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Mecânica Hamiltoniana∗

Antonio Roque
Março 2020

Na formulação newtoniana da mecânica clássica, descrevemos um sistema de


N objetos em 3-D usando, para cada objeto e cada força, vetores tri-dimensionais
~r(t) e F~ no espaço físico.
Na formulação lagrangiana, descrevemos o sistema usando um vetor de 3N
componentes ~q(t), que corresponde a uma trajetória no espaço de configurações,
e uma função lagrangiana L(~q, ~q˙). Essa abordagem tem a vantagem de que tudo
que influencia a dinâmica dentro do sistema é descrito por uma única função
L(~q, ~q˙).
Na Aula 3, vimos que existe outra arena matemática útil para formularmos
a mecânica clássica: o espaço de fase.
A principal motivação para introduzirmos essa nova arena é que um ponto
no espaço de configurações nos dá informação apenas sobre as posições dos
vários objetos. E sabemos que para descrever tudo o que se passa em um
sistema precisamos, além de conhecer as posições dos objetos ao longo do tempo,
conhecer também os momentos (ou velocidades) dos objetos.
Em outras palavras, para determinar o comportamento futuro de um sistema
precisamos das posições e dos momentos de todos os objetos: (~q(t), p~(t)) (ou
(~q(t), ~q˙(t))).

Usando o espaço de configurações, teremos sempre que usar os momentos


∗ O material destas notas de aula, assim como das demais deste curso, está fortemente

baseado no livro de Jakob Schwichtenberg: No-Nonsense Classical Mechanics, No-Nosense


Books, 2020.

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ou velocidades como dados adicionais, não pertencentes ao espaço geométrico


usado. No caso do espaço de fase, que inclui tanto as posições como os mo-
mentos, cada ponto do espaço corresponde a um único estado possível em que
o sistema pode estar (~q(t), p~(t)). Em contraste, no espaço de configurações, es-
tados com a mesma posição mas velocidades diferentes são representados pelo
mesmo ponto.
Veremos mais para a frente porque usamos os momentos, e não as velocida-
des, quando formulamos a mecânica clássica no espaço de fase.
O uso do espaço de fase nos permite ter um entendimento geométrico de
como o sistema evolui a partir de um estado inicial. Isso é particularmente útil
quando lidamos com incertezas. Em um sistema real, por causa das imprecisões
experimentais, nunca temos 100% de certeza sobre o estados inicial do sistema
(posições e velocidades iniciais de todas as partículas).
Por causa disso, ao invés de pensarmos em um ponto no espaço de fase, é
melhor pensarmos em uma região.
Então, usando o fato de que probabilidades devem sempre se somar dando
100%, podemos deduzir teoremas belos e poderosos que nos permitem entender
como a incerteza evolui à medida que o tempo passa.
Tudo isso nos leva à interpretação segundo a qual podemos entender a evo-
lução de um sistema em mecânica clássica como o fluxo de um tipo de fluido
incompressível de probabilidade no espaço de fase.
Vamos então ver como descrever a mecânica clássica no espaço de fase.

As Equações de Hamilton
Na formulação hamiltoniana da mecânica clássica, descrevemos a evolução do
sistema como uma trajetória no espaço de fase. A novidade a respeito do espaço
de fase é que não usamos apenas as várias posições qi para descrever um ponto,
mas também os momentos pi dos objetos.
A primeira ideia chave é que vamos agir como se qi e pi fossem variáveis
completamente independentes. Obviamente, para uma dada partícula temos
que pi = mq̇i e veremos mais adiante que existe uma conexão íntima entre qi e pi .
Mas, por enquanto, vamos agir como se qi e pi fossem realmente independentes.
Note que isso não é possível para a velocidade q̇i porque a velocidade é
d
sempre a taxa de variaçào da posição, q̇(t) = dt qi (t).
Por outro lado, a relação entre a posiçào e o momento (generalizado) não é
sempre tão direta. Veja, por exemplo, os exemplos dados no fim da aula passada.
O importante aqui é notar que quando falamos de momento, nos referimos ao
momento generalizado definido na aula passada (equação 19):
∂L
p≡ . (1)
∂ q̇
É por isso que podemos tratar q(t) e o momento generalizado p(t) como variáveis
independentes.

