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VOLUME 08: ADOLESCÊNCIA - O ARCO DA UNIVERSIDADE

(PARTE 1)

Índice
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
Créditos Tradução
Prólogo: Atoleiro, O Aventureiro
Capítulo 01: Carta-Convite
Capítulo 02: Exame de Admissão
Capítulo 03: Primeiro Dia de Escola
História Paralela: Sylphiette (Parte 1)
Capítulo 04: O Começo da Minha Vida Escolar
Capítulo 05: Um Poder Inacessível (Parte 1)
Capítulo 06: Um Poder Inacessível (Parte 2)
Capítulo 07: O Sequestro e o Confinamento das Garotas Feras
(Parte 1)
Capítulo 08: O Sequestro e o Confinamento das Garotas Feras
(Parte 2)
História Paralela: Sylphiette (Parte 2)
Epílogo
Capítulo Extra: Juliette e Boas-Maneiras
Arte dos Personagens
Ilustração de Capa
Ilustrações Coloridas
MUSHOKU TENSEI
- Isekai Ittara Honki Dasu - Vol. 08

Rifujin na Magonote
Ilustrações por Shirotaka

Tradução para o Português Brasileiro por Tsundoku Traduções1.

Retirado do site:

“A Tsundoku Traduções é um site voltado à tradução e


publicação de Light Novels, Web Novels e Mangás para o português
brasileiro.

Surgimos em uma noite, quando certo alguém foi beber cerveja e


acidentalmente comprou um site, mas só apareceu para explicar a
situação dois dias depois. Com boa parte dos envolvidos sendo
conhecidos de longa data, buscamos criar um ambiente amistoso e
divertido onde, sem qualquer cobrança ou compromisso
estabelecido, divertimo-nos com a tradução e edição daquilo que
nos atrai, e justamente por ser algo de nosso gosto, atestamos a
plena qualidade de tudo que é aqui encontrado. Com plena
confiança nas habilidades de cada um de nossos membros,
focamos em obras que saem um pouco daquele clichê
extremamente batido, e às vezes não, cumprindo com nosso
objetivo, já que “Tsundoku” é a prática de acumular livros que
queremos ler e talvez não cheguemos a ler, e pretendemos oferecer
uma ampla gama de materiais para todos os públicos, desde que
adequem-se àquilo que é mais importante: nosso gosto.

Se tiver interesse em saber como nos apoiar nesta jornada,


sempre mantendo um alto nível de qualidade e uma boa frequência,
basta acessar Formas de Apoio.”

Como informado no link anterior, site do Padrim do grupo: Padrim


Tsundoku.
Prólogo:
Atoleiro, O Aventureiro
Passaram cinco anos desde a calamidade comumente conhecida
como Incidente de Deslocamento da Região de Fittoa. O lorde
suserano de Fittoa, Sauros Boreas Greyrat, estava morto, assim
como seu filho Philip Boreas Greyrat, o prefeito da Cidadela de Roa,
e a esposa de Philip. Pouco depois, foi relatado que a filha de Philip,
Eris Boreas Greyrat, também morrera. Como resultado, o ministro
de alto escalão Darius Silva Ganius cortou o financiamento dos
esforços da região de Fittoa para rastrear seus cidadãos
desaparecidos. Enquanto alguns indivíduos continuaram a busca
por conta própria, o Esquadrão de Busca e Resgate foi oficialmente
dissolvido. O campo de refugiados mudou o foco da busca por
sobreviventes para a recuperação de seus meios de subsistência.

No que diz respeito ao Reino Asura, o Incidente de


Deslocamento acabou. Aqueles que o experimentaram em primeira
mão, no entanto, estavam longe de satisfeitos.

✦✦✦✦✦✦✦

Ano Quatrocentos e Vinte e Dois do Dragão Blindado.

O Ducado de Basherant, um país proeminente no noroeste do


Continente Central, uma das três Grandes Nações Mágicas. Sua
terceira maior cidade era Pipin, e nessa cidade vivia um aventureiro
que se tornara o assunto local. Ele era conhecido nas ruas como
Atoleiro.

O homem em questão foi teletransportado para bem longe


durante o Incidente de Deslocamento e passou vários anos tentando
retornar à Região de Fittoa. Ao retornar, ele – como muitos outros –
se desesperou com as consequências do desastre. Viajou para a
parte norte do Continente Central, também conhecido como
Territórios Nortenhos, em busca de um membro da família que ainda
estava desaparecido, e vasculhou cada país enquanto trabalhava
como aventureiro.

As manhãs do Atoleiro começavam bem cedo. Como um homem


profundamente religioso, se levantava antes do amanhecer para
oferecer uma oração silenciosa diante de sua relíquia divina, que
estava guardada em uma pequena caixa. Mas este não era um
sacramento da crença Millis. Na verdade, aqueles da crença Millis
provavelmente levantariam uma sobrancelha ao objeto de sua
adoração. Apesar de tudo, ele parecia a imagem da piedade com a
cabeça inclinada em oração.

Depois de suas orações matinais, Atoleiro vestia um traje atlético


e corria pela cidade. Como dizia ele: “Posso ser um mago, mas
antes disso sou um aventureiro. E um aventureiro tem que ser
capaz de se mover quando necessário.” Após cerca de uma hora de
corrida, iniciaria um ritual de treinamento especial de sua terra natal,
um como nunca havia sido visto no Ducado de Basherant. Ficava
deitado de bruços com a barriga no chão e se levantava pelos
braços, e fazia isso cem vezes. Então se deitava de costas e
levantava a parte superior do corpo em direção aos joelhos por mais
cem vezes. Assim que terminava, se agachava e ficava de pé mais
cem vezes. E seguia essa rotina diariamente, sem falhas.

— Meus músculos ficam com ciúmes. Se eu não prestar atenção


neles todos os dias, eles ficam irritados comigo. Igual a uma mulher.
Embora, ao contrário de uma mulher, não vão simplesmente sumir e
desaparecer de repente. Os músculos não te traem. Não é mesmo,
Hulk, Hércules?

Atoleiro, um homem que nomeou suas próprias partes do corpo,


diria isso com uma risada – uma que parecia um pouco solitária.

Terminando seu treino matinal na hora em que o resto da cidade


estava acordando, ia para o refeitório no primeiro andar de sua
pousada para tomar o café da manhã. Era dito que os aventureiros
comem o dobro ou o triplo das porções de uma pessoa comum. E,
dito isso, a comida na Região Norte era cara, então muitos comiam
com moderação – mas não era o caso do Atoleiro. Ele devorava
tigelas cheias de arroz cozido e pratos de feijão.

Depois do café da manhã, se dirigia para a Guilda dos


Aventureiros – um local no meio da cidade onde outras pessoas
rudes se reuniam. Os olhos de todos se voltavam para ele quando
entrava. Atoleiro não tinha um grupo próprio, preferindo se aliar a
outros, caso a caso, para enfrentar missões difíceis. Havia alta
demanda por um mago tão excepcional quanto ele.

Como de costume, o líder de um grupo de rank S o atacou


naquele dia.

— Yo, Atoleiro, ficou sabendo? Há um Wyrm Vermelho errante ao


norte!

Era Soldat Heckler, um aventureiro de rank S. Ele era um homem


com características profundamente esculpidas, características
daqueles que viviam no norte, que possuía habilidades de nível
Avançado no estilo Deus da Espada e habilidades de nível
Intermediário no estilo Deus da Água, e que era um aventureiro
famoso por essas partes. Ele liderava um grupo conhecido como
Líder Escalonado, um dos muitos grupos controlados pelo clã Raio,
que trabalhava por todas as terras de Basherant.

Seu grupo tinha seis membros: dois espadachins, um guerreiro,


dois magos de cura e um mago ofensivo. Em determinado momento
tiveram sete membros, mas um mago deu o fora. Como resultado,
estavam com pouco poder de fogo e Soldat ocasionalmente
solicitava que o Atoleiro se juntasse a eles.

— Ei, Atoleiro. Não está na hora de você se tornar um de nós?


Você se sente confortável trabalhando conosco, certo?

No entanto, o Atoleiro simplesmente balançava a cabeça.

— Não. Agora que fiquei famoso por aqui, estarei indo para o
próximo país em breve.

Ele estava procurando por sua mãe. O Atoleiro sabia muito bem
que encontrar uma única pessoa em um mundo tão vasto, cinco
anos após o Incidente de Deslocamento, seria um desafio difícil.
Então escolheu fazer um nome para si mesmo em todos os lugares
que fosse, meticulosamente vasculhando seus arredores enquanto
trabalhava de um país para outro, na esperança de que, se ficasse
famoso o suficiente, poderia ser sua mãe quem o encontraria.

— Ah, mas eu irei com você para eliminar o Wyrm Vermelho. —


Atoleiro aceitou o pedido de Soldat. O sucesso de acabar com um
dragão aumentaria sua fama; isso estava alinhado com seus
objetivos. Ele prontamente se dirigiu ao balcão para se registrar no
grupo. — Mas não podemos ir só nós, certo??
— Depois vamos encontrar mais algumas pessoas. Será nosso
primeiro grande trabalho em muito tempo. Todo mundo está ansioso
para participar.

As missões de matar dragões sempre foram realizadas por vários


grupos – se um grupo tentasse fazer isso sozinho, seria como uma
tentativa de suicídio. Desta vez, cinco grupos anunciaram sua
intenção de participar da incursão. Eram eles:

Líder Escalonado, grupo de rank S.

Cavaleiros Tirante, grupo de rank A.

Corporação Conjunto de Ferro, grupo de rank A.

Cave A Mond, grupo de rank A.

Bêbados Sem Noção, grupo de rank A.

Um total de vinte e cinco aventureiros, um pouco menos que os


sete grupos e quarenta pessoas recomendados como mínimo para
matar um dragão. Soldat estava ficando frustrado. Nesse ritmo, a
missão iria escapar por entre seus dedos.

— Ei, ei, estamos falando de um Wyrm Vermelho! Vocês vão


conseguir um monte de ouro de uma só vez em uma missão como
essa, então por que não há mais gente?! E vocês não são todos de
rank A?! Onde diabos estão os outros grupos de rank S?!

— Ouvi dizer que recentemente descobriram um labirinto ao leste


— disse alguém voluntariamente. — Devem ter ido todos verificar.

Outro homem gemeu.


— Nós vamos desistir. Não tem como isso dar certo.

Os quatro membros do Cave A Mond retiraram-se, deixando-os


com vinte e uma pessoas. Parecia inevitável que o resto seguisse o
exemplo, mas assim que todos se preparavam para debandar,
Soldat falou:

— Tudo bem, vinte e uma pessoas! — declarou autoritariamente.


— Isso significa apenas que cada um de nós ficará com uma fatia
maior!

Os aventureiros reunidos pareciam nervosos, mas nenhum deles


ousou se opor às suas palavras.

Todos os vinte e um deles caminharam pela terra árida e coberta


de neve da Região Norte. As árvores tinham perdido suas folhas e
seus galhos estavam salpicados de branco. Em breve, o longo
inverno começaria.

— Atoleiro, cuide da patrulha.

— Certo.

Seguindo as ordens de Soldat, o Atoleiro conjurou um pilar para


impulsioná-lo no ar. Examinando os arredores de sua posição
elevada, retransmitiu o que viu. O Wyrm Vermelho era enorme.
Contanto que examinassem a área periodicamente, não havia como
o perder de vista.

— Hm. — Parecia que o Atoleiro havia encontrado algo. — Ursos


Esplendorosos se aproximando às duas horas. Há um monte deles.
Estão levantando uma enorme nuvem de neve!
— Quantos?

— Oito… não, dez deles! Eles nos perceberam! Estão vindo


direto na nossa direção, e rápido!

Eles não estavam ali para matar ursos. Seu alvo era um Wyrm
Vermelho, e como havia tão poucos deles, não podiam desperdiçar
sua energia lutando contra outros monstros. Ainda assim, quando as
roupas de alguém pegavam fogo, não tinha escolhas a não ser
parar, se jogar no chão e rolar.

— Todos, espalhem-se! Atoleiro, volte para baixo. Nos cubra!

— Certo!

Por ordem de Soldat, os quatro grupos se espalharam,


planejando emboscar o rebanho de ursos monstruosos enquanto
eles avançavam.

— Atoleiro!

— Tá!

Sob o comando de Soldat, ele instantaneamente conjurou uma


piscina incrivelmente pegajosa de lama logo adiante. Assim como
seu apelido indicava, ele era hábil em lançar o feitiço Atoleiro. A
manada de ursos mergulhou no pântano inesperado e seus
movimentos ficaram mais lentos.

— Agora!

Os aventureiros atacaram de uma só vez. Como era de se


esperar de guerreiros de alta classificação, derrubaram uma besta
após a outra. Não foi mostrada qualquer misericórdia.
Entretanto, quando sobraram apenas alguns ursos, se escutou
um grito.

— Ei, o Wyrm Vermelho! Está vindo!

— É disso que os ursos estavam fugindo! Argh!

— Ei, Atoleiro! Que droga é essa?! Você não estava relaxando,


estava?!

— Não consegui ver através da nuvem de neve!

O plano deles era localizar o wyrm de longe e lançar um ataque


surpresa. Em vez disso, foram pegos desprevenidos por um ataque
surpresa. Não tiveram chances. Os Wyrms Vermelhos normalmente
eram criaturas voadoras, mas seus membros fortes os tornavam
mais leves do que se possa imaginar, e eram inimigos poderosos
mesmo no solo.

— Merda! Retirada! Retirada!

Em meio ao caos, o Atoleiro entrou em ação.

— Vou lançar uma cortina de fumaça! Todos, separem-se e


corram! Névoa Profunda!

Ele estava calmo. Usou magia de fogo com facilidade, derretendo


a neve para criar uma parede de vapor d’água – uma cortina de
fumaça improvisada usando os recursos naturais ao seu redor. O
wyrm, entretanto, era astuto. Era sábio o suficiente para identificar a
ameaça primária e eliminá-la primeiro, o que significava que o
Atoleiro se tornara seu alvo.

— Gah…!
Ele correu na direção oposta de seus companheiros. Se o inimigo
estava focado nele, então era seu dever usar isso para dar tempo a
seus camaradas para fugirem.

Atoleiro era ágil, de pés leves, conduzindo o Wyrm Vermelho a


ficar correndo em círculos. Seu treinamento diário estava se
provando útil. O fogo se acendeu na boca do wyrm enquanto ele
perdia a paciência, e as chamas se espalharam, banhando seus
arredores em fogo em um piscar de olhos. Esta era uma das
habilidades únicas da criatura: sopro de fogo. Uma criatura viva
apanhada na trajetória seria frita até ficar crocante.

Então, isso significa que o Atoleiro já estava morto?

Não – ele continuava vivo. Logo conjurou uma enorme parede de


água para se proteger e ainda continuou se movendo, cortando a
cortina de vapor d’água que se erguia no ar. Ignorando as brasas
subindo nas pontas de seu robe, criou um Canhão de Pedra e
lançou seu projétil em alta velocidade.

Aquilo perfurou as escamas do wyrm.

— Graaaah! — gritou a criatura.

Atoleiro disparou contra a criatura, uma vez após a outra. O


Wyrm Vermelho evitou vários projéteis, mas eram fortes e rápidos, e
eventualmente, o monstro deu meia-volta e fugiu. Era uma besta
inteligente. Logo entendeu que havia um grande poder escondido
dentro do pequeno recipiente que era aquele mago.

Mas o Atoleiro não o perseguiu. Iria realmente deixar uma presa


tão boa escapar? Por um momento, até pareceu ser o caso, mas…
— Gu… graaah! — rugiu a besta.

Correra direto para aquela poça pegajosa, afundando


completamente na lama gosmenta. O Atoleiro canalizou mais mana
para a água pantanosa e, enquanto o wyrm lutava para se libertar, a
gosma se agarrou a ele com ainda mais firmeza do que antes.

— Eeh, ele ficou preso lá — murmurou o Atoleiro, parecendo


surpreso ao finalizar o dragão com um enorme Canhão de Pedra.

Os outros aventureiros, que se espalharam quando o caos


começou, voltaram um por um.

— Droga, Atoleiro, você é realmente forte.

— Parece que não foi só conversa fiada quando você disse que
viajou pelo Continente Demônio.

— Sempre pensei que você fosse forte, mas não posso acreditar
que realmente derrotou aquela coisa!

Atoleiro, que sabia que a arrogância gerava discórdia, não deixou


os elogios subirem à sua cabeça.

— Bem, ele já estava machucado. De qualquer forma, ajudem-


me a desmantelar a coisa e dividir os despojos. Peguem todos tudo
o que puderem.

— Tem certeza? Você basicamente matou ele sozinho, sabe?

— Não seja tolo… Além disso, não posso carregar tudo sozinho
e, se deixarmos aqui, atrairá outros monstros. Peguem o que
puderem e vamos queimar o resto. Não queremos que ele se
transforme em um dragão zumbi.
Com isso, a missão que deveria ter sido uma viagem de ida e
volta de sete dias foi concluída em um único dia. A parte do Atoleiro
no saque – escamas, ossos e até carne do Wyrm Vermelho – foi
vendida por uma pequena fortuna. Ele voltou para a pousada com
uma bolsa cheia de moedas, comeu uma refeição mais modesta do
que normalmente fazia no café da manhã e então se retirou para
seu quarto, onde o homem fiel deu graças a seu Deus por ter
sobrevivido com segurança durante o dia. Esse ritual pareceria
peculiar aos não iniciados, mas era importante para ele.

E assim, o dia do Atoleiro chegou ao fim. No dia seguinte,


retomaria, mais uma vez, a busca por sua família.

✦✦✦✦✦✦✦

Ponto de Vista do Rudeus

Aconteceu em uma noite enquanto eu jantava no pub. Sozinho, é


claro. Comer era um assunto individual. Eu estava sozinho e
endinheirado. Mas não solitário, tá, de forma alguma! Digo, eu
odiava multidões.

— Foi então! Foi então que o Wyrm Vermelho apareceu!

Três trovadores se apresentavam no palco do pub. Um ficava na


frente e contava a história em um tom claro como o de um sino,
enquanto os outros dois combinavam sua música com seu ritmo,
colocando efeitos sonoros aqui e ali.

Trovador: uma carreira em que alguém subia no palco, cantava e


tocava música para obter trocados. Em cidades maiores, assinavam
contratos exclusivos com teatros. Muitos eram aventureiros que
transformaram suas experiências em canções ou compuseram
épicos a partir de contos interessantes que ouviram de outras
pessoas. O conceito de copyright não tinha chegado a este mundo,
então os trovadores regularmente reorganizavam as músicas uns
dos outros e até colaboravam uns com os outros em algum material
conjunto. Alguns chegavam a se associar a quem tocava
instrumentos diferentes e formavam uma banda para viajar pelo
mundo juntos – claro, aqueles que o faziam também tinham alguma
habilidade marcial. Aventureiros que sabiam cantar, dançar e lutar –
era isso que as pessoas deste mundo chamavam de trovadores.

Eu já tinha visto aqueles três antes, no palco da Guilda dos


Aventureiros. Eles eram um grupo de rank C chamado Orquestra
dos Caras Grandes; um nome maravilhoso que falava de seu desejo
por popularidade. Infelizmente, suas habilidades eram um pouco
deficientes. Apesar disso, continuaram produzindo novos materiais,
e até me questionaram extensivamente sobre a missão de matar o
dragão que completei há vários dias. A música que estavam
cantando era baseada naquela história. Quase como um YouTuber
com um título previsivelmente intitulado como “Fiz ____ e olha no
que deu!” Espera, não é bem assim.

Música nunca foi minha praia, mesmo na minha vida anterior.


Uma vez tentei criar uma música no Vocaloid, mas falhei
miseravelmente. Desde então, disse às pessoas que o único
instrumento que eu poderia tocar era o tambor de bunda. E, por
isso, quero dizer dar tapas na minha bunda com ambas as mãos. O
que esses trovadores estavam fazendo – criando algo novo com
base no que eu havia dito a eles, e apresentando isso – era algo
que eu nunca poderia fazer. Suas habilidades podiam precisar de
um pouco de polimento, mas tive que reconhecer a criatividade.

Infelizmente, o tom seco e narrativo da música não estava caindo


tão bem para o resto do público. Alguém zombou, chamando aquilo
de chato e exigindo que tocassem outra coisa.

Cara, que frio. Especialmente quando o protagonista da música


está sentado tão perto.

Bam!

A porta do pub foi aberta. O ar gelado entrou aos sopros. Todos


viraram os olhares. Meu corpo tremeu.

— Finalmente te encontrei, Rudeus, o Atoleiro!

A recém-chegada era uma elfa de cabelo comprido emaranhado


em tranças grossas. Ela tinha a aparência de uma aventureira, com
uma mochila, uma espada e um escudo no quadril, mas usava o
que parecia ser um vestido. Seu rosto era, em uma palavra, lindo.
Ela tinha olhos grandes e entreabertos, orelhas pontudas e cabelo
loiro radiante. Também era incrivelmente magra, com o peito plano –
e eu mencionei as orelhas? Era realmente a perfeita imagem de
uma elfa.

E estava apontando para mim. Todos voltaram seus olhares para


mim.

— Gah! No final das contas você estava aqui, Atoleiro… — O


cara que tinha zombado dos trovadores parecia não estar gostando
da bagunça, mas o ignorei. Afinal, eu era generoso.
— Então você finalmente me encontrou, hein… — falei
despreocupadamente para a elfa, embora não fizesse ideia de quem
diabos ela fosse. Nos últimos anos eu não tinha feito nada que
pudesse dar qualquer motivo para alguém guardar rancor de mim.
Ajudei as pessoas, evitei brigas e tomei cuidado para não atrair o
tipo errado de atenção. Foi a primeira vez que uma mulher bonita
me procurou, será que eu tinha feito suficiente bem em geral para
que as pessoas começassem a me procurar para agradecer?

De alguma forma, achei que não fosse isso.

— Você se sobressai como um polegar dolorido, igualzinho me


falaram. Te encontrei na mesma hora!

— Espera, você disse “finalmente” há apenas um segundo, não


disse?

— Pensei que você estava mais ao leste — disse ela, com seus
lindos olhos fixos em mim. Por alguma razão, havia baba
escorrendo de sua boca. Ela a lambeu.

O quê, ela se apaixonou por mim à primeira vista? Estava com


água na boca ao ver o físico atlético que construí nos últimos
tempos? Hehehe, bem, eu estava ficando em forma. Além disso,
estava bem no meio da puberdade e começando a ganhar massa
muscular.

— Qual é o problema?

— Ah, não, nadinha! — A elfa pigarreou e se sentou ao meu


lado.

O pub explodiu em oohs e aahs. Ouvi as pessoas sussurrarem:


— E pensar que o Atoleiro tinha uma mulher durante esse tempo
todo!

Eu também não podia acreditar. Foi um choque grande o


suficiente para levar lágrimas aos meus olhos.

— Uff. — Ela largou a mochila e puxou a cadeira ruidosamente


na minha direção. Estava tão próxima. Digo, muito próxima mesmo.
Próxima o suficiente para que, se eu fosse virgem, pudesse ter
pensado erroneamente que ela gostava de mim. Isso é perigoso,
Senhorita. Se você se apaixonar por mim, vai acabar se queimando.

— Meu nome é Elinalise, Elinalise Dragonroad. Fazia parte do


grupo de seu pai…

— Ah. — Então era isso. Ela provavelmente tinha algum tipo de


mensagem.

— E também sou amiga da Roxy.

— O quê! Minha professora! Onde ela está? — Inclinei-me para a


frente em meu assento, animado por ouvir outra pessoa dizer o
nome de Roxy pela primeira vez em muito tempo. Rezar para ela
era a única coisa que me fez continuar durante os últimos anos.

— Mais importante! — Em vez de responder à pergunta número


um em minha mente, Elinalise se aproximou o suficiente para me
beijar e colocou os lábios em meu ouvido. — Ouvi dizer que você
matou um Wyrm Vermelho sozinho, é verdade?

— S-sim, bem, meio que só o deixei às portas da morte, de


qualquer maneira.
— Agora entendo por que a Roxy era tão orgulhosa de você.

— Fico feliz em saber que minha professora está se gabando de


mim por aí… Não, isso faz cócegas. O que você está fazendo?

— Tocando seu peito. Você é muito forte. — Elinalise estava


tocando meus braços e peito. Seu dedo roçou o pingente que Lilia
me deu. — Ora, ora, que exótico. Quem te deu isso?

— Nossa empregada.

— Empregada? Ela é uma elfa?

— Hã? Não, não é. Ora, ora, por que está perguntando sobre
isso? — falei. Oops. Comecei até a falar como ela.

— Isso não importa. — Elinalise não pareceu incomodada com


meu deslize. Ela me mostrou a bainha que estava pendurada em
seu quadril. Possuía um pingente preso a ela com o mesmo formato
do meu, embora feito de forma muito mais elaborada. Uma amadora
fez o meu, enquanto o dela foi claramente feito por alguém
habilidoso. — Estamos combinando — disse ela, aconchegando-se
contra mim.

Ela se tornou extremamente próxima desde que apareceu.

— O que está acontecendo aqui? Você gosta de mim?

— Sim, você é um bom homem. Mais do que eu esperava. Estou


surpresa. Achei que você fosse mais infantil… você é tão
musculoso, tão maravilhosooo.

Ela provavelmente estava apenas brincando comigo, mas isso


meio que fez meu coração disparar.
— Uhhhm… heh, você também é muito bonita, senhorita.

Eu não ficaria todo nervoso, feito um virgem. Deslizei meu dedo


sob seu queixo e o inclinei para cima. Quando fiz isso, ela fechou os
olhos suavemente, como se esperasse por um beijo. Assim que
comecei a me perguntar que tipo de piada era essa, sua mão
escorregou pela minha nuca.

Sério? Eu definitivamente estava sentindo algumas vibrações


sexuais ali, mas, uh? Estava tudo bem? Eu estava realmente livre
para dar a ela um grande beijo molhado?

No momento em que pensei isso, seus olhos se abriram.

— Ah não, eu não posso. Que vergonha.

— Por favor, não me provoque assim — reclamei.

— Eu não provoco os homens. Mas também não tenho intenção


de me tornar filha de Paul e quero continuar sendo amiga da Roxy.

Bem, tanto faz, não importava; eu não tinha intenção de sair com
ninguém, de novo, tão cedo assim.

— Então, Senhorita Elinalise, você tem algum negócio comigo?

— Sim. Trouxe boas notícias.

— Boas notícias?

Elinalise sorriu para mim.

Foi nesse dia que soube que o paradeiro de Zenith havia sido
confirmado.
Capítulo 01:
Carta-Convite
Uma semana depois de descobrir onde Zenith estava, eu ainda
continuava na pousada em Basherant. Ela aparentemente estava na
Cidade Labirinto de Rapan, em algum lugar no centro do Continente
Begaritt, e por mais que eu quisesse partir de imediato, isso ficava
longe. Não fazia ideia de quantos meses demoraria para fazer a
viagem a pé. Poderia demorar até mais de um ano.

Além disso, o inverno chegaria em breve, e essa era uma


estação difícil nos Territórios Nortenhos. A neve acumulava-se a
uma altura de cinco metros de profundidade e, embora o país
desobstruísse as estradas locais até certo ponto, cruzar a fronteira
seria difícil. Eu poderia usar magia para parar a neve e descongelar
o solo, mas não conhecia todas as estradas e não poderia evitar o
clima para sempre.

E então, fiquei parado por um tempo. Além disso, de acordo com


Elinalise, Zenith estava recordando os bons e velhos tempos
enquanto mergulhava em masmorras. Suspeitei que estava dizendo
isso apenas para me tranquilizar, mas ela disse que não havia
necessidade de me apressar e que Paul e Roxy já estavam indo
naquela direção. Paul não inspirava muita confiança, mas se Roxy
estava indo por minha mãe, então eu poderia relaxar um pouco.

E, assim, comecei o dia com minha rotina de exercícios habitual.


Com neve ou sem neve, eu ainda poderia fazer meu treino de peso.
Nunca fui muito chegado em exercícios na minha vida anterior, mas,
por alguma razão, meu corpo atual estava levando isso muito bem.
Era um dia de folga, então me propus um percurso um pouco
mais difícil. Primeiro, dei uma volta pela cidade. A neve compactada
era escorregadia, aumentando o risco de escorregar e torcer minha
perna; este seria um importante treinamento de aventureiro. Assim
que terminei minha volta ao redor da cidade, me dirigi para a
muralha externa, uma construção de pedra com cerca de quatro a
cinco metros de altura, e usei magia para escalar. Aventureiros às
vezes precisavam chegar a lugares mais altos rapidamente, então
eu estava treinando inclusive para esse tipo de ocasião.

Avistei um dos soldados à espreita.

— Ah, bom dia!

— Whoa?! Ah, é você, Atoleiro. Trabalhando duro, pelo que vejo!


Então hoje você vai tirar o dia de folga?

— Sim, hoje vou treinar de novo.

— Bem, você é um trabalhador esforçado. Ah, é mesmo…


poderia consertar a muralha depois? Eu te pago um jantar.

— Se você me der permissão para namorar a sua filha, ficarei


feliz em reconstruir até a sua casa para você.

— Ei… — começou ele.

— Só estou te provocando.

Cumprimentei os outros soldados na muralha externa e pulei


para o outro lado. Lá, dei outra volta ao redor do perímetro da
cidade. Ao contrário da cidade, que era periodicamente limpa, a
neve se acumulou do lado de fora, então tive que usar magia de
fogo para derreter um caminho pelo qual pudesse correr. Isso
também fazia parte do treinamento. Pode parecer uma habilidade de
uso limitado, mas houve aquela vez que lutei para atravessar uma
floresta cheia de neve.

— Huff… huff…

Assim que terminei minha volta, comecei a praticar com a espada


de madeira que carregava comigo. Eu sabia que isso não era
realmente necessário para um mago, mas ainda fazia parte da
minha rotina diária. Parecia ser amplamente aceito que os magos
eram fisicamente impotentes, mas isso não me agradava. Eu podia
não ser um espadachim, mas passava por muitas ocasiões em que
um pouco de força na parte superior do corpo vinha a calhar, como
ao carregar minha bagagem.

— Hah! Yah! Ho!

Depois de terminar meus exercícios habituais com a espada,


mais aqueles que Paul e Ghislaine me ensinaram, comecei a
simular uma batalha. Decidi que desta vez imaginaria Ruijerd como
meu oponente. Eu não era páreo para ele, é claro, mas isso não me
incomodava. Meu objetivo era praticar.

Quando voltei para a pousada, Elinalise colocou a cabeça para


fora de uma janela do segundo andar.

— Ah… ora, ora, é você Ru… ah… deus. Bem-vindo de volta.

Havia algo de errado com ela. Suas mãos estavam segurando o


parapeito da janela e, conforme seu rosto se contorcia, seu corpo
tremia com um ritmo contínuo. Gemidos de “Mm, mm” escapavam
enquanto ela tentava conter a voz. Além disso, seus ombros
estavam completamente nus.

— Obrigado, Senhorita Elinalise. Parece que você está tendo


uma manhã animada.

— O quê? Animada? R-receio não saber do que você está


falando ag… aah!

Eu tinha certeza de que havia um cara dentro daquele quarto,


fazendo você sabe o quê por trás dela. Abrindo uma janela mesmo
enquanto estava tão frio do lado de fora… Animada, de fato.

— Está congelando aí fora, por favor, tome cuidado para não


pegar um resfriado. — Afastei meu olhar dela e entrei, indo em
direção ao meu quarto.

Na semana anterior comecei a pensar que Elinalise era uma


maníaca. No começo isso me assustou, mas com o tempo me
acostumei. A mulher levava algum homem para o seu quarto
praticamente todos os dias.

Claro, eu não a julgava por isso. Na verdade, adoraria participar,


se pudesse. Mas isso não iria acontecer, porque nos últimos dois
anos tinha sofrido com uma certa doença. Uma doença de corpo e
mente. Vamos usar um bulbo de planta como exemplo. Quando o
bulbo da planta vê montanhas ou vales, ele floresce. Seu broto sobe
em direção ao céu e se transforma em um caule tão forte que a
chuva e o vento não conseguem derrubá-lo, com uma flor magnífica
na ponta. Então, quando chega a hora certa, ele espalha suas
sementes brancas por toda parte. No entanto, meu bulbo não estava
crescendo e sua flor não estava desabrochando.
Ah, dane-se, vou só dizer. Eu tinha Imp. E não, não estamos
falando sobre nenhum tipo de monstro. Meu homenzinho parou de
prestar atenção nas coisas depois que Eris e eu terminamos,
conforme descobri quando uma companheira aventureira se
aproximou de mim e a levei para o meu quarto. Chega nos
cansamos – não de um jeito bom – e ela acabou saindo furiosa,
chateada e frustrada comigo.

Fiz tudo o que pude para consertar o problema. Soldat tinha até
me levado com ele para o distrito da luz vermelha, onde meu
coração bateu forte enquanto uma mulher me atendia. No final das
contas, foi um fracasso. Minha tulipa não floresceu, em vez disso,
caiu em silêncio. Além do mais… não, vamos parar por aí.

Desde então, meu amigo inútil permaneceu inutilizável. Eu ainda


apreciava a visão de uma mulher atraente, mas nenhuma vibração
subia e descia por minha medula espinhal e minha parte inferior
permanecia em silêncio. Com o passar do tempo, fui dominado por
uma sensação generalizada de solidão e desamparo e, depois de
muitas falhas, desisti. Não pensava mais nisso como um problema
que outra pessoa poderia me ajudar a resolver. Não havia ninguém
de quem eu gostasse o suficiente para tentar. Se todas as minhas
tentativas de romance terminassem em um coração partido, seria
melhor apenas admirar de longe.

Tudo o que precisava fazer era aproveitar ao máximo o vôo solo.


Não precisava de parceiras. Eu odiava multidões.

Embora, ultimamente, não tivesse sido capaz de persuadir meu


amiguinho a voar sozinho… Não que eu estivesse chateado com
isso, é claro!
— Hah…

Voltei para o meu quarto. Depois de aquecer o ar com magia,


conjurei um pouco de água quente e limpei o suor cobrindo o meu
corpo. Então me troquei e saí, pensando em pegar algo para comer.

— Ah!

— Ah.

Topei com Elinalise, que tinha acabado de terminar seus


assuntos. A pessoa com o braço em volta do ombro dela era a
mesma com quem eu trabalhei nos últimos anos – Soldat. Ele ficou
pálido no mesmo momento em que viu meu rosto.

— Não, não é o que você pensa, Rudeus… Eu não tinha


intenção de colocar minhas mãos em sua mulher.

— Não, não é o que você pensa, Soldat. Ela com certeza não é
minha mulher. Além disso, você sabe que o meu não está em
condições de funcionamento, não sabe?

— Ah, é, é mesmo, uh… então, foi mal por esfregar sal em suas
feridas. Eu não queria fazer isso. Além do mais, você me ajudou a
conseguir muito dinheiro há pouco tempo.

— Está tudo bem — assegurei a ele. — A propósito, foi bom?

— Sim, foi muito bom — disse ele, seu rosto derretendo em uma
expressão de felicidade.

— Tch. — Estalei minha língua em consternação, mesmo sendo


eu quem fez a pergunta. — Bem, você o ouviu, Senhorita Elinalise.
Bom para você.
— Bem, claro que foi. Quem fica comigo sempre sai feliz.

— Ah, sério…

Eu sabia que ela já estava farta de vários outros homens do


grupo do Soldat – cada um deles foi até mim com suas próprias
desculpas e uma história atrevida sobre o que fizeram. Eu realmente
não precisava de desculpas, mas eles sabiam o que seus amigos
estavam fazendo? Será que ninguém descobriria e o caos seria
instaurado?

Ah, bem… não é problema meu. Eu não iria enfiar meu nariz
onde não era chamado, igual fiz nos últimos dois anos. Não fiz nada
para despertar a ira de ninguém e não comecei nenhuma briga. Em
outras palavras…

— Senhorita Elinalise.

— Sim, pois não?

— Você é livre para se divertir, mas por favor, lide com as


consequências por conta própria, entendeu?

Isso mesmo – autopreservação. Eu não queria ter nada a ver


com as complicações que surgiam ao redor das virilhas das outras
pessoas.

— Claro.

— Ei, o que foi isso? — Com base em sua expressão, Soldat não
fazia ideia do que estávamos falando.

Elinalise deu um beijo em sua bochecha e o guiou escada


abaixo.
— Nadinha. Venha, vamos comer alguma coisa.

Que mulher cruel.

✦✦✦✦✦✦✦

Elinalise Dragonroad era uma das ex-integrantes do grupo de


Paul. Pelo visto, ela se juntou a Roxy para procurar a família de Paul
após o Incidente de Deslocamento. Viajaram através do Continente
Demônio juntas, e então, traçou seu caminho sozinha para o
Continente Central, enquanto Roxy foi contar a Paul sobre o
paradeiro de Zenith. Em outras palavras, se não fosse pelos
caprichos egoístas de Elinalise, a pessoa comigo no atual momento
poderia ser Roxy. Droga. Não – eu deveria estar grato. Elas
poderiam ter ido as duas para Millishion e me deixado sem saber de
nada.

Elinalise era uma guerreira de rank S. Uma vez fomos para uma
missão de eliminação juntos e, como esperado, ela era boa –
embora não fosse párea para Ruijerd, mesmo sendo um pouco
injusto compará-la a ele. Ela tinha uma beleza régia, élfica, com
cabelos dourados radiantes e magníficos cachos longos. Seu
comportamento suave e sua maneira distinta com as palavras
acariciavam os egos dos homens; ao fitá-los diretamente nos olhos
e tocá-los com pequenas carícias, ela os desarmava sem nem
mesmo tentar qualquer coisa. Sua destreza no quarto também era
claramente impressionante, porque quase todos os homens que
passavam uma noite com ela ficavam completamente exaustos no
dia seguinte.
Dito isso, ela não ignorava ou desprezava as outras mulheres.
Desempenhava o papel de irmã mais velha para as garotas mais
novas, dando-lhes conselhos sobre relacionamentos, ensinando-as
a atrair os homens e protegendo-as em combate. Ela nunca tentou
seduzir um homem que já tinha uma parceira. Se ignorasse os seus
seios pequenos, era perfeita.

Claro, seu apetite sexual era insaciável. Um por um, devorou


todos os homens solteiros ao seu redor. Era como ver um fusível
queimando. Ninguém fazia ideia de quanto tempo o pavio duraria,
mas algum dia ele iria acabar e causar uma grande explosão – com
isso quero dizer aventureiros orgulhosos se metendo em uma briga
de amantes. Elinalise era carismática o suficiente para garantir que
as consequências nunca se transformassem em derramamento de
sangue, mas, como poderia se esperar, nunca ficava em um grupo
por muito tempo. Ela era famosa entre os aventureiros homens da
região sul do Continente Central, tanto que havia uma regra tácita
sobre não permitir que se juntasse a um grupo a menos que
existissem circunstâncias especiais.

Aliás – estava atualmente fazendo grupo comigo.

— Se você estiver indo para o Continente Begaritt, então tenho


que garantir que chegue lá em segurança — dissera ela, e eu não
fiz objeções. Os últimos dois anos me ensinaram a perceber como
pode ser difícil viajar sozinho. Elinalise era hábil na batalha e seria
uma boa parceira… exceto pela parte em que se aninhava contra
mim enquanto eu comia e passava as mãos por todo o meu corpo.
Essa parte era um pouco irritante.
— Senhor Soldat, você não pode fazer isso. Rudeus está
olhando.

— Ah, vamos lá, não posso? Só um pouquinho.

— Ora, ora, que garoto travesso…

Atualmente, ela estava ficando toda amorosa com Soldat bem na


minha frente. Por que estávamos comendo na mesma mesa?
Aposto que ela só queria se exibir. Droga, não era como se eu
tivesse inveja nem nada!

Soldat era doce e atencioso com Elinalise, assim como o resto


dos membros de seu grupo. Com um harém reverso como aquele,
como ela poderia evitar qualquer drama? Não que me importasse,
contanto que nenhum dos forcados acabasse apontado na minha
direção, mas eu meio que queria chegar ao fim disso antes que as
coisas azedassem.

— Então tá bom, aqui — disse Elinalise para Soldat. — O


dinheiro que prometi.

— Opa. Eu tenho que dizer, sinto muito por isso… gosto tanto do
nosso tempo juntos que receber dinheiro por isso parece meio…

— Apenas certifique-se de não me levar a sério, e ficaremos


quites — respondeu ela, entregando o dinheiro.

Então era esse o segredo dela. Quase como uma espécie de


prostituição reversa, pensei. Bem, nesse caso, não devia haver
problemas.

Certo…?
✦✦✦✦✦✦✦

Nossas vidas continuaram assim por mais um mês. Então, um


dia, uma carta chegou para mim. Escritas no envelope firmemente
lacrado estavam as palavras: Universidade de Magia de Ranoa.

O que diabos é isso? Pensei comigo mesmo enquanto rompia o


selo e espiava o conteúdo.

Para Lorde Rudeus Greyrat,

Saudações. Me chamo Jenius, sou o Vice-Diretor da


Universidade de Magia de Ranoa.

Recentemente, o nome Rudeus Atoleiro ganhou destaque no


Reino de Ranoa. Ouvi dizer que você é um aventureiro altamente
habilidoso que pode lançar feitiços sem encantamentos. Em uma
investigação mais aprofundada, também descobri que parece ser
um aluno da Maga da Água de nível Rei, Roxy.

Você tem desejo de aprimorar suas incríveis habilidades


mágicas? Fiz preparativos para recebê-lo como um aluno especial
na Universidade de Ranoa. Como um aluno especial, estaria isento
da mensalidade, bem como dos requisitos de frequência às aulas,
embora teria acesso à biblioteca principal da escola e às
instalações, para apoiá-lo na realização de suas próprias pesquisas.

Se você for capaz de completar um projeto de pesquisa dentro


de sete anos (até se formar) e transferir os direitos de suas
descobertas para a Universidade ou para a Guilda dos Magos, será
inscrito na Guilda dos Magos como um membro de rank C. Claro,
mesmo que sua pesquisa não dê frutos significativos, ainda será
registrado como membro da Guilda com rank D, assim como o resto
dos graduados.

Eu apreciaria profundamente a oportunidade de me apresentar a


você. Peço desculpas pelo pedido abrupto, mas peço que considere
a minha oferta.

Obrigado novamente pelo seu tempo e consideração,

Jenius Halphas,

Vice-Diretor da Universidade de Magia de Ranoa.

Um aluno especial… em outras palavras, um bolsista? Eu sabia


que existia uma Guilda dos Magos neste mundo, mas não fazia
ideia do que eles faziam. Sabia, no entanto, de uma Guilda dos
Ladrões que vendia itens no mercado negro e negociava escravos.
Com base nisso, presumi que a Guilda dos Magos provavelmente
estava envolvida com a compra e venda de livros sobre magia e
pesquisa mágica.

Mas por que estavam me enviando esta carta apenas a essa


altura? Suponho que mesmo que eu sentisse que estava em um
impasse quando se tratava de minha magia, era mais do que
poderoso o suficiente para ser um aventureiro, e até mesmo derrotei
um Wyrm Vermelho errante essencialmente sozinho. Ele podia estar
enfraquecido, mas isso não mudava o fato de que o derrotei. E, no
final das contas, a história é escrita pelos vencedores.

Além disso, a carta era a prova de que meus esforços nos


últimos dois anos estavam sendo reconhecidos. A Universidade da
Magia era a alma mater de Roxy, e fiquei genuinamente honrado por
terem decidido entrar em contato comigo – motivo pelo qual tive que
verificar a autenticidade da carta.

— Senhorita Elinalise, vou dar uma passada na Guilda dos


Aventureiros.

— Eh? Você não ia tirar o dia de folga? — Ela estava arrumando


sua juba luxuosa, tendo pela primeira vez tirado um dia de folga em
sua caça aos homens.

— Há algo que quero descobrir.

— Espere um momento. Eu vou com você. — Elinalise largou a


escova de cabelo e se levantou. Seu cabelo ainda não estava
perfeitamente arrumado, mas o suficiente para que parecesse
considerá-lo aceitável.

— Eu não vou sair para fazer missões. Já volto.

— Há muito tempo, Paul disse a mesma coisa antes de ir para a


Guilda dos Aventureiros para pegar algumas garotas.

— Ele disse, hein? Bem, é a cara dele — reconheci. — Mas o


que isso tem a ver comigo?

— Se você quer fisgar alguma coisa, teremos melhores chances


em dois. Vamos buscar um par de homem e mulher.

Sobre o que essa devoradora de homens estava falando?

— Por favor, pare com essa coisa de par de homem e mulher…


E se forem amantes? Isso não vai dar certo.
— Está tudo bem. Posso dizer se são amantes só de olhar —
disse ela.

— Não vou sair para pegar garotas, então você não precisa vir
comigo.

— Não diga isso — choramingou Elinalise. — Pense nisso da


minha perspectiva! Tenho que ir à caça porque você não vai se
divertir comigo.

— Eu ficaria feliz em me divertir com você… se você pudesse


fazer meu garoto se levantar.

— Eu adoraria tentar, mas não posso fazer sexo com o filho do


Paul. Além disso, prometi para a Roxy que não faria isso. E não
quero que ela me odeie.

Que explicação completamente incoerente.

— Não é minha culpa — falei.

— Com certeza é verdade. Mas o que há de errado em pegar


garotas? Todos os garotos saudáveis fazem isso.

— Não sou um garoto saudável.

— Ora, ora, bem lembrado.

E então, de alguma forma acabei levando Elinalise comigo


enquanto partia para a Guilda dos Aventureiros. Não para pegar
garotas, entendido?

✦✦✦✦✦✦✦
Já passava do meio-dia e não havia muitos aventureiros por
perto. Soldat e o resto do Líder Escalonado também não estavam
por perto. Apesar de serem ursos, os Ursos Esplendorosos não
hibernavam no inverno, e os pedidos de eliminação apareciam aos
montes.

Depois de vasculhar o local, encontrei um grupo de rank A, Cave


A Mond. Era um grupo de magos com apenas quatro membros: um
guerreiro mago e três magos. Todos podiam usar pelo menos magia
de nível intermediário ou superior e seu líder era um usuário
avançado de magia de fogo.

— Yo, Atoleiro, saindo em um encontro hoje?

— Sim, minha linda namorada ficava me importunando para sair


e pegar algumas garotas.

— Hein?

Quem se dirigiu a mim foi o líder deles, Conrad. Era um


aventureiro experiente de quarenta anos, melancólico e bigodudo.
Ele abandonou a caça ao Wyrm Vermelho errante, mas tínhamos
uma relação amigável.

— E aí? Finalmente decidiu entrar no nosso grupo? — Ele já


tinha feito o convite várias vezes. De acordo com ele, usuários de
magia ofensiva que também podiam usar magia de cura de nível
Intermediário eram uma mercadoria rara.

— Hmph. Sou um lobo solitário.

— Por que você está tentando agir assim? Você já esteve em um


grupo, não esteve? Com aquela mulher ali.
Olhei para trás para ver Elinalise pegando algum jovem
aventureiro. Ou seduzindo, melhor falando. Pude ver o rubor no
rosto do homem. A julgar pela aparência dele, não tinha muita
experiência, e Elinalise o deixou mais confuso do que excitado.

Bem, não que isso importasse.

— Mais importante, Senhor Conrad, tenho algo que gostaria de


perguntar a você.

— O que é? Se for algo estranho, vou cobrar uma taxa. Você


recebeu um bom pagamento acabando com aquele errante, não foi?
Gah, eu também devia ter ido. Se soubesse que você ia cuidar de
tudo sozinho…

— Da próxima vez vou te dar alguma coisa — prometi. — Agora,


quanto ao que eu queria perguntar… Você estudou na Universidade
de Magia de Ranoa, certo?

— Sim. Mas desisti no meu quinto ano.

— Recebi esta carta — falei, e mostrei a ele.

— Ahh, um aluno especial. Sim, eles têm essas coisas.

— Poderia me dar mais detalhes?

— Na Universidade, eles têm caras como você, que podem usar


magia estranha, e aventureiros que fizeram seu nome, mas não são
associados à Guilda dos Magos. Têm nobres e membros da realeza
de outros países também, mas só costumam convidar aqueles com
um incrível poder mágico. Dizem que eles não precisam assistir às
aulas, desde que a Universidade possa listá-los como alunos.
— Como assim? — perguntei.

— Simples. Se esses caras fizerem seu nome no futuro, isso é


publicidade gratuita para a Universidade, certo?

— Bem, e o que a Guilda dos Magos faz?

— Vendem pergaminhos, apoiam a criação de implementos


mágicos e outras coisas. Na verdade não sei todos os detalhes.
Digo, sou um membro, mas sou só de rank F.

— Ah, certo. É verdade que quem se forma acaba se tornando


um associado de rank D?

— Caso se forme, sim — disse ele.

A maioria das escolas de magia tornava seus alunos em


membros da guilda de rank E após se formarem. A Universidade de
Magia era um pouco especial, já que entregava um rank D,
principalmente por ela ser o coração da guilda em si. Sem falar na
possibilidade de se graduar como membro de rank C no caso de
desenvolver uma pesquisa frutífera.

— O que um rank C permite que o associado faça? — perguntei.

— Sei lá. A maneira mais rápida de descobrir seria perguntar à


guilda pessoalmente, mas eles não têm uma filial nesta cidade.

Parecia que as pessoas não seriam realmente elegíveis para a


ajuda da Guilda dos Magos caso fossem apenas de rank F. As
diretrizes para avançar na hierarquia não eram tão claras quanto as
da Guilda dos Aventureiros, o que significa que eram principalmente
pessoas ricas ou habilidosas que eram promovidas.
— Ah, é mesmo… Atoleiro, você não foi para a escola, foi?

— Tive uma professora particular.

— Então você deve vir de uma família bastante rica.

— Como pode ver pelo meu sobrenome, sou de uma das famílias
mais nobres do ramo Asurano.

— Foi mal, mas qual que era o seu sobrenome mesmo?

— Greyrat. Rudeus Greyrat.

O nome Rudeus Atoleiro era bastante conhecido, mas meu


sobrenome não. Eu também não sabia o nome da família de
Conrad. Ele falou na primeira vez que nos apresentamos, mas eu
não me lembrava.

— Greyrat… os lordes de Asura, hein. Isso é incrível. Então o


que você está fazendo como aventureiro por aqui?

— Bem… — Comecei a falar, e então uma imagem de Eris surgiu


bem no fundo da minha mente. Seu rosto, o calor daquela noite, a
sensação de perda que senti na manhã seguinte e as memórias
desagradáveis com Sara – foi depois da partida de Eris que meu
garoto parou de funcionar.

No momento em que percebi o que estava acontecendo, as


lágrimas rolaram pelo meu rosto.

— H-hein…?

— Ah… foi mal, não devia ter perguntado, todo mundo tem seus
motivos.
Eu o deixei desconfortável. Queria me esquecer de Eris, mas
cada vez que algo assim acontecia, eu era atingido pelas memórias.
Com certeza já estava na hora de seguir em frente. Eris superou as
coisas bem rápido. Provavelmente já havia se esquecido de mim há
muito tempo. Não fazia sentido se apegar a esses sentimentos. Foi
tão fácil acabar com meus sentimentos por Sara, então por que não
conseguia esquecer de Eris?

Não, apenas pare de pensar nisso, disse a mim mesmo.

— Bem, de qualquer maneira, já que se esforçaram para


convidá-lo, não vale à pena ir e ver o que eles têm a oferecer?

Quando Conrad disse isso, me lembrei de quando fui tutor de


Eris. Naquela época, eu pensava que estava fazendo aquilo para
economizar e frequentar a Universidade de Magia ao lado de
Sylphie. Cara, mas que viagem ao passado.

E virar um membro da Guilda dos Magos com certeza teria seus


benefícios. Mas eu ainda tinha que pensar em minha família, e nos
últimos anos havia descoberto que minhas habilidades atuais eram
mais do que suficientes para meus propósitos diários. Ao contrário
de alguns anos atrás, não sentia a mesma urgência de aprender
nada novo. Certo, havia a possibilidade de eu de repente topar com
alguém como Orsted de novo… embora ele dificilmente fosse um
oponente que alguém pudesse derrotar com apenas um pouco de
treinamento. Ele acabou com Ruijerd, que viveu por várias centenas
de anos, com apenas uma mão. Se nos cruzássemos de novo, seria
melhor evitar uma luta.
— Em vez de seguir atrás de alguém como Paul, por que não
tenta fazer algo pelo seu próprio bem? Tipo ir para a escola? Você
tem idade suficiente para ser independente, certo? — Elinalise de
repente apareceu ao meu lado.

— Terei tempo para isso depois que reunir a minha família —


falei.

— Zenith está bem. Você voltará a vê-la enquanto ainda


estiverem vivos, isso já basta.

— Mas nossa família foi separada… devemos pelo menos nos


reunir primeiro.

— De qualquer forma, Paul e os outros vão voltar para Asura.


Você pode ver todo mundo lá — raciocinou ela.

— Mas eles podem acabar ficando em Millishion, sabe?

— Não é o melhor lugar para um homem com duas esposas


viver.

A monogamia era um dos ensinamentos da crença Millis, e a


maioria dos cidadãos do País Sagrado de Millis eram seguidores da
fé. Ela tinha um ponto.

— Apenas seja honesta… você só não quer se encontrar com o


meu pai, não é? — Eu a acusei.

— Não, eu não quero — disse ela, encolhendo os ombros com


indiferença.

— A propósito, Atoleiro… — disse Conrad.


— Sim, pois não?

— Não é hora de você me apresentar à moça bonita? — Ele


olhou para Elinalise com um olhar sedento.

Por que essa mulher era tão popular? Bem, de qualquer forma,
tomei uma decisão sobre a Universidade. Era uma proposta
atraente, mas ia deixar a minha matrícula para depois.

✦✦✦✦✦✦✦

Enquanto sonhava naquela mesma noite, me vi em um aposento


totalmente branco. Era ele – aquele cara, de novo. O do mosaico,
de dois anos atrás.

— É, já faz um tempo.

Sim, eu sei. Deus Homem.

— O que isso deveria significar?

Nada. Não se preocupe com isso.

— Não vou. Afinal, já me acostumei com você me dizendo coisas


estranhas.

É mesmo? Bem, já faz um tempo que eu não tinha esse sonho,


mas não me sinto tão enojado quanto de costume.

— Você já deve ter se acostumado, certo?

Sei lá. Mais importante, chamei você várias vezes enquanto


procurava por Zenith, sabia? Não podia ter aparecido ao menos
uma vez?

— Estava acontecendo muita coisa aqui do meu lado.


É mesmo? Bem, de qualquer forma, já a encontramos. Parece
que perdi dois anos inteiros por causa disso.

— Mas fico feliz por você ter encontrado a sua mãe.

Sim. Nunca imaginei que até a Roxy estaria procurando por ela.

— Bem, ela sempre trabalhou duro.

Sim, é verdade. Fico orgulhoso da minha mestra. Parece que ela


também está indo para o Continente Begaritt. Mal posso esperar
para vê-la.

— Tem certeza disso? Realmente quer ver a mestra de que tanto


se orgulha enquanto está tão patético assim?

Patético? Eu? Agora?

— Você não acha? Depois que a Eris sumiu, você passou por
todos aqueles problemas para ficar com aquela garota, Sara, e
então suas regiões inferiores não entraram em campo. Sua magia
pode ter melhorado um pouco, mas nos últimos anos chegou em um
beco sem saída. A sua esgrima também não melhorou muito,
mesmo praticando todos os dias. A única coisa que realmente ficou
mais forte foi o seu corpo, mas é disso que você quer se gabar?

Grrr, você realmente quer acabar comigo, não é? Certo, o que


você está tentando dizer?

— Aprimorar as suas habilidades não deveria ser importante? Vá


para a Universidade de Magia e você aprenderá tanto que seu
tempo como aventureiro vai parecer não ter sido nada.
O quê? Você é diretor de algum cursinho ou coisa do tipo?
Espera… Isso é o que eu acho que é? Seu conselho usual?

— É, é algo do tipo.

Como sempre, você faz de tudo para parecer suspeito.

— Sério? Mas desta vez você devia escutar o que estou te


dizendo. Se for para o Continente Begaritt, tenho certeza de que vai
se arrepender.

Me arrepender? Por quê?

— Não posso contar.

Bem, tá bom. Não é como se fosse a primeira vez que você


esconde alguma coisa de mim.

— Rudeus, vá em frente e matricule-se na Universidade de


Magia de Ranoa. Lá, investigue o Incidente de Deslocamento na
Região de Fittoa. Se fizer isso, será capaz de recuperar suas
habilidades e confiança como um homem.

Hã? Sério? Deus Homem, você está dizendo que minha


impotência sexual pode ser curada na Universidade?! É isso que
você quer dizer, certo? Certo… Certo…

Minhas palavras deixaram apenas um eco enquanto minha


consciência se desvanecia.

✦✦✦✦✦✦✦

Abri meus olhos para me deparar com o rosto de Elinalise bem


ao lado do meu. Estupefato, olhei para ela com espanto enquanto
me lembrava dos eventos da noite anterior. Em uma rara virada de
eventos, sua caçada ao homem terminou em fracasso. Quando o
dia se transformou em noite, ela disse: “Está muito frio, não consigo
dormir”, e deitou-se na cama comigo.

Era verdade que as noites de inverno no norte eram


extremamente frias. Este era um mundo sem ares-condicionados ou
aquecedores a gás. Boas pousadas tinham lareiras em todos os
cômodos ou uma única magia que aquecia todo o prédio, mas a
nossa não era assim. Forneciam um edredom super grosso, mas
era só isso. Usei magia para aquecer o quarto, então isso realmente
não me incomodava, mas Elinalise parecia com um pouco de frio.
Decidi que essa era uma das exigências do trabalho e dei as boas-
vindas a ela.

Então ali estava eu, na cama com uma bela mulher mais velha
que não se importava com castidade, e ainda assim meu garotinho
continuava firmemente deitado. Eu estava insanamente excitado,
mas não houve qualquer arrepio na minha espinha, nenhuma
reação lá embaixo.

— Hmmm…

Quando afastei minhas mãos dela, ela me agarrou como um


polvo. Seu corpo macio, apesar da falta de acolchoamento,
pressionou contra o meu. Eventualmente, sua respiração ficou
calma e tranquila mais uma vez, e minha excitação começou a
desaparecer, deixando um vazio, uma solidão e uma sensação de
inferioridade.

Lágrimas brotaram nos meus olhos.


— Então… isso finalmente vai acabar…

Foi assim que, em silêncio, tomei a decisão de frequentar a


Universidade.

✦✦✦✦✦✦✦

Três meses depois, quando a neve começou a derreter, anunciei


minha partida para Soldat e seu grupo. Embora eu me considerasse
um aventureiro solitário, costumava viajar com o pessoal do Líder
Escalonado e achava que despedidas eram necessárias. Reuni os
membros do grupo em frente à pousada e expliquei que estava indo
para Ranoa.

— Todos… obrigado por tudo que fizeram por mim até agora.

Todos pareciam um pouco desolados ao responder: “Boa sorte” e


“Fique bem.” Finalmente olhei para Soldat, que não estava
encarando meu olhar, e inclinei minha cabeça.

— Soldat. Muito obrigado por tudo.

— O quê?

— Digo, você cuidou muito bem de mim e eu não te dei nada em


troca…

— Não estava cuidando particularmente de você, então não


precisa me dar nada. Na verdade, você me ajudou a ganhar algum
dinheiro. Suas habilidades mágicas são de primeira. Quem deveria
estar agradecendo sou eu. — Ele soltou uma risada vulgar, mas sua
expressão ficou estranha e ele desviou os olhos. Mas que tsundere.
Se realmente não gostasse de mim, não teria entrado em pânico
quando eu o vi junto com Elinalise, nem estaria parecendo tão
estranho neste momento. — Mas, bem, bom pra você. Você
finalmente vai consertar isso aí, né?

— Ainda não há nada certo.

— Ah, saquei. Bem, tenho certeza de que nosso grupo


eventualmente terá um motivo para seguir o mesmo caminho.
Quando isso acontecer, vamos sair para beber e encontrar algumas
mulheres de novo — disse Soldat com um sorriso, dando um
tapinha nas minhas costas.

Sentindo-me grato por aquele empurrãozinho de despedida, parti


para o Reino de Ranoa.
Capítulo 02:
Exame de Admissão
O Reino de Ranoa era o maior país da região norte do
Continente Central, exercendo o mesmo tipo de influência e poder
que o Reino Shirone no sul. No entanto, também tinha uma aliança
com Basherant e Neris, bem como laços íntimos com a Guilda dos
Magos. Os três países, Ranoa, Basherant e Neris eram chamados
de Três Nações Mágicas.

Por que “mágicas”, pergunta? Isso era porque o QG da Guilda


dos Magos estava localizado lá? Esse era um motivo, mas o
verdadeiro era que esses três países colocaram uma quantidade
enorme de recursos em pesquisas mágicas. Criada por esse
propósito e atuando como líder da aliança, era uma grande cidade
construída nos limites do Reino de Ranoa: a Cidade Mágica de
Sharia. A Universidade de Magia de Ranoa, o QG da Guilda dos
Magos e a Oficina de Implementos Mágicos de Neris foram todos
empurrados para aquela cidade florescente que era basicamente o
centro das Nações Mágicas.

Se alguém a visse por cima, encontraria a Guilda dos Magos


bem no seu centro, construída com o mais recente tipo de tijolo
resistente à magia. No leste, o Distrito Estudantil estava centrado
em torno da Universidade de Magia, enquanto no oeste, a Oficina
de Implementos Mágicos era o coração do Distrito de Oficinas.
Aninhada no meio do Distrito Comercial ficava a Guilda dos
Mercadores e, no sul, o Distrito de Hospedagem, que recebia
aqueles que entravam na cidade, incluindo aventureiros. Olhando
para o mapa, percebi que seu esquema era baseado no de
Millishion. Não que houvesse algo de útil nessa descoberta.

Elinalise e eu fizemos uma reserva em uma pousada no Distrito


de Hospedagem. Desta vez, escolhemos uma de primeira, equipada
com uma lareira. Ela mergulhava na minha cama sempre que ficava
frio, e a tentação apenas me deixava deprimido.

Como descobri ao longo de nossa jornada, ela tinha um motivo


pelo qual precisava se deitar com os homens. Enquanto estávamos
na estrada, tomamos um caminho errado e não alcançamos a
próxima cidade por mais de uma semana. Durante esse tempo, sua
saúde se deteriorou rapidamente. Tremores inexplicáveis correram
por seu corpo, seu rosto ficou pálido, mas havia algo de perigoso
em seus olhos quando ela olhava para mim.

Lancei magia de desintoxicação nela várias vezes, e ela me


revelou que era alvo de uma maldição: se não dormisse
periodicamente com os homens, morreria. Ouvindo isso, senti
alguma simpatia por sua situação, mas parecia que Elinalise não se
sentia nem um pouco ressentida com isso.

— Eu amo sexo, então mesmo se não fosse amaldiçoada, estaria


fazendo o mesmo — disse ela. Ao contrário de mim, estava
administrando sua doença única muito bem.

— Bem, então, vou ver esse tal senhor Jenius em pessoa. O que
você vai fazer, Senhorita Elinalise?

— Também vou.
— Por quê…? — Achei que ela iria a algum lugar como a Guilda
dos Aventureiros para farejar um homem.

— Já que viemos até aqui, também vou tentar me matricular


nessa Universidade de Magia.

— Por quê? Você está interessada em magia?

— Não, mas estou interessada em homens jovens.

— Ah, então é isso. — Eu não fazia ideia de como eram as leis


de Ranoa, mas mesmo que ela as infringisse, não era eu quem
seria preso. — Você provavelmente terá que pagar mensalidades e
taxas integrais.

— Sem problemas. Isso pode ser uma surpresa para você, mas
tenho muito dinheiro, sabe — disse ela, dando um tapa na bolsa de
moedas. Aquilo continha não apenas moedas desta região, como
também mais de cinco moedas de ouro asurano. Eu também sabia
que ela tinha uma série de cristais mágicos em sua mochila – lindos
cristais, em forma de orbe, grandes o suficiente para caber na palma
da minha mão. Cada um devia custar pelo menos dez moedas de
ouro asurano. Me perguntei onde ela pôs as mãos naquelas coisas,
mas Elinalise era uma aventureira que normalmente mergulhava em
labirintos. Talvez já os tivesse há algum tempo, carregando-os no
lugar de dinheiro.

— Certo. Então vamos lá.

Nós dois rumamos para a Universidade de Magia.

✦✦✦✦✦✦✦
A Universidade de Magia de Ranoa ocupava um vasto terreno, o
campus era repleto de enormes edifícios de tijolos, incluindo um no
centro que parecia com um castelo. Para um olho destreinado,
poderia parecer uma fortaleza. Isso me lembrou da Universidade
Tsukuba na Prefeitura de Ibaraki, embora eu só tivesse a visto em
fotos.

Passei minha carta para o par de guardas no portão da frente.

— Com licença, recebi esta carta.

O guarda deu uma olhada, grunhiu e acenou com a cabeça.

— Sabe qual é o Prédio dos Professores?

— Não sei.

— Siga reto e vire à direita quando chegar na estátua da primeira


diretora. É o prédio com telhado azul. Entregue isso na recepção de
lá e avisarão o vice-diretor de que você está aqui.

— Obrigado.

Antes que Elinalise pudesse dar ao homem um olhar sugestivo,


eu a arrastei para a frente pela orelha. Suas orelhas compridas
forneciam uma boa vantagem para isso.

Seguir reto até a estátua da primeira diretora, disse ele. A


estrada era ladeada por árvores com galhos nus. Me perguntei se
as flores de cerejeira iriam florescer quando a primavera chegasse –
na verdade, não fazia ideia se este mundo possuía flores de
cerejeira. Erguendo-se por trás das árvores, havia uma parede de
tijolos com cerca de três metros de altura.
— São todas feitas com tijolos resistentes à magia.

— Hm. — Com a declaração de Elinalise, voltei minha atenção


para a parede. Os tijolos resistentes à magia, como o nome
indicava, eram tijolos que repeliam mana. Pelo visto, poderiam
resistir até a um ataque mágico em grande escala.

Pelo que ouvi, a Guilda dos Magos tinha o monopólio da venda e


produção de tijolos resistentes à magia. Eles eram tão caros que o
único lugar onde eram usados no Reino Asura era a capital. Eu não
tinha visto nenhum no País Sagrado de Millis ou no Reino Rei
Dragão, mas os vi aos montes nas Nações Mágicas. Eram usados
até mesmo nas paredes das Guildas dos Aventureiros locais. Seu
processo de criação era um segredo bem guardado, mas as
matérias-primas, por si só, talvez não fossem tão caras.

Chegamos a uma praça um tanto grande, no centro da qual havia


uma estátua de uma garota vestindo um robe. Havia uma placa
presa a ela que dizia Primeira Diretora, Líder da Quinquagésima
Sexta Geração da Guilda dos Magos, Frau Claudia. A parede de
tijolos terminava no local, e diante de nós se erguia uma mansão
grande o suficiente para ser uma fortaleza, cercada por pelo menos
outros seis edifícios. Tive um vislumbre de chamas rugindo no
terreno ao lado do edifício. Considerando que ninguém estava
fazendo uma confusão, presumi que fosse parte de uma aula.

À esquerda, havia vários edifícios grandes com telhados


vermelhos, muitas janelas e varandas. Pela roupa secando nas ditas
varandas, presumi que fossem os dormitórios dos estudantes. À
direita, havia um prédio com telhado azul e, à minha esquerda, outro
com telhado vermelho. Já que eu não fazia parte da Família
Sylvanian, estava indo para o lado direito.

— Estou ficando um pouco animada — murmurou


repentinamente Elinalise.

— Está?

— Digo, olhe só para essas construções enormes!

Por que essa vulgar estava de repente agindo toda fofa?


Suponho que aventureiros não se deparavam com edifícios tão
grandes com muita frequência. Viam, no máximo, a Guilda dos
Aventureiros.

— Qual é o maior edifício em que você já esteve antes?

— No QG da Guilda dos Aventureiros em Millishion — disse ela.

— Ahh, pensando bem, aquele lugar também era muito grande.

— Você é um desmancha-prazeres — disse ela. — Quando vi a


Guilda dos Aventureiros de Millishion pela primeira vez, fiquei tão
animada que quase joguei meus braços em volta de Paul sem nem
mesmo pensar… tch. Essas são memórias que prefiro esquecer.

Enquanto Elinalise murmurava consigo mesma, sua expressão


se contorceu em desgosto. Exatamente o que Paul fez para que
esta mulher – que se gabava por se dar bem com qualquer homem
– o odiasse tanto? Pensando bem, há quanto tempo os dois se
separaram? Eu já estava com quinze anos, então devia ter sido há
mais tempo que isso…
— Isso é um pouco repentino, mas quantos anos você tem,
Senhorita Elinalise?

— Nossa, essa não é uma pergunta que você deveria fazer a


uma moça — repreendeu ela. — Aliás, tenho cinquenta anos.

— Mentirosa.

Enquanto conversávamos, finalmente chegamos ao prédio com


telhado azul. Entreguei minha carta à recepcionista – uma velha – e
fomos levados a uma sala mobiliada de maneira barata com um
sofá e uma mesa.

— Por favor, espere aqui por um momento — disse ela, e


desapareceu.

— Uff — exalei.

— Se você suspirar assim, vai deixar toda a sua sorte ir embora.

Sentei no sofá e Elinalise aninhou-se contra mim. Ela sempre


fazia isso quando se sentava ao lado de um homem, mas realmente
não me incomodava. Acariciar o corpo de um homem a fazia feliz, e
eu ficava feliz ao ter uma bela mulher mais velha se agarrando a
mim. Não havia razão para qualquer um de nós objetar – exceto
meu homenzinho, que se recusava a responder mesmo nesta
situação.

Preocupado com esses pensamentos, examinei nossos


arredores. Se eu tivesse que classificar a área de recepção, daria
um C. A sala era antiquada e o sofá duro. Isso talvez a tornasse um
lugar adequado para receber aventureiros.
— Sinto muito por te fazer esperar. Me chamo Jenius, sou o Vice-
Diretor.

O homem que apareceu após cerca de vinte minutos era velho e


de aparência agitada, com a cabeça toda calva. Como ele estava
vestindo um robe de cor azul-profunda, presumi que fosse um
usuário de magia da água.

— Prazer em conhecê-lo, me chamo Rudeus Greyrat. — Me


levantei na mesma hora, oferecendo uma saudação nobre e
curvando-me diante dele. Quando olhei para Elinalise, percebi que
ela estava fazendo algo semelhante enquanto abaixava a cabeça.

— E você é?

— Meu nome é Elinalise Dragonroad. Sou membro do grupo de


Rudeus.

— Uhum…

Ele deu a ela um olhar que dizia: Quem diabos é você e o que
está fazendo aqui? mas Elinalise parecia totalmente imperturbável.
Jenius encolheu os ombros e fez um gesto para que nos
sentássemos.

— Nunca imaginei que você chegaria até nós tão rápido — disse
ele.

— Vim por recomendação de alguém.

— De alguém? Ahh, diz da Roxy?

Para você é Senhorita Roxy, seu punk! Gritei por dentro, embora
tenha ficado quieto.
— Não foi isso que eu quis dizer, embora ela também tenha me
recomendado esta escola.

— Aha… bem, então podemos prosseguir com sua matrícula na


universidade?

— Sim, claro. — Confuso pela maneira como Jenius de repente


se inclinou para frente com entusiasmo, eu hesitantemente balancei
a cabeça.

— Ah, onde estão minhas maneiras? A maioria dos magos que


trabalham sozinhos tendem a ser muito orgulhosos, especialmente
aqueles tão jovens quanto você.

— Entendo.

— Ouvi dizer que você derrubou um Wyrm Vermelho errante há


alguns dias. Nunca esperei que alguém como você concordasse em
se matricular em nossa universidade.

Embora diferissem um pouco por país ou raça, na maioria das


vezes, as pessoas deste mundo eram consideradas adultas ao
completar quinze anos. Daqueles que se tornavam aventureiros
antes de atingirem a idade adulta, a maioria nunca subia muito no
rank. Os poucos que o faziam, entretanto, costumavam desenvolver
egos enormes. Eu mesmo cheguei a conhecer duas dessas
pessoas. Um era um garoto de quatorze anos de rank B (qual era o
nome dele mesmo?) que era incrivelmente cheio de si e me
considerava, por algum motivo, um rival. Na época tínhamos a
mesma idade, e ele provavelmente não gostava do fato de eu ser de
rank A. Na época comecei a pensar: huh, já não o vejo há um
tempo, e descobri que ele falhou em uma missão de extermínio e
morreu.

A outra era uma garota de 15 anos de rank B. Seu nome era


Sara. Eu não queria pensar muito nela, mas ela era muito orgulhosa
e nós brigávamos muito no começo.

Jenius provavelmente pensava que eu seria como eles – alguém


com uma cabeça grande demais com os pensamentos sobre si.
Infelizmente, a única cabeçona que eu tinha não estava se sentindo
muito enérgica nos últimos tempos.

— Há muito que eu ainda gostaria de aprender. A universidade


parece um bom lugar para fazer isso. E, é claro, com certeza
defenderei a escola depois de me formar — falei, relembrando
minha conversa com Conrad.

Jenius riu amargamente.

— Aprecio que você tenha ido direto ao ponto.

— Dito isso, não sei exatamente o que é um aluno especial.


Esperava que você pudesse me explicar.

O vice-diretor balançou a cabeça, depois parou, como se de


repente tivesse se lembrado de algo, e me deu um sorriso tenso.

— Antes disso, você estaria disposto a fazer um pequeno teste?

— Um teste? — Tipo um vestibular? Merda. Eu não tinha me


preparado. E também já fazia dez anos desde que Roxy havia me
ensinado algo sobre magia. Uhh, se a memória me servisse
corretamente, então a combinação mágica era… ah, merda. Se eu
soubesse que isso iria acontecer, teria me preparado com
antecedência.

— Sim, um teste para determinar se os rumores que ouvimos


sobre suas habilidades estão corretos. Um teste prático.

Então não era um teste escrito. Ouvir isso foi um alívio.

✦✦✦✦✦✦✦

Eu esperava que eles não quisessem que eu derrotasse outro


monstro errante, porque, francamente, não estava pronto para fazer
isso. Afinal de contas, eu era um completo covarde! Quando
mencionei isso com Jenius, ele apenas soltou uma risada tensa e
disse: “Claro que não.” Sua risada muitas vezes soava assim. Ele já
devia ter passado por muita coisa.

O vice-diretor me guiou para fora, onde nos dirigimos a uma linha


de edifícios. Segundo ele, nosso destino era a sala de treinamento
do prédio de prática, onde eram realizados experimentos e testes
mágicos.

— Vocês com certeza têm muitos edifícios por aqui. Realmente


possuem tantos alunos assim?

Jenius acenou com a cabeça.

— A Universidade de Ranoa difere de uma escola de magia


típica porque também oferece cursos normais. Existem cursos
específicos para nobres, bem como cursos de aritmética para
comerciantes e pessoas que estão iniciando o negócio e muito mais.
Claro, não importa em que curso uma pessoa esteja, ela ainda
estará aprendendo magia.
Era exatamente como Roxy havia dito: esta escola poderia
acomodar qualquer pessoa. Não era de se admirar que fosse
enorme.

— Claro, não temos ninguém nesta escola que possa ensinar


magia de nível Imperador, mas temos uma série de professores
cujas habilidades mágicas superam as da equipe da Academia Real
Asura.

— Impressionante.

— Também temos um curso de estratégia militar, mas são


poucos os alunos matriculados nele.

— Vocês por acaso oferecem um curso de medicina que, por


exemplo, ensina os alunos a lidar com doenças mentais?

— Um curso de medicina sobre doenças mentais? Não,


definitivamente não temos tal coisa. Temos uma variedade de
professores qualificados em magia de cura e desintoxicação, mas o
campo sobre o qual você está falando não está relacionado à
magia, está?

— Verdade, não está. — Acho que era apenas uma universidade,


afinal, não um hospital universitário. Minha condição poderia
realmente ser curada neste lugar? Bem, o Deus Homem havia dito
que sim. Não havia necessidade de ficar impaciente.

— Alguém que você conhece está doente? — perguntou Jenius.

— Eu não iria tão longe a ponto de dizer que está doente. É mais
como… se estivesse sofrendo com uma maldição ou coisa assim.
— Entendo, então você veio aqui para pesquisar como remover
uma maldição? Isso é louvável.

— Minhas intenções não são tão nobres assim — falei.

Enquanto conversávamos, entramos em um dos edifícios


construídos com tijolos resistentes à magia. Dentro havia uma
grande área aberta quase como um ginásio, e no chão havia quatro
círculos mágicos com um raio de cerca de cinco metros cada.
Aglomerados em torno de suas bordas estavam cerca de vinte
garotos e garotas, todos usando robes semelhantes. Eles entravam
nos círculos em grupos de dois e começavam a lançar magia
ofensiva um no outro. Não iriam se machucar fazendo aquilo?

— Aqueles são alunos do quarto ano. Acredito que esta turma


inteira é principalmente de ascendência nobre. Nossa escola
enfatiza a experiência em combate, por isso conduzimos simulações
de batalha como essas.

A bola de fogo de um aluno envolveu outro – apenas para ser


extinta pelo círculo a seus pés, que emitiu um brilho fraco. O aluno
reapareceu sob as chamas desaparecendo sem uma única
queimadura no corpo.

— Que círculo mágico é aquele? — perguntei.

— Um círculo de cura de nível Santo.

— Whoa, isso é incrível.

— Ele está bem no meio de uma barreira de nível Avançado que


apresenta certa resistência à magia.
Entendo. Um círculo mágico. Não prestei muita atenção quando
os encontrei pela primeira vez em um livro de magia anos atrás,
mas me causaram problemas várias vezes durante minha jornada
do Continente Demônio para casa. Talvez devesse aprender como
usá-los – dito isso, se algum dia ficasse preso em um círculo como
aquele que encontrei em Shirone novamente, já deveria ser forte o
suficiente para o explodir.

Nós nos movemos em direção a um círculo em frente aos alunos


em duelo.

— Então, o que devo fazer? — perguntei.

— Ouvi dizer que você é um usuário de magia não verbal,


Senhor Rudeus. Gostaria que me mostrasse isso.

— Só isso? Se eu realmente fosse um impostor, estaria


preparado para fazer ao menos isso, não acha?

— Hm? Bem, isso com certeza é verdade… mas nossa escola só


tinha um professor de magia não verbal e ele morreu no ano
passado. Idade. — Ele se preocupou com o que fazer por um
momento, então, bateu com o punho na palma da mão. — Aha, já
sei. Na verdade, há mais alguém que pode usar magia não verbal
nesta classe! Pode até não ser páreo para você, mas é um de
nossos premiados alunos. Também está envolvido com o Conselho
Estudantil… mas, bem, isso não importa tanto. — Jenius correu
para o outro círculo mágico, chamando a professora de lá. —
Professora Gueta! Posso pegar o Fitz emprestado?

Depois de alguns momentos, fomos abordados por um garoto de


cabelo branco curto e óculos escuros. Suas orelhas também eram
longas: um elfo, talvez? Seu corpo era pequeno – não, ele era
apenas jovem. Uns treze anos, será? Mais cérebro do que força,
com certeza. Possivelmente mais jovem do que eu e com certeza
menos musculoso, mas ele seria meu veterano. Eu deveria pelo
menos prestar os meus respeitos.

No momento em que seus olhos encontraram os meus, inclinei


minha cabeça e me apresentei em voz alta.

— Prazer em conhecer. Meu nome é Rudeus Greyrat. Desde que


tudo corra bem, estarei no primeiro ano a partir do próximo
semestre. Se você achar que estou falhando em algo, espero que
me ajude e me oriente enquanto me encoraja.

— Ah… hm? As, s-sim! — Fitz tentou dizer algo, mas eu já tinha
terminado a minha apresentação. Afinal, a primeira pessoa a se
apresentar era a vencedora! Sua boca continuava abrindo e
fechando, mas, finalmente, ele conseguiu dizer: — Fitz. Prazer.
Sua voz estava um pouco estranha e alta; parecia que ainda não
havia chegado à puberdade. Definitivamente mais jovem do que eu,
mas um veterano ainda era um veterano. Com medo de deixar uma
má impressão, decidi mostrar alguma deferência.

— Sei que isso é um inconveniente, mas obrigado por ajudar no


meu teste.

— Uh… sim.

Uma vez que ambos estávamos dentro do círculo mágico, Jenius


murmurou algo e o círculo começou a emanar uma luz fraca. Tentei
testar a barreira externa batendo nela, mas minha mão passou
direto.

— Hã? Vice-Diretor Jenius, isso não está funcionando


corretamente.

— Senhor Rudeus, esta barreira apenas repele magia.

— Portanto, ataques físicos funcionam normalmente.

Certo – a barreira que eu encontrei em Shirone havia bloqueado


ataques físicos e mágicos, mas era de nível Rei.

— Bem, vamos. Já que você é um aventureiro, não se importará


em conduzir uma batalha simulada com Fitz, certo? Gostaria que
você usasse principalmente magia não verbal.

— Claro, por mim tudo bem. — Balancei a cabeça, encarando


Fitz.

Entretanto – se eu fosse derrotado, teria que pagar a


mensalidade em vez de conseguir uma bolsa integral? Consegui
uma nota preta eliminando aquele wyrm errante, mas como alguém
que contou cada centavo que conseguiu durante anos, eu queria
evitar de pagar, se possível.

Então era hora de ficar sério.

O espaço vazio entre nós aumentou quando Fitz assumiu sua


posição. Ele segurava em sua mão uma única varinha pequena.
Isso despertou algumas de minhas memórias: uma vez usei um
instrumento parecido. Preparei meu cajado, aquele que usei nos
últimos anos – Aqua Heartia. O usei tanto que estava pensando em
nomeá-lo, algo como Charlene. Embora, honestamente, dar a ele
um nome de garota não o tornaria mais poderoso.

— Então…

Decidi levar as coisas a sério, mas também foi minha primeira


vez lutando contra outra pessoa que poderia usar magia sem
encantamentos. Elaborei estratégias para esse cenário, mas não
tinha certeza se funcionariam.

— Tudo bem, comecem!

No instante em que o comando foi dado, meu olho demoníaco


mostrou Fitz preparando sua varinha. Ele provavelmente planejava
usar a velocidade de sua magia não verbal para lançar o primeiro
ataque. Nesse caso, eu apenas teria que contra-atacar, usando
minha magia para interromper a dele.

— Atrapalhar Magia!

— Hã? O quê? Como assim?! — Fitz olhou para sua varinha em


estado de choque quando ela não funcionou como deveria.
— Boa pergunta. O que foi isso? — Com minha mão esquerda,
conjurei um de meus Canhões de Pedra que eram minha marca
registrada. Poderoso, flexível e facilmente disparado em rápida
sucessão; esse feitiço, junto com o Atoleiro, fazia parte da minha
estratégia padrão para solicitações de eliminação.

Fiz meu canhão do tamanho da ponta de um dedo, o girei com


força e lancei em alta velocidade. Inicialmente pretendia mirar bem
na cabeça de Fitz… mas mudei de ideia.

E fogo!

O canhão assobiou no ar, roçando a ponta na bochecha de Fitz e


estourando através da barreira com um belo estrondo. Ele parou
quando atingiu a parede de tijolos resistentes à magia, espalhando
detritos por toda parte.

— …!

Um filete de sangue escorreu pela bochecha de Fitz enquanto ele


ficava congelado no lugar. A ferida fechou quase na mesma hora,
graças ao círculo de cura. Fitz enxugou o sangue com um dedo e
olhou para trás, para onde o canhão de pedra se cravou na parede.
Então, caiu para trás com um baque.

Ainda bem que eu preferi errar. A magia de cura não era


onipotente. Uma magia de cura de nível Santo poderia curar feridas
simples em um instante, mas não ressuscitar os mortos, e um golpe
direto poderia matá-lo.

O olhar de Fitz encontrou o meu. Ele estava usando óculos


escuros, mas, de alguma forma, eu sabia que nossos olhos se
encontraram.

Nenhum de nós disse nada. Seu olhar ficou cada vez mais
intenso. Tive a sensação, de alguma forma, de que realmente tinha
estragado tudo. Aqueles reunidos em torno do outro círculo mágico
também se viraram para olhar na minha direção. Jenius estava com
os olhos arregalados. Elinalise bocejou.

