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78 economia & história: especial Celso Furtado

eh

Celso Furtado, 100 Anos: Formação econômica da América Latina


(1969)
Ivan Colangelo Salomão (*)

Conquanto tenha dedicado o mais longo e fecundo pe- Brasil (1959) é, de fato, um livro obrigatório e mere-
ríodo de sua trajetória intelectual à pesquisa teórica cedor de todas as loas que se lhe dedicam há décadas,
e à análise econômica coetânea, é possível que Celso não se faz menos notável o desinteresse com que a
Furtado ainda seja mais reconhecido por seus présti- historiografia geralmente trata outra contribuição
mos à história econômica. Se Formação econômica do maiúscula de sua lavra à historiografia.

Formação econômica da América Latina (Lia Editora, 1969)


e A economia latino-americana (Cia. das Letras, 2007).

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Formação econômica da América estruturalista da história do sub- no centro da análise, por óbvio, a
Latina (1969) é uma obra igual- continente. história da América Latina.
mente necessária não apenas para
a melhor compreensão da trajetó- Por outro lado, uma fragilidade O autor introduz o livro reconsti-
ria histórica desse ente tardia e po- inerente a empenhos com esse grau tuindo os principais aspectos da
liticamente denominado América de abrangência é a incapacidade colonização ibérica. Já no primeiro
Latina, mas sobretudo por oferecer de se abarcar de forma equilibra- capítulo, Furtado apresenta a cir-
elementos para se debater, e vis- da todos os entes que compõem cunstância histórica que balizou a
lumbrar, os meandros e as oportu- essa abstração chamada América realidade desses países e que per-
nidades de desenvolvimento dessa Latina. Por mais que tenha se pre-
meia sua argumentação ao longo
região. Afinal, há quem a considere, ocupado em analisar os países em
de toda a obra: a inserção inter-
com a devida vênia, uma segunda suas principais especificidades, a
nacional da América Latina nos
“obra-prima do estruturalismo ênfase do livro recai, naturalmen-
quadros da Divisão Internacional
te, sobre as maiores economias do
cepalino” (BIELSCHOWSKY, 1989). do Trabalho (DIT). A condição de
continente. Por fim, uma crítica
a ele recorrentemente tecida por ofertantes de bens tradicionais
Ao que se consta, trata-se do único e a impossibilidade de se romper
analistas de outras áreas das ciên-
de seus livros cujo título foi (opor-
cias sociais seria o viés demasiada- com a dependência da manufatura
tunamente) alterado após o lança-
mente economicista da obra. Com estrangeira fazem-se presentes em
mento. A edição de 1976 foi impres-
efeito, há longos trechos de mera cada prescrição de política pública.
sa sob a designação A economia
apresentação de dados econômicos
latino-americana, modificação que
que, se não depõem contra o cerne Ainda que por demais esquemá-
reflete de modo mais fidedigno o
de sua argumentação, fazem de sua tica e não exatamente original,
seu conteúdo. Dividido em 8 partes
leitura tarefa um tanto enfadonha. a apresentação das especificida-
e 25 capítulos, a antiga referência
Ademais, se a escassez de fatos ou des da colonização espanhola não
mostrava-se um tanto desbalan-
atores políticos entremeados aos verificadas no Brasil são um dos
ceada, uma vez que, a partir do
acontecimentos econômicos não pontos altos dessa primeira parte.
quinto capítulo, o autor já se atém se iguala em vetor à economia neo- As diferentes formas de ocupação
a apenas questões da contempora- clássica por dispensar a práxis hu- e exploração econômica (encomien-
neidade. mana na construção do desenvolvi- das), bem como as prerrogativas e
mento, acaba por empobrecer uma os deveres de que se incumbia esse
Além do atestado conhecimento compreensão mais holística da rica
histórico de que dispunha, Celso agente privado (encomendero) de-
e complexa história da região.
Furtado, já entrado na fase madura monstram a relevância de duas ins-
de sua carreira, estava duplamen- tituições basilares da dominação
Mas ainda que se repute historio-
te autorizado a discorrer sobre a gráfica, a obra oferece ao leitor um ibérica: a Igreja Católica e a Ordem
economia latino-americana. A pas- verdadeiro curso de teoria econô- militar. “Em razão da tutela que
sagem pela CEPAL, onde chefiou o mica. Como não poderia deixar de exercia sobre um grupo de popula-
Departamento de Desenvolvimen- ser, a sequência dos capítulos per- ção, passava a exercer privadamen-
to por quase uma década, garantiu- passa todos os elementos da escola te funções de direito público, o que
-lhe repertório suficientemente estruturalista, da industrialização o colocava socialmente em posição
robusto para oferecer, sob mirada à inf lação, da inelasticidade da somente comparável à do senhor
privilegiada, uma interpretação oferta agrícola à reforma agrária; feudal da Europa medieval.” (p. 31).

