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As Primeiras Aulas de Violoncelo

Contributos da Literatura na Preparação das Primeiras Aulas de Violoncelo

Pedro Manuel Serra e Silva – Departamento de Música – Escola de Artes – Universidade de


Évora

Mestrado em Ensino de Música – Ano 1 Semestre 1 – UC de Área de Docência 1

Nota do Autor

Este documento segue os critérios editoriais da RPM – Revista Portuguesa de Musicologia,


publicados no seu documento Normas de submissão e critérios editoriais, actualizados pela
última vez a 14 de Novembro de 2014. Sempre que os critérios da RPM remetem para as normas
da língua do texto submetido ou são omissas, foram utilizados os critérios constantes nas normas
da American Psychological Association (6ªEdição).
AS PRIMEIRAS AULAS DE VIOLONCELO

Resumo

O foco do presente trabalho são as primeiras aulas de violoncelo e que conhecimentos deverão
constar do processo ensino-aprendizagem neste período. O processo ensino-aprendizagem do
violoncelo mudou bastante nos últimos cinquenta anos, evidenciando uma maior preocupação na
transmissão de conceitos de base que, no entanto, ainda não chegam de uma forma evidente ao
nível da iniciação. Efectuei uma revisão de literatura da especialidade, focando-me especialmente
em três obras fundamentais para a compreensão destes conceitos de base: a de Xavier Gagnepain
Du musicien en général… au violonceliste en particulier, a de Gerhard Mantel Cello Technique
– Principles & Forms of Movement e a de Ana Raquel Pinheiro O Violoncelo – Jogos para
miúdos/prescrições para graúdos. Da realização deste trabalho concluí que existem
oportunidades por explorar, nomeadamente na divulgação apropriada dos resultados de
investigações científicas na área do ensino especializado da Música ao nível da Iniciação.

Palavras-chave: Violoncelo, Ensino-Aprendizagem, Iniciação, Autores, Base.

Abstract

The focus of this work are the very first cello lessons and what knowledge should be passed during
this period of time. The teaching-learning process has changed quite significantly over the last
fifty years, focusing even more in the transmission of the fundamentals of cello playing. However
this has not trickled down evidently into the lower levels of teaching, namely to chindren aged
six through ten years of age. I did a revision of literature, focusing specially in three essential
works of the cello teaching literature: Xavier Gagnepain’s Du musicien en général… au
violonceliste en particulier, Gerhard Mantel’s Cello Technique – Principles & Forms of
Movement and Ana Raquel Pinheiro’s O Violoncelo – Jogos para miúdos/prescrições para
graúdos. There are opportunities to explore, namely in the apropriate spreading of the results of
the research done in the field of Music Education of Beginners.

Key-words: Violoncello, Teaching-Learning, Beginning, Authors, Fundamentals.

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AS PRIMEIRAS AULAS DE VIOLONCELO

As Primeiras Aulas de Violoncelo

O processo ensino-aprendizagem do Violoncelo tem sofrido inúmeras mutações desde o


aparecimento do primeiro método para a aprendizagem do Violoncelo, escrito e idealizado pelo
francês Michel Corette em 1741.

Inúmeros outros violoncelistas se lhe seguiram na publicação de obras com uma abordagem
metodológica à aprendizagem do instrumento, sendo os exemplos mais famosos os de J.
Dotzauer, na versão coligida por J. Klingenberg, B. Romberg, S. Lee, F. Grützmacher, A. Piatti
e J. L. Duport, ao longo do século XIX. São de notar, ao longo do século XX, a publicação de
obras de carácter pedagógico por parte de grandes violoncelistas como P. Tortelier, M.
Gendron, J. Starker, W. Pleeth, H. Becker e E. Mainardi.

O panorama nacional sempre foi parco em fontes em Língua Portuguesa que alicerçassem o
trabalho de professores e alunos. Já em 1938, a violoncelista Adelaide Saguer referia, na sua
obra O Violoncelo – Sua História, Literatura, Pedagogia e Metodologia, que «a cadeira de
Francês também desapareceu por essa reforma [Reforma do Ensino dos Conservatórios de
1930], o que muita falta a muitos alunos, visto a moderna bibliografia musical portuguesa ser
relativamente pequena e o aluno, para se instruir convenientemente, ter de recorrer à literatura
estrangeira.» (p.85).

Reflectindo sobre a mensagem da autora, passados mais de oitenta anos sobre a sua escrita,
confirmamos que o corpo de investigação e de textos de apoio a alunos e professores é ainda
largamente dominado por publicações em língua estrangeira. Assiste-se, felizmente para todos
os envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem do Violoncelo, a um florescer de
publicações de investigações, produtos de Teses de Mestrado e Doutoramento e de relatórios de
Estágio. Algumas destas investigações têm resultado na publicação de livros didácticos em
Língua Portuguesa, que aumentam o acesso de um maior número de pessoas em Portugal e em
todo o mundo falante da Língua Portuguesa a obras que auxiliam no processo ensino-
aprendizagem do violoncelo.

Nos nossos dias, a abordagem ao processo ensino-aprendizagem do violoncelo é menos


centrada nas idiossincrasias das figuras carismáticas do passado, sejam eles violoncelistas ou
professores famosos, tendo havido uma evolução no sentido de apresentar os conceitos a
transmitir de uma forma clara. Contudo, sua transmissão, mesmo a realizada pelos grandes
solistas e professores, tem como público-alvo os jovens violoncelistas estudantes e jovens
profissionais que os admiram.

Impõe-se a pergunta de como fazer chegar às crianças os conceitos básicos que regem o tocar
violoncelo.

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AS PRIMEIRAS AULAS DE VIOLONCELO

O pedagogo e violoncelista romeno Demetri Motatu descreve o processo de iniciação musical


como tendo uma tripla função «[…] cultivar el amor hacia la música, proporcionar los
conocimientos básicos para la futura dedicacion [sic] al estúdio del instrumento, y seleccionar a
los alunos en función de sus dotes naturales.» (p.4). Vai ainda mais longe no prefácio da sua
obra El Violoncelo – Iniciación a la Música no qual refere a importância de aprender brincando
(Motatu, 1993). Parece-me interessante referir que em várias Línguas Europeias, entre as quais
as Línguas Alemã (spielen), Francesa (jouer) e Inglesa (to play), os verbos usados para a prática
instrumental são os mesmos que para brincar. Na Língua Portuguesa não é óbvia a relação entre
tocar e brincar, cabendo ao professor de instrumento a tarefa de tornar a aula no espaço onde
conhecimento convive com diversão.

Consensualizou-se entre os autores de obras para o auxílio ao processo de ensino-aprendizagem


a divisão entre matérias referentes à mão esquerda – a mão que divide a corda em segmentos
definidores da altura das notas – e à mão direita – aquela que produz o som, nomeadamente pelo
uso do arco. Esta definição revela-se útil pois, além de consensual, ajuda professor e aluno a
dividir as questões e conceitos técnicos em parcelas mais pequenas e passíveis de resolução.
Mais não é que a aplicação da definição de algoritmo apresentada no dicionário (Costa & Melo,
1999) à prática do ensino aprendizagem do violoncelo.

Não significa que esta divisão em parcelas seja de fácil aplicação prática. Xavier Gagnepain,
eminente pedagogo e violoncelista francês, na sua obra Du musicien en général… au
violonceliste en particulier adverte para:

[…] l’extrême insuffisance des mots quando il s’agit de transmettre les fruits d’une
expérience corporelle. Tout l’art du pédagogue est de trouver le biais pour y parvenir. Il
doit constamment adapter son langage à la situation et faire appel à tous les moyens
disponibles pour trouver le lien le plus court vers l’évidence.

É tarefa do professor encontrar as palavras que facilitem a compreensão do aluno dos


conceitos-chave enquanto mantem um ambiente lúdico e estimulante.

Exercícios preliminares
Antes de iniciar a sua aula, e mantendo o espírito de brincadeira que é salutar, proponho alguns
exercícios corporais ao aluno (Gagnepain, 2017):

1. Jogo do velhinho e do militar: o aluno, sentado na sua cadeira, executa movimentos de


curvatura das costas entre os dois extremos – totalmente curvado, como um velhinho, e
totalmente direito, como um militar em sentinela - executando a total rotação da bacia,
com projecção dos ossos ísquio-tibiais;

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2. Jogo da patinagem das nádegas: sentado, o aluno imagina-se como um patinador


impulsionando o seu corpo para a frente, uma perna de cada vez, sem sair do lugar;
3. Jogo do Chá imaginário: convido o aluno para tomar um chá imaginário, no qual ele
próprio verte o chá imaginário desde o seu bule imaginário para as chávenas, também
imaginárias. A rotação do antebraço independente do braço é o se pretende pôr em
evidência.

Estes jogos têm como objectivo a criação das bases de uma consciência corporal própria,
assente no espírito crítico, almejando que ao aluno seja possível, a todo o momento, responder á
questão «será que, dos movimentos que executo, resultam o que espero?».

No ponto primeiro e segundo da enumeração anterior pretende-se que o aluno se dê conta do


alongamento da coluna vertebral e da rotação dos ossos da bacia nos seus dois eixos. Estes
movimentos revelar-se-ão como fundamentais para o futuro, nomeadamente através da sua
utilidade nas mudanças de posição, no relaxamento da cadeia muscular posterior e na passagem
da mão esquerda e direita entre as cordas. Do ponto terceiro importa reter que o mesmo
mobiliza o mesmo tipo de cadeias musculares usadas posteriormente no movimento de arco
para baixo.

Após a execução destes exercícios é tempo de o aluno tirar o seu arco e violoncelo do estojo,
apertar o seu arco e colocar resina. Aproveito para simular os movimentos de arco para cima e
de arco para baixo com esta pequena rotina de pôr arco na corda. Mantendo a resina estática, o
aluno simula o movimento do arco e, mais importante, altera a pressão exercida na resina ao
longo do movimento, através da alteração do ponto de contacto dos dedos com a vara do arco.

Como sentar, escolher a cadeira e definir a altura do espigão

A questão de como sentar, como escolher a cadeira e como definir a altura do espigão é uma
questão tão basilar e fundamental para um principiante que talvez se pode entender como o
grande obstáculo inicial para o jovem que tem a sua primeira aula.

A cadeira deve ser escolhida em função da altura do violoncelista, e principalmente em função


da altura entre o tornozelo e o joelho (Tortelier, 1975). A coxa deve permanecer paralela ao
chão. A cadeira deve ter o tampo direito e, sendo expectável e desejável que o violoncelista aí
vá permanecer muitas horas durante o seu estudo, confortável.

São desaconselhadas todas as cadeiras que tenham tampos côncavos ou convexos, os primeiros
por não permitirem a mobilidade necessária ao nível da bacia e os últimos por não garantirem a
estabilidade necessária à bacia e à coluna, criando hipótese para o aparecimento de focos de dor
em estágios ulteriores do seu desenvolvimento (Gagnepain, 2017). Igualmente, é

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desaconselhado o uso de cadeiras com braços, pois estas não permitirão nem o uso adequado do
arco nem a mobilidade necessária dos braços.

O violoncelista deve sentar-se no terço dianteiro da cadeira, com as costas desapoiadas de


qualquer apoio, em virtude da rotação do tronco ser um movimento fundamental quer para o
movimento do arco, quer para o movimento da mão esquerda (Pinheiro, 2016).

Da definição da altura do espigão, pode-se referir que esta deve ser tal que as costas do
executante permaneçam direitas e que esta depende fundamentalmente da altura do executante.
Deve ser possível ao aluno, contudo, arquear ligeiramente as costas e ombros para frente
(Tortelier, 1975), posteriormente esta liberdade de movimento será útil para a conquista das
posições agudas.

Pinheiro (2016) propõe jogos que estimulam o contacto entre o aluno e o violoncelo, estreitando
a relação do aluno com o seu instrumento, que passa a ser um objecto do seu quotidiano.
Exercícios que estimulam esta relação, tais como o jogo «A Dança do Espigão» (p.50), o jogo
«Abraçar, Embalar, Dormir» (p.52) e o jogo «A Barriga Grande» (p.55), podem ser usados com
grande benefício para o aluno durante as primeiras aulas de instrumento.

Neste último exercício proposto por Ana Raquel Pinheiro, é de salientar a sua relação com o
«jogo do velhinho e do militar», sendo o exercício agora executado com o violoncelo aplicando
exactamente os mesmos movimentos de projecção dos ossos da bacia.

A Mão Direita

A mão direita oferece ao instrumentista de cordas friccionadas, em geral, e ao violoncelista, em


particular, alguns dos seus maiores desafios. Ouvi o violinista Pinchas Zukerman falar, durante
um ensaio com a Orquestra Gulbenkian, do arco enquanto o «mealheiro» do violinista. Reparei,
anos mais tarde, num contexto de uma masterclasse, a insistência do violinista neste ponto. Em
2014, Zukerman repete a mesma ideia numa entrevista concedida a Lenny Cavallaro, da revista
em «Stay Thirsty»:

Years ago, I told a student that the right hand is the violinist's "bank account". Why? Because if
you play better with the bow arm - the right arm - you will win more money! And that advice has
a huge impact on my students, because 85% of what we do, comes from the right hand - at least
with regard to the quality of the sound we project. To put it bluntly, if the students do not have the
neck of the bow, they are reduced to pizzicato, in which case they may very well switch to the
guitar. The great instrumentalists - violin, viola, cello - always speak of the right hand.

Uma mestria do arco é, então, algo fundamental para qualquer instrumentista. Ainda na mesma
entrevista (Cavallaro, 2014), Zukerman refere que:

Here's another interesting pedagogical point: If I ask students to verbalize – to put into words –
what they've just done with their right hands, I find very few can actually articulate the skills
they've applied. I want them to become more aware of what they're doing. Of course, there are

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hundreds and hundreds of aspects involved in producing a gorgeous tone, but when we actually
hear it from a great performer, it always seems to emerge so easily and naturally.

É de extrema importância para mim, enquanto docente, que os meus alunos percebam desde cedo
os conceitos básicos de funcionamento do arco de um ponto de vista técnico e anatómico,
adaptando as explicações e os exercícios propostos aos diferentes níveis de ensino.

Como segurar no arco


Segurar o arco correctamente é um grande desafio para um principiante no momento de iniciar a
sua prática instrumental. A

Neste sentido, e logo na primeira aula, enceto uma conversa com o aluno no sentido de
desmistificar um ponto que me parece crucial na relação futura deste com o arco: o arco não é um
objecto pesado. Na realidade, um arco tem apenas entre 78 a 83 gramas – peso bastante inferior
ao de um telemóvel. Gerhard Mantel (1995), pedagogo e violoncelista alemão, refere uma curiosa
experiência na qual demonstra que a questão essencial não está no peso do arco, mas na distância
entre o fulcro de uma alavanca – o braço e mão direitos – e o ponto de apoio – a corda do
violoncelo.

Mesmo assim, noto nos jovens violoncelistas uma tendência para agarrarem no arco com
demasiada força, ferindo de morte o relaxamento muscular de toda a cadeia muscular do braço
direito. As causas para esta concepção errada da pega do arco são apontadas por Christopher
Bunting no seu Essay on the Craft of Cello-Playing como uma reacção da parte do aluno de
manter o estado de inércia, a tendência de um corpo para manter o seu estado actual de movimento
(parado ou em movimento). Esta tendência, no caso específico do aluno que segura o arco pela
primeira vez, é de assegurar que o arco se mantém estático, fixo, seguro. Necessário é, então, que
o aluno encontre formas de introduzir movimento, induzido o relaxamento da cadeia muscular
posterior.

Nesse sentido, é tradição entre os professores de violoncelo a proposta aos alunos de alguns
exercícios. Embora a sua origem não possa ser exactamente definida e apontada por apenas um
autor, havendo inclusivamente diferentes nomes para os mesmos jogos ou exercícios, opta-se pela
formulação de Pinheiro (2016) para efeitos de clareza e subsequente consulta:

1. «O Equilibrismo» (pp.69-70): jogo no qual o aluno deve equilibrar o arco no ponto


de equilíbrio vara usando o seu dedo indicador. A descoberta do equilíbrio vertical
também é útil na desmistificação do arco como um objecto pesado, devendo o
exercício ser realizado segurando o botão do arco apenas com o indicador direito.
2. «O Macaquinho Trepador» (p.68): este jogo pretende promover a mobilidade das
articulações dos dedos da mão direita do aluno, eliminando tensões desnecessárias,
nomeadamente ao nível do polegar. Existem três níveis neste jogo. Em todos, o aluno

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percorre o comprimento do seu arco com os dedos, desde o talão à ponta, procurando
incluir o movimento de todos os dedos neste processo. Os níveis são em dificuldade
crescente: no nível 1, o movimento proposto é no sentido vertical; no nível 2 o
movimento será no sentido horizontal; por último, no nível 3, o aluno fará uma corrida
com o seu professor, uma vez no sentido vertical e outra no horizontal.
3. «O limpa-pára-brisas» (p.66): o objectivo deste jogo é promover a flexibilidade e
mobilidade do conjunto da mão, pulso e antebraço, facilitando a passagem entre
pronação, a palma da mão virada para baixo, e supinação, a palma da mão virada
para cima. Este movimento será de capital importância aquando da transmissão do
peso muscular do braço direito do talão para a ponta.
Neste exercício, o aluno estica o seu braço direito, segurando convenientemente o
arco, efectuanto, de seguida, um movimento de rotação que se inicia no cotovelo e
que terá um âmbito de 90º entre a posição vertical do arco, i.e., perpendicular ao solo,
e uma posição horizontal, i.e., paralela ao solo.

Note-se que, neste último exercício, o movimento a realizar é semelhante ao movimento que foi
realizado no «Jogo do chá imaginário», desta vez empunhando o arco.

Consciência Corporal e Funcional do Braço Direito


É também importante referir aos alunos desde início algumas noções sobre o funcionamento
corporal. Dentre elas, três destacam-se como as mais relevantes:

1. A consciência da articulação úmero-axial: a ligação livre e relaxada que deve


existir entre o ombro e o braço (Bunting, 2000);
2. Da rotação do polegar direito sobre si mesmo e a consciência de que, mesmo o
dedo polegar possui três falanges (Pinheiro, 2016);
3. Da existência, dentro do antebraço, de dois ossos que rodam por cima um do outro
aquando do movimento entre pronação e supinação (Gagnepain, 2017).

A linguagem terá de ser adaptada à idade e analogias podem ser encontradas no momento de
apresentar os conceitos. Por exemplo, o ponto primeiro pode ser comparado ao movimento de
uma bola a rolar dentro de uma outra de dimensões ligeiramente maiores ou mesmo de um
joystick utilizado para vídeo-jogos; o ponto terceiro é facilmente exemplificado em aula com a
ajuda de dois lápis, segurando, professor e aluno, as extremidades opostas de cada um dos lápis,
cabendo ao professor o papel de rodar os lápis sobre si mesmos.

O ponto segundo é objecto de explicação por Ana Raquel Pinheiro (2016) (pp.62-63) no qual o
compara ao movimento de apagar luzinhas em cada dedo da mão direita, usando o dedo polegar.

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Inadvertida e inconscientemente, o aluno irá mobilizar as três falanges do dedo polegar criando,
a prazo, o hábito e forma mais naturais para a colocação do seu polegar na vara do arco.

Alguns exercícios em cordas soltas – cordas Lá, Ré, Sol e Dó – como os propostos por D.
Motatu (1993) (pp.10-15) cimentarão a aquisição destes conhecimentos relativos ao arco. Os
exercícios em cordas soltas são fundamentais para, a pouco e pouco, o aluno criar os hábitos
idóneos relativamente à técnica de arco.

Mão Esquerda
A colocação da mão esquerda
Gerhard Mantel (1995) (pp.65-77) apresenta algumas noções sobre o funcionamento da mão
esquerda no violoncelo, pondo em evidência duas desvantagens sobre o conceito de posição,
comummente utilizado por professores de violoncelo. Posição, na visão de Mantel, deve ser
entendida como uma estrutura não rígida, passível de correcções dos ângulos da mão e braço
esquerdos que compensem diversos factores, entre eles as diferenças que existem no comprimento
dos dedos da mão esquerda e do facto de as diferentes ligações entre as falanges e os ossos
metacárpicos não se encontrarem alinhados. Mantel adverte assim para a concepção, pela parte
do professor, de uma estrutura não flexível que não leve em conta estas variáveis, que podem
tornar a acção de pressionar a corda no sentido da escala do instrumento uma acção desconfortável
e cansativa.

Tal como para a mão direita, é então essencial transmitir ao aluno formas de introduzir movimento
na sua abordagem à colocação da mão esquerda. Ainda pensando nos paralelos entre mão
esquerda e direita, é importante fazer referência ao papel do polegar esquerdo, muitas vezes
negligenciado pelos alunos, dado ser um dedo que não é manipulado nas primeiras aulas de
instrumento.

Ana Raquel Pinheiro (opus cit.) propõe diversos exercícios preliminares como «O Baloiço
pendurado» (p.112) que procuram pôr em evidência ao aluno uma suspensão relaxada do braço
esquerdo. Gagnepain (2017) refere a necessidade de pensarmos na colocação dos cotovelos
esquerdo e direito numa posição de «acotovelamento» virtual (do verbo francês s’accouder),
como se falássemos casualmente com um amigo com o cotovelo apoiado numa cadeira de
restaurante ou banco de jardim. No caso do violoncelista, este «acotovelamento» é virtual, não
existindo qualquer apoio para o cotovelo – caberá ao aluno usar o poder da sua imaginação.

Exercícios como «O Abraço» (pp.112-113), «O Túnel» (p.114) e «O Ginasta» (pp.115-116)


(Pinheiro, 2016) configuram oportunidades para professor e aluno explorarem formas de
introduzir movimento no braço e mão esquerdos.

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Generalidades sobre Afinação


A afinação é uma preocupação natural de todos os músicos e talvez seja o desafio mais praticado
por todos instrumentistas. Os instrumentos de corda, ao contrário dos instrumentos de tecla, lidam
com diferentes sistemas de afinação (Jorgen-Jensen & Chung, 2017). Por este motivo uma das
tarefas principais do professor será o de incutir ao aluno as noções de afinação e de trabalho de
escuta que lhe permitam, mais tarde, poder distinguir e utilizar com facilidade os diferentes
sistemas de afinação.

O canto constitui a primeira relação que uma criança tem com a música e a voz é o primeiro
instrumento explorado num contexto de escola regular. No contexto do ensino especializado da
música, a relação entre canto e instrumento pode ser explorada numa fase inicial através do
canto de canções infantis transpostas para as tonalidades mais fáceis do violoncelo, como
advogado por Suzuki, na sua «Suzuki Cello School».

O trabalho do professor passará por várias fases sequenciais: o trabalho do canto com o aluno,
procurando não apenas a boa afinação, mas também introduzindo conceitos fraseológicos e
dinâmicos, o trabalho de canto com o aluno acompanhado-o ao piano ou com uma segunda
linha de violoncelo. Posteriormente, será do aluno a responsabilidade de tocar e cantar ao
mesmo tempo, sendo naturalmente, um acompanhamento ritmicamente simples, em cordas
soltas e realizado em pizzicato – corda beliscada com a mão direita. Estará, após a realização
destas etapas, aberto o caminho para a aprendizagem das melodias previamente estudadas.

Este procedimento aplica o conceito de canto interior (pp.17-21) proposto por Xavier
Gagnepain na sua obra anteriormente citada (Gagnepain, 2017).

O trabalho de canto e, através dele, de aprendizagem de estruturas melódicas simples como


arpejos ou pedaços de escalas deve ser iniciado ao mesmo tempo do trabalho canto com o
violoncelo. Estas estruturas podem ser acompanhadas por cordas soltas ao violoncelo, estando
desta forma o aluno a iniciar um trabalho de formação do seu ouvido harmónico de uma forma
inconsciente.

A Escolha do Primeiro Método

Existem à disposição do professor dezenas de métodos diferentes, que serão utilizados numa
fase posterior aos primeiros jogos e aprendizagem de canções infantis, como vimos nas secções
que antecedem a presente.

Ao professor é apresentada uma escolha: a de imediatamente enveredar pela leitura musical ao


instrumento ou escolher métodos que priorizem a memorização. Sendo possível adaptar
qualquer método ao método da memorização, tem neste âmbito especial relevância o método de

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S. Suzuki, proposto pelo pedagogo japonês nos anos oitenta do século XX para o processo
ensino-aprendizagem do violino e desde logo adaptado ao do violoncelo.

Dos métodos mais utilizados nos últimos anos neste nível de ensino encontra-se o Método de E.
Saßmannshaus, bastante popular entre as crianças devido às suas páginas profusamente
ilustradas a preto e branco, permitindo aos alunos pintarem as imagens e, assim, estreitando de
uma maneira evidente a distância entre tempo para estudar e o tempo para brincar.

Deste método, diz o seu autor que oferece uma base sólida e de avanços incrementais que
alicerçam o conhecimento de ritmos e intervalos simples por intermédio do canto e das canções
infantis (Saßmannshaus, 1976). O facto de o método se encontrar em alemão, incluindo as letras
das canções infantis propostas, torna o seu uso um desafio para a utilização autónoma do
método por parte dos alunos.

Conclusões

Ao longo das últimas páginas foram apresentadas diversas estratégias que aliam a transmissão
de conceitos base fundamentais para o processo ensino-aprendizagem do violoncelo.

Salvo algumas excepções, nomeadamente a da existência de um livro em Língua Portuguesa


especializado na leccionacção de violoncelo para os níveis de Iniciação, a investigação realizada
nas fontes teve de ser forçosamente trabalhada com vista à sua adaptação ao contexto e
linguagem de alunos entre os 6 e os 10 anos de idade.

As fontes especializadas, como aludido na secção que principia o trabalho, não têm como
especial foco de interesse a Iniciação Musical. Mesmo os métodos específicos para iniciação
pouco revelam nos seus prefácios, conquanto a sua leitura seja sobejamente útil. Constata-se,
além da falta de bibliografia especializada em Língua Portuguesa, uma realidade transversal a
todos os níveis, também a falta de investigação científica sobre estes processos publicada em
revistas e outras publicações. O conhecimento sobre estas práticas instrumentais continua a ser
realizado por base na transmissão oral entre professor e aluno ao longo das sucessivas gerações.
Livros como o de Christopher Bunting, Xavier Gagnepain ou Gerhard Mantel constituem as
poucas fontes disponíveis nas quais os autores procuram ligar os conhecimentos que lhes foram
transmitidos, e que transmitem enquanto docentes, com uma explicação baseada em evidências
e princípios científicos coligidos de várias outras disciplinas, nomeadamente a Psicologia e a
Anatomia do Movimento.

Existem diversas oportunidades para tornar a discussão entre professores de violoncelo mais
profícuas, entre elas a elaboração de revisões de literatura que permitiam colocar face a face
diferentes perspectivas na construção da casa do conhecimento violoncelístico.

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AS PRIMEIRAS AULAS DE VIOLONCELO

No caso particular de Portugal, as oportunidades são muitas no campo da tradução de obras de


referência em língua estrangeira, nomeadamente as citadas no corpo do texto, para Língua
Portuguesa. Por outro lado, a produção de materiais didácticos com os resultados das
investigações de teses de Mestrado e relatórios de Estágio deve ser olhada com renovado
interesse da parte dos seus autores.

O livro de Ana Raquel Pinheiro, resultado da sua investigação para uma tese de Mestrado,
granjeia críticas muito positivas tanto dos elementos da comunidade violoncelística nacional
como de alunos e pais, que vêm naquele livro uma mais valia para o seu estudo, no caso dos
primeiros, e para o apoio ao estudo dos seus educandos, no caso do segundo.

Referências

Bunting, C. (2000). Essay on the Craft of Cello-Playing Vol.1 Prelude, Bowing, Coordination.
Londres: Sangeeta Publications.
Cavallaro, L. (2014). A Conversation with Pinchas Zukerman. Obtido de Stay Thirsty
Magazine: https://www.staythirstymagazine.com/201410-086/html/201410-cavallaro-
zukerman.html
Costa, J., & Melo, A. (1999). Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora.
Gagnepain, X. (2017). Du musicien en général... au violonceliste en particulier. Paris: La Rue
Musicale - Cité de la Musique.
Jorgen-Jensen, H., & Chung, M. R. (2017). Cello Mind - Intonation and Technique. Chicago:
Ovation Press.
Mantel, G. (1995). Cello Technique - Principles & Forms of Movement. Bloomington: Indiana
University Press.
Motatu, D. (1993). El Violoncelo - Iniciación a la Música. Madrid: Real Musical.
Pinheiro, A. R. (2016). O Violoncelo - Jogos para miúdos/Prescrições para Graúdos. Lisboa:
Gradiva.
Saguer, A. (1938). O Violoncelo - Sua História, Literatura, Pedagogia e Metodologia. Lisboa:
Editora Gráfica Portuguesa.
Saßmannshaus, E. (1976). Früher Anfang aud dem Cello Band 1 bis 4 . Kassel: Bärenreiter.
Suzuki, S. (1982). Suzuki Cello School Part 1. Miami: Summy-Birchard Inc.
Tortelier, P. (1975). How I play, how I teach. Londres: Chester Music.

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