— C-como você fez aquilo? — A voz de Fitz estava tremendo.


Jenius também parecia curioso para saber a resposta.

— É chamado de Atrapalhar Magia. Não sabe fazer isso?

Fitz balançou a cabeça. Acho que não. Isso não devia ser tão
conhecido, embora eu achasse particularmente útil em batalhas com
outros magos… Pensando bem, nos dois anos em que estive me
aventurando, nunca vi ninguém usando tal magia, fora Orsted.

O estudante apenas olhou diretamente para mim. Seu olhar


estava tão intenso, mesmo através dos óculos escuros, que
silenciosamente desviei o meu. Jenius disse que ele era um
prodígio, e eu o forcei a cair de bunda na frente de todos. Havia uma
boa chance de eu ter arruinado sua reputação.

Ele ia guardar rancor de mim, não ia? Provavelmente tentaria me


fazer tropeçar durante as refeições, derramaria suas bebidas em
mim e me regaria com risadas zombeteiras. Eu tinha certeza.
Precisava evitar isso a todo custo.

Certo, isso mesmo!

— Obrigado, senhor! Por perder propositalmente para que eu


pudesse me sair bem na frente de todos os outros! — Mostrei um
sorriso radiante e falei alto o suficiente para todos os outros alunos
ouvirem enquanto me aproximava dele.

— Hein?

Ofereci minha mão para ajudá-lo a se levantar. Fitz parecia um


pouco confuso, mas aceitou. Sua mão era macia. Ele provavelmente
nunca segurou uma espada antes.

— Eu com certeza te agradecerei apropriadamente mais tarde —


sussurrei em seu ouvido enquanto o ajudava a se levantar. Ele
assentiu rapidamente e um arrepio percorreu seu corpo. Assim que
me matriculasse, compraria um bolo ou algo assim para prestar
meus respeitos.

Quanto ao teste, passei com louvor. Jenius me elogiou muito. Se


eu era capaz de derrubar Fitz daquele jeito, então estavam prontos
para me admitir na mesma hora.

✦✦✦✦✦✦✦

E então, um mês depois, comecei a morar no dormitório da


universidade. Também recebi mais detalhes sobre os alunos
especiais, que eram isentos de pagar mensalidades e de frequentar
as aulas. Se desejassem, poderiam se misturar com os alunos
normais e assistir apenas às aulas que desejassem. Desde que
frequentassem a sala de aula uma vez por mês, eram basicamente
livres para fazer o que quisessem dentro da escola.

Poderiam reivindicar um estudo no prédio de pesquisas e se


enterrar no trabalho. Poderiam ocupar uma sala no prédio de prática
e passar todo o tempo treinando. Poderiam ir à biblioteca e passar
dias com o nariz enfiado em um livro. Poderiam sentar-se no
refeitório e comer o quanto quisessem. Poderiam até sair do
campus e se tornar aventureiros, ou ir para o distrito do prazer para
relaxar e se divertir – embora, é claro, seria responsabilizado por
quaisquer ações que fizesse fora do campus. Ainda assim, eu pelo
visto teria uma quantidade extraordinária de liberdade.

Claro, essa liberdade tinha seus limites – éramos proibidos de


fazer qualquer coisa considerada um crime pelas leis do Reino de
Ranoa, ou qualquer coisa que fosse destrutiva para a escola, ou
desrespeitosa para a Guilda dos Magos. Recebi um livreto fino com
as regras da escola e, ao folheá-lo, concluí que estava tudo bem,
contanto que não fizesse nada muito extremo. As regras eram
basicamente as mesmas do código de conduta da Guilda dos
Aventureiros. Na verdade, isso fazia a Guilda dos Aventureiros
parecer até um pouco rígida.

Elinalise também se matriculou, aliás, como aluna de admissão


comum. Ela me disse que a mensalidade desde a matrícula até a
formatura custava um único pagamento de três moedas de ouro
asurano, o que poderia parecer muito barato, mas as moedas de
ouro asurano eram a unidade monetária mais alta do mundo. Uma
única moeda deixaria uma pessoa viver confortavelmente nesta
área por um bom tempo.

Se um aluno de admissão comum obtivesse notas excepcionais


em seus exames, receberia algum grau de isenção de mensalidades
e taxas de matrícula. Se não tivessem dinheiro, poderiam adiar o
pagamento até a formatura. A universidade estava claramente
preparada para fazer grandes concessões financeiras a fim de
garantir talentos notáveis. Mas não era como se isso me
preocupasse.

— Hm. — Eu estava mais uma vez folheando as regras. A seção


sobre penalidades por infrações sexuais, especificamente, era bem
detalhada. — Senhorita Elinalise, parece que, contanto que você
não force ninguém contra a vontade, você tem um certo nível de
liberdade para fazer o que quiser.

— Esta é uma escola incrível. Sabia? Tais atos são


completamente proibidos na escola de Millishion.

As normas sociais de minha vida anterior me levaram a acreditar


que as pessoas que faziam sexo na escola teriam um impacto
significativo e negativo na moral pública. No entanto, embora o
corpo discente fosse amplamente formado por jovens, abrangia uma
enorme gama de idades e raças, então as “normas” eram diferentes.
Também havia pessoas como Elinalise, que eram amaldiçoadas e
teriam problemas se suas vidas pessoais fossem restringidas por
regras.

Basicamente, essa escola tinha tradições relaxadas por um bom


motivo. Isso significava que eu estava livre para trabalhar na
restauração de minha raison d’être. Aww, vamos nessa! Vamos
colocar meu garotinho para funcionar!

Isso é só brincadeira, é claro. Eu tinha a palavra do Deus Homem


de que minha condição seria algum dia curada. Não havia
necessidade para ficar impaciente.
Capítulo 03:
Primeiro Dia de Escola
A Universidade de Magia de Ranoa. A maior escola de magia do
mundo, ocupando um vasto terreno e patrocinada por três países
distintos, bem como pela Guilda dos Magos. O diretor atual era um
dos chefões da Guilda dos Magos, o mago do Vento de nível Rei,
Georg. O corpo discente era composto por mais de dez mil alunos,
com vários professores contratados pela universidade. Apesar do
nome de “Universidade de Magia”, as pessoas poderiam aprender
uma variedade de coisas diferentes por ali.

Estudantes de todas as raças eram bem-vindos, inclusive


demônios, que ainda estavam profundamente condenados ao
ostracismo pela crença Millis, ou homens-fera, que tendiam a ser
isolacionistas. Aceitavam até parte da realeza humana que fora
expulsa de seu país devido aos conflitos pelo poder, ou crianças
nobres que nasceram amaldiçoadas. Se alguém tivesse mana e
pudesse lançar magia, poderia se matricular, seja lá quais fossem
seus antecedentes. Essa política havia atraído alguma oposição,
pelo que ouvi, mas apenas o Reino Asura poderia se opor ao poder
da aliança e da Guilda dos Magos, e ele investiu uma quantia
considerável de dinheiro na própria Guilda dos Magos.

A propósito, uma certa seita dentro do País Sagrado de Millis –


os Cavaleiros do Templo, como eram chamados – posicionou-se em
oposição direta à universidade e a tudo que ela representava. No
entanto, como estavam do outro lado do mundo, parecia que não se
importavam o suficiente para iniciar uma guerra por causa disso.
O período de estudo dos alunos era de sete anos. Poderiam
passar um ou dois anos fora, podendo passar até nove anos
matriculados. Caso se tornasse um pesquisador afiliado à Guilda
dos Magos, poderia continuar usando o equipamento da
universidade mesmo após a formatura.

A escola tinha um dormitório enorme de cinco andares, mas ficar


lá era opcional. Aqueles com casas na cidade se deslocavam
diariamente para suas casas. Em geral, porém, a maioria dos alunos
morava no dormitório. Me foi preparado um quarto, um espaço
simples com cerca de vinte tatames de largura, com um beliche.
Havia também uma mesa e uma cadeira. Um quarto normalmente
era compartilhado por dois alunos, mas os bolsistas moravam
sozinhos. Se eu quisesse, poderia pedir por um colega de quarto,
mas decidi não fazer isso. Não estava na universidade para fazer
amigos.

Pelo visto, também poderia pagar para ser transferido para um


quarto exclusivo para nobres, que era mais espaçoso e seguro. Mas
não era algo de que eu precisava, estava certo disso. No momento
não estava sendo alvo de nenhum assassino.

O banheiro ficava no corredor. Era, surpreendentemente, um com


descarga. De fato, não era como se a pessoa pudesse apenas
puxar uma cordinha e whoosh! Havia um jarro de água por perto
cuja água deveria ser despejada para uma descarga manual, o que
iria enviar todos os dejetos até o esgoto. Claro, aqueles como eu se
sentiriam encorajados a usar a magia de água para uma descarga.
Nessa nota, a tarefa de encher o jarro de água cabia ao responsável
pelo uso, mas como aluno especial, eu estava dispensado disso.
Também foram fornecidos alguns uniformes. Os homens
recebiam um terno, enquanto as mulheres recebiam o que parecia
ser um blazer com saia. Para ser sincero, achei os modelos bem
bonitos. Devia haver shorts de ginástica para serem usados na hora
dos exercícios, certo? Ou assim qualquer um pensaria, mas,
infelizmente, usavam apenas robes. A escola não os fornecia e não
especificava quaisquer restrições ou preferências. Os alunos que
ainda não tinham seus próprios robes provavelmente só compravam
o que queriam. Eu ainda tinha o mesmo que já usava há algum
tempo, então não precisei comprar outro.

— Bom, como ficou em mim?

Elinalise, em seu novo traje escolar, estava atualmente se


mostrando para mim. A forma como seu cabelo possuía um
penteado com cachos lustrosos fazia que seu robe parecesse até
com um cosplay, mas o uniforme estava, na verdade, combinando
bem com ela. Embora isso só me parecesse um cosplay por eu
conhecer sua verdadeira personalidade.

— Se você dobrar a saia e deixá-la um pouco mais curta, será


mais fácil pegar os homens. Certifique-se de dobrar apenas o
suficiente para que todos possam quase ver a sua calcinha.

Elinalise olhou para mim como se eu fosse um gênio.

— Mas isso não vai me deixar com frio? — perguntou ela.

— Se colocar meia-calça até nas coxas vai ficar tudo bem, não
vai?
— Entendo. Eu devia esperar isso de você, Rudeus. Você é um
gênio. — Ela seguiu o meu conselho e dobrou a saia igual uma
colegial. Em seguida, moveu a cintura até que sua calcinha
extravagante ficasse quase visível.

Hmm… sim, calcinhas sexy como essa simplesmente não


combinam com um uniforme, decidi.

✦✦✦✦✦✦✦

Fomos para a cerimônia de abertura, que aparentemente era


algo importante nesta escola. A recepção para os novatos seria feita
no pátio frio. Havia uma garota solitária que parecia entediada,
enquanto outro garoto ouvia atentamente o discurso do diretor. Os
conhecidos foram aos poucos se reunindo e alguns estavam até
conversando à toa. Não havia ninguém formando uma fila ordenada.
Se fosse uma escola japonesa, o professor de orientação cívica
estaria sem dúvidas gritando feito louco. O diretor estava diante de
nosso grupo heterogêneo, no topo de um palco construído com tijolo
resistente à magia, fazendo seu discurso.

— Senhoras e senhores, muitas luas se passaram desde que


aqueles conhecidos como magos foram considerados inferiores aos
espadachins. É verdade que os estilos de esgrima criados pelos
Deuses da Espada são supremos. Porém! A magia é simplesmente
incomparável! Afinal, a esgrima nada mais é do que uma ferramenta
para matar. Magia é diferente. A magia tem futuro! Vamos retomar o
que perdemos e combinar isso aos estilos atuais de encantamento
para trazer um novo…
Fiquei quieto ao lado de Elinalise. A palestra do diretor deste
mundo parecia tão longa quanto a daqueles do meu antigo, mas
esta foi mais tolerável. Talvez porque sua fala transbordava com
paixão pela magia!

Não, não era isso… Era por causa de como foi hilário vê-lo
tentando freneticamente manter a peruca em sua cabeça.

Elinalise estava inspecionando a área, avaliando os homens que


viu. Ela parecia estar lutando para decidir com qual começar.

— Isso é tudo. Senhoras e senhores, o caminho da magia se


estende diante de vocês!

Não cantamos o hino escolar. Para começar, não havia nem hino
escolar, apesar de o país ter sua própria música.

— E agora, algumas palavras da Presidente do Conselho


Estudantil para os novos alunos.

Ao ouvir as palavras do Vice-Diretor, três pessoas, uma garota e


dois garotos, subiram ao palco. De pé e à frente estava uma jovem
com cabelos dourados penteados em longas tranças sedosas e
entrelaçadas. Suas roupas – um uniforme escolar novinho em folha
– eram iguais às minhas, mas até a maneira como ela andava era
cheia de graça.

— Ora, ora, aquela não é a criança que você fez chorar há


alguns dias? — meditou Elinalise.

Com suas palavras, olhei para os dois garotos andando atrás da


garota. Um deles tinha cabelos brancos e óculos escuros – Fitz. Ele
mantinha a guarda erguida, observando os arredores enquanto
subiam no palco. E só para ressaltar, não acho que ele chorou
quando o derrotei.

O outro garoto era alguém que eu não conhecia. Ele parecia um


pouco mais velho do que eu. Com seu cabelo castanho penteado
para trás, tinha uma aparência frívola e uma espada pendurada em
sua cintura. Ele não parecia um mago e, a julgar pela maneira como
se portava, provavelmente era um espadachim. A única outra coisa
digna de nota a respeito dele era sua boa aparência.

A propósito, de acordo com minha pesquisa, traços bem


definidos, que eu considerava bonitos, eram populares nos países
do Continente Central. Tirando isso, esse cara meio que se parecia
com Paul. Em uma nota semelhante, muitas vezes me disseram que
eu não parecia nem um pouco ruim, exceto quando sorria. Já que
ninguém elogiava, o único sorriso que eu mostrava era um falso.

Quando os três subiram ao palco, a multidão de jovens ao nosso


redor explodiu em murmúrios.

— Aquela não é a Princesa Ariel…?

— Então aquele ali deve ser o Fitz Silencioso!

— Aaah, é o Lorde Luke!

A julgar pelos murmúrios, eles eram famosos. Luke


provavelmente se parecia com Paul. Ele recebeu aplausos
estridentes das garotas e ergueu a mão para acenar para elas. Tch,
e o nome dele parece o de uma estrela dos filmes adultos.

— Ora, ora, mas que homem bom. — E parecia que Elinalise


também não era boa julgando as características de alguém.
— Silêncio! A Princesa Ariel tem algo a dizer! — Por ordem
(presumivelmente) de Luke, o clamor caiu em silêncio.
Impressionante, visto que ele não usou um microfone. — Vá em
frente, Princesa Ariel.

Ela esperou que as coisas se acalmassem antes de chegar à


frente do palco.

— Meu nome é Ariel Anemoi Asura. Sou a Segunda Princesa do


Reino Asura e Presidente do Conselho Estudantil da Universidade
de Magia!

Sua voz soou em meio ao silêncio. Minha mente tremeu quando


ouvi o som de sua voz. Provavelmente era isso que as pessoas
chamavam de carisma. Sua voz não era apenas alta e clara –
também havia algo que a tornava agradável de se ouvir.

— Vocês todos se reuniram de todos os cantos do mundo aqui.


Muitos de vocês têm ideias diferentes das nossas sobre o que
constitui a normalidade. No entanto, aqui nesta Universidade,
mantemos um senso de ordem que difere de seus lugares de
origem.

O resto do discurso dela foi principalmente sobre as regras da


escola e resumiu-se ao fato de que, mesmo que as regras locais
fossem diferentes das de sua terra natal, ainda precisariam
obedecê-las. Mas havia algo em suas palavras que chegava ao
fundo da alma e lá ficava. Precisamos obedecer às regras, pensei, e
não porque eu tinha sido japonês na minha vida anterior. Me senti
compelido a fazer isso, já que foi ela quem disse para fazer.
— Agora, então, espero que todos tenham um período agradável
como estudantes. — Ariel encerrou seu discurso com essa linha
final e desceu do palco.

Foi nesse momento que de repente capturei o olhar de Fitz. Eu


não deveria ter sido capaz de dizer que ele estava me olhando
através de seus óculos escuros, mas tinha certeza por causa do
quão forte seu olhar era.

Isto é ruim. É melhor eu me apressar e comprar aquele bolo.

Assim que a cerimônia acabou, me separei de Elinalise e me


dirigi para minha sala de aula. Havia aula uma vez por mês e eu
precisava assistir. De acordo com o que ouvi, havia apenas seis
alunos especiais, incluindo eu. Pelo visto, eram uma variedade de
indivíduos excêntricos e problemáticos. Jenius, o Vice-Diretor, até
disse: “Por favor, por favor, tome cuidado para não entrar em
nenhuma briga.” Não que ele precisasse fazer isso; eu não tinha
intenção de causar tumultos. Não importa o que alguém me
dissesse, apenas abaixaria minha cabeça e deixaria entrar por um
ouvido e sair pelo outro.

Me dirigi para a parte de trás de três prédios, para a sala de aula


mais interna no terceiro andar. No meio do caminho, encontrei uma
linha desenhada no chão com as palavras, Além Deste Ponto Fica a
Sala de Aula dos Alunos Especiais. Era quase como se estivessem
nos segregando, embora os alunos especiais devessem ter
permissão para vagar livremente pelo terreno da escola. Não, talvez
fosse o contrário. Alunos especiais tendiam a ser arrogantes e
causar problemas, então essa era uma medida para evitar que os
alunos da admissão normal se aproximassem deles.
Enquanto refletia sobre isso, cheguei à sala de aula. Havia uma
placa acima da porta que dizia Sala dos Alunos Especiais.

— Perdoe a intrusão — murmurei enquanto abria a porta e


entrava. A sala de aula era uma visão familiar. Havia um quadro-
negro novinho em folha, algo como um púlpito e a mesa de um
professor. Mesas de madeira formavam filas na sala. As janelas
estavam bem fechadas, mas o cômodo estava claro. Em contraste
com a vastidão da sala, havia apenas quatro pessoas sentadas às
mesas.

Na primeira fila, havia um garoto lendo e fazendo anotações. A


coisa mais impressionante nele era a forma como seu cabelo
castanho-escuro cobria seus olhos. Ele olhou brevemente na minha
direção, antes de perder o interesse na mesma hora e retornar ao
seu livro. Mais para dentro e mais perto das janelas, sentavam-se
duas garotas, ambas do povo-fera. Uma estava mastigando um
pedaço de carne com o osso todo pegajoso. Uma do tipo canino.
Seus olhos me encararam com desconfiança. A outra, uma do tipo
felino, estava com as pernas apoiadas na mesa e as duas mãos
cruzadas atrás da cabeça enquanto se inclinava para trás, olhando
na minha direção.

Vê-las me lembrou das duas garotas que conheci na aldeia


Doldia. Quais eram os nomes delas mesmo? Eram ambas boas
crianças. Em comparação, essas duas pareciam um pouco mal-
educadas. Me lembraram daquelas adolescentes obcecadas por
moda do meu outro mundo.

E então havia o último cara – um homem que eu já tinha visto em


algum lugar. Ele tinha um rosto comprido e óculos redondos, o tipo
de cara que poderia ter sido apelidado de Spock. Ficou me olhando
boquiaberto por algum tempo, depois de levantou e gritou com a
boca ainda aberta.

Na mesma hora ativei meu Olho da Previsão.

— M-mestreeeeeee!! — Ele fez sua mesa voar como se fosse


um simples obstáculo no seu caminho. Era como um limpa-neve
enquanto atravessava todas as carteiras entre nós. Uma por uma,
saíram voando enquanto ele avançava. Sim, avançava – estava
correndo na minha direção!

— Canhão de Pedra! — Eu iria acertá-lo antes que me


alcançasse.

— Mestreeeee!

Ele levou meu Canhão de Pedra direto na cara, com um estalo


alto, mas não cambaleou nem um pouco. Aquele canhão tinha força
suficiente para nocautear um homem adulto, mas não teve
absolutamente nenhum efeito nesse cara? Impossível. Este era
realmente o poder de uma Criança Abençoada?!

Ele me agarrou pela cintura e tentou me içar até o teto.

— Whoa, whoa, calma, calma! Libere a tensão de seus ombros,


relaxe, acalme-se! Pare com isso!

Seus braços tinham força suficiente para me enviar voando até o


teto, mas, felizmente, ele apenas me levantou.

— Mestre! Você se esqueceu de mim? Sou eu, Zanoba! —


Zanoba estava sorrindo de orelha a orelha enquanto
cuidadosamente envolvia seus braços me abraçando.

— Sim, eu lembro. Meu caro aluno, por favor, me solte, isso é


assustador.

Diante de mim estava o Terceiro Príncipe do Reino Shirone,


Zanoba Shirone. Ao que parece, quando ele foi mandado embora
com o pretexto de estudar no exterior, fora mandado para a
Universidade de Magia de Ranoa. Em circunstâncias normais, uma
Criança Abençoada que não conseguia controlar seu poder seria
tratado como uma Criança Amaldiçoada. No entanto, a Guilda dos
Magos tinha um departamento que estudava maldições e bênçãos,
e as Crianças Abençoadas eram espécimes excelentes.

— Tenho tentado ser como você, Mestre. Tenho diligentemente


praticado com minha magia de terra todos os dias — declarou meu
dedicado pupilo.

— É? Fico feliz em ver que Vossa Majestade está indo tão bem.
Assim que as coisas se acalmarem, vamos fazer uma estatueta
juntos.

— Sim! — Ele sorriu e balançou a cabeça.

Isso foi legal. Me fez lembrar dos alunos dos anos anteriores no
meu ensino fundamental, que se agarraram a mim da mesma forma
enquanto eu me gabava por ter montado meu computador sozinho.

— Além disso, enquanto estamos aqui na escola, você é um


veterano. Em que ano já está?

— Segundo ano. Ha ha, por favor, não se refira a mim como


“Vossa Majestade” ou como um veterano. Pode me chamar só de
Zanoba. Afinal, você é meu mestre.

— Zanoba, então.

— Sim, Mestre.

Um estalo alto e repentino interrompeu nossa conversa


agradável. Eu instintivamente olhei em sua direção. Uma garota-fera
que estava com os dois pés em cima da mesa bateu com um deles
no chão. O outro ainda permanecia na mesa, o que significava que
sua saia estava aberta o bastante para que eu pudesse ver alguma
coisa.

— Não estou gostando disso, mew.

Ela disse “mew”! Isso era algo que eu associava à tribo Doldia. E
Eris… não, não vamos por esse caminho.

— Ei, Zanoba, do que você e o garoto novo estão falando sem


parar?

— Senhora Linia, esta é a pessoa de quem falei antes, meu


mestre.

— Não é sobre isso que estou perguntando, mew! — A garota


com orelhas de gato bateu com o calcanhar do outro pé contra a
mesa, irritada. — Ei, Zanoba, não brinque, viu! Você sabe do que
estou falando, certo, mew? Você sabe, não é, hein?!

O rosto dele ficou rígido.

O que estava acontecendo? Ele estava realmente sendo


intimidado? Zanoba deveria ser muito forte, mas isso poderia ser
uma questão de hierarquia social.
— Se entendeu, traga-o até aqui. — Ela fez um gesto acenando
em minha direção.

— Sinto muito, Mestre.

— Não, tudo bem. — Me aproximei da garota com orelhas de


gato assim como foi dito.

Uma garota com orelhas de gato e outra com orelhas de


cachorro. No passado, seus olhares penetrantes teriam feito minhas
pernas tremerem, mas agora não pareciam assustadores. Seus
olhares precisavam de um pouco mais de… bem, já sabe, certo?
Precisavam de alguma intenção assassina ali, não é? Era assim que
as pessoas realmente assustadoras – como Ruijerd – olhavam.

— Saudações. Prazer em conhecer, me chamo Rudeus Greyrat.


A partir de hoje estarei sob seus cuidados. Terei cuidado para não
me intrometer em nada. Espero que possamos nos dar bem. — Me
curvei em uma reverência ao estilo japonês.

Linia ronronou uma risada.

— Objetivo, eh? Nada mal, mew. Sou Linia Dedoldia, quinto ano,
mew. Embora você possa não saber apenas de olhar para mim, na
verdade sou filha de Gyes, o Guerreiro Chefe da Vila Doldia da
Grande Floresta. Em algum momento, vou herdar a posição de
Chefe da Vila, então é melhor começar a me servir agora mesmo,
mew!

Então ela era realmente da Tribo Doldia. E, ainda por cima, a


filha de Gyes. Pensando bem, disseram que sua filha mais velha
fora enviada para estudar em outro país. Então era ela? Cara, isso
com certeza despertou algumas memórias.

Eu disse:

— Ah, é mesmo? O Senhor Gyes cuidou bem de mim quando


visitei a Vila Doldia! Ah, fico tão emocionado! E pensar que poderia
encontrar a filha do homem que cuidou de mim em um lugar como
este! Ah, isso significa que você também deve ser neta do Senhor
Gustav, certo? O Senhor Gustav também foi bom para mim. Até
mesmo me deixou ficar na casa dele durante a estação das chuvas!

— A-ah, sério? É mesmo? Então você é um conhecido do


Vovô…

Em contraste com seu discurso anterior, cuspindo palavra após


palavra como uma metralhadora, Linia ficou olhando para mim
estupefata. Não que isso realmente importasse, mas a força com
que chutou a mesa tornou uma certa peça de roupa supervisível.
Azul-aqua, hein?

Ao lado dela, a garota que estava mordendo o osso com carne


torceu o nariz e fez uma careta.

— Isso fede.

Mas que rude. Ela estava se referindo a mim, não é? Ainda


assim, não deixei meu rosto trair minhas emoções, mas
graciosamente me virei para a garota cachorro e me curvei.

— Perdão. Posso perguntar seu nome?

— Pursena. Sou basicamente a mesma coisa que a Linia.


— Senhorita Pursena, que nome adorável! Prazer em te
conhecer!

Ela torceu o nariz e virou o rosto.

— Porra.

Apesar de tudo, este foi um ataque preventivo bem-sucedido. Eu


queria ao menos acreditar que meus esforços foram bons o
suficiente para evitar que fosse posteriormente pego em algo
ultrajante.
Zanoba tinha um olhar conflituoso em seu rosto enquanto me
observava interagir com as duas. Assim que nos afastamos, ele
falou em voz baixa:

— Mestre, por que você está agindo tão submisso a elas?

— Meu caro aluno, é importante evitar conflitos desnecessários.

— Acha mesmo…? Bem, já que é você quem está dizendo isso,


vou manter minha boca fechada. — Ele parecia irritado mesmo
enquanto acenava com a cabeça.

Eu não fazia ideia do que havia acontecido, mas se ele corresse


o risco de ser intimidado no futuro, eu com certeza o protegeria
disso. Bullying era inaceitável. Um completo não-não.

Enquanto me preocupava com essa resolução, alguém chamou


atrás de mim.

— Ei.

— Sim, pois não?

Olhei para trás e vi o garoto da frente da fila parado ali.

— Você. Você disse que seu nome era Rudeus, certo?

— Sim, meu nome é Rudeus Greyrat. Prazer em conhecer.

Ele pareceu surpreso quando abaixei a cabeça.

— Cliff Grimor. Sou um mago gênio.

Um mago gênio, eh? Incrível. Mas ele realmente estava se


chamando de gênio? Não se sentia envergonhado por fazer isso?
— Estou no segundo ano, mas já cheguei ao nível Avançado em
todas as magias ofensivas. Também estou no avançado em cura,
desintoxicação e magia divina. Ainda sou iniciante no que se trata
de barreiras, mas em breve estarei no nível Intermediário. Não
existem professores decentes para isso nesta escola.

— Isso é incrível — elogiei com sinceridade. Até que fazia


sentido ele se chamar de gênio. O que era necessário para se tornar
um usuário avançado em todos os sete tipos de magia em apenas
dois anos? Até o momento eu só podia usar magia de cura de nível
Intermediário e magia de desintoxicação básica.

Então isso que era a classe de alunos especiais. Sempre soube


que em algum lugar existiria alguém melhor do que eu, mas isso
deixou tudo bem claro. Provavelmente, a única razão pela qual
minha própria autoestima não mergulhou de cabeça foi porque eu
era de nível Santo em magia da água.

— Levei dois anos para chegar ao nível Avançado em quatro


tipos de magias ofensivas. Você realmente é incrível.

— Tch, não se empolgue.

Sinceramente, pretendia elogiá-lo, mas ele estalou a língua e


ficou mal-humorado. Cliff olhou para mim com tanta força que
poderia muito bem ter me agarrado pelo colarinho da camisa.
Embora eu fosse um pouco mais alto e ele tinha que inclinar um
pouco a cabeça para me encarar.

— Você pode empunhar uma espada e também usar magia, não


é?
— Sim, bem, mas não sou muito bom nisso. — Eu era
tecnicamente de nível Intermediário no Estilo Deus da Espada. E
não lembrava de quase nada do Estilo Deus da Água. Parte do meu
regime de exercícios incluía brandir uma espada de madeira, mas
isso não era o tipo de esgrima que poderia ser usado em combate.

Para ser honesto, não importa quanto tempo passasse, ainda


não conseguia dominar o que acontecia com tanta facilidade quanto
respirar para outros espadachins como Eris e Ruijerd. Então meio
que abri mão do caminho da espada. Nunca usei isso, uma vez que
fosse, enquanto vivia como aventureiro. Mesmo assim…

— Quem te disse isso? Que eu posso lutar com espadas.

— Senhorita Eris…

Isso me abalou. Ele encontrou Eris nos últimos dois anos? Sem
chances… ela estava na Universidade?!

— Ela também está nesta escola?

— O quê? Claro que não — retorquiu ele.

— Um, então… onde foi que você a encontrou?

Ele olhou para mim sem responder. Essa era uma pergunta
ruim? Ah, será que ele era uma das pessoas que ela socou no
passado? Sinto muito, realmente sinto, peço desculpas por ela,
pensei comigo mesmo.

— Uhh… ela disse mais alguma coisa sobre mim?

Ele me encarou com tanta fúria que eu poderia até escutar um


efeito sonoro. Depois de me olhar de cima a baixo, ele finalmente
disse:

— Hmph. Ela disse que você era pequeno.

— S-sério? Ela disse que sou pequeno? — Tipo, lá embaixo?

Senti que iria chorar. Então realmente foi o sexo que a afastou de
mim. Se eu fosse maior, então… Pensando bem, também senti uma
vibração parecida pela maneira como Sara olhou para mim. Seu
rosto dizia: “Ah, nossa, você é menor do que pensei que seria.”

Não, ela estava errada! Só parecia pequeno porque não estava


reagindo! Uma vez com energia e em posição de sentido, teria a
ferocidade de um leão!

— B-bem, já se passaram dois anos desde que nos separamos,


e desde então fiquei maior — gaguejei.

— O quê? Você e a Senhorita Eris se separaram?

— Hm? — Tive a sensação de que não estávamos falando


exatamente sobre a mesma coisa. Uma sensação de mal-estar
surgiu em mim. Mas antes que pudesse confirmar o motivo da
inquietação…

— Hm, bem, que seja. Independentemente, você não combina


com a Senhorita Eris!

Essas palavras foram como punhais no coração. Cliff bufou pelo


nariz e voltou ao seu lugar. Eu teria que ficar de olho nele.

A professora chegou logo depois, então me apresentei e, após


uma breve conversa, a aula começou. Embora ainda estivesse
faltando uma pessoa.
— Hã? Não devia ter mais um aluno especial?

Quando tentei perguntar a Zanoba, ele apenas balançou a


cabeça.

— O Senhor Silencioso é isento da aula mensal.

— E qual é o motivo para isso?

— Boa pergunta, mas não tenho uma resposta para ela.

— Acho que ele deve ser bem incrível, hein?

— Todo mundo sabe. Ele influencia a Academia em todas as


oportunidades, ou foi o que ouvi. Aumentou a variedade no cardápio
da escola, criou implementos mágicos… e esses uniformes também
foram sugestões do Mestre Silencioso. Há rumores de que foi
recomendado por um dos Sete Grandes Poderes, então está
recebendo tratamento especial.

A imagem que surgiu na minha cabeça foi a de um cientista louco


com um jaleco branco e óculos fundo de garrafa, carregando frascos
com gosma verde nas mãos. Alguém que era inteligente e
apresentava resultados bem-sucedidos, mas fora isso, um tipo de
ser humano lamentável.

— Geralmente se fecha na sala de pesquisa privada, mas


emerge se tiver motivos, então tenho certeza que você acabará o
encontrando — disse Zanoba. Ele também mencionou que o
Silencioso era um estudante do terceiro ano. Se eu o visse, com
certeza mostraria a ele o devido respeito.

E, assim, fui absorvido entre os alunos especiais.


✦✦✦✦✦✦✦

Quando a aula acabou, Zanoba e os outros foram para suas


aulas. Era natural para alguém tão sério quanto Cliff frequentar as
aulas, mas Linia e Pursena, que pareciam mais do tipo que matam
aula, também o estavam fazendo. Segundo Zanoba, o intervalo para
o almoço seria em cerca de duas horas. Ele sorriu ao me convidar
para almoçarmos juntos, e fiquei feliz em aceitar.

Eventualmente, eu mesmo teria minhas aulas. Não estava na


escola apenas para estudar, mas também não pensava em ficar
vadiando. Enquanto isso, decidi verificar as instalações locais.

Primeiro, a enfermaria. Ela era espaçosa, com oito camas e dois


curandeiros, o que provavelmente indicava que aconteciam muitos
incidentes mágicos em que as pessoas se feriam. Naquele exato
momento, um homem com o dobro da minha altura estava sendo
carregado em uma maca. Ele estava segurando o braço e uma de
suas pernas estava dobrada em um ângulo estranho. Um dos
curandeiros segurou a área ferida e começou um cântico apressado
de magia de cura de nível Intermediário, e a angústia no rosto do
ferido rapidamente desapareceu. Eu não queria atrapalhar, então
saí, localizando a placa na entrada que dizia Consultório Médico Um
ao sair.

O próximo lugar que visitei foi o depósito do ginásio, uma sala


adjacente à área de prática onde eu havia feito meu exame de
admissão. A entrada estava trancada, é claro. Eu tinha algumas
opções: ir até o prédio dos professores pegar a chave ou perguntar
ao professor de educação física se poderia pegar a chave
emprestada. Depois, havia a opção de abri-la com um feitiço não
verbal. Foi isso que escolhi, usando minha magia da terra para
remover a fechadura e poder entrar.

O interior cheirava um pouco a mofo e poeira. As prateleiras


estavam forradas com couraças e máscaras que pareciam de
kendo, e no canto estava o que parecia ser uma caixa de guarda-
chuva cheia de varinhas mágicas. Havia um espantalho de ferro e
um pó branco não identificável em uma jarra.

Pelo visto, as aulas não envolviam saltos altos ou ginástica de


solo, então não havia colchonetes. Na verdade, o nome da sala nem
mesmo era Depósito do Ginásio, era Equipamentos de Treino.

Pensei em depois ir até o telhado, mas esta era uma região em


que nevava muito, então muitos dos prédios da escola tinham o
telhado inclinado. Tinham uma cobertura, mas decidi deixar isso de
lado e seguir para a biblioteca.

A biblioteca desta escola era separada dos outros edifícios, então


tive que deixar o campus principal para chegar lá. Após cerca de
dez minutos de caminhada, cheguei ao prédio de dois andares e fui
interrompido pelo porteiro na entrada.

— Parado!

— Eh?

— Nunca te vi antes. Você é novo por aqui? Por que não está na
aula?

— Uh, sim, sou um aluno novo. Um aluno especial com dispensa


de aulas.
— Mostre-me sua carteira de estudante.

Meus movimentos enquanto mostrava a carteira de estudante


que recebi no outro dia foram rígidos.

O porteiro olhou fixamente para meu rosto enquanto confirmava


minha identidade e dizia: “Certo.”

Ele me apalpou cuidadosamente e depois me deu uma visão


geral sobre com o que devia tomar cuidado quando estivesse
usando a biblioteca.

O uso de magia era proibido no local.

Em geral, tirar livros da biblioteca era estritamente proibido, mas


havia uma certa seção da qual poderia pegar emprestado.

E por último, precisava de permissão do bibliotecário e era


obrigado a registrar o nome.

E, é claro, seria penalizado por quaisquer livros que destruísse


ou profanasse.

As mesmas regras de uma biblioteca normal, mas rasgar um livro


poderia resultar em uma multa e possível expulsão, embora a
maioria dos livros na biblioteca fossem apenas cópias. Continuava
normal, suponho, dado o quão preciosos eram os livros neste
mundo.

— Isso é bastante rígido, não é? — falei.

— Alguns canalhas já trocaram alguns livros em segredo uma


vez. E venderam os originais no mercado, vê se pode.
— Entendo.

Fiz uma reverência para o porteiro e me dirigi para dentro, onde o


cheiro sutil de livros me esperava. Era uma mistura única de
aromas: o cheiro de mofo, de tinta e de papel. Havia um banheiro na
entrada, algo conveniente para aqueles que sentiam necessidades
no momento em que pisavam na biblioteca. Antes de prosseguir,
ofereci uma breve saudação ao bibliotecário. Havia escrivaninhas e
mesas alinhadas na entrada, e mais adiante havia fileiras de
estantes altas.

— Whoa. — Espantado, acabei soltando um suspiro sem querer.


Eu tinha lido muito desde que cheguei a este mundo, mas foi a
primeira vez que vi um número tão grande de livros em um só lugar.
Uma escada conduzia por uma abertura no teto ao segundo andar,
que era, como esperado, ocupado por ainda mais estantes de livros.
As mesas e cadeiras espalhadas sugeriam que algumas pessoas
tinham o hábito de estudar no local.

Lembrei do conselho do Deus Homem:

“Rudeus, vá em frente e matricule-se na Universidade de Magia


de Ranoa. Lá, investigue o Incidente de Deslocamento da Região de
Fittoa. Se fizer isso, será capaz de recuperar suas habilidades e
confiança como um homem.”

Uff – eu tinha esquecido quase tudo a respeito da primeira parte.


Mas isso era perfeito. Com o grande volume de livros no local, eu
estava fadado a encontrar algo sobre teletransporte. Entretanto –
por onde começar?

— Será que devo perguntar ao bibliotecário…?


Não. Não precisava de pressa. Nem mesmo o Reino Asura havia
descoberto o que causou o Incidente de Deslocamento ainda. Se eu
pudesse descobrir isso tão rápido, o Deus Homem não teria me dito
para me matricular na universidade. Teria me dito para entrar
furtivamente e investigar, em vez disso. Na verdade, apenas me
disse para investigar o incidente, não para descobrir sua causa.
Talvez devesse estar acontecendo algo enquanto eu procurava.

No momento, decidi compreender o sistema de prateleiras. A


maioria dos livros era escrita na língua humana, mas entre eles
estavam aqueles escritos na Língua do Deus Demônio e na Língua
do Deus Fera. Também havia um livro na Língua do Deus Lutador.
Os alfabetos que eu não conhecia deviam ser a Língua do Deus do
Céu ou talvez a Língua do Deus do Mar. Gostaria que traduzissem
aqueles volumes para línguas que eu poderia ler.

— Ah!

Houve um gritinho repentino por trás de mim. Me virei e vi um


garoto com cabelos brancos e óculos escuros, carregando uma
série de tomos e pergaminhos e olhando na minha direção.

É o Fitz, percebi. Me apressei a me endireitar, pressionei meus


pés juntos e me curvei.

— Peço desculpas pelo outro dia. Minhas ações descuidadas


fizeram você perder um pouco de prestígio. Eu planejava te dar uma
caixa de doces, mas, infelizmente, como um aluno novo, tenho me
ocupado com muitas coisas…

— Guh?! N-não, está tudo bem, por favor, não se curve.


Havia um cara na minha vida anterior que eu realmente
respeitava, chamado Masa. Um trabalhador que poderia enfrentar
qualquer coisa que a vida jogasse sobre ele prostrando-se sobre as
mãos e joelhos. Um de seus decretos era: “Sempre que você
estragar alguma coisa, encontre um lugar inócuo como o banheiro
para pedir desculpas sinceras, para que você não grite em um local
mais público.” Meu súbito pedido de desculpas fez Fitz entrar em
pânico e parecia que estávamos indo em uma direção em que ele
provavelmente me perdoaria. Sucesso!

— Rudy… um, quero dizer, Rudeus, certo? O que está fazendo


aqui?

— Só um pouco de pesquisa.

— Sobre o quê? — pressionou Fitz.

— O Incidente de Deslocamento.

Quando eu disse isso, suas sobrancelhas se uniram. Falei algo


estranho?

— O Incidente de Deslocamento? Por quê? — perguntou ele.

— Eu morava na Região de Fittoa do Reino Asura e fui


teletransportado para o Continente Demônio após o incidente.

— O Continente Demônio?! — disse Fitz. Achei sua surpresa um


pouco exagerada.

— Sim. Demorei três anos para voltar para casa. Toda minha
família já foi encontrada, mas ainda há uma pessoa que está
perdida. Esta parece ser uma boa oportunidade para fazer algumas
pesquisas.

— É por isso que você veio para esta escola?

— Isso mesmo. — Eu não poderia dizer a ele que o verdadeiro


motivo era encontrar uma cura para minha impotência. Além disso,
eu não estava mentindo; queria saber por que o Incidente de
Deslocamento aconteceu.

— Entendo. No final das contas, você realmente é incrível —


disse ele, coçando a parte de trás da orelha.

Eu não tinha certeza do que era tão “incrível”, já que ainda não
tinha descoberto nada. Talvez ele tivesse reconhecido o meu poder
após nossa simulação de batalha no outro dia. Bem, tanto faz.

— E o que, posso perguntar, você está fazendo aqui? — falei.

— Ah, sim. Estou trabalhando em alguns documentos. Preciso ir.


Nos vemos de novo, Rudeus.

— Sim, claro, até mais.

Fitz se virou com pressa, indo em direção à entrada da biblioteca.


No entanto, depois de apenas alguns passos, ele de repente olhou
para trás.

— Ah, claro. Você deveria ler um livro escrito por Animus sobre
teletransporte, chamado Uma Consideração Exploratória sobre
Teletransportação em Labirintos. Isso não é ficção criativa, mas é
fácil de ler.

E então ele saiu correndo.


Não parecia guardar rancor pelo exame. Talvez fosse mesmo um
cara muito bom.

Fui ao bibliotecário perguntar sobre o livro Uma Consideração


Exploratória sobre Teletransportação em Labirintos e li até a hora do
almoço. Era um volume fino, com menos de cem páginas de
espessura, e contava a história de Animus Macedonius, um
aventureiro nativo das regiões nortenhas que foi explorar um
labirinto.

O labirinto, apropriadamente chamado de labirinto de


teletransporte, era um tipo raro cujas armadilhas eram todas
focadas em teletransporte. Havia cinco tipos de bestas que viviam lá
dentro, todas criaturas altamente inteligentes que entendiam o
formato do labirinto e para onde as armadilhas de teletransporte
enviariam uma pessoa. Se alguém tivesse o azar de pisar em uma
armadilha, se depararia com monstros esperando do outro lado. Era
difícil evitá-las durante o combate, e se uma batalha se tornasse
caótica, o grupo poderia ser imediatamente separado, então o
labirinto foi classificado como perigoso ao extremo.

Enquanto Animus e seus companheiros mergulhavam lá, ele


estudou as armadilhas de teletransporte que encontrou pelo local.
Havia basicamente três tipos de armadilhas: O primeiro era um
teletransportador de via única. Mandaria as pessoas sempre para o
mesmo local, mas não havia como voltar de lá. Outro era um
teletransportador recíproco. Haveria um círculo mágico no destino,
para que o retorno fosse possível. E por fim, havia o
teletransportador aleatório, que enviava a pessoa para um local que
não faria ideia.
A estratégia básica que os aventureiros empregavam no labirinto
de teletransporte era usar os círculos mágicos para se
teletransportar repetidamente cada vez mais para o fundo, mas
misturados entre as armadilhas estavam teletransportadores
aleatórios. Se acabasse pisando em algum deles por engano, seria
separado do grupo e forçado a lutar sozinho contra um monte de
bestas.

O livro de Animus continha suas pesquisas e teorias sobre como


distinguir os teletransportadores aleatórios dos outros. No meio de
sua jornada, ele descobriu como diferenciá-los e rapidamente
avançou mais fundo no labirinto. Mas acabou se empolgando,
esquecendo que seu método não era infalível. No final da história,
identificou um tipo de armadilha incorretamente e pisou em um
teletransportador aleatório. Cercado por um grande número de
inimigos, perdeu um braço, mas de alguma forma conseguiu
escapar com vida. No entanto, perdeu todos os seus três
camaradas no processo. O próprio Animus não podia mais lutar,
então abandonou sua vida como aventureiro. A história terminava
com uma linha dizendo que deixaria a conquista daquele labirinto
para o leitor.

A parte de trás do livro estava repleta com teorias sobre


teletransporte aleatório. A nomenclatura não era totalmente precisa,
uma vez que o alcance de teletransporte das armadilhas aleatórias
era predeterminada apenas até certo ponto. Além disso, embora as
pessoas pudessem se teletransportar para o meio de uma caverna,
era extremamente raro ser teletransportado para a dentro da terra.
Animus levantou a hipótese de que isso era devido à resistência
entre a mana no destino e a mana da pessoa sendo
teletransportada, que era o mesmo princípio que explicava por que
alguém não poderia lançar um feitiço ofensivo direto pelo corpo de
uma pessoa.

Isso era algo que eu já sabia… embora a magia de cura


envolvesse fazer a magia correr pelo corpo de outra pessoa.
Suspeitei que estava relacionado ao motivo pelo qual eu não
poderia lançar magia de cura sem um encantamento, mas
deixaríamos isso para outra hora.

Quanto ao teletransporte, me perguntei se havia uma exceção à


teoria. Afinal, era possível canalizar magia ofensiva dentro de
coisas. Teletransportar pessoas para uma matéria sólida talvez
exigisse uma quantidade obscena de poder mágico.

Enquanto eu pensava, o sino do meio-dia tocou. O tempo estava


voando.

✦✦✦✦✦✦✦

Me encontrei com Zanoba e fomos para o refeitório, que ficava


em um prédio separado. Tinha três andares, cada um para
diferentes tipos de alunos. O terceiro andar era para a realeza
humana e a nobreza. O segundo andar era para plebeus humanos e
gente-fera. O primeiro andar era para aventureiros e demônios. A
escola provavelmente raciocinou que se a nobreza humana
comesse ao lado dos aventureiros e do povo demônio, isso apenas
aumentaria a possibilidade de um conflito em potencial.

Como um aventureiro, eu poderia comer no primeiro andar,


mas…
— Venha, venha, por aqui.

Peguei a comida que Zanoba recomendou e deixei que ele me


arrastasse para o terceiro andar.

— Urgh…

No momento em que saí da escada, todos os olhares no andar


superior se voltaram para mim… possivelmente porque eu exalava o
fedor de um plebeu, mas também porque minhas roupas já haviam
visto dias melhores. Por causa do frio, eu estava com meu velho
robe cinza por cima do uniforme. Ele já tinha cinco anos e suas
mangas estavam esfarrapadas, e sua frente marcada por um
enorme remendo no peito. Com meu crescimento recente, minhas
roupas também estavam ficando um pouco pequenas. Para ser
franco, eu parecia completamente desgrenhado.

Ao contrário do primeiro e segundo andares, nem uma única


pessoa usava um robe para se proteger do frio. Estava cheio de
pessoas com casacos e capas de aparência aconchegante. Podiam
muito bem estar usando ternos, enquanto eu era o único de suéter.

— Zanoba, acho que não me encaixo aqui. Podemos comer ao


menos no segundo andar? — implorei.

— Não, no segundo andar não. Linia e Pursena estão lá.

— Certo, então que tal o primeiro andar?

— O primeiro andar está cheio de ignorantes que não conhecem


boas maneiras à mesa. Não é um lugar adequado para realeza
como eu ir, não importa por quão pouco tempo.
— Certo, então vamos comer em lugares separados — falei por
fim.

— Não seja insensível. Você sabe o quanto eu sofri por não


poder vê-lo de novo até agora, Mestre? Você pode pelo menos
comer uma refeição comigo.

— Não peça ao seu mestre para sofrer em seu lugar.

Estávamos discutindo no topo da escada e, apesar de sua


largura, os alunos que passavam deixavam parecer que estávamos
os bloqueando. De repente, uma explosão de ruídos veio de baixo:
um coro de vozes estridentes, aproximando-se aos poucos.

— Aaah, Lorde Luke!

— Lorde Luke, depois eu!

— Aww, sem chances, Lorde Luke, não é justo.

— Lorde Luke, posso ir no seu próximo encontro?

Um homem bonito, cercado por mulheres, subia as escadas.

— Não, sinto muito — disse ele. — Já decidi que só posso levar


duas garotas de cada vez para um encontro. Só tenho dois braços,
sabem, então se eu levasse três uma ficaria sozinha, não é?

— Aww, que saco.

— Hehe, foi mal. Mas eu sou um cara requisitado, sabe. Vamos


nos encontrar em outra hora. Acho que meu braço esquerdo estará
livre no próximo mês.
Essas palavras inacreditáveis saíram da boca do jovem que se
parecia com Paul. Eu tinha certeza de que ele era o cara que vi na
cerimônia de abertura. Luke ou coisa do tipo. Qual era o seu
sobrenome? Skywalker?

Nossos olhos se encontraram.

— Você… — Ele semicerrou os olhos. Aquele olhar


despreocupado em seu rosto ficou sombrio. — Do Fitz…

Abaixei a minha cabeça. Então ele sabia do meu teste com Fitz.
Fitz não parecia zangado com o que aconteceu, mas seus
companheiros talvez estivessem chateados em seu lugar.

— Prazer em conhecer, me chamo Rudeus Greyrat. Estarei sob


sua orientação durante meu tempo aqui na escola, já que você é um
veterano. Espero que tome conta de mim.

— Sim. Eu sei. Ouvi o Fitz falar de você. Pelo visto, você é


insanamente esquecido. — Luke olhou para mim, descontente.

Insanamente esquecido… eu era mesmo? Eu realmente não


entendi. O que ele achava que esqueci?

— Você já sabe meu nome, não sabe?

— Não, não sei. — Achei melhor confessar honestamente a


minha falta de conhecimento do que dar uma resposta meia-boca.

— Isso faz sentido.

— Uh, foi mal. Então, se não houver problemas, se importaria em


me dizer o seu nome?
Ainda descontente, Luke me encarou por alguns instantes antes
de bufar e cuspir: “Luke Notos Greyrat.” E então passou por mim.

— Ugh, mas que diabos foi aquilo? Não consigo acreditar!

— Sério, aquele robe está tããão acabado! As bordas dele


estavam todas desgastadas!

— Se está se desfazendo, ele devia simplesmente dar uma saída


e comprar um novo!

Suas fanáticas seguiram no seu rastro, vomitando insultos, mas


não ouvi suas palavras. Luke Notos Greyrat. O nome de nascimento
do meu pai era Paul Notos Greyrat. Luke era uma criança ilegítima?
Não, isso não poderia ser possível. Paul há muito renunciara o
nome Notos. Ele devia ser um primo ou algo assim.

— Mestre, você chamou a atenção de um sujeito desagradável.

— Acho que sim, hein? Por essa conversa, parece que sim.

— Aquele era o Luke, da nobreza superior do Reino Asura. Ele é


tecnicamente um estudante, mas também é um dos guardas da
Princesa Ariel.

— De qualquer forma, vamos deixar essa coisa de comer aqui de


lado — falei.

— Suponho que não tenho escolha.

Nos contentamos comendo fora. O tempo estava bom e usei


minha magia da terra para conjurar algumas cadeiras e uma mesa,
criando um terraço de café instantâneo. Zanoba expressou sua
admiração a cada feitiço que lancei, gritando: “Uau!” Fiquei
encantado ao ver como ele estava profundamente comovido.

Enquanto comíamos, Zanoba me contou sobre a Princesa Ariel e


seu grupo.

Ariel Anemoi Asura, dezessete anos. Segunda Princesa do Reino


Asura. A única filha da rainha e ainda a terceira na linha de
sucessão ao trono, apesar de sua relativa juventude. Também
disputando o trono estavam o Primeiro Príncipe Grabel e o Segundo
Príncipe Halfaust. As pessoas poderosas do Reino Asura criaram
facções, na esperança de apoiar o príncipe que se tornaria rei, e
então colher os benefícios.

Porém, com o tamanho de cada grupo, nem todos tinham certeza


de que sentiriam o gosto do mel que escorreria. Até mesmo os
ministros eram classificados em uma hierarquia, então foi dado que
aqueles que estavam na base seriam ignorados. Quando a Segunda
Princesa nasceu, aqueles que achavam que não se beneficiariam
com a sucessão de sua candidata passaram a ser leais a ela. No
entanto, a dela era a mais fraca das facções, e durante o caos do
Incidente de Deslocamento, alguns dos membros mais poderosos
do grupo perderam sua posição. Várias tentativas foram feitas
contra a vida da Segunda Princesa, e sob o pretexto de estudar no
exterior, ela fugiu para esta escola.

A Princesa tinha dois guardas consigo. Um deles era o Fitz. Fitz


Silencioso, como fora apelidado. Um mago que usava magia não
verbal e matou uma assassina que teve a princesa como alvo. As
pessoas sabiam que ele era um elfo, mas onde nasceu e foi criado
era um completo mistério. Apenas um punhado de pessoas poderia
ensinar magia não verbal, mas seu mestre era desconhecido.

Ariel e seu grupo eram discretos em relação à existência de Fitz.


Corriam rumores de que o Palácio Real Asura havia criado ele em
segredo, como parte de uma organização de máquinas assassinas
sem coração. O que definitivamente não era verdade, a julgar pelas
conversas que tivemos.

Seu outro guarda era Luke Notos Greyrat. O segundo filho do


atual chefe da família Notos, Pilemon Notos Greyrat. Desde o
nascimento, foi treinado para se tornar um dos cavaleiros da guarda
da Princesa Ariel, e continuou nesse papel para o caso de a
princesa conseguir recuperar o poder e retornar à luta pela
sucessão. Desde o momento em que se matriculou na escola, ele
foi continuamente banhado pelos holofotes, tornando-o um alvo de
inveja, medo e respeito.

Para encerrar, Zanoba disse:

— Mas esteja avisado, algumas dessas informações são minhas


próprias conjecturas.

— Sim. Obrigado. Na verdade, você está bem por dentro das


coisas.

— Porque fui forçado a investigar o assunto.

— Por quem? — perguntei.

— Duas tolas do povo-fera.

— Linia e Pursena, hein?


— De fato. — Seu rosto era a própria imagem da angústia. Elas
haviam o transformado em seu garoto de recados?

— Zanoba… você está sendo intimidado por aquelas duas?

— Intimidado? Não, eu apenas admiti a derrota após perder para


elas. Isso é tudo.

— Admitiu a derrota, hein?

Zanoba parecia ligeiramente em conflito, mesmo enquanto falava


sem rodeios. Eu queria ajudá-lo… mas não sabia a extensão do
poder das minhas possíveis oponentes. O povo-fera costumava tirar
conclusões precipitadas e eu não queria torná-las inimigas. No final
das contas, porém, sempre ficaria do lado daqueles que são
intimidados.

— Se elas estão fazendo algo que você não gosta, por favor me
diga. Posso não ter muito poder, mas vou ajudar.

— Hahaha, eu não irei te incomodar, Mestre, fique tranquilo. Mais


importante, vamos falar sobre estatuetas! — disse ele com uma
risada.

Acho que por um tempo vou só monitorar a situação, pensei.

✦✦✦✦✦✦✦

Depois do almoço, retornei à minha perambulação. Não


conseguia pensar em outros lugares em que gostaria de dar uma
olhada, então, após uma rápida visita pelos cantos, voltei para a
biblioteca.
Procurei referências sobre teletransporte, mas nunca havia
frequentado uma biblioteca antes. Demorei um pouco só para
vasculhar pelas pilhas de livros. A biblioteca me permitia examinar
um catálogo de sua coleção, do qual selecionei livros com a palavra
“teletransporte” em seus títulos. Depois disso, os cacei no mar de
prateleiras. Só isso tomou várias horas. Além disso, a maior parte
do que encontrei não era detalhado o suficiente, escritos em jargões
técnicos, em linguagens que eu nem conhecia, ou exigiam
conhecimento prévio sobre o assunto para entendê-lo.

— Se vou me enfiar aqui e pesquisar isso, acho que vou precisar


de um caderno. — Havia um limite para o que eu poderia guardar na
minha memória. Decidi deixar os livros para o dia seguinte e saí da
biblioteca.

Lá fora, o sol estava se pondo e os alunos que haviam terminado


as aulas estavam aos poucos retornando para o dormitório. Alguns
também pareciam ir para a biblioteca. Fui na direção oposta, à loja
da escola, na entrada do prédio principal.

A loja estava cheia de alunos comprando em silêncio. Uma


rápida olhada ao redor revelou livros de magia, cristais mágicos,
robes, espadas de madeira, varinhas de iniciante, bolsas, sapatos e
sabonetes, entre outros itens diários essenciais. Também havia
alimentos como carne-seca, carne defumada, além de garrafas de
água potável e álcool. Comprei uma seleção aleatória de papel,
caneta, tinta e um barbante para amarrar o papel. Não poderia ir à
escola sem nem mesmo os suprimentos mais básicos.

Quando saí, o lado de fora já estava escuro. Não havia qualquer


poste de luz, mas o caminho ainda estava ligeiramente iluminado,
então continuei andando. Embora o inverno já tivesse acabado,
ainda havia neve nas calçadas. Andei com cuidado e corri em
direção ao dormitório.

Quando passei pelo dormitório feminino não vi ninguém por


perto. Meus arredores estavam completamente desprovidos de
outras pessoas. Foi então que aconteceu.

— Hm?

Algo caiu. Era branco, mas não era neve. Por instinto, agarrei
aquilo.

— Ooh.

O que se revelou diante de mim foi um tecido todo branco. Tinha


enfeites, mas eram sutis e elegantes. O nome adequado para este
item em particular era “calcinha”, e uma de qualidade bastante alta.
Parecia, no mínimo, mais cara do que as que Elinalise costumava
usar.

Será que alguém estava tentando pendurá-la para secar? Olhei


para cima e vi uma pessoa espiando pela borda de uma das
varandas. Achei que nossos olhos se encontraram, mas estava
escuro, então não pude discernir seu rosto. Parecia que eu já tinha
o visto em algum lugar.

— Um, você derrubou…

— Gyaaaah! Ladrão de calcinhas!

Hã?
O grito da aluna não veio de cima, mas sim de trás de mim. Em
pânico, me virei para encontrar uma pessoa gritando e apontando o
dedo para mim. Isto é um equívoco!

Mas já era tarde demais. Momentos depois do grito, as janelas


das outras varandas se abriram fazendo barulho. Então, pessoas
surgiram saltando do primeiro andar, uma após a outra.

Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, fiquei


cercado, a calcinha ainda na minha mão. Não fazia ideia do que
estava acontecendo.

— Uh, um, uh…

— Hmph!

De pé na linha de frente estava uma garota bem musculosa.


Seus ombros eram quase duas vezes maiores que os meus. Ela era
do povo-fera… ou não, uma demônio?

— Pervertido nojento! — Ela cuspiu no chão enquanto eu ficava


lá, confuso. O que estava acontecendo? Claro, eu era um garoto de
quinze anos com um interesse saudável por roupas íntimas
femininas, mas não tinha roubado, nem mesmo tentado cheirar.

— Espere aí — falei. — Por favor, espere, eu não fiz nada.

— Você não fez nada? — A mulher enorme agarrou o meu braço.


— Então por que não me diz o que está em sua mão?

Bem, sim, eu estava segurando uma calcinha na mão. A julgar


pela expressão em seu rosto, ela considerou essa prova suficiente.
Minhas pernas tremeram.
— Não é da Princesa Ariel? Não me importa o quanto você
possa admirá-la, fazer algo assim a esta hora é um ato descarado.
Você devia ter vergonha!

As outras garotas entraram na conversa, dizendo: “Isso mesmo!”,


“Seu pervertido!” e “Morra!” Isso já bastava, eu já estava com
vontade de chorar.

— Agora, venha comigo. Faremos com que você se arrependa


tanto que nunca mais fará isso de novo!

Ela me puxou pelo braço. Tentei resistir, mas tudo que fiz foi
deixar algumas marcas de derrapagem no chão. Nesse ritmo, seria
arrastado para algum lugar e levaria uma surra indescritivelmente
horrível, e tudo por causa de uma falsa acusação. Deveria correr?
Mesmo sem ter feito nada de errado? Mas correr seria como
declarar a minha culpa…

Não, eu tinha que manter minha posição. Não fiz nada de errado.

Usei magia da terra para ancorar os meus pés no lugar. A garota


olhou para trás com surpresa e depois sorriu com desprezo.

— Eh, o que é isso? Está planejando resistir? Quanta coragem


para um ladrão de calcinhas! Acha mesmo que pode lutar contra
tantas pessoas?

Boa pergunta. As examinei e concluí que possuía boas chances.


Já tinha lutado em situações muito piores nos meus dias como
aventureiro; poderia lidar com essas garotas. Ainda assim, não
queria agravar a situação e espancar um monte de garotas,
aumentando as acusações contra mim – e uma delas acabaria
sendo verdade. Isso poderia resultar até mesmo na minha expulsão.

— Esperem! Não façam nada com ele! — A voz de um garoto,


ligeiramente aguda, soou.

— Lorde Fitz!

— O quê! Lorde Fitz?!

— Uma voz tão linda…

— O que ele está fazendo aqui?!

A multidão se dividiu, revelando Fitz. Ele se colocou entre mim e


a mulher enorme para explicar a situação.

— Sinto muito. Eu estava colocando esta roupa de baixo para


secar, mas deixei cair. Ele a pegou para mim. — Seus ombros
tremiam enquanto ele tentava recuperar o fôlego.

— Senhor… Fitz. Sei que você está encarregado de lavar as


roupas íntimas da Princesa Ariel. Mas — a mulher continuou —,
apesar da hora tardia, ele ainda estava andando na frente do
dormitório. Embora tenha sido combinado que, uma vez que o sol se
põe, este caminho deve ser usado apenas por mulheres.

Sério? Eu não vi nenhuma placa indicando isso.

Fitz olhou para o meu rosto confuso e balançou a cabeça.

— Ele é novo aqui. Além disso, também é um estudante especial,


então vive sozinho e não tem um colega de quarto. Ele não devia
saber das regras mais intrincadas da universidade. Gostaria que
dessa vez deixassem passar.

Ele parecia frenético; eu podia até ouvir o pânico em sua voz.


Não estava certo quanto ao motivo, mas fiquei grato.

A mulher musculosa se virou em minha direção. Isso é verdade?


Sua expressão parecia perguntar.

Balancei minha cabeça para cima e para baixo.

Ela manteve um aperto firme em mim enquanto estudava o rosto


de Fitz.

— Hm, é surpreendente que você tenha ido tão longe para


defender alguém. O que você diz deve ser verdade. Ainda assim,
permanece o fato de que este garoto violou as regras do dormitório.
Faremos dele um exemplo punindo… O quê?!

Enquanto falava, ela tentou me puxar, mas depois congelou. Fitz


sacou sua varinha e enfiou a ponta bem no rosto dela.

— Não acabei de dizer que ele não fez nada de errado? Basta.
Agora solte a mão dele.

— S-senhor… Fitz?

A sugestão de raiva em sua voz despertou murmúrios ao nosso


redor.

Mesmo na escuridão, pude ver o rosto da mulher grande


empalidecer.
— Ou vocês gostariam de ser encaminhadas para o consultório
médico? — Sua voz podia ser aguda, mas com certeza havia
intenção assassina por trás de suas palavras. Eu podia escutar as
garotas ao nosso redor engolindo em seco. Que fodão.

— Tch… certo, já entendi. — Ela me soltou, embora com um


pouco de violência. Forçadas a obedecer, as outras garotas também
recuaram. Meu pulso doía, mas não parecia precisar de cura.

— Lorde Fitz, vou deixar isso passar. Mas você aí! É melhor
nunca mais mostrar sua cara no dormitório feminino em uma hora
dessas! Da próxima vez que te ver, não vou mostrar misericórdia! —
A mulher corpulenta cuspiu essas palavras antes de voltar para a
janela da qual havia saltado. As outras garotas também zombaram
de mim enquanto desapareciam. Em um instante, foram todas
embora.

— Uff… aquela garota. Se ela ao menos escutasse. — Fitz soltou


um suspiro ao vê-la partir. Ele olhou para mim e abaixou a cabeça.
— Sinto muito. Se eu não tivesse deixado essa roupa de baixo cair,
isso nunca teria acontecido.

Afinal, por que diabos um garoto como ele estava lavando roupas
íntimas no dormitório feminino? Eu queria perguntar algo assim…
mas ele era o guarda-costas capaz e altamente confiável da
Princesa, então devia possuir algum tipo de permissão especial. Ele
parecia um homem honesto. E era confiável, jovem e seus óculos o
faziam parecer ainda mais elegante.

Merda. Meu coração estava disparado, embora a pessoa na


minha frente fosse um cara.
Eu poderia estar me apaixonando.

— Você não fez nada de errado. Só me ajudou — falei.

— Te ajudei? São elas que se machucariam se você ficasse


sério.

A razão pela qual ele estava tão frenético me acertou. Fitz devia
ter pensado que elas se machucariam se eu liberasse o meu poder.
Então agiu para garantir a segurança delas… mas mesmo assim,
senti compaixão em suas ações. Se isso fosse um mangá shoujo,
seria nesse momento que nossa história de amor começaria.

— Ainda assim, aquilo tudo veio do nada. O que ela quis dizer?
— perguntei.

— Sim, bem, é como a Senhorita Goliade disse. Quando o sol se


põe, os alunos do sexo masculino não podem chegar perto do
dormitório feminino.

— Sério? Mas isso não estava escrito nas regras da escola —


protestei.

— Isso foi decidido entre os alunos que vivem nos dormitórios.


Quando o sol se põe, os garotos não podem usar essa estrada e
devem fazer um desvio para chegar até a estrada deles.

Uma regra tácita, hein? Teria sido bom se alguém tivesse me


contado sobre isso. Tipo o Zanoba.

— Eu não sabia.

— Não é sua culpa — disse ele. — Da próxima vez tome


cuidado.
— Tomarei.

Ele não precisava me dizer duas vezes. Eu provavelmente não


voltaria a usar o mesmo caminho – nem mesmo durante o dia.
Ainda não conseguia suportar os olhares hostis de uma multidão
inteira voltados para mim.

— De qualquer forma, obrigado por me ajudar — falei. — Se


você não tivesse vindo ao meu resgate, eu não sei o que teria
acontecido.

— Não se preocupe com isso. Só fiz o que qualquer outra pessoa


teria feito.

O que qualquer outra pessoa teria feito… sério?

Parando para pensar, eu tinha muitas lembranças ao ser mal


interpretado ou falsamente acusado nos últimos tempos. Tinha
começado com o povo-fera, depois Paul, e Orsted. Meu rosto era
tão indigno de confiança?

No entanto, Fitz não decidiu arbitrariamente que eu era culpado.


Na verdade, me defendeu, embora eu fosse parcialmente culpado
pelo que tinha acontecido. Ele me deu até conselhos na biblioteca.
E tinha muita influência na escola, mas não tinha deixado isso subir
à cabeça. Ele era um homem de caráter. Um veterano, em todos os
sentidos da palavra. Eu tinha me decidido – como uma
demonstração de meu respeito por ele, iria chamá-lo de Mestre Fitz.

— Além disso, Rudeus, você poderia ter saído disso sem


machucar ninguém, não poderia?

— De forma alguma. Fico muito grato a você, Mestre Fitz.


Quando inclinei a cabeça, ele coçou a bochecha timidamente.

— Ahaha, é meio estranho ouvir você me agradecer.

— Eh? Por quê?

Quando perguntei, ele só mostrou um sorriso enorme, mostrando


os dentes.

— Isso é segredo.

E, assim, meu primeiro dia na escola acabou.


História Paralela:
Sylphiette (Parte 1)
Durante a manhã, acordei com o som dos pássaros. Ainda
estava bastante escuro quando olhei da janela para o lado de fora.

— Mm… Aaah…

Me endireitei tentando me livrar da sonolência enquanto ela se


agarrava a mim. Então escorreguei para fora da cama, que não era
luxuosa nem rude, e me espreguicei.

De debaixo da minha cama, tirei um balde, enchi-o com magia e


lavei o rosto. Então comecei a me aquecer para meus exercícios
matinais. Sentei e estiquei os pés, depois girei os braços em
círculos para soltar as articulações e os músculos dos ombros e, por
fim, respirei fundo.

Meu corpo parecia estar em boas condições. Devia ser graças ao


sonho bom que tive. A estrela dele foi o Rudy. Ele fez amor comigo.
Não lembro do motivo, mas lembrava de como aquilo me deixou
feliz. Quando acordei e descobri que foi tudo um sonho, fiquei
desapontada.

Troquei meu pijama por roupas que serviam para se mover com
facilidade; um top marrom-claro e calças, feitas de material macio.
Nada sexy. Antes de sair, coloquei um chapéu gigante que cobria
completamente o meu cabelo e orelhas.

O quarto ao lado do meu era uma suíte luxuosa. Continha uma


cama com dossel, na qual estava a Princesa com seus lindos
cabelos dourados. Seu rosto parecia angelical enquanto ela dormia,
e não havia indicação de que acordaria logo. Ainda era muito cedo
para isso.

Me arrastei em silêncio para não acordá-la e fui para o quarto ao


lado do dela. Sentado em uma cadeira, parecendo um pouco
sonolento, estava um jovem. Usava uma camisa comum, mas suas
calças eram feitas de couro e ele tinha uma espada pendurada na
cintura. Seu cabelo era branco e um grande par de óculos de sol
escondia seu rosto.

Na mesa ao lado dele havia um sino. Se ele o tocasse, o sino do


quarto vizinho também tocaria. Um sinal para os dois que
aguardavam nas proximidades – o Cavaleiro da Princesa e a
Assistente da Princesa – disparassem em sua direção.

— Bom dia, Fitz.

— Mm… dia, Sylphie.

Quando o cumprimentei, Fitz sorriu suavemente e retribuiu o


gesto. Este Fitz era um dos Assistentes da Princesa e meu amigo.
Seus deveres de assistente o mantinham ocupado, mas quando
tínhamos folga, ele estudava magia não verbal comigo. Se tratava
de uma pessoa muito estudiosa. Suponho que poderia dizer que eu
era sua mestra, embora, é claro, nunca me chamasse assim.

Fitz não se moveria de sua posição até que a Princesa


acordasse. Afinal, ele era muito dedicado ao trabalho.

— Hoje você vai sair para correr de novo?

— Sim. É importante manter uma rotina de exercícios.


— Certo. Divirta-se.

Saí, deslizando para o corredor mortalmente quieto. Eu amava


esse tipo de silêncio. Este lugar era sempre agitado e barulhento,
mas durante esse horário em particular, ficava quieto. Durante a
noite também ficava silencioso, mas parecia estranho, como se
tivesse algo se escondendo em algum lugar.

Me movi furtivamente pelo corredor para não acordar ninguém,


descendo a escada central até o primeiro andar e escorregando até
a entrada. Após alguns passos na escuridão tênue, me virei. Um
enorme edifício com telhado vermelho preenchia o horizonte. O
dormitório estudantil da Universidade de Magia de Ranoa.

✦✦✦✦✦✦✦

Correr fazia parte da minha rotina matinal diária. Era algo que eu
fazia desde que Rudy e eu nos separamos. Correr era importante.
Eu não tinha entendido isso logo após ele partir, mas passei a
entender. Poder continuar correndo quando estava no limite,
convencida de que não poderia ir mais longe, tornava-se a diferença
entre a vida e a morte. Não importa o quão bom alguém seja em
magia ou esgrima, no final, o mais importante era a resistência.

Deixando isso de lado, eu também adorava correr. Só podia ouvir


duas coisas durante uma corrida matinal – o som de meus pés e da
minha respiração. Essas duas coisas baniam os meus pensamentos
e limpavam a minha mente. Eu ficava ainda mais focada enquanto
corria.

— Huff… huff…
Um dos meus objetivos para o início de cada dia era continuar
correndo na Cidade Mágica de Sharia até não aguentar mais. Ao
fazer isso, não apenas me familiarizava com a disposição da cidade,
como também aprendia os meus limites físicos. Ninguém havia me
ensinado isso, mas era algo que pensei que Rudy faria se estivesse
no meu lugar.

Corri pelo Distrito de Oficinas. O centro fervilhava com o


comércio e com pessoas descarregando suas mercadorias ao fazer
barulho, mas essa parte ficava silenciosa. Corri por uma loja de
esquina com um nome estranho e decidi virar em um beco estreito
desconhecido. A disposição da Cidade Mágica da Sharia não era
particularmente complexa, mas era repleta de pequenas vielas que
eu não conhecia. Pretendia memorizar todas elas. Rudy, no meu
lugar, sem dúvidas faria o mesmo.

— Ah, então é até aqui que isso leva?

O beco dava para uma rua que eu conhecia. Passava de uma


área no Distrito das Oficinas, cheia de oficinas e moradias de
artesãos, para uma parte do Distrito do Comércio, onde as lojas
estavam alinhadas lado a lado, separadas por uma grande e
sinuosa estrada principal. Eu não tinha percebido que havia uma rua
menor conectando os locais. Provavelmente era um caminho que os
artesãos usavam todos os dias. Agora que eu sabia, poderia pegar
um pequeno atalho da escola para o Distrito do Comércio sempre
que fosse às compras.

A conquista me deu alegria. Continuei correndo.


Depois de correr um pouco pela cidade, o céu ficou claro. Assistir
ao nascer do sol era uma das recompensas por acordar cedo. Eu
gostava do nascer do sol. A visão permanecia a mesma, não
importa em que país estivesse, e isso me trazia conforto. Nunca me
cansava de ver.

Assim sendo, devo ter ganhado um pouco de resistência nos


últimos tempos, porque o sol estava começando a nascer antes
mesmo de eu me cansar. Poderia precisar acordar um pouco mais
cedo na manhã seguinte. Ainda assim, no momento voltei para a
escola.

Quando retornei ao dormitório, a Princesa tinha acabado de


acordar.

Ainda meio adormecida, se sentou na cama, arrastando-se


lentamente para fora dela.

— Sylphie… dia.

— Sim, bom dia.

Foi essa a deixa para meu amigo sonolento do quarto ao lado, e


comecei a vestir a Princesa. Eu tinha lutado com o dever no
começo; suas roupas eram fundamentalmente diferentes daquelas
com as quais eu estava familiarizada, com montes de botões e
rendas. Mas no ano passado, a universidade instituiu uniformes que
eram bem desenhados, mas de alguma forma simples de usar,
então vestir a Princesa se tornou fácil. Tudo que precisava fazer era
desabotoar seus pijamas, tirá-lo, colocar suas roupas de baixo e…

— Sylphie, hoje não estou com vontade de usar sutiã.


Às vezes ela fazia pedidos egoístas, mas eu não reclamava. Do
jeito que as coisas estavam, eu era essencialmente sua serva.
Escutava o que era dito e agia de acordo com seus desejos. Não
me importava – afinal, ela me salvou após o Incidente de
Deslocamento, quando eu não sabia o que era cima ou baixo – mas
percebi que só fizera isso por seu benefício próprio. Ela se
aproveitava de quem e do que podia. Ainda assim, foi por sua causa
que sobrevivi, e queria ajudá-la o máximo que pudesse,
considerando o quão doloroso foi para ela ser exilada de sua terra
natal.

Sinceramente, não sabia o que ela realmente pensava de mim.


Eu admirava seu comportamento gentil, mas comecei a entender as
suas verdadeiras cores. Seu sorriso enfeitiçava qualquer um que o
visse, mas era quase sempre falso. Era um sorriso com a intenção
de tranquilizar a outra parte e mover todos de forma que lhe fosse
benéfica. Ela usava aquele sorriso com frequência. Talvez todos
seus sorrisos que cheguei a ver fossem mentiras. Os vi tantas vezes
que cheguei a me perguntar.

Ainda assim, ela me salvou. Me tratou como uma igual e esteve


lá para mim quando eu estava dolorosamente sozinha. Como tal,
era como uma amiga para mim. A segunda que eu fiz. Talvez
pudesse dizer até que era a minha melhor amiga. Ver suas
verdadeiras cores não me fez odiá-la. Agora ela também estava
sozinha, e lutando em um país desconhecido, e era minha vez de
ajudá-la.

— Sylphie, o que há de errado?

— Você parece mais natural quando não sorri, Princesa.


— Minha nossa… você é a única pessoa que diria isso para mim
— disse ela com uma risada. Esta também era falsa?

Por outro lado, a pele da Princesa era linda e macia. Eu não


conseguia me comparar a ela, especialmente no momento atual,
toda suada e coberta de manchas de sujeira por causa da minha
corrida.

— Certo. Terminei, Princesa.

— Obrigada. Agora vá tomar banho antes de irmos comer.

Voltei para o meu quarto como me foi dito, pegando o balde e


usando magia para enchê-lo com água morna. O país inteiro era frio
nesta época do ano, então era bom que pudesse usar magia para
coisas como esta.

— Uff…

Um sutiã, hein? A Princesa tinha uma variedade enorme, e eram


todos realmente fofos. A maioria havia trazido consigo, mas alguns
foram comprados com desconto do Reino Asura, por meio de um
lugar chamado Loja Recompanhia, em Sharia, que tinha uma
grande variedade de roupas íntimas entre outras coisas.

Enquanto isso, meu peito continuava plano mesmo para alguém


com sangue de elfo. Depressivamente plano. Rudy havia me
apresentado ao conceito de um efeito genético, mas sério, eu não
poderia ter tido um ancestral bem dotado? Meu cabelo originalmente
verde indicava que havia sangue de demônio em minha linhagem
familiar, e minha mãe era meio-fera, então era abençoada na parte
do peito.
No passado o meu corpo nada feminino não me incomodava,
mas podia fazer alguma diferença no meu futuro. Seria devastador
se me deparasse com alguém de quem gostasse e fosse confundida
com um homem.

— Hmm — suspirei enquanto enxugava meu corpo e me vestia.


Eu estava usando sutiã, é claro. Não achava isso necessário, mas a
Princesa me ordenou que usasse um.

Joguei a água suja em um balde no canto do quarto; o usaria


para depois lavar a roupa.

— Muito bem, hoje vamos com tudo de novo.

Dei uns tapinhas em minhas bochechas antes de sair do quarto.

✦✦✦✦✦✦✦

As aulas eram chatas. A maioria era sobre coisas que Rudy já


havia me ensinado, e acompanhá-las me deixava bem ciente do
quanto ele sabia sobre magia. Mesmo quando eu perguntava sobre
coisas que não estavam no livro de magia, ele respondia na mesma
hora.

Em certo momento tive muitas complicações com magia


combinada, mas a maioria delas se resumia a: “Se você combinar
esta magia e aquela, esse fenômeno ocorre, mas não temos certeza
do motivo.” Pelo visto, ninguém tinha decifrado os códigos por trás
de como a magia combinada funcionava. Mas Rudy o conhecia.
Talvez fossem apenas as suas teorias, mas ele explicava de
maneira que eu podia entender, e a maioria delas me fazia mais
sentido do que as da professora.
— Ei, Sylphie, qual é o princípio operacional por trás dessa
magia?

— Ah, isso… se você pegar uma pedra que ficou vermelha em


uma fogueira e colocar em uma panela, a água também esquenta,
certo? É o mesmo conceito.

Enquanto eu ouvia as palestras enfadonhas e lembrava dos


ensinamentos de Rudy, a Princesa ocasionalmente me fazia
perguntas e eu respondia. Ela era apaixonada pelos estudos,
mesmo com essas coisas podendo não ser muito úteis quando
voltasse para casa. Ela não estava apenas tentando tirar boas
notas, estava tentando entender a magia.

Magia combinada era difícil, mas apesar do fato de que muitos


em nosso ano estavam sendo reprovados nesta matéria, a Princesa
estava se esforçando muito. Ver a sua paixão era cativante. Eu
gostava de pessoas otimistas e apaixonadas pelos estudos. Rudy
era assim, e eu gostava de pessoas que me lembravam dele.

Estava satisfeita com minha posição atual em parte porque


considerava a Princesa uma amiga, mas também porque não me
importava em servir a alguém. Para simplificar, gostava mais de
fazer as coisas para as outras pessoas do que para mim mesma. A
Princesa e meu amigo às vezes pareciam frustrados com isso,
dizendo-me para formar minhas próprias opiniões, recomendando
que eu encontrasse coisas que gostasse de fazer por mim mesma.
Mas não havia nada que eu quisesse fazer. Meus pais
desapareceram durante o Incidente de Deslocamento, mas já
tinham sido encontrados. Ou melhor, descobri que eles morreram.
Se encontrasse algo que queria fazer, voltaria minha atenção para
isso. Até então, ficaria contente em ajudar alguém como a Princesa,
que tinha grandes planos e grandes ambições.

— Sylphie, Sylphie!

— Pois não, Princesa?

— A próxima aula é de habilidades práticas. Com o que você


está sonhando aí?

— Ah, sim. Entendo.

O corpo discente da universidade era diversificado. Muitos eram


do Reino de Ranoa, do Ducado de Basherant e do Ducado de Neris,
mas também havia aqueles humanos, como a Princesa, que saíram
de seus países distantes do Continente Central para estudar no
exterior. Havia gente-fera e elfos da distante Grande Floresta e
demônios do Continente Demônio. Além dos humanos, muitos dos
alunos eram mestiços, então me misturei bem.

O dormitório era totalmente mobiliado e, contanto que a taxa de


matrícula fosse paga, garantiriam as necessidades diárias dos
alunos. Além disso, as pessoas poderiam entrar na Guilda dos
Magos após se formarem. Se alguém fosse membro da Guilda dos
Magos e tivesse um diploma da Universidade de Magia, se tornar
um professor em escolas de outros países seria fácil.

A aula de habilidades práticas era sobre como realmente usar a


magia que aprendia nas aulas, mas focava principalmente em
batalhas simuladas. Fazer essa aula com ex-aventureiros era
particularmente interessante. Podiam não melhorar as notas nas
matérias teóricas, mas nelas todas as pessoas poderiam mostrar
suas verdadeiras habilidades no campo de batalha. Elas eram
duras, diretas e práticas.

— Você está forte como sempre, Mestre Frict. Se não for muito
incômodo, se importaria em me dar alguns conselhos?

— Você estava meio passo lenta demais para tomar a iniciativa.


Não pode pressionar o seu oponente caso seu ataque não o
alcance. Fique mais perto — instruiu ele.

Frict era o mais velho da nossa classe. Ele tinha cerca de 46


anos, eu acho. Usava um longo cajado reforçado com aço, e
durante as batalhas simuladas entoava feitiços enquanto avançava
rapidamente, às vezes parando os encantamentos para golpear o
oponente com seu cajado ou chutá-lo. Os outros alunos se
ressentiam dele por usar ataques corporais, embora devêssemos
estar praticando magia, e o evitavam em batalhas simuladas.

Eu, pessoalmente, não via problemas. Frict era o único que


levava as batalhas simuladas a sério. Elas eram conduzidas dentro
de círculos mágicos, que eram bem grandes, mas ainda
apresentavam uma limitação. Dadas as circunstâncias, fazia mais
sentido avançar contra o oponente e acertá-lo do que parar de se
mover e ficar trocando ataques mágicos.

Quando éramos mais jovens, Rudy treinava como se cada


batalha fosse real. Eu estava convencida de que essa era a
abordagem certa. Queria seguir o exemplo de Frict e, portanto, o
procurava ativamente como oponente durante batalhas simuladas.

A propósito, o objetivo do Mestre Frict era se tornar um professor


universitário. Eu admirava pessoas que sabiam o que queriam da
vida.

✦✦✦✦✦✦✦

Assim que a aula terminou, voltei a cuidar da Princesa. Ela e os


outros estavam constantemente trabalhando para alcançar suas
ambições e, embora eu não entendesse tudo o que estava
acontecendo, ajudava no que podia.

— Hoje vamos fazer compras.

— Entendido.

Pelo visto ela não tinha planejado nada de demais para o dia. Às
vezes, tirávamos um dia para relaxar após uma grande discussão
em grupo, embora esses dias fossem poucos e raros, dependendo
inteiramente dos caprichos da Princesa. Bem, chamar isso de
capricho não era completamente correto – era algo que ela decidia
após levar nossos estados mentais em consideração.

Viajar para um país tão distante e desconhecido tinha afetado


seus seguidores. A Assistente da Princesa teve algo parecido com
um colapso nervoso, e eu fiquei terrivelmente triste quando descobri
que meus pais estavam mortos. Essas pausas visavam uma
mudança de ritmo, para garantir que não fôssemos tão oprimidos
pela tristeza a ponto de nos tornarmos inúteis.

— Você vai sair vestida assim?

— Não há propósito em usar roupas elegantes quando é


exatamente isso que vamos comprar.
Normalmente, a Princesa e sua Assistente se vestiam com
esmero, mas por algum motivo ficavam indiferentes a respeito de
suas roupas quando iam às compras. Enquanto isso, apenas entrar
na loja favorita da Princesa me deixava incrivelmente constrangida
sobre como parecíamos aos olhos dos outros.

— Vamos, por favor, se apresse.

Um punhado do nosso pessoal a acompanhava enquanto


saíamos da universidade e caminhávamos pela estrada principal.
Quando a Princesa, seu Cavaleiro e sua Assistente se moviam em
grupo acabavam chamando a atenção de todos ao redor. A Princesa
era linda, o Cavaleiro arrojado e a Assistente estonteante.

Eu seguia atrás, mas poderia dizer que os olhares de todos


ficavam colados na Princesa. Ela se tornou conhecida na cidade.
Assim como planejado. Fiquei meio feliz em pensar em como ajudei
para que isso acontecesse.

— Ah. — De repente, lembrei do meu percurso de corrida


durante a manhã. — Se vamos até a loja de roupas, sei um bom
caminho para tomarmos. Deve ser um atalho.

— Verdade? Bem, então, por favor, nos guie.

O sorriso da Princesa era brilhante. Percebi isso enquanto a


guiava pelo caminho que acabara de descobrir naquela manhã.

— Ahh, então realmente havia uma estrada aqui… Não é muito


conveniente considerando o quão complexa e estreita é, mas tem
seu charme.
— Considerando a idade dos edifícios, deve ser um resquício da
cidade de quando foi construída — comentou o Cavaleiro enquanto
olhava ao redor.

Sharia era uma cidade antiga. Nos dias atuais, com a


universidade em seu centro, desenvolveu distritos comerciais fáceis
de localizar. Mas quando foi construída, não era tão bem dividida.
Há muito tempo, quando a Guilda dos Magos tinha uma fortaleza no
local, suas ruas eram intrincadas e complexas. Enquanto fazia parte
de Ranoa, Sharia se situava bem na fronteira com Basherant e
Neris, e sua disposição labiríntica foi projetada para impedir a
possibilidade de invasão de outros países.

— E eu aqui tinha certeza de que você não estava prestando


atenção nas aulas, Luke.

— Não, isso só é algo que aprendi com uma garota com quem
saí no outro dia. Algumas delas são bem informadas.

O Cavaleiro estava coletando informações sobre a cidade de


uma maneira diferente da minha. Eu não pensava muito em seus
métodos, mas os encontros constantes com garotas provavelmente
faziam parte de seus próprios cuidados.

— Tente não brincar tanto a ponto de ser esfaqueado pelas


costas.

— Sou um homem da casa Notos. Me certifico de sempre me


manter longe de qualquer criadora de problemas.

Um homem da casa Notos, hein? Pensando bem, o sangue


Notos também corria em Rudy, certo? Ele provavelmente também
era um mulherengo. Lembrei de como sua atitude em minha relação
mudou no momento em que descobriu que eu era uma garota. Ele
provavelmente continuaria correndo atrás de saias mesmo depois
de se casar com alguém. Seu pai certamente o fez.

Eu não era fiel da crença Millis, mas se fosse me casar, queria


que meu parceiro se concentrasse em mim e apenas em mim. Mas
Rudy provavelmente não gostaria disso, então eu teria que manter a
mente aberta no caso de nos casarmos. Se ele levasse outra garota
para casa, o melhor que eu poderia fazer, como sua esposa, seria
reconhecê-la e me dar bem com ela. Se houvesse mais de três de
nós, eu agiria como a mediadora para impedir que todas brigassem
– espera, não, não, não. Esposa? Para começar, por que eu estava
presumindo que me casaria com o Rudy?

— Sylphie, o que há de errado?

— Nada, não foi nada. Uh, por aqui. — Abandonei minhas


ilusões selvagens quando a Princesa me fez uma pergunta. Não
conseguia acreditar no quanto eu era idiota, sonhando com um
futuro impossível. Um suspiro fez meus lábios tremerem.

— Ah, então é até aqui que isso leva. Com certeza é um atalho
— disse a Assistente, surpresa ao sairmos do beco. Nosso destino,
a loja de roupas, estava diante de nossos olhos.

— De fato. Esta é uma grande conquista, Sylphie.

— Ehehe. — Cocei minha bochecha quando a Princesa me


elogiou e entramos na loja.

✦✦✦✦✦✦✦
Depois do jantar voltei para o meu quarto. Quando deu a hora de
dormir, olhei para a roupa de baixo estendida acima da minha cama.
Um sutiã e uma calcinha combinando.

— Hmm…

Mais cedo, na loja, a Princesa foi direto para a seção de roupas


íntimas. Então, depois de uma intensa discussão com a Assistente,
compraram roupas íntimas para mim. Isso mesmo. Para mim.

— Você precisa ter uma roupa íntima mais sexy, Sylphie, para se
sentir confiante e assumir o controle quando chegar a hora certa —
disse ela. Talvez tivesse me escutado resmungando comigo mesma
durante a manhã. Ainda assim, o que diabos quis dizer com “quando
chegar a hora certa”?

Me forçaram a experimentar os itens da loja. Falar isso pode


parecer arrogância, mas achei que o conjunto, com seu tecido
verde-claro e flores de renda, me caía muito bem. Meu corpo ainda
estava tão esbelto que poderia ser confundido com o de um garoto,
então não poderia dizer que eu ficava sexy, mas… talvez, se Rudy
visse, poderia pensar ao menos que eu ficava bonita.

— Rudy, hein?

Talvez eu quisesse me dar bem com ele. Era graças a ele que
minha vida estava como estava. Queria ser amiga dele e retribuir o
favor – não, não era exatamente isso. Não era só isso. Esses
sentimentos com certeza não eram derivados só de gratidão. Eu
provavelmente… sim, acho que queria mesmo…

—…
Meu rosto esquentou quando cheguei a uma conclusão.
Mergulhei na cama como se estivesse tentando me livrar dela e
abracei o cobertor. Me enrolei em forma de bola, resistindo à
vontade de rolar para lá e para cá.

Eu já sabia o que fazer. Finalmente descobri. Mas então, de


repente, percebi algo. Quando isso aconteceu, fechei a mandíbula
com força.

— O que eu faço…?

Fechei meus olhos após deixar essas palavras escaparem.

Naquela noite não dormi muito bem.


Capítulo 04:
O Começo da Minha Vida Escolar
Passou um mês desde a minha matrícula. A vida escolar de
Rudeus Atoleiro era monótona. Primeiro acordava pela manhã,
depois, como de costume da rotina diária, começava o treinamento.
De acordo com um mangá que li na minha vida anterior, existia um
homem que fazia flexões e agachamentos cem vezes, corria dez
quilômetros todos os dias e sacrificou seu cabelo para obter força
suficiente para se tornar o mais forte do mundo. Eu não queria
perder o meu cabelo, então tive que trabalhar um pouco mais duro
do que ele. Praticando especificamente com a minha espada de
madeira. Esse treinamento só tinha efeito porque continuei o
fazendo diariamente.

Pelo visto, havia outros na universidade que também eram


apaixonados por exercícios, já que vi uma garota indo correr de
novo pela manhã. Não vi seu rosto porque seu chapéu estava
puxado por cima dos olhos, mas ela parecia em forma, embora um
pouco magra.

Depois de voltar para o meu quarto, fiz um pouco de treinamento


mágico. Eu estava fazendo uma nova estatueta pela primeira vez
em muito tempo. Zanoba continuou me perseguindo para lhe
ensinar minhas habilidades, então isso meio que servia como uma
revisão para mim. Eu não tinha feito muito progresso com ela, ainda
mais com Zanoba continuamente me interrompendo para me
chamar para o café da manhã. A ordem para se servir no refeitório
do dormitório era determinada pelo ano letivo e posição social, mas
eram tolerantes com os prazos. Afinal, pela manhã estavam todos
ocupados.

Após a refeição, me separava de Zanoba e ia para a biblioteca.


Minha pesquisa sobre teletransporte tinha ficado interessante.
Quando o sino do meio-dia tocava, Zanoba e eu almoçávamos
juntos. Ele me fazia perguntas sobre coisas que não entendia nas
aulas, e eu respondia da melhor maneira possível. Ele estava tendo
apenas aulas de magia da terra, mas ainda estava, à sua maneira,
trabalhando duro.

Comíamos nossas refeições do lado de fora. Elinalise às vezes


aparecia, mas Zanoba aparentemente não parecia um “homem
bom” aos seus olhos, então ela se retirava bem rápido. Perguntei
como ela estava lidando com sua situação, já que não tinha
permissão para levar homens para o dormitório feminino, então me
disse que ia à cidade durante as noites para matar a sede. Um vigor
impressionante.

Por outro lado, o refeitório tinha uma grande variedade de


comidas que atendia ao meu paladar. Tinha coisas como
nanahoshiyaki (o pseudo-karaage), além de algo que tinha gosto
parecido com curry, chamado sopa de kerry. Não era incrível, mas
eu gostava por o gosto ser parecido com algo da minha vida
anterior. Eles definitivamente mantinham um menu que as várias
raças no local poderiam desfrutar.

À tarde, eu tinha aulas sobre os fundamentos da magia de cura,


magia divina e magia de barreira. A magia divina era especialmente
eficaz contra criaturas do tipo fantasma ou bestas com forma
gasosa. Do ponto de vista teórico, achei que era provavelmente
semelhante ao Atrapalhar Magia, usando a mana em sua forma
mais bruta para atingir o oponente. Dado isso, apenas bater em algo
com mana pura não causaria nenhum dano, então deveria haver
algo mais. Eu talvez pudesse entender esse tipo de coisa se tivesse
sido um exorcista na minha vida anterior. Assim sendo, estava
aprendendo apenas a teoria por trás das coisas e memorizando
todos os encantamentos.

Aprendi que seria necessário mudar o tipo de magia em uso para


combater alguns oponentes. Se alguém quisesse se tornar um
mago habilidoso em magia divina, ser capaz de analisar o oponente
seria importante. Mas esse requisito também não se aplicava além
da magia divina? Por falar nisso, espadachins de primeira linha
aparentemente podiam cortar os fantasmas. Não havia necessidade
de análises. Eu tinha visto uma série de bestas do tipo fantasma
enquanto operava como aventureiro, mas nunca um espadachim
capaz de cortá-las.

A magia de barreira era, como o nome indicava, magia em que


se cria uma parede protetora. Elas eram construídas usando
basicamente círculos mágicos, mas no nível iniciante também
poderiam ser criadas por meio de encantamentos. Escudo Mágico
tinha o poder de isolar chamas ou frio e reduzir o efeito dessas
coisas. Os tijolos resistentes à magia da universidade, bem como a
lareira da pousada, provavelmente foram desenvolvidos com essa
magia como princípio.

Se havia um escudo que podia proteger contra magia, não devia


ter também um para proteger de ataques físicos? Quando perguntei
sobre isso aos professores, me disseram que a crença Millis
possuía os direitos tanto da magia divina quanto da magia de
barreira, então a universidade só poderia ensinar os níveis básicos
de ambas. Pelo visto, o Escudo Físico era um feitiço de nível
Intermediário, e não algo que eu poderia aprender. Os professores
poderiam até usar a magia e ensinarem a fazê-la, mas isso seria
ilegal. Se violassem a lei e fossem pegos, a crença Millis iria caçá-
los e levá-los a julgamento.

Na verdade, no passado a universidade costumava não ter


permissão sequer para ensinar o básico dessas escolas de magia.
Foi apenas há cerca de dois anos, depois de concordar com certas
condições, que receberam permissão. Dadas essas circunstâncias,
disseram-me que a classe iria se concentrar em como quebrar
barreiras.

Havia dois tipos de barreiras, aquelas à prova de magia e


aquelas à prova de objetos físicos. Uma vez que uma pessoa fosse
de nível Santo ou acima, poderia criar barreiras que combinavam os
dois aspectos. Havia também vários outros usos, como uma barreira
para se proteger e uma barreira para trancar algo dentro.

Minha antiga professora Roxy também me ensinou sobre


barreiras, mas na época, fiquei satisfeito apenas com o
conhecimento de que existiam, e meio que me desliguei do resto do
que ela disse. Portanto, seria bom revisar e pedir para que alguém
me explicasse as coisas de novo.

Voltei para a biblioteca assim que a aula acabou. Lá, passei meu
tempo pesquisando o teletransporte até ficar escuro do lado de fora.
Eu, tecnicamente, procurei em toda a literatura, mas como resultado
da magia de teletransporte ser rotulada como uma arte proibida, não
havia nada detalhado. O livro sobre o qual Mestre Fitz havia me
falado, Uma Consideração Exploratória sobre Teletransportação em
Labirintos, poderia ser a informação escrita mais extensa dentre as
disponíveis.

Depois disso, voltei para casa, para o dormitório, jantei e, depois


de trabalhar um pouco na estatueta, fui para a cama. Meu estilo de
vida tinha entrado em um ritmo e eu estava começando a me sentir
relaxado, mas o apetite do meu homenzinho, ou melhor, a falta dele,
permanecia igual. A aula de magia de cura nunca tocou em nenhum
assunto relacionado à IS2, é claro, e também não havia livros sobre
como curar tal condição na biblioteca.

Não havia nenhum sinal de que eu iria me recuperar.

✦✦✦✦✦✦✦

Então, um dia, algo aconteceu.

Já era noite e eu estava na biblioteca pesquisando teletransporte


quando o Mestre Fitz se aproximou com seu cabelo branco e óculos
escuros. Ele usava uma capa um tanto elegante sobre o uniforme
atribuído à escola, botas de aspecto resistente e luvas brancas e
justas. Eu já tinha me encontrado com ele em várias ocasiões, mas
parecia que estava usando sempre as mesmas coisas.

— Rudeus, se importa se eu me sentar ao seu lado?

— Sentar ao meu lado? Isso faz parecer que somos estranhos.


Aqui, por favor, sente-se. Esquentei para você.

— Ahaha, sinto muito pelo incômodo. — Mestre Fitz mostrou um


enorme sorriso e se sentou. Ele parecia ser perito em se adequar a
situações sociais. Assim que troquei de lugar e continuei a minha
leitura, ele espiou para ver o que eu tinha em minhas mãos. — Está
fazendo algum progresso?

Já fazia uma semana desde que tocamos no assunto. Eu estava


diariamente vasculhando os livros sobre teletransporte.

— Agora eu sei que aparentemente aconteceram outros


incidentes no passado que se assemelham ao da Região de Fittoa
— falei. Afinal, Fitz havia me dado uma vantagem em minha
pesquisa, então decidi compartilhar o que descobri, essa era uma
forma de mostrar minha gratidão. E, de qualquer forma, não era algo
que valesse à pena esconder. — Não foi em uma escala tão grande
quanto o Deslocamento de Fittoa, mas houve casos de pessoas que
desapareceram abruptamente em um dia e, de repente, retornaram
no outro.

Em outras palavras, foram levadas. Uma única pessoa


desaparecia e reaparecia em outro lugar ou reaparecia no mesmo
lugar. Este fenômeno era bastante comum… bem, não exatamente,
mas parecia acontecer às vezes.

— Será que isso é a mesma coisa que o teletransporte da


Região de Fittoa?

— Difícil de dizer… hm? — Quando por acaso olhei o que estava


nas mãos do Mestre Fitz, percebi que ele segurava um livro sobre
teletransporte. — Você está tentando me ajudar?

Quando perguntei ele balançou a cabeça.


— Não. Também estou investigando o Incidente de
Deslocamento.

— Então é isso. Por que está tendo esse tanto de trabalho? A


Princesa Ariel te ordenou a isso?

— Não exatamente… — Ele colocou a mão no queixo como se


estivesse considerando sua resposta e os cantos de seus lábios se
ergueram enquanto ria. Sua risada foi de autodepreciação. — Para
dizer a verdade, um dos meus conhecidos desapareceu durante o
incidente.

— Ah, uh, não sei nem o que dizer… — Lembrei da lista dos
falecidos no Campo de Refugiados; das centenas de nomes que
constavam nela. Passaram-se cinco anos desde o desastre. A
chance de sobrevivência para os desaparecidos era basicamente
zero. Eu tinha certeza de que o conhecido do Mestre Fitz e qualquer
outra pessoa que ainda estivesse desaparecida provavelmente já
estava morta. Eu fui um dos sortudos, já que minha família inteira
ainda estava viva.

— Ah, na verdade, recentemente descobri que ele ainda está


vivo — disse Fitz.

— Hã? Ah, sério?

— Sim. Eu estava pesquisando sobre teletransporte enquanto


pensava que, se pudesse descobrir o padrão por trás de onde as
pessoas foram teletransportadas, isso tornaria a busca mais fácil. É
por isso que estava pesquisando.
Um padrão para onde as pessoas eram teletransportadas, hein?
Interessante, eu nunca havia chegado a considerar isso.

— Incrível como sempre, Mestre Fitz. Essa é uma ideia


perspicaz.

— Não, na verdade não é nada de especial. Além disso, de


qualquer forma, não fui capaz de procurá-lo — respondeu ele,
deixando sua cabeça cair.

Com base no que eu ouvi, a Segunda Princesa perdeu seu posto


aproximadamente um ano após o Incidente de Deslocamento. É
claro que deviam existir sinais de que ela estava seguindo pelo
mesmo caminho há mais tempo, e como seu guarda-costas, Mestre
Fitz deve ter ficado muito ocupado durante todo o tempo.

— Isso não é culpa sua.

As pessoas tinham seus próprios deveres a cumprir. Ele não


poderia simplesmente a abandonar para sair em sua própria busca.
Na verdade, até usou sua posição para acessar a biblioteca da
universidade e conduzir pesquisas sobre o incidente. O fato de
saber que seu conhecido havia sido encontrado também indicava
que estivera coletando informações. Ele tinha sua própria vida para
viver e trabalho para fazer, mas mesmo assim fez o que pôde. Na
minha opinião isso era o suficiente.

— Em vez de ficarmos pensando no passado, vamos pensar no


que fazer daqui em diante. Assim sendo, seria possível você me
contar o que já descobriu, Mestre Fitz?
— Sim, claro. Posso juntar as minhas descobertas e trazer tudo
amanhã. Mas não espere muita coisa. Não sou muito bom com
pesquisas, então não posso descobrir as coisas tão rápido quanto
você.

Ele não parecia muito confiante. Fitz mencionou que estava no


quarto ano, certo? Ele estava frequentando as aulas, atuando como
guarda-costas e, pelo que eu tinha ouvido no outro dia, também
realizando tarefas rotineiras para a Princesa Ariel. E também
mencionou que estava envolvido com o Conselho Estudantil.
Mesmo com tudo isso acontecendo, ainda realizou sua pesquisa,
recusando-se a fugir do assunto com a desculpa de que estava
“muito ocupado”. Aos meus olhos isso o tornava incrível.

— Eu só tenho mais tempo para gastar com isso do que você —


assegurei a ele. Afinal, estava gastando todo o meu tempo até o
meio-dia para investigar o assunto. Na verdade, tinha visto o
epicentro do desastre e, com meu conhecimento de minha vida
anterior, tinha alguma habilidade para prever coisas.

— Uh, um… ei, Rudeus. Queria falar sobre uma coisa com você.
— Fitz de repente começou a coçar a parte de trás da orelha
enquanto olhava para o próprio colo e murmurava.

Inclinei a cabeça.

— Sim, pois não? — Eu também devia a ele por ter me ajudado


no outro dia. Seja lá o que fosse, queria que ele se sentisse à
vontade para falar comigo.

— Gostaria que você me deixasse ajudar em sua pesquisa sobre


o Incidente de Deslocamento.
Me senti incrivelmente honrado com sua oferta.

— Não, na verdade eu que deveria te ajudar. Sou eu quem


começou a pesquisar depois. Não tenho nem muitas informações
sobre o assunto.

— Mas não tenho muito tempo para me dedicar a isso. Mesmo


que façamos uma parceria, a maior parte do trabalho ficará para
você. Isso te… incomoda? Ter alguém como eu, que só aparece de
vez em quando, se intrometendo na sua pesquisa.

Se alguém que mal usa o tempo para ajudar e aparecesse só


para criticar o meu progresso eu ficaria incomodado, mas ele não
parecia o tipo de pessoa que faria isso. Além disso, provavelmente
seria melhor ter alguém pensando de uma perspectiva diferente do
que trabalhar em tudo sozinho, certo? Eu não era tão inteligente, e
Fitz era considerado um gênio, então poderia encontrar algo nos
dados que juntei.

— Isso realmente não me incomoda. Fico ansioso para


trabalharmos juntos.

— Sim, eu também.

Apertamos as mãos e ele me mostrou um sorriso cheio de


dentes. O olhar em seu rosto, combinado com a suavidade de sua
mão, fez meu coração disparar.

Eu estava mesmo me sentindo assim por causa de um cara…?


Não, isso era um absurdo. Minhas emoções só estavam um pouco
desordenadas.
Depois daquilo, reuni o que pesquisei durante o dia e fui para
casa. Quando saímos da biblioteca, já estava ficando escuro do lado
de fora. Mestre Fitz e eu conversamos um pouco enquanto
caminhávamos em direção aos dormitórios. Ele se mantinha
ocupado diariamente entre ser o guarda-costas e fazer as tarefas
para a Princesa, mas uma vez a cada dez dias tinha algum tempo
livre durante a noite.

— Aliás, te vi na hora do almoço. Você estava incrível.

Almoço? Inclinei minha cabeça diante da palavra. O que eu


estava fazendo?

— Fiquei chocado ao ver Zanoba Shirone seguindo você como


um cachorrinho.

— Hah… — Por almoço ele quis falar de quando estávamos


comendo no nosso terraço instantâneo, banhados pela atenção de
todos os outros estudantes.

— Você pode não saber disso, mas quando ele se matriculou,


era um encrenqueiro violento que saía por aí brigando com todo
mundo.

Ri amargamente ao ouvir a parte do “encrenqueiro”. Eu já devia


ter adivinhado isso. Parecia que, no final das contas, ele não estava
sendo intimidado. O que fazia sentido: alguém que podia arrancar a
cabeça de uma pessoa com as próprias mãos não seria intimidado
com tanta facilidade.

— Embora ele tenha eventualmente se acalmado, depois que a


Linia e a Pursena, duas estudantes mal-comportadas, o surraram.
Então, pelo visto, aquelas duas eram as líderes dos delinquentes.
Elas desafiaram o novo aluno, Zanoba, que estava o tempo todo se
impondo e conseguiram derrotá-lo com bastante velocidade, duas
contra um. Considerando o quão forte ele era, eu não chamaria isso
de injusto. Depois disso, elas começaram a tratá-lo como seu
subordinado. Entretanto, eu ainda não tinha testemunhado isso.

— Linia e Pursena podem tentar algo contra você, então tome


cuidado — avisou Fitz.

— Acho que posso não ter problemas com isso. — Eu já tinha


agido com deferência para com elas. No momento, duvido que
estivessem planejando alguma coisa pelas minhas costas. Eu não
tinha certeza de onde as delinquentes se reuniam, mas quase
nunca as via no refeitório.

— Um, bem, eu não acho que iriam gostar muito de você se


encontrando comigo.

— E qual seria o motivo para isso? — perguntei.

— Bem, quando ainda éramos do primeiro ano, elas tentaram


interferir com a Princesa Ariel. Então tomei a frente e derrotei as
duas.

— Duas contra um?

— Sim. É por isso que elas… Bem, podem ter algum


ressentimento.

Então era isso. Ainda assim, baseado no que ele estava dizendo,
Mestre Fitz era bastante forte. Ele derrotou Linia e Pursena, que
haviam derrotado Zanoba. Ei, espera aí. Isso significava que eu era
o mais forte desde que derrotei o Mestre Fitz, certo?

Nah, sem chances. Só foi azar. Eu poderia usar Atrapalhar


Magia, então me dava bem contra oponentes que poderiam usar
magia não verbal. O fato de meu oponente ser pego de surpresa
também funcionou a meu favor. Se ele soubesse que eu usaria o
Atrapalhar Magia quando lutamos, não havia garantia de que eu
teria vencido.

— Mas tenho certeza de que você vai ficar bem — disse Fitz.

— Bem, quem sabe quanto a isso.

— Não há ninguém aqui que pode me derrotar no um contra um.


Nunca perdi uma luta, não até aquele dia — falou ele, me elogiando.

Eu deveria elogiá-lo por sua atitude. Aí estava alguém que nunca


havia perdido, finalmente sentindo o gosto da derrota pelas minhas
mãos. No entanto, ele nem mesmo guardou rancor. Não estava
frustrado por ter perdido?

— Aquela magia… Atrapalhar Magia, era isso? Aquilo foi incrível.


Alguma hora me ensine como usá-la.

— Sim, é claro. — Ficaria feliz em fazer isso. Mesmo que ensinar


o Atrapalhar Magia resultasse em eu não conseguindo voltar a
derrotá-lo, o pensamento de recusar isso nem passou pela minha
mente.

— Ah, bem, de qualquer forma, era isso que eu queria conversar


com você, então tome cuidado. Existem muitas pessoas excêntricas
entre os alunos especiais. Tem o Cliff, que é mal-humorado e, pelo
visto, até o um outro chegou a causar alguns problemas após se
matricular. Também há uma ex-aventureira entre os primeiranistas.
Uma elfa estranha, pelo que me falaram. Dizem que ela está
atacando os garotos.

— Ahh, essa última é uma conhecida minha, então não precisa


se preocupar.

— Ah, então tá bom. — Não tenho certeza sobre os dois


primeiros, mas quanto à última, era definitivamente um tipo de
ataque diferente do que o Mestre Fitz estava pensando. — Em
qualquer caso, terei cuidado na forma como me comporto e vou me
certificar de não começar uma briga com ninguém.

Chegamos a uma bifurcação na estrada. O caminho em frente


levava ao dormitório feminino. Ainda estava claro, mas eu não
voltaria a andar por aquela estrada.

— Ah, tenho alguns negócios com a Princesa Ariel, então vou me


separar de você aqui.

— Tudo bem, obrigado por hoje. Fico ansioso pela nossa próxima
conversa.

— Amanhã não tenho tempo livre, mas vou dar uma passada
pela biblioteca — disse Fitz, antes de caminhar em direção ao
dormitório feminino. Ele tinha entrada livre naquele palácio cheio de
mulheres. A única razão pela qual não senti inveja foi,
provavelmente, por ainda conseguir me lembrar daquele terror
musculoso de outrora.
Ou talvez, apenas talvez, pudesse usar minha conexão com o
Mestre Fitz para me infiltrar naquele palácio, e essa seria a chave
para alcançar meu objetivo final nesta escola. No momento, ainda
não conseguia ver o significado por trás do conselho do Deus
Homem.

E foi assim que eu e o Mestre Fitz começamos a trabalhar juntos


para avançar com a nossa investigação. Achei que tínhamos ficado
mais próximos. Em parte porque ele era mais amigável do que eu
imaginava, mas, de qualquer forma, estávamos construindo uma
amizade positiva. Embora ele ainda estivesse cheio de mistérios.

— A propósito, Mestre Fitz, por que você usa esses óculos de


sol?

— Óculos de sol… ah, está falando destes?

Ele nunca os tirava. Nem uma vez, nunca. Não importa a


ocasião.

— Mm, eu tenho uma razão para isso, mas não posso te dizer.
Foi mal.

— Está tudo bem. — Eu queria ver como seu rosto parecia sem
eles, mas não tinha intenção de forçá-lo a mostrar o que estava
escondendo. — De qualquer forma, em que andar do dormitório
você mora? — perguntei. — Nunca vi você no horário das refeições.

— Um, bem, tecnicamente moro no dormitório feminino. Afinal,


sou o guarda-costas da Princesa Ariel.

— E… isso não causou nenhum problema?


— Está tudo bem, eu tenho permissão. E também não faria nada
que pudesse causar problemas à Princesa Ariel.

Seria possível manter um escravo consigo nos dormitórios, só


precisaria de permissão para isso. E não precisava nem ser um
escravo. Se fosse um nobre ou parte da realeza, um pouco de
compensação financeira ajudaria a seu favor. Afinal, havia alguns
nobres no dormitório masculino que mantinham criadas com eles.
No entanto, se as criadas ou os criados causassem algum
problema, seu mestre seria, é claro, responsabilizado. Mestre Fitz
não era um criado e estava sendo tratado como um estudante, mas
graças ao carisma da Princesa Ariel e à influência da nobre família
Asura, a universidade estava colocando sua confiança nele como
um indivíduo. Mesmo aquela garota – Goliade ou Big Van Vader,
seja lá como foi chamada – falou com respeito ao se referir à
Princesa Ariel ou ao Mestre Fitz, reconhecendo sua autoridade.

Além disso, de acordo com o que Elinalise me contou, Mestre


Fitz era aparentemente muito popular entre as garotas. As que
gritavam ao redor de Luke eram só novatas. Depois de ganhar
alguns níveis de experiência, seus corações estremeceriam quando
vislumbrassem o perfil de Fitz. Tendo realmente falado com ele, eu
não tive a mesma impressão, mas podia entender os motivos delas.

— A propósito, percebi que você fala comigo muito normalmente


— falei.

— Hm…? O que quer dizer com isso?

— Todo mundo diz que você é tão quieto.

— Eu, um… sou realmente muito tímido.


E, ainda assim, tive a impressão de que foi ele quem começou a
conversar comigo. Bem, existiam aqueles que estavam na mesma
sintonia e aqueles que não estavam, diziam, então talvez fosse isso.
De qualquer forma, as pessoas me disseram que era de
conhecimento comum nesta escola que o Mestre Fitz era
chocantemente quieto. Ele até ganhou o apelido de “Fitz Silencioso”
e “Mago Silencioso”. Embora isso provavelmente fosse em parte
porque era um mago que usava magia não verbal.

— Na verdade, seu sobrenome não seria Ryback, seria? —


perguntei.

— Hã? Ryback? Esse não é o sobrenome do segundo Deus do


Norte? Não, de forma alguma. Além disso, não tenho nem
sobrenome. Não sou nobre nem nada do tipo.

— Lá vai você de novo, agindo todo humilde. Seja honesto, você


na verdade é um cozinheiro de primeira, não é?

— Uh, eu sei cozinhar, mas… o que isso tem a ver com qualquer
coisa? — Ele não entendeu a minha piada. E ainda assim riu,
embora eu não tivesse certeza do que estava achando engraçado.
Isso mesmo, o homem misterioso, Fitz, estava rindo.

Por que ele estava me ajudando também era um mistério. Ainda


assim, eu não estava preocupado em desvendar isso. Se Fitz
estava sendo tímido com suas intenções – quaisquer que fossem –
deveria haver uma razão para isso. Eu não tinha a intenção de ser
tão ingrato a ponto de investigar os segredos de alguém que me
ajudou.
Entretanto, estaria mentindo se dissesse que não estava curioso.
Mesmo assim, mantive o conselho do Deus Homem em mente.
Quando o segui, a pessoa que conheci foi o Mestre Fitz. A julgar
pela minha experiência com o Deus Homem até o momento, as
coisas acabariam da mesma forma, não importa quais ações eu
tomasse. Em outras palavras, associando-me ao Mestre Fitz,
acabaria descobrindo como curar a minha doença. Não havia
necessidade para se apressar.
Capítulo 05:
Um Poder Inacessível (Parte 1)
Zanoba Shirone, o terceiro príncipe do Reino Shirone. Uma
Criança Abençoada que possuía um poder sobrenatural desde o
momento em que nasceu. E um pervertido. Um pervertido
inconfundível. Poderiam dizer que era um otaku louco por estatuetas
que levava as coisas longe demais. Quando ele percebeu, já estava
olhando para elas todos os dias, e quando alguma sensação o
atingia, as acariciava suavemente com a mão.

Quando ficava excitado, perdia o controle de seu poder


monstruoso, mas nunca lidaria com suas estatuetas bruscamente.
Pode ter sido seu amor por elas que garantia a segurança das
mesmas.

Amor. Sim, ele amava estatuetas. Era muito parcial com elas.
Havia, por exemplo, uma estátua de bronze de uma mulher nua em
seu quarto. Uma estátua de uma silhueta esguia e ligeiramente
lustrosa de uma mulher que chegou a comprar por impulso quando
a viu no mercado. Quando visitei o quarto de Zanoba pela primeira
vez, foi apenas para vê-lo também totalmente nu, com os braços em
volta da estátua – a culpa foi minha por não ter batido. Ele correu
para vestir as roupas e se curvou para mim, se desculpando por me
mostrar algo tão feio.

Não havia necessidade de ele explicar o que estava fazendo.


Seu amor era anormal. A neve ainda caía periodicamente nos
Territórios Nortenhos e se alguém saísse sentiria frio, então não era
preciso ser um gênio para descobrir o quão gelada uma estátua feita
de metal deveria estar. Ele estava se arriscando a congelar por
causa de seu desejo. Ninguém poderia fingir tanta dedicação.

Ainda assim, eu poderia realmente entender como ele era. Afinal,


fiz coisas semelhantes na minha vida anterior. Dito isso, eu nunca o
perdoaria se tentasse algo com a estátua de Deus (a estatueta da
Roxy).

Pensando bem, não a vi no quarto dele. Me perguntei se tinha a


deixado para trás, em Shirone.

Ou assim pensei, até os acontecimentos daquele dia.

Me deparei com Zanoba de repente se prostrando na minha


frente.

— Mestre, por favor, me ensine como criar estatuetas!

Estava de noite e eu tinha nas mãos o esboço de uma nova


estatueta. No último mês, falei várias vezes para que Zanoba
esperasse um pouco mais. Ele esperou como um cachorro
obediente, mas parecia que sua paciência estava chegando ao
limite.

— Você não me prometeu?! Por que ainda se recusa a me


instruir?!

Zanoba parecia um pouco zangado. Eu não tinha motivos para o


rejeitar, é claro. Eu tinha prometido a ele, e estava refrescando as
minhas habilidades para esse propósito. A razão de ainda não ter
começado era em parte porque as coisas ainda não tinham se
acalmado, e em parte porque não tinha encontrado a oportunidade,
já que isso não estava relacionado ao meu objetivo de principal.
— Zanoba, meu pupilo, esteja avisado que meus métodos de
treinamento são rígidos! — Eu propositalmente adicionei um toque
dramático ao meu discurso. O rosto de Zanoba ficou sério e ele
balançou a cabeça com severidade.

— Claro. Mestre, peço que por favor não subestime a minha


resolução. Mesmo se eu começar a cuspir sangue, ainda juro
aprender as técnicas secretas de sua criação de estatuetas.

— Bom, esse é o espírito.

E foi assim que comecei a ensinar Zanoba a fazer estatuetas.


Usava meu tempo à noite, antes de dormir, e o ensinava por cerca
de uma ou duas horas por dia.

Eu também tinha um motivo oculto. O amor desse homem por


estatuetas era genuíno e, por acaso, ele também era da realeza, o
que significava que era rico. Embora eu já tivesse desistido da ideia,
sua ajuda poderia me permitir adicionar cor às minhas estatuetas e
começar a produzi-las em massa. Este mundo tinha a tecnologia
para criar estátuas de bronze e de estilo ocidental. Se
reapropriássemos essa tecnologia, seríamos capazes de produzir
estatuetas em grande escala, mesmo com a qualidade podendo ser
diferente das originais.

Eu começaria com a produção massiva da estatueta de Roxy.


Depois disso, trabalharia na estatueta de Ruijerd. Escreveria um
livro glorificando a Tribo Superd por sua lealdade, contando a
história do abismo entre um herói que o mundo inteiro reconheceu e
um homem que não foi reconhecido. Retrataria as lutas e conflitos
que ele enfrentou enquanto trabalhava duro, embora as pessoas
não o aceitassem. Então colocaria a estatueta como um item bônus
de venda. Seria um conjunto, um livro com uma estatueta grátis. No
caso de dar certo, poderia lançar outro livro glorificando os feitos de
Roxy.

Sim, isso poderia funcionar! Podia ser algo impossível para se


fazer sozinho, mas apesar de suas falhas, Zanoba ainda era parte
da família real. Ele era cheio da grana e também de paixão. Era o
parceiro de negócios ideal. Havia aquele ditado de não contar com
os ovos enquanto ainda estivessem dentro da galinha, mas eu já
estava fazendo exatamente isso.

— Tudo bem, então vou começar a transmitir minhas técnicas


especiais para você!

— Sim, Mestre!

Nossa criação de estatueta havia apenas começado.

✦✦✦✦✦✦✦

Vamos pular para a conclusão. Ele não conseguia. Zanoba era


incapaz de usar magia da terra não verbal para criar estatuetas.

Havia dois motivos para isso. Um era que não podia usar magia
não verbal, e o outro era que sua capacidade total de mana não
chegava nem perto da necessária.

Para ser sincero, havia muito pouca gente neste mundo que
poderia usar magia não verbal. Os únicos que conheci foram
Orsted, Fitz e Sylphie. Houve outro exemplo nesta escola, um
professor que podia usar magia do vento sem encantamentos, mas
ele tinha morrido no ano anterior.
Eu não tinha percebido, já que fazia isso desde a infância, mas a
magia não verbal era uma técnica de alto nível. Parando para
pensar, nem Eris nem Ghislaine foram capazes de usá-la com
sucesso. Fazia sentido que alguém como Zanoba, que tinha
acabado de começar a aprender magia, não pudesse fazer isso.

O outro problema era sua capacidade de mana. Para mim, criar


estatuetas era uma maneira eficaz de usar minha reserva
infinitamente crescente de mana. Mas, realmente, isso indicava que
criar uma estatueta exigia uma quantidade imensa de poder mágico.
Foi então que percebi pela primeira vez que eu tinha uma reserva
de mana consideravelmente maior do que a maioria das pessoas.

Eu achava que minha reserva de mana fosse um pouco maior do


que a da maioria, mas nunca pensei que a diferença fosse tanta.
Como um aventureiro, vendo outros magos usarem todo o seu
poder mágico, achei que fosse só porque desperdiçavam muita
mana na forma como a usavam. Para demonstrar a diferença nos
números, eu costumava pensar que se um aventureiro normal
tivesse um reservatório máximo de 100, então eu provavelmente
teria cerca de 500 se comparado. Na realidade eu, pelo visto, tinha
muito, muito mais.

De qualquer forma, eu à parte – nunca sonhei que Zanoba não


fosse capaz de formar uma única peça para uma estatueta. Ele
tentou muito. Acordava pela manhã, exauria sua mana até
desmaiar, então acordava e a usava toda ela de novo até voltar a
desmaiar. Suas bochechas ficaram tão fundas que seu rosto parecia
uma caveira cheia de lágrimas e muco escorrendo por ela. O que
ele mais queria fazer era algo para o que não tinha talento. Esse
fato estava claro.

O que fiz com ele? Refleti sobre minhas ações e pedi desculpas.

— Sinto muito.

Zanoba balançou a cabeça e respondeu, cansado:

— Não, se eu fosse mais habilidoso… — Sua aparência era a de


um homem abatido pelo sofrimento. O olhar de um homem tão
derrotado que se afogava na tristeza.

Entretanto, ainda não podíamos desistir.

— Então tá bom, vamos tentar algo diferente — falei.

— Existe outra maneira?! — Zanoba, que momentos antes


estava sofrendo, de repente se recuperou e sentou-se na minha
frente.

— Sim, vamos fazer o melhor que pudermos e usar uma maneira


que não use magia — falei, conjurando um pedaço de terra; argila,
para ser mais específico. — Criei isso com magia, mas você
também deve ser capaz de encontrar na natureza pelo mundo. —
Eu tinha ouvido histórias de um famoso oleiro que se escondeu nas
montanhas, mas as montanhas e florestas deste mundo estavam
infestadas de perigos. Será que existiam bestas feitas com algo
semelhante a argila?

— O que você vai fazer com isso?

— Cinzele isso.
Cinzelamento. Esse era o método mais primitivo, mais confiável,
mas também o mais difícil. Precisaria cinzelar a argila para formar
cada parte. Isso tornaria a criação de estatuetas possível até
mesmo para alguém sem mana. O único problema era que não
tínhamos ferramentas de cinzelamento, mas deveríamos ser
capazes de encontrá-las procurando por itens mágicos no mercado.
Eu já tinha até visto, em algum lugar, uma faca que poderia cortar
pedras como se fossem feitas de manteiga.

— Agora eu entendo, Mestre. Com este método, até eu seria


capaz de criar estatuetas! — Zanoba ergueu a voz em empolgação.
Seu rosto estava cheio de esperança.

Essa esperança, no entanto, foi facilmente destruída dentro de


uma hora.

Ele não era muito hábil com as pontas de seus dedos. Isso era
graças ao poder com o qual nasceu – sua força sobrenatural. Isso
mesmo – sua “bênção” estava atrapalhando. Ele poderia se conter o
suficiente para não quebrar as coisas, mas essa era a extensão do
seu controle. Fazer um trabalho delicado, como cinzelar cada parte
com uma precisão cuidadosa, era difícil para ele.

Zanoba trabalhava duro, dia após dia, com seus olhos ficando
até mesmo vermelho-brilhantes enquanto o fazia. Sua paixão era
genuína. Ele era tão dedicado a criar estatuetas que não dormiu e
trabalhou até a beira da morte. Nada saiu conforme o planejado e
teve que refazer seu trabalho inúmeras vezes. Cada vez que isso
acontecia, chorava, gritava e emitia outros ruídos estranhos.
Finalmente, terminou – uma estatueta que ele mesmo criou, do
zero. Com certeza não era uma obra de arte. Era amadora e
aqueles de meu mundo teriam rolado de tanto rir ou feito memes
dela. Mas eu sabia que isso era uma representação de sua paixão,
então definitivamente não iria rir. No entanto, mesmo sem meu
escárnio, o próprio Zanoba sabia que estava malfeita.

— Mestre, eu não posso fazer isso. Eu… Eu não posso fazer


estatuetas como você! — soluçou ele.

✦✦✦✦✦✦✦

— E foi isso que aconteceu.

Decidi pedir ajuda ao Mestre Fitz. Foi realmente lamentável para


mim, como mestre de Zanoba, revelar suas falhas e pedir o
conselho de um estranho, mas eu queria pedir a sabedoria de outra
pessoa. Senti muita pena do meu pupilo.

— Você está criando… estatuetas? Com magia? — Fitz não foi


capaz de compreender. Estávamos sentados com nossas cadeiras
lado a lado, e ele inclinou a cabeça enquanto ouvia minha história.

— Sim, assim. — Usei magia da terra para rapidamente produzir


uma simples forma humana. O mais discretamente possível, é claro,
já que magia era proibida na biblioteca. A estatueta simples que criei
instantaneamente parecia um sarubobo pelado (um amuleto
vermelho em forma de humano intimamente associado a Takayama,
na Prefeitura de Gifu, uma cidade do meu mundo anterior).

— Uau. Olha isso, que incrível!


O olhar do Mestre Fitz ficou paralisado enquanto examinava de
perto a estatueta que eu havia criado. Então, como se para testar se
ele poderia fazer o mesmo, canalizou mana na ponta dos dedos e
conjurou um monte de lama cuja forma retorcida parecia um slime.

Achei o fato dele tentar imitar o que viu na mesma hora incrível.
Sua magia, entretanto, não tinha assumido a forma esperada. No
final, ele soltou um suspiro cansado e desistiu.

— Não consigo fazer isso — disse.

Bem, minha técnica para criar estatuetas era algo em que


trabalhei diligentemente por um longo período de tempo. Ficaria aos
prantos se ele pudesse copiar após ver uma só vez. Ainda assim,
ele parecia ser capaz de fazer o mesmo no caso de praticar. Afinal,
podia usar magia não verbal.

— Esta não é uma técnica que uma pessoa normal pode imitar
— concluiu Mestre Fitz.

— Verdade. Como método alternativo, pensei que seria possível


tentar cinzelar um monte de argila, mas…

— Mas seus dedos não são hábeis o suficiente para fazer isso —
concluiu Mestre Fitz. Ele cantarolou e colocou a mão no queixo
enquanto pensava. Ele tinha o hábito de fazer isso quando estava
pensando em alguma coisa. Os óculos de sol o faziam parecer
excepcionalmente elegante naquela pose.

Em uma nota semelhante, sempre que estava envergonhado ou


incomodado por algo, coçava a parte de trás da orelha. Esse seu
comportamento era adequado para sua idade e só me tornava cada
vez mais encantado por ele. Certo, ouvi que elfos têm vidas longas,
então não tinham necessariamente a idade que pareciam ter.

— Hmm… ah é! Não tenho certeza se vai ajudar, mas havia


alguém com um caso semelhante ao de Zanoba na capital de Asura.

— Alguém com um caso semelhante, você disse?

— Sim, aquela pessoa tinha algo que queria fazer sozinha, mas
não tinha as habilidades ou técnicas necessárias — comentou
Mestre Fitz.

— Então o que fez?

Quando perguntei, ele hesitou em responder, coçando a parte de


trás da orelha.

— Uh, bem, fez um escravo fazer as coisas.

— Aha.

De acordo com a história do Mestre Fitz, a pessoa na capital


tinha o conhecimento necessário, mas não as habilidades, então
comprou um escravo, mandou alguém ensiná-lo a fazer as coisas e
então aquele escravo criou o que ela queria.

— Com base no que você disse, uh, Zanoba gosta das


estatuetas que você faz e gostaria de ter mais delas, então disse
que quer fazê-las por si mesmo, certo? — esclareceu Fitz.

— Huh…? Foi isso que eu disse?

— Um, não era isso que quis dizer?


Era mesmo esse o caso? Bem, embora um simples entusiasta
por estatuetas pudesse as pintar ou remodelar, não pensaria em
tentar fazer uma do zero. O máximo que fiz na minha vida anterior
foi me divertir um pouco com remodelação nua.

— Tenho certeza de que Zanoba gostaria que você se tornasse


seu criador pessoal de estatuetas, mas ele sabe que isso é
impossível, então provavelmente é por isso que está pedindo para
ensiná-lo.

— Na verdade, não acho que isso seja impossível — acrescentei.


Eu poderia morar no Palácio Real Shirone, empregado por Zanoba,
fazendo estatuetas todos os dias. Essa não seria uma maneira ruim
de viver a vida. Trabalhar em um palácio real também me garantiria
uma boa renda. Pensando nisso, quanto será que o Mestre Fitz
recebia da Princesa Ariel? Achei que seria rude perguntar. — Bem,
vou tentar sugerir essa opção para o Zanoba. Obrigado pelo
conselho.

— Sim, de nada.

Abaixei a cabeça e Mestre Fitz me deu um sorriso cheio de


dentes.

Por que me senti tão abalado quando vi aquele sorriso? Isso era
um mistério. Um mistério do já misterioso homem conhecido como
Fitz.

✦✦✦✦✦✦✦

Compre um escravo, ensine-lhe a técnica e peça-lhe que crie


uma estatueta. Quando mencionei esse plano para Zanoba, ele logo
se animou e começou a planejar com alegria a compra de seu
escravo. Por mais que isso tenha me surpreendido, a proposta de
Fitz de ter um escravo voltado para isso era um método amplamente
aceito neste mundo.

Ainda assim, como estávamos em uma relação mestre-pupilo,


Zanoba disse que achava que seria rude pedir que eu ensinasse a
um escravo no lugar dele. Afinal, este era o homem que jurou desde
o início que aprenderia a fazer sozinho, mesmo que cuspisse
sangue. E foi por isso que nunca propôs o método, mas ficou
aliviado quando o sugeri.

— E então decidimos ir ao mercado de escravos durante as


férias do próximo mês. — Eu estava mais uma vez agradecendo ao
Mestre Fitz pela sua ajuda. Fiquei muito grato por ter alguém de
quem pudesse pedir conselhos quando precisasse.

— Isso é bom. Espero que encontre um adequado. — A


conversa parecia ter acabado, mas o Mestre Fitz parecia um pouco
inquieto. — Ah é, também vou estar livre nas férias do próximo mês
— disse ele.

— Ah, sério?

— Sim, então, um, já que não tenho nada para fazer, estava
pensando em ir na cidade, mas realmente não tenho nenhum lugar
em particular para ir, ou quaisquer amigos, então acabaria
sozinho…

Ele estava desesperadamente insinuando algo com suas


palavras. Seria boa ideia um guarda-costas como ele ir para a
cidade? Não precisava estar ao lado da princesa para o caso de
algo acontecer? Bem, não é da minha conta. Luke provavelmente
encontraria uma maneira de fazer tudo dar certo.

— Uh, você gostaria de ir conosco durante as férias do próximo


mês? — perguntei.

— Você não se importa? Não vou atrapalhar?

— De forma alguma. E, como forma de agradecer pelo seu


conselho, vou te pagar uma refeição.

— Sério? Então ficarei feliz em aceitar essa oferta — disse


Mestre Fitz, me mostrando aquele sorriso cheio de dentes enquanto
ria.

Foi assim que nós três acabamos indo para o mercado de


escravos. No próximo episódio: Uma flor em cada mão?! Uma
aventura às compras de tirar o fôlego com o elfo sorridente e o
príncipe com força sobrenatural!

Brincadeira.
Capítulo 06:
Um Poder Inacessível (Parte 2)
— Prazer em conhecer. Eu sou, um, Fitz.

Mestre Fitz estava um pouco nervoso ao conhecer Zanoba.


Zanoba, por outro lado, marchou direto para ele.

— Sou o Terceiro Príncipe do Reino Shirone, Zanoba Shiro…


Aaah!

Ele estava agindo de forma tão arrogante que o acertei nos


joelhos, forçando-o a se curvar. Eu normalmente não policiava como
as pessoas se comportavam com um superior, mas Fitz era um
veterano, e Zanoba com certeza poderia abaixar um pouco a
cabeça em seu primeiro encontro.

— Zanoba, foi o Mestre Fitz quem propôs a solução à qual


estamos recorrendo. Mostre o devido respeito.

Quando eu disse isso, Zanoba se curvou exageradamente.

— Entendido, Mestre. Prazer em conhecer. Meu nome é Zanoba


Shirone, Terceiro Príncipe do Reino Shirone.

— N-não, você não tem que ser tão, um… formal. Você é um
membro da família real, então, por favor, não faça cerimônia. —
Mestre Fitz acenou freneticamente com as mãos enquanto se
posicionava atrás de mim.

Zanoba arregalou os olhos. Existia uma grande distância entre:


a) os rumores sobre Mestre Fitz, b) a aparência do Mestre Fitz, e c)
seus maneirismos e modo de falar. Ele era chamado de Fitz
Silencioso e era temido como um mago que podia usar magia não
verbal, mas quando em uma conversa, ele era como qualquer outra
pessoa de sua idade. Um bom veterano que cuidava de seus
juniores.

— Bem, agora que vocês dois se conheceram, vamos indo. —


Com isso, nós três nos movemos.

O mercado de escravos ficava no Distrito do Comércio. A compra


e venda de escravos era um assunto tratado de forma silenciosa no
Continente Millis e na região sul do Continente Central, mas nos
Territórios Nortenhos as coisas funcionavam de outra forma. Nesse
lugar, a maioria dos países havia legalizado o comércio de escravos,
e isso era uma parte fundamental da economia.

As pessoas se tornavam escravas por vários motivos. Havia


aquelas que ficaram órfãs durante as guerras. Havia aquelas que
foram vendidas pelos pais quando as colheitas foram mal e não
tiveram outra opção. E também aqueles que se venderam para
salvar a família. Corria até o boato de que existia um retiro de
escravos nas partes mais sombrias da Guilda dos Ladrões. As
Nações Mágicas eram geralmente prósperas o suficiente para que
seus cidadãos nunca tivessem que recorrer a tais meios, mas mais
ao leste ficavam várias aldeias desoladas que periodicamente
vendiam suas crianças como escravas. Essas escravas eram então
recrutadas pelas milícias ou bandos de mercenários dos Territórios
Nortenhos, ou compradas pelo governo para servir como bucha de
canhão durante a guerra.

Antes de partir, reuni algumas informações na Guilda dos


Aventureiros. As grandes cidades tinham vários mercados de
escravos, e esta em particular tinha cinco. Os mercados menos
frequentados eram lugares assustadores, então fomos para um que
me foi recomendado por ser tanto mais amigável para aqueles que
não conheciam o funcionamento dessas coisas quanto para clientes
com bolsos mais gordos.

— Hm, este é bem diferente do mercado do meu país — disse


Zanoba, fazendo um comentário de aprovação, como se estivesse
impressionado.

À primeira vista, o mercado de escravos parecia como qualquer


outro edifício. Era simples, composto por três edifícios de barro e
pedra. Acima da entrada estavam as palavras Grupo Rium –
Mercado de Escravos. Havia um braseiro perto da entrada, e ao
lado dele estava um homem vestido com roupas grossas do Ártico e
com uma armadura de couro abaixo dela.

— Então não é ao ar livre, hein? — comentou Fitz, surpreso.

Nos Territórios Nortenhos, os mercados de escravos eram


negócios geralmente fechados. Por um motivo simples.

— Vamos entrar.

Quando entramos fomos envolvidos por uma rajada de ar quente.


Havia fogueiras por todo o interior do prédio, assim como oito palcos
onde os escravos eram alinhados enquanto nus – obviamente, algo
que não se poderia fazer no frio sem comprometer a saúde dos
escravos. O mercado que me aconselharam não visitar era
realizado a céu aberto.

— Hm, há muitas lojas por aqui. Mestre, para onde devemos ir?
— perguntou Zanoba.
— Eu nunca fiz isso antes. Primeiro vamos dar uma olhada por
aí.

As oito lojas diferentes pertenciam a mercadores de escravos


sob a jurisdição do Grupo Rium. A clientela reunida por perto era
bastante diversa: havia aventureiros como eu, pessoas em trajes
nobres como Zanoba e Mestre Fitz, mercadores, habitantes da
cidade, camponeses e estudantes. Havia até mesmo alguns
proprietários de escravos no meio, parados com seus escravos
recém-adquiridos e conversando alegremente entre si.

Os mais malvestidos deviam ser os batedores de carteira – não,


não seriam capazes de entrar em um mercado como este. Talvez
fossem escravos, enviados por seus senhores para encontrar mais
escravos para comprar. Ainda assim, continuei segurando a bolsa
de moedas escondida sob meu robe. Era Zanoba quem financiava a
compra do escravo, mas era eu quem cuidava do dinheiro. Afinal, se
alguém aparecesse e nos roubasse, estaríamos em apuros.

— Uh, um, uau… eles realmente estão todos nus. — Fitz estava
olhando para as lojas com os olhos arregalados de surpresa. Seu
rosto estava brilhando de tão vermelho. Segui seu olhar em direção
de um grupo de escravos magros e musculosos, provavelmente
guerreiros. A guerreira no meio deles era particularmente… bem-
dotada. Qualquer um pensaria que um par de melões daquele
atrapalharia no combate, mas eu já sabia, ao assistir Ghislaine
lutando, que isso não fazia diferença.

— É a primeira vez que vem aqui, Mestre Fitz?


— Hã? Ah, um, sim. — Mestre Fitz coçou a parte de trás da
orelha enquanto timidamente puxava a capa para mais perto de si.
Exatamente o tipo de reação que seria de se esperar de um virgem.
— E-então, Rudeus, você está acostumado com isso?

Me senti um pouco triunfante ao pensar que poderia ter mais


experiência sexual do que um veterano, mas só tinha feito isso uma
vez. E minha parceira fugiu logo depois daquilo. Nada para se
orgulhar.

— Tenho certeza de que você se sentirá mais à vontade quando


tiver alguma experiência — assegurei-lhe.

— V-você tem certeza disso? Ei, espera, isso significa que você
tem experiência… — Ele parecia subitamente abatido.

Ah, você ainda é tão jovem, pensei.

— Mestre, não queremos guerreiros, queremos? Estamos


procurando uma raça com mãos hábeis e que possa usar magia,
certo? — Zanoba apontou o queixo em nossa direção, como se
quisesse dizer que nossa conversa lhe era irrelevante.

— Uma raça com mãos hábeis… deve ser um anão, certo? —


perguntei.

— Um anão que pode usar magia da terra. Embora o segundo


requisito seja mais importante do que a raça — respondeu Fitz
enquanto caminhávamos pelas lojas.

Apesar do tamanho do mercado, não havia muitos anões entre


os escravos. A maioria daqueles à venda eram claramente
guerreiros e nenhum deles tinha as mãos hábeis que procurávamos.
— Um, acho que poderíamos nos contentar com uma criança
mesmo que ela ainda não consiga usar magia, já que Rudeus pode
ensiná-la mais tarde — disse Fitz.

— Por que um jovem? — perguntei.

— É mais fácil aprender magia não verbal enquanto você é


jovem.

— Ah, sério, isso é verdade?

— Sim, depois dos dez anos é quase impossível aprender.

Sério? Embora, pensando bem, Sylphie foi capaz de usar magia


não verbal, mas Eris não. Talvez a idade delas, no final das contas,
tivesse influenciado no processo.

— Então isso está relacionado à idade, hein?

— Sim. Posso estar enganado, mas foi a esta conclusão que


cheguei com base na minha experiência pessoal, na do meu mestre
e nas palavras dos nossos professores. Além disso, se você
começar a usar magia aos cinco anos, o tamanho da sua reserva de
mana aumentará drasticamente. Se quiser ensinar o escravo a fazer
estatuetas usando seu método, quanto maior for a reserva de mana
que ele tiver, melhor.

— Achei que o tamanho da reserva de mana de uma pessoa


fosse fixado ao nascimento — falei.

— Isso é incorreto. Os livros podem dizer isso, mas a verdade é


que a reserva de mana de uma pessoa para de crescer quando ela
atinge a idade de dez anos — explicou o Mestre Fitz.
Entendo. Isso explicava o motivo pelo qual minha reserva de
mana era tão vasta, já que comecei a usar magia quando tinha dois
ou três anos. E como o Mestre Fitz disse que falava por experiência
própria, provavelmente também tinha uma reserva de mana
impressionantemente grande.

— Você também usa magia desde que era bem jovem?

— Sim. Bem… a muito tempo atrás, meu mestre me salvou e eu


pedi a ele para me ensinar, e foi assim que aprendi.

— Aha. — Seu mestre talvez tivesse o salvado de monstros em


uma floresta ou coisa do tipo. Não… se ele fosse criança, era mais
provável que tivesse sido sequestrado. O tráfico de crianças era um
negócio próspero neste mundo e, mesmo usando óculos escuros, o
Mestre Fitz era bonito. — Então seu mestre também pode usar
magia não verbal?

— Sim. Ele é incrível. O respeito profundamente.

— Isso é ótimo. Adoraria conhecê-lo — falei. Conhecer outro


professor de magia não verbal poderia me ajudar a melhorar as
minhas próprias habilidades.

Mestre Fitz soltou uma risada amarga.

— Uh, tenho certeza que isso é impossível.

— Sério? Acho que ele deve ser uma pessoa muito importante.
— Afinal, o Mestre Fitz era o guarda-costas de uma princesa, então
seu mestre poderia ser um mago da corte ou algo assim.

— Ele, um… não é muito conhecido, mas é da Região de Fittoa.


— Ah… — Alguém que foi pego no Incidente de Deslocamento?
Portanto, Fitz não devia saber sobre a localização dele. — Não
tenho certeza do que dizer, então… Espero que ele ainda esteja
vivo.

— Ele ainda está vivo. Na verdade, já o encontrei.

Pensando bem, ele disse que começou a pesquisar o


teletransporte para procurar um conhecido. Então era o seu mestre,
hein?

— Espera, então por que não posso conhecê-lo?

— Hehe. Isso é segredo. — Fitz mostrou um enorme sorriso.

Por que meu coração pareceu bater mais forte quando vi o seu
sorriso? Claro, eu poderia desmaiar por causa de garotos bonitos da
ficção, mas não era gay. Talvez isso fosse o meu corpo tomando
medidas drásticas em sua busca pela recuperação.

Seguindo as sugestões do Mestre Fitz, estabelecemos três


critérios ao procurar um escravo. Um, deviam ter cerca de cinco
anos (se fosse qualquer um mais jovem do que isso, teria muitas
chances de não ser capaz de falar.) Dois, tinham que ser anões (por
causa de suas mãos hábeis). E terceiro, tinha que ser uma
garotinha fofa (minha preferência pessoal).

— Uma garota? De qualquer forma, não me importo, mas,


Mestre, você não está perdendo nosso objetivo de vista?

— Rudeus…

Foi minha última exigência que levou os dois a me repreender.


— Hein??

— Dito isso, não podemos esperar que uma criança de cinco


anos tenha recebido muita educação. Se tudo o que ela falar for a
língua do Deus Fera, então podemos esquecer de tentar ensinar
magia.

— Eu falo a língua do Deus Fera. Posso ensinar as coisas.

— Sério, Mestre, você sabe a língua do Deus Fera? Você nunca


falha em me impressionar!

— Heh, acho que sim. — Bufei orgulhoso diante de seu elogio.


Eu podia até não parecer, mas era poliglota! E no passado ensinei
até uma criança de cinco anos de idade.

Falando nisso – onde será que Sylphie estava? Elinalise e o


Mestre Fitz eram testemunhas da minha fascinação por elfos, cuja
beleza delineada agradaria a qualquer fã da velha escola de
fantasia. Sylphie tinha sangue de elfo em suas veias, e ela já devia
ter cerca de quinze anos. Aposto que havia se tornado uma beldade
de cabelos verdes e, a julgar pelo que Paul havia dito, suas
habilidades mágicas também deviam ter avançado. Sua fama
deveria estar se espalhando por toda parte, mas eu não tinha ouvido
um único sussurro sobre alguém que se encaixasse em sua
descrição.

— De qualquer forma, já delimitamos nossas exigências, então


vamos tentar consultar alguns comerciantes.

Fui até o Centro de Informações. Atrás da mesa estava um cara


do tipo machão, um careca da cabeça brilhante com um bigode. Ele
pareceu confuso quando viu o Mestre Fitz e eu, mas então balançou
a cabeça, satisfeito, quando avistou Zanoba.

— Um, com licença, nós estamos procurando…

O Machão me ignorou e se dirigiu a Zanoba.

— Olá, bem-vindo. O que você está procurando? Um lutador que


pode atuar como guarda-costas? Estamos com alguns que podem
aprender a usar uma espada disponíveis. Também temos alguns
magos, mas nesse caso provavelmente seria melhor dar uma
passada pela universidade. Ou será que está interessado em
alguém do tipo que pode, uh, sabe, né? Nah, não precisa nem dizer.
Só pela sua cara já posso dizer que você não faz o tipo que atrai
muitas moças. Temos uma garota toda delineada que está na casa
dos vinte anos. Uma ex-prostituta, então ela é muito hábil em…
Aaaah!

O homem teve seu rosto agarrado por um aperto de ferro e foi


erguido no ar.

— Não ignore o meu mestre. Vou arrancar essa sua ridícula


língua solta e tirar a sua mandíbula fora enquanto estiver fazendo
isso.

— E-ei, vamos lá! O que você está fazendo?!

Dois guardas apareceram para subjugar Zanoba, mas ele não se


moveu um centímetro sequer. Na verdade, tudo que precisou fazer
para afastá-los foi mover os ombros. Impressionante, pensei. Este
otaku enorme e desnutrido dominou dois guardas musculosos por
completo sem nem mesmo tentar. Então era esse o poder de uma
Criança Abençoada, hein?

Ah, espera, eu não deveria estar só assistindo.

— Pare! Zanoba, pare com isso. Calma, garoto!

— Sim senhor!

Ao som da minha voz, Zanoba soltou o homem. Me virei para o


guarda e fiz uma reverência rápida.

— Sinto muitíssimo por isso, ele ficou um pouco animado.

— Não, tudo bem… só tente não ficar selvagem demais, certo?


Da próxima vez vamos sacar as nossas espadas. — Felizmente
deixaram as coisas de lado, então fingi não notar o medo em seus
olhos.

O mais inesperado, entretanto, foi a reação do Mestre Fitz. No


momento em que os guardas agarraram Zanoba, ele parou na
minha frente com a varinha erguida. Seus movimentos foram
incrivelmente rápidos, mas nada inesperado para o guarda-costas
de uma princesa.

Bem, que seja, chega de papo!

— Estamos procurando uma anã com cerca de cinco anos —


falei, repetindo o nosso pedido ao Machão.

O homem estava tremendo enquanto corria os olhos pela lista de


inventário à sua frente. Ele virou página após página e semicerrou
os olhos.
— Para começar, não temos muitos anões por aqui,
especialmente crianças de cinco anos.

Parecia que, afinal, nossos requisitos eram específicos demais.


Os anões viviam principalmente no Continente Millis, ao sul da
Grande Floresta, na base das Montanhas Wyrm Azul.

— Não precisa ser uma anã. Se for hábil com as mãos, já vai
servir.

— Ah, nós temos uma. Só uma. — O Machão bateu o dedo em


um lugar da sua lista de inventário. — Uma anã de seis anos. Seus
pais estavam com uma dívida, então toda a família foi vendida como
escrava. Entretanto, ela não está saudável. Bem, provavelmente vai
melhorar se comer alguma comida. A garota não fala a linguagem
humana e, como só tem seis anos, também não sabe ler.

— Entendo. E qual é a situação dos pais dela?

— Já vendemos os dois.

— Bem, então por que não vamos em frente e damos uma


olhada nela?

O Machão deu um grito e um comerciante apareceu. Ele tinha a


pele escura, era provavelmente do Continente Begaritt. Era baixo e
forte, e estava suado, enxugando-se sem parar com o pano úmido
em volta de seus ombros, já que o mercado estava quente. Eu tinha
tirado o meu robe, Zanoba tinha retirado sua capa; apenas o Mestre
Fitz continuava com todas as roupas. Na verdade, a julgar pela
expressão em seu rosto, ele parecia perfeitamente confortável.
Bem, certo, seu rosto estava vermelho, mas isso era por uma razão
totalmente diferente.

O comerciante se apresentou, estendendo a mão na direção de


Zanoba.

— Saudações, sou o gerente da filial da loja Domani, uma


subsidiária do Grupo Rium. Meu nome é Febrito.

Zanoba já estava levando a mão em direção ao rosto do homem,


então peguei a mão do comerciante com a minha e dei um aperto.

— Prazer, me chamo Rudeus Atoleiro.

Quando falei o meu nome, o homem pareceu duvidar por um


momento, mas sua expressão logo mudou para um enorme sorriso.

— Ah, então você é o Atoleiro! Já ouvi falar de você. Dizem que


no ano passado você matou um errante.

— Tive sorte. Meu oponente já estava enfraquecido.

Febrito deu uma olhada rápida em Zanoba e no Mestre Fitz.

— Então você está em busca de uma anã?

— Sim, esse homem aqui vai financiar o início de um novo


empreendimento. Estamos procurando uma criança para ensinar as
habilidades necessárias desde cedo. — Foi uma explicação ao
acaso, mas não era uma mentira.

— Entendo, entendo. Realmente não te recomendaria este


espécime em particular, mas… por que não dá uma olhada
primeiro? Por aqui, por favor.
Seguimos Febrito até o depósito de escravos. Bem, eu chamei
de “depósito”, mas eram apenas filas de gaiolas de aço conectadas
a polias. Cada gaiola tinha cerca de um único tatame de largura,
com uma ou duas pessoas lá dentro. Os comerciantes
provavelmente os lavavam e poliam antes de levá-los à exposição,
mas no momento estavam imundos, e uma respirada foi o suficiente
para me fazer torcer o nariz. Após uma inspeção mais próxima, vi
crianças chorando e outras pessoas com olhares penetrantes cheios
de intenções assassinas direcionadas a nós. Havia alguns outros
como nós, conversando com outros comerciantes na área do
depósito.

Febrito caminhou rapidamente pelas brechas entre as gaiolas de


aço, chamando alguém que estava parado na beira do caminho.

— Ei, aquela criança anã ainda está viva?

— Sim, por enquanto.

— Onde?

— Por aqui.

Fomos ainda mais para dentro do depósito. Os aquecedores não


pareciam funcionar no local, então estava um pouco frio. O
subordinado de Febrito parou em frente a uma gaiola que continha
uma garota com um olhar vazio, sentada com os joelhos dobrados
contra o peito.

— Bem, traga-a para fora.

— Entendido. — O subordinado de Febrito acenou com a cabeça


e abriu a gaiola de aço, arrastando a garota para fora.
A criança tinha uma coleira em volta do pescoço e algemas nos
pés. Seu corpo esquelético estava coberto por trapos patéticos. Seu
cabelo podia já ter sido laranja, mas agora estava todo bagunçado e
desgrenhado, todo imundo e com fios cinzas por toda parte. Seu
rosto estava pálido e seus olhos vazios enquanto ela passava os
braços em volta de si mesma, tremendo. Percebi que estava frio,
mas essa não parecia ser a única razão para seus tremores. Foi
algo doloroso de se ver.

— Tire a roupa dela.

Seus tremores não pareceram incomodar o subordinado de


Febrito, que rapidamente arrancou os trapos dela. Seu corpo
mortalmente magro e subnutrido ficou todo exposto.

O rosto do Mestre Fitz se contorceu enquanto ele observava.

— Rudeus…

Até eu achei que isso era mais do que abominável. Só queria me


apressar e comprá-la para que pudéssemos dar uma refeição e um
banho quente para ela. No entanto, os olhos da garota me
preocuparam. Aqueles olhos vazios. Eu já tinha os visto em algum
outro lugar.

— Como você pode ver, ela é uma anã. Seis anos de idade,
então realmente não tem nenhuma habilidade para se mencionar.
Ambos os seus pais eram anões. Seu pai era ferreiro e sua mãe
trabalhava com joias. Ela deve ter as mãos hábeis que você deseja,
assumindo que herdou a habilidade deles, mas a única língua que
fala é a língua do Deus Fera. Não achamos que poderíamos vendê-
la, então sua saúde também não está nas melhores condições. Se a
quiser, podemos te dar um desconto.

Mestre Fitz parecia perturbado ao se aproximar da garota,


levando a mão ao rosto dela. Depois de alguns segundos, a pele
dela melhorou um pouco. Ele provavelmente lançou algo nela.

— E ela é virgem, é claro. A desintoxicaremos só por segurança,


caso decida comprá-la. Embora eu realmente não possa
recomendar que faça isso.

Mestre Fitz olhou para mim igual a uma criança que encontra um
cachorrinho abandonado e quer levá-lo para casa. A garota atendia
aos nossos critérios… mas aqueles olhos realmente me
incomodaram.

— Olá, senhorita. — Me ajoelhei e conversei com ela na


linguagem do Deus Fera. — Meu nome é Rudeus. Qual é o seu?

—…

— Veja, há algo que eu gostaria que você fizesse.

—…

— Um…

Ela apenas olhou para mim com aqueles olhos vazios, sem
oferecer uma única palavra em resposta. O subordinado de Febrito
estendeu a mão para o chicote que descansava em sua cintura,
mas o detive com minha mão.

— Mestre, o que houve? — questionou Zanoba.


— Ela perdeu todas as esperanças. Tem a aparência de alguém
que não quer mais viver.

— Você já viu alguém assim antes?

— Várias vezes. Há muito tempo.

Tanto Zanoba quanto Mestre Fitz pareciam ter ficado


preocupados, mas, se eu pudesse evitar, não pretendia oferecer
mais informações sobre a minha vida passada. Isso não renderia
nada de bom.

O vazio no olhar da garota despertou algumas memórias.


Quando eu tinha cerca de vinte anos costumava ter a mesma
aparência. Não estava estudando, não possuía esperanças para o
futuro, nenhuma perspectiva de trabalho. Tudo o que podia fazer era
comer, cagar e sobreviver.

Parando para pensar, ainda não era tarde demais para mudar as
coisas. Mas em vez disso, me afundei ainda mais no desespero,
optei por me isolar por completo, perdendo ainda mais as
esperanças. Eu queria morrer.

— Você não quer mais viver? — perguntei na língua do Deus


Fera.

—…

— Você sente como se tudo já estivesse perdido. Sei bem como


é isso.

—…

Seu olhar pousou lentamente em mim.


— Se as coisas estão ruim assim, devo acabar com tudo para
você?

Eu poderia dar o meu melhor para salvar essa garota. Poderia


comprar roupas, poderia alimentá-la, poderia até mesmo oferecer
palavras gentis. Mas eu precisava saber se ela queria.

—…

— Diga alguma coisa — falei na língua do Deus Fera.

A garota nem mesmo estremeceu. Ela apenas abriu os lábios


rachados, bem lentamente.

— Não quero morrer — murmurou ela em voz baixa.

Foi uma resposta indiferente, mas já servia. Estaria tudo bem se


ela não “queria viver”. Pelo menos não queria morrer, e isso já
bastava.

— Nós vamos comprá-la.

Enrolei o robe que eu estava carregando em seus ombros. Então


usei magia para aquecê-la e entoei um feitiço de desintoxicação.
Magia de cura não faria nada pela sua resistência, então só
teríamos que dar um pouco de comida para ela.

— Senhor Febrito, quanto?

Custou o equivalente a dez moedas de cobre grande asuranas.


Esse foi o seu preço.

✦✦✦✦✦✦✦
Levamos a criança a uma área de lavagem na beira do mercado
de escravos para dar banho nela e depois fomos ao Distrito do
Comércio para comprar roupas e outras coisas necessárias. Por fim
fomos a uma cafeteria refinada – não era um lugar ao qual eu teria
ido por conta própria, mas foi o Mestre Fitz quem escolheu. Ele se
encaixou perfeitamente bem no lugar, enquanto Zanoba ficava
imperturbável, assim como esperado da realeza. A garota que
tínhamos acabado de comprar estava totalmente focada em engolir
a comida, tornando-me a única pessoa que se sentia desconfortável
em um ambiente tão luxuoso.

Mestre Fitz parecia estar de bom humor.

— Que bom que você gostou — disse ele, acariciando a cabeça


da garota. — A propósito, Rudeus, qual é o nome dela?

— Qual é o seu nome? — perguntei na língua do Deus Fera.

A garota olhou para mim, confusa.

— Nome?

Hã? Eu não estava me comunicando de forma clara o suficiente?


Já fazia cerca de três anos que não usava o idioma, mas tinha me
saído bem na Grande Floresta. Será que o povo da aldeia Doldia
estava me agradando da mesma forma que um japonês faria
quando um americano aparecia em Tóquio falando que era fluente
em japonês?

— Um, como você se chama?

— A filha de Bazar do Aço Sagrado e Lilitela do Belo Cume


Nevado.
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo, então só traduzi
as suas palavras de forma literal. Quando o fiz, Mestre Fitz
simplesmente respondeu: “Ah, certo”, balançando a cabeça para si
mesmo com um olhar astuto no rosto.

— Os anões não recebem um nome oficial até que tenham sete


anos — explicou ele.

— Um “nome oficial”?

— Quando completam sete anos, recebem um nome que foi


criado a partir de algo em que são bons, algo pelo que se sentem
atraídos ou algo de que gostam.

Então era isso. Mestre Fitz foi sábio como sempre.

— Ainda assim, precisamos de alguma forma para chamá-la —


falei.

— Seus pais se foram. Só precisamos dar um nome.

— Agora vamos decidir o seu nome. Você tem alguma


preferência? — perguntei à garota, mas ela só balançou a cabeça.

— Ela é uma garotinha. Vamos dar um nome fofo. — O raciocínio


do Mestre Fitz parecia seguir a linha de pensamento de uma garota.
Isso me fez querer fazer o oposto e dar a ela um nome que soasse
grosseiro… mas não, não poderia fazer isso. Tínhamos que fazer
isso direito.

— Zanoba, diga a sua opinião!

Ele olhou na minha direção.


— Hm? Tem certeza de que posso decidir?

— Bem, quem financiou o empreendimento foi você.

— Então vai ser Julias — disse ele, sem qualquer sinal de que
havia feito qualquer consideração.

— Esse não é um nome de garoto?

— Sim, foi uma vez o nome do meu pobre irmãozinho. Aquele


que matei quando não controlei a minha própria força.

Não consegui controlar minhas feições quando ele disse isso. Eu


sabia que Zanoba havia matado seu irmão mais novo, mas não
sabia como reagir à indiferença com que falava. Mestre Fitz parecia
apenas confuso.

— Ela vai ficar no meu quarto, não vai? Então deve ter um nome
com o qual eu sinta alguma conexão.

— Que seja ao menos Juliette. Afinal, ela é uma menina.

— Por mim tudo bem. Então vai ser Juliette.

— Juli… ette, hehe, esse é um bom nome. — Mestre Fitz riu


alegremente, como se tivesse achado o nome divertido.

— A partir de hoje, seu nome será Juliette — retransmiti para a


garota na língua do Deus Fera.

— Julie…?

— Juliette.

— Julie — disse ela com um sorriso desajeitado. Passou perto.


E foi assim que Juliette (apelidada de Julie) ficou aos cuidados
de Zanoba. À noite, eu lhe ensinava magia não verbal e a língua
humana, enquanto Zanoba dava palestras sobre as propriedades
dos bonecos e estatuetas. Ele também a fez passar por exercícios
de desenvolvimento de destreza ao seu lado, provavelmente porque
ainda queria ser capaz de algum dia fazer estatuetas por si mesmo.

Nesse ínterim, ainda não havia aparecido nenhum sinal de que


eu alcançaria o meu verdadeiro objetivo tão cedo.
Capítulo 07:
O Sequestro e o Confinamento das Garotas Feras (Parte
1)
Linia Dedoldia. A neta de Gustav, o líder dos Dedoldia, uma das
tribos Doldia atuando como protetora da Grande Floresta. A filha do
Guerreiro Líder Gyes, a próxima na sucessão para ser a Líder
Tribal.

Pursena Adoldia. De outra tribo Doldia atuando como protetora


da Grande Floresta. Neta do Bulldog Líder Tribal de Adoldia e filha
do Líder Guerreiro, a próxima na sucessão a ser Líder Tribal de
Tertelia.

A Tribo Doldia era uma raça especial entre o povo-fera. Suas


raízes remontam a quase 5.500 anos atrás, após a primeira Grande
Guerra Demônio-Humano. Os humanos haviam vencido a guerra e
se tornado mais arrogantes após ela. Diante de uma invasão
iminente, o povo-fera que vivia na vasta fonte de madeira que era a
Grande Floresta foi forçado a tomar uma posição. Seu alfa na
época, o Deus Fera Giger, comandou o povo-fera contra os
humanos desprezíveis e lutou pessoalmente na linha de frente. Ele
exerceu seu poder e sua inteligência para resgatar outro povo-fera
enquanto defendia a Grande Floresta. Mesmo depois da morte de
Giger, a Tribo Doldia foi reverenciada como chefe entre os povos-
fera da Grande Floresta.

Nos dias atuais, o povo-fera não se limitava apenas à Grande


Floresta, e estava se expandindo pelo Continente Central e pelo
Continente Begaritt. Não eram tão numerosos quanto os humanos,
mas eram comuns o suficiente para que não pudessem ser
simplesmente ignorados e exerciam grande influência entre os elfos,
anões e hobbits. Havia poder militar suficiente dentro da Grande
Floresta para ir de igual para igual com o País Sagrado de Millis,
caso o povo-fera assim desejasse.

Linia e Pursena eram as netas dos Líderes Tribais Doldia,


descendentes diretas do Deus Fera. Em termos humanos, tinham a
mesma posição que princesas.

Por que, então, essas garotas estavam tão longe de casa para
estudar em uma terra tão distante? Porque o príncipe (Gyes) e a
princesa (Ghislaine) da geração anterior bagunçaram tudo e, como
eles, Linia e Pursena não eram muito inteligentes. O Líder Tribal
Gustav ordenou que fossem estudar em uma terra longínqua na
esperança de que encontrassem sabedoria, talvez pensando que
estar em um lugar onde não poderiam exercer sua autoridade lhes
ensinaria o significado disso.

No entanto, Gustav calculou mal. Ele enviou Linia e Pursena para


a Universidade de Magia, assumindo que suas posições como netas
de líderes tribais do povo-fera não teriam significado no lugar. As
garotas também se prepararam para a discriminação, mas foram
saudadas por professores que as trataram com grande cautela e por
outros alunos que tentaram bajulá-las.

No momento em que Linia e Pursena entenderam que sua


linhagem ainda tinha peso mesmo tão longe, isso subiu às suas
cabeças. Quando se matricularam, tremeram de medo ao redor dos
humanos, mas isso mudou no momento em que viram o quão
tímidos aqueles humanos eram ao seu redor. Logo perceberam que
a combinação da magia encantada que aprenderam em sala de
aula, sua Magia Vocal (que era transmitida pela Tribo Doldia),
destreza e força era o suficiente para colocar até mesmo o veterano
mais forte de joelhos, e, com isso, seu comportamento foi ficando
pior e pior. Extorsão, chantagem, intimidação – elas se tornaram
completas delinquentes em bem pouco tempo e, em um ano,
haviam se tornado as chefes de sua própria facção.

Seu avanço constante, entretanto, logo chegou ao fim. Quando


chegaram ao segundo ano, uma princesa chegou do Reino Asura. A
Segunda Princesa Ariel Anemoi Asura. Esta mulher, que
recentemente criou sua própria facção e se envolveu em uma luta
pelo poder em sua casa, tinha consigo dois guardas e valsou direto
para o território de Linia e Pursena, como se fosse a dona do lugar.
Até mesmo os professores que estavam à disposição de Linia e
Pursena voltaram sua atenção para Ariel.

Frustradas e irritadas, Linia e Pursena toleraram Ariel – até que


ela se juntou ao Conselho Estudantil, apesar de ser do primeiro ano.
Enquanto Ariel recebia muitos elogios por ser uma estudante de
honra, Linia e Pursena, que haviam sido rotuladas como
delinquentes, ferviam com ressentimento. Começaram a mexer com
a princesa e seu grupo. Tudo começou com simples assédio, como
cuspir no chão na frente da princesa e de seus seguidores quando
se cruzavam no corredor. Intencionalmente batiam seus ombros
com ela, jogavam água nela, roubavam sua calcinha e jogavam na
frente do dormitório masculino, entre outras coisas.

O assédio continuou aumentando – até que toda a multidão de


delinquentes foi totalmente espancada por Mestre Fitz, agindo por
conta própria. Corria o boato de que o confronto tinha sido uma
armadilha preparada por Ariel, o que não mudava o fato de que
Mestre Fitz havia derrotado quase vinte oponentes sozinho. Os
professores se reuniram, e todos os subordinados de Linia e
capangas de Pursena foram expulsos – exceto elas duas, mais uma
vez protegidas por seu status.

Sua reputação foi arruinada. Seus lacaios se foram, então não


tinham mais aliados. Sua posição social despencou, e a Princesa
Asura e seu grupo se tornaram heróis aos olhos do corpo estudantil.
Embora tecnicamente uma aluna especial, a princesa insistia que
ela e seus guarda-costas fossem tratados da mesma forma que os
alunos da admissão geral, o que só servia para aumentar a sua
popularidade.

Linia e Pursena, é claro, não ficaram nada satisfeitas.


Descarregaram sua raiva em dois outros alunos especiais que
haviam se matriculado no ano anterior, Zanoba e Cliff, e uma vez
que os derrotaram de forma sólida, passaram a usar Zanoba para
reunir informações sobre a Princesa e sua laia. No momento,
porém, não fizeram nenhum movimento rumo à vingança. Sua
conduta ainda poderia ser melhorada, e atualmente estavam
levando até as aulas a sério e as assistindo. As pessoas poderiam
até dizer que foram reabilitadas.

Sua guerra com Ariel estava acabada… ou assim parecia.

✦✦✦✦✦✦✦

Ponto de Vista do Zanoba

Um mês se passou desde que Julie se tornou a aprendiz de


nosso mestre.
O Mestre estava usando um método peculiar de treinamento,
afirmando: “Isso é um experimento.” No início de cada dia, Julie teria
que lançar um feitiço usando um encantamento. Depois
disso, ele não ensinaria mais nenhum feitiço, mas faria com que ela
conjurasse blocos de terra em silêncio. Não acho que ela aprenderia
a usar magia não verbal dessa forma, mas para meu choque, a
garota conseguiu após um mês.

Isso mesmo – em apenas um mês, Julie havia criado um pedaço


de terra com sucesso. Sem qualquer encantamento. Uma realização
surpreendente.

De acordo com o Mestre, entretanto, ela ainda tinha muito que


aprender. Julie só conseguiu conjurar a terra sem um encantamento
daquela vez, e também ficou sem mana bem rápido. Ainda assim,
em comparação com alguém como eu, que não tinha nenhum
talento para magia… Eu não podia acreditar.

— Tudo isso graças ao Mestre Fitz e seus conselhos — disse o


Mestre, mas era ele quem a ensinava, o que significava que era ele
quem deveria ser elogiado. Eu estava certo ao me tornar seu pupilo.

Junto com a magia, o Mestre ensinava a linguagem dos homens


para Julie. Ela já conhecia algumas palavras, coisa que fazia
sentido, visto que havia vivido com seus pais por alguns anos no
Continente Central. Julie pegava e aprendia as coisas rapidamente.
Se eu dissesse a ela para me trazer isso ou aquilo, selecionaria a
coisa correta sem qualquer instrução detalhada. Sua intuição estava
de acordo com o que eu queria. Isso me lembrava de Ginger.
Os escravos recém-comprados geralmente eram marcados com
uma marca ou selo mágico, mas o Mestre não gostava desse tipo
de coisa, então me contive. Afinal, pretendíamos que Julie fosse
mais uma aprendiz do que uma escrava.

Então, um dia, ocorreu um incidente.

Era tarde da noite e eu estava instruindo Julie sobre a história e a


magnificência das estatuetas. Ela não seria capaz de me ajudar em
minha enorme empreitada se não tivesse paixão pelo ofício.
Naquele dia em particular, decidi usar a estatueta de Ruijerd para
ilustrar o brilho da obra do Mestre. A tirei de uma caixa de
armazenamento trancada: a estatueta de um guerreiro que
emanava uma sensação de poder e pavor, infinitamente fascinante
para mim, não importa quantas vezes eu a visse.

O Mestre, que estava prestes a voltar para seu quarto, olhou


para o objeto. Ele perguntou:

— A propósito, o que aconteceu com a estatueta da Roxy?

No momento em que ele perguntou isso, o suor frio cobriu todo o


meu corpo. Quase respondi: “Deixei em Shirone”, mas seria mentira,
então mordi meu lábio com força e me contive. Eu… não vou…
contar uma mentira. Eu nunca, jamais, mentiria para o Mestre.

Finalmente, falei:

— A verdade é que… tecnicamente está aqui, mas… — Minha


boca não se movia direito. Minhas mãos tremiam. Se ele soubesse
o que aconteceu, o Mestre poderia renunciar a mim como seu
pupilo. O simples pensamento fez meu corpo parecer pesado feito
chumbo.

— Cadê? Gostaria de vê-la, já que faz tanto tempo. Pode pegar


ela? — Sua voz estava cheia de expectativa. Isso fez meu coração
doer.

Com grande dificuldade, peguei uma das caixas de


armazenamento trancadas debaixo da minha cama. Virei a chave
com as mãos trêmulas e peguei o conteúdo. Naquele momento, a
expressão do Mestre congelou.

— Ei, mas que diabos é isso…? — Sua voz tremeu. Estava


monótona, sem entonação, mas de alguma forma tremia.

Eu estava à beira de lágrimas. A obra-prima do Mestre, a


estatueta de Roxy em escala 1:8, foi tragicamente quebrada em
cinco pedaços. Sua cabeça foi decepada, as partes que
compunham suas roupas foram quebradas, seu braço foi arrancado
à altura do cotovelo e sua perna dobrada em um ângulo estranho.

Apenas seu cajado robusto havia escapado em segurança.

— Explique isso, Zanoba. Você… eu… vamos lá, o que diabos é


isso, hein…?! — O Mestre estava com raiva. O Mestre, que
normalmente falava em tons cuidadosamente modulados, usando
um discurso educado e sem qualquer paixão, estava tropeçando em
suas palavras. — Não te disse o quão grato sou à minha
professora? O quanto eu a respeito? Não entendeu quantos
sentimentos por ela coloquei nesta estatueta quando a fiz?
O Mestre estava realmente zangado. Quando foi alvo da
zombaria de Linia e Pursena, respondeu de forma autodepreciativa,
ficou desanimado quando Cliff o atacou, e quando Luke zombou
dele, tudo que fez foi adotar uma expressão preocupada. Mas
aquele mesmo homem, meu mestre, estava transbordando de
intenções assassinas. Aterrorizada, Julie se escondeu atrás de mim.
Eu também queria me esconder.

— Não me diga… você está tirando sarro da Roxy? Você por


acaso é um inimigo?

— N-n-não é isso! — Balancei minha cabeça freneticamente.

O Mestre falava o tempo todo sobre Lady Roxy, sobre o quão


incrível e merecedora de respeito ela era. Senti que não era apenas
adoração, mas algo mais parecido com fanatismo religioso. Era a
mesma vibração que recebi dos Cavaleiros do Templo. Para ser
sincero, eu realmente não me importava nem um pouco com Lady
Roxy, mas se falasse isso, o Mestre me acertaria com sua raiva. Se
ele ficasse sério, não sobraria nada de mim além de cinzas. Eu tinha
a força sobrenatural de uma Criança Abençoada, mas meu corpo
não era tão resistente à magia.

— Não é nada disso! — gaguejei. — Este é o meu bem mais


precioso, aquele que apostei quando duelei com Linia e Pursena!
Depois que perdi aquele duelo, ele foi tragicamente destruído
quando elas o pisotearam, mas eu com certeza não fiz nada para
zombar de Lady Roxy!

— Duelo, você disse?


Contei a ele o resto da história, sendo sincero e falando apenas a
verdade. Há um ano, Linia e Pursena me desafiaram para um duelo.
O perdedor ofereceria o que havia de mais precioso para ele, que,
para mim, era minha estatueta de Roxy. Eu não tinha dúvidas de
que venceria, visto que era uma Criança Abençoada e nunca havia
sido derrotado enquanto estava em Shirone. Mesmo se usassem
magia de nível Avançado em mim, eu estava preparado para
enfrentar isso e balançar meus punhos cerrados em direção delas.

Mas as duas usaram uma magia estranha em mim. Elas me


paralisaram, então, como eu não conseguia me mover, acabaram
comigo. Solucei sem parar enquanto entregava minha estatueta.
Entretanto, isso precisava ser feito. Afinal, eu tinha perdido. A culpa
por um item tão maravilhoso ser tirado de mim era minha. Qualquer
um que o visse o desejaria.

Mas, de alguma forma – se é que pode acreditar –


aquelas duas não apreciaram o valor do item! Disseram coisas com:
“Que porra é essa?” e “Credo, mew”, antes de jogá-la no chão e
pisoteá-la, quebrando-a em pedaços.

Depois de explicar tudo, a intenção assassina do Mestre


diminuiu.

— Então foi isso que aconteceu. Entendo. — Ele me deu alguns


tapinhas no ombro.

Ele entendeu! Com esse pensamento, levantei minha cabeça –


apenas para guinchar pateticamente. A intenção assassina que
emanava dele não havia diminuído em nada! Agora havia algo ainda
mais sinistro na expressão no rosto do Mestre.
— Você deveria ter me contado isso antes. Se eu soubesse que
foi isso que aconteceu, não teria sorrido como um idiota. — Suas
palavras soaram quase gentis, mas eu podia ver através delas. O
Mestre não falava muito sobre estatuetas. Nos últimos tempos, me
peguei até pensando que ele não as amava tanto. Estava errado.
Os sentimentos escondidos dentro do coração do meu Mestre
queimavam com mais ferocidade do que os de qualquer outra
pessoa. — Vamos dar uma lição àquelas garotas.

Linia e Pursena iam morrer nesta noite. Eu tinha certeza disso.

Tremi pelo que, a princípio, pensei ser medo, mas logo percebi
que era alegria.

— Sim, Mestre!

Com este poderoso aliado ao meu lado, poderia finalmente me


vingar por minha estatueta destruída.

✦✦✦✦✦✦✦

Ponto de Vista do Rudeus

Imperdoável.

Eu definitivamente odiava valentões. Poderia perdoar as garotas


por mandarem em Zanoba como se fosse um servo após o
derrotarem – afinal, elas se acalmaram quando Mestre Fitz fez o
mesmo com elas. Mas eu nunca poderia, jamais, perdoá-las não
apenas por pegar algo que outra pessoa havia feito, mas por pisar e
destruir de propósito! Uma demonstração ultrajante de violência! Era
o mesmo que alguém destruir o computador de outra pessoa! Ugh,
droga. Eu não deixaria que saíssem impunes.
Podia até ser só uma estatueta, mas elas chutaram a Roxy. Ri
dos registros históricos de oficiais do período Edo fazendo supostos
cristãos pisarem em objetos que representavam Cristo para provar
sua culpa, mas agora entendia os sentimentos daqueles cristãos.
Entendi o insulto de ver alguém pisoteando algo em que você
acreditava, bem diante de seus olhos. A verdade por trás da
Rebelião de Shimabara. A Humilhação de Canossa. Os cruzados
que fizeram suas jornadas impossivelmente longas para a Terra
Santa.

Linia e Pursena não entendiam até que ponto minhas memórias


de Roxy me confortavam desde que meu problema de disfunção
erétil surgiu, é claro. Então, eu precisava fazer aquelas vira-latas
perceberem a gravidade do que fizeram. Iria ensiná-las que, quando
vivessem de acordo com seus próprios caprichos egoístas,
colheriam as consequências.

— Você está ouvindo, Senhor Zanoba?

— S-sim?

— Vamos capturá-las com vida. Sem matá-las. Precisam ser


punidas por desafiar Deus.

— Punidas? Sim, entendo.

— No momento, acho que seria melhor se pudéssemos capturar


cada uma delas separadamente.

— Mas as duas estão sempre juntas.

— É mesmo. Não são estúpidas, e são fortes o suficiente para te


derrotar, mesmo sendo duas contra um. Parece que esta será uma
batalha formidável.

— Não! Acho que não são páreo para você, Mestre.

— Não vamos superestimar minhas habilidades. Afinal, a vitória


cai nas mãos daqueles que permanecem humildes. — Eu estava
mantendo minha compostura. Calmo e controlado. Quando eu era
um aventureiro, ser sensato representava a diferença entre a vida e
a morte. Se mantivesse a calma, poderia destruir as duas diabas. —
Certo! Aqui está o meu plano!

— Certo!

— A força de batalha delas é uma variável desconhecida, mas já


conheço o estilo de ataque que usam. Uma irá atacar rapidamente,
usando magia e coisas similares para confundir seu oponente,
enquanto a outra usará a distração para tornar seu inimigo
impotente com Magia Vocal. Se forem atacadas pela retaguarda,
podem trocar de função na mesma hora.

Como Mestre Fitz conseguiu romper a coordenação delas? Devia


ter perguntado isso a ele.

— Mas, desta vez, será duas contra dois. Em uma partida mais
igualitária, você, Zanoba, não deve ter problemas para acompanhá-
las, já que é uma Criança Abençoada.

— Mestre, você nem mesmo precisa de mim. Poderia acabar


com elas sozinho — disse ele.

— Zanoba, você me idolatra porque sou seu mestre. E embora


eu aprecie isso, quando se trata de combate corpo a corpo, minha
amiga de infância, que era dois anos mais velha do que eu, sempre
me batia até eu perder os sentidos. Desde então treinei muito, mas
não posso dizer com sinceridade que me sinto confiante a respeito
disso.

— O quê?! Há alguém por aí que poderia te bater até você


perder os sentidos, Mestre?!

— É claro. Pelo que eu saiba, pelo menos quatro pessoas. —


Eris, Ruijerd, Ghislaine e Orsted. Esses eram apenas os que eu
conhecia – certamente havia mais por aí, e nenhuma garantia de
que Linia e Pursena pudessem não estar entre eles. Se usasse
magia e meu olho demoníaco, seria capaz de derrotar Eris, mas
nunca lutamos a sério um com o outro. Linia e Pursena tinham mais
ou menos a mesma idade que ela. Provavelmente seria melhor
presumir que ambas eram tão fortes quanto a garota.

— Você está sendo humilde demais, Mestre.

— Zanoba, a vitória deve ser absoluta. O passado não pode se


repetir. Mestra Roxy nunca mais deve ser pisoteada. Para ser
honesto, eu realmente gostaria de pedir a ajuda do Mestre Fitz e
Elinalise, mas, infelizmente, os dois parecem estar ocupados.

Elinalise não se envolveria em uma briga pessoal, de qualquer


maneira. Mesmo tendo passado um tempo com Roxy, ela
provavelmente diria: “É só uma estatueta. Não é como se a Roxy
real tivesse levado uma surra.” Que mulher sem coração.

— Muito bem. Vamos lançar o nosso desafio a elas. Na minha


terra natal, enviar uma carta com uma faca e uma única flor é um
costume antigo. Entre as tribos Doldia, atirar frutas podres na
cabeça de seu oponente é, pelo visto, o método equivalente. Certo,
eu nunca tinha ouvido falar desse costume antes, então pode ser
mentira, mas é o que me disseram. O que acha, Mestre?

— Vamos lançar um ataque surpresa — falei.

— O quê? Mas isso não é baixo…?

— Zanoba.

— Sinto muito, falei algo que não devia!

Hmph. Não me importava se ele pensasse que eu era baixo. Não


seria um duelo – seria uma guerra santa. Tudo que precisava ser
feito era vencer!

✦✦✦✦✦✦✦

No final, entretanto, desisti de lançar um ataque surpresa porque


não conseguia pensar em uma maneira de enganar seu olfato
apurado. Decidimos simplesmente emboscá-las, de maneira justa.

Fomos a um prédio a alguma distância do prédio principal da


escola, procuramos o caminho para os dormitórios e nos
acomodamos em um local deserto. Havia um pedaço de floresta
perto de nós, onde cruzamos os braços e ficamos com os pés
firmemente plantados. Já estava de noite. O caminho estava
praticamente deserto. Escolhemos este horário porque era quando
as aulas de nossas oponentes acabavam e elas deixavam o prédio
da escola. Além disso, podiam estar com pouca mana ao final do
dia.

Tirando isso, estávamos esperando um pouco. As garotas


ficavam até o final das aulas, em completo desacordo com sua
imagem de delinquente. Deviam estar sendo dispensadas das aulas
da tarde e se reunindo com o resto de sua laia na frente de uma loja
de conveniência. A noite se aprofundou e a área ao nosso redor
começou a escurecer, engolindo as sombras lançadas por nossos
corpos. Comecei a pensar que seria constrangedor se alguém nos
visse assim, juntos em nossas posturas ridículas, apenas
esperando.

E então elas finalmente apareceram.

— O que é isso, mew?

— O que está acontecendo?

Linia olhou com desconfiança ao nos ver.

— Ei, vocês dois. Vocês estão no nosso caminho, mew. Afastem-


se, mew.

Ela fez suas exigências, mas não nos movemos. Pursena


contraiu o nariz, parecia estar cheirando algo. Ela lambeu as bordas
dos lábios, mostrando um enorme sorriso.

— Linia, parece que eles querem continuar com isso.

Linia deu uma longa olhada em Zanoba, que estava parado atrás
de mim. Então soltou um único suspiro.

— Zanoba, você não se sente envergonhado, mew? Não posso


acreditar que trouxe este garotinho com você para a sua única
chance de vingança.

— Hmph.
Em resposta ao desdém de Zanoba, uma veia azul pulsou na
testa de Linia.

— Ora, seu! Não gosto da sua atitude, mew. Parece que você
quer que quebremos aquela outra estatueta que você tem, mew.

— Grr… Mestre, deixe isso comigo. — Zanoba estava com um


olhar indignado ao se aproximar, mas o contive. Eu compartilhava
de sua raiva.

Ela provavelmente estava falando sobre a estatueta de Ruijerd –


em outras palavras, ameaçando destruir a imagem de outra pessoa
que salvou minha vida, alguém que eu respeitava e considerava um
amigo.

— Não, não se preocupe com isso… — falei. — São elas que


deveriam ter vergonha, sempre agarradas desse jeito. É quase
como se quisessem que todos soubessem que não podem fazer
nada sozinhas.

— O que você acabou de dizer, mew…?!

As meninas irradiavam ameaça e incredulidade, mas eu não


estava com medo. Já conhecia pessoas muito mais intimidantes do
que elas. Se eu dissesse algo ofensivo para Eris, ela não diria
qualquer palavra. Apenas me atacaria.

— Novato! Não fique tão cheio de si, mew! Vou ser legal e deixar
isso passar, já que você é conhecido do meu avô, mas continue
latindo assim e eu vou te destruir!

— Se entendeu, então vá embora, saia daqui, mew! Estamos


ocupadas, somos estudantes de honra, agora que desistimos de ser
delinquentes, mew. Vão brigar em outro lugar, mew — disse Linia,
acenando a mão em nossa direção, como se nos enxotando dali.

Havia um provérbio: “Se você não gosta de um homem, passará


a odiar tudo o que ele representa.” Há muito tempo eu teria achado
esse “mew, mew” muito excitante, mas agora, parecia que ela
estava zombando de mim.

— Você é incapaz de falar de forma normal? As pessoas do


povo-fera que conheço sabem conversar direito. Você não é mais
um bebê, então pare de falar como um!

— Mew?!

Linia ficou de boca aberta. Então suas pupilas se estreitaram


rapidamente. Um suspiro raivoso saiu de seus lábios, e sua cauda
ficou reta e rígida.

— Seu desgraçado… Vou tirar sua roupa e jogar água em você,


mew!

Já tinham feito isso comigo antes. Mas que ameaçazinha mais


patética.

— Tsk. A Linia sempre perde a paciência rápido… porra. —


Pursena murmurou para si mesma enquanto mostrava suas presas
e colocava a mão na boca. Lembrei-me de quando Gustav fez a
mesma coisa e me deixou impotente. Ela estava prestes a usar
Magia Vocal.

— Fwah! — Como se chamada à ação pelos movimentos de


Pursena, Linia deu o pontapé inicial. Houve um estrondo retumbante
quando ela saltou para a esquerda e desapareceu.
Linia se moverá três passos para o lado e, de repente, mudará o
curso e atacará.

Ela era rápida, mas eu já tinha ativado o meu olho da previsão.

— Zanoba! Você cuida da Pursena!

Enquanto eu seguia Linia com meus olhos, empurrei minha mão


em direção a Pursena. Magia Vocal era difícil de rastrear com meu
olho demoníaco. Era melhor pará-la antes que ela usasse, mas eu
não tinha ideia de como o fluxo de mana funcionava para a Magia
Vocal, então não fazia ideia se o Atrapalhar Magia funcionaria. Em
vez disso, conjurei uma grande nuvem de poeira bem na frente dela.

— …! Geheh! Geheh! — Tendo aspirado uma grande quantidade


de ar, Pursena tossiu violentamente toda a poeira que inalou.

— Shah!

Ao mesmo tempo, Linia entrou em ação. Eu conseguia ver. Seu


ataque foi lento, desajeitado e apoiado por toda a força que ela
conseguiu reunir. Eu provavelmente poderia lidar bem com isso,
mesmo sem meu olho demoníaco. Ela não podia se comparar a
Eris, cujos ataques eram mais rápidos, mais nítidos, mais fortes,
mais resistentes e mais bestiais do que os do povo-fera real.

A contra-ataquei. A palma da minha mão bateu em seu queixo.


Isso foi o suficiente para fazer suas pernas estremecerem. Bati meu
punho contra sua têmpora, mandando-a para o chão, onde coloquei
meu pé em seu peito e a acertei com um canhão de pedra. Uma
explosão agradável ecoou ao nosso redor.

— Gyamew?! — Linia se apagou como uma luz.


Levantei meu pé de seu corpo, agora esparramado feito um sapo
no chão. O impacto de nossa batalha levantou sua saia. Hm, então
hoje ela está de branco.

Voltei meu olhar para Zanoba e Pursena. Tínhamos planejado


que ele fosse atrás da atacante à retaguarda, aquela que usaria
Magia Vocal, e ele estava fazendo exatamente como eu instruí.
Pursena estava fugindo de quatro, e ela era rápida… na verdade,
não. Zanoba que era lento. Ele realmente precisava melhorar sua
velocidade de corrida.

Conjurei um atoleiro na frente de Pursena. Seus pés foram


sugados de repente para a lama e ela plantou o rosto naquilo. Ao
mesmo tempo, usei minha magia para endurecer a lama.

— O quê?! O que é isso?! — Pursena entrou em pânico,


tentando puxar seu corpo para fora da terra sólida.

Usei minha mão esquerda para apontar um canhão de pedra


para ela.

— Gyah?!

Houve outro estrondo satisfatório e Pursena desmaiou.

Estava tudo acabado.

— Ufa… certo, venha aqui! — Assim que demos o


sinal, Julie, que estava escondida em um arbusto próximo, correu
até nós carregando um grande saco de juta. Ela e Zanoba
trabalharam juntos para colocar as duas garotas fera rapidamente
dentro dele.
Que luta insatisfatória. Isso era realmente tudo que
havia para ser feito? Se Eris fosse minha oponente, nunca teria feito
um desvio e me atacado de lado. Seu punho sempre percorria a
distância mais curta até o alvo. Ela nunca teria se permitido ser
atingida pelo meu primeiro contra-ataque e, mesmo que o fizesse,
teria recuado na mesma hora para evitar o que viria a seguir.
Mesmo se de alguma forma fosse jogada no chão, voltaria a lutar
comigo e lançaria seu próximo ataque. Eu nunca consegui colocar
meu pé em seu peito. No momento em que tentasse isso, ela
agarraria meu joelho ou tornozelo e quebraria meus ossos – é claro,
isso não teria parado meu canhão de pedra.

E, claro, essas não eram coisas que Eris sabia desde o início.
Foram coisas que aprendeu lutando comigo. Mas também havia
Paul, que encontrara uma maneira semelhante de lidar com meus
ataques, mesmo na primeira vez em que os viu. Um espadachim de
nível Avançado com enorme experiência em batalha poderia
facilmente evitar algo como o meu atoleiro. Quero dizer, nem
mesmo as feras selvagens iriam – na verdade, o retardatário foi
pego em meu atoleiro.

Espera aí. Será que Paul e Eris eram particularmente


fortes? Já tinham me dito que eles eram talentosos, mas…

— Impressionante como sempre, Mestre. Você nem mesmo


precisava de mim. — Zanoba voltou carregando o saco de juta.

Me virei para encará-lo.

— Também estou surpreso.


— Você está sendo humilde de novo. Venha agora, vamos voltar
para o seu quarto.

— Certo. — Percorremos o caminho escuro, com cuidado para


não sermos vistos. — Julie, olhe por onde anda.

— T-t-tá. — Por algum motivo, tive a impressão de que havia


medo nos olhos de Julie enquanto ela olhava para mim.
Capítulo 08:
O Sequestro e o Confinamento das Garotas Feras (Parte
2)
Voltamos para o meu quarto. Diante de nós estavam duas
garotas fera de uniforme, uma com orelhas de gato e a outra com
orelhas de cachorro. Suas mãos estavam amarradas atrás das
costas com algemas feitas de magia da terra e mordaças enfiadas
em suas bocas. Zanoba e eu nos sentamos em cadeiras, esperando
que elas acordassem.

— Mrggh?!

— Mmm! Mmm!

As duas acordaram. Perceberam a situação em que se


encontravam e começaram a gemer fazendo barulho.

— Bom dia — falei baixinho antes de me levantar, olhando para


elas.

Ambas torceram seus corpos e olharam para mim. Havia


preocupação em seus olhares, mas ainda estavam olhando para
mim. Claramente não estavam entendendo a situação em que se
encontravam.

— Pois bem… por onde devemos começar essa conversa? —


Coloquei minha mão no meu queixo enquanto considerava as duas.
Suas saias estavam levantando graças à movimentação que
estavam fazendo, expondo suas coxas. Um verdadeiro espetáculo
para ser visto.
— Mm?! — Pursena percebeu para onde eu estava olhando e
sua expressão mudou para uma de inquietação. Linia, ao contrário
dela, não parava de me encarar.
Eu tinha duas garotas do ensino médio com orelhas de animais
amarradas diante de mim, suas roupas bagunçadas, completamente
incapazes de se mover. Já tinha ouvido histórias sobre a predileção
da família Greyrat pelo povo-fera e, embora nunca tivesse tido esse
fetiche, era possível que perder minha virgindade tivesse
despertado algo dentro de mim. Será que isso poderia ajudar a
curar a minha condição?

Decidindo fazer alguns testes, mexi meus dedos enquanto deixava o


peito de Pursena ao meu alcance. Ela fechou os olhos com força,
mantendo uma expressão terrível em seu rosto, como se essa fosse
a pior forma de tortura que eu poderia imaginar. Não. Isso não dava
uma boa sensação. Não dava sensação nenhuma, na verdade. Meu
carinha não soltou nem um pio, não deu qualquer sinal de que
poderia despertar de seu longo descanso.

Retirei minha mão e me afastei, Pursena parecia confusa. Ela voltou


a cheirar o ar e sua expressão mudou para uma de alívio, isso até
que um olhar conflituoso surgiu em seu rosto.

— Mestre? Como devemos puni-las? — perguntou Zanoba.

Olhei para Linia. No momento em que nossos olhos se encontraram,


ela olhou para mim com raiva. Em minha vida anterior senti algum
apreço pelo BDSM, mas ver algo na tela de um computador era
completamente diferente de ver na vida real. Não havia motivo para
eu continuar com isso.

— Vocês sabem por que estão nessa situação? — perguntei. As


garotas trocaram olhares e balançaram suas cabeças. Linia parecia
estar prestes a gritar, então removi a mordaça apenas de Pursena.
Depois de pensar por um momento, ela deixou escapar:

— Tenho certeza de que não fizemos nada com você.

— Ah, então você não fez nada comigo, hein?! — Eu


propositalmente repeti suas palavras, estalando meus dedos.
Zanoba estava timidamente carregando uma caixa. Uma vez aberta,
revelou a estatueta tragicamente fragmentada de Roxy. — Não
foram vocês duas que fizeram isso?

— Ugh… o que é que tem essa estatueta assustadora?

— Assustadora! — repeti suas palavras. Ela estava chamando Roxy


de assustadora?! A Roxy na qual coloquei tanta dedicação?! Aquela
que vendeu instantaneamente por ser uma obra-prima – ela era
assustadora?!

Não, acalme-se. Vamos levar isso numa boa. Respira fundo. Só


inspira… e expira. Só inspira… e expira!

— Este é um símbolo do meu Deus.

— S-seu Deus?

— Isso mesmo. Fui capaz de partir e descobrir o mundo porque ela


me salvou. — Me movi para o canto do meu quarto enquanto falava.
Lá estava meu altar. O altar foi a primeira coisa que montei assim
que entrei neste quarto. Abri suas portas duplas e deixei que vissem
seu interior.

— Mm!

— O-o que é isso?


— M-Mestre, isso é…?

—…

Todos ficaram impressionados com a divindade do objeto de


adoração que estava ali dentro. Até Zanoba se encolheu e Julie
agarrou a bainha de sua camisa.

— Essa estatueta foi criada à imagem do meu Deus. E vocês duas a


chutaram, pisaram e estilhaçaram.

Linia e Pursena arregalaram os olhos, olhando para trás e para


frente, entre meu rosto e o altar, depois lentamente para Zanoba e
Julie, antes de por fim se voltarem mais uma vez para mim. Seus
rostos estavam completamente pálidos. Até mesmo verdes. Verdes
como grama. Mas agora ao menos parecia que entendiam o que
tinham feito.

— Bem, vocês têm alguma maneira de justificar suas ações?

Pursena levou alguns segundos para pensar na minha pergunta.


Então ela disse:

— V-você entendeu mal! Quem pisou nela foi a Linia. Eu disse para
ela parar.

— Mm?!

No lugar de pedir desculpas, ela ofereceu desculpas. Muito bem.


Parecia que este viria a ser um espetáculo interessante, então tirei a
mordaça de Linia. Quando fiz isso, as duas começaram a gritar uma
com a outra com vozes estridentes.
— Foi Pursena quem disse: “Você não precisa de algo assim, isso é
assustador”, mew!

— Mas foi você quem pisou nela!

— Meu pé escorregou, mew. Além disso, no final você também deu


um chute naquilo, mew! E você também riu quando viu o Zanoba
procurando os pedaços durante a noite toda, mew!

Então ele procurou pelos pedaços durante a noite toda – alguns


deles, como o tornozelo quebrado, eram tão pequenos quanto a
ponta do meu dedo mindinho. Zanoba, meu pupilo. Meu coração se
encheu de carinho por ele. Ele estava se enfiando bem no meio da
minha rota de romance. Muito bem, Zanoba!

Enfim. De volta aos negócios.

— Calem a boca! As duas são igualmente responsáveis. —


Primeiro, acabei com suas tentativas vergonhosas de jogar a forca
para o outro lado. Então, declarei o veredito: — As hereges devem
ser punidas. Dito isso, minha religião acabou de ser estabelecida,
então ainda não decidi a respeito da punição nesses casos. Como
tal crime seria punido em sua aldeia?

— S-se você fizer algo estranho conosco, meu pai e meu avô vão
atrás da sua cabeça, mew! Eles são os dois guerreiros mais fortes
da Grande Floresta, então… ah… — Linia parou um pouco,
parecendo lembrar que eu também conhecia Gyes e Gustav. Isso
me fez lembrar de minha punição na Grande Floresta.

— Senhor Gyes? Ah, sim, lembro bem dele. Ele me acusou


injustamente de ter feito algo repreensível à Fera Sagrada, então
me despiu, jogou água fria em mim e me deixou em uma cela por
sete dias. Então tá. Por que não fazemos a mesma coisa com vocês
duas?

Eu não queria dizer bem isso, é claro. Na época tinha ficado um


pouco irritado com essas coisas, mas não guardava rancor do povo-
fera por causa do meu cativeiro – mas não era como se Linia e
Pursena soubessem disso. As duas ficaram sem palavras, seus
rostos estavam ficando brancos feito o de fantasmas.

— N-não, nós faremos o que você quiser, então tudo menos isso,
por favor, mew!

— Você pode fazer o que quiser com a Linia. Então tenha


misericórdia ao menos de mim!

— Isso aí que ela disse, mew! Você pode fazer o que quiser
comigo… gwah?!

Mas que idiotas.

— Vocês Doldia são cruéis em sua punição quando se trata de sua


amada Fera Sagrada, sabe? Claro, pediram desculpas assim que
perceberam que eu fui injustamente acusado… mas, neste caso,
vocês duas com certeza são culpadas.

— Por favor, perdoe-nos. Não sabíamos que a estatueta era tão


importante!

— Tenho certeza que não — concordei.

— E jamais faremos isso de novo.


Como se eu fosse permitir uma segunda vez! Essas duas poderiam
nunca entender como era ver algo precioso para você sendo
destruído diante de seus olhos. Mesmo nesse momento, eu
lembrava da visão do meu irmão mais novo destruindo o meu
computador com um taco. Ainda podia sentir o gosto do desespero
que senti naquela época. O sentimento ao ter minha única forma de
apoio despedaçada!

— Vamos nos desculpar, mew. Vamos até mesmo mostrar nossas


barrigas para você, mew.

— Isso mesmo, é constrangedor, mas faremos!

Me mostrar as suas barrigas? Ah, aquela forma de reverência do


povo-fera que Gyes fez por mim. Uma reverência nada sincera não
seria o bastante para reprimir minhas emoções.

— Se querem meu perdão, então retornem minha estatueta ao seu


estado original!

— Isso mesmo! Até mesmo o Mestre é incapaz de restaurá-la à sua


antiga glória! — Zanoba as castigou.

Mas isso não era verdade… As peças estavam todas lá, e a parte
mais importante, o cajado, estava completamente intacto. Minhas
habilidades também melhoraram desde que a criei. Agora podia
fazer estatuetas mais detalhadas, sem quaisquer linhas perceptíveis
por onde os segmentos se juntavam.

Espera.

Isso mesmo! Eu poderia consertá-la. Não era como se não tivesse


conserto.
—…

Assim que percebi isso, minha raiva se dissipou rapidamente. Elas


se desculparam… e, na verdade, o que eu estava fazendo no
momento era meio que contra a lei. Bem, se a notícia sobre isso se
espalhasse, eu estaria em apuros. Se, por exemplo, um certo
careca empunhando uma lança viesse a saber algo sobre esse
espetáculo…

Não! O problema não era esse! O problema era que essas duas não
tinham escrúpulos e destruíram algo que era precioso para outra
pessoa. Se eu acabasse lhes mostrando bondade neste momento,
com certeza voltariam a fazer a mesma coisa! Mas agora que havia
me acalmado, não conseguia pensar em nenhuma forma
satisfatoriamente diabólica de punição.

— Zanoba, você tem alguma ideia? — perguntei.

— Vamos fazer que enfrentem o mesmo destino que a minha


estatueta! — Ele tinha um olhar implacável.

— Não. Matá-las seria exagero. Não gosto de assassinatos.

— Então vamos vendê-las como escravas. Acredito que haja uma


família em Asura com um amor intenso pelo povo da tribo Doldia.
Alguém com certeza pagaria bem por escravas assim, mesmo se
isso significasse quebrar algum tratado.

Ele estava querendo começar uma guerra com o povo-fera…? Isso


estava indo longe demais.

— Escute, Zanoba. Brincadeiras à parte, elas são princesas. Se nos


empolgarmos, sofreremos as consequências no futuro.
— Você nunca para de me surpreender, Mestre. Mesmo com tanta
raiva quanto você está, ainda tem a capacidade para pensar em
autopreservação.

Hmm. O que fazer com elas? Eu poderia restaurar a estatueta.


Queria fazer algo para que este incidente tivesse um final
satisfatório, mas… hmmm.

*******

— E foi isso que aconteceu. — Sem saber o que fazer, procurei


pelo Mestre Fitz, assim como recentemente se tornara meu hábito.
Ele tinha uma resposta para quase tudo que discutíamos.

— E-espera aí. Então elas estão sendo mantidas em seu quarto


neste momento?

— Sim, estão. Ah, mas não se preocupe, já informei aos


professores que elas não assistirão às aulas de hoje.

— Um, então você está dizendo que as capturou e, uh, as


confinou, com a ajuda do Zanoba?

Isso soava até bem. Aprisionei duas beldades com orelhas de


animais. Parecia algo que estaria em minha lista de desejos durante
minha vida anterior.

— Rudeus, um, uh, já que você as prendeu, você…? — Quando


o Mestre Fitz olhou para mim, seu rosto estava brilhando de tão
vermelho, seus olhos cheios de desaprovação.

Ah não, parecia que ele tinha entendido mal.

— Não, não, eu não fiz nada com elas.


— S-sério? — perguntou ele.

— O pior que fiz foi apalpar o peito delas — assegurei.

— E-então você tocou no peito delas…!

— Eu queria testar uma coisa.

— Hein…? Então você não tocou neles por outros motivos?

Ele provavelmente estava perguntando se eu os toquei com


intenção sexual. Suponho que as pessoas poderiam responder com
um grande sim, mas, da minha perspectiva, na verdade foi só uma
tentativa de curar a minha condição. Foi só um experimento.

— Não, não tive outros motivos.

A expressão do Mestre Fitz relaxou um pouco.

— E-então tá bom. Mas temos um problema. Apesar do


comportamento delas, ainda são descendentes de líderes tribais.

— Não se preocupe. Conheço o Chefe Tribal e o Líder Guerreiro.

— O quê?! Sério?

— Sim. Então, se eu contar para eles que dei uma lição naquelas
duas por estarem vadiando na escola, tenho certeza de que vão
entender.

— C-como você conheceu o Chefe Tribal? Os Doldia são bem


indiferentes em relação às outras raças… E é extremamente raro se
encontrar com alguém como o Chefe Tribal.

Contei a história da minha passagem pela Grande Floresta ao


Mestre Fitz. Enquanto falava sobre isso, percebi que foi um episódio
bastante patético da minha parte. Tentei resgatar as crianças, só
para ser capturado, e então passei todos os dias desde que a
liberdade cantou só brincando com um cachorro e fazendo
estatuetas.

— Uau, você é realmente incrível, Rudeus. — E, ainda assim, o


Mestre Fitz deixou um suspiro de espanto escapar assim que eu
terminei. — Para que até a Fera Sagrada tenha desenvolvido
carinho por você… Isso é incrível.

— Suponho que até um vira-lata consegue dizer quando alguém


salvou a sua vida.

— É melhor você não usar essa palavra na frente do povo-fera —


avisou o Mestre Fitz.

É claro que sei disso. Eu sabia muito bem que alguns limites não
deveriam ser ultrapassados. “Vira-lata” era um termo carinhoso meu
e da Fera Sagrada.

— Deixando isso de lado, eu poderia usar sua sabedoria neste


assunto. Como posso dar uma lição nelas sem desencadear um
ressentimento que resultará em uma vingança futura?

— Essa é uma pergunta difícil. — Mestre Fitz cantarolou ao


pensar. — Eu concordo que atacar alguém e depois destruir seus
pertences é imperdoável.

Pensei que ele poderia me dizer para apenas soltar as duas, mas
sua raiva parecia ser alimentada pelo fato de que elas tiveram como
alvo alguém que ele conhecia. Considerando suas ações no
mercado de escravos, Mestre Fitz podia ser uma pessoa com um
forte senso de justiça.

— Certo! Tive uma ideia — disse ele.

Uma frase como essa, na ficção, normalmente era acompanhada


por bastante azar. Nós partimos juntos em direção ao meu quarto.

*******

Um cheiro acre pairava no ar do cômodo. O chão estava úmido e


Linia e Pursena estavam caindo de exaustão. As duas pareciam
desconfortáveis, então usei magia para limpar a bagunça e abri a
janela para deixar entrar um pouco de ar fresco. Tirei suas roupas
íntimas sujas e as limpei com magia.

Olhei para os rostos de ambas, só para descobrir que cada uma


delas estava com um olhar totalmente derrotado.

— Você pode ser violento com a gente se quiser, mew. Mas


mesmo se for nos manter no seu quarto, ao menos nos desamarre,
mew. Por favor, nós prometemos que não vamos correr, mew. —
Como uma felina do povo-fera, devia ser difícil para ela ficar
amarrada por quase vinte e quatro horas.

— Nos dê ao menos algo para comer. Qualquer coisa serve. Não


vou uivar de noite. E também não vou te morder…

Eu não podia acreditar que as duas se renderam depois de um


único dia. Devia ser a falta de comida, imaginei. Afinal, as pessoas
se tornam fracas diante da fome.
Soltei as duas e elas se ajoelharam na minha frente. Meus lábios
se curvaram de prazer com a visão, mas é claro, minha virilha não
revelou o mesmo interesse.

— Rudeus — advertiu o Mestre Fitz. Ele estava por perto,


lavando as roupas íntimas das duas.

— Ah, claro. Parece que vocês duas estão arrependidas, então


estou pensando em perdoar vocês. Devem ter ficado apavoradas,
presas em um dormitório cheio de homens loucos por sexo.

— Isso mesmo, mew.

— Cada vez que eu ouvia passos, pensava que o fim estava


próximo…

— De agora em diante faremos o que você mandar, mew.


Seremos suas seguidoras, mew.

— Por favor, perdoe-nos — acrescentou Pursena. Parecia que


elas tinham pensado muito em suas ações.

— Vocês não precisam ser minhas seguidoras. E a única coisa


que não irei tolerar é que tirem sarro de Roxy.

As duas empalideceram e concordaram sem perder tempo.

— É claro, mew. Se zombarmos do Deus de outra pessoa, então


mereceremos o que recebermos, mew.

— Lembro de quando fui perseguida por aqueles Cavaleiros do


Templo… foi assustador — disse Pursena.

— Na verdade, minha tia faz parte dos Cavaleiros do Templo.


Quando eu falei isso, as duas ficaram ainda mais pálidas do que
antes. Ter conexões com certeza era uma moeda valiosa neste
mundo.

Quando Fitz terminou o que estava fazendo, elas vestiram as


roupas de bom grado. (Por que era tão excitante, me perguntei, ver
uma garota colocando a calcinha?) Com o perigo iminente tendo
passado e com suas roupas vestidas, as garotas recuperaram um
pouco de seu comportamento normal.

— Embora eu tenha dito que faríamos tudo o que você dissesse,


qualquer coisa que puder resultar em um filho está fora de questão,
mew — disse Linia. — Primeiro quero ter um namoro apropriado
com alguém, e depois me casar e ter filhos, mew.

— Concordo — disse Pursena. — Mas vou permitir que você


apalpe os seios da Linia de vez em quando.

— É, mew. Às vezes você pode… espera aí, por que os meus?!

— Eu custo caro. Você só pode tocar nos meus se me der carne


de primeira.

— Cuidado, Rudeus — avisou o Mestre Fitz. — Não baixe a


guarda perto delas.

— Mew?! Espera aí, Fitz, não diga coisas do tipo, mew!

— Isso aí! — concordou Pursena.

— O chefe é um monstro com alguns parafusos soltos! Se ele


nos derrotar de novo, não há como dizer o que ele fará conosco,
mew! Não somos burras o suficiente para tentar!
Quem elas estavam chamando de monstro? Que falta de
educação. Mas se eu soubesse que era isso que pensavam de mim,
poderia dormir profundamente à noite.

— Chefe, agora nós podemos ir para casa? — perguntou


Pursena, inclinando um pouco a cabeça. Espere, por que ela estava
me chamando de chefe? Não que eu me importasse… — Estou
com fome. Quero ir para o meu quarto e comer o meu estoque de
carne seca.

— É, nós estamos aqui desde a noite passada, sem comida nem


água, mew.

— Vocês não aprenderam a lição, né? — disse o Mestre Fitz.

— Fitz, isso não tem nada a ver com você, mew.

— Isso mesmo. Vai se foder.

O Mestre Fitz parecia atordoado.

— Vocês duas, sentem! — gritei.

— Sim senhor!

— Woof!

— Mestre Fitz, mudei de ideia. Por favor, faça como discutimos.

Ao meu comando, Fitz pegou alguns itens do bolso. Era essa a


boa ideia que ele mencionara – um frasco cheio de tinta preta e um
pincel.

*******
Assim que terminamos, minha raiva tinha se dissipado quase por
completo.

— Fitz, vamos lembrar disso, mew…

— Porra.

Linia e Pursena tinham olhares amargos em seus rostos. Suas


sobrancelhas estavam unidas em uma monocelha, cheias de
rabiscos nas pálpebras. Cada uma delas tinha um bigode pintado ao
redor dos lábios. Por fim, em suas bochechas estavam as palavras:
“Sou uma cadela que perdeu para o Rudeus” e “Sou uma bichana
que perdeu para o Rudeus”, respectivamente.

— Esta tinta especial é usada por uma certa tribo para modelar
os seus corpos — explicou o Mestre Fitz. — Se eu entoar o
encantamento correto, as marcas se tornarão permanentes. Mesmo
a água jamais irá removê-las. Se fizerem algo, usarei o
encantamento e vocês ficarão com isso nos seus rostos para
sempre!

— B-bem, nós entendemos, mew. Não precisa gritar, mew.

— Nós entendemos. Vamos obedecer. Nós juramos.

Elas balançaram as cabeças, tremendo de medo. Bem, seus


rostos estavam bem macabros. Se ficassem daquele jeito para o
resto de suas vidas, isso iria destruir suas chances de conseguir se
casar. Mestre Fitz foi bastante cruel.

— Por agora podem ir para casa, mas precisam manter isso em


suas caras até amanhã. Depois eu tiro. Mas não vou remover o
feitiço de seus corpos pelos próximos seis meses, então
mantenham isso em mente! — Havíamos escrito algumas coisas
muito embaraçosas nas duas.

— A gente já entendeu, dá um tempo, mew.

— Sniff… — Pursena tinha lágrimas nos olhos.

Se as garotas fossem vistas andando pelos corredores, isso iria


levantar algumas questões, então, por isso, saíram pela janela.
Estávamos no segundo andar, mas elas eram mais do que capazes
de fazer isso – ou, pelo menos, foi o que eu presumi.

Antes de partirem, Linia se virou para mim como se tivesse


acabado de pensar em algo.

— Chefe, você foi capaz de prever nossos movimentos, mesmo


sendo só um mago. Que tipo de treinamento você fez para
conseguir isso?

— Nada de especial. Segui os ensinamentos da minha mestra e


me movi da forma que devia, isso é tudo.

— Quem é a sua mestra, mew?

— Uh, deve ser a Ghislaine, eu acho.

— Ghislaine? Quer dizer a Ghislaine da tribo Doldia, mew?


Ghislaine, a Rei da Espada?

— Ela mesma. — Isso mesmo; como Linia era filha de Gyes,


então Ghislaine era sua tia.

— Entendo, mew. — Parecia que tudo tinha passado a fazer


sentido para Linia. — Até mais, mew.
— Até, chefe. Sentimos muito pela estatueta. — E as duas foram
embora.

Depois de tudo acabado, o Mestre Fitz soltou um suspiro.

— Sinto muito, Rudeus. Acho que me empolguei um pouco.

— De forma alguma. Considerando os detalhes, acho que correu


tudo bem. — Mas, o mais importante… — Você disse algo sobre um
encantamento especial que torna a tinta permanente. E se houver
outra pessoa por aqui que também conheça esse encantamento?

— O quê? Ah, aquilo foi mentira — disse o Mestre Fitz friamente.


— A tinta mágica existe, mas a que eu usei era só a do tipo barato
que é usada para desenhar círculos mágicos. Ela vai desaparecer
assim que for lavada com um pouco de mana.

Ele ria enquanto falava. Quase como uma criança que foi bem-
sucedida ao pregar uma peça em alguém. Isso era incrivelmente
cativante.

*******

O Mestre Fitz ficou no meu quarto por um tempo. Ele estava por
algum motivo inquieto, parecia incapaz de se acalmar. Vagava sem
rumo, parando só quando encontrou algo peculiar e resolveu me
perguntar a respeito.

— O que é isso? Há algo aqui dentro? — Seus olhos perspicazes


se voltaram para o meu altar.

— Ele abriga uma relíquia do Deus da minha religião — respondi.


— Hã? Então você não segue a crença Millis. Se importa se eu
der uma olhada no que está aqui dentro?

— Chama Doutrina Roxy… por favor, não abra isso! —


Rapidamente o parei quando ele tentou abrir as portas do altar. A
relíquia lá dentro era tão divina que seria perigoso se fosse vista por
olhos humanos… e poderia fazer ele pensar que eu era um
estranho por guardar uma calcinha. Ontem devo ter enlouquecido,
mostrando isso para tantas pessoas.

— Ah, foi mal. — Ele rapidamente afastou as mãos. Enquanto


continuava olhando pelo quarto, seu olhar vagou em direção da
minha cama. Ele levantou o meu travesseiro. — Isso faz um
barulhinho quando você aperta.

— Eu mesmo fiz. — Estava cheio de sementes de um Ente


Mostarda, um dos monstros que viviam nas florestas dos Territórios
Nortenhos. Se quebrasse a semente, encontraria uma coisa
parecida com uma noz, mas a casca lembrava um pouco a palha do
trigo sarraceno. Eu quebrei tudo e enfiei dentro de uma fronha,
então cobri a parte de fora com uma pele de fera. Com isso, meu
sono tranquilo estava garantido.

— Nossa. Se importa se eu testar?

— Vá em frente.

O Mestre Fitz soltou o travesseiro e se acomodou na cama.

— Este travesseiro é bom.

— Você é o único que disse isso. — É claro que a única outra


pessoa que o experimentou foi Elinalise, que disse: “Prefiro o braço
de um homem do que esse travesseiro.”

Fitz manteve os óculos escuros mesmo quando estava deitado


na cama. Ele devia ser bem apegado a eles. Me perguntei se algum
dia deixaria eu ver o seu rosto. A menos que aqueles óculos
escuros fizessem parte dele. Me perguntei… o que aconteceria se
eu estendesse a mão e os tirasse?

Não – ele disse que havia uma razão para usá-los. Poderia, por
exemplo, ter um complexo de aparência. Vamos deixar isso pra lá,
pensei. Eu não queria que ele me odiasse.

O silêncio pairou sobre nós por algum tempo. Percebendo que eu


estava olhando para ele, o Mestre Fitz se levantou. Por algum
motivo, pensei que suas bochechas pareciam vermelhas, mas
provavelmente era só imaginação minha.
— Você quer ver?

Meu coração acelerou no momento em que ele disse isso. O que


era isso? O que eu queria ver? O que foi que ele pensou que eu
queria ver?

— Ver o quê?

Foi uma pergunta tão estúpida. Seu rosto, é claro. Levando o


contexto em conta, a resposta era tão óbvia.

— Meu rosto.

Aí, viu. O rosto dele. Por que não pensei nisso antes? Parecia
até que estava esperando que ele me mostrasse outra coisa. Ele
era um homem, então o que é que eu iria querer ver? Que parte
dele que eu queria que ele me mostrasse?

Olhamos um para o outro através de seus óculos escuros. Senti


como se meu rosto estivesse esquentando. Minhas bochechas
talvez também estivessem ficando vermelhas.

— Eu quero ver.

— Tudo bem — disse ele, colocando os dedos na borda de suas


lentes. Mas eles só chegaram até lá, e então congelaram. Seus
lábios ficaram tensos de nervosismo e suas mãos pareceram
tremer. Era igual uma menina com os dedos presos na calcinha;
uma garota que estava na frente de um homem, prestes a tirar a
última peça de roupa que cobria o seu corpo. De alguma forma,
também fiquei nervoso. Não; por que diabos eu estava me sentindo
nervoso? Comparar isso a uma garota se despindo não fazia
sentido algum!
Ele considerava mostrar o seu rosto como algo íntimo? Não, isso
era um absurdo. O Mestre Fitz provavelmente só tinha alguma
característica especial que o deixava constrangido. Como uma
enorme cicatriz de queimadura ou olhos esbugalhados como os de
um camaleão! É, só podia ser isso. Sem dúvidas.

— Só… — Fitz finalmente falou. — Estou brincando! Desculpa,


mas são ordens da Princesa Ariel. Não tenho permissão para
mostrar meu rosto a ninguém. Tenho cara de bebê, e isso iria
acabar com a reputação que construí como o terrível Fitz Silencioso.

Eu estava errado. Pelo visto, eram ordens reais. Bem, isso fazia
sentido. Com que tipo de bobagem eu estava sonhando?

— A-ah, então é isso. Bem, eu não tenho intenção de te forçar a


algo.

— Um, obrigado, agradeço por você dizer isso — disse ele,


levantando-se da cama com pressa. — É melhor eu me apressar e
ir auxiliar a Princesa Ariel.

— Tudo bem, tome cuidado.

— Claro. Te vejo depois, Rudeus.

— Obrigado pela sua ajuda hoje.

— De nada. — O Mestre Fitz também saiu pela janela, assim


como as duas garotas do povo fera tinham feito antes. Por mais que
eu quisesse dizer para ele usar o corredor, sair pela janela
provavelmente seria uma forma mais rápida para chegar ao
dormitório feminino. Ah, que seja.
— Uff…

Por algum motivo, me senti um pouco aliviado. Se o Mestre Fitz


tivesse me mostrado o seu rosto… Senti que isso poderia levar a
algo que não poderia ser desfeito. Senti que seria um mundo que eu
não poderia deixar depois de ter entrado. Um mundo de desejo gay,
talvez.

Eu agora estava sozinho em um quarto que continuava com um


fedor bestial terrível. Polvilhei o pó desodorizante que aventureiros
normalmente usavam e deitei na cama. Meu travesseiro tinha um
cheiro estranho; assumi que fosse o cheiro do Mestre Fitz. Não era
desagradável.

— Deixando isso de lado…

Me coloquei em algumas situações muito estimulantes junto com


as garotas sequestradas, mas ainda não tinha visto qualquer sinal
de recuperação. Na verdade, ficar sozinho com o Mestre Fitz teve
mais efeito do que qualquer outra coisa. Senti vontade de chorar.

*******

No dia seguinte, mostramos a Zanoba tudo o que pintamos nas


duas antes de apagarmos. A expressão em seu rosto dizia que isso
não era o suficiente para acalmá-lo, mas o repreendi:

— Não é como se você realmente tivesse ajudado desta vez, não


é? — Então, apliquei alguns reparos emergenciais na estatueta da
Roxy, e ele logo sorriu e perdoou as garotas.

Eu também me desculpei por mantê-las amarradas por tanto


tempo, mas…
— Isso não foi nada, mew! Não aconteceu nada, mew, só
acabamos perdendo e ele nos levou ao quarto para desenhar na
nossa cara, isso é tudo, mew!

— É o que ela disse. Não aconteceu nada. Sério, nada mesmo.


Brrrrr…

Se essa era a versão da história que elas queriam contar, que


fosse.

Um final feliz para todos.


História Paralela:
Sylphiette (Parte 2)
Hoje eu vi o Rudy de novo, caminhando pelo corredor. Tenho o
visto com mais frequência nos últimos tempos. Há apenas alguns
meses, ele caminhava sozinho, mas agora geralmente fica na
companhia de Zanoba, Julie, Linia ou Pursena.

Mesmo assim, eu não consegui falar com ele. Estava sempre


ocupada cuidando da Princesa. Queria que o Rudy me oferecesse
ajuda, mas ele não parecia se lembrar de mim. Nossos olhos se
encontraram inúmeras vezes, mas ele nunca mostrou sinais de
reconhecimento. Devia me ver como nada mais do que um dos
Assistentes da Princesa.

Nesse meio tempo, tive que ver enquanto Rudy e Pursena saíam
para assistir a uma aula de magia de cura. Por que tinha que ser a
Pursena? Rudy gostava de garotas como ela? Sua relação com a
família Notos lhe fazia ter preferência por seios grandes? Os seios
fartos de Pursena podiam ser vistos mesmo de longe. Todas as
mulheres fera eram bem dotadas, incluindo Linia, mas Pursena era
excepcional.

Linia e Pursena idolatravam Rudy, referindo-se a ele como


“Chefe”. Eram todos alunos especiais, e isso os tornava ainda mais
próximos. Ele e Pursena talvez estivessem em um relacionamento.
Eu não conseguia pensar em nenhum outro motivo para verem
aulas de cura juntos.

Não – Rudy era um estudante sério. Ele podia estar cursando


isso para fins acadêmicos. Mas, por que Pursena estava assistindo
com ele? Ele podia ficar sentado ao lado dela durante a aula,
ensinando todas as coisas. Assim como costumava fazer comigo,
há muito tempo. Podiam estar dividindo o mesmo livro, se inclinando
até ficarem bem próximos…

— Qual é o problema?

Dei um pulo quando a Princesa falou comigo. Em algum


momento, chegamos à sala do conselho estudantil. Agora
estávamos sós, não havia uma alma viva por perto.

— Não é nada. — Eu falava formalmente quando outras pessoas


estavam por perto, mas preferia ser mais casual sempre que podia.
A Princesa não iria me repreender por isso.

— Se você tem certeza. Apenas um momento atrás, parecia que


você estava olhando para o Rudeus. — A Princesa sorriu. Não era
um sorriso falso. Era um que indicava que ela achava divertido me
observar.

Isso me irritou um pouco.

— Já disse que não foi nada.

— Cada vez que o Rudeus passa, você o segue com os olhos.

— Não posso?

— Não, eu nunca disse isso — respondeu ela, embora seu


sorriso estivesse turvo, como se dissesse, no entanto… — Me sinto
um pouco irritada com o Rudeus por ele não lembrar de você.

— Hein?
— Você manteve sentimentos tão fortes por ele, por esse tempo
todo, mas é como se ele nem lembrasse de você.

— Bem… mas, quer dizer, eu não disse o meu nome para ele.

A Princesa olhou para mim com surpresa.

— Você não disse o seu nome para ele?

— Uh, um… não. Ainda não falei para ele.

— Eh… Você me disse que ele não se lembrava de você, então


eu simplesmente presumi… — A Princesa parecia confusa, olhando
para seu Cavaleiro.

O Cavaleiro também tinha uma expressão complexa no rosto.

— Você não contou nem o seu nome?

— Bem, não é como se eu tivesse escolha. E se eu contar e ele


não lembrar de mim? — falei, fazendo beicinho. O Cavaleiro fez
uma careta. — Que cara é essa?

— Ah, não é nada. — Ele parecia relutante em dizer isso. —


Princesa Ariel, o que você acha disso?

— Hm, bem, parece que ela é mais covarde do que eu pensava.


— Ariel sussurrou essas palavras, mas eu as ouvi. Claro, eu não
tinha nada que pudesse dizer em minha defesa. Era verdade que eu
estava agindo feito covarde.

— Pessoalmente, considerando o quão impressionante é a cor


do cabelo da Sylphie, acho que é um pouco cruel da parte do
Rudeus ainda não a reconhecer.
— Concordo.

Quando disseram isso, coloquei a mão no meu cabelo. Meu


cabelo, que vivia implacavelmente bagunçado quando eu era
pequena. Mesmo assim, não havia como Rudy ser capaz de me
reconhecer só por isso.

— Princesa Ariel, gostaria que você deixasse esse assunto


comigo — pedi.

— Luke, você tem alguma boa ideia?

— Ele é descendente da linhagem Notos. Se você jogar uma


mulher com boas curvas nele, tenho certeza de que…

— Definitivamente não! — Meu grito ecoou pela sala. Por um


momento, nem percebi o que tinha falado. Foi só porque a Princesa
e seu Cavaleiro olharam diretamente para mim que me dei conta –
eu gritei. Instintivamente cobri a boca com a mão. — Desculpa.

Nenhum deles me criticou por isso. Em vez disso, trocaram


olhares complicados e começaram a sussurrar entre si. Desta vez,
suas vozes estavam tão abafadas que não pude ouvir o conteúdo
de sua conversa. Provavelmente estavam discutindo como iriam
lidar comigo. Ou Rudy. De qualquer forma, tive um mau
pressentimento.

— Sylphie — disse a Princesa.

— Sim?

— Posso te fazer uma pergunta? É algo que já te perguntei


várias outras vezes.
A Princesa não parecia estar com raiva. Se muito, seu olhar
parecia frustrado. Talvez tivesse ficado aborrecida ao saber que eu
ainda nem tinha contado meu nome para o Rudy.

— Não há algo que você queira fazer? — perguntou ela.

— Não. Agora, tudo que eu quero fazer é trabalhar de uma


maneira que te beneficie, Princesa — falei após um breve silêncio.

Ao ouvir isso, a Princesa ergueu o queixo, como se estivesse


olhando baixo para mim. Era raro ver ela fazendo isso. Mas, embora
seus olhos estivessem semicerrados, ainda estava sorrindo.

— Então é assim que você se sente.

— Algo de errado?

— Talvez você ainda não tenha percebido.

Para falar a verdade, eu sabia o que ela estava tentando dizer.


Eu sabia, mas não podia responder com honestidade. Se o fizesse,
seria como uma traição.

— Sylphie.

— Sim? — Olhei para ela. Quando o fiz, ela sorriu. Não foi um
sorriso falso igual ao de uma boneca, mas sim um aliviado, do tipo
que eu só via uma ou duas vezes por ano. Não, não via com tanta
frequência. Quando foi que vi ela sorrir daquele jeito pela última
vez?

Enquanto estava lá, afundando em perplexidade, a Princesa


disse:
— Não vou te apressar nas coisas com Rudeus. E também não
me importo se você continuar como Fitz. Faça o que quiser.

E então me lembrei. Quando nos conhecemos, eu costumava vê-


la assim com mais frequência. Mas não tinha visto isso desde que
chegamos na Cidade Mágica de Sharia. Um sorriso despreocupado.

Naquela noite, me aninhei em meu cobertor, pensando nas


coisas. Eu sabia o que queria fazer. Na verdade, eu sabia o tempo
todo. Queria me aproximar de Rudy. Queria que nossa amizade
fosse como antes, para compartilhar risos alegres, para brincar
juntos, para que ele me ensinasse coisas, para reconstruir nosso
relacionamento e voltar ao que éramos. Não queria o mesmo tipo de
relacionamento que tinha com a Princesa. Queria ser igual ao Rudy,
ficar ao lado dele, ombro a ombro.

Era isso que eu queria no momento. Não – isso era o que eu


queria desde que morávamos em Buena Village. Mas com certeza
não estava de acordo com os objetivos da Princesa.

A Princesa queria Rudy como um de seus seguidores, mas ele


estava claramente evitando ela e seus associados. Talvez pudesse
sentir as suas intenções, considerando o quão inteligente ele era.
Se eu chegasse mais perto dele, a Princesa também chegaria, e
Rudy poderia entender mal. Ele poderia pensar que eu estava
fazendo isso por causa da Princesa.

Ou talvez não. Talvez apenas começasse a adorá-la igual todo


mundo, e servi-la e ajudá-la a alcançar os seus objetivos.

— Urgh…
Eu não queria isso. Por que não?

Eu sabia a resposta. Eu não queria que Rudy se tornasse igual a


todo mundo. Não queria vê-lo se tornando seguidor dela, se
ajoelhando e recebendo os seus comandos. Eu sabia que foi por
isso que ela o convocou para a escola, e não apresentei objeções
naquela época. Mas Rudy era especial para mim e eu queria que
continuasse assim. Não queria que ele ficasse com outra pessoa.
Não queria que ele servisse a minha amiga.

— Urgh…

Ao chegar a essa conclusão mais uma vez, fiquei com muita


vergonha. Instintivamente abracei o cobertor com força em volta de
mim e me enrolei formando em posição fetal. Quando fechei os
olhos, podia sentir minhas bochechas ficando até quentes.

Eu queria ter um relacionamento exclusivo com o Rudy.


Epílogo
Passaram-se três meses desde que me matriculei. Minha vida
escolar seguia monótona. De manhã eu acordava, treinava,
praticava magia, tomava café da manhã, ia para a aula, almoçava,
fazia pesquisas na biblioteca, ia para casa, jantava, revisava o
material de preparação para o dia seguinte, depois dormia. De novo
e de novo.

Mas dizer que isso não era agradável seria mentira. Na minha
vida anterior, fui um recluso. Frequentei o ensino fundamental, mas
o médio não e, obviamente, nunca fui para uma universidade. Este
lugar tinha comidas que eu nunca provei no fundamental. Também
possuía uma grande variedade de aulas sobre assuntos de meu
interesse.

De fato, foi a primeira vez em muito tempo que fui para a escola,
e eu poderia estar apenas sentindo a nostalgia e a novidade nisso.
O brilho poderia diminuir com o tempo – mas eu poderia dar um jeito
quando a hora chegasse. Não precisaria de um diploma para
sobreviver neste mundo. Não havia razão para me forçar a ficar
estudando por mais tempo do que quisesse.

Nos últimos três meses, porém, minha vida acabou mudando


para melhor.

Primeiro por causa de Julie, a anã escrava que Zanoba, o Mestre


Fitz e eu compramos juntos. Para um príncipe sem outros interesses
além das estatuetas, Zanoba estava fazendo um bom trabalho
cuidando dela. Ele a ensinou a ler e escrever, alimentou-a, deu-lhe
roupas para vestir e um lugar para dormir. Na verdade, a tratava
mais como uma irmã mais nova do que como uma escrava. Ele
tentou nomeá-la em homenagem ao seu falecido irmão mais novo,
então provavelmente estava demonstrando algum afeto real.

Através disso tudo, eu estava tendo um vislumbre de um lado


mais humano dele, algo que me deixou feliz. Julie também estava
ficando bastante apegada a Zanoba. Ela o ouvia, não importa o que
ele dissesse, e cambaleava atrás dele aonde quer que ele fosse,
como um patinho seguindo sua mãe. Quando ela olhava para mim,
no entanto, eu às vezes via uma pitada de medo em seus olhos. Ela
ficava bem durante nossas aulas, mas se fizesse bagunça ou não
conseguisse realizar algo que eu pedia, começava a tremer e se
escondia atrás de Zanoba enquanto me pedia desculpas. A garota
agia como se eu fosse um tipo de professor que gritava e batia em
seus alunos que faziam algo de errado… algo que eu não aprovava.
Nunca fiz nada disso.

Sentindo-me um pouco desanimado, resolvi pedir a opinião de


Zanoba.

— Zanoba, por que a Julie parece ter tanto medo de mim?

— Hm — disse ele. — Os anões têm um conto de fadas


chamado “O Monstro do Buraco”.

O Monstro do Buraco, explicou ele, vivia nas profundezas, dentro


de um buraco do qual normalmente nunca emergia. No entanto,
amava tanto as crianças más que se arrastava vagarosamente para
sequestrá-las. Se uma criança tentasse correr, o chão sob ela logo
se transformaria em lama e as prenderia, então o monstro as
enfiava em um saco e as arrastava de volta para seu covil. As
crianças eventualmente reapareciam na superfície, mas seriam tão
bem-comportadas que pareceriam com pessoas diferentes. Podem
acabar se perguntando – o que acontece com as crianças más que
caem naquele buraco?

— Ela provavelmente associou você a essa história depois de ver


o que aconteceu com Linia e Pursena.

Quando se coloca dessa forma… era verdade que usei meu


atoleiro contra aquelas duas, então as enfiei em um saco e as
mantive como reféns. Também as puni com a ajuda do Mestre Fitz
enquanto Zanoba e Julie não estavam por perto, e então ambas se
tornaram alunas bem comportadas e subservientes. Do ponto de
vista da Julie, eu era a perfeita cópia do Monstro do Buraco.

Eu sabia que não poderia agradar a todos, mas não gostava dela
tendo medo de mim. Decidi tomar um cuidado extremo para me
abster de repreendê-la durante nossas aulas e afagar sua cabeça,
elogiá-la e dar alguns doces sempre que ela fizesse as coisas
certas.

Espera, não – eu também não queria tratar a garota como se


fosse um animal de estimação. Hmm.

Isso é mais difícil do que imaginei.

Linia e Pursena, enquanto isso, a partir daquele incidente


passaram a me chamar de “Chefe”. Elas não carregavam minha
bolsa ou me seguiam para todos os cantos, mas se curvavam em
saudação sempre que me viam e abriam caminho para me deixar
passar.
— E aí. Você chegou cedo de novo, Chefe, mew.

— Dia.

Elas até mesmo começavam conversas casuais durante as


aulas, sentadas perto de mim e de Zanoba.

— Vocês duas têm agido de uma maneira mais amigável


ultimamente — comentei.

— Prefere que sejamos mais respeitosas, mew? Não somos


muito boas nos comportando de maneira formal, mew, então
provavelmente falharíamos se tentássemos.

— Nosso respeito é genuíno. Respeitamos os fortes. — Pursena


abanou o rabo ao dizer isso.

Ter garotas ao meu redor era, mais do que tudo, bom. Elas eram
um colírio para os olhos, ainda mais em comparação com Zanoba.
Como um bônus adicional, os outros delinquentes começaram a
manter distância de mim desde que Linia e Pursena começaram a
agir dessa forma, e eu achava isso ótimo.

— Eeeei, Rudeus! — No momento em que terminei as aulas e


saí do prédio, Elinalise me chamou. — Você com certeza fez muitas
amigas em pouco tempo.

— Amigas…? Ah, sim. — Eu não estava tentando fazer amigos,


mas, de qualquer forma, consegui muitos deles. Isso talvez não
fosse surpreendente, visto que se tratava de uma escola. Se eu
mantivesse o ritmo, faria vinte amigos em apenas um ano. Com o
sistema de sete anos de curso, poderia eventualmente fazer uns
cem amigos.
— Mas são todas garotas. Bem, acho que isso não é
surpreendente, já que você é filho do Paul.

— Isso não é verdade. Nem todos são garotas.

— Sabe, o Paul disse algo parecido há muito tempo.

Pensando bem, meu relacionamento com Elinalise também


mudou. Não mantivemos muito contato desde que começamos a
frequentar a escola – mas não é como se costumássemos ser
particularmente próximos. Ela devia estar bem ocupada
aproveitando a vida escolar ao máximo.

— Senhorita Elinalise, é raro você vir até aqui. Está precisando


de algo?

— Sim. Preciso de uma coisa emprestada.

— Você vai ter que pedir isso para outra pessoa. O meu está
atualmente fora de serviço.

— Não é isso que quero pedir. Deixei meu livro de magia no


dormitório. Pode me emprestar o seu, por favor?

Deixando as inclinações sexuais de lado, Elinalise estava


realmente prestando atenção nas aulas. Eu não fazia ideia do que
uma aventureira de rank S como ela estava esperando aprender,
mas Ghislaine já tinha me contado histórias dos apuros pelos quais
passara por não conseguir usar magia. Será que Elinalise tinha
percebido que não teria nada a perder se aprendesse ao menos o
básico?
— Bem, suponho que sim. Só tenho uma cópia, então não
esqueça ele também.

— Em algum momento vou retribuir o favor — disse ela,


acenando ao se afastar.

✦✦✦✦✦✦✦

Sem o conhecimento de Rudeus, havia dois pares de olhos


observando-o. Um estava atrás dele – o olhar de um garoto que
acabara de deixar a sala de aula onde a classe foi realizada.
Parecendo indignado, ele desviou os olhos e voltou para a sala.

O segundo par analisava de cima, de uma sala fechada no andar


mais alto do prédio de pesquisas. Se alguém olhasse para cima e
encontrasse aqueles olhos, poderia tremer de medo ou arregalar os
próprios olhos, em estado de choque, pois o observador tinha uma
máscara branca sem características cobrindo seu rosto.

Conforme a vida escolar de Rudeus transcorria sem problemas,


bem a leste aconteceu um movimento. Além até mesmo do Reino
de Biheiril, no extremo leste dos Territórios Nortenhos, do outro lado
do oceano, ficava uma ilha conhecida como Ilha Ogro. Era habitada
pela Tribo Ogro, um povo com cabelo ruivo escuro e um único chifre
crescendo em suas testas. Sua milícia era liderada por um forte
guerreiro chamado Deus Ogro.

A Tribo Ogro era uma raça de demônios que não havia


participado nem da Grande Guerra Demônio Humano nem da
Guerra de Laplace. Por esse motivo, os humanos os viam como
uma raça de demônios à parte, assim como anões ou elfos. No
entanto, como geralmente se mantinham isolados em sua ilha, sua
existência não era de conhecimento comum. A única relação
amigável que a tribo tinha com a humanidade era com o Reino
Biheiril, e os forasteiros que entravam em seu território eram
atacados e mortos sem qualquer piedade.

Mas mesmo essa tribo abriria seu coração para um visitante


reconhecido. No momento, havia uma pessoa assim entre eles – um
homem que esteve viajando a bordo de um navio de marinheiros
que se aproximara da ilha. Curioso com a ilha, ele desembarcou.
Depois de alguma confusão, a Tribo Ogro o aceitou como seu
convidado.

O homem achou a ilha confortável e se estabeleceu por lá. Ele


falava amigavelmente com o Deus Ogro, bebia com a tribo e, às
vezes, treinava seus jovens. E, assim, passaram-se dois anos. Para
este convidado, que viveu vários milhares de anos, isso foi pouco
mais que um piscar de olhos.

Um dia, ele recebeu uma carta. Fizeram um pedido de


emergência a um aventureiro de rank S, um viajante experiente, que
enviou a carta sem demora. A carta era concisa: encontrei a pessoa
que procurávamos em uma das Três Nações Mágicas. Em mais
alguns meses, estaremos indo para a Universidade do Reino
Ranoa.

Depois de ler, o homem se levantou. Tendo visto o conteúdo da


carta e a expressão no rosto de seu convidado, o Deus Ogro
perguntou:

— Você está indo embora?

O convidado balançou a cabeça e disse:


— Sim. Já preciso ir.

Ao ouvir isso, a Tribo Ogro falou unanimamente:

— Ficaremos tão sozinhos sem você.

— Por favor, não vá. Há muito mais que eu quero que você me
ensine!

— Você não pode só ficar aqui? Todas as pessoas da aldeia te


receberiam de braços abertos!

Ele grunhiu em reconhecimento a cada comentário.

— Acreditem em mim, eu também gostaria de fazer isso. Mas os


humanos têm vida curta. Se eu passar muito tempo me divertindo
aqui, aquele que tenho que encontrar pode acabar morrendo.

O Deus Ogro, líder da Tribo Ogro, disse apenas uma coisa a ele:

— Tome cuidado.

Embora relutantes, os outros ogros aceitaram. Um grande


banquete de despedida foi realizado, e o convidado e o Deus Ogro
desfrutaram de uma variedade de eventos especiais, como lutas e
competições gastronômicas. Então, de bom humor, despediram-se
de seu convidado – o homem amável que um dia apareceu do nada
e ficou em sua aldeia por quase dois anos. Um homem imortal que
lutou com o Deus Ogro e perdeu, apenas para reviver no dia
seguinte e perder uma e outra vez em um ciclo de morte e
renascimento. Um grande homem de pele negra feito breu e seis
braços.

— Fwahahaha! Só espere!
Ele abriu caminho para o oeste. Um país ficou surpreso com sua
invasão repentina e lançou uma magia de nível Avançado contra
ele. Outro lhe preparou uma homenagem. Ele ignorou tudo e seguiu
em frente, indo mais para o oeste. Cruzou montanhas e vales a uma
velocidade que ultrapassava a da rede de informações dos
humanos. No momento em que cada país descobriu o que ele
queria, o homem já havia cruzado suas fronteiras e partido. Mais e
mais para o oeste, seguiu em uma velocidade vertiginosa. Seu
destino era o Reino Ranoa.
Capítulo Extra:
Juliette e Boas-Maneiras
Era meio-dia de um dia normal e Zanoba, Julie e eu estávamos
comendo fora do refeitório. Chamamos um pouco de atenção ao nos
sentarmos lá, em nossas cadeiras um pouco desconfortáveis feitas
com magia de terra, mas comer do lado de fora, ao sol, se tornara
uma espécie de tendência nos últimos tempos. Outras pessoas
começaram a seguir o nosso exemplo e a fazer o mesmo,
principalmente dentre aqueles que comiam no primeiro andar do
refeitório. A pequena multidão também tendia a ser um pouco mal-
educada, ignorando o uso de talheres e comendo com a boca ou
com as mãos. Não era como se Zanoba ou eu nos importássemos,
mas Julie poderia começar a imitar isso caso continuasse vendo tal
comportamento…

Assim como eu pensava – a peguei tentando comer um pedaço


de bacon enquanto o pegava com a mão.

— Ei, lembre de usar o seu garfo — falei.

Quando eu disse isso, todo o seu corpo tremeu e ela deixou o


bacon cair em seu prato.

Zanoba deu de ombros.

— Mestre, isso não é tão ruim assim. Não devia simplesmente


deixá-la comer?

— Mas usar as mãos para comer é falta de educação.

— Hm… mas, às vezes, comemos com as mãos em Shirone.


Voltei a olhar para Julie e percebi que ela estava evitando as
cenouras e empurrando-as para o canto do prato. Ao contrário das
cenouras da minha vida anterior, estas eram bastante difíceis de
comer, com um cheiro de vegetal forte e sabor amargo. Mesmo
assim…

— E também lembre de comer as cenouras — falei para ela.

— Mestre, são apenas cenouras, não sei qual é o problema.

— Bem, eu sei.

Zanoba franziu a testa e ficou carrancudo, mordendo os lábios.

— Você está dizendo isso porque ela é uma escrava? Não foi
você, Mestre, quem decidiu que não devemos tratá-la como uma
escrava?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Isso… como devo
explicar? Se abrirmos mãos sempre que houver algo que ela não
queira fazer, Julie não se esforçará quando se tratar de situações
nas quais terá que fazer algo que não queira.

— Hm? Mas tenho dinheiro suficiente para que nunca


precisemos nos preocupar com não ter o que comer. Eu até poderia
entender se fôssemos muito pobres, mas não é o caso, é?

Olhei para Julie, que estava olhando para as cenouras igual uma
estudante do jardim de infância que ficou de castigo na frente do
prato. Sua expressão parecia dizer que ela estava sendo punida
sem qualquer razão.
Bem, eu talvez estivesse mesmo sendo muito duro. Quando era
aventureiro, conheci muitas pessoas que comiam com as mãos.
Isso até mesmo fazia parte da cultura de algumas tribos do
Continente Demônio. Murchei um pouco ao lembrar disso. Talvez eu
só estivesse preso aos costumes da minha vida anterior e usando
isso para justificar os atos como coisas irracionais. E no meu antigo
mundo também existiam culturas nas quais comiam com as mãos.
Alimentos como caranguejo, batata frita, cachorro-quente e outras
coisas… Talvez eu estivesse pensando demais no assunto.

— Se você insistir que ela deve aprender isso, então também vou
ensiná-la, mas considerando o quanto isso é irrelevante para a
criação de estatuetas, prefiro que não o façamos.

Eu ainda sentia que isso deveria seguir como um bom exemplo,


mas, mais uma vez, as pessoas não se importavam com os modos
de comer dos artesãos. Como empregada de Zanoba, ela estaria
fazendo negócios com a família real, mas se seu empregador
dissesse que ela não precisava disso, quem ousaria dizer o
contrário?

— Qual é o problema? — Elinalise apareceu entre nós. A julgar


pela mancha de molho em sua bochecha, acabara de almoçar.

— Estávamos discutindo as maneiras de Julie à mesa. Por


exemplo: não é bom comer com as mãos e não é bom ser exigente
com a comida.

— Ah-ha.

— O que você acha, Senhorita Elinalise?


— Hm, deixe-me pensar. — Ela levou um momento para
considerar a pergunta, então sorriu como se tivesse pensado em
algo malicioso. — Ei, Julie, observe com atenção. Se você vai
comer com as mãos, então faça assim.

Ela pegou uma fatia grande de bacon no meu prato. Então a


ergueu, apertou entre os dois dedos e começou a enfiá-lo na boca.
A maneira como ergueu o queixo enfatizou a pele branca e pálida
de seu pescoço e clavícula. A maneira como ela mostrou a língua
vermelha aproximando-se do bacon rosado foi fascinante, fazendo
querer lamber o molho que estava em sua bochecha.

— Isso é falta de educação! — Por reflexo, bati na nuca de


Elinalise.

— Ah!

O impacto fez que ela largasse o bacon. A comida se arqueou no


ar, entortando enquanto se dirigia ao chão – mas uma sombra
passou e o agarrou pouco antes de cair.

— Ufa, essa foi por pouco.

Era Pursena. Impressionantemente, ela pegou o bacon com a


boca e começou a engoli-lo. A garota se aproximou de nós quando
já estava tudo acabado. Linia também estava com ela, com uma
expressão de espanto no rosto.

— Você pode ser nosso chefe, mas isso não significa que pode
desperdiçar carne assim. Se vai jogar fora porque está cheio, então,
em vez disso, dê para mim. — Pursena estava com uma cara
zangada, mas o bacon devia estar delicioso, já que sua cauda
balançava igual a hélice de um helicóptero.

Linia manteve Pursena de lado enquanto nos observava com


bastante interesse.

— Vocês estão brigando? É raro isso acontecer, mew, Zanoba


desafiando o Chefe.

— Não estou o desafiando — disse Zanoba. — Só estamos


tendo uma divergência de opiniões.

— Não sei quanto a isso, mew, tem certeza? Se você o irritar, ele
não pode parar de fazer estatuetas para você, mew?

— Hmph, o Mestre não é tão mesquinho a ponto de ficar


chateado com algo tão trivial. — Depois ele olhou para mim, como
se perguntasse: Você não é, certo?

Claro que não. Eu não estava nem chateado, só um pouco


desanimado.

— Ah é, há algo que eu gostaria de perguntar a vocês duas.

— Mew?

— Sobre boas-maneiras. — Perguntei o que achavam sobre


comer com as mãos e ser exigente com a comida.

— Boas-maneiras são importantes. — Pursena deu um passo à


frente sem qualquer hesitação, como se dissesse: Deixe qualquer
discussão sobre comida comigo. — Usar as mãos para comer
durante as refeições é algo inaceitável.
Ela revelava um sorriso de satisfação no rosto ao dizer isso…
segurando um pedaço de carne seca que estava mastigando
avidamente. A garota não poderia ter sido menos convincente
mesmo se tentasse.

— Ignorando a Pursena, boas-maneiras são importantes para


uma dama, mew — disse Linia. — E sem chances de ser exigente,
mew.

— Mas com carne é diferente. E você não pode falar nada, já que
deixou aquelas uvas passas no prato.

— Aquelas coisas nem deviam ser consideradas como comida,


mew. Elas podem destruir seu estômago se as comer, mew.

— Isso soa como uma desculpa.

E então as duas começaram a encarar uma à outra. Perguntar a


elas foi um erro. Tudo o que diziam estava correto, ou ao menos
devia estar, mas não inspirava a confiança de que Julie se tornaria
uma dama adequada se seguisse seus conselhos.

Veja, pensei, Julie parece totalmente confusa.

Mestre Fitz apareceu do nada.

— Hm? Por que estão todos reunidos aqui?

— Você chegou em uma boa hora — falei. — Ouça, por favor!

— Hã? Ouvir o quê?

— Então, o que aconteceu foi… blá blá blá, e tal…

— Blá blá blá? E tal? O quê?


— Estávamos discutindo as maneiras de Julie à mesa.

Assim que expliquei, o Mestre Fitz levou a mão ao queixo.


Depois de cantarolar enquanto pensava, ele murmurou: “Certo”, e
ergueu a cabeça.

— Por enquanto não é melhor deixar ela comer como quiser?

— Certo, qual é a razão para isso? — Pensei que ele, dentre


todas as pessoas, diria que ela precisava aprender boas maneiras o
quanto antes. Assim como se usasse ma-gia (ma-neiras)
constantemente desde jovem, sua ma-na (ma-neiras) seria duas ou
três vezes acima da média.

— Ela está aprendendo magia da terra com você, certo? E


também está ajudando a tomar conta do Zanoba. Isso é muita coisa.
Se a forçar a pensar em etiqueta, além disso tudo, pode acabar a
sobrecarregando a ponto de ela ter problemas para dominar
qualquer uma das coisas que estiver a ensinando.

— Ah, entendo. — Havia alguma verdade por trás disso. Também


havia a ideia de que o sono e as refeições deveriam ser momentos
de descanso.

— Acho que em algum momento ela deve aprender essas


coisas, mas não acho que tenha problema se for daqui um ou dois
anos.

— Hmm. — Com a opinião do Mestre Fitz inclusa, eram três


votos a favor e três contra. Estávamos de volta ao empate.

Olhei para Julie, que tinha uma expressão ansiosa no rosto.


O que ela queria fazer? Sua decisão seria o tento final.

— Tudo bem. Julie — falei. — Você decide.

Ela olhou em minha direção, surpresa. A expressão em seu rosto


denunciava que não pensava que teria direito a opinar no assunto.
O olhar de Julie vagou entre cada pessoa presente – Zanoba,
Elinalise, Linia, Pursena, Mestre Fitz – e então pousou em mim,
parecendo assustada.

— Não vou ficar bravo, independentemente do que decidir, então


escolha o que preferir.

— C-certo.

Julie agarrou o garfo com sua mãozinha, parecia ter se decidido.


Ela espetou cada uma das cenouras e as enfiou na boca de uma só
vez. Fechou os olhos enquanto mastigava e, após fazer um barulho
que indicava que estava a ponto de vomitar, engoliu tudo com
lágrimas nos olhos.

— Gulp, gulp… pwah!

Ela tomou um gole de água, engasgou e colocou o copo sobre a


mesa de novo. Então olhou para mim com uma expressão realizada,
como se dissesse: Pronto, e aí, satisfeito?

— Você comeu tudo! Muito bom! Estou tão orgulhoso! — Fiquei


momentaneamente surpreso, mas ainda assim a elogiei e afaguei a
sua cabeça.

— Muito bem! Excelente!

— Um show esplêndido!
— Agora ela não terá medo quando tiver que fazer isso da
próxima vez, mew.

— Isso foi corajoso.

— Ah, fico feliz!

— Sim! — Julie sorriu enquanto era banhada por elogios. Foi a


primeira vez que a vi sorrindo com tanto orgulho e satisfação, e isso
me deixou feliz. Podia até ser uma questão trivial, mas ela enfrentou
algo que não gostava, ganhou a batalha e conquistou confiança. Me
senti tão feliz quanto se fosse uma realização própria.

— Então, a partir de amanhã, vou começar a te ensinar algumas


maneiras à mesa.

— Sim, por favor, Grande Mestre!


Arte dos Personagens
Notas

[←1]
Meus agradecimentos ao grupo Tsundoku Traduções.
[←2]
Impotência sexual.

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