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A centralidade da riqueza mi- tenha superestimado a fortuna de de “burguesias locais europeizan-


neral encontrada na América nossas terras. tes”, por outro lado, o autor a ele
hispânica para os (des)cami- credita o despontar de “forças de
nhos de sua história é outro O pau lat i no esgot a ment o da s defesa da cultura local” (p. 44), as
ponto a que Furtado dedica de- minas após os primeiros 150 anos quais, por sua vez, moldaram os
morada atenção. Em primeiro de pilhagem antecipou o enfraque- distintos processos de formação
lugar, por ensejar a penetração cimento dos laços que uniam os dos Estados nacionais. “Na ausên-
dos invasores castelhanos no dois lados do Atlântico. Subjacente cia de vínculos econômicos mais
novo continente. Se a explora- à crise político-institucional por significativos, o localismo político
ção econômica sistematizada que passavam as Coroas ibéricas, a tendia a prevalecer” (p. 45), de
dos portugueses se restringiu à decadência da principal atividade modo que os interesses de tais bur-
exígua faixa no litoral brasilei- econômica (e geradora de exceden- guesias regionais com vínculos no
te) na América hispânica emoldu- além-mar se sobrepuseram a even-
ro por aproximadamente 200
rou o colapso do Sistema Colonial, tuais vetores centrípetas e, contra-
anos, os espanhóis já haviam
permitindo que as novas ideias (e riando o desejo de Bolívar, resulta-
varrido o continente, do Rio
produtos) que conquistavam o con- ram na divisão do território.
Grande à Patagônia, nas cinco
tinente catalisassem o desfecho de
primeiras décadas do século
três séculos de exploração. Se por um lado o século XIX assisti-
XVI.
ria à independência dos países em
Furtado nota que, se os interes- relação às antigas metrópoles, por
Para além de seu reconhecido efei-
ses embutidos nas manufaturas outro testemunharia a submissão
to multiplicador sobre outras ati-
inglesas contribuíram, de fato, das nações recém-emancipadas à
vidades econômicas, a opulência
para o esfacelamento da estrutu- (não tão) nova divisão internacio-
do subsolo também balizou o de-
ra do Ancien Régime nos trópicos, nal do trabalho que emergia com a
senvolvimento dos dois principais
o liberalismo também concorreu Revolução Industrial. Fenômenos
polos civilizacionais do continente
para acelerar esse longo processo. distintos em essência (NOVAIS,
à época da invasão espanhola – o Caracas e Buenos Aires, duas das [1979]/2019), o fato é que ambos
centro do México e o Altiplano principais cidades portuárias da dificultaram a transformação es-
Andino –, viabilizando estruturas América do Sul, foram as primeiras trutural da qual dependiam as
políticas, sociais, culturais e mate- a receber tanto os bens (conheci- economias latino-americanas para
riais tão ou mais complexas do que dos, havia muito, via contrabando) romper a barreira do subdesen-
as encontradas na Europa. Nesse quanto as tais ideias de origem volvimento: a adoção de políticas
momento, faz-se digno de nota, britânica, fazendo com que nelas nacionais de desenvolvimento eco-
porém, a estranheza causada por despertassem, ainda que de forma nômico que visassem à superação
uma das mais controversas afir- prematura, certa “consciência re- do modelo primário-exportador.
mações do livro. Segundo Furtado, volucionária” (p. 42). Formava-se
a produção brasileira de ouro no o palco para a eclosão das guerras O surgimento de um sistema de
século XVIII teria sido superior de independência e a consequente economia mundial entre convulsão
“a toda produção desse metal nas fragmentação dos antigos vice- napoleônica e a I Grande Guerra
terras espanholas nos dois sécu- -reinados em diferentes repúblicas. não logrou alterar, mas qualificou
los anteriores” (p. 33). Sem citar a condição de dependência das
a fonte na qual teria embasado tal Se o triunfo do movimento separa- economias latino-americanas. De
cotejamento, é possível que o autor tista contribuiu para o surgimento forma sumarizada, Furtado (p. 57)