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Encarando o momento p~i de uma partícula como completamente indepen-


dente da posição ~qi da partícula, podemos representar suas 6 componentes (3
de posição e 3 de momento) através de eixos com status equivalentes no espaço
de fase.
Lembremos da equação de Euler-Lagrange:
 
∂L d ∂L
− = 0. (2)
∂q dt ∂ q̇
Usando a equação (1), podemos reescrevê-la como
∂L dp
= . (3)
∂q dt
Por outro lado, a velocidade é a taxa de variação temporal da posição:
dq
q̇ = . (4)
dt
Nosso objetivo será reescrever essas duas equações (3 e 4) de maneira que elas
só dependam de p e não de q̇. Podemos fazer isso usando a definição explícita
de momento.
Para começar, vamos inverter a equação (1) para obter uma expressão para
a velocidade em termos da posição e do momento: q̇ = q̇(q, p). Depois, usaremos
essa expressão para deduzir uma equação da qual q̇ possa ser eliminada.
Mas precisamos ser cuidadosos. A lagrangiana é uma função que depende
de q e q̇: L = L(q, q̇). Portanto, ao reescrever q̇ = q̇(q, p) a lagrangiana torna-se
uma nova função,

L̃(q, p) ≡ L(q, q̇(q, p)). (5)


Em palavras: L̃(q, p) é a função que obtemos quando usamos a expressão q̇ =
q̇(q, p) para eliminar q̇ de L(q, q̇).
O problema é que, em geral, não obtemos o mesmo resultado quando deri-
vamos L(q, q̇) e L̃(q, p):

∂ L̃(q, p) ∂L(q, q̇)


6= . (6)
∂q ∂q
Por exemplo, seja a lagrangiana da partícula livre vista na aula passada
(V (q) = 0),
1
L(q, q̇) = T = mq̇ 2 . (7)
2
Vamos usar novamente a analogia de uma equação como uma máquina. A equa-
ção (7) nos diz que L é dada pela segunda variável que aparece entre parênteses
elevada ao quadrado e multiplicada por m/2.
Vejamos agora o que acontece com a lagrangiana quando a escrevemos em
termos de q e p, ou seja, quando passamos de L(q, q̇) para L̃(q, p):

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m (q̇(q, p))
L̃(q, p) = L (q, q̇(q, p)) = .
2
p
Da definição de momento (p = mq̇), temos que q̇ = m . Substituindo na expres-
são acima:
p 2

m m
L̃(q, p) = ,
2
que, rearranjando, nos dá:
p2
L̃(q, p) = . (8)
2m
Fazendo novamente uma analogia com uma máquina, esta expressão nos diz
que L̃ é dada pela segunda variável que aparece entre parênteses elevada ao
quadrado e dividida por 2m.

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Note que as máquinas para L e L̃ dão resultados diferentes:

mp2 p2
L(q, p) = 6= = L̃(q, p). (9)
2 2m
Quando uma equação não muda a sua forma funcional sob uma transforma-
ção de variáveis, isto é quando a máquina que representa a equação é a mesma
tanto para as velhas como para as novas variáveis, dizemos que a equação é
covariante. O exemplo acima mostra que a lagrangiana não é covariante.
Por causa da não covariância da lagrangiana, temos que tomar cuidado
quando formos derivar a lagrangiana escrita em termos de q e p. Vamos fa-
zer isso agora (tomando cuidado com as derivadas). Vamos derivar L̃(q, p) em
relação a q.
Pela definição de L̃ (equação 5):

∂ L̃(q, p) ∂L (q, q̇(q, p))


= .
∂q ∂q
Usando a regra da cadeia,

∂ L̃(q, p) ∂L(q, q̇) ∂L(q, q̇) ∂ q̇(q, p)


= + .
∂q ∂q ∂ q̇ ∂q
∂L
Usando a equação (1), p = ∂ q̇ ,

∂ L̃(q, p) ∂L(q, q̇) ∂ q̇(q, p)


= +p .
∂q ∂q ∂q
Rearranjando os termos,

∂L(q, q̇) ∂ L̃(q, p) ∂ q̇(q, p)


= −p .
∂q ∂q ∂q
Vamos agora usar a independência de q e p para obter
∂pq̇ ∂ q̇ ∂p ∂ q̇
=p + q̇ =p ,
∂q ∂q ∂q ∂q
∂p
pois ∂q = 0. Substituindo na expressão que estamos desenvolvendo:

∂L(q, q̇) ∂ L̃(q, p) ∂pq̇(q, p)


= − ,
∂q ∂q ∂q
ou

∂L(q, q̇) ∂ h i
= L̃(q, p) − pq̇(q, p) . (10)
∂q ∂q
Esta é a equação de que precisamos para eliminar q̇ do lado esquerdo da equa-
ção (3).
∂L dp
= ⇒
∂q dt

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dp ∂ h i
⇒ = L̃(q, p) − pq̇(q, p) .
dt ∂q
Definindo,

H ≡ pq̇(q, p) − L̃(q, p), (11)


podemos reescrever a equação acima como
dp ∂H
=− . (12)
dt ∂q
A nova função H definida aqui pela equação (18) é chamada de hamilto-
niana. vemos pela equação (12) que ela determina a evolução temporal do
momento p.
Seguindo passos similares, podemos desenvolver a derivada de L̃(q, p) em
relação a p:

