar mais ativamente nos assuntos judiciais e nos assuntos
penais; o jurado parece, cada dia, mais necessário, ainda que não 0
exigisse 0 artigo 125 da Constituição Espanhola. Todos recorda­
mos que a justiça emana do povo, como reconhece a mesma Cons­
tituição, em seu artigo 177.66
Ontem, nas sociedades pré-modernas, o controle informal dos
vizinhos, dos grêmios, dos familiares, etc. filtrava grande parte dos
comportamentos socialmente chainativos e criminais; hoje, nas
macrourbes do terceiro milênio, os vizinhos da mesma casa (do
mesmo arranha-céu) nem se conhecem, as famílias vivem mas não
convivem, superaram a tradicional coerência e a força educativa
controladora.

65 A. Beristain, La pena-retribución y Ias acluates concepcioues crim inológicas,


Buenos Aires, Depalma, 1982, p. 69 ss.
66 A. Beristain, “ La justicia emana dei pueblo? Consideraciones criminológico-
victimológicas acerca dei jurado”, El jurado si: pe.ro cómo y ctiándo?, Studin
Juridica 2, Consejo General dei Poder Judicial, Barcelona, Center d E stu d is Jurf-
dics i Formació Especial itzada de la Generalitat de Catalunya, 1992, p. 225-240.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia H1

A todos, mas especialmente aos operadores da justiça penal,


nos compete abrir urna porta muito larga para que a cidadania tome
parte ativa - não somente subsidiária - no controle social e, especi­
almente, na assistência às vítimas do delito.

Programas de acolhimento, assistência e indenização

Entre as metas para as quais tende a vitimoiogia, destacam-se


a prevenção (que não tratamos aqui) e a resolução final dos con­
flitos sociais e delitos, evitando, todo o possível, a sanção penal e
também o processo penal.
Já desde finais dos anos 1970 se tem analisado como os escri­
tórios de assistência às vítimas encontram muito boa acolhida por­
que a todos satisfaz saber que se atende a quem sofre; e também
porque se espera que, atendendo às vítimas, diminuirá notavel­
mente a criminalidade e aumentará o respeito aos direitos huma­
nos. Além disso, por outro lado, a vítima que não recebe o
tratamento devido da sociedade pode cair na delinqüência/'7
J. J. M. Van Dijkfil< mostra outros fatores que contribuem para
a intensificação de pesquisas e de ações assistenciais, por exemplo: a
convicção de que, atualmente, o sistema penal não consegue os fins
que pretende; que, para conseguir, necessita de uma injeção nova,
como pode ser a vitimoiogia praticamente restaurativa e criativa.
Aqui e agora, para alguns, teria aplicação analógica a tese XI de
Marx para Feuerbach: deixemos já de continuar conhecendo os
sujeitos passivos do delito e começemos a fazer algo e a transformar
nossas pesquisas em ações. Para outros, “tem, entretanto, um gran­
de caminho desde a teoria à prática”, como escreve Claus Roxin M
Também contribui, para o desejo de atender mais e melhor às
vítimas, o aumento de certos tipos de delitos que afetam muitas

67
Susíhi Hillebrand, “ Legal aid to crime victims” , em Fattah (comp.), The plighi
o f crime victims in m o d em society, HoundmiHs. Macmillan, 1989, p. 310 ss.
“Research and the victim movement in Eu rape”, em Consejo de Europa, Co­
mitê Europeo de problemas penales, Research ou victimization, Estrasburgo,
1985, p. 3 ss.
6‘J
C. Roxin, “ La reparactón no sistema jurídico-penal de sanciones”, Ctiadernos
dei Consejo G eneral dei Poder Jud icia l Jornadas sobre la "Reform a d ei D ere­
cho Penal en A lem ania", Madri, 1991, p. 23
112 Antonio Beristain

pessoas (como os furtos e roubos domésticos), que exigem repara­


ção, e a constatação de que a justiça penal abandona e marginaliza
as vítimas, sobretudo algumas mais indefesas (crianças, anciãos,
mulheres, estrangeiros). Também as denúncias e as propostas de
programas concretos que formulam as novas instituições de defesa
dos direitos da mulher. E, notavelmente, o ressurgir da ciência vi-
timológica a partir de seus simpósios nacionais e internacionais.
Encontram especial eco as freqüentes pesquisas por meio de
questionários sobre vitimação (inctimization surveys) que têm re­
colhido dados sumamente críticos contra a eficácia do direito pe­
nal, e os paralelos questionários de opinião sobre a criminalidade
(pnblic opimon surveys), sobre o medo dos cidadãos perante a cri­
minalidade atual ou futura e a eficácia de alguns programas as-
sistencíais de prevenção contra o medo. Muitos governos, como o
francês, o australiano, o estadunidense e outros, têm criado comissões
governamentais que têm realizado estudos e análise do medo di­
ante da criminalidade e do resultado da assistência às vítimas.
Concretamente, a respeito da assistência às vítimas, e das in­
vestigações correspondentes, merecem algum comentário os três
programas seguintes:

A. Programas de acolhimento urgente ou imediato;


B. Programas de assistência dentro do sistema de direito penal, e
C. Programas de indenização econômica.

A. Quanto aos centros de assistência imediata (shelters, crisis center),


muitas investigações - por exemplo, a de B. Villmow70 - mos­
tram a necessidade desses centros, pois a polícia, que costuma
ser a que primeiro entra em relação com a vítima, geralmente
não está suficientemente formada para cumprir sua missão as­
sistencial. A tarefa consiste, basicamente, em escutar a vítima,
ajudar-lhe a formular a denúncia, buscar-lhe alojamento, assis­
tência médica e, sobretudo, assistência psicológica. Alguns paí­
ses conseguem, suficientemente, essa assistência primeira, mas

70 .
B. Villmow, “Les implications de Ia recherche sur la victimisation en ce qui concer­
ne la polilique crimineUe et sociale”, em Consejo de Europa, Comitê Europeo
de problemas penales, Recherche sur la vicdnnsaikm, Estrasburgo. 1986, p. 73 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 113

outros se encontram ainda dando os passos iniciais. Em algu­


mas comunidades autônomas espanholas, vai-se conseguindo
não pouco, como veremos depois.

Em geral, escassas são as vítimas que encontram atenção ime­


diata com a urgência desejada. Em nenhum país, exceto talvez o
Reino Unido, chegam a vinte por cento. Villmow insiste em que
para evitar desperdício pessoais e econômicos, etc., antes de proce­
der à abertura desses centros, urge pesquisar as necessidades por
meio de estudos locais que descubram quais as mais urgentes e
graves (ocultas, em geral), que constatem os tipos de delitos mais
freqüentes, as características das vítimas e as coordenadas do sis­
tema penal (suas lacunas principais) e do serviço da polícia, etc.

B. O segundo grupo de centros de assistência dentro do sistema do


direito penal, o que em inglês se denom ina Victiin/wiítwss
assistance program s v/waps, abunda mais nos EUA e Canadá;
também existe na Inglaterra e um pouco menos na Alemanha e
em outros países europeus. Procuram prestar assistência contí­
nua às vítimas, tanto em nível emotivo como em nível prático:
antes, durante e depois do processo. Antes, facilitando-lhes as
gestões da denúncia que em algumas situações de terrorismo
deveriam manter certo anonimato, como se pretende legalizar
no País Vasco; durante, evitando-lhes a segunda vitimação; e,
depois, com os programas de compensação e os possíveis in-
tentos restaurativos e reconciüadores, etc.

Kaiser insiste na importância da denúncia da vítima (e das


testemunhas). Ainda que não ignore que, freqüentemente, o viti-
mador ameaça as vítimas (e as testemunhas) para que não o denun­

71 G. Kaiser, Kriminologie, E im Einfühnmg (fie Gnmdlagcn, 9~ ed., Heidelberg, C. F.


Miilier Juristischer, 1993. p. 33U ss, p. 463 ss.; idem, Iniroducción a la C rim inoh-
gía, T ed., trad. J. Arturo Rodríguez Núnez, sob a orientação de J. M3 Rodríguez
Devesa, Madri, Dykinson, 1988. p. 134 ss., p. 340 ss.; H. Kury, U. Dõrmann, H. Ri-
chter, M. Würger, Opfei■erfalnimgen und Meinungen zur Inncren Sicherheit in
Deutschand. Eiu empirischer Vergleich von Viktimisiemngen, Anzeigeverhalten und
Si dlerhe il.scinsci lüízt mg in Osf und IVest vor der Vereinigimg, Wiesbaden, Bim-
deskriminalamt. 1992, p. 45-163.
114 Antonio Beristain

ciem. Concretamente, segundo a investigação que Geis realizou no


Brooklyn em 1983, questionando e entrevistando 153 vítimas, cons-
tata-se que a maioria das ameaças do delinqüente para evitar que o
denunciem consiste em agressões físicas, ameaças verbais e atos de
vandalismo que atemorizam, ao menos, 10% das vítimas.
A respeito dos resultados desses escritórios assistenciais, G.
72
Norquay e R. Weiler concluem que, em geral, seus clientes os
consideram positivos, sobretudo porque lhes têm poupado muito
tempo e muitos desgostos em suas relações com o aparato judicial,
tão complexo e “distante” das vítimas. Mas também se constata a
insuficiente eficácia das respostas que oferecem ao delito tanto as
instituições judiciais como as comunitárias.
Na Espanha, atualmente, os principais centros desse tipo fun­
cionam em Valêneia (desde o ano de 1985), Barcelona, Palma de
Maiorca (onde foram realizadas algumas jornadas internacionais
sobre o tema) e em Bilbao.
Em Valêneia, foi aberto o primeiro Escritório de Ajuda às Ví­
timas dos Delitos, em 16 de abril de 1985, com meios escassos,
mas com frutos satisfatórios, como indica Fely Gonzaiez, que foi o
* » 7^ «
pioneiro. ‘ Quatro anos mais tarde, em 6 de abril, começou a funcio­
nar o segundo Escritório, em Barcelona, dependente do governo
municipal. Dependente da Comunidade Autônoma Balear, criou-se
o terceiro, em Palma de Maiorca. Este tem fomentado também
atividades de pesquisas no campo vitimológico. Depois comenta­
remos a práxis no País Vasco.
C. A respeito dos primeiros programas de compensação econômica,
já havíamos indicado que surgiram na Nova Zelândia, no ano de
1963, e na Inglaterra, no ano seguinte.74 Atualmente, existem
em muitíssimos países europeus e extra-europeus. Merece ser
citado o Centro de Assistência à Vítima do Delito, em Córdoba,

72
Service o f victims and wifness o f crime in C anada, Communication Di vision,
Ministry o f the Solicitor General, Ottawa, 1981.
71
F. Gonzaiez, “Derechos humanos y la vícti ma”, Eguzkiíore. Cnadernn dei In s­
tituto Vasco de Crim inologia, n~ 3, 1989, p. 107-114.
74
A. Berislain, “ Proyecto de declaración sobre justicia y asistencia a ias vícti-
mas” , Estúdios de derecho penal en hornenaje a l Profesor Lu is Jhnénez de
A sita, R evista de la F a cu lta d de D erecho de ia U niversidad C otuplutense,
Monográfico nü 11, junho de 1986, pp. 117, 120.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 115

Argentina, dirigido por Hilda Marchiori, com 22 pessoas inte­


grantes e seis colaboradores.75 Na Espanha, a legislação foi co­
mentada por José Lu is de la Cuesta,76 Alfonso Serrano,77 Jaime
M. Peris Riera,78 Gerardo Landrove,™ F. Benito,M) K. Madle-
nersi e outros especialistas.
No México, uma pesquisa séria vitiniológica foi realizada 110 ano
** *
de 1976, dirigida pelo prof. Luis Rodriguez Manzanera." A respeito
do ponto que especialmente nos interessa agora - a compensação à
vítima temos de reconhecer, como conclui o diretor da investi­
gação, que apesar de que já desde agosto de 1969 existia no Méxi­
co uma lei modelo, entretanto, muito poucas pessoas têm recebido
a compensação econômica propugnada.
Foram discutidos os fundamentos e as finalidades dessa com­
pensação. Alguns baseiam-na no Estado social de direito, outros na
estrita justiça, outros na compensação que deve 0 poder governa­
mental, por não conseguir evitar a criminalidade, etc.83 Ainda não
se conseguiu que esses sistemas cheguem à meta desejada. R. Elias

73 H. Marchiori, “ Informe anual de gestión 1991”, Victimologia, Córdoba (Argen­


tina), nu 3, 1992, p. 73 s.
J. L. de In Cuesta, “A reparação da vítima no direito penal espanhol”, F asckulos de
ciências penais, ano 5, vol. 5, nu 4. outubro-dezembro de 1992, p. 77 ss.
A. Serrano Gomez, FJ casto dei delito y sus rictim as en Espafia, Madri, Univer-
sidad Nacional de Educación a Distancia, 1986, p. 111 ss.
78
J. Peris Riera, Provecciones penales de la victimologia. Excesas dogm áticos
ante deficiencias prácticas, Valência, Generaíitat Valenciana. 1989.
79
G. Landrove Diaz, Victimologia, Valência, Tirant lo blanch, 199Ü, p. 100 ss.
F. Benito. “Hacia un sistema de indemnización estatal a las víctimas dei delito
en Espafia'’, i a ley, 1988, 3, fundamentalmente p. 903.
K. Madlener, “ La reparacíón dei dano sufrido por la victima y el derecho pe­
nal”, Estúdios de derecho p en a l y criminologia, en homenaje al prof. José M a­
ria Rodriguez Devesa, Madri, Universidad Nacional de Educación a Distancia.
II, 1989, p. 12.
“Victimización criminal en la ciudad de Xalapa, Veracruz’,! Estúdios Jurídicos,
nL’ 10, p. 21 ss. A versão alemã está publicada em I I. J. Schneider, Das Verhre-
chensopfer in der Strafrechtspflege, Walter de Gruyter. 1982, e em inglês um
resumo pode ver-se em Victimization and fe a r o f crime, de Richard Block,
Washington, Departamenl of Justice, 1984, Cf, Rodriguez Manzanera, Victi-
mologia, p. 76.
83
A. Karmen, Crime vicíims. An introduction to victimology, Belmont (Cal.), 1984.
116 Antonio Beristain

compara o programa de Nova York com o de New Jersey e desco­


bre que a maioria das vítimas necessitadas não é compensada, e
quando o é não fica satisfeita. Muitas vítimas desconhecem a exis­
tência desses programas. De fato, essas compensações não têm
conseguido que os cidadãos colaborem mais com a justiça e, às
vezes, advogam resultados negativos, de maneira que sua ação
pode, muito bem, considerar-se meramente “simbólica” .84

Conciliação, mediação e reconciliação

A Humanidade está saudosa de reconciliação.


José Gomez Caffarena, “ La conversión humanista dei Concilio
Valicano II, aportación católica a una humanidad reconciliada"’,
P h ih so p h ia p a cis, 1989, p, 482.

Comecemos agora indicando algo a respeito das novas formas


de conciliação, mediação e reconciliação. Aqui se dá um avanço
qualitativo para a frente, pois se pede e se consegue a participação
ativa do vitimador.
Segundo alguns especialistas, encontramos a mais avançada
teoria e normativa legal dessas respostas à vitimação nos últimos
anos na Alemanha, Áustria, Finlândia, França, Inglaterra/País de
Gales, Noruega e Países Baixos. Façamos, pois, algumas conside­
rações a respeito.
No curso de verão que se realizou em San Sebastián, de 1 a 4
de agosto de 1989, o prof. Dünkel falou, detalhadamente, sobre
“A conciliação delinqiiente-vítima e sobre a reparação de danos:
desenvolvimentos crescentes do direito penal e da prática no di­
reito comparado” .115 Na República Federal da Alemanha, nos cinco

R. Elias, Victims o f the system: crime victims a n d com pensaiion in American


pulitics a nd crim inal ju stice, New Brunswick (N. J.), Transaction Books, 1983;
idem, “Alienating lhe victim: compensation and victim attitudes” , Journal o f
Social fcsues, 1984, 40, 103; idem, “Community control, criminal justice and
victim services”, em E. A, Fattali (comp.), From crim e poiicy to victim policy,
Londres, McMillan, 1986, p. 290 ss.
F. Dünkel, “ La conciliación dei incuente-vícti ma y la reparación de danos; de-
sarrollos recientes dei derecho penal y de la práclica dei derecho penal en el
derecho comparado”, Victimología, VIII Cursos de Verano, UPV/EHU, San
Sebastián, 1990, p.. 113 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia

anos anteriores à pesquisa de Schreckling (1988), estabeleceram-se


uns vinte projetos de programas de conciliação entre o delinqüente
e a vítima. Em um deles, tive a sorte de participar, no dia 5 de
julho dc 1989, em Münster. Infelizmente, ao procurar e/ou ao
comentar a ressocialização do condenado, quase nunca os juristas
de língua castelhana levam em consideração (nem falam da) a inci­
dência positiva da relação pessoal, do diálogo do delinqüente com
✓ 87
a vitima.
A maioria dos projetos alemães refere-se aos jovens infratores
de quatorze a vinte anos. Mas, excepcionalmente, o projeto piloto
de Tubingen dirige-se a adultos, com a finalidade de alcançar, me­
diante a conciliação do delinqüente com a vítima, um incremento
no número de sobrestamento de processos (de acordo com o pará­
grafo 153 a do StPO).88
Algumas reformas penais - por exemplo, a de 1987 na Áustria -
acolheram a proposta de importantes correntes vitiinológicas e am­
pliaram as possibilidades de sobrestamento quando se constata um
esforço sério do delinqüente para remediar e/ou eliminar, em geral,
as conseqüências do delito, e especialmente em relação direta com
a vítima.89
A moderna legislação austríaca de menores acolhe amplas cor­
rentes vitimológicas tendentes a, somente com a resolução prejudi­
cial, resolver o conflito manifestado pelo delito (pessoalmente, me
parece imprópria a terminologia que considera delito a infração dos
menores (inimputáveis) de quatorze e/ou de quinze anos... A Con­
venção do Menor, das Nações Unidas, 1989, em seu artigo 37. fala
de delitos dos menores, porém, no artigo 40, fala unicamente de
infrações das leis penais). Em 90% dos casos, os trabalhadores so­
ciais conseguiram estabelecer o contato pessoal entre o jovem e sua
vítima, e em mais de 70% dos assuntos conseguiu-se a solução

Cf. Vietimología, San Sebaslián, 1990, p. 223.


^7
Indiretamente, com relação ao art. 25.2 da Constituição Espanhola, cf. Plácido
Fernandez Viagas Bartolome. “ Las dilaciones indebidas y su incidência sobre la
orientación de las penas”, Poder Judicial, i r 24, dezembro de 1991. p. 51 ss.
88
Rõssner/Hering. Tater-Opfer-Ausgleich im Ai/gemeinen Sírafrecht, 1988, p. 1.043.
89
H. V. Schroli, “Aklives Reueverhalten - Moglichkeit einer Prozessbeendigung
im Vorverfahren”, Õster. Juris. Zeil, 44, 1989, p. 7 ss.
118 Antonio Beristain

prejudicialmente. Os especialistas austríacos acertam ao pretender


incluir nessas resoluções também pressupostos de que as vítimas
são anônimas e múltiplas, como pode ser, também, uma empresa,
uma instituição pública, etc.
Comprovou-se que, tanto na Alemanha (República Federal),
como na França e na Inglaterra, a maioria dos vitimadores —entre
60% a 80% - cumpre com as prestações de reparação que prome­
teu à vítima.w
Na França, estão sendo realizados, com caráter inovador qua­
litativo mais que quantitativo, múltiplos programas de assistência
às vítimas, que os especialistas analisam. Bonafe-Sc!imitt'íl informa
a respeito do Programa de Estrasburgo, que surgiu de uma iniciati­
va privada. Mantém um escritório que oferece ajuda às vítimas, e
outro que oferece aos ex-presidiários. Suas tarefas têm lugar fora
do sistema processual judicial oficial. Realizam-nas trabalhadores
sociais com características de sua profissão social mais que da j u ­
dicial. Atendem a poucos casos, mas as vítimas obtêm ajuda maior
que a que obteriam no sistema judicial.
A respeito dos programas de mediação, na Itália oferecem inte­
ligente informação T. Bandini, U. Gatti, M. I. Marugo e A. Verde.92
Nos EUA, tem-se discutido se os programas de reparação di­
reta, mais ou menos direta, do delinqüente à vítima, contribuem
para diminuir o número de penas privativas de liberdade. Os re­
sultados das pesquisas até agora concluídas são contraditórios,
pois, enquanto cm uns casos diminuem, em outros aumentam.
Autorizados penalistas e criminólogos consideram que a re­
conciliação {Versõhmtng) ultrapassa o marco jurídico (que somente

90
F. Dünkel, “Tíiter-Opfer-Ausgleich und Schadenswiedergutmachung. Neuere
Entwicklungen des Strafrechts und des Strafrechtspráxis im internationalen
Vergleich”, em E. Marks, D. Rõssner (comps.), Tater-Opfer-AusgleielvVom
Zwischenmenschlichen Weg zur Wiederherstellung des Rechtsfriedens, Bonn,
1989, p. 447 ss.; idem, “ La conciliación delincuente-víctima y la reparación de
danos: desarrollos recientesdel derecho penal...”, Victimología, 1990, p. 136.
91
J. P. Bonafe-Schmitt, La médiation: une justice douce, Paris, Syros-Altematives,
1992, p. 185 ss.
92
T. Bandini, U. Gatti. M. I. Marugo, A. Verde, Criminologia. II contributo delia
ricerca alia conoscenza dei crimine e delia rea zio m sociale, Milão, Giuffrè,
1991, p. 764 ss., p, 768 ss.
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia 119

chega à compensação - Ausgleich) e, em certo sentido, ainda do


controle social; consideram-no próprio, unicamente, do campo re­
ligioso.91 Entretanto, a reconciliação vai abrindo caminho também
em programas judiciais, graças sobretudo a alguns movimentos
religiosos e de voluntários. Nos EUA, convém conhecer importantes
conquistas dos menonitas e dos quakers. Os menonitas iniciaram o
programa Victim/Offender Reconciliai ion Program em Ontário, no
ano de 1974, dirigido por Kitchener, reconciliador dos jovens que
haviam causado 22 vítimas em uma noite vandálica.94 Esse programa
pretende organizar e conseguir o encontro reconciliador entre o
autor do delito e sua vítima, a fim de que eles, com a ajuda de um
terceiro, determinem as modalidades da reparação e da reconcilia­
ção. Esse aspecto reconciliador ressurgiu em 1979, em Edhart (In­
diana), fomentado por vários oficiais da Probaíion, que pertenciam
a um grupo religioso preocupado com a ressocialização dos prisio­
neiros - Elkart County Prisoner and Community Together”.95 De
Michigan City, em Indiana, este Victim/Offender Reconciliation Re-
souvce Ceníer (o programa) estendeu-se rapidamente a mais de 25
estados, com participação de vários profissionais e voluntários.'*’
O Prisoner and Community Together, com os menonitas, criou
o Victim/Offender Reconciliation Resource Center e, desde o ano
de 1985, estudou atentamente os programas que se utilizam nos
EUA para vítimas e delinqüentes, com o fim de distinguir os de
natureza civil ou penal dos de reconciliação. Como critério caracte­
rístico desta, exigem três peculiaridades:
1. Encontro pessoal-diálogo entre delinqüente e sua(s) vítima(s) na
presença de um terceiro mediador, devidamente especializado
com formação específica.
2. Trata-se de problemas penais, não meramente civis. Cabe, natu­
ralmente, a reparação civil e.x delicio.

93
A. Beristain, “ Paz y reconciliación en Euskadi”, A ctuaüdad Penai, 22, 31 de
maio a 6 de junho 1993, p. 305 ss.
94
Peacliey, D., “The kitchener experiment'7. M ediai ion and crim inal ju stice, M ar­
tin Wright, Burt Galaway (eds.). Londres, Sage Publications, 1989. p. 14.
95
Zehr, H., M edia/ing the victim/offender confjict, Victim 01 fender Reconciliation
Program, sem ano.
96
Umbreit, M., “ Victim/offender mediation: a national survey” , Federal Probation,
vol. L, n“ 4, 1986, p. 53.
120 Antonio Beristain

3. A meta deve ser não somente a reparação, mas também a recon­


ciliação, as quais exigem certos elem entos - por exem plo,
expressão de sentimentos, compreensão do sucedido, reconhe­
cimento de seu delito e de sua culpabilidade, etc.47

De um total de 32 programas que se estudaram, 78% eram do


setor privado e 22% do setor público. 0 conjunto desses programas
cobria 2.400 problemas por ano, que haviam sido enviados por 42
tribunais; destes, mil provinham de Oklahoma Stcitewide Post-
Convicíion Victim/Offender MedicUion Program. Cinqüenta e qua­
tro por cento de todos os casos referem-se a jovens.
98
Na França, segundo indica Bonafe-Schmitl, são poucos os
programas desse estilo, excetuando-se o caso de Prado, em Bor-
déus, pois numerosos juizes de menores opinam que nos casos de
menores (enfants) se torna preferível aplicar a legislação nacional.
O mesmo especialista considera difícil calcular o número de
programas que funcionam nos EUA com mentalidade de reconci­
liação, mas opina que certamente superam a centenas, e encontram
reconhecim ento público. A US Association for V ictim/Offender
Médiation tem ajudado, notavelmente, quanto à formação dos tra­
balhadores sociais e para o começo e o desenvolvimento eficaz
desses programas.
Se tivéssemos mais espaço, convinha dizer algo a respeito das
novas tendências da “justiça restaurativa” que brotam da vitimolo-
gia, mas pretendem superá-la.w Amplamente, expôs-se o tema no
XI Congresso Internacional de Criminologia, em Budapeste, de 22
a 27 de agosto de 1993.

97 Cf. Umbreit,...p. 54.


98
J.-P. Bonafe-Schmitt, La médiation.... p. 177.
99
Tony Pele rs, H. J. Hirsch, “Acerca de la posición de la víctima en el derecho
penal y en e! derecho procesal penal”, Justicia penal y sociedad, Revista Gua­
temalteca de Ciências Venales, nu 2, outubro de 1992, p. 13 ss.; Elmar Wei-
tekamp, “ Reparative justice; towards a victim oriented system”, Critica! Issues
on European Crime Policy. European Journal on Criminal Policy a n d Rese­
arch, vol. 1, nc 1, 1993, p. 70 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 121

Centros de assistência às vitimas na Comunidade Autônoma


Vasca

Em Bilbao, criou-se, em 14 de outubro de 1991, o Serviço de


Assistência às Vítimas (SAV), dependente do Departamento de
Justiça do Governo Vasco, e concretamente de sua Direção de Di-
](X) ♦
rei tos Humanos, Ao final de outubro de 1992, trabalhavam no
centro um advogado responsável pelo serviço (Juan Luis Euentes),
uma psicóloga e um funcionário administrativo. Até esta data, re­
ceberam atenção mais de 360 pessoas; uma média de trinta e tantas
pessoas a cada mês. Durante os três primeiros meses, 80% das pes­
soas que acorreram ao centro o fizeram por publicidade colocada
nos meios de comunicação. Posteriormente, o maior percentual tem
chegado por remessa das delegacias de polícia, dos juizados de
guarda de menores e dos serviços sociais de base, com os quais se
mantém uma estreita relação. Majoritariamente, atendem-se casos
de maus-tratos (13,70%), ameaças (6,85%), delitos contra a liber­
dade sexual (8,21%), agressões e transtornos psíquicos, delitos de
“colarinho branco” , de violação de domicílio. 58,80% dos usuários
foram mulheres. A maioria das pessoas demanda, fundamental­
mente, informação sobre procedimentos judiciais (80,55%) e 56,25%
propõem a necessidade de apoio emocional criada pela sensação de
raiva e impotência que se produz na vítima de um delito. Outras
atividades desse serviço consistiram na redação de informações
periciais, na petição dos juizes e nas tentativas de mediação e con­
ciliação. Ao SAV não compete a assistência às vítimas de terrorismo.
Em Bilbao, além do Escritório de Atenção às Vítimas do De­
lito, e no mesmo local - no subsolo do Palácio da Justiça funcio­
nam com os mesmos ou muito parecidos critérios e programas de
atenção, informação e defesa das vítimas os serviços dependentes
de bem-estar social da Prefeitura e da Assembléia Legislativa (Dipu-
taciôn Foral) de Emakunde, os serviços de assistência à mulher do
Instituto Vasco da Mulher e de outras associações feministas, e,
mais recentemente, a Mesa de Segurança da Cidade de Biscaia,
dependente do Centro Industrial e Mercantil da Câmara de Comér-

1(H)
J. R. Palacio Sanchez-lzquierdo, “ La asistencia a Ias vícti mas dei delito en
Vizcaya”, Eguzkifore, nu 6, 1992, p. 160 ss.
122 Antonio Beristain

cio (com a colaboração da “ Prefeitura de Bilbao”, de Eu dei, do


Departamento do Interior do Governo Vasco, de promotores de
justiça e de juizes da Audiência Provincial de Biscaia), e é de ca­
ráter setorial e pretende atender, sem exdusivismos, aos comer­
ciantes e empresários que sejam objeto de delito ou de agressões,
Não havia coordenação entre esses diversos serviços,
O Escritório de Atenção às Vítimas do Delito, de Bilbao, é o
único em seu gênero em Euskadi. Pretende-se instalar outros similares
também em Vitória e San Sebastián. Nesta cidade, o Instituto Vasco
de Criminologia iniciou gestões para esse fim, na Assembléia Le­
gislativa ( Diputación Foral) de Guipúzcoa.101
Na capital guipuzcoana, funciona, desde 1989, um programa
de atenção psicológica às vítimas de agressões sexuais, dependente
da Universidade do País Vasco, com apoio da Diputación Foral de
Guipúzcoa e da “ Prefeitura” de San Sebastián, dirigido por Enrique
Echeburua, catedrático de terapia de conduta (personalidade, avalia*
ção e tratamento psicológico), e Paz de Corra 1, professora da UPV.U)2
Foram atendidas, até finais de julho de 1992, 58 mulheres, a maio­
ria delas jovens; uns 72% oscilam entre os 14 e os 25 anos de ida­
de. Em 41% dos casos, violação com penetração; 36% dos casos
foram delitos contra a liberdade sexual; 16% de incestos e 7% de
violações dentro do matrimônio. O lugar mais freqüente em que se
comete a agressão sexual é a rua, seguida do lar da vítima. Qua­
renta e três por cento dos responsáveis pela agressão eram conhe­
cidos da mulher e, ocasionalmente, familiares. Além do tratamento
às pacientes, esse serviço psicológico realizou, no ano de 1991,
outras atividades, com o fim de atender, da melhor maneira possí­
vel, as pessoas que necessitam de socorro na ocasião de um delito
sexual.
O Instituto Vasco da Mulher, em Emakunde, desde 1990, presta
assistência à mulher vítima de delitos, principalmente de caráter
sexual e de maus-tratos, em San Sebastián; posteriormente, abriu-se
uma instituição similar em Vitória e, na primavera de 1992, outra em

Cf. E gm ki/ore, nu 3, 1989, p. 107 ss.


1(12
E. Echeburua, P. Corrat, B. Sarasua, “ El impacto psicológico en las víctimas
de violación”, em Beristain, de la Cuesta (comps.), Cárcel de mujeres. Ayer y
hoy de la mujer delincuente y víctima, Bilbao, Mensajero, 1989, p. 58 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 123

Bilbao. Em San Sebastián e Vitória, colaboram as prefeituras e a


Universidade do País Vasco; em Bilbao, a Universidade e a Dipu-
tación Foral.

Conclusões de lege fere/t da

A arte pode melhorar a espécie humana e sua nova ordem social

Josepii Beuys

I. A vitimologia ultrapassa o âmbito, geralmente admitido, da


ciência total do direito penal, que abraça a dogmática jurídico-
penal, a política criminal e a criminologia. Trata-se de uma fecunda
ruptura paradigmática. A vitimologia pode e deve enriquecer, radi­
calmente, a teoria e a práxis do nosso controle social e, em espe­
cial, do Poder Judiciário (penal). Algumas das dificuldades que
obstaculizam esse desenvolvimento e essa aplicação da vitimo­
logia explicam-se pelo fato de que a vitimologia provém da cri­
minologia mais que do direito penal. Também porque opta pelas
pessoas e instituições frágeis mais que pelas poderosas.
II. Para o progresso e o desenvolvimento de nossa nova ciência, a
universidade pode e deve aportar sua metodologia própria.
Concretamente, é seu desejo cada vez mais “armazenar” siste­
maticamente investigações abertas, não-conclusivas, com meto­
dologia interdisciplinar e empírica das realidades sociais, sem
esquecer a criminologia, a medicina, a sociologia, a arte, a her­
menêutica, etc.

Convém dedicar ampla atenção às pesquisas empíricas que se


realizaram e que se têm realizado em diversos países, principal­
mente por duas razões:
-porque necessitamos conhecer seus resultados positivos, e tam­
bém os negativos; e
- porque interessa mostrar, publicamente, que entre nós se pesquisa
menos do que o devido, por mil motivos; também por uma falsa
interpretação do adágio latino prius est vivere deinde phdosopha-
re, “primeiro se deve viver, depois se pode filosofar” , “que inves­
tiguem eles” . Nosso orçamento nacional, destinado ao ensino e à
124 Antonio Beristain

pesquisa criminológico-vilimológica, não deve ser menor que em


muitos países de nosso âmbito cultural.
Lamentamos a quase total carência, na Espanha, de estudos
vitimológicos em geral, e, em particular, a respeito do abuso de
poder, da síndrome de Estocolmo, das vítimas do terrorismo e dos
fatores etiológicos deste. (Sem esquecer o influxo negativo da
Igreja Católica vasca, especialmente em Guipuzcoa, como se indi­
ca no Informe da Comissão Internacional sobre a violência no País
Vasco, elaborado por C. Rose, F. Ferracutti, H. Horchem, P. Janke
e J. Leaute, de 5 de junho de 1985 a 5 de março de 1986. No núme­
ro 3.15.3 do Informe, afirma-se que, “ao julgar o terrorismo em
Euskadi, a Igreja não tem cumprido sua missão”.)

III. Urge que se programe uma radical, mas inteligente, desjuridi-


zação do controle social penal, especialmente no referente à
prevenção da vitimação e à assistência à vítima do delito, e da
seguinte vitimação secundária e terciária. Isso exige uma ex­
tensa participação ativa da vítima, como protagonista da restau­
ração, mediação, conciliação e reconciliação. Urge que se
conceba uma nova estruturação da resposta (que a sociedade
programe e realize) ao delito e â violência, com método não
expiacionista, nem vingativo, senão restaurativo e, melhor ain­
da, criativo, recriativo.
IV. A judicatura, mediante sua exigência de justiça, de liberdade,
de racionalidade, de metarracionalidade e de legalidade, pode
contribuir para uma baixa do fanatismo e da ignorância das re­
ligiões ancoradas na pré-modernidade; e, por outra parte, pode
enriquecer-se com a dimensão compreensiva e compassiva das
mensagens teológicas em favor das vítimas marginalizadas e
contra as estruturas injustas do poder político, religioso, eco­
nômico, acadêmico, etc.
V. Para conseguir a eficácia desejada, urge estudar e conhecer mais
profundamente o fenômeno derivado da criminalidade concreta
de cada país e de cada época, e os reais danos (materiais, psi­
cológicos, etc.) sofridos pela vítima, sem esquecer os aspectos
epidemiológicos, a duração da vitimação, sua intensidade, sua
valorização objetiva e subjetiva, em cada classe de vítimas.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 125

Também necessitamos de mais pesquisas a respeito da atuação


tanto dos jornalistas e dos advogados como das instituições gover­
namentais: universidade, polícia, pessoal de justiça e do sistema
penitenciário. Capítulo à parte merece a questão da oportunidade e
da eticidade de certas intervenções autorizadas legalmente, mas
que podem violar a intimidade e a privacidade.

VI. Apesar de todas as limitações e deficiências que se observam


na teoria e na práxis vitimológica, temos de reconhecer e aplaudir
os notáveis progressos que estas têm conseguido no campo da
dogmática penal e da criminologia. Tanto esta como aquela
têm conseguido, nos últimos vinte anos, uma melhoria quanti­
tativa e qualitativa que supera todo o alcançado no resto do
século XX. Entretanto, a administração da justiça penal está hoje
em crise profunda, como manifestam os temas que se expõem e
se discutem nos congressos nacionais e internacionais, assim
como os artigos encontrados nas revistas especializadas.
VII. No regulamento penitenciário, deve-se introduzir, em vários
artigos, a possibilidade de que a vítima intervenha ativamente.
Por exemplo, no art. 281, que estabelece as funções de jurista-
criminólogo, deve-se incluir:

9 a. In fo rm ar ao s in tern o s a resp eito d e s u a p u ssív el rela ção


atual c fu tu ra c o m os sujei los p a s s iv o s e as d e m a is v ítim a s d e
seu delito, p o r p ró p ria iniciativa, s e m p re q u e ju l g u e a d e q u a d o ,
ou po r p e tiç ã o d o (a) inlerno(a).

l ü a. A s s e s s o r a r e a c o n s e lh a r ao s internos a re s p e ito d a s p o s s i­
b ilid a d e s e v a n ta g e n s c o n c re ta s de c o n s e g u ir u m a m e d ia ç ã o ,
u m a c o m p e n s a ç ã o e. inclusive, urna re c o n c ilia ç ã o c o m o s s u ­
je ito s p a s s iv o s e as d e m a is v ítim a s d e seu delito.

Na Lei de Procedimento Criminal, há de fazer-se mais refe­


rências às vítimas, e não equipará-las, necessariamente, aos sujeitos
passivos do delito. Urge, pois, redigir com fórmulas radicalmente
diferentes vários artigos, entre outros, os seguintes: 13, 109-113,
282,615-622, 650.
No Código penal, o legislador há de levar mais em conta os
sujeitos passivos do delito e, também, as demais vítimas do mesmo.
126 Antonio Beristain

Por exemplo, nos artigos 101 e seguintes, referentes à responsabi­


lidade civil. Especiais e mais radicais inovações devem ser intro­
duzidas nos artigos 8-11 e 112-117 para dar entrada à mediação, à
conciliação e à reconciliação, como circunstâncias que eximem,
atenuam ou agravam a responsabilidade penal e como causas que a
extinguem. O novo artigo 117 do Projeto de Código Penal de 1992
resulta insuficiente.

VIII.Esperamos e desejamos que a sociedade toda, com a universi­


dade e as instituições do controle social, continue nesta d i­
reção de solidariedade e de busca de intensificação de uma
proximidade (vítima-vitimador) mais pacífica e mais gratifi-
cante desde uma perspectiva nova das, já bisseculares, questões
kantianas: Quem pode conhecer as vítimas e os vitimadores?
O que devem fazer as vítimas e os vitimadores? O que devem
esperar as vítimas e os vitimadores? Quem são - em nível
mental, afetivo e energético - as pessoas vítimas e vitimadoras?
Apêndice

Declaração sobre os princípios


fundamentais de justiça para as
vítimas de delitos e do abuso de poder
(ONU)

(Adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas por sua


Resolução i r 40/34, de 29 de novembro de 1985).

As vítimas de delitos

1. Entender-se-á por “vítimas” as pessoas que, individual ou coleti­


vamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais,
sofrimento emocional, perda financeira e prejuízo substancial dos
seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omis­
sões que violem a legislação penal vigente nos Estados-membros,
incluída a que condena o abuso de poder.

2. Poderá considerar-se “ vítima” uma pessoa, de acordo com a


presente Declaração, independentemente de que se identifique,
apreenda, processe ou condene o perpetrador e independentemente
da relação familiar entre o perpetrador e a vítima. Na expressão
“ vítima” , incluem-se também, em seu caso, os familiares ou as
pessoas a cargo que tenham relação imediata com a vítima direta
e as pessoas que tenham sofrido danos ao intervir para assistir à
vítima em perigo ou para prevenir a vitimação.
128 Antonio Beristain

3. As disposições da presente Declaração serão aplicáveis a todas


as pessoas sem distinção alguma, seja de raça, cor, sexo, idade,
idioma, religião, nacionalidade, opinião política ou de outra índole,
crenças ou práticas culturais, situação econômica, nascimento ou
situação familiar, origem étnica ou social, ou impedimento físico.

Acesso à Justiça e trato justo

4. As vítimas serão tratadas com compaixão e respeito por sua


dignidade. Terão direito aos mecanismos da Justiça e a uma pronta
reparação do dano que tenham sofrido, segundo os dispositivos da
legislação nacional.

5. Estabelecer-se-ão e reforçar-se-ão, quando for necessário, meca­


nismos judiciais e administrativos que permitam às vítimas obter
reparação mediante procedimentos oficiais ou oficiosos que sejam
expeditos, justos, pouco custosos e acessíveis. Informar-se-ão às
vítimas seus direitos para obterem reparação mediante estes meca­
nismos.

6. Facilitar-se-á a adequação dos procedimentos judiciais e admi­


nistrativos às necessidades das vítimas:
a) informando às vítimas de seu papel e do alcance, do desen­
volvimento cronológico e da marcha das atuações, assim como da
decisão de suas causas, especialmente quando se trate de delitos
graves e quando hajam solicitado essa informação;
b) permitindo que as opiniões e as preocupações das vítimas
sejam apresentadas e examinadas em etapas apropriadas das atua­
ções sempre que estejam em jogo seus interesses, sem prejuízo do
acusado e do acordo com o sistema nacional de justiça penal cor­
respondente;
c) prestando assistência apropriada às vítimas durante todo o
processo judicial;
d) adotando medidas para minimizar os incômodos causados
às vítimas, proteger sua intimidade, caso necessário, e garantir sua
segurança, assim como a de seus familiares e a das testemunhas a
seu favor, contra todo ato de intimidação e represália;
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 129

e) evitando demoras desnecessárias na resolução das causas e


na execução dos mandamentos ou decretos que concedam indeni­
zações às vítimas.

7. Utilizar-se-ão, quando proceder, mecanismos oficiosos para a


solução das controvérsias, incluídas a mediação, a arbitragem e as
práticas de justiça consuetudinária ou autônomas, a fim de facilitar
a conciliação e a reparação em favor das vítimas.

Ressarcimento

8. Os delinqüentes ou os terceiros responsáveis por sua conduta


ressarcirão, eqüitativamente, quando proceder, as vítimas, seus fa­
miliares ou as pessoas a seu cargo. Esse ressarcimento compreen­
derá a devolução dos bens ou o pagamento pelos danos ou perdas
sofridas, o reembolso dos gastos realizados como conseqüência da
vitimação, a prestação de serviços e a restituição de direitos.

9. Os governos revisarão suas práticas, regulamentações e leis, de


modo que se considere o ressarcimento como uma sentença possí­
vel nos casos penais, além de outras sanções penais.

10. Nos casos em que se causem danos consideráveis ao meio


ambiente, o ressarcimento que se exigir compreenderá, na medida
do possível, a reabilitação do meio ambiente, a reconstrução da
infra-estrutura, a reposição das instalações comunitárias e o reem­
bolso dos gastos de relocalização, quando esses danos causarem a
desagregação de uma comunidade.

11. Quando funcionários públicos ou outros agentes que atuem a


título oficial ou quase oficial hajam violado a legislação penal
nacional, as vítimas serão ressarcidas pelo Estado, cujos funcioná­
rios ou agentes tenham sido responsáveis pelos danos causados.
Nos casos em que já não exista o governo sob cuja autoridade se
produziu a ação ou a omissão vitimadora, o Estado ou o governo
sucessor deverá prover o ressarcimento das vítimas.
130 Antonio Beristain

Indenização

12. Quando não for suficiente a indenização procedente do delin­


qüente ou de outras fontes, os Estados procurarão indenizar finan­
ceiramente:
a) as vítimas de delitos que tenham sofrido importantes lesões
corporais ou prejuízos de sua saúde física ou mental como conse­
qüência de delitos graves;
b) a família, em particular as pessoas responsáveis, das víti­
mas que tenham sido mortas ou tenham ficado física ou mental­
mente incapacitadas como conseqüência da vitimação.

13. Fomentar-se-ão o estabelecimento, o reforçamento e a ampliação


de fundos nacionais para indenizar as vítimas. Quando proceder,
também poderão estabelecer outros fundos com esse propósito,
incluídos os casos em que o Estado de nacionalidade da vítima não
esteja em condições de indenizá-la pelo dano sofrido.

Assistência

14. As vítimas receberão a assistência material, médica, psicológica


e social que for necessária, por intermédio dos meios governamen­
tais, voluntários, comunitários e autônomos.

15. Informar-se-á ás vítimas a disponibilidade de serviços sanitários


e sociais e, além disso, a assistência pertinente, e facilitar-se-á seu
acesso a eles.

16. Proporcionar-se-á ao pessoal de polícia, de justiça, de saúde, de


serviços sociais e demais pessoas interessadas capacitação que o
faça receptivo às necessidades das vítimas e diretrizes que garan­
tam uma ajuda apropriada e rápida.

17. Ao se proporcionar serviços e assistência às vítimas, prestar-se-á


atenção às que tenham necessidades especiais, pela índole dos
danos sofridos ou devido a fatores como os mencionados no pará­
grafo 3 supra.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 131

As vítimas do abuso de poder

18. Entender-se-á por “vítima” as pessoas que, individual ou coleti­


vamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais,
sofrimento emocional, perda financeira ou prejuízo substancial de
seus direitos fundamentais, como conseqüência de ações ou omissões
que não cheguem a constituir violações do direito penal nacional,
mas violem normas internacionais reconhecidas relativas aos di­
reitos humanos.

19. Os Estados considerarão a possibilidade de incorporar na le­


gislação nacional normas que proscrevam os abusos de poder e
proporcionem remédios às vítimas desses abusos. Em particular,
esses remédios incluirão o ressarcimento e a indenização, assim
como a assistência e o apoio material, médico, sociológico e social
necessário.

20. Os Estados considerarão a possibilidade de negociar tratados


internacionais multilaterais relativos às vítimas, definidas no pará­
grafo 18.

21. Os Estados revisarão, periodicamente, a legislação e a prática


vigentes para assegurar sua adaptação às circunstâncias mutantes,
promulgarão e aplicarão, em seu caso, leis pelas quais se proíbam
os atos que constituam graves abusos de poder político ou econô­
mico e se fomentem medidas e mecanismos para prevenir esses
atos, e estabelecerão direitos e recursos adequados para as vítimas
de tais atos, facilitando-lhes seu exercício.
Farte III

Direito penal
Capítulo 6

A história caminha para a


abolição da sanção capital

Coordenadas fundamentais

Paradoxalmente, a história muda, permanece e torna a mudar


nas principais essências.humanas, como explica Zubiri. Algo pare­
cido sucede ao tema da sanção capital, pois hoje tem plena atuali­
dade o que 110 ano de 1912 escreveu P. E. Ugarte de Ercilla, S. J.:

U m d o s p ro b le m a s dc m ais aluai idad e e in te re sse social é, sem


d ú v id a , o d a p e n a dc m orte. A c a d a passo s c es tá a g ita n d o a
q u e stã o na C â m a r a L egislativa, e e m livros, jo r n a i s e rev istas se
fala d ela, c c o n tra ela, em to d o s os tons da s e n s ib ilid a d e e r o ­
m a n tis m o , q u a lific a n d o -a de ím pia d ia n te da relig ião e de ilícita
d ia n te da m oral, de injusta diante d o d ire ito n atu ra l, d e a rb itrá ria
ou d e s p r o p o r c io n a d a d ia n te d o d ire ito p o sitiv o , e de in eficaz, ou
m e n o s efic az o u e fic a z em d e m a sia , c, p o rta n to , e r e s p e c tiv a ­
m ente, dc inútil ou in c o n v e n ie n te , ou b á r b a r a d ia n te da p s ic o lo ­
gia d o s e n tim e n to .'

Se se respeitam as coordenadas básicas da dogmática penal,


deve-se falar de “ medidas” mais do que de “pena” de morte, já que
a maioria das pessoas condenadas à sanção máxima são sujeitos de

P. E. Ugarte de Ercilla. S. J., “ La pena de muerte ante los eternos principios de


verdad y ante o coeficiente de variabilidad”, Razón y Fe, niJS 139 e 140. Madri, 1912.
136 Antonio Beristain

suma periculosidade criminai, mas de mínima ou nenhuma liberdade.


São pessoas inimputáveis, às quais não se pode aplicar pena alguma,
pois todos os especialistas incluem na definição da pena o requisito
de que o acusado atuou com conhecimento e vontade, com liberdade
jurídica, por uma parte, e, por outra, que, como escreve Silvela, a
pena serve para “a conveniente emenda do delinqüente”.
Os condenados por nossos tribunais não cumprem esses requisi­
tos. Sim, cumprem, ao contrário, os requisitos das medidas penais.3
Apesar dessa observação crítica semântica, às vezes respeita­
mos a (inexata) terminologia tradicional, pois estas páginas não
pretendem elucidar problemas dogmáticos da licitude ou da ilicitu-
de técnica.
A sanção capital implica a imposição da privação da vida, se­
gundo as normas formais requeridas, pela autoridade judicial, e
executada por uma ou várias pessoas legalmente competentes aos
delinqüentes cuipáveis, autores de determinados delitos graves. É a
sanção mais severa da administração da Justiça admitida em mui­
tos países, cujas origens (e permanência), desde os primeiros tem­
pos da humanidade, mostram uma lenta evolução relativamente
unânime para o abolicionismo, ainda que com muitas particulari­
dades, segundo os tempos, os regimes sociais, políticos e religiosos.
Logicamente, nas sociedades primitivas, carecia das formalidades
processuais que hoje se consideram substanciais e indispensáveis.
Desde datas imemoráveis e em nossos dias, essa sanção sus­
cita discussões apaixonadas, dadas a sua complexidade e a sua
transcendência, assim como seus efeitos tão graves que derivam
em múltiplos campos científicos e sociais. De sua manutenção ou
sua abolição, assim como das diversas técnicas legais para sua im­
posição e sua execução, resultam conseqüências de suma impor­
tância.
O instinto de vingança mortal encontra-se tão profundamente
enraizado no “ animal racional” que, para muitos, o fato de recusá-
lo e de proibir sua expressão coletiva, mediante a abolição da san­

Francisco Agusíín Silvela. Con.sideraciones sobre la n ecesid a d d e conservar en


los C ó d ig o sy de aplicar en sn caso la pena capital, Madri. 1835, p. 15.
A. Beristain, M edidas penales en derecho contemporâneo. Teoria, legislación
p o s itiv a y realizaciónpráctica, Madri, Reus, 1974, p. 52 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 137

ção capital, implica uma frustração intolerável. Pelo menos, o aboli­


cionismo significa um triunfo da solidariedade sobre a vingança, o
medo e o ódio. um triunfo da humanidade sobre si mesma.
Em muitos países se vem conseguindo, mas ainda não o bas­
tante, que as instituições culturais, políticas e eclesiásticas se inte­
ressem e atuem eficazmente em prol da abolição total. Merece um
aplauso excepcional a Anistia Internacional que, constantemente,
fomenta ações antipena de morte. Também se pode recordar aqui a
Associação de Direitos Humanos da Espanha, a Associação Espa­
nhola contra a Pena de Morte, os catedrãticos de direito penal, etc.
Afortunadamente, a tendência abolicionista vem progredindo
em muitos especialistas teóricos e em algumas legislações nacio­
nais. Como fruto digno de mencionar-se nesta corrente, em 28 de
abril de 1983 ficou aberto à assinatura dos Estados-membros do
Conselho da Europa o Protocolo nQ 6 da Convenção Européia dos
Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, em relação à
pena de morte. Em l e de março de 1985, entrou em vigor, depois
de ser ratificado pelo mínimo necessário de cinco países: Áustria,
Dinamarca, Espanha, Luxemburgo e Suécia. Esse protocolo é o
primeiro tratado internacional de caráter preceptivo que proíbe a
pena de morte. Na atualidade, outros nove Estados-membros firma­
ram o protocolo, mas ainda não o ratificaram. Sete Estados-
membros não o firmaram nem o ratificaram: Chipre, Irlanda, Islân­
dia, Liechtenstein, Malta, Reino Unido e Turquia.
Esse protocolo obriga os Estados a abolir a pena de morte para
os delitos cometidos em tempos de paz. Mas ficam permitidas sua
imposição e execução em tempos de guerra, ou de perigo iminente
de guerra, se as leis previamente estabelecerem. Ao contrário do
que prevê o art. 64 da Convenção, esse protocolo não admite reser­
va alguma no momento da assinatura.
Em 17 de janeiro de 1986, o Parlamento Europeu adotou uma
Resolução mediante a qual insistia em sua decidida aspiração de
abolir a pena de morte em toda a Comunidade Européia. A Resolu­
ção exortava todos os Estados-membros do Conselho da Europa a
ratificar o 6" Protocolo, ao qual nos referimos, da Convenção
Européia dos Direitos do Homem.
Até chegar a essa petição-exigência abolicionista, o animal
racional tem caminhado e descaminhado mil passos difíceis que
138 Antonio Beristain

convém conhecer, ao menos em suas grandes linhas. Essa petição-


exigência abolicionista não se entende bem se é esquecida a
cosmovisão geral do evolucionismo ao longo de miihões de anos.
Razoavelmente, advoga a estigmatizar menos (ou nada) nossas
gerações pretéritas partidárias da pena capital, e nos permite com­
preender e “perdoar” alguns partidários dessa sanção. Por exemplo,
Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica 11-11, q. 64, a.2 escreve:

Se u m h o m e m resulta p erigo so para a c o m u n id a d e e c o rro m p e -a


p o r cu lp a dc alg u m p e c a d o , é lou váv el e ju s to m a tá -lo para p r e ­
se rv a r o bem c o m u m . M t. 13 (p a rá b o la d a c iz â n ia ) o b r ig a a p r o ­
c e d e r c o m p ru d ên cia; m a s q u a n d o não se co rrc p e r ig o d c m a tar
a um inocente, há que se fazer justiça com os pecadores. O m e sm o
q u e faz o p ró p rio D eu s, ta m b e m a ju s tiç a h u m a n a m a ta r á ao q u e
resulta p e rig o so p ara o s d e m a is e re s e rv a rá p ara a p e n itê n c ia o s
que. ainda tendo pecado, não são g ra v e m e n te perig oso s. Q u a n d o
o h o m e m peca, cai da o r d e m racional e d a d ig n i d a d e h u m a n a ,
qu e c o n s is te no fato de q u e o h o m e m é, p o r n a tu re z a , livre e
e x iste n te po r si m e sm o ; ao p e rd e r esta d ig n id a d e , cai no nível
d o s a n im a is , e e n tã o se p r o c e d e rá c o m e le e m f u n ç ã o d a u tili­
d a d e d o s dem ais.

Evolução histórica

A evolução da sanção capital cobre e, em certo sentido, desco­


bre toda a história e a pré-história da humanidade no âmbito dos
pensamentos e dos sentimentos mais profundos da pessoa e de seus
grupos. Por isso, se tem escrito sobre este tema mais que sobre
qualquer outro no direito penal. Trata-se de uma história vitimai e
triste, mas cada dia menos triste. Uma história ambivalente para
alguns, como todo o acontecer humano, criativo, histórico, social e
jurídico.
Na história do direito e da criminologia, não penetrou, suficien­
temente, a cosmovisão evolucionista. Faltam estudos epistemológi-
cos desde a aurora da antropologia biológica e desde a aurora da
antropologia cultural, assim como desde o evolucionismo inorgâni­
co (pré-biológico), orgânico (biológico) e humano (cultural e jurí­
dico).
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 139

Neste capítulo (o menos honroso) do direito penal, podem ver­


se, 110 entanto, algumas facetas positivas.

- a conveniência de estudar os antecedentes pré-humanos das prin­


cipais instituições jurídico-penais;
-sua própria evolução abolicionista, símbolo e paradigma da ma-
croevolução abolicionista do atual direito penal vindicativo e re­
pressivo;
- o perdão judicial, o direito de graça e a substituição por composi­
ção pecuniária, em alguns povos, têm brotado (e/ou se têm desen­
volvido) especialmente no campo da pena de morte;
-a transpersonalidade da pena capital tem facilitado radicais e ati­
nadas novas teorias do conhecimento em alguns epistemólogos;
- o amar e 0 morrer têm uma raiz comum. Com razão, se tem es­
crito que “as mais belas histórias de amor acabam com a morte, e
isso não é algo sem tom nem som. Certo, o amor é e subsiste
como a superação da morte, mas não porque a elimine, se não
porque o amor mesmo é morte. Somente na morte é possível a
entrega total do amor, porque somente na morte podemos ficar
inteiramente à mercê. Daí que os amantes se lançam tão singela e
puramente à morte; não se arrojam a um lugar estranho, se não ao
recinto íntimo do amor” .4 Algo sobre isso diziam os versos escri­
tos em euskera pelos condenados à morte no País Vasco que, des­
de o momento de sua condenação, dispunham (conforme os usos
e os costumes tradicionais) de um ano para redigir, poeticamente,
sua experiência, de maneira que servisse de exemplo para os de­
mais;
- muitas vítimas de abuso de poder (em sua manifestação mais trá­
gica) adotam, diante desse cruel castigo, um talante que, com fre­
qüência, limpa as mãos de seus carrascos; e, algumas vezes,
aproveitam a animal vingança da pena de morte para, por meio de
seu submetimento de excelso heroísmo, viver experiências de al­
truísmo obl ativo transcendente e en ri quecedor da humanidade.

Desde as origens da humanidade, antes já do homo sapiens, a


resposta mortal das vítimas vem acompanhando nossos progenito-

4
L. Boros, El hombre y su última opción, Madri, 1972, p. 66-67.
140 Antonio Beristain

res. E na mais remota Antiguidade e durante a Idade Média, na


imensa maioria dos países que conhecemos, era a pena mais fre­
qüente. Pode-se dizer que somente a partir do século XVIII se co­
meça a caminhar para uma certa postura abolicionista.
A sanção mortal aparece - historicamente - como resposta re­
ligiosa ao pecado mortal, como expiação e satisfação da divindade.
Por isso, os povos antigos aplicaram essa pena a todos ou a quase
todos os delitos e pecados graves. Por isso, com freqüência, o sa-
cerdote-juiz coloca a mão 110 réu antes da execução, para simboli­
zar que se transmitem a ele os pecados-delitos da comunidade.
Durante muitos séculos, 0 mito do sangue tem identificado
este com a vida e tem concedido poder de purificação e de vingan­
ça ao sangue que se derramava na execução capital. As vezes, esse
mito exigia sacrifícios humanos nas festas populares.
As sociedades primitivas, diante dos comportamentos vitima-
dores, gravemente prejudiciais, geralmente não buscavam fazer
justiça, senão evitar as vinganças injustas e/ou as vinganças dirigi­
das erroneamente a pessoas inocentes, ou evitar ou, ainda, regular
as contendas entre a vítima e seus familiares contra o delinqüente e
os seus. Somente com 0 transcurso do tempo e com o desenvolvi­
mento do poder se chega à elaboração e à imposição direta (desde a
autoridade) de sanção aos delinqüentes.5 Essa evolução conhece,
logicamente, muitas exceções.
Aqueles que detinham 0 poder nas comunidades primitivas
impunham e executavam a pena capital em não poucos casos. Os
códigos mais antigos que conhecemos estabelecem essa pena em
múltiplas hipóteses. O Código de Hamurabi (século XVIII antes de
Cristo) impõe-na contra 25 delitos (roubos, corrupção administrati­
va, infrações sexuais...). As leis sírias, do século XVI antes de nos­
sa era, estabelecem como pena mais comum a mutilação, mas
também em determinadas hipóteses prescreviam a pena capital.
No direito helênico, tem grande aceitação o sistema de autode­
fesa entre opostos grupos tribais ou familiares, mas também a pena

5 Jacques Leclercq, “ Reflexions sur le d mil de punir”, Estudios Pemdcs, Hotne-


iKtje ao P. Julian Perecia, S. J. eu su 75L' aniversario, Bilbao, Univ. de Deusto,
1965, p. 469 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 141

de morte contra determinados crimes, a maioria deles no âmbito


religioso.
O povo judeu, tal como aparece no Antigo Testamento, aplica
a pena de morte a numerosos delitos, especialmente aos relaciona­
dos com a idolatria ou coiri alguns comportamentos sexuais.
A moderna ciência exegética mostra que no Antigo Testa­
mento muitas (não todas as) passagens deveriam ser interpretadas
contra a sanção capital. Em concreto, o profeta Ezequiel, capítulo
18, versículos 21-23 e capítulo 33, versículo 11, quando diz:

M a s sc o ím p io sc a rre p e n d e r d e to d o s os p e c a d o s c o m e tid o s c
g u a rd a r to d a s as m in h a s leis, e fizer o q u e é d ireito e justo, v iv e ­
rá c o m c e rtc z a e não m o rrerá . N e n h u m d o s c r im e s c o m e tid o s
será lem brado contra clc. V iverá p or causa da justiça que praticou.

A c a s o te n h o p ra z e r na m o rte d o ím p io ? - O rá c u lo d o S e ­
n h o r D eus. N ã o d e s e jo a n te s q u e m u d e de c o n d u ta e viva?

J u r o p o r m in h a vida. d iz o S e n h o r D eu s, não te n h o p r a z e r
na m o rte d o ím pio, m a s a n te s q u e ele m u d e d e c o n d u ta e viva!

Em semelhante sentido o salmo 130: “De ti procede o perdão.


Assim infundes respeito”. Outras traduções distorcem o texto ori­
ginal e traduzem: “ Mas és indulgente, para que sejas reverenciado
com temor”.
Introduz-se uma mudança radical no Novo Testamento. A luz
do Evangelho, matar o delinqüente resulta desnecessário, inútil e
indigno/’
Geralmente, as religiões e superstições primitivas exigiam que
a execução fosse realizada em público, com métodos sumamente
variados e cruéis, carregados de simbolismo, como o do “bode ex­
piatório” , que amplamente desenvolve René Girard.
Entre as técnicas de execução mais freqüentes naqueles tem­
pos figuram: 1É) o apedrejamento; 2a) a precipitação de uma altura;
3°) a crucificação; 4a) a viva-combustão; 5°) a asfixia por submersão;
6a) o soterramento vivo do condenado; 7a) o enforcamento; 8a) a
empalação; 9a) o esmagamento debaixo de algum animal (na índia,

A. Beristain, “Capitai punishmeiit and catliolicism” , International Journal o f


C rim inology and Penolog}', 5, 1977, p. 321 ss.
142 Antonio Beristain

até o século XIX, colocava-se o condenado debaixo de um elefante);


10°) por açoites (especialmente na antiga China); 11a) o envenena­
mento (Sócrates); 123) o desconjuntamento e ruptura de ossos por
garrote; 13") o esquartejamento por meio de cavalos puxados em
diversas direções, etc. Em alguns povos primitivos, mais que ma­
tar, a execução consistia em deixar morrer.
Ainda hoje, em todos os países árabes onde já não rege a lei
islâmica, as sentenças de morte devem ser aprovadas, como for­
malidade, pelo nnifti, o erudito mais importante da comunidade a
respeito de questões religiosas.
Na China imperial, o carrasco evitava olhar o rosto da vítima
por temer que a alma da mesma pudesse retornar posteriormente e
aparecer-lhe. Na atualidade, em 1987, na China, a vítima é forçada
a ajoelhar-se com as mãos atadas nas costas e o carrasco se coloca
de pé “detrás da vítima”, e costuma ser um soldado ou policial
quem dispara na nuca do réu, sem que este o veja.
Com o progresso histórico das religiões e do direito, vem-se
logrando uma paulatina e lenta secularização do sistema judicial,
que cobra autonomia e estrutura-se sobre leis cada vez menos sa­
cras. As ciências vão vencendo as superstições e a bruxaria. Como
exemplo, podem ser recordadas a regulação e a prática da sanção
capital no mundo romano, germânico, nas monarquias absolutas e
nas ditaduras, já nos séculos XVIII.„e XX.
Durante essa época, a pena capital é aplicada a todos os delitos
graves com sistemas cruéis, em publico, para conseguir intimidar o
máximo possível os prováveis e futuros delinqüentes. Sêneca re­
flete o sentimento popular ao escrever que “ quanto mais pública
seja a execução da pena de morte, maior efeito se logrará para a
melhora dos costumes dos cidadãos em geral” .
Na Roma antiga, as Doze Tábuas (século V a. C.) estabelecem
a pena de morte contra os condenados por incêndio premeditado,
falso testemunho, calúnia grave, suborno... Durante a República,
poucos eives romani foram executados; ao contrário, era a sanção
mais freqüente e aplicada aos escravos. Ao final do Império, como
resultado do reconhecimento do cristianismo, aumentou o campo
de aplicação da sanção máxima, que se introduziu nos delitos con­
tra a religião.7

7
Günther Kesel, Die ReligiomdeUkte und ihre Behandlung iin Künfligen Stra-
frcch t, Munique, 1968, p. 4 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 143

Segundo os especialistas, o direito germânico continua sancio­


nando todos os delitos graves com a pena capital (imposta, às
vezes, arbitrariamente), executada de múltiplas maneiras: o es-
quartejamento (próprio dos delitos de traição), o enterramento em
vida (especialmente das mulheres, mas também dos homens, réus
de crimes contra a sexualidade, principalmente o estupro), o enter­
ramento ou a fogueira (majoritariamente, das mulheres, por motivo
de pudor), o emparedamento (aplicado quase sempre aos eclesiás­
ticos). Um dos pontos diferenciais do direito germânico é a diver­
sidade na execução da pena de morte segundo a classe do delito: a
modalidade menos severa - a decapitação -impõe-se pelos delitos
relativamente menos graves. No extremo contrário, o enforcamento,
uma das maneiras mais severas e desonrosas, só corresponde ao
banditismo, considerado um dos delitos mais graves. Por fim, temos
de recordar outro traço diferencial do direito germânico: ao ini-
m icus corresponde a perda parcial da paz, como ao traidor corres­
ponde a perda geral da paz; e ambas levam a possibilidade de que o
delinqüente possa ser morto pela família da vítima (vingança de
sangue) ou por qualquer pessoa que o encontre,
Na legislação eclesiástica, durante a primeira época da Inqui­
sição, concretamente desde o século XIII até o século XV, a pena
de morte foi menos freqüente do que alguns autores indicam; A n­
dré Laingui e Arlette Lebigre aduzem como prova que o inquisidor
Bernard Gui, do ano 1307 ao .1323, assinou unicamente 42 senten­
ças de morte.
No País Vasco, no começo do século XVI, aprova-se o Foro
de Bisca ia (ano 1526), segundo o qual são castigados com o máxi­
mo rigor, em concreto com a pena de morte, os delitos de incêndio,
disparo com pólvora, alteração de marcos nas herdades e os indí­
cios de roubo, homicídio, etc.
O Título 9, da Lei X, indica em que casos se pode condenar à
morte e, em concreto, assinala que basta que haja indícios em al­
guns delitos,

se os tais d e lito s fo sse m de ro u b o , o u furto, o u ferid a feita co m


flechas, ou m o rte feita a e rm o , o u d e noite à traição ; que, c m tal
c a s o , h a v e n d o in d ício s e p r e s u n ç õ e s tais, q u e se o m a lfe ito r
(n ão s e n d o fid alg o ), j u s ta e d e v id a m e n te , sc p o d ia im p u ta r-lh e a
144 Antonio Beristain

q u e s tã o dc to rm c n lo : q u e as tais p re s u n ç õ e s e in d íc io s s e ja m
b a s ta n te s para im po r, c d ar ao b iscaiense. p e n a o rd in á ria , ain d a
q u e s e ja de m orte natural.

O Título 34, da Lei IX, proíbe (sob a sanção máxima) ao bis­


caiense que, em Biscaia,

o u s e sacar, n em atirar c o m n e n h u m tiro de p ó lv o ra c o n tra a m i­


g o n e m in im ig o, e m trégua, nem fora de trég u a , so b p e n a d e qu e
q u a lq u e r q u e atire em o u tro c o m tiro de p ó lv o ra te n h a pena de
m o rte sem p ie d a d e , ain d a q u e não te n h a p r o v o c a d o d a n o c o m
tal tiro; e q u e a essa m e sm a p e n a es te ja s u jeita o s e n h o r, ou p a ­
ren te m a io r que o m a n d o u atirar.

A Lei X concretiza “que nenhum ouse, em Biscaia, atear fogo,


intencionalmente, nas colheitas do campo, 011 nas casas, para queimar
em trégua nem fora de trégua, sob pena de morte sem piedade” .
Pouco depois, no mesmo Título, a Lei XVII condena com pena
de morle a quem “ou por arrancar marco em herdade alheia, ou entre
a alheia e a própria, por sua própria autoridade, sem mandado do
juiz ou licença da parte...e pela terceira vez que morra por isso”.s
Durante as monarquias absolutas, segue-se condenando com a
pena capital muitos delinqüentes, sobretudo aos que podíamos
chamar de delinqüentes políticos.
Ao menos uma referência há de se fazer ao banditismo com
relação à pena de morte, tema complexo e que conta com abun­
dante bibliografia. Julio Caro Baroja, escrevendo sobre o banditis­
mo como fato histórico e matéria literária, em páginas dedicadas ao
banditismo italiano no século XIV, refere-se às leis severas ditadas
por Cola di Rienzo, nos meses cíe junho e julho de 1347, e à pena
de morte: de fato, “vários nobres e alguns monges foram executa­
dos e outros, presos” . O banditismo medieval “segue dando-se com
representantes da nobreza e do sacerdócio”, de maneira que não é
de se estranhar que se condenasse à morte e se executassem os no­
bres e os monges.

El fu e ro priviliegios, franquezas y libertadas de los cavaücros hijos dalgo deI


Senorío de Vizcaya confirmados por el Rey don Felipe III, nu estro Seííor y por
los Seííores Reyes sus predecessores. Tradução para o vasco: Pedro de Pujana y
Aguirregabiria. Interpretação foral: José de Estomés y Lasa, Bilbao, 1981, p. 131 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 145

A sanção capital foi praticada na Europa pré-moderna com


freqüência e com brutalidade, embora algumas legislações apli­
cassem como sanção alternativa a mutilação (de resultados também
negativos no campo da política criminal), os trabalhos forçados e a
deportação. O ponto da máxima sanção nos países da Europa oci­
dental deve colocar-se nos séculos XVII e XVIII.
No ano de 1800, ainda se castigavam com a morte na Inglater­
ra mais de duzentos delitos, entre os quais sc encontravam o roubo
de verduras, a associação com ciganos, os danos causados aos pei­
xes nos tanques, o envio de cartas ameaçadoras, o caçar ou pescar
em lugar proibido, cortar uma árvore alheia, ser encontrado armado
ou disfarçado em um bosque.9
A ilustração criticou com sólidos argumentos a crueldade da
sanção penal e de todo o sistema penal tão desumano. Recordemos
os ataques de Montesquieu em suas Cartas p ersa s, já em 1721, os
de Voltaire, etc. Na Espanha, merece ser mencionada a opinião do
beneditino Frei Martin de Sarmiento. O ano 1762, dois anos antes
da aparição do livro Dei delitti e deite p en e, escrito pelo pai dos
abolicionistas, o marquês de Beccaria, Cesare Bonesana (1738-
1798), escrevia assim o Frei Martin:

P o r m ais m a lv a d o q u e se ja u m h o m e m , será m a is úlil v iv o q u e


m o rto h s o c ie d a d e , sc se o s e p a ra d ela cm lu g a r d e fazê-lo tr a ­
balhar. O p e n s a m e n to d e qu e um c a s tig o d e m o rte serve p ara
e s c a r m e n ta r a o u tro s es tá b e m p e n s a d o , m a s não c o r r e s p o n d e na
prática. O q u e se logra n ão c o castig o , p o is a c a d a dia se m u lti­
p lic a m as m a ld a d e s d e to d o gên ero ....

Desde finais do século XVIII, podemos dizer que - de certo


modo - começa a ser superada a dialética ação criminal versus rea­
ção vingativa. Diante da ação criminal, começa-se a contestá-la
mais freqüentemente que em tempos anteriores, com sentido hu­
manitário; em alguns casos, responde-se com uma criação genero­
sa, solidária, mais além do “justamente” devido.
Se na justiça dos povos primitivos o centro era ocupado pelos
deuses-ídolos vingadores, se depois (um depois cronológico só em

9
Daniel Sueiro, La pena de mnerle: ccrcmonial, historia, proccdiinieníos, Alian-
za Editorial, 1974, p. J8.
146 Antonio Beristain

certo sentido) era ocupado pelas leis lógico-racionais, baseadas na


vingança e dirigidas para aterrorizar, agora começam a ocupá-lo o
homocentrismo, a androgênese comunitária, os valores humanos, a
relação eu-tu, como em nossos dias o desenvolve, entre todos,
Martin Buber.
Essa cosmovisão alvorece lentamente; desde alguns decênios,
vem iluminando a razão, o sentimento e as entranhas da humanida­
de em prol da postura abolicionista, que vem ganhando adeptos,
ainda que lentamente, e com demasiadas oscilações e involuções.
Como indício desses retrocessos, constatamos que hoje, em alguns
Estados, é livre o apelar ou não, enquanto já no século XVII a
famosa Ordennance Crimineile de 1670 obrigava a recorrer em
apelação contra toda sentença condenatória à morte. Essa Ordenança
esteve vigente na França, desde sua promulgação até a Revolução.
Na Espanha, Silvela, em 1835, mostra-se totalmente oposto às
posturas de quem deseja abolir a pena capital, porque

é a m a io r, e m a is forte, base q u e s e p o d e e m p re g a r p a ra s u s te n ­
tar o ed ifício social, q u a n d o a m e a ç a cair e m d is s o lu ç ã o pela
c o n ta g io s a m a ld a d e de um de seus indivíduos, ou q u a n d o alguns
deles são tão soberbos, tão a u d a c io s o s que d e s p r e z a m to d o s o s
d e m a is m e io s de co crç ão ; m a s p o r m ais o u s a d o s q u e s e ja m , por
m a is a u d a c io s o s e d e ste m id o s, ja m a is o são até o p o n to de d e s ­
prezar, no interior d o seu c o ra ç ã o , esta terrível p e n a . 1'1

Poucos anos depois, Manuel Pérez y de La Molina, em seu


extenso livro La so cied a d y el patíbulo o la pena de muerfe históri­
ca y filosoficam ente considerada, expõe, ampla e sistematicamen­
te, suas profundas convicções contra a pena de morte, que tem a
seu favor o voto de muitíssimos homens respeitados por sua ciên­
cia e por seus talentos e que se encontra encarnada em todas as so­
ciedades e em todos os povos de que nos fala a história. Comenta
as principais razões que, em sua opinião, mostram a ausência

d a s q u a lid a d e s q u e d ev em ju n ta r- s e ao s b o n s c a s tig o s , e c m c u ja
defesa não s a b e m o s q u e se a le g u e m m a is q u e a rg u m e n to s , inc-

10 Francisco Aguslín Silvela, Consideraciones sobre la necesidad de conservar en


los Códigos y de aplicar en su caso la pena capital, Madri, Í835, p. 219.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 147

ficazcs Iodos, ou porque são negativos, ou porque carecem da


robustez necessária. Um por uni, lemo-los examinado, e um por
um também cremos havê-los deixado todos refutados.'1

Voltam a se manifestar em favor da pena de morte, em fins do


século XIX e começo do século XX, alguns tratadistas - como, por
exemplo, o Pe. Montes:

C o n tin u a m o s , pois, c r e n d o que é, p o r certo, u m a n e c e s s id a d e


m uito terrível, m as, ao fim , u m a n e c e ssid a d e , q u e a J u s tiç a h u ­
m ana v in g u e -s e d o s c rim in o s o s c o m o castig o d o s m a lfeito res,
c ria n d o c á rc e re s e e rig in d o patíb ulos,

apesar de conhecer a crueldade dessa sanção, já que o mesmo é


consciente de que,

talvez, o infeliz te n h a u m a m ãe; u m a m ãe q u e lhe e d u c o u c o m


im en so c a rin h o no seio da religião cristã: um a m ã e q u e, c e r t a ­
m e n te, não lhe e n s in o u a q u e la s c o isa s p elas q u a is a g o ra se acha
e m tal estado; e essa m ãe, ao ter n o tícia da d e s g r a ç a d a so rte d c
seu filho, q u e r vê-lo, q u e r d a r-lh e o ultim o a b r a ç o ; e cheia d e
a n g ú s tia e de d o r d irig e -se ao c árc ere, p e n e tra na c a p e la e se
lança c h o r a n d o n os b ra ç o s d a q u e le filho q u e d e n tro d e p o u c a s
horas será um c a d á v e r e x p o s to aos o lh o s d o p ú b lic o . T a l v e z te-
12
nha filhos, filhos a q u e m a m a c o m to d o seu c o ra ç ã o .

Poucas datas antes da celebração, cm La Coruna, do Segundo


Congresso Penitenciário Espanhol, que se celebrou de 1Q a 10 de
agosto do ano de 1914, apareceu o livro La pena de m uerte, de D.
José Canalejas Rubi o, sobrinho do conhecido estadista D. José
Canalejas y Méndez. Nele se propugna com energia a postura abo­
licionista.
Para esse congresso de La Coruna, Manuel de Cossío y Gó-
mez-Acebo. em seu trabalho Sustitutivo legal de la p en a de muerte.
Régimen penitenciário, Madri, 1914, constata que

M. Perez y de la Molina, La sociedad y elp a tíb u lo , o la pena de muerte históri­


ca v filosoficam ente considerada, I a ed. 1854, p. 375. 23 ed. Madri. 1878.
12
P. Jerónimo Montes, La pena de muerte. v el derecho de indulta, Madri, 1897. p. 3 s.
148 Antonio Beristain

as te n d ê n c ia s c o n tra a p en a de m orte v ão g a n h a n d o te rre n o cm


n o ssa pátria. D ia n te da realid a d e d este fato, n ão p o s s o d e ix a r de
re c o n h e c e r q u e a idéia ab o lic io n ista vai-se im p o n d o ; as c o n tí­
n u a s d is c u s s õ e s na im p re n sa c as te n d ê n c ia s c o n tra a últim a
pe n a m a n ife s ta m -se d ia riam e n te, fa z e m p e n s a r q u e a s u b s titu i­
çã o p a ra os d ireito s civis, c o n s e r v a n d o - s e p a ra o foro d e G u e rra
e M arin h a, se faça h a r m o n iz a n d o o s c a ra c te re s d a p e n a s u b s ti­
tutiva c o m o delito c o m e tid o . E ssas te n d ê n c ia s m a n ife s ta ra m -s c
d u ra n te a ú ltim a e ta p a d o g o v e r n o liberal e, s o b re tu d o , no te m ­
p o d o Sr. C an alcja s, fica n d o s e m re s o lu ç ã o m u ito s e x p e d ie n te s
dc indulto pelas d o u trin a s a b o lic io n is ta s q u e in s p ira v a a política
d a q u e le g o v e r n o . 1'

Foi abolida pela primeira vez a sanção capital, 11a Espanha,


pelo novo Código penal de 1932, publicado na Gazeta (Diário Ofi­
cial) de 5 de novembro de 1932, e entrou em vigor em l 2 de de­
zembro do mesmo ano, mas foi restabelecida pela Lei de 11 de
outubro de 1934 (na legislação especial comum), prorrogada pela
Lei de 20 de junho de 1935. O regime franquista restabeleceu-a
(Lei de 5 de julho de 1938) por considerá-la necessária e porque
“se compaginava com a seriedade de um Estado forte e justiceiro” ,
segundo sua exposição de motivos. Logicamente, essa pena figurou
110 Código penai de 1944 e perdurou até 1978. Desde essa data tem
sido abolida “salvo 0 que dispõem as leis penais militares para
tempos de guerra”, nos termos do estabelecido no artigo 15 da
Constituição de 1978.
O Real Decreto-Lei 45/1978, de 21 de dezembro (BOE 23 de
dezembro de 1978), adaptou ao imperativo constitucional alguns
preceitos legais do Código de Justiça Militar, da Lei Penal e Pro­
cessual de Navegação Aérea e da Lei Penal e Disciplinar da Mari­
nha Mercante.
Assim, desde 1978, a Espanha faz parte dos países abolicionistas
para todos os delitos, exceto para delitos sancionados na legislação
militar e/ou delitos cometidos em especiais circunstâncias - por
exemplo, em tempo de guerra. Os países são: Brasil, Canadá, El
Salvador, Espanha, Holanda, Israel, Itália, Malta, México, Mônaco,

J1
Manuel cie Cossio y Gomez-Acebo, Su.sfiiiitivo legal de la pena de mnerle. Ré-
gim en penitenciário, Madri, 1914, p. 1Ü6.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 149

Nepal, Nova Zelândia, Panamá, Papua (Nova Guiné), Peru, Reino


Unido de Grã-Bretanha, San Mariiio e Suíça. Nos Estados Unidos,
existem legislações diversas em suas normativas estatais a respeito
da sanção capital. Segundo informações privadas e públicas da
Anistia Internacional e de outros documentos, está abolida a sanção
de morte para toda espécie de delito e em todos os tempos nos
trinta países que indicamos: Austrália, Áustria, Cabo Verde, Co­
lômbia, Costa Rica, Dinamarca, República Dominicana, Equador,
Fiji, Finlândia, República Federal da Alemanha, França, Holanda,
Honduras, IIlias Salomão, Islândia, Kiribati, Luxemburgo, Moçambi­
que, Nicarágua, Noruega, Nova Gales do Sul, Panamá, Portugal, Sué­
cia, Tuvalu, Uruguai, Vanuatu, Vaticano e Venezuela.
Atualmente, uns 128 países admitem a sanção capital que se
executa com os seguintes meios: enforcamento, em 54 países; fu­
zilamento, em 35 países; decapitação, em oito países; eletrocussão,
um país e 32 estados norte-americanos; asfixia, I I estados norte-
americanos; estrangulamento, um país; apedrejamento, um país;
não se têm informações de oito países.14
Em uma Declaração perante a Comissão Internacional de Di­
reitos Humanos, efetuada em 26 de fevereiro de 1982, a Anistia
Internacional chamava a atenção deste organismo a respeito do uso
da pena de morte com fins políticos. Na dita Declaração, assinala­
va-se que, das três mil e poucas execuções conhecidas, realizadas
em 1981, mais de 75% se relacionavam com atividades políticas -
reais ou presumidas - das vítimas, e que muitos juízos resultam em
uma sentença de morte por motivos sociopolíticos alheios ao tema
jurídico, e são conduzidos, freqüentemente, de maneira arbitrária e
sumária. Nessa sessão, a Comissão de Direitos Humanos nomeou
um relator especial sobre execuções sumárias ou arbitrárias para
que preparasse um relatório exaustivo sobre a existência e o alcan­
ce de dita prática. Durante 1982, a Anistia Internacional enviou ao
relator especial informações sobre execuções extrajudiciais e penas
de morte ditadas por juízos inadequados em 32 países.15

14
Dennis W iediman e Jerry Kendall, “Assessing the death penalty”, C. ./. Inter­
national, março-abril 1987, p. 10.
' Anistia Internacional, Informe I9 S 3 . Madri, 1983, p. 10.
150 Antonio Beristain

Assistência religiosa

Desde os primeiros séculos, os cristãos vêm-se colocando a


favor dos presos e dos condenados pelos tribunais de administração
da Justiça. Recordemos a atenção principal que têm prestado os
mercedários, os trinitários, os padres Paules e, a partir do século
XVI, também os jesuítas. 0 fundador destes, Ignácio de Loyola, já
no primeiro documento escrito, que descreve as coordenadas da
Companhia de Jesus, a Fórmula do Instituto, aprovada por Júlio III
e inserida nas Letras Apostólicas Exposcit de bit um, de 21 de julho
de 1550, escreve: “ E também é instituída para pacificar os desen­
tendidos, para socorrer e servir com obras de caridade aos presos
dos cárceres e aos doentes dos hospitais”.
No seu livro La p en a de muerte y el derecho a l indulto, o P.
Jerónimo Montes, em 1897, assim se expressa sobre a postura da
Igreja ao longo dos séculos:

J a m a is tentou a Igreja d e sa rm a r o s P oderes dos m e io s dc q u e n e­


cessitam para c o n s e rv a r a o rd em na so cied ad e, c é a prim eira a
reco n h e cer a legitim id ade das p e n a s e o d e v e r dc fazer executar,
q u a n d o são m e re cid as e necessárias. O q u e procurou , d ad as as
c ircu n stân cias d o s tem pos, foi h arm o n izar a ju s tiç a c o m a m iseri­
córdia, o b e m d o s d elinqü en tes c o m o bem d as p e sso a s honradas,
os no bres s e n tim e n to s d o co raç ão c o m o s terríveis m e io s de q u e a
socied a d e se vale para a c o n serv açã o da o rd em . E, po r últim o, por
m u ito s que se ja m os ab u so s que na aplicação do indulto se têm
c o m etid o , estão su ficien tem en te c o m p e n sa d o s c o m su a p ró pria
utilidade: m e n o r mal se p rod uz ao indultar a ccm que não m e re ­
ç am q u e em n eg ar o perdão, p or não existir o direito d e g raça
p a ra s o m e n te u m que por justiça deve ser perdoado.

Seis decênios antes, D. Francisco Agustín Silvela, em suas


Consideraciones sobre la necesidad de conservar en los códigos y
en aplicar en su caso la pena capita!, escritas e publicadas em
francês e traduzidas por ele mesmo, havia recusado o argumento
em favor do perdão de tantos autores, com a seguinte argumenta­
ção:

16 P. Jerónimo Montes, Im pena de muerte y el derecho de iudulío, Madri, 1897, p. 215.


Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 151

Já sc p e rm ite c o n h e c e r ag o ra a im p o rtâ n c ia q u e d a m o s a um a n ­
tigo ad ág io , q u e não d eix aria d e ser útil lá q u a n d o se in tro duziu
na lin g u a g e m : “ M a is vale p e rd o a r a c e m c u l p a d o s q u e c o n d e n a r
a um in o c e n te ” . S e c in d ife re n te p ara a o rd e m so cial c o n d e n a r
ou a b so lv er, não se d e v e vacilar: é n e c e ss á rio a b s o lv e r o s 99
c u lp a d o s e o inocente; m as se d isso d e p e n d e a e x is tê n c ia da o r ­
d e m social, e sc em c a d a caso p a rticu la r foram e m p r e g a d o s to ­
d o s os m e io s p o ssív eis de co n h e c e r, de a v e rig u a r a v e rd a d e , e se
esses m e io s nos d ão em c e m c a s o s o u tro s ta n to s d e lin q ü e n te s,
en tã o não v a c ila re m o s c m c o n d e n á -lo s a to d o s : n o s s o s erro s,
n o ssa s in justiças, se há c o m resp eito a in te lig ê n c ia s s u p e rio re s à
do h o m e m , não d e v e m im p u ta r - n o s .'7

A assistência religiosa aos condenados à pena capital tem tido


mais prós do que contras.1* Merecem ser destacadas algumas pu­
blicações a esse respeito, por exemplo, as dos jesuítas Pedro de
León, Friedrich von Spee (ano 1631) e Jacob Schmid. Em pleno
século XX, também seguem trabalhando no campo da assistência
dos condenados à morte os sacerdotes da Companhia de Jesus.
Acjui merecem ser recordados alguns dados a respeito do padre Ur-
ríza na prisão de Martutene, em San Sebastián, e do padre Moreno.
No periódico parisiense Ce Soir, apareceu parte do diário de
Jean Pelletier, industrial francês, único sobrevivente dos passagei­
ros do Galerna, barco correio-postal capturado na altura de San
Sebastián por seis pesqueiros nacionais em 15 de outubro de 1936.
Entre ou Iras coisas, escreve:

Na noite em q u e fu z ila ra m o s m e u s c o m p a n h e ir o s do G a le r n a ,
ao e n ta rd e c e r, um g u a r d a abriu a p o rta e in tro d u z iu na cela um
sacerd o te... O ca p e lã o d a prisão, o p a d re U rriza; u m h o m e m de
u ns q u a re n ta anos. alto, forte e c o m o ar um p o u c o triste c s im ­
plório. S u a p re s e n ç a m e indica q u e já está p ró x im a m in h a e x e ­
cu çã o . V e m para conl'essar-m e...

Má, d e to d a s as form as, u m a v isita q u e h u m a n iz a um p o u c o


m in h a a tro z so lid ã o .

17
Francisco Agustín S 11vela, Consideraciones sobre la uecesidad de conservar en
los Códigos v de aplicar en sti caso la pena capita!, Madri, 1835, p. 131.
1K
Bernardino M. Hernando, “ La pena de miierte y los cristianos” , Razón y F e,
fevereiro, 1988, p. 149.
152 Antonio Beristain

Sigamos discorrendo

Essas e outras reflexões sobre a evolução histórica (incluindo a


dimensão transcendente da realidade profunda), especialmente no
campo da sanção capital, devem nos animar a seguir discorrendo
no duplo sentido do verbo discorrer.
Temos que andar adiante na práxis, na corrente abolicionista, e
temos que pensar também para frente. Portanto, à luz do até aqui
escrito, parece oportuno formular algumas considerações que, mais
que conclusões, sejam pontos de partida para seguir discorrendo.
Como homens (e - os cristãos - como cristãos), constatamos
que o tempo vai deixando de lado a sanção capital em diversos as­
pectos: diminuindo o número de países que mantêm essa “pena”,
sendo cada dia menos os crimes aos quais a lei impõe a pena de
morte, e menos as sentenças condenatórias (e destas são menos
ainda as que de fato se executam). Esses dados sociológicos corro­
boram o que observamos em outras ocasiões como cristãos: a se­
mente do Evangelho vai frutificando e, paulatinamente, ampliando
seus ramos abolicionistas, vai impulsionando, progressivamente,
novos símbolos dos tempos mais solidários, menos escravizantes,
mais liberadores, mais igualitários, voltados para o perdão e para o
amor, mais que para o castigo e o temor, mais respeitosos à vida e
mais crentes na parábola dos talentos que vão nos aproximando da
utopia do amor ao inimigo, que faz sair o Sol e chover sobre os
bons e os maus no processo de fermentação da sociedade, em ritmo
incessante, aberto e ilimitado da infinitude do amor.
Acertadamente, afirma a Declaração da Conferência Episcopal
dos Estados Unidos (9-111-78): “A história passada demonstra que
a aplicação da pena de morte tem sido discriminatória e tem-se
aplicado em detrimento dos fracos, dos indigentes e das pessoas
pobres do ponto de vista social”.
Com sentido parecido, a Declaração da Comissão Irlandesa de
Justiça e Paz “ Pela abolição da pena de morte”, de 1" de fevereiro
de 1981 (cf. La documentaüon catholique, de 21 de junho de 1981).
Concordo com o professor de ética social da Faculdade de
Teologia da Companhia de Jesus em Chicago, James F. Bresnahan,
quando, ao estudar a pena de morte nos Estados Unidos, conclui
enfatizando a importância da evolução histórica de todo o cultural
Nova crim inologia à luz do direito pena! e da vitim ologia 153

e jurídico: o problema da pena de morte somente poderá ser tratado


adequadamente quando teólogos cristãos relacionarem esse pro­
blema com os da escravatura e do racismo, quando captarem a pos­
sibilidade de uma “evolução da doutrina” a propósito tanto do
primeiro como dos segundos, e quando formularem, em seguida,
uma argumentação precisa acerca do impacto simbólico e “sacra­
mental”, dentro da atual civilização, da intervenção do Estado que
causa a morte. Mas essa argumentação haverá de conectar, antes de
tudo, com as ações positivas que supõem uma valorização da vida,
em especial da vida dos indefesos e dos oprimidos... Somente uma
compaixão e uma misericórdia viva farão que resultem persuasivos
os argumentos de ordem política e jurídica.
Paradoxalmente, a interpretação existencial e o evolucionismo
histórico introduzein-se na teologia em tempos de Bultmann, e,
posteriormente, é a teologia e a moderna exegese da Sagrada Es­
critura (encíclica Divino ajlonte spiriíu) as que facilitam a juris­
prudência e a interpretação jurídica do caminho para a moderna
ciência epistemológica evolutiva e a obrigam a romper a her­
menêutica ontológica - objetiva - estática tradicional.20
No País Vasco, tem-se estudado especialmente o problema da
pena de morte no território de Biscaia, desde o começo do século
XV, época de conflitos de sedição, até começos do século XIX, em
que se promulga o Código penal comum a todo o território espa­
n h o l/1 Nesse período, pode-se afirmar que:

- a s sentenças de apelação desempenham uma função quase que


de perdão, já que, com freqüência, se observa a comutação da
pena de morte por outras, como o desterro, o presídio, as penas
pecuniárias;
- a s sentenças de morte executadas têm sido escassas e, em sua
maioria, referentes a quadrilheiros, ainda que pesquisas mais
exaustivas possam encontrar algumas mais;

19
J. F. Bresnalum, “ La pena de muerte en Estados Unidos". Concilium, Re v. In ­
ternacional de Teologia, 140, Madri. Ed. Cristiandad, 1978. p. 686 s. No sentido
contrário, Emílio Silva, Pena dc morte, afiU Rio de Janeiro, 1986, p. 1(39 ss.
H. G. Hínderling, Recittsnonn und Verstehen. Die M ethodischen Folgen eincr
aUgeineinen H ennencutik fü r die P rin zip kn der Verfassungsauslegung, Bema,
1 9 7 1 ,p p .6 0 e 7 0 .
Maria Victoria Cabieces Ibarrondo, “La pena de muerte en et Senorío de Vizcaya”,
Estudios de Deusto, fase. 63 (julho-dezembro de 1979), p. 295 s.
154 Antonio Beristain

- a autoridade judicial competente não consignava nas sentenças a


fonte legislativa aplicada. Entretanto, a pena de morte está em
concordância com a lei e fundamenta-se sempre na gravidade do
delito cometido que, em geral, se encontra classificado na legisla­
ção.

Ao finalizar o século XX, quando nossos satélites artificiais


riscam os espaços muito mais além do plus ultra, quando nossa
engenharia genética constrói montagens insuspeitas de genótipos e
fenótipos, quando por inseminação artificial logramos vidas tão
maravilhosas, quase diríamos milagrosas, parece impróprio seguir
admitindo a pena de morte. Esta, sob nenhum conceito, cumpre, na
atualidade, os fins essenciais da pena, nem no direito penal miiitar;
portanto, não merece ser admitida nem nominalmente.
Além disso, mesmo supondo que cumprisse, temos de reco­
nhecer que é irreparável e que leva uma sombra corruptora, uma
chama ácida sobre a comunidade, pois, mais que conseguir um
efeito preventivo, contribui para um fato criminógeno. Esses argu­
mentos valem tanto ou mais para os casos de necessidade em tem­
po de guerra.
Atualmente, a teoria e a legislação abolicionista total, para
sempre e em todas as circunstâncias (embora sem absolutização),
contêm um significado pedagógico extraordinário, pois manifes­
tam, de uma maneira eficaz e patente, a necessidade de superar a
cosmovisão repressivo-vingativo-punitiva e a de solucionar nossos
delitos e nossos conflitos divergentes sem aniquilar o adversário,
ou seja, o delinqüente. Respeitando (e enriquecendo-nos com) sua
dignidade de pessoa, seu valor ímpar, seu ser, nosso complemento.
À cosmovisão de Hobbes, do homem-lobo para o homem, podemos
responder com a cosmovisão da solidariedade fraterna e humana,
do amor que impõe respeito e resulta mais eficaz que o medo à pena.
À luz da história e do direito (de hoje e de amanhã), parece ser
obrigatório pedir que se modifique o artigo 15 da Constituição Es­
panhola por tudo que esse artigo, ao admitir a pena de morte para
tempos de guerra, pressupõe, diz e sugere.
A lição dos séculos passados mostra-nos que os militares
não devem ser os protagonistas do nosso presente e do nosso futuro.
Os argumentos abolicionistas contra a sanção capital parecem tão
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 155

convincentes que resulta muito provável que os parlamentares, ao


aprovar este artigo 15 e admitir a pena de morte para tempos de
guerra, fizeram-no movidos por motivos não lógicos nem racio­
nais, senão por motivos mais “sólidos” , mais “ fortes”. Um desses
motivos é a opinião de que em tempos pretéritos se consideravam
os militares como protagonistas de nossa sociedade, como os de­
fensores da ordem e da paz. Mas os sociólogos, políticos e juristas
contemporâneos não admitem essas opiniões para hoje, e menos
ainda para amanhã. Sustentam, precisamente, o oposto. Já disse
Cícero in bello si/enf !eges...cedan( arma togi.s.
Nos anos próximos, não parece que sejam os militares os en­
carregados de construir a convivência pacífica e solidária. Tal opi­
nião carece de fundamento. Os militares fazem guerra, não a paz.
No campo do direito, resulta insustentável a formulação do ar­
tigo 15. pois contradiz as coordenadas básicas do mundo jurídico.
Hoje, a maioria dos especialistas, inclusive os políticos, os sociólo­
gos e os teólogos, pede a total abolição da sanção capital, por con­
siderá-la cruel, injusta, criminógena e retrógrada.”"

22
Hugo M. Enoniiya-Lasalle. lA tlomle va el hom hre?. Sanlander, S;il Terrae,
19S2, p. 135 ss. Robert Cario, “ Le réíablissement de la peine de mort. Considé-
rations d'ordre pénologique et criminologiciue77, em irfem (comp.). i a peine cie
m ort an senil chi troisième niillenaire. H ommage ait Professeur Antonio Beris­
tain. Toulouse. Erès, 1993. p. 123 ss.
Capítulo 7

Vinculação histórica entre


religião e direito penal

Luzes e sombras

Temos que ser conscientes de que a realidade, como um todo que


se possui, não pode se dividida. O que pode ser objeto de divisão é o
trabalho que recai sobre essa realidade e a exposição, a efeitos clarifi-
cadores, dessa realidade.

F. Mu noz Conde, Introducción ai derecho p e n a l, Barcelona. 1975,


p. 185.

Poucos historiadores estudaram, de maneira expressa e com se­


riedade, algo que, para muitos, tem capital interesse: de que modo e
em que grau, ao longo dos séculos e atualmente, a religião incide,
positiva e negativamente, no direito penal, e também este naquela.
Damos por certo que a religião permeabilizou toda a cultura,
sem excluir sua parcela jurídico-punitiva. Também que a cultura
remodela a religião. Crenças novas forjam uma cultura nova, como
aconteceu com o islamismo, criador de uma civilização nova comum
acima de todas as diferenças raciais, econômicas e geográficas.
Algo parecido pode-se afirmar do budismo. Um olhar retrospectivo
sobre a história da vitimação própria e alheia deixa entrever o que
o ser humano proíbe e perdoa em cada direito, mito e credo.' As
ambivalentes influências da religião estática ou dinâmica (na ter-

1 E. Schillebeeckx, Cristo y los cristianos. Gracia v liberación, Madri, Cristiandad.


1982, trad. A. Araniayona, p. 653 ss.
158 Antonio Beristain

minologia de I I. Bergson) brotam inseparáveis das três funções que


costumam designar esta: impor (mais que oferecer) uma cosmovi­
são, ministrar alguns imperativos morais e auxiliar ou alienar os
desvalidos. A pessoa “ ao relento”, desmoralizada, desiludida, pode
entrar na catedral ou 11a capela campestre e falar a um círio aceso e
a um báculo que dêem sentido e força ao seu peregrinar. Também
pode a religião ser o ópio dos marginais."
Já nas sociedades primitivas, patentiza-se que
todo o sistema social (das comunidades selvagens) está baseado
na mitologia, na teoria nativa da proeriação, em algumas de suas
crenças mágico-religiosas, e penetra todas as instituições e os
costumes da tribo/
Ao longo da história, em todos os povos, 0 religioso cria e recria
o campo cultural e, mais ou menos, o jurídico-penal-criminológico-
vitimológico. Contra o que podem opinar certos fundamcntalistas de
algumas religiões e, no extremo contrário, certos ateus exaltados,
convém analisar e comentar tanto os efeitos criminógenos como os
preventivo-ressocializadores, de intensidade diversa, das igrejas na
vida comunitária, e especialmente no âmbito jurídico-penal. Com
relativa freqüência, as hierarquias religiosas contribuem para manter
costumes e situações tradicionais que impedem o progresso da so­
ciedade. Como dizia um político italiano, se o cristianismo não ti­
vesse sido criticado e, inclusive, perseguido, muitos códigos
penais ainda manteriam tipificado como delito o adultério, o d i­
vórcio, a blasfêmia, todo tipo de aborto... Compete às investigações
científicas avaliar as guerras religiosas, as tristes épocas da caça às
bruxas, a origem eclesiástica do fanatismo de certos movimentos
terroristas na Itália e na Espanha.4 A Comissão Internacional que

2
E. Arreaza, “ Algunas aproximactones al estúdio de la religión como control
social” , C apifu/o crim inológico, n‘J 11-12, Maracaibo (Venezuela) 1983-1984,
p. 62; L. Hulsman e J. Bemal de Celis, Peines penUtes. Le systèm e penal en
qncstion, Paris, Le Cenlurion, 1982, p. 32 ss.
B. Malinowski, Crimen y costumbres en la sociedad salvaje, irad. J. y M. T.
Alier, 6a ed.. Barcelona, Ariel, 1982, p. 92.
4
J. Caro Barojn, “ El terror desde un punto de vista histórico”, em A. Beristain. J.
L. Cuesta (comps.). Cárcel de mujeres. Ayer y hoy de la nnijer delincuenie v
via im a , Bilbao, Mensajero, 1989, p. 15 ss., p. 30 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 159

tem analisado a violência terrorista do ET A, reconhece que a Igreja


Católica no País Vasco não tem cumprido, suficientemente, sua
missão diante do ET A. Por isso, os membros da comissão pedem
que a recusa (contra o terrorismo), por parte da Igreja, deva ser
“ mais cumprida e reforçada’7.5 Esta comissão, contratada pelo Go­
verno da Comunidade Autônoma do País Vasco (Espanha), em 7 de
junho de 1985, estava constituída por Sir Clive Rose - presidente -
(Reino Unido), pelos professores Franco Ferracuti (Itália), Hans
Horchem (Alemanha Federal), Peter Janke (Reino Unido) e Ja-
cques Leauté (França).
O sociológo Joseph Fitzpatrick constata que os programas re­
ligiosos de prevenção são eficazes se influenciarem séria e inten­
samente no clima da comunidade. Ao contrário, surtem pouco
efeito, ou efeito contrário, porque se limitam à mera informação
catequética e a atividades de mais ou menos breve duração. A reli­
giosidade somente consegue evitar a delinqüência em indivíduos
de convicções profundas, as quais também a comunidade professe
publicamente, sem cair em fanatismos e fundamentalismos/’
Entre as propostas positivas da religião, destacamos uma que
podemos qualificar de paradigmática no sentido kuhniano, não no
platônico; ou seja, no sentido da norma das revoluções, de ruptura
de estmturas, de superação dos marcos estabelecidos. Concretamente,
durante os últimos anos, em alguns países do Leste europeu, a reli­
gião tem contribuído notavelmente para destroçar o sistema políti­
co-social. A religião que se achava dentro da cosmovisão marxista,
que era recusada por ser “metafísica”, “contra-revolucionária”, cri-
minógena e delitiva, motivou e exigiu o término das estruturas
ditatoriais sociais, culturais, políticas, criminológicas e jurídicas.
A religião, em determinadas circunstâncias, ainda que sejam adversas,
ultrapassa o umbral epistemológico, o senil episfem ologique, de
Gaston Bachelard.

5 Comision Internacional. Informe sohre la violência en el Pais Fasco, Londres,


5 de março de 1986, seção III, capítulo 11, p. 198.
G. Kaiser, “ Religión, Verhreclien und Verhrechenskontrolle” , em J. Kíirzinger,
E. Miiller (comps.), F eslschrift j'i\r W o lf M id d en d o rff Bielefeld, Gieseking,
1986, p. 143 ss.
160 Antonio Beristain

Não parecem necessárias pesquisas científicas para provar que


as pessoas que vivem em “comunidades eclesiásticas” infringem
menos as leis penais que o resto dos cidadãos. Basta visitar as ins­
tituições penitenciárias e folhear as estatísticas judiciais para cons­
tatar que a porcentagem de pessoas consagradas em comunidades
clericais condenadas pelos tribunais é muitíssimo menor que a das
pessoas laicas. Mas também tem havido, e há de haver, delinqüentes
entre as pessoas “consagradas”.
Tampouco resulta difícil provar que os jovens que vivem com
pais de equilibradas convicções e práticas religiosas se lhes imitam
nesse campo, delinqüem menos. Parece lógico, pois a sana religio­
sidade fortalece o superego, a consciência, na luta contra os impulsos
e os instintos tendentes à infração. Entretanto, quando falta esse
equilíbrio ou essa sanidade, os especialistas mostram que o religioso
pode ter efeitos contrários à prevenção geral e à prevenção especial;
pode contribuir para que a criminalidade aumente e para que os
delinqüentes reincidam. A cada dia se constata mais a necessidade
de levar a cabo trabalhos acerca das “luzes e sombras” que o di­
reito penal tem recebido da religião, não em geral, mas em campos
concretos, como a eutanásia, a delinqüência relacionada com as
drogas, a ecologia, a criminalidade feminina, as instituições peni­
tenciárias ou a servilídade política de certas hierarquias religiosas.

A poena cullei

Desde os tempos pré-históricos, as religiões têm alimentado a


matriz cultural de onde brotaram as penas mais severas, especial­
mente nas religiões monoteístas (judia, cristã, islâmica), ainda que
também, paradoxalmente, e em tom menor, perdões generosos,
como indicaremos nestas páginas. Por motivos de limitação espa­
cial, omitimos comentar atentamente como as ciências jurídico-
penais têm influído beneficamente nesses temas sobre a teologia e
sua hierarquia. Basta uma referência aos livros de Beccaria, no sé­
culo XVIII (Dos delitos e das penas), e de M. Foucault ( Vigiar e
punir) em nossos dias.
Em muitas sociedades “primitivas” das que temos notícia, a
autoridade (que costuma reunir 11a mesma pessoa o sacerdote, o
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 161

juiz e o rei) impõe penas cruéis e vingativas — principalmente a


pena de morte —contra os infratores (e. principalmente, contra seus
familiares) de determinados costumes sociais, especialmente as
relativas ao culto a deuses, a pie/os de que fala Cícero. Múltiplos
mitos e usos litúrgicos coincidem em atribuir ao representante da
divindade a missão de julgar e castigar severamente a quem viola
as normas estabelecidas. Doutrinas e crenças eclesiásticas fomentam,
pré-cientificamente, uma tendência excessiva a castigar, e mesmo a
fazer sofrer, para que o delinqüente expie sua ofensa à divindade,
seu pecado, que na política teocrática primitiva (e não tão primitiva)
coincide com o delito, com a marginalização e, também, com a sim­
ples enfermidade. Mais ainda se é contagiosa, como a lepra. Diante
do cego de nascimento, os apóstolos perguntaram a Jesus: “ ...este
nasceu cego por seu pecado ou pelo pecado de seus pais?” .
A Lei de Talião, como fronteira à sanção ilimitada, é fruto de
muitos séculos de evolução progressiva anti-religiosa, em certo
sentido. Com ela começa a história do direito e da ciência penal.
É a hora zero, na formulação de Ernst Bloch.
Platão manifesta-se na linha expiacionista, mas também pede
que a pena sirva para a ressocialização. Em seu Górgias, indica a
necessidade da sanção, quando escreve: “Aquele que foi injusto e sem
piedade deve ir ao cárcere da ex pi ação e do castigo que se chama
Tártaro” (Górgias, 523 b); “Se alguém faz mal em alguma coisa, deve
ser castigado e satisfazer a culpa por meio do castigo” (Górgias, 521
b). Mas em Proíágoras destaca mais o aspecto pedagógico da sanção.
Muitas respostas sociais ao delito têm brotado e vivem marca­
das por linhas, indubitavelmente, sacras. Assim, por exemplo, a
poena ca Hei, de multissecular e freqüente aplicação, com sua ampla
e rica simbologia da serpente, do galo, do cachorro e do macaco”.
Durante muitos séculos, as religiões, especialmente o cristia­
nismo e o islamismo, têm propugnado, excessivamente, a teoria
defensiva (“sem a pena tudo se perdoaria”, omnia perturbareníur,
repetem os teólogos renascentistas) junto com a teoria e a práxis

L. M. Diez de Salazar Fernandez, “ La ‘Poena Cullei’, una pena romana en


Fuenterrabia (Guipúzcoa) en el siglo X V I”, Anuário de História do Direito Pe­
na l, tomo LIX, Madri, 1989, p. 581 ss.
162 Antonio Beristain

retributiva.8 Como prova, basta recordar a Inquisição ou o “índice”


de livros proibidos, que sobreviveu até o Concilio Vaticano II, ou
ler o Corão (sura 3, 105 s.), quando profetiza com severidade: “ Es­
ses tais terão um castigo terrível...” . E aos descrentes: “ Provar o
castigo por não haver acreditado”.
O poder eclesiástico pretende controlar tudo, até mesmo qu e‘
não se manifestem idéias ou opiniões ou doutrinas diversas, “heré­
ticas”.9 Se, apesar disso, se difundem, faz tudo que está em suas
mãos para que os fiéis não as conheçam. Por isso, proíbe, sob pe­
cado grave, ler publicações que se apartam da doutrina católica,
com critérios tão rígidos que, às vezes, condena livros escritos por
pessoas que poucos anos depois serão canonizadas, como são Pe­
dro Canísio ou são Roberto Belarmino (seus Coniroversiae, de
J586). Com muito mais razão, se inclui no “ índice” o ímpar livro
de Beccaria, que acabamos de citar.
Algumas igrejas mantêm ainda hoje teorias e práticas excessi­
vamente retribucionistas, especialmente em certos campos, como a
guerra (“santa”) e a moralidade sexual. As idéias em prol da '"‘n-
gança e do sacrifício expiatório seguem vigentes, por exemplo, em
criminólogos-jurislas muçulmanos e em alguns defensores católi­
cos da sanção capital, como Pio XII, G. Ermecke e P. Bouzat.10 No
conflito bélico do Golfo Pérsico (janeiro-fevereiro 1991), Saddam
Hussein a pó ia-se na religião para alienar seus cidadãos e, mais ain­
da, suas tropas no ódio mortal contra os inimigos.
Sem perda de tudo o anteriormente dito, dentro de não poucas
comunidades religiosas se tem pedido, por motivos muito diversos,
que as penas não se imponham por vingança; nem sequer que se
apliquem ao pé da letra, mas sim com eqüidade e moderação, e re­
correndo à epiquéia. Mas também ao perdão.

A. Beristain, “ Ecumenismo hislórico en derecho penal (La pena-retribución en


los teólogos renascentistas)", em idem. De leyes penai es y de D ios legislador
(Alfa v o m ega d o controle penal hum ano). Madri, Edersa, 1990, p. 25 ss.
9
R. Zaffaroni e A. 13. Oliveira, ‘ignacio, Cícero y el poder de! amor” , em J. Caro
Ba roja e A. Beristain (com ps.), Ignacio de Loyola, M agister Artitnn en Paris,
1528-1535, Kutxn-Caja Gipuzkoa San Sebastián, 1991, p. 723 ss.
10 P. Bouzat, “Pourquoi un catliolique ]>eut être partisan de la peine de mort”, Ignacio
de Loyola. Magister Artimn..., p. 147 ss.; A. Beristain: sub voce, “Pena de muerte”,
Nueva Enciclopédia Jurídica., Barcelona, Ed. F. Seix, 1989, t. XIX, p. 388 ss.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 163

Desde a Ilustração até hoje. a doutrina e a legislação penal


vêm humanizando as respostas ao delito. Nesse caminho, encon­
tram sólidos apoios, mas também fortes o posições, nas religiões
cristã, judaica e islâmica.
As ciências penais e criminológicas estão conseguindo crodir a
cosmovisão primitivo-expiacionista de muitos mitos e ritos transcen­
dentes a respeito da sanção, mas ainda tropeçam em sérios obstá­
culos dogmáticos e religiosos em direção à prevenção de sanção
racional ao crime. Especialmente ao que se refere à culpabilidade
jurídico-penal, tão próxima - embora não-idêntica - da culpabili­
dade moral, como desenvolve R. Moos, ao comentar as duas caras
do único deus Jano: pena e culpabilidade.11

Indultos e anistia

Depois do indicado a respeito de como as diversas religiões,


umas mais que outras, continuam insistindo na necessidade de cas­
tigar o delinqüente para que expie sua culpa, sua ofensa à divinda­
de, que se confunde (cada vez menos) com o delito; e como tem
influído na (e tem recebido influências de) ciência e 11a práxis do
direito penal, parece oportuno dizer algo a respeito da evolução, ao
longo da história, com múltiplos altos e baixos, da maioria das re­
ligiões que se mostram partidárias de mais ou menos indulgência
aplicável no policial, processual, penal, penitenciário e pós-
penitenciãrio. Também neste aspecto as igrejas resultam - não
poucas vezes - beneficiadas das doutrinas e legislações penais, as­
pecto que ultrapassa o marco de nosso tema.
1^
Quanto ao perdão, " merece ser estudado o Código de Hamit-
rabi, passagens do Antigo c, mais ainda, do Novo Testamento.

" R. Moos, “Positive Generalpravention und Vergeltung", S íra fred u , Strafpra-


zessrecht und Kriminologie, Wein, Feslsclirift für F. Pallin. Manzsche Verlag,
1989, p. 292 s.; J. Cuetlo Conlreras, “ ü i influencia de la teologia en el dereclio
penal de la culpahilidad” , Criminologia y derecho penal... p. 483 ss.; J. Perecia,
E! "Versari in re Hlic ita ” en la doefrina y en el código p en a l, Madri. Instituto
Editorial Reus, 1948.
12
A. Beristain, ‘'Criminologia y religión”, Política crim inal y reform a p en a l. Ho-
menaje ao Prof. Dr. D. Juan dei Rosai, Madri, 1993, p. 171 ss.
Antonio Beristain

Também o Corão. Limitamo-nos a umas breves referências, come­


çando pelo código mais antigo do mundo, do século XVII antes de
Cristo, que nos artigos 129 e 169 estabelece:

S e a e s p o s a d e uni s e n h o r é s u r p r e e n d id a d e ita d a c o m o u tro


h o m e m , os atarão (um ao ou tro) e os jo g a rã o à água. S e o m arid o
da m u lh e r d e s e ja r p e rd o a r a s u a m u lh er, en tão o rei p o d e (p o r
su a vez) p e rd o a r o seu súd ito . Se c o m e te u c o n tra seu pai u m a
falta (o b a s ta n te ) g ra v e para ser ex c lu íd o da h eran ç a, (os ju iz e s )
p e rd o á -lo -ã o na p rim eira o casiã o ; se in c o rre r e m falta g ra v e
pela s e g u n d a vez, o pai p o d e r á ex clu ir seu filho da h era n ç a .

A uma instituição, vigente já no Antigo Testamento, devíamos


prestar especial atenção: o direito de asilo (D enteronômio, capítulo
19). Os templos, e algumas cidades israelitas, gozam do privilégio
de acolher os delinqüentes e os marginais perseguidos pelo poder.
Isso era realidade há muitos séculos e segue sendo agora. A Viçaria
de Santiago do Chile, durante os anos de ditadura de Pinochet, tem
servido de esconderijo e asilo a muitas pessoas. E também na vida
cotidiana existe um direito de asilo, de tom menor, mas sumamente
importante. Refiro-me aos costumes cristãos, da família, da paróquia,
dos cidadãos, de acolher e atender aos marginais; especialmente nas
igrejas e nos conventos.13
Entre os profetas, destaco Isaías, quando proclama:
E is aqui o meu serv o , meu esco lh id o ... não g rilará, n ão falará
forte, nem le v a n ta rá su a v o z na praça; não r o m p e rá a c a n a q u e ­
brada, nem apagará a c h a m a esfum açante... para abrir o s olho s d o s
c e g o s, p ara tirar d o c á rc e re os p re s o s (cap . 42, v e rs íc u lo i ss.).

De modo semelhante, o sulmista define Jeová como “o pai dos ór­


fãos, o defensor das viíivas... que dá casa aos desamparados, que
põe em liberdade os que estão em cativeiro” (salmo 68, versículo f>
s.), pois, “como um pai sente ternura por seus filhos, sente Jeová
ternura maternal (em hebreu rechen, en latim misericórdia) por to­
dos seus fiéis; porque ele conhece nossa massa, recorda-se que so­

° A . Beristain. “ La victimologia creadora de mievos dereclios humanos” , em A.


Beristain, J. L. de la Cuesta (comps.), Victimologia, San Sebastián, Ed. Univer-
sidad dei País Vasco, 199Ü, p. 225.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 165

mos de barro” (salmo 102, versículo 13 ss.). Em Israel, a cada sete


anos se perdoam as dívidas (Deuteronômio, cap. 7, 15) e se liberta
o escravo (Exodo, cap. 21).
Do Novo Testamento basla recordar a parábola do filho pródi­
go e o sermão da montanha ou as bem-aventuranças (Evangelho de
Mateus, capítulo 5). que obrigam a perdoar sempre, “ setenta vezes
sete”, a todos, mas também aos aulores dos crimes mais atrozes.
Comentando esses e muitos outros textos bíblicos, Paul Ricouer e
Eugen Wiesnet concluíram que nossa infinidade e culpabilidade
nos exigem imitar o olhar compassivo, maternal, de Deus. Também
o pedem aos juizes.14
Recentemente, a encíclica Dives in m isericórdia (30 de no­
vembro de 1980), do pontífice romano loão Paulo II, desenvolve
amplamente esses temas. Merece citar-se, ao menos, o parágrafo
seguinte: a misericórdia,

e n tre ta n to , tem a fo rça d e c o n fe rir à ju s tiç a u m c o n te ú d o n o v o


que sc ex p ressa d a m aneira m ais singela e plen a no perdão. Este.
c o m efeito , m a n ife s ta que, além d o p ro c e s s o de c o m p e n s a ç ã o e
de tré g u a q u e c e s p e c ífic o da ju s tiç a , é n e c e s s á rio o am o r, para
qu e o h o m e m sc fo rtifiq u e c o m o tal. O c u m p r i m e n t o d a s condi*
ç õ e s da ju s tiç a é in d isp e n sá v el s o b r e tu d o p a ra q u e o a m o r p o ssa
rev elar o p ró p rio rosto. A o an alisar a p a rá b o la d o filho p r ó d ig o ,
te m o s c h a m a d o j á a ate n ç ã o so b re o fato de q u e a q u e le q u e p e r ­
d o a e a q u e le q u e é p e r d o a d o se e n c o n tr a m e m u m p o n to e s s e n ­
cial, q u e é a d ig n id ad e, vale dizer, o v alo r e s s e n c ia l d o h o m e m
q u e não p o d e d e ix a r-se p e rd e r e cu ja a fir m a ç ã o ou cu jo r e e n ­
c o n tro é fonte da m ais g ra n d e alegria.

Resta dizer que esse perdão não supõe a negativa da sanção


justa e necessária. Sim, comprova que a justiça levada aos últimos
limites pode abarcar uma grande injustiça, como indica o adágio
latino sum m wn iits, sw nm a iniuria. As igrejas, atualmente, dão
pouco apoio às severas doutrinas modernas do ju s t desert, a não ser
os exegetas fundamentalistas que, por desgraça, não faltam.

E. Wiesnet. Die verratene Versòhmmg. Zuni Verhaltnis von Christentum und


St rafe, Dusseidorf, Pa t mos Verlag, 1980, p. 26 ss.; J. Anton Oneca, “ El perdón
judiciar’. Revista de Ciências Jurídicas y Sociaies, Madri, 1922.
166 Antonio Beristain

Entre os vários mananciais do perdão, merece especial menção


a capacidade que a contemplação dá a seus iniciados para captar,
sob a capa (muito espessa às vezes) de ações criminais, no mais
fundo de toda pessoa, sem excluir do delinqüente a riqueza ímpar
de sua dignidade humana, de tão alto valor que em sua comparação
os delitos passam desapercebidos. As religiões ensinam seus fiéis a
aproximar-se ao máximo do irmão, onde somente há dignidade e
amor. Implantam em seus crentes uma pupila misteriosa, pene­
trante, que descobre a semente de Deus dentro do barro de todo
próximo, inclusive do criminoso. Diversas liturgias sacras fomen­
tam a clemência e o indulto. Assim, nos países católicos, por moti­
vo da nomeação do novo pontífice romano, costuma-se conceder
indultos gerais, e durante a Semana Santa outorga-se, graciosa­
mente, a liberdade a alguns presos. Também o Código de direito
canônico de 1917, em seus cânones 2236-2239 ss. (como o atual,
de 1983, em seus cânones 1355, 1356, 1357, 1362), estabelece am­
plas normas para a remissão das penas canônicas.
Em todas as religiões se encontram, mais ou menos, cosmovi-
sões similares. Entre os judeus, adquire solene celebração o dia
anual do perdão. O Corão mostra, repetidamente, “ Deus, o Com­
passivo, o Misericordioso”, e na sura 3,103:

A ferrai ao pacto de D eus, to d o s ju n lo s, sem vos d iv id ir. R e c o r ­


dai a g ra ç a q u e D eu s vos d is p e n s o u q u a n d o é re is in im ig o s : re­
co n cilio u v o sso s c o ra ç õ e s e, por S ua g raça, v os tr a n s f o r m o u c m
irm ão s; es tá v e is à beira d e um a b ism o de fo go e vós vos livraste
dele.

Permita-nos concluir que essa inclinação das pessoas e insti­


tuições espirituais para o perdão encontrou, encontra e encontrará
acolhida em todas, ou quase todas, as legislações estatais e na prá­
tica dos tribunais de justiça.
Também na Espanha, segundo a Constituição de 1978, em seu
artigo 62. i, “cabe ao rei exercer o direito de graça com acertos à
lei, que não poderá autorizar indultos gerais”. Concrelamente, o
artigo 2 de nosso Código penal (espanhol), em seu parágrafo 2S,
pede aos tribunais que acudam
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 167

o g o v e rn o , e x p o n d o o c o n v e n ie n te , sem p re ju íz o de e x e c u ta r a
se n te n ç a , q u a n d o d a rig o ro sa a p lic a ç ã o d as d is p o s iç õ e s d a lei
resu ltar p e n o s a u m a a ç ã o ou o m is s ã o q u e, a juízo d o tribu nal,
não d ev eria ser, o u a p e n a fora n o ta v e lm e n te e x c e ss iv a , a t e n d i­
d o s os g rau s d c m a lícia e o d a n o c a u s a d o pelo delito.

E, nos termos do artigo 112: “A responsabilidade penal se extin­


gue: ...por indulto”. Afortunadamente, os juizes recorrem, com re­
lativa freqüência, a esta solução “graciosa”, 110 melhor sentido da
palavra. Um exemplo recente nos oferece sentença do Tribunal Su­
premo espanhol, de 7 de dezembro de 1990 (Recurso número
4.221/87), que pede o indulto para o autor (condenado) de um de­
lito de aborto.15 O governo concedeu-o poucos dias depois.
Todo perdão justo que brota de - e encontra acolhida na - re­
ligião e/ou no direito penal ajuda a superar os dualismos de muitos
crentes e juristas. Como indica Eduardo Correia, urge

b u s c a r n o v o s c a m in h o s e p is te m o ló g ic o s q u e s u p e r e m a ccsrtio -
v isão das p e s s o a s q u e s o m e n te c o n h e c e m a tese e a a n títese, o
c o rp o e a a lm a , a n atu re za e o espírito, a re a lid a d e c o v alo r, o
p o d e r e o d e v e r, o u c o m o q u e ira m q u e se c h a m e m , e q u e lo g i­
c a m e n te se a p e g a m a seu m é to d o puro. a se u s c o n c e ito s c lá s s i­
cos, a su a a rg u m e n ta ç ã o seg u ra.

Correia prefere, pelo contrário,

q u e o j u r i s t a p e n a l is ta q u e , a lé m d a s a n t i n o m i a s , p r o c u r a t a ­
te a n d o ( c o m o um c e g o ) u m a u n id a d e s u p e rio r, não te m g u ia s e ­
g u ro q u e lhe p r o te ja c o n tra os p a sso s e rra d o s , m a s ele e s o m e n te
ele p o d e e s p e ra r q u e u m a hora feliz c h e g u e q u a n d o lhe vai a p a ­
re c e n d o u m a s e n d a p a ra um p o n to alto, a p artir do qual se s u ­
p e re m to d a s a s a p a r e n te s a n tin o m ia s em u m a s ín te s e c ria d o ra d e
u m a c o n c e p ç ã o unitária d o m u n d o e c o m p r e e n d a q u e v iv e r c o m

l5STS, 7 de dezembro de 1990 (Recurso nü 4221/87), relator: Exmo. Sr. D. E.


Ruiz Vadillo.
168 Antonio Beristain

os outros em sociedade é não só estar com eles. senão tê-los


dentro de si cm um todo.16

Tam bém avançam por novas orientações humanistas, não-


dualistas, das recentes inovações da lingüística, Cobo e Vives
Antón, que consideram a ciência jurídico-penal uma ciência
herm enêutica.17
Essa fonte de perdão utópico, desde a árvore da ciência da
“ reunião” do bem e do mal, espreita já na concepção histórico-
metaíísica do delito como gênese da justiça que, há 27 séculos,
formulou ou insinuou Anaximandro (610-547 a. C.) no famoso
fragmento comentado atentamente por Heidegger, em seu Ho/zwege:

Mas de que é o nascer para as coisas, também o subtrair-se a


este nasce segundo a necessidade; a saber, se dão razão c pena
entre si para a injustiça segundo a disposição dos tempos (tra­
dução literal).18

Em muito parecida linha, um século depois, Heráclito dirá:


“Tudo flui” . “Não saberiam o nome da justiça se não existissem
estas coisas” ...”0 contrário se põe de acordo; e do diverso a mais
linda harmonia, pois todas as coisas se originam na discórdia”.19
Fica, pois, patente a complementariedade não-dual, transcendente.
Portanto, a justiça humana é, necessariamente, dialética, como
reflexo da reparação, reconciliação divina: a Nèmesis suscitada
pela Hybris humana. Em resumo, quando julgamos e sancionamos,
sem nos deixar levar pela vingança animal, deparamos com a uto­
pia do perdão harmônico e com a não-dual idade. O direito penal
nunca foi e nunca será uma ciência social livre de valores (IVerífrei).
Ao conlrário, pode-se admitir ou elaborar algo assim como um di­

16 E. Correia, “As grandes linhas da reforma pena!”. Jornadas de Direito Crimi­


nal, O novo Código Penal porluguês e legislação complementar, Lisboa, Ed.
Ins. Padre Antonio de Oliveira. 1993, pp. 20, 32.
17
M. Cobo e T. Vives Anton, Derecho penal, parte general /, 33 ed., Valência,
Tirant lo Blanch, 1990, p. 85.
Itf
Heidegger, Sendas perdidas, trad. J. Rovira Annengol. Buenos Aires, Ed. Losada,
1960; Cf. J. L. Lopez Aranguren, Etica. 3L'ed.. Madri, Alianza, 1983, p. 249 ss.
19
Heidegger, Sendas perdidas, p. 299 s., p. 302 s., p. 311.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 169

reito penal das religiões universais, contanto que se acomodem e se


atualizem seriamente as condições formuladas por Max Weber, em
seu livro A ética econômica das religiões universais (1915).
Por fim, todas essas religiões não perderão tempo se escutarem
mais (e dialogarem mais com) os operadores e os estudiosos do
controle social nos tribunais e nas universidades. Recordem que
um teólogo pouco suspeito - pois tem mais de 57 anos e ainda não
foi condenado pelo Vaticano - José Ignacio Gonzãlez Faus, afirma
que “quando a religião é denominação segregante e está à margem
da justiça, converte-se em cova de bandidos, por mais que invoque
a Deus e creia possuí-lo” .20 Por outro lado, às mulheres e aos ho­
mens do direito penal convém que se auto-auscultem a respeito de
seus conhecimentos e sentimentos do mistério diacrônico e sin-
crônico, ao longo da história universal.

J. I. Gonzãlez Faus, La hm uanidad ntieva, enxayo de cri.siologia. Barcelona,


Actualidad leo lógica espanola, 1974, p. 84 ss.
Capítulo 8

Justiça penal recriadora, da


retributiva à restaurativa

Uma terceira cosmovisão da justiça penal

One might vtew pure reparative justice models, as utopian, but


the current crisis of the punitive criminal justice system, for instance in
the United States of America, shows that a reparative justice approach
inight be a way to solve that crisis. The winners o fs u c h an approach
wilt be the victims, the offenders, and society in general.

Elmar Weitekainp, “Reparative justice; towards a victim oriented systenf’,


European Journal on Criminai Policy and Research, 1993, p. 89.

Atualmente, em linhas gerais, pode-se dizer que a ciência total


do direito penal, incluindo a criminologia, avança por duas auto-
estradas (com diversas “ faixas” dentro de cada uma delas):
a) a denominada ju stiça crimina1 retributiva, que começa seu
iter na culpabilidade e tem como meta a pena como sofrimento es-
tigmatizante contra o delinqüente, e
b) a ju stiça crim inal restauradva, que dirige seus passos, prin­
cipalmente, para a análise dos danos que a criminalidade causa no
sujeito passivo dos delitos (a vítima) para outorgar-lhe sua justa
reparação.
Para descrever esses dois modelos (no item II, “Linhas funda­
mentais das cosmovisões retributiva e restaurativa”), escolhemos
como base os 19 princípios característicos dessas duas concepções
da justiça penal, resumo da exposição de J. David McCord, Identi­
fication o f core values. Is it possib/e? IVhat might they be?, apre­
172 Antonio Beristain

sentada no International Symposium on the Future of Corrections


(Ottawa, 12 de junho, 1991) (manuscrito que agradeço ao prof.
Tony Peters).
Depois (no item 11, “ Comentários a favor da justiça recriado-
ra”), analisamos e comentamos os três primeiros traços desses dois
paradigmas do ius puniendi e, d e s d e / m ^ v eles, tentamos elaborar
outros tantos traços, os quais nos permitimos denom inar nova
justiça criminal “recri adora”, que consideramos mais de acordo
com a criminologia, a antropologia, a sociologia e a vitimologia do
terceiro milênio.
Talvez nossos comentários esqueçam alguns importantes as­
pectos e contribuições da justiça restaurativa, ou transladem às
recriadoras considerações e temas que esse ou aquele especialista
tenha incluído já na restaurativa, pois, dentro desse modelo, se en­
contram cosmovisões muito diversas, algumas delas desconhecidas
por nós. Esperamos que o leitor desculpe as omissões em que po­
demos incorrer.
Estas páginas pretendem, por um lado, patentear a grande dife­
rença e o grande progresso que se colocam entre o sistema retribu-
tivo e o restaurativo da justiça criminal, e, por outro, acrescentar
reflexões àquelas que dão a entender que conviria falar de justiça
“recriativa” mais que de justiça “restaurativa”, por vários niotivos,
e com interessantes conseqüências.
Desejamos algo mais que modificar, suprimir ou incluir mui­
tos artigos nos Códigos, que reformem e melhorem as normas
substantivas e processuais do ius puniendi. Buscamos outra meta
diversa, avançamos em outro nível. Apoiados em eminentes pena-
listas, processualistas, criminológos e vitimólogos de aqui e acolá,
tentamos algo muito diferente: insuflar um novo espírito na justiça
penal de amanhã; observá-la e recriá-la sob outra perspectiva: a das
vítimas como protagonistas da justiça penal e de seu insuperável
processo.
Damo-nos por satisfeitos se alguém concluir que a rubrica
“ restaurativa” deve ser substituída pela palavra “recriadora” . Essa
nova denominação, seriamente argumentada e desenvolvida, pode
contribuir para baixar o sentido vindicativo, expiacionista e estático
da tradicional justiça criminal, da opinião pública, da policial, da
judicial, da penitenciária e, também, das pessoas que, aUruistica-
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim ologia 173

mente, colaboram como voluntárias e/ou benévolas. Também pode


ensinar a todos a olhar menos o passado, a retribuição e a restaura­
ção conservadora, porém mais o futuro dinâmico e recriador.
Convém adiantar uma observação premonitora para evitar
posteriores mal-ententidos: quase sempre que falamos de delitos e
delinqüentes nos referimos aos que, geral e majoritariamente, figu­
ram nas estatísticas e nos edifícios das instituições privativas de
liberdade. A maior parte de nossas considerações não se dirige (ou
se dirige somente em parte) aos delitos e delinqüentes graves. Dá
motivo a notáveis erros esquecer que mais de 90% dos que vivem
tragicamente em nossos cárceres são “pobres diabos” , na termino­
logia de López Rey, delinqüentes de “bagatela”, vítimas de nossas
estruturas sociais injustas, mais que criminais.
Inclusive, Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis reco­
nhecem que sua postura abolicionista do direito penal não chega
até os crimes mais graves (cf. Peins perdues, p. 53; em castelhano:
Sistema pena} y seguridad ciudadana).
Por falta de espaço, não podemos comentar os 16 restantes
princípios básicos relributivos e restaurativos. Limitamo-nos a re­
sumir, telegraficamente, ao final, no item IV, as 19 coordenadas do
novo modelo da justiça criminal recriadora.

Linhas fundamentais tias cosmovisões retributiva e restaurativa

...deux grandes catégories de sanctions: les unes consistent essentiellenient


dans une douleur. ou tout au moins dans une diminution infligée à
1'agent... Quant íi 1’autre sorl, eüe iVimplique pas nécessairement une
souffrance de 1'agent, mais consiste seulement dans la remi se des choses en
état, dans le rétablissement des lapports troublés sous leur forme normal e.

Meireille Delmns-Marty, L'eiiseigiieiuenl des Sciences crhnineUes


aujourd'htti, 1991, p. 16.

Os números “A ” descrevem as bases, as coordenadas e as me­


tas principais do Modelo da Justiça Penal Retributiva. Os correlati-
vos números “B” as do Modelo Restaurativo.
174 Antonio Beristain

1 A) O delito é a infração da norma penal do Estado.


1 B) O delito é a ação que causa dano a outra pessoa.
2 A) A justiça retributiva concentra-se na reprovação, na culpabi­
lidade - olhando para o passado - do que fez o delinqüente.
2 B) A justiça restaurativa concentra-se na solução do problema,
nas responsabilidades e obrigações, olhando o futuro: o que
deverá
*
ser feito?
3 A) E reconhecida uma relação de contrários, de adversários, que
vencem e submetem o inimigo, em um processo normativo,
legal.
3 B) São estabelecidos um diálogo e uma negociação normativa
que imponham ao delinqüente uma sanção restauradora.
4 A) O castigo é a conseqüência (natural) dolorosa que também
ajuda (castigando se defendere) ou pretende a prevenção ge­
ral e a especial.
4 B) A pena é (pretende) a reparação como um meio de restaurar
ambas as partes (delinqüente e vítima); tem como meta a re­
paração/reconciliação.
5 A) A administração de justiça se define como um processo “de­
vido” , segundo as norma legais.
5 B) A administração de justiça se define como boas relações,
avaliam-se as conseqüências.
6 A) O delito é percebido como um conflito (ataque) do indivíduo
contra o Estado. É menosprezada sua dimensão interpessoal
e conflitiva.
6 B) O delito é reconhecido como um conflito interpessoal. E se
reconhece o valor do conflito.
7 A) O dano de que padece o sujeito passivo do delito se compen­
sa com (reclama) outro dano ao delinqüente.
7 B) Pretende-se conseguir a restauração do dano social.
8 A) Marginaliza-se a comunidade (e as vítimas) e localiza-se
esta abstratamente no Estado.
8 B) A comunidade como catalisadora de um processo restaurati-
vo versus o passado.
9 A) São promovidos e fomentados o talento competitivo, os va­
lores
*
individuais.
9 B) E incentivada a reciprocidade.
Nova crim inologia à luz do direito penal e da vitim oiogia 175

10 A) A sanção é a reação do Estado contra o delinqüente. A víti­


ma é ignorada, e o delinqüente permanece passivo.
10 B) São reconhecidos o papel da vítima e o do delinqüente, tanto
no problema (delito) como em sua solução. São reconheci­
das as necessidades e os direitos da vítima. O delinqüente é
anintado a responsabilizar-se.
11 A) O dever do delinqüente é cumprir (sofrer) a pena.
11 B) A responsabilidade do delinqüente é definida como a com­
preensão do impacto de sua ação e o compromisso em repa­
rar esse dano.
12 A) O delinqüente não tem responsabilidade na solução do pro­
blema (do delito).
12B) O delinqüente tem responsabilidade na solução do conflito
do crime.
13 A) O delinqüente é denunciado.
13 B) E denunciado o dano causado.
14 A) O delito é definido no teor da formulação legal, sem tomar
em consideração as dimensões morais, sociais, econômicas e
políticas.
14 B) O delito é entendido em todo o seu contexto moral, social,
econômico e político.
15 A) O delinqüente tem uma dívida com o Estado e a sociedade,
abstratamente.
15 B) É reconhecida à vítima a dívida/responsabilidade.
16 A) O castigo considera a ação pretérita do delinqüente.
16 B) A sanção responde às conseqüências prejudiciais do com­
portamento do delinqüente.
17 A) O estigma do delito é indelével.
17 B) O estigma do delito pode apagar-se pela ação rep ar adora/
restauradora.
18 A) Não se fomentam o arrependimento e o perdão.
18 B) Procuram-se o arrependimento e o perdão.
19 A) A justiça penal está exclusivamente nas mãos de profissio­
nais governamentais.
19 B) Na resposta ao delito (ao conflito), colaboram também os
participantes implicados nele.
176 Antonio Beristain

Comentários a favor da justiça recriailora

O delito como faltei de três omissores

Como se indica no esquema de J. David McCord, pode-se di­


zer (com os perigos que levam os resumos) que os partidários do
Modelo Retributivo definem o delito como a infração culpável da
lei do Estado, enquanto os seguidores da justiça restaurativa, ao
contrário, como a infração legal de uma pessoa que causa dano a
outra.
A noção retributiva do crime padece de múltiplos anacronis-
mos, rejeitados na maioria dos tratados aluais, por exemplo, seu
crasso maniqueísmo, sua excessiva abstração filosófica, seu casa­
mento com a moral religiosa, seu falso pressuposto de que toda a
sociedade está de acordo com o Estado, com a classe dominante,
etc. Esquece a (cada dia maior) diversidade de cosniovisões que
convivem na sociedade e merecem seu amplo respeito.
O conceito restaurativo do delito avança plausivelmente, ao
concretizar que o principal do delito é a causa de uni dano a outra
pessoa, ao sujeito passivo do delito, que agora recebe a nova
denominação de “vítima”, que entra e mostra notáveis enriqueci­
mentos. Além disso, supera o excessivo protagonismo que o Estado
concede (ou concedia) à justiça retributiva. Entretanto, esta noção
do delito mantém uma idéia exageradamente individualista da cau­
sa do delito.
Da perspectiva da justiça recriativa, essas duas descrições
contêm alguns elementos que devem ser mantidos e outros não.
Ambas as descrições carecem de importantes aspectos que mere­
cem ser acrescentados. Por isso, optamos por uma (relativamente)
nova formulação do delito, mais de acordo com as realidades
sociais de hoje.
Nossa definição embrionária (necessitada de mil matizes pos­
teriores, embora já sem importância e esclarecedora) concebe o
delito como o comportamento do deliqüente e também de suas cir­
cunstâncias, que causa dano a pessoas concretas e/ou à sociedade;
como a geralmente mútua vitimação (por omissão, por “ falta” da
ação devida) de duas ou mais pessoas (conseqüências da situação
social e da infinitude, liberdade e culpabilidade de toda mulher e de
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimoiogia 177

todo homem), uma das quais padece maior ou muito maior prejuí­
zo que a outra. A seguir esboço alguns pontos centrais deste con­
ceito.
Em certo sentido, o delito não é, nem implica, uma ação; é
uma desvalorização, não uma realização ou Leistimg. Mais exato
seria ver o delito como a omissão da criação conveniente (que con­
vém ao autor e ao “outro”), devida e gratificante. Preferimos, nesse
sentido, falar de “falta” (Fehler) mais do que de delito, pois o que
chamamos delito, na verdade, é uma omissão, um vazio, o que
“ falta” . Dito com outras palavras: um comportamento omissivo,
mas que causa dano ao sujeito passivo e a outras vítimas. Prefere-
se falar de vítimas (no plural) melhor do que vítima (no singular),
pois, salvo exceções, todo delito afeta negativamente várias pessoas,
além e distintas do sujeito passivo do delito.
Contra o que se afirma nas duas definições anteriores, conside­
ramos que, geralmente, junto com o “autor” por antonomásia, atu­
am também, e são co-responsáveis, outras e outras pessoas e/ou
circunstâncias (situações às quais não cabe imputação objetiva nem
subjetiva ao delinqüente).
Também as vítimas, podemos considerá-las co-responsáveis
como co-autoras (em maior ou menor parte) do dano causado.
Fattah e outros especialistas têm escrito abundantemente nesse
sentido, e já há algumas décadas D. Juan dei Rosai.
Também Gibran Khalil Gibran (O profeta), opina que “o de­
linqüente não poderá fazer o mal sem o consentimento secreto de
todos nós... O assassinado é censurável por seu próprio assassinato.
E o roubado não está isento de culpa por ter sido roubado...”
Para estudar a fundo os problemas da autoria criminal, pode
ajudar, provavelmente, a referência à doutrina física e metafísica,
holística, global, dos vasos comunicantes entre todas as energias
cósmicas e pessoais. A autoria criminal é a resultante ou “ ato a
distância” (que Francisco Suárez, se hoje vivesse, admitiria) que se
torna realidade-agente no espelho pequeno que reflete e contém a
situação circunstancial, a realidade inteira, no oculto microcosmos
do delinqüente.
Conseqüentemente, assim como são várias as pessoas co-
responsáveis, também são várias as que padecem do dano. Por con­
seguinte, o sujeito passivo da infração, bem como a sociedade.
178 Antonio Beristain

M as também o vitimaüor sofre certa vitimação, certa desvalo­


rização pessoal. Recordemos, neste sentido, o preâmbulo da Decla­
ração das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1963, ao tratar da
eliminação de todas as formas de discriminação, cjue declara que
também resultam prejudicados os autores desses delitos: “A Assem-
bléia-Geral... convencida, também, de que a discriminação racial
prejudica não só a quem é objeto dela, mas também a quem a pratica” .
Quando define o delito, a justiça recriadora presta especial e
maior atenção à criminalidade e às estruturas sociais injustas, por
sua máxima capacidade vitimizante e pelas excepcionais dificulda­
des que encontramos para criar uma resposta eficaz. E, com isso,
passemos ao ponto seguinte.

Justiça para compreender e recriar

O pensar e o atuar supondo que “eu sou assim” e “sempre serei


assim” e, portanto, “pouco vou mudar” é falso biologicamente e perigoso
para o indivíduo e para suas relações sociais.

José M. R. Delgado, La felicidad, 1992. p. 221

A meta da justiça retributiva pretende sancionar o delinqüente,


porque é culpado, olhando seu passado, quia peccatum est, porque
infringiu a lei.
Afortunadamente, pouquíssimos penalistas mantêm esse con­
ceito de culpabilidade moral que durante tantos séculos tem domi­
nado —e manchado - a dogmática e a práxis penal. Assim mesmo,
é já quase geral a recusa da sanção no sentido retributivo autêntico.
Digo “quase geral” porque ainda alguns professores, juizes e polí­
ticos, sobretudo nos países que mantêm a pena de morte, aplaudem
o castigo como dor e sofrimento ao criminoso: m al um passionis
propter mal um actioms (como dizia Boécio, em sua definição da
pena).
A justiça restaurativa recusa, com sólidos argumentos, quase
todas essas noções básicas da justiça retributiva. Ela, ao contrário,
procura solucionar o problema, restaurar o dano resultante do de­
lito. Estuda as responsabilidades e as obrigações do deliqüente para
conseguir reparar os prejuízos causados.
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimoiogia 179

Nossa proposta de justiça recriadora vai mais adiante que as


duas anteriores. Não admite uma culpabilidade moral, unicamente
admite a culpabilidade jurídica, como mostra magistralmente Jes-
clieck, na sua monografia sobre o tema, no livro Ignacio de Loyola,
M agister Arfimn en Paris 1528-1535, p. 405 ss. Tampouco pro-
pugna uma reação contra, nem diante da, suposta ação delitiva.
Em penha-se a favor da restauração, mas não a considera suficiente,
porque esta olha o passado mais que o futuro. O restaurador das
obras de arte procura que o quadro ou a escultura recubram o esta­
do anterior, tal como as fez, há anos, o artista.
O Modelo Recriador basicamente busca a compreensão do su­
cedido (do comportamento do delinqüente, das vítimas e da socie­
dade) e, a partir dela. como resposta, a criação que preencha o
“buraco” , o dano, a omissão, que chamamos delito; e, sobretudo,
que possibilite e fomente a evolução reavaliadora para o amanhã.
Digamos algo dessa compreensão e sua seguinte criação.
Com acerto, alguns pena listas recordam o adágio francês Tout
comprendre c fest tout pardonner, como um dos fundamentos para
o perdão legal, judicial e/ou penitenciário. No sentido profundo
que explica Raimon Panikkar, o delito e/ou o mal desaparecem, em
certo grau, ou quase todo, quando são compreendidos. Ainda que,
sociologicamente, permaneça todo o dano produzido. Por isso, os
juizes podem perdoar muito menos que as vítimas. Além disso, há
algo que não se deve perdoar gratuitamente, que exige a reconstru­
ção pessoal do mesmo delinqüente: o que esse pequeno ou grande
grau de sua liberdade desvalorizou e destruiu. Parece pouco acerta­
do supor os delinqüentes totalmente carentes de liberdade ao co­
meter o delito, embora não saibamos nem como, nem quanto, nem
o lugar desse arbítrio.
Essa força desculpadora deve avançar e converter-se em cria­
dora. Dada a importância cada dia maior da energia do perdão e da
compreensão, logicamente se encontram referências em vários do­
cumentos das Nações Unidas. Por exemplo, a Convenção relativa à
luta contra as discriminações na esfera do ensino (de 14 de dezem­
bro de 1960), que entrou em vigor em 22 dc maio de 1962, insiste
na necessidade de “ fomentar a compreensão” (artigo 5). Também a
Declaração dos Direitos da Criança (20 de novembro de 1959),
princípio 6, constata que “a criança, para o pleno e harmonioso
180 Antonio Beristain

desenvolvimento de sua personalidade, necessita de amor e de


compreensão”. De modo semelhante, o artigo 5 da Declaração so­
bre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação
fundadas na religião ou nas convicções (25 de novembro de 1981)
pede que “será educada (a criança) em um espírito de compreen­
são...” E, com palavras parecidas, em outros documentos.
A justiça recriadora pretende mais que restabelecer, ou restau­
rar, a ordem jurídica violada, como desejavam alguns escolásticos
do Século de Ouro (pois nem todos pediam a vingança, a vindicta,
a expiação, a Siihne). Em verdade, restabelecer e também restaurar
olha demais para o passado. O Modelo Recriador de justiça deseja,
bem mais, recriar a convivência harmoniosa no avanço progressivo
da evolução e da história, que difere de, e supera, a repetição cir­
cular da cultura helênica. Se uma bailarina comete uma falta no
balé, o bom diretor não voltará a repelir a cena, e sim seguirá adi­
ante recriando um novo ritmo.
A recriação de uma ordem (jurídica) nova encontra sólido fun­
damento nas diversas teorias construtivistas, cada dia mais consoli­
dadas, e na moderna antropologia, que constata o poder inovador da
pessoa e da construção social da realidade. Também, a partir de
uma perspectiva acertada, mas não comum, em alguns pioneiros,
por uma dogmática penal criadora, conscientes do “ neutralismo
acrítico e isolado da realidade de que, constantemente” , padece a
dogmática (Cf. Santiago Mir, “ Por una dogmática penal creadora”,
Consejo General dei Poder Judicial, La sentencia p e n a l, Madri,
J 992, p. 25).
Com matizes próprios, Laín Entralgo, em seu livro ( Creer, es­
perar, amar, 1993, p. 269), comenta, partindo de diversas perspec­
tivas, “que viver humanamente é descobrir a realidade, criar a
realidade” . E também o delinqüente pode auto-recriar-se:

Poucas coisas mais nobres que a reta assunção de um fracasso...


E como assim ehega a ser meu fracasso, assim também meu ar­
rependimento, seja intelectual, estético ou moral o motivo
que o tenha determinado; tão meu, quando é sincero, que me
faz renascer (icient, p. 223).
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia 181

O Modelo Recriador sublinha a tão transcendental dimensão


criativa e recriadora (110 duplo sentido de fazer e desfrutar) de toda
sociedade e, mais ainda, do homo fa b er e do homo iudens, de toda
pessoa.
Urge que tanto as mulheres como os homens tomem consciên­
cia da gigantesca força que existe dentro do nosso interior, conscientes
“da androgênese, do dinamismo irrefreável escondido - semente
soterrada - na infinitude do nosso coração” (A. Beristain, “ Intro-
ducción a la edición espaííola”, em Cherif Bassiouni, Derecho pena!
internacional. Tradução, notas e anexo de J. L. de la Cuesta, Madri,
Tecnos, 1984, p. 11; idem, Ciência penal y criminologia, Tecnos,
1985, p. 58).
As ciências antropológicas e psicoanalíticas devem abrir novos
horizontes teóricos e práticos nos agentes de controle social - le­
gisladores, magistrados, policiais, advogados, funcionários das
instituições penitenciárias - e, não menos, em todo(a) cidadão(ã).
Devem convencer-nos de que a pessoa não consegue sua devida
“maioridade”, ou, dito de outra maneira, o desenvolvimento natural
de suas faculdades, até que chegue ao “ nível produtivo” , na termi­
nologia de Erich Fromm (cf. D. T. Suzuki e Erich Fromm, Budis­
mo zen y psicoanálisis, México, Ed. Fondo de Cultura Econômica,
1985, p. 125 ss.). Quer dizer, até que libere (e aprenda a dispor de)
todas as energias acumuladas, própria e naturalmente, em si mes­
mo, mas que em circunstâncias ordinárias permanecem constrangi­
das e deformadas, de modo que não encontram o canal adequado
para a sua atividade. Até que, como efeito da luz e do calor da
consciência cósmica e da oportuna pedagogia profunda, renuncia a
agarrar-se a si mesmo e supera a cobiça de ter. Por esse caminho a
pessoa fica vazia e disposta a receber. Disposta à percepção direta,
não cerebral, da realidade que também é dinâmica.
Dessa maneira, a pessoa alcança um jeito humanamente pro­
dutivo, não no sentido mercantil, fabricador de objetos, senão no
pessoal, recriador de sujeitos, começando por si mesmo.
Esse sentido produtivo, não-mental, mas pleno-pessoal, pode
entender-se melhor à luz da não-dual idade. O verdadeiro mestre,
quando toca o violino (de uma maneira totalmente distinta de como
toca o estudante), não o faz com as mãos nem com o cérebro, mas
com toda a sua pessoa identificada com o violino. Ele está vazio e
182 Antonio Beristain

disposto a receber o violino; não o percebe nem trabalha só men­


talmente. O artista, todo ele, sente e experimenta seu violino com
seu arco; fáTo viver, ao mesmo tempo em que o violino o faz vi­
ver. Estamos diante da não-dualidade do subjetivo-objetivo. Antes
de começar o concerto, prepara a lição, repassa as notas, mas, so­
bretudo, prepara-o, seu talante produtivo.
Sementes dessas cosmovisões ou rupturas epistemológicas, re-
criativas, a partir de perspectivas muito diversas, encontram-se em
muitos autores de tempos passados, como Platão, Spinoza, Oliver
Wendell Homes, etc. Recordemos o mito da caverna: nosso cére­
bro somente conhece as sombras, não a realidade. Para conhecer
esta, tem que sair da caverna, do “ego” . Algo similar indicava Spi­
noza, em seu tratado É tica, quando considera todo conhecimento
verdadeiro em um horizonte de eternidade, sub qnadam aeter-
nitatis specie. E em seus Princípios da filosofia carfesiana, ao
afirmar que a ordem e a conexão das idéias são o mesmo que a or­
dem e a conexão das coisas; ou quando aplaude as representações
que proporcionam um conhecimento intuitivo e direto da natureza
simples observada.
Com semelhante ponto de vista, para Oliver Wendell Holmes
(The common law, Londres, 1881, p. 1), a vida real do direito se
nutre mais que de lógica, da experiência do desenvolvimento tem­
poral, das necessidades sentidas de melhoras, das intuições decla­
radas ou inconscientes, acerca das linhas de crescimento. Tudo isso
tem muito a ver (mais que o silogismo) com a determinação das
normas pelas quais os cidadãos devam ser governados.
Em nossos dias, Gehlen (Der Mensch, Wiesbaden, 1976) con­
sidera básico para a sociobiologia afirmar que tanto os comporta­
mentos dos indivíduos como os dos grupos sociais refletem a
interação fecunda das energias biológicas, ambientais e culturais.
A pessoa é uma criatura indeterminada, indefinida, com capacidade
máxima de transformar-se e melhorar-se; diferentemente dos ani­
mais, não vive só o presente senão olhando para o futuro, com ca­
pacidade de aprendizagem ilimitada.
Apoiado em suas pesquisas científicas, José Manuel Rodrí-
guez Delgado (La felicidad, 14a ed., Madri, Ed. Temas de Hoy,
1992) conclui em favor dessa capacidade de aprendizagem e cria­
ções phts ultra, pois “os seres humanos são educáveis e suscetíveis
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimoiogia 183

de mudanças pessoais e sociais, existindo fatos históricos que


apoiam esta tese: recordemos que a escravidão foi abolida, os sa­
crifícios humanos têm desaparecido, já não existe antropofagia, a
mortalidade infantil tem diminuído consideravelmente e a duração
da vida tem-se alongado bastante. As idéias originadas por seres
excepcionais, como Jesus Cristo, Einstein e Karl Marx, determina­
ram mudanças decisivas nas mentes e nas condutas dos homens.
Temos que dar alta prioridade à pesquisa do espaço interior do
cérebro para encontrar as bases biológicas que permitam potenciar
a felicidade pessoal, a convivência social e a cooperação interna­
cional. Isso não é utopia, senão uma possibilidade a nosso alcance
se assim o propomos. A tentativa de conseguir a paz e o bem
merece ser explorada. Seu êxito internacional pode ser de incalcu­
láveis benéficas conseqüências. Mas, também se o lucro interna­
cional fosse difícil e prematuro, sua implantação em nível pessoal
seria muito mais fácil e rápida. O êxito em nível pessoal pode po­
tenciar sua posterior utilização universal.
Já 110 campo criminológico, Denis Szabo {De Vandxropologie
à la criminologie comparée, 1993) e M. Le Blanc {La criminologie
clinique. Un bilan rapide des fravaux sur Vhomme criminei, 1989)
optam por uma criminologia déve/oppemenfale, transbordante de
infervention créadve.
Em poucas palavras: a dignidade da pessoa implica muito mais
do que alguns kantianos opinam. Não basta afirmar que a pessoa é
sujeito com fim próprio que nunca possa fazer-se meio para outra
finalidade. A dignidade da pessoa exige essa fronteira, mas exige
mais. Que se reconheçam sua capacidade e sua responsabilidade
para continuar a criação de tudo, inclusive de si mesma. A parábola
dos talentos, a necessidade de desenvolver, de produzir, de que fala
o evangelista Mateus (no capítulo XXIV, versículo 13 ss.): quem
recebeu cinco talentos tem obrigação de produzir outros cinco, não
basta conservá-los nem restaurá-los.
Quando nos referimos à pessoa (mas não a todos os professores
de universidade), recordamos que esta tem por missão “produzir” a
riqueza humana da sociedade (cf. II. Lampert, Wer “produziert”
das Humanvermõgen einer Gesellschaft?, no livro-homenagem a
Anton Rauscher, Die personale Sírukfur des geselíschadichen
Lebens, Berlim, 1993, p. 121 ss.).
184 Antonio Beristain

À luz do aqui brevemente indicado, optamos por uni modelo


de justiça recrialiva que “compreenda” o delito como dcsvalor do
ato, do resultado e do autor e que pretenda “ recriar” esse dano, essa
ordem jurídica perturbada, olhando para o futuro.

A s vitimas protagonistas cio processo

Dentro da totalidade do sistema penal, a privação da liberdade torna-se


uma instituição com uma identidade específica, e o pessoal penitenciário é
reconhecido e valorizado como participante no projeto global de justiça
penal. E uma inovação que se encontra em oposição à marginal ização
tradicional do cargo e do estatuto do funcionário penitenciário.

Tony Peters, Cárcclcs dc inonana (La Mision dei Servido Correcciona! de


Canadá), San Sebastián, 1993, p. 94.

A justiça retribuliva implica um progresso, a respeito das


sociedades primitivas (ou atuais, mas não integradas ou revolucio­
nárias, ou terroristas), da vingança imediata e ilimitada, sem os
“ impedimentos” que produzem as regras do procedimento penal
(D. Szabo, p. 81). Procura evitar os excessos daquela reação in-
controlada. Para lográ-lo, introduz o processo, que possibilita a re­
flexão e a racionalização das “conseqüências” do delito, e sopesa
na balança da justiça o “olho por olho, dente por dente” ; isto é, o
quanto se deve castigar o delinqüente. Assim, o Modelo Retributi-
vo expulsa a vingança, e, nesse momento, começa o ponto zero da
justiça que venceu a Hybris, como afirma Ernst Bloch.
Mas esta nascente justiça mantém a disposição básica pri­
mitiva de inimizade das vítimas (e de todos) contra o delin­
qüente. O processo não elimina essa relação entre adversários; só a
ritualiza. Por isso, conserva o “castigo”, isto é, o inflingir dor ao
infrator. Despreza-se a vítima para que o Estado ocupe seu lugar,
para que o direito penal se converta em um instrumento do poder.
Ao contrário, o processo da justiça restaurativa, embora man­
tenha (talvez diminuído) o talante adverso ao delinqüente, introduz
maior respeito por ele, e certa atmosfera de diálogo, de negociação,
com o que, por uma parte, reaparecem (afortunadamente) as vítimas e,
por outra, a pena perde algo de seu tom de ex pi ação e castigo para
apresentar-se como sanção e, mais ainda, como pacto, tendente à
restauração do “malefício”.
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia 185

Para a justiça recriativa, o processo adquire mais importância


que nos outros dois modelos de justiça; supera o clima que pugna
contra o delinqüente, pois a este se outorga o papel dialogante e
colaborador. O processo é, antes tudo, o controle dinamizador das
fases sucessivas de um fenômeno, isto é, do delito que ainda não
alcançou sua meta, sua solução, seu Leistung, seu resultado criativo.
A luz das novas ciências do conhecimento e do estrutural is mo,
criticam-se os tradicionais e atuais modelos de justiça criminal que
pressupõem e fomentam uma solução de continuidade entre o
delito e o processo, pois olvidam e desprezam as vítimas e vendem
barato seu papel de protagonistas ao Estado, ao poder judicial.
Na justiça recriativa, o processo carece de autonomia, provém do
delito, é sua continuação natural (em certo sentido), é sua fase
seguinte que - não por reação, senão por recriação - prepara
(e advoga) a fase posterior: a sanção.
Assim como 110 delito se encontram três agentes (delinqüente,
vítimas e sociedade), 110 processo encontram-se os mesmos, mas
em uma nova ordem de prelação:

1-) As vítimas, não como nos atuais modelos processuais, senão


para desenvolver seu papel central, em nada secundário, muito
diferente do “ convidado de pedra” . Existem casos (pois as pes­
soas não são tão egoístas como alguns acreditam) em que as
vítimas, impressionadas pelas sinceras expressões de arrepen­
dimento reparador do vitimador, desejam contribuir eficaz­
mente para sua repersonalização, chegando até a renunciar a
algumas de suas devidas compensações e também a se oferecer
para dar trabalho ao delinqüente (Cf. F. W. M. McElrea, “The
Youth Court in New Zealand: a new model of justice”, // new
m odel o f justice, Ed. Legal Research Foundation, 1993, p. 8).
2-) A sociedade, com e por seus representantes: as comunidades
urbanas, o jurado, os juizes, etc. Mas estes últimos com uma
missão nova, não para medir e pesar na balança para castigar
ou restaurar, senão com critérios construtivos, construcfive evite-
ria (cf. Unsdri, The role oj'the judge in comteniporaiy society,
1984, p. 12), para receber, conhecer e apreender o fato delitivo
e transformá-lo cm direito, em justiça (da m ihi ja ctw n , daho
tibi ius).
186 Antonio Beristain

3L>) O delinqüente, como responsável principal do comportamento


inicial, do delito, da omissão da ação devida, e como colabora­
dor das construções seqüenciais, das respostas assistenciais às
vítimas, como sujeitos, não como objetos que se restauram. Ao
delinqüente se pode mostrar e demonstrar, à luz da filosofia de
Jaspers e de Max Scheler, poucas coisas mais nobres que a reta
assunção de um fracasso; e como assim chega a ser meu fra­
casso, assim também meu arrependimento, seja intelectual, es­
tético ou moral o motivo que o tenha determinado; tão meu,
quando é sincero, que me faz renascer (cf. Lain Entralgo, Creer,
esperar, am ar, p. 223).

Nesses temas também os criminólogos nos ajudam a recordar


as parábolas do bom samaritano e do filho pródigo (cf. Lain En­
tralgo, T eoriay realidad de! olro, Madri, 1988, p. 568 ss.).
No encontro processual, como em todo encontro, segundo in­
dica a etimologia comparada (Begegmmg, Encoxmter, rencontre),
aparece (mais ou menos patente) algo contrário, que no sistema
recriativo se supera pela atribuição de novos “ papéis” para as víti­
mas, para a sociedade e para o delinqüente. “Os outros” , os distin­
tos, cessam (dão baixa) como adversários para se converterem em
complementares, que recriarão a ordem social destroçada pelo de­
lito de ontem, e construirão a ordem jurídico-social de amanhã.
As ciências criminológicas podem e devem mostrar que tanto
a prevenção geral e especial como as penas e medidas alternativas
devem girar ao redor da plena compensação às vitimas, em um
sentido re criador in crescendo (cf. Unsdri, The role o f the ju d g e in
contemporary socie/y, Roma, 1984, p. 10, p. 48 ss.). Infelizmente,
o Projeto de Lei Orgânica do Código Penal espanhol, do ano de 1992,
desconhece essas doutrinas geralmente já admitidas, por exemplo,
no Projeto de Código Penal polonês (cf. em sentido crítico e deses-
perançoso os artigos de José Lu is de la Cuesta e de Santiago Mir
Puig, no livro-homenagem ao prof. Dr. Juan dei Rosai, Política
crimina! y reforma pena!, Madri, 1993, p. 319 ss., p. 843 ss.).
Este novo modelo do processo, como encontro triangular, tem
notas comuns com o encontro do eu-criança, que não sabe falar,
com o tu adulto, à luz da doutrina de Martin Buber, para buscar o
surgimento, a criação do nós. Um de “nós” deve planificar e de­
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia

terminar a sanção (.sentencing), como se logrará a reconciliação, a


recriação da ordem destroçada pelo roubo, pelo assassinato, pela
violação, etc. Como do esterco podem brotar flores.

Traços fundamentais do novo modelo recriador

Na animosa rebelião contra o que de lacrimoso tem e seguirá tendo o


mundo, e no melancólico gozo de tudo o que o faz e com nosso esforço
possa fazer-lo delicioso, tem o homem seu destino e sua dignidade.

Pedro Lain Entralgo, Creer, esperar, amar, p. 275.

Continuando, esboço, telegraíicamente, as linhas fundamentais


do Modelo de Justiça Recriadora que, inteligentemente desenvol­
vidas, podem contribuir para uma convivência mais justa, mais pa­
cífica e mais solidária.

1 ) 0 delito é o comportamento (do delinqüente e também de seus


circunstantes) que causa dano à pessoa concreta e/ou à socie­
dade.
2) A justiça recriadora concentra-se, mais do que na reação da
pena (niahnn pctssioiüs propler walmn octionis), na compreen­
são (compreender tudo é perdoar tudo) e na criação de uma
nova ordem, de uma nova relação entre o(s) vitimador(es) e as
vítimas.
3) E outorgado às vítimas o protagonismo no ifer processual do
encontro dialogai para planejar, projetar (determinação da san­
ção, senfencing) uma reconstrução (recriação) social da reali­
dade perturbada pelo delito.
4) A sanção não é uma conseqüência ontológica natural. É uma
construção social, uma criação não do nada, senão a partir da
coisa danificada. A partir da ferida se cria uma cicatriz de valor
positivo, olhando para o futuro.
5) A administração da justiça brota - cria-se - como resultado dos
deveres cumpridos.
6 ) 0 delito é a porta do iceberg de uma situação injusta, à qual o
delinqüente acrescenta a última parte (passo para o ato, dos es­
pecialistas franceses), por seu ato “ livre” .
188 Antonio Beristain

7) Considera-se como tema principal a criação, a recriação da or­


dem social futura, a partir do dano pretérito (não do nada; não
“contra” o delinqüente).
8) A comunidade (que inclui também o delinqüente) como catali-
sadora de um processo recriador a partir (motivado e favoreci­
do por) do delito pretérito.
9) Vê-se o delinqüente, o “adversário”, como o complemento.
10) Reconhecem-se as necessidades e os direitos da vítima, mas
também seus deveres, suas possíveis responsabilidades e também
suas possíveis co-culpabilidades. Busca-se que o delinqüente
assuma suas responsabilidades, mas também se reconhecem
seus direitos, alguns talvez versus, melhor dito, em relação à
vítima.
1.1) O dever do delinqüente, mas também da vítima e da sociedade,
é reconhecer o dano causado por sua ação (de todos e de cada
um) e comprometer-se a recriar a convivência futura entre os
três co-autores (uns mais que outros, mas todos co-autores e
co-recri adores).
12) O delinqüente tem responsabilidade na solução, mas também a
vítima e a sociedade. Mais que solucionar um problema (delito)
passado, trata-se de criar ou recriar uma convivência futura.
13) Observam-se e constatam-se o ato (não se julga nada), suas
conseqüências e o autor (tríplice: delinqüente, vítima e socie­
dade). Como não se julga, tampouco se denuncia, pois esta pa­
lavra sofre um pré-julgamento pejorativo.
1 4 ) 0 delito explica-se e compreende-se (compreensão à luz das
modernas ciências do conhecimento) integrado ao ritmo do cres­
cimento, da história recriadora, que implica superar (e romper?)
o sistema moral, social, econômico e político anterior.
15) 'rodos os homens e todas as mulheres são co-responsáveis (mais
ou menos) por cada delito; e também são, por isso mesmo, co-
criadores do futuro.
16) A resposta vê, busca (a partir do delito e de suas circunstâncias
situacionais) recriar a convivência futura a partir dessa situação.
17) O estigma do delito é temporário, como todo o humano. Desa­
parece com o tempo. A recriação futura, positiva, ocupa seu espa­
ço, seu lugar.
Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimoiogia 189

18) Procura-se, antes, e mais que a sanção, o arrependimento e o


perdão, como também a reconciliação que supera os limites do
jurídico.
19) A justiça (também a penal) emana do povo. Também devem
colaborar especialistas em criminologia e em ciências inter e
pluridisciplinares.

Como resumo desses 19 crilérios, e com relação às duas cos­


mo visões da justiça penal indicadas no começo deste capítulo, po­
demos formular o núcleo do nosso novo modelo, repetindo que é o
novo, não é o retributivo nem o restaurativo, com modificações,
que supõe ou exige uma nova maneira de pensar e de sentir: a jus-
tiça penal recriadora conhece e respeita os Modelos Retributivo e
Restaurativo, mas supera-os em todos os aspectos importantes.
Principalmente na consideração do crime como comportamento
omíssivo e desvalorizador do delinqüente (e também, em parte, da
sociedade e, ainda, às vezes, das vítimas), e na remodelação do
controle social como compromisso responsável dos três citados
agentes com a visão constante à reconciliação.
Para concluir o que foi dito, recordemos, com Lain Entralgo
(Creer,... p .179), que “todo ato criador - o mais genial ou o mais
humilde, seja intelectual, técnica, artística ou moral a matéria da
criação - torna mais homem ao que o realizou” .
Capítulo 9

Da vitimoiogia à reforma do
Código penal

Ainda hoje muitos e eminentes penalistas opinam que o Códi­


go peno! é o código dos delinqüentes, mas não o código das víti­
mas. Outros, ao contrário, opinam que já não cabe manter vigente
um Código penal que se apóia na dogmática pela qual se possam
entender e compreender a sanção e o delinqüente sem uma cons­
tante e radical referência às vítimas. Estas são a outra face da única
moeda que atualmente tem curso legal. Basta ler um livro de vili-
mologia para ver que o delinqüente está, inseparável e consubstan-
cialmente. relacionado com a vítima, mais que o corpo com sua
sombra. Para os vitimólogos, a reparação (no novo sentido total,
incluindo a mediação, a reconciliação, etc) pertence ao núcleo
central da sanção penal, muito mais do que já se proclamava no
início da década de setenta - por exemplo, A. Beristain, Medidas
pena!es en ei derecho contemporâneo, p. 61 ss. .
Em poucas palavras, o Código pen a l do terceiro milênio deve
ser o Código penal das vítimas (e a elas se deve referir com inovado­
ras conseqüências de notável transcendência), não menos que o Código
penai dos delinqüentes, pois se trata de duas realidades inseparáveis.

Não confundam os o sujeito passivo com as vítimas

O Código penal fala em alguns artigos da vítima (ou do ofen­


dido), mas, sem dúvida, refere-se unicamente ao sujeito passivo da
infração, tal como tradicionalmente entende a dogmática.
192 Antonio Beristain

À luz da atual doutrina vitimológica, por vítima deve-se en­


tender uni círculo de pessoas naturais e jurídicas mais amplo que o
sujeito passivo da infração, incluindo-o, mas também suplantando-o.
Vítimas são todas as pessoas naturais e jurídicas que, direta ou in­
diretamente, sofrem um dano notável - não basta qualquer dano,
pois de mini mis non curai praetor como conseqüência da infra­
ção. Por exemplo, quando os membros do grupo terrorista ETA
assassinam um funcionário - o médico —do cárcere de El Puerto de
Santa Maria, depois de haver-lhe ameaçado por carta, naturalmente
sua esposa e filhos são sujeitos passivos, vale dizer, vítimas diretas,
em sentido restrito, do delito; mas também são vítimas indiretas e,
em sentido amplo (mas verdadeiras vítimas desse delito), os ou­
tros médicos dos cárceres espanhóis que nesses dias haviam rece­
bido cartas similares do ETA ameaçando-lhes como ao médico
assassinado.
Portanto, no novo Código penal há de se dar entrada a uma
instituição nova e mais ampla que o sujeito passivo da infração (de
contornos assistenciais, com outros direitos e outras obrigações): as
vítimas.

A re p a ra ç ã o no Código p en a l do século XÍX


não é a do século XXI

A justiça restaurativa que explicamos e pedimos, no XI Con­


gresso Internacional de Criminologia (Budapeste, agosto de 1993),
a um grupo de 19 especialistas de diversos países europeus e ame­
ricanos presididos por Tony Peters, José de la Cuesta e Ezzat
Fattah pouco tem em comum com a justiça restaurativa-retributiva
que pediam os canonistas espanhóis do Século do Ouro, ainda que
as palavras fossem quase as mesmas.1 Nós hoje não pretendemos
aquele “ restabelecer a ordem jurídica violada” que eles proclama­
vam na Universidade de Salamanca, ainda que nossas formulações
pareçam quase idênticas. Uma similar diferença temos de reconhe­
cer entre a reparação civil ex delicio do século XIX e a reparação

Cf. A. Beristain. De leves penales y de Dios legislador. A lfa y omega deI control
pen a l humano. Madri, Edersa. 1990, p. 25-52.
NOVA
CRIMINOLOGIA
Ninguém melhor que Eugênio Raul Zaffaroni, catedrático de Direito Penal e criminologista -
MB8MKS
por concurso e provas de títulos - da Universidade de Buenos Aires, como autor do

prólogo. O professor Zaffaroni avaliza o livro como expressão libertária dos dogmatismos

e dos preconceitos.

O prólogo desvenda a orientação filosófica do livro de Beristain, que, entre outras virtudes,

se manifesta contra a Santa Inquisição do passado, bem como contra as modernas e

contemporâneas formas de heranças inquisitoriais reveladas ainda em muitos sistemas

positivos de Direito Penal e Processo Penal vigentes, seja na América Latina, seja em

outros continentes.

Cândido Furtado Maia Neto, promotor de Justiça no Estado do Paraná, é um dos legítimos

representantes de uma nova geração de penalistas envolvidos com a interpretação huma­

nista do sistema penal e preocupado com a sua necessária transformação. Além de

zeloso agente do Ministério Público - conhecendo e vivendo as ansiedades e os ideais da

carreira o Doutor Cândido Furtado é um dos transformadores dos meios e dos métodos

de um Direito Penal injusto e, conseqüentemente, nulo. Sem os discursos aliciantes de

certos arautos do abolicionismo do sistema, o jovem e vibrante criminalista está devotado

às grandes causas humanitárias que se movimentaram por intermédio do réu, da vítima e

dos demais protagonistas dos dramas e das tragédias da realidade. Especialista em

Direito Penitenciário e Criminologia, e com com formação acadêmica em vários centros

intelectuais da América Latina, o nome de Cândido Furtado Maia Neto vem se reunir,

muito positivamente, na tradução deste empreendimento editorial.

O tradutor da obra espanhola é um profissional do ramo e com grande sensibilidade para

captar e transmitir o pensamento vivo do catedrático do país vasco.

Rene Ariel Dotti


Professor Titular de Direito Penal

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