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apresenta os principais aconteci- pitais e promovia o consumo de população. No México, o governo


mentos subjacentes a esse período novos bens industriais (p. 61). Porfirio Díaz criou condições para
de ruptura com continuidade: (1) intensa penetração de capitais es-
revolução nos meios de transpor- Consolidava-se, assim, um novo trangeiros nos setores minerador e
te: marítimo (com a invenção da sistema-mundo sob a hegemonia petrolífero, cuja produção cresceu
hélice, nos anos 1840) e terrestre produtiva e financeira da Inglater- 7,2% ao ano na primeira década do
(por meio das ferrovias); (2) queda ra, que controlava a logística nos século (p. 66).
expressiva nos custos de transpor- mares e conectava regiões cada
te de matéria-prima e bens indus- vez mais especializadas em bens de A eclosão da Primeira Guerra veio
trializados; (3) elevação da taxa de que gozavam de vantagens ricar- a interditar, porém, o caminho de
crescimento tanto das economias dianas. No caso latino-americano, crescimento vislumbrado por de-
centrais quanto das periféricas Furtado criou a seguinte tipologia terminadas nações. Dependentes
que utilizaram mais racionalmente para analisar essa nova realidade: da demanda forânea, as economias
seus recursos naturais; (4) dinami- (1) países exportadores de produ- primário-exportadoras viram-se
zação do quadro demográfico de- tos agrícolas de clima temperado num quadro de reversão da pro-
corrente da urbanização, melhoria (Argentina e Uruguai); (2) paí- cura por determinados bens (de
dos serviços públicos e aumento ses produtores de bens tropicais baixa elasticidade preço e renda
dos salários reais; (5) geração e (Brasil, Colômbia, Equador, Amé- da demanda), de deterioração dos
expansão de um fundo de conhe- rica Central e Caribe); e (3) países preços de outros (como salitre chi-
cimento técnico transmissível nas exploradores de riquezas mine- leno, substituído pelo nitrato sin-
formas de produção. Em suma, tra- rais (México, Peru, Chile, Bolívia e, tético, além das fibras e borrachas
tou-se do período de expansão do posteriormente, a Venezuela). Se artificiais etc.) e de modificação na
comércio internacional cujo prin- independente politicamente havia composição do comércio mundial,
cipal resultado foi o crescimento pouco, a América Latina mantinha- cuja nova febre passava a ser a im-
desequilibrado das economias que -se igualmente atrelada ao circuito portação de petróleo (p. 69).
dele participavam. do capitalismo, agora industrial,
sob a Pax Britannica. Se o conf lito bélico (1914-1918)
Diferentemente do observado em interrompeu a rota virtuosa por
determinados países de coloniza- Apesar das graves crises financei- que trilhavam alguns países da
ção inglesa – com cujas trajetórias ras vivenciadas pelas duas maiores América Latina, a crise dos anos
Celso Furtado recorrentemente economias sul-americanas nos 1930 viria a transformar o capita-
compara as da América Latina –, anos 1890, o século XX se apresen- lismo como conhecido até então.
a periferia do continente aprofun- tava com perspectivas positivas Ainda que universal, o colapso não
dou a estratégia adotada até então: para o subcontinente. O Chile prati- se fez linear, traduzindo-se em
em detrimento das atividades de camente monopolizava a produção oportunidade para determinadas
subsistência voltadas ao mercado de salitre; Cuba se tornava o prin- economias. Se em Formação Eco-
interno, a produção voltada para cipal fornecedor de açúcar ao mer- nômica do Brasil (1959) o autor
fora conheceu as mais altas taxas cado norte-americano; o Brasil, de consagrou o movimento por ele ba-
de expansão verificadas até então. café. A Argentina, graças à expor- tizado de “deslocamento do centro
Indo além, a Revolução Industrial tação de cereais e carnes, expandia dinâmico” da economia brasileira,
lograra criar uma rede de trans- sua malha ferroviária (31 mil km) Celso Furtado revisita o conceito
missão de progresso tecnológico e assistia à chegada de imigrantes uma década depois para lançar luz
que facilitava a exportação de ca- europeus que fizeram dobrar a sua sobre a necessidade de determi-

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nadas economias suplantarem o vel, praticavam atividades de sub- Processo de Substituição de Im-
modelo vigente. Em outros termos, sistência de baixa produtividade. portações (PSI) a ponto de sugerir
eram as especificidades históricas Tratava-se do exemplo vivo, e pré- que a América Latina só “deixou de
que as condenavam ao subdesen- vio, a ratificar a teoria ricardiana ser uma expressão geográfica para
volvimento, situação da qual não se da renda da terra. transformar-se em uma realidade
livrariam sem fricções estruturais, histórica como decorrência do pro-
uma vez que não se tratava, aquele, E qual a relevância desse quadro? cesso de industrialização” (p. 21).
de uma etapa da teleologia ineren- A “extrema subutilização das ter-
te ao fenômeno do desenvolvimen- ras apropriadas pelos latifundis- Após apresentar o modelo consa-
to; antes, era a própria condição a tas” (p. 97), cuja produtividade se grado (e revisitado) por Tavares
que a história as relegaria se man- mantinha apenas em virtude da ([1963]/1972), Furtado corrobora
tido o status quo. apropriação de terras abundantes a sua interpretação clássica pos-
e de alta fertilidade. Em outros teriormente alcunhada (e também
Assim se inicia a terceira parte da termos, os latifúndios caracteri- qualificada) de “teoria dos choques
obra – uma espécie de antessala zavam-se pela subutilização dos adversos”, realçando a centralida-
para a protagonista industrializa- fatores, o que depunha contra o de da crise dos anos 1930 como
ção –, seção em que Furtado anali- próprio (desde sempre alegado) estopim para a mudança de modelo
sa as características fundantes das intento de alocação ótima dos re- de desenvolvimento. No Chile, não
estruturas tradicionais. Instituição cursos. Menos por convicção téc- restou alternativa ao Estado que
comum a praticamente todos os nica do que por pressão política, não a de intervir diretamente para
países da região, a grande proprie- países como México, Bolívia, Cuba superar obstáculos decorrentes
dade ocupa lócus central na histó- e, naquele momento, o Chile refor- da desorganização do setor ex-
ria da América Latina não apenas maram, em alguma medida, suas portador, dominado pela venda de
por representar a unidade básica estruturas agrárias, política que, salitre; assim, argumenta-se que a
do sistema produtivo, mas por per- se não contribuiu para debelar a substituição de importações chile-
mear toda a organização político- inflação, concorreu para garantir na não foi exatamente espontânea,
-social do continente (p. 89). oportunidade de sobrevivência à pois. Na Colômbia, cuja manufatura
massa campesina desprovida de era incipiente até 1930, as expor-
Lateralizada pela hegemonia dos meios de subsistir. tações de café até já haviam per-
grandes fazendeiros no caso bra- mitido a formação de um mercado
sileiro, os binômios latifúndio-co- Diante da impossibilidade de se consumidor que justificasse a ins-
munidade indígena e, sobretudo, garantir a estabilidade do balanço talação de indústrias. A crise teria
latifúndio-minifúndio pautaram a de pagamentos, a sustentabilidade funcionado como um mecanismo
estrutura agrária da América his- do crescimento do produto e, em de proteção adicional, precipitan-
pânica. Isso porque os indivíduos última análise, o desenvolvimento do o processo de internalização de
que não dispusessem de recursos do qual dependia a inclusão de tais (parte) do seu centro dinâmico (p.
financeiros nem desejassem tra- trabalhadores subalternizados, 139).
balhar nos latifúndios, ou nestes Furtado passa a analisar, a partir
não encontrassem trabalho, insta- do capítulo 10, as condições sobre A Argentina reunia as condições
lavam-se em terrenos de qualidade as quais determinadas economias mais favoráveis – acumulação de
inferior e localização desvantajosa, do continente lograram industria- capital, melhor infraestrutura da
nos quais, na impossibilidade de lizar-se. Faz-se claro o vigor com região, mão de obra qualificada e
geração de excedente comercializá- que o autor analisa o fenômeno do disponível, mercado interno sufi-