∂ L̃(q, p) ∂L (q, q̇(q, p))


= .
∂p ∂p
Usando a regra da cadeia,

∂ L̃(q, p) ∂L(q, q̇) ∂ q̇(q, p)


= .
∂p ∂ q̇ ∂p
∂L
Usando a equação (1), p = ∂ q̇ ,

∂ L̃(q, p) ∂ q̇(q, p)
=p .
∂p ∂p
Usando a independência de q e p,

∂(pq̇) ∂ q̇ ∂(pq̇) ∂ q̇
= q̇ + p ⇒ − q̇ = p .
∂p ∂p ∂p ∂p
Substituindo na expressão que estamos desenvolvendo,

∂ L̃(q, p) ∂(pq̇)
= − q̇.
∂p ∂p
Rearranjando os termos,

∂ L̃(q, p) ∂(pq̇)
− = q̇,
∂p ∂p
ou
∂ h i
L̃(q, p) − pq̇ = q̇.
∂p
Usando a definição da hamiltoniana, equação (18), obtemos:

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∂H
= q̇. (13)
∂p
Este resultado nos permite eliminar q̇ da equação (4), que torna-se então:
dq ∂H
= . (14)
dt ∂p
As duas equações às quais chegamos eliminando q em favor de p nas equações
básicas da mecânica lagrangiana (equações 3 e 4) são conhecidas como equações
de Hamilton. Como elas são muito importantes, vamos repeti-las aqui para
conveniência futura:

dp ∂H
=−
dt ∂q
dq ∂H
= . (15)
dt ∂p
Se você não gostou da maneira como obtivemos as equações de Hamilton,
não se preocupe. Mais para a frente mostraremos uma segunda maneira de
obtê-las.
Note a maneira como essas duas equações são simétricas em relação a q
e p. Como mencionado no início desta aula, tratar as posições e os momentos
com status equivalentes é uma das principais motivações por trás do formalismo
hamiltoniano.
No formalismo lagrangiano, temos uma equação simples para taxa de varia-
ção temporal da posição: dq dt = q̇. Porém, não temos uma equação igualmente
simples para a taxa de variação temporal de q̇. Em contraste, ao mudar de
variáveis, indo de (q, q̇) para (q, p), obtemos equações simples para as taxas de
variação temporal de q e de p.
Do ponto de vista matemático, no formalismo hamiltoniano temos equações
diferenciais de primeira ordem e nos formalismos lagrangiano e newtoniano te-
mos equações diferenciais de segunda ordem. O preço a pagar por isso é que
no formalismo hamiltoniano temos o dobro de equações em relação aos outros
dois formalismos. Isso decorre do fato de que no formalismo hamiltoniano pas-
samos a usar o espaço de fase, que tem o dobro de dimensões do espaço de
configurações.
Como antes, se o sistema for composto por N objetos movendo-se em três
dimensões teremos que levar em conta todas as coordenadas das posições dos
N objetos e seus respectivos momentos. As equações de Hamilton tornam-se
então:

dpi ∂H
=−
dt ∂qi
dqi ∂H
= , (16)
dt ∂pi

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onde o índice i é usado para distinguir todas as diferentes coordenadas de posi-


ção, x1 , x2 , x3 , . . . e de momento, p1 , p2 , p3 , . . ..
Antes de seguirmos adiante e discutirmos o significado das equações de Ha-
milton, vamos mostrar uma maneira alternativa de obtê-las.

Maneira alternativa de obter as equações de Hamilton


No formalismo lagrangiano, o objeto central é a ação
Z tf
S≡ dtL. (17)
ti
Nesta aula, vimos que a função fundamental para o formalismo hamiltoniano
é a hamiltoniana, definda como1

H ≡ pq̇ − L. (18)
Podemos usar a relação explícita acima entre a hamiltoniana H e a lagran-
giana L para obter as equações de hamilton de forma completamenta análoga à
que foi feita na aula passada para obter as equações de Euler-Lagrange.
Rearranjando os termos na equação (18), obtemos

L = pq̇ − H. (19)
Com esta expressão, podemos reescrever a equação (17) para a ação como:

Z tf
S= dtL (20)
ti
Z tf
= dt (pq̇ − H) . (21)
ti

Podemos agora usar o princípio de mínima ação, como na aula passada, para
obter as equações de movimento.
Assim como na aula passada, nosso objetivo é encontrar a trajetória que
minimiza a ação. Mas note que agora o funcional S atribui um valor a cada
trajetória no espaço de fase Q(t) = (q(t), