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ISSN: 2525-8761
RESUMO
Em 2021, a EMBRAPA divulgou um estudo afirmando que o agronegócio brasileiro
alimenta aproximadamente 800 milhões de pessoas ao redor do mundo, essa quantidade
de alimentos produzidos seria suficiente para alimentar quase quatro vezes a população
brasileira, inferior à 220 milhões de pessoas. Surpreendentemente, apesar da saída do
Mapa da Fome em 2014, com o sucesso de políticas sociais voltadas ao acesso de
alimentos, em 2020, 116 milhões de brasileiros sofriam com algum grau de insegurança
alimentar. Esses dados mostram que a problemática da fome não é consequência da falta
de alimentos, mas da falta de acesso da população a esses alimentos, por fatores de caráter
socioeconômicos, e que tende a aumentar devido às consequências econômicas da
pandemia de COVID-19. A fome é, sobretudo, herança do processo de colonização do
Brasil, de caráter exploratório e escravista, cujo modelo baseado no latifúndio, foi
determinante para a estruturação de uma sociedade essencialmente desigual, pautada na
concentração fundiária e em uma matriz econômica voltada para a exportação de produtos
primários. Concomitantemente, a expansão do Mercado de Derivativos alicerçada ao
processo de apropriação global de terras para produzir biocombustíveis, acarreta uma
tendência global de elevação dos preços dos alimentos, contribuindo para o aumento da
fome. Não obstante, a produção em larga escala do agronegócio contribui para a
propagação de patógenos e desenvolvimento de cepas mais virulentas e, em caso de
eclosão de epidemias, implica no aumento da fome.
ABSTRACT
In 2021, EMBRAPA released a study stating that Brazilian agribusiness feeds
approximately 800 million people around the world, this amount of food produced would
be enough to feed almost four times the Brazilian population, less than 220 million
people. Surprisingly, despite the withdrawal from the Hunger Map in 2014, with the
success of social policies aimed at access to food, in 2020, 116 million Brazilians suffered
from some degree of food insecurity. These data show that the problem of hunger is not
a consequence of a lack of food, but of the population's lack of access to this food, due to
socioeconomic factors, and that it tends to increase due to the economic consequences of
the COVID-19 pandemic. Hunger is, above all, the inheritance of the colonization process
in Brazil, of an exploitative and slave-owning nature, whose model, based on latifundia,
was decisive in structuring an essentially unequal society, based on the concentration of
land ownership and on an economic matrix focused on the exportation of primary
products. Concomitantly, the expansion of the Derivatives Market based on the process
of global land grabbing to produce biofuels, leads to a global trend of rising food prices,
contributing to the increase of hunger. Nevertheless, the large-scale production of
agribusiness contributes to the spread of pathogens and the development of more virulent
strains and, in case of the outbreak of epidemics, implies an increase in hunger.
1 INTRODUÇÃO
“Se você se der ao trabalho de ler este livro, se você se entusiasmar em lê-lo
em – digamos - 8 horas, nesse lapso terão morrido de fome cerca de 8 mil
pessoas: 8 mil são muitas pessoas. Se você não se der a esse trabalho, essas
pessoas também terão morrido, mas você terá a sorte de não ficar sabendo. Ou
talvez, provavelmente, prefira não ler este livro. [...] Mas se você leu este
pequeno parágrafo em meio minuto saiba que nesse tempo só morreram de
fome cerca de oito ou dez pessoas no mundo – e respire aliviado”
(CAPARRÓS, 2016, p.14).
No caso da fome, muitos indivíduos preferem acreditar que ela não é mais uma
realidade no país1, pois é vergonhoso que um país rico em recursos naturais, cujo solo é
extremamente fértil e suas terras são abundantes, haja uma população faminta. Sim, no
Brasil, em 2021, ainda existe a fome. Em sua obra A Bagaceira, José Américo de Almeida
escreve a seguinte frase: "Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: É não
ter o que comer na terra de Canaã” (ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira).
O Romance de 30 e a Geração de 45 foram produtos dos movimentos literários
brasileiros de inspiração realista, reconhecidos por retratar temáticas relacionadas a
problemas socioeconômicos, como a pobreza e a fome, questões muito recorrentes.
Dentre os representantes destes movimentos pode-se citar Graciliano Ramos (Vidas
Secas, 1938) e João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina, 1955), que abordam a
pobreza dos nordestinos, que padecem da fome e são obrigados a migrar para outras partes
do país. Nesse caso, as principais razões da fome eram a seca e a concentração fundiária.
Mais de meio século depois da publicação dessas obras, entre os anos de 2017 e
2018, ainda havia cerca de 84,9 milhões de pessoas sofrendo com algum nível de
insegurança alimentar. Dessas, aproximadamente 10,3 milhões padeciam de insegurança
alimentar grave. A fome, em queda desde 2004, quando assombrava 34,9% dos
domicílios, aumentou 62,4% em relação à última pesquisa, feita em 2013.2
A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN (Lei nº 11.346,
de 15 de setembro de 2006), define Segurança Alimentar e Nutricional como a realização
do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em
quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo
como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural
e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Assim sendo, o
comprometimento de exercer o direito a alimento regular, pode-se denominar "fome",
estando muitas vezes atrelada ao estado de miséria e pobreza da população.
Segundo Josué de Castro, a fome não se configura apenas como a completa
inanição vivenciada, geralmente, pela população em extrema miséria, a chamada “fome
crônica”, mas se manifesta também de modo parcial, a “fome oculta” ou subnutrição, que
se caracteriza como a falta permanente de determinados elementos nutritivos, sendo esta
1
“Falar que passa fome no Brasil é mentira, diz Bolsonaro; dados da ONU negam”, 9 janeiro 2021.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/19/falar-que-se-passa-fome-
no-brasil-e-uma-grande-mentira-diz-bolsonaro.htm
2
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/
3
Idem Ibidem
Ambos os gráficos deixam muito claro que a problemática da fome no Brasil não
é consequência da falta de alimentos, mas sim, da falta de acesso da população a esses
alimentos, por fatores de caráter econômico.
Tendo isso em vista, este ensaio visa apresentar um diagnóstico de algumas das
causas político-econômicas e estruturais da fome no país, no período correspondente ao
início dos anos 2000 até atualmente, mazela está que sempre esteve presente e tende a
aumentar devido às consequências econômicas da pandemia de COVID-19. Como
possíveis causas da fome, serão analisados o processo de apropriação global de terras por
governos e empresas multinacionais, que visa a produção de alimentos para a produção
de biocombustíveis; o Mercado de Derivativos e seu impacto na especulação do preço
das commodities alimentares; e o processo de formação econômica do Brasil, decorrente
do passado histórico colonial.
Além disso, expor-se-á um panorama da fome no Brasil atualmente, com os
impactos da pandemia de COVID-19, passando pela Era Lula, período no qual houve
uma expressiva redução da fome, devido, dentre outros fatores, aos programas sociais de
“Um “boia-fria” do Ceará ganha em média dois reais por dia, ou seja, um
pouco menos que um euro. Em 2003, o primeiro governo Luiz Inácio Lula da
Silva fixou o salário-mínimo diário do trabalho rural em 22 reais. Mas são
poucos os fazendeiros do Ceará que cumprem a lei de Brasília.” (ZIEGLER,
2013, p.78)
4
Lei n.11.326, de julho de 2006, referente à Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos
Familiares Rurais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11326.htm
5
Censo Agropecuário de 2017, IBGE, 10 de janeiro de 2021. Disponível em:
https://censoagro2017.ibge.gov.br/templates/censo_agro/resultadosagro/pdf/agricultura_familiar.pdf
6
Idem Ibidem
Logo, a partir desses dados, pode-se concluir que, apesar da agricultura familiar
corresponder à maioria dos estabelecimentos rurais, sua área de extensão é menos da
metade da área ocupada pelo agronegócio. Além disso, cabe ressaltar que a
empregabilidade na agricultura familiar é mais que o dobro da do agronegócio; sendo,
portanto, mais benéfica para a renda da população.
A agricultura familiar é constituída de pequenos produtores rurais, povos e
comunidades tradicionais, assentados da reforma agrária, extrativistas e pescadores. Os
principais alimentos por ela produzidos são: milho, raiz de mandioca, pecuária leiteira,
gado de corte, ovinos, caprinos, olerícolas, feijão, cana, arroz, suínos, aves, café, trigo,
mamona, fruticulturas e hortaliças. Ademais, esse segmento é responsável por 48% do
valor da produção de café e banana, 80% do valor de produção da mandioca, 69% do
abacaxi e 42% da produção do feijão7. Portanto, a agricultura familiar tem participação
significativa na produção dos alimentos que são disponibilizados para o abastecimento
do mercado interno brasileiro.
O agronegócio, por sua vez, caracteriza-se de largas áreas de cultivo, os
latifúndios monocultores, pelo uso intensivo de pesticidas, por maquinários sofisticados,
pertencentes à grandes corporações e financiados, muitas vezes, pelo mercado de
derivativos. Seu modelo produtivo baseia-se na utilização intensiva de sementes de alto
rendimento, fertilizantes, pesticidas, irrigação e mecanização, bem como no uso de novas
variedades genéticas fortemente dependentes de insumos químicos (MACHADO;
OLIVEIRA; MENDES, 2016, p. 507). Isso possibilitou a produção de alimentos em larga
escala e significativa diminuição de custos de produção, acarretando paulatinamente a
concentração do sistema alimentar.
Entretanto, ainda há uma certa discriminação por parte do governo federal no
tocante aos incentivos concedidos aos agricultores. Na safra de 2011/2012, o Plano Safra8
destinou R$ 107 bilhões para a agricultura empresarial, o agronegócio, e apenas R$ 16
bilhões para os agricultores familiares (SCOLESO, 2020). Essa discrepância entre os
valores não foi sanada ou mais bem distribuída ao longo dos anos: na safra de 2020/2021,
o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) recebeu R$
7
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, 26 de janeiro de 2021. Disponível em:
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/agricultura-familiar/agricultura-familiar-1.
8
O Plano Safra, elaborado pelo Governo Federal, consiste em um conjunto de políticas de crédito concedido
aos agropecuaristas brasileiros, à pequenas taxas de juros. Esses incentivos têm como objetivo viabilizar o
investimento desses agropecuaristas em maquinários, insumos, armazéns, de modo a possibilitar o aumento
da produção.
19,4 bilhões para atender aos agricultores familiares, ao passo que foram destinados cerca
de R$ 29,4 bilhões ao PRONAMP (Programa Nacional para Médios Produtores) e R$
130,6 bilhões aos grandes produtores (SCOLESO, 2020).
Além disso, o mercado internacional de várias commodities agrícolas se
caracteriza por uma estrutura oligopolista, ancorada no alto grau de concentração da
produção em vários estágios da cadeia de valor (PRATES, 2007, p. 329), fato que
dificulta a sobrevivência de pequenos produtores e agricultores familiares no mercado e
corrobora sua paulatina concentração em poucas empresas, a maioria com sedes fora do
Brasil, como as multinacionais Cargill e Bunge.
A seguir, será realizada uma análise acerca de algumas das possíveis causas da
fome na atualidade. Para tanto, é imprescindível retornar à formação socioeconômica
brasileira, para compreender de que modo seu passado histórico impacta na fome.
colonial do país, que com sua elevada concentração de renda, foi incapaz de desenvolver
toda a potencialidade do seu mercado interno.
Pode-se afirmar que a concentração de renda no país teve início com a economia
açucareira, haja vista que cerca de noventa por cento da renda gerada por essa economia
no país se concentrava nas mãos dos senhores de engenho. Estima-se que, em um ano
favorável, o valor total do açúcar exportado seria equivalente a cerca de 2,5 milhões de
libras. Ademais, ao final do século XVI, o número de escravos africanos que viviam na
colônia era estimado em 20 mil habitantes, ao passo que a população de origem europeia
beirava os 30 mil habitantes (FURTADO, 2007, p. 78-80). Adicionalmente, a adoção da
escravidão como mão-de-obra, ao invés do trabalho assalariado, permitiu a extração de
maiores lucros provenientes da produção de açúcar e do tráfico negreiro, constituindo-se
um mecanismo de acumulação de capital (LACERDA et al., 2010, p. 35). Por
conseguinte, enquanto os senhores de terra e seus descendentes lucravam
aproximadamente 2 milhões de libras por ano, os escravos dos engenhos não possuíam
qualquer nível de renda, tampouco sua liberdade, o que constituía uma verdadeira
desigualdade de renda.
Concomitantemente, MATTOS et al., (2012, p.435) afirma que o estabelecimento
das capitanias hereditárias teria como consequência a concentração fundiária na mão dos
colonos, que se utilizavam destas economicamente para obter seu sustento e lucros, ao
passo que os escravos e os escassos trabalhadores assalariados do engenho não eram
donos de terras e sequer delas poderiam usufruir para obter sua subsistência. Destarte, a
transmissão dessas propriedades entre os descendentes dos nobres portugueses
corroborou para incrementar esse processo de desigualdade de renda e de terras, à medida
que foi quase nulo o processo de desconcentração de terras ao longo da história do Brasil.
Consequentemente, formou-se na sociedade uma classe de latifundiários e outra de
trabalhadores sem-terra, cuja origem deve-se ao passado colonial brasileiro, ou seja, a
desigualdade de terras e sua concentração é fruto dessa herança colonial.
à alguma cidade. Acima de suas cabeças, uma nuvem de urubus. Este poderia ser um
relato encontrado em algum jornal brasileiro atual, mas é uma descrição da pintura Os
Retirantes, de Candido Portinari, pintada em 1944, a qual buscava retratar o Brasil da
época.
Desde aquele período, o país não foi totalmente bem-sucedido em acabar com sua
principal mazela: a fome. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO) estima que em 2017 havia cerca de 5,2 milhões de brasileiros passando
fome; o combate à fome no Brasil se estagnou, apesar de ter havido reduções
significativas do ano de 1999 em diante, quando esse número beirava os 20 milhões.
A mazela da fome sempre esteve presente no Brasil. Entre os anos de 1877 e 1879,
no Ceará, estima-se que cerca de 150 mil pessoas faleceram de fome (CASTRO, 1984,
p.227). A despeito da riqueza gerada à metrópole e aos colonos pelos ciclos econômicos,
a fome presenciou cada uma dessas produções de alimentos voltados à exportação. Um
exemplo disso é o beribéri, decorrente de fome caracterizada pela carência de vitaminas,
que imperou na bacia amazônica durante o ciclo da borracha, entre 1870 e 1910, à medida
que houve a absorção das atividades produtivas locais pela colheita do látex, o “ouro
branco” (CASTRO, 1957, p.181). Outro exemplo pode ser observado no ciclo da cana de
açúcar, na qual a monocultura da cana absorveu as terras disponíveis na região, em
detrimento do cultivo de viveres de subsistência orientados pela policultura, o que acabou
por agravar a fome no local (CASTRO, 1957, p.190).
Consequentemente a fome que perdura no país é consequência direta do seu
passado histórico colonial que culminou em uma exploração econômica malconduzida e
de caráter destrutivo cujo objetivo primordial era enriquecer a metrópole (CASTRO,
1957, p.161; CASTRO, 1957, p.190). Mais do que isso, é proveniente da inaptidão do
poder público para equilibrar os interesses privados, como os monopólios estrangeiros
interessados na exploração colonial do território, e os interesses coletivos, mais
especificamente, os de cunho nacional, de modo que o progresso econômico se limitou a
ampliar os lucros de um reduzido número de proprietários, sem atingir a totalidade da
população (CASTRO, 1984, p.267-269). Nas palavras de Josué de Castro:
existe uma fila de pessoas dispostas a substituir o trabalhador que reclamar de exploração.
Tendo isso em vista, nas cidades com inchaço populacional, muitos trabalhadores tendem
a concorrer por uma mesma vaga de trabalho, implicando em um menor nível de salários.
Dependendo do valor salarial, essa situação pode implicar em indivíduos pobres com
maiores tendências a subnutrição. Há ainda, indivíduos que vivem à margem da economia
urbana por não conseguirem emprego, dependendo, muitas vezes, de auxílios do governo
para conseguirem se alimentar. Logo, outra herança colonial portuguesa é o excesso
populacional nos locais colonizados e nas áreas de capitanias hereditárias.
Concomitantemente, as desigualdades regionais provenientes da colonização e do
período que corresponde à República, decorrentes dos ciclos econômicos e acentuados
pelo processo de industrialização do Sudeste (CASTRO, 1984, p.276), que foi possível
graças ao ciclo econômico do café, corroboram para a concentração de renda nacional
nos estados mais ricos do país. Esse processo de concentração de renda que implica nas
desigualdades regionais fez com que a fome tivesse um caráter regional no Brasil. O mapa
da fome divulgado pelo IBGE aponta que em 2018, dos cerca de 10,3 milhões de
brasileiros que passaram fome, aproximadamente 41,5% viviam na região Nordeste. De
acordo com o levantamento, nas regiões Norte e Nordeste, menos da metade dos
domicílios tiveram acesso pleno e regular à alimentação adequada, cerca de 43% e 49,7%,
respectivamente. Ainda segundo o levantamento, dos 3,1 milhões de domicílios com
insegurança grave, 1,3 milhão estava no Nordeste, o que equivale a 7,1% dos lares, ao
passo que no Norte atingiu 10,2% dos domicílios, correspondente à 508 mil9.
Outra estrutura proveniente do sistema colonial que caracterizou a fome no Brasil
é a escravidão dos povos de origem africana. A escravidão deixou profundas marcas na
sociedade e se transformou, ao longo dos anos, no chamado racismo estrutural. Dados do
IBGE relativos ao período de 2017-2018 apontam que os domicílios em que a pessoa de
referência era autodeclarada parda representavam 50,7% dos domicílios com insegurança
alimentar leve, 56,6% de insegurança alimentar moderada e 58,1% de insegurança
alimentar grave, ao passo que em 15,8% do total de domicílios com insegurança alimentar
grave, a pessoa de referência era autodeclarada preta. A partir desses dados pode-se
concluir que no Brasil, os negros tendem a passar mais fome do que os brancos, ou seja,
a fome no Brasil tem um caráter racial, isto é, desigual entre as diferentes etnias e povos.
9
Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/28903-10-3-milhoes-de-pessoas-moram-em-domicilios-com-inseguranca-alimentar-
grave
Essa guinada na especulação dos preços de gêneros alimentícios foi uma das
variantes responsáveis para o aumento contínuo dos preços dos alimentos, contribuindo
para causar ou agravar a situação de vulnerabilidade à insegurança alimentar (BELIK;
CORREA, 2013, p.4).
Esse processo de intensificação da mercantilização dos alimentos ocorreu devido
à criação dos índices de commodities, bem como dos fundos de investimento que tinham
como principal ativo da carteira os preços dos alimentos na Bolsa de Valores. Os lucros
crescentes destes ativos vinculados à alimentos atraiu mais investidores e ganhos para os
bancos. Consequentemente, o mercado de derivativos foi se tornando paulatinamente um
instrumento de especulação financeira, o que acarretou um aumento exponencial dos
preços dos gêneros alimentícios, que atingiram seu maior preço histórico (KAUFMAN,
2010, p.27).
Os gráficos abaixo ilustram o processo contínuo de aumento dos preços dos
alimentos a partir do ano 2000. O primeiro gráfico é referente ao preço por quilo do arroz,
pode-se notar que o preço, que era cerca de R$ 1,00/Kg em 2000, passou a ser superior a
R$ 5,00/Kg em meados de 2020. Nesse período, o preço do arroz sofreu uma elevação
superior à 400%. Por sua vez, o segundo gráfico representa o preço por 60 Kg do trigo,
em 2000 o preço era inferior a R$ 40,00/60 Kg e em 2020 ultrapassou a marca dos R$
80,00/60 Kg. O preço por 60 Kg de trigo subiu cerca de 118% entre 2014 e 2020.
Essa alta nos preços dos alimentos faz com que as famílias mais pobres incorram
na substituição de alimentos, de modo que a quantidade consumida por família fique
reduzida com substituições por alimentos mais calóricos e menos nutritivos que impactam
diretamente na saúde e no bem-estar físico (BELIK; CORREA, 2013, p.4). Conforme a
renda aumenta nos países em desenvolvimento, uma parcela paulatinamente menor dessa
renda será destinada à compra de alimentos, priorizando adquirir produtos de maior valor
agregado, como carnes e alimentos industrializados.
Além disso, o investimento de especuladores no Mercado de Derivativos, os quais
vêm esse mercado como uma oportunidade de especular e aumentar seus lucros, faz com
que esses grandes investidores financeiros se transformem nos proprietários desses
alimentos, ou seja, o agricultor deixa de exercer o controle sobre sua própria produção
(MACHADO; OLIVEIRA; MENDES, 2016, p. 510). Ademais, atualmente o agricultor
também deve se submeter às decisões das empresas multinacionais de biotecnologia, as
quais vendem os insumos agrícolas e as sementes, e às grandes redes de supermercados
e indústrias, que impõem os preços, os produtos e os prazos de pagamento (MACHADO;
OLIVEIRA; MENDES, 2016, p. 511).
maiores varejistas do mundo e representam 37% das receitas das 100 maiores
sociedades fabricantes de produtos alimentícios e de bebidas. E seis empresas
controlam 77% do mercado de adubos: Bayer, Syngenta, BASF, Cargill,
DuPont e Monsanto” (ZIEGLER, 2013, p.151-152).
Esse processo de apropriação de terras fez com que, aproximadamente 25% das
terras do cerrado brasileiro pertençam a empresas estrangeiras, como a Soros, Rothschild,
Cargill, Bunge, Mitsui (CAPARRÓS, 2016, p. 619).
Essa procura pela aquisição de terras nos países subdesenvolvidos está implicando
em um cerco maciço das terras "não privadas" restantes e na desapropriação de áreas
rurais pobres. Nesse contexto, têm-se aumentado os casos de grilagem de terras, desde
2006, de 15 a 20 milhões de hectares de terras agrícolas nos países em desenvolvimento
foram vendidos ou arrendados, ou estão em negociação para venda ou arrendamento, a
entidades estrangeiras. Consequentemente, passou-se a recear o impacto potencialmente
devastador do desdobramento da apropriação global de terras em áreas com insegurança
alimentar generalizada (BORRAS JR, FRANCO, 2012, p.37).
Não obstante, os países que mais sofrem com a apropriação global de terras,
geralmente são aqueles onde a mão de obra é relativamente mais barata e a terra é
considerada abundante. Nestes casos, esses países tendem a se tornar paulatinamente mais
dependentes dos mercados internacionais para alcançar a segurança alimentar, posto que,
apesar de produzirem alimentos, estes são exportados, sendo mais atingidos pela
volatilidade dos preços dos gêneros agrícolas (BORRAS JR, FRANCO, 2012, p.37-38).
Segundo BORRAS JR, FRANCO (2012), esse movimento atual de apropriação
global de terras tem como características: (1) a mudança na utilização da terra,
compreendendo terras que envolvem a conversão de áreas florestais ou terras
anteriormente dedicadas à produção de alimentos para subsistência ou consumo
doméstico para a produção de gêneros alimentícios ou biocombustíveis para exportação;
(2) tem caráter internacional e impulsionado em grande parte pelos Estados Nacionais e
empresas, como a China, Coreia do Sul, EUA e países europeus; (3) os acordos pelas
terras costumam envolver cada vez mais capital financeiro, implicando na especulação
do preço dessas terras; (4) a compra e venda dessas terras envolve, muitas vezes, a não
transparência de informações e dos contratos, a não anuência da população local, e
corrupção envolvendo governos nacionais e locais; e (5) a compra e venda de terras
acabam por implicar na expropriação de terras de comunidades tradicionais, aquelas que
não têm direitos de propriedade formais, legais e claros sobre as terras contestadas
(BORRAS JR, FRANCO, 2012, p.37-38).
Não obstante, a apropriação global de terras gera mudanças do uso dessas terras.
Primeiramente, pode haver a conversão de terras dedicadas anteriormente à produção de
alimentos para subsistência em produção de alimentos para venda no mercado interno,
A produção dos EUA de etanol a partir do milho foi seguido pelos países da União
Europeia na produção de etanol por meio de grãos. Os Estados Unidos se tornaram o
maior produtor mundial de etanol, acarretando que parte do milho destinado à
alimentação e a produção de ração animal fosse destinada à produção de etanol. Este
aumento do consumo do milho implicou na especulação da queda dos estoques, o que
elevou os preços da soja, do trigo e do arroz (OLIVEIRA, 2008, p.26).
Os principais tipos de biocombustíveis são o biodiesel e o bioetanol. O primeiro,
é produzido a partir de matéria orgânica, ou seja, biomassa, obtido através de óleo vegetal
ou animal, transformado pela transesterificação, um processo químico, e fazendo-se
reagir o óleo com um álcool. O segundo, é obtido pela transformação de vegetais que
contêm sacarose, como a beterraba e a cana de açúcar, pela fermentação do açúcar
extraído do vegetal; ou amido, como o trigo e o milho, pela hidrólise enzimática do amido
contido no cereal (ZIEGLER, 2013, p.243).
Além da especulação dos preços dos alimentos, a demanda por matérias-primas
para a produção de biocombustíveis também tem contribuído para o aumento dos preços
dos alimentos, acarretando o agravamento da situação de vulnerabilidade à insegurança
alimentar. O uso dessas fontes energéticas menos poluentes exerce pressão nos mercados
de soja e de açúcar para a produção de biodiesel e de etanol. Devido aos aumentos do
preço do barril de petróleo, houve um aumento na procura por fontes alternativas de
energia (BELIK, CORREA, 2013, p.4, 21).
A produção e o comércio dos biocombustíveis é dominada pelos trustes
agroalimentares, os quais apoiam esses combustíveis por meio do argumento de que a
substituição da energia fóssil pela vegetal seria fundamental para combater a degradação
do clima e os danos ambientais. Em contrapartida, para produzir um litro de bioetanol,
são necessários 4000 litros de água, contribuindo paulatinamente para a escassez dos
recursos hídricos do planeta (ZIEGLER, 2013, p. 243-244, 247).
“Among our bases and with our movements, in relation to the production of
agrofuels by small farmers and peasants, we should discuss a political
orientation of production based on the principles of food sovereignty and of
energy sovereignty.This means we should be saying that all agricultural
production of a country, of a people, should in the first place ensure the
production and the consumption of healthy food for all. And that the
production of agrofuels should always be in second place, in a secondary form.
It should be based on the energy needs of each community and people.And
agrofuels should never be produced for export. Respecting these principles we
can think of new methods for the production of agrofuels that in fact do not
worsen the environment, that do not substitute for food, but at the same time
can represent an increase in income for the peasants and sovereignty in the
energy that they use. So we can stipulate that agrofuels can only be produced
using polycultures, from various complementary sources . . . That only 20% of
each production unit can be used for agrofuels . . . And that fuels should be
produced in small and medium-sized cooperatively-owned manufacturing
units. And they should be installed in rural communities, small settlements,
and small cities in such a way that each town, settlement, and city
cooperatively produces the energy they need” (BORRAS JR, FRANCO, 2012,
p.43).
No estado de São Paulo, principal produtor de açúcar e álcool do país, com cerca
de 60% da produção nacional, a crescente demanda por etanol tem acarretado a
substituição do plantio de alimentos, como laranja, milho, mandioca, café, pelo plantio
cana, os quais, juntamente com suas famílias, migram entre as fazendas, de uma colheita
a outra (ZIEGLER, 2013, p. 259-260).
No país, há cerca de 4,8 milhões de trabalhadores rurais sem terra. A
transformação de grandes propriedades rurais em zonas de monocultura de cana de açúcar
causa uma precarização do emprego, devido ao caráter sazonal das colheitas. Quando
terminam as colheitas no Nordeste, os trabalhadores migram para a região Sul do país,
onde as estações se invertem. Logo, há migração por parte desses trabalhadores, os quais
percorrem longas distâncias por não conseguirem um emprego duradouro em um local
fixo (ZIEGLER, 2013, p. 260).
Além disso, os complexos agroexportadores estão recebendo vultuosas somas de
investimentos e ofertas de crédito, bem como perdões de multas milionárias aos
latifundiários, processo que tem sido acompanhado pela flexibilização de leis ambientais
e por tentativas de invasão das terras indígenas para a expansão da fronteira agrícola.
Esses investimentos e crédito ao agronegócio, devido à elevada capacidade de
financeirização do setor, tem sido responsável pela aceleração do processo de
reprimarização e desindustrialização da economia brasileira (SCOLESO, 2021).
Logo, esse processo tem acarretado paulatinamente os desmatamentos às florestas
e áreas de proteção ambiental, as queimadas criminosas, na despossessão de terras para a
expansão da produção (SCOLESO, 2021).
Conclusivamente, os biocombustíveis acarretam tragédias climáticas e sociais,
posto que reduzem as terras para a produção de víveres, destruindo a agricultura familiar
e contribuindo para agravar a fome no país. Além disso, sua produção implica na
liberação de dióxido de carbono e grande quantidade na atmosfera, bem como absorve
elevadas quantidades de água potável (ZIEGLER, 2013, p. 272-273).
Segundo os dados do IBGE, entre 1990 e 2006, houve redução da produção de
alimentos, devido à expansão da área cultivada de cana-de-açúcar, a qual se expandiu
mais de 2,7 milhões de hectares neste período. Ocorreu a redução de 261 mil hectares de
plantação de feijão e 340 mil de arroz, nos municípios que expandiram mais de 500
hectares de cana de açúcar no período. Essa área de 261 mil hectares reduzida, seria capaz
de produzir 400 mil toneladas de feijão, equivalente a 12% da produção nacional e, 1
milhão de toneladas de arroz, cerca de 9% da produção nacional (OLIVEIRA, 2008,
p.32).
Não obstante, nestes municípios, houve a redução da produção de 460 milhões de
litros de leite e mais de 4,5 milhões de cabeças de gado bovino. Tendo-se em vista que a
produção de cana está se expandindo pelos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul,
Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso, está havendo a redução da área de cultivo de
gêneros alimentícios, ao mesmo tempo que está deslocando a fronteira agrícola e a
pecuária em direção à Amazônia, contribuindo paulatinamente para o seu desmatamento.
Consequentemente, a expansão da produção de agrocombustíveis deve gerar a redução
da produção de alimentos (OLIVEIRA, 2008, p.32).
Durante a Era Lula, houve uma expressiva redução da fome no país, devido, dentre
outros fatores, aos programas sociais de combate à fome e à pobreza. Cabe agora, realizar
uma análise desse período, bem como dos programas de combate à fome.
Haja vista algumas das causas da fome, a saber a formação socioeconômica
brasileira, a especulação do preço das commodities no Mercado de Derivativos, e a
substituição da plantação de alimentos para consumo para produzir alimentos para a
produção de biocombustíveis; é necessário compreender-se a relação entre a produção do
agronegócio, a eclosão de epidemias e a fome.
“Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles
quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E
contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente
desprevenidas [...] O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o
flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa
e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas
em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. [...] Mas que são cem
milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto.
E já que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões
de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação”
(CAMUS, Albert. A Peste, 2017, p. 40-41).
Era uma tragédia pré-anunciada. Em 2013, Rob Wallace já alertava para a ameaça
iminente:
10
“Cronologia da expansão do novo coronavírus descoberto na China”, 19 de dezembro de 2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/01/22/cronologia-da-expansao-do-
novo-coronavirus-descoberto-na-china.ghtml
11
“O que é uma pandemia”, 19 de dezembro de 2020. Disponível em:
https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/noticias/1763-o-que-e-uma-pandemia
12
Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
13
“Bairros de São Paulo fazem panelaço contra Jair Bolsonaro nesta sexta-feira”, 15 de janeiro de 2021.
Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/01/15/bairros-de-sao-paulo-fazem-
panelaco-contra-jair-bolsonaro-nesta-sexta-feira.ghtml
14
“Médicos e familiares de pacientes descrevem colapso com falta de oxigênio em Manaus; leia relatos”,
15 de janeiro de 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/14/pacientes-e-
medicos-relatam-colapso-em-manaus-leia-relatos.ghtml
últimos anos, outras doenças teriam sido transmitidas de animais para seres humanos em
estabelecimentos que comportam a pecuária intensiva, dentre elas, a gripe aviária (H5N1)
e o influenza (H1N1), mais conhecido como gripe suína (WALLACE, 2020, p.94).
Entretanto, nenhuma destas assumiu as mesmas proporções que a COVID-19 no que diz
respeito ao seu potencial transmissor, número de vítimas fatais e consequências
socioeconômicas. Portanto, é pertinente conjecturar acerca da origem dessas doenças,
bem como o motivo delas estarem se intensificando recentemente.
Atualmente, grande parte da proteína de origem animal consumida pela
população, como carne bovina, suína, ovos e aves, têm sua origem e processamento no
modelo industrial de produção. Esse sistema produtivo caracteriza-se por um grande
número médio de animais por rebanho, amontoados e confinados em galpões. No caso do
Brasil, grandes empresas como a JBS e a BRF controlam este setor.
Segundo o biólogo Rob Wallace, o agronegócio expresso nesse modelo industrial
de produção de suínos e aves apresenta um elevado potencial de propagação de cepas
virulentas (WALLACE, 2020, p.66). Esse maior potencial propagador de doenças
decorreria do fato de essa pecuária intensiva comportar um número muito elevado de
animais que ficam restringidos à mesma área, confinados e aglomerados, ou seja, possui
uma elevada densidade populacional, condição propícia à maiores taxas de transmissão.
Nessas condições, os excrementos destes animais, contaminados com o vírus, podem
prolongar a viabilidade viral, já que ficam concentradas, expostas ao sol e à pouca
ventilação (WALLACE, 2020, p.195).
Não obstante, deve-se levar em consideração o fato de que o confinamento à que
estão submetidos esses animais contribui para a depressão de sua resposta imunológica,
tornando-os mais suscetíveis à contaminação (WALLACE, 2020, p.91).
Consequentemente, se um desses animais se contamina com determinado vírus, é muito
provável que a maioria dos seus colegas de abate se contamine também.
Concomitantemente, devido às condições à que esses animais estão submetidos, a
contaminação de rebanhos comerciais por patógenos é significativamente mais provável
de ocorrer em produções animais de larga escala do que na criação de rebanhos familiares
(WALLACE, 2020, p.91). Tal afirmação deve-se ao fato de que este último modo de
criação de animais comporta uma quantidade muito menor de animais, cujo tamanho
médio do rebanho é muito menor, bem como a densidade populacional de animais é
menor. Essa diferença é demonstrada em números:
os animais. Essa fatalidade faz com que estes fazendeiros fiquem sem nenhuma renda, já
que seu sustento depende da entrega das aves para as empresas proprietárias.
Não menos importante foi o desenvolvimento da espécie de frango híbrido
industrial, que logo se distribuiu aos criadores comerciais de aves ao redor do mundo.
Essas aves geneticamente modificadas cresciam em uma velocidade três vezes maior,
com menos da metade da alimentação das demais aves. Em contrapartida, essas aves
possuem um estreitamento da base do estoque genético, tornando-as mais suscetíveis ao
desenvolvimento de novas doenças, por serem populações geneticamente uniformes,
incapazes de desenvolver sua própria proteção imunológica (WALLACE, 2020, p.276-
280). Apesar de serem mais propícias ao desencadeamento de novos surtos epidêmicos,
esses animais foram amplamente difundidos por permitirem a redução do consumo de
rações e menor tempo de desenvolvimento, de modo a garantir maiores lucros,
corroborando para a transmissão de novas doenças à trabalhadores do setor.
Embora a Revolução Pecuária tenha sido bem-sucedida para os produtores que
passaram a adotar o modelo de pecuária intensiva, com maiores instalações de produção
de animais e menor exigência de trabalhadores, resultando em maiores margens de lucro,
ela implicou também no surgimento de rearranjos, novas misturas e combinações de
segmentos genômicos entre as cepas dos vírus (WALLACE, 2020, p.194). Esse
surgimento de novas cepas virais mais infecciosas alicerçada às novas instalações, com
elevada densidade populacional de animais, o declínio da diversidade genética das
criações de animais, o aumento da velocidade de produção, com o abate precoce dos
animais, a invasão gradativa de florestas e áreas úmidas (WALLACE, 2020, p.262-263),
explica o acentuado surgimento de doenças infecciosas nos rebanhos nos últimos anos.
Consequentemente, daí pode-se inferir o quão prejudicial é o desmatamento de
florestas para expandir a área da agropecuária, posto que aumenta o contato entre os
animais de criação e os animais silvestres, de modo a possibilitar a contaminação dos
rebanhos com patógenos selvagens e desconhecidos. De acordo com Felicia Keesing,
desde 1940, quase metade das doenças zoonóticas que surgiram em seres humanos deve-
se à mudança da utilização da terra, tanto na caça de animais selvagens, como nas práticas
agrícolas para a produção de alimentos, posto que houve uma intensificação do contato
entre humanos e animais (KEESING, 2010, p. 650).
Concomitantemente, o êxito econômico desse novo modelo de produção de
grandes proporções para as empresas de alimentos norte-americanas acarretou a difusão
da pecuária intensiva para outros países do mundo. Desse modo, a produção mundial de
15
“Dólar fecha acima de R$ 5 pela 1ª vez na história”, 17 de janeiro de 2021. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/dolar-fecha-acima-de-r-5-pela-1a-vez-na-historia.shtml
16
“Arroz chega a custar R$ 40, e setor diz que preço deve continuar em alta”, 17 de janeiro de 2021.
Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/09/08/preco-do-arroz-dispara.htm
50000000
40000000
30000000
20000000
10000000
0
Soja Milho Farelo de Azuc Carne de Café Açúcar Fibra de Carne de Suco de
soja bruto frango verde refinado algodão vaca laranja
desossada
no Brasil. Posteriormente, a proposta que foi assinada por Luiz Inácio Lula da Silva e
recebeu o nome de Programa Fome Zero, buscou fundir políticas estruturais, como o
crescimento da produção, a reforma agrária, geração de empregos e redistribuição de
renda, à intervenções de ordem emergencial (YASBEK, 2004, p. 106).
Além disso, o documento buscava ainda definir o conceito de segurança alimentar,
de modo a apresentar a alimentação como um direito inerente ao ser humano e salientando
a necessidade de combater-se a fome e a miséria. Realizou-se uma análise da
problemática da fome no Brasil, bem como as políticas existentes para seu combate, e
chegou-se à conclusão de que as principais causas da fome no país são a pobreza e o
desemprego, posto que o aumento da capacidade produtiva não acarretou a redução
relativa dos preços dos alimentos, tampouco uma maior capacidade de aquisição de
alimentos pela população mais pobre (YASBEK, 2004, p. 106).
Não obstante, o projeto apresentou uma série de programas, como o Programa de
Alimentação do Trabalhador (PAT), Programa de Combate às Carências Alimentares e
Bolsa-Saúde, Programa Cestas Básicas (Prodea), e Cupons de Alimentação. Sinalizando
para a importância da reforma agrária e da agricultura familiar, das políticas de renda
mínima, do Bolsa-Escola e da Previdência Social, de restaurantes populares, Fóruns
Estaduais de Segurança Alimentar, e a merenda escolar (YASBEK, 2004, p. 107).
Segundo YASBEK (2004),
Esse programa teve como objetivo erradicar a fome e implementar uma política
nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil, por meio de políticas
estruturais, tanto específicas quanto locais. Além de medidas estruturais, prometia uma
política de apoio à agricultura familiar, o direito à Previdência Social, direito à
complementação de renda, ampliação da merenda escolar e o apoio a programas criados
por governos estaduais e municipais (VASCONCELOS et al, 2019, p.4).
Assim, conceberam-se ações que visavam o aumento da oferta de alimentos e a
facilidade de seu acesso, propostas estas para o apoio emergencial à população vulnerável
à insegurança alimentar. O Programa Fome se transformou em vários outros programas,
como o Programa Bolsa Escola, uma espécie de política estrutural de sustentação da renda
das famílias, com as contrapartidas necessárias (BELIK, 2012, p. 100).
Destarte, o Programa Fome Zero, ao incluir esse tema em debate público na
grande mídia, com a opinião de diversos especialistas no assunto, evidenciou a situação
de fome e de pobreza em que viviam grande parte da população brasileira, problemática
que passou a ser abordada como questão pública (YASBEK, 2004, p. 109).
Estima-se que, até janeiro de 2004, o programa atendeu cerca de 1.900.000
famílias, totalizando 11 milhões de indivíduos, em 2.369 municípios, localizados, em sua
maioria, nas regiões semiáridas do Nordeste. Dentre as políticas implementadas, estão a
adoção do Cartão Alimentação, que disponibilizava R$ 50,00 para famílias com renda
mensal per capita inferior a meio salário-mínimo; a distribuição de alimentos em
assentamentos dos sem-terra, às comunidades indígenas e aos quilombolas; o programa
de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (Programa do Leite), que consistia na
aquisição de leite de pequenos produtores pelo governo; a ampliação da merenda escolar;
e a Nutrição Materno Infantil (Bolsa-Alimentação) (YASBEK, 2004, p. 110-111).
Dado o desafio logístico de distribuir fisicamente alimentos a famílias
necessitadas por todo o país, o Programa Fome Zero deu espaço ao Programa Bolsa
Família, que consistia em um programa de transferência de renda (ABREU, 2014, p.369).
“A renda per capita dos 20% mais pobres cresceu muito mais rapidamente do
que a dos 10% mais ricos. A redução da pobreza que havia sido possibilitada
pela estabilização da economia no governo anterior foi marcadamente
acentuada no período Lula. O número de indivíduos vivendo em condições de
pobreza extrema, que havia sido reduzido em 31,9% entre o Plano Real e o
final do segundo mandato de FHC, sofreu forte redução adicional de 50,6%
durante os dois mandatos do presidente Lula. O Coeficiente de Gini caiu de
0,563, em 2002, para 0,530, em 2010” (ABREU, 2014, p.370).
O gráfico abaixo permite observar o número de pessoas que sofreram algum grau
de insegurança alimentar ao longo dos anos no Brasil. Nele é possível ver que a fome
esteve em declínio entre 2004 e 2013, quando voltou a subir, atingindo em 2020 quase o
dobro do número registrado em 2004, cerca de 62% superior. Dado que a estimativa do
IBGE da população brasileira em 2020 era de 211,8 milhões de habitantes (AGÊNCIA
DE NOTÍCIAS, 2020), naquele ano cerca de 55% dos brasileiros sofreram com algum
grau de insegurança alimentar, um percentual extremamente alarmante.
Gráfico 8: Evolução da insegurança alimentar (leve, moderada e grave) ao longo dos anos.
Fonte:
PNAD 2004, 2009, 2013 (IBGE) e Rede Penssan (2020)
do dólar, a produção é canalizada para a exportação, onde serão realizados maiores lucros
(BORBOREMA, MÍDIA NINJA, 2021).
Nesse sentido, o pesquisador Silvio Porto afirma que a adoção de uma estratégia
de produção voltada a atender quase que exclusivamente o mercado internacional, e
baseado na produção de commodities, principalmente soja e milho, que representam cerca
de 90% da produção nacional de grãos, demonstra que não há preocupação com a
produção de alimentos diversificados, adaptados regionalmente, destinados a atender as
necessidades da população brasileira. O pesquisador pontua que na gestão do atual
governo, optou-se por especializar-se paulatinamente em produzir commodities para
suprir o mercado internacional ou matéria-prima para a indústria produzir alimentos de
baixíssima qualidade, isto é, os alimentos ultra processados, que acarretam doenças
associadas à má alimentação, implicando a destruição do território brasileiro e a redução
da agro biodiversidade (BORBOREMA, MÍDIA NINJA, 2021).
Além da extinção do CONSEA, do enfraquecimento de inúmeras políticas
públicas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), em 2020, o presidente da
República vetou quase todos os artigos do Projeto de Lei 735/20, que beneficiaria a
agricultura familiar. Em meio à pandemia, com diminuição da capacidade dos transportes
rurais e das feiras, os trabalhadores rurais não receberam nenhum apoio para continuar a
produzir alimentos. Vale ressaltar que a agricultura familiar é responsável por garantir
cerca de 70% dos alimentos destinados ao mercado interno (BORBOREMA, MÍDIA
NINJA, 2021).
Neste contexto, segundo o levantamento do Dieese (Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos), em 2021, a cesta básica subiu em 14 das 17
capitais dos estados brasileiros nos últimos 12 meses. As maiores altas foram registradas
em Brasília, 33,36%, e em Campo Grande, 26,28%. Entretanto, Porto Alegre e São Paulo
têm as cestas mais caras do país, R$ 636,96 e R$ 636,40, respectivamente, registrando
altas de 22,82% e 14,39% no período. Assim, um morador da cidade de São Paulo que
ganha até um salário-mínimo e tem uma jornada diária de 8 horas precisa trabalhar quase
16 dias para conseguir comprar uma cesta básica e gasta mais de 62% de seu salário com
este item (G1, 2021).
Nessa toada, a pesquisadora Adriana Salay Leme afirma que a emergência
sanitária da COVID-19 tem potencial de causar a fome epidêmica, proveniente de crises,
que tende a se juntar com a fome endêmica, de origem estrutural, muitas vezes oculta e
expressa por estados de subnutrição apresenta-se de forma constante (LEME, 2020, A12).
9 ARMADILHA DA POBREZA
9.1 HERANÇA DA FOME: EROSÃO DO CAPITAL HUMANO
Em sua obra “Urupês”, Monteiro Lobato discorre acerca do estereótipo do caboclo
brasileiro através do personagem Jeca Tatu, descrevendo-o como preguiçoso, uma
espécie de “sacerdote da Grande lei do Menor Esforço”, sempre disposto a justificar sua
falta de esforço e aversão ao trabalho com a frase “não paga a pena”. Para tanto, utiliza-
se dos seguintes trechos para sua descrição: “seu grande cuidado é espremer todas as
consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longe”, e “Quando a palha do teto,
apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva, Jeca, em vez de remendar a tortura,
limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a água gotejante” (LOBATO,
Monteiro. Urupês, 1918).
Segundo Josué de Castro, essa “apregoada preguiça dos povos equatoriais” não se
deve à sua raça ou nacionalidade, tampouco seria consequência de falta de inteligência,
mas sim o resultado direto da insuficiência alimentar quantitativa, a chamada “fome”, ou
subnutrição, se manifesta em menores proporções (CASTRO, 1984, p.67). Essa
deficiência alimentar causa a reduzida capacidade do trabalho, ou seja, a baixa
produtividade e menor competitividade econômica (CASTRO, 1984, p.134). A respeito
dessa problemática o autor afirma:
alimentadas têm filhos com peso insuficiente, com pouca aptidão para a
atividade física e mental. A produtividade dos indivíduos e o crescimento das
nações estão gravemente comprometidos por essa mácula. A fome gera
desespero, e as pessoas famintas são presas fáceis para aqueles que tratam de
conseguir poder e influência através do delito, da força, ou do terror, o que
coloca em perigo a estabilidade nacional e mundial. Por isso, a luta contra a
fome responde aos interesses de todos, tanto ricos como pobres”
(CAPARRÓS, 2016, p.501).
Este excerto mostra que a fome, ao invés de ser tida por alguns como uma
consequência de problemas econômicos, é vista como um elemento disciplinador
(CAPARRÓS, 2016, p.239), uma solução para obrigar os trabalhadores a trabalharem por
salários mais baixos, para não passarem fome. Isso ocorre, visto que o mercado alimentar
apresenta baixa elasticidade, ou seja, independentemente da oferta e da alta dos preços, a
demanda não sofrerá uma forte alteração (CAPARRÓS, 2016, p.335). Logo, a fome serve
como um mecanismo de exploração dos trabalhadores, um meio de aumentar a extração
de mais-valia.
Tendo isso em vista, uma sociedade que tem uma grande parcela de sua população
desempregada, isto é, muito maior a demanda por trabalho do que a sua oferta, pode
incorrer em um processo de achatamento progressivo dos salários e consequente aumento
da exploração dos trabalhadores. Os desempregados desempenham uma função
econômica, fazem pressão sobre os trabalhadores empregados para que estes se submetam
a maiores jornadas e menores salários, já que podem ser substituídos pelo exército de
reserva a qualquer momento (CAPARRÓS, 2016, p.491).
A isso soma-se ao fato de que, quanto menor a renda familiar, maiores são as
chances das crianças e adolescentes terem que trabalhar para complementar a renda da
família (CUT, 2018). Assim, o trabalho nessas faixas etárias contribui para a diminuição
do tempo de dedicação dessas crianças aos estudos, podendo implicar em reprovações na
escola até a evasão escolar, nos casos mais extremos, o que faz com que estas pessoas
tenham menos chances de ingressar em cursos de graduação e terem trabalhos mais bem
remunerados (LIMA, 2013, p.10).
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A estrutura político-socioeconômica atual de determinado país está
intrinsecamente alicerçada à sua formação histórica. Consequentemente, a herança da
colonização do Brasil por Portugal, de caráter exploratório, ao se utilizar da escravidão,
de um modelo baseado no latifúndio, foi determinante na estruturação de uma sociedade
essencialmente desigual, pautada na concentração fundiária proveniente das capitanias
hereditárias, e em uma matriz econômica voltada para a exportação de produtos
primários, as commodities. Essas desigualdades socioeconômicas se traduzem na fome,
que sempre acometeu os brasileiros. A fome é uma herança da colonização do Brasil.
REFERÊNCIAS