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cientemente grande etc. E a des- de onde se irradiam as chamadas anterior, passavam por um forte
peito da assinatura de um tratado pressões inf lacionárias básicas, declínio do coeficiente (Argentina
com a Inglaterra que ratificava as pontos da estrutura econômica que e Chile). Se considerado o índice
vantagens ricardianas de especia- mais resistência oferecem às trans- tido ideal pelo autor (15%), todo o
lização produtiva (Roca-Runcimán, formações requeridas pelo de- continente se encontrava, no mo-
1933), o país também assistiu a um senvolvimento”, ao lado das quais mento em que redigia o livro, em
aprofundamento da sua industria- atuam “outros fatores que tanto estagnação de seus processos de
lização substitutiva de importa- podem ser circunstanciais como industrialização (p. 168).
ções naquele momento. O México, engendrados pelo próprio processo
diferentemente do observado nos inflacionário” (p. 153). Premissas Diante da crise encabeçada pela
outros países, seguiu o modelo que lhe incitavam a crítica à receita Argentina desde os anos 1950 e à
clássico ao partir do artesanato, contracionista do FMI – seguida no qual se juntaria o Brasil, a partir
que só foi superado pela introdu- Chile nos anos 1950 e, na Argentina do início da década de 1960, Fur-
ção paulatina de novas técnicas e Brasil, na década subsequente –, tado procura explicar a realidade
produtivas ainda antes da crise (p. uma vez que a contração monetá- do momento sem isentar o modelo
128). Em comum, todos tiveram no ria invariavelmente sugerida pelo substitutivo de importações pelas
choque exógeno o estopim desen- órgão escasseia o crédito ao siste- respectivas conjunturas. No caso
cadeador do processo substitutivo. ma produtivo, paralisando certas argentino, observou-se a conjuga-
empresas (não necessariamente as ção de dois fatores perniciosos, a
Ainda que entusiasta dessa estra- menos eficientes) e aumentando os saber: a excessiva horizontalização
tégia, Furtado não deixa de reco- encargos financeiros de outras (p. da industrialização e o desincen-
nhecer que, assim como as políticas 158). tivo às inversões no setor expor-
de defesa do setor exportador, a tador, responsável por gerar as
industrialização por substituição A partir da quinta parte da obra, divisas necessárias à manutenção
de importações também poderia Furtado se atém a aspectos ma- do processo (p. 212). No caso bra-
gerar pressão inflacionária. Mesmo croeconômicos contemporâneos, sileiro, a “difusão insuficiente dos
que por outros mecanismos – des- com destaque para a industrializa- ganhos de produtividade” impedia
valorização cambial naquelas, pro- ção. Os anos 1950 e 1960 haviam o alargamento do mercado interno
teção aduaneira e declínio do coefi- assistido a mudanças econômicas necessário para o aprofundamento
ciente de importações (de bens de estruturais em toda a América da industrialização. Condizente
consumo) nessa –, o autor arrola Latina, em especial no que tangia com o diagnóstico apresentado
cinco elementos comuns ao fenô- a suas plantas industriais. Ainda em Subdesenvolvimento e estagna-
meno inflacionário surgido no bojo assim, o autor identificou três com- ção na América Latina (1966), em
do PSI, condizente, como esperado, portamentos gerais: (1) países Um projeto para o Brasil (1968) e
com a teoria estruturalista: (1) cujos coeficientes de importação em Análise do “modelo” brasilei-
inelasticidade da oferta agrícola; aumentaram (Peru e Venezuela); ro (1972), Celso Furtado entende
(2) inadequação da infraestrutura; (2) aqueles em que o coeficiente se que a estagnação por que passa-
(3) inadequação do fator humano encontrava em declínio, mas onde vam os referidos países respondia
disponível no curto prazo; (4) ina- o impulso substitutivo preceden- à crise “no” modelo, e não “do”
dequação das estruturas fiscais; te era suficientemente robusto modelo (FONSECA, 2003). Ainda
(5) aumento dos encargos financei- para sustentar o desenvolvimento assim, chega a se questionar “se a
ros. Em suma, a análise cepalina da (Brasil e México); (3) economias industrialização latino-americana
carestia se detém sobre os “focos que, a despeito da industrialização apresenta limitações intrínsecas”

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(p. 211), uma vez que os óbices en- apresenta uma série de medidas sido positivamente alterada após
contrados por esses países não se adotadas pelos diferentes países a II Guerra – dos bancos privados
apresentavam na época do proces- com vistas a atenuar os efeitos de- para instituições multilaterais,
so de industrialização originário. letérios dessa condição. A política sobretudo o BID. E por mais que
fiscal venezuelana, pela qual as essa mudança representasse um
Na sexta parte do livro, Furta- petroleiras estrangeiras lá esta- progresso – não exatamente em
do aborda outro aspecto fun- belecidas pagavam (em dinheiro relação às condições de prazo e
damental subjacente à defesa ou petróleo) royalty por unidade custo, mas, sobretudo, pelas con-
cepalina de industrialização: as produzida, contribuiu de forma trapartidas exigidas no bom uso
relações internacionais. Para decisiva para o desenvolvimento do recurso emprestado –, o autor
além das crises estruturais do do parque industrial nacional (p. censurava a maneira pela qual
balanço de pagamentos das 224). Ou a própria nacionalização governos da região atraíam as em-
economias primário-exporta- do setor no México, em 1938, cuja presas transnacionais. Ao conceder
doras, o autor argumenta que, administração sobre as cambiais benefícios cambiais e, mormente,
mesmo nos países que haviam contribuiu para a expansão da linhas de financiamento interno,
se industrializado, a dependên- industrialização nos anos 1940. as economias que justamente care-
cia em relação ao centro mate- Ou a política argentina de compra ciam de recursos em moeda forte
rializava-se, posteriormente, oficial da produção destinada ao simplesmente dispensavam as di-
em seu aspecto financeiro. As exterior coordenada pelo Instituto visas que supostamente as empre-
recorrentes crises cambiais Argentino de Promoción del Inter- sas deveriam aportar-lhes (p. 250).
por que passavam economias cambio (IAPI), considerada pelo
industrializadas como a argen- autor o mais bem-sucedido exem- Corroborando a impossibilidade
tina, a brasileira e a mexicana plo de controle de exportações. Ou de se superar o desequilíbrio ex-
corroboram e ilustram a ar- a estatização parcial do setor de terno por meio do modelo ricar-
gumentação desenvolvida no cobre no Chile, onde antes mesmo diano de comércio internacional, o
capítulo 16. de o governo passar a participar autor afirma que “nenhum aspecto
do controle acionário das empre- chama tanto a atenção quanto à
Os países em cujas pautas de ex- sas (1966), o Banco Central do imutabilidade do quadro das ex-
portações predominavam bens pri- país passou a comprar e revender portações regionais” (p. 257). Ou
mários dependiam de inversões es- a produção a preços mais elevados seja, se o mundo havia, de fato, se
trangeiras em infraestrutura para no mercado internacional – política transformado, a dependência das
expandir o excedente exportável. E que lhe rendeu aproximadamente economias periféricas em relação
mesmo os que já haviam adentrado 190 milhões de dólares entre 1952 à exportação de poucos produtos
algum estágio de industrialização e 1955 (p. 233). primários permanecia impávida e
não escapavam dessa situação, imutável. Ao responsabilizar tam-
uma vez que a poupança interna Mesmo diante do relativo êxito de bém os países centrais por essa
insuficiente fazia do financiamento algumas das políticas supracitadas, situação, Furtado sugeria uma es-
externo condição obrigatória para Furtado mostrava-se cético em tratégia coordenada de ação global,
fazer avançar as “ondas” de substi- relação aos benefícios da industria- a qual, entre outros elementos, per-
tuição (TAVARES, 1963). lização associada ao capital estran- mitisse o livre acesso aos mercados
geiro. É verdade que a forma como das economias desenvolvidas e,
Para além do recorrentemente uti- as economias latinas financiavam sobretudo, a produtos e insumos
lizado controle cambial, Furtado projetos de industrialização havia básicos requeridos para que se en-

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cetassem seus próprios processos cionista’ continuarão a ser lentos elevação do nível educacional das
de industrialização (p. 267). e as decepções nesse terreno fre- massas e na melhoria de suas con-
quentes, enquanto o planejamento dições de saúde, bem como a mo-
Apesar da ênfase oferecida à in- econômico não se transforme num bilização do povo e sua integração
dustrialização substitutiva de im- instrumento eficaz de política no no processo político, demonstram
portações como principal meio de plano nacional.” (p. 292). cabalmente a capacidade excepcio-
se superar o subdesenvolvimento, nal dos líderes revolucionários” (p.
Furtado reconhece que se trata, Por fim, faz-se digna de nota a 350).
esta, de uma possibilidade, e não análise que Furtado tece acerca
exatamente de uma opção baseada da Revolução Cubana na oitava e Se as crises política e econômica
apenas em vontade política. Dentre última parte do livro. Procurando por que passava a maioria dos
as condições a serem satisfeitas, o afastar-se de qualificações laudató- países da América Latina naquele
tamanho do país e do respectivo rias, o autor reconstitui partes do ano de 1969 eram, de fato, profun-
mercado mostravam-se fundamen- caminho da história e da economia das e desafiadoras, o autor apre-
tais. Daí a oportunidade que polí- cubanas desde o início do século senta uma obra moderadamente
ticas de integração regional ofere- XX para defender que o movimen- otimista. Ao elencar seis grandes
ciam a um continente fragmentado to revolucionário de 1959 deve propostas para um continente (li-
como a América Latina, uma vez ser compreendido como parte do teralmente) de oportunidades, o
que acordos dessa natureza viabili- processo de formação do Estado mais importante economista brasi-
zariam a expansão das transações nacional, iniciado na luta (tardia) leiro de sua época – e, certamente,
econômicas sem prejudicar as ex- de libertação contra a Espanha. um dos intelectuais com maior
portações tradicionais (p. 279). conhecimento factual da região
Do ponto de vista econômico, Fur- – oferecia respostas ao labirinto
No momento em que escrevia, as tado divide o primeiro decênio que governos, em grande parte
expectativas em relação à recém- da nova administração cubana ilegítimos, haviam transformado a
-criada Associação Latino-Ameri- em dois momentos distintos: (1) América Latina.
cana de Livre Comércio (ALALC) quando se modificou a estrutura
mostravam-se promissoras devido de poder e distribuição de renda, Sabedor de que o fenômeno do
aos avanços (pontuais) nas roda- com ênfase na reforma agrária; desenvolvimento não permitiria
das de liberalização comercial. (2) o da reconstrução da estrutura a manutenção de desigualdades
Ainda assim, o autor não tomava econômica do país. Nesta segunda naqueles níveis, Celso Furtado en-
esse tipo de tendência como a pa- etapa, Celso Furtado ficou espe- cerra o livro com 12 palavras que
naceia para os problemas da peri- cialmente impressionado com o soam, 50 anos depois, mais atuais
feria. Se confiava à integração um círculo vicioso pelo qual o governo do que nunca: “o custo do imobi-
papel relevante, era às políticas passou a submeter a um controle lismo social será crescente para
nacionais que Furtado creditava direto todas as decisões econômi- aqueles que dele se beneficiam.”
a incumbência do desenvolvimen- cas (p. 343). Demonstrando certa
to; tanto mais úteis aos parceiros esperança com as possibilidades
Referências
serão os países da região quanto que a economia dirigida e plani-
mais robustas forem as respec- ficada vislumbrava para a década
tivas economias nacionais. Nos de 1970, Furtado parecia mesmo BIELSCHOWSKY, Ricardo. Formação
termos do autor: “os progressos satisfeito com o que ele classificou econômica do Brasil: uma obra-prima do
estruturalismo cepalino. Revista de Eco-
do chamado movimento ‘integra- de “grandes vitórias obtidas na nomia Política, v. 9, n. 4, out./dez. 1989.

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______. Um projeto para o Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1968.

______. Formação econômica da América Latina. Rio de Janeiro:


Lia, 1969-1970.

______. Análise do “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1972.
(*) Professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal
colonial (1777-1808). São Paulo: Editora 34, 1979-2019. do Paraná (PPGDE/UFPR). (E-mail: ivansalomao@gmail.com).

novembro de 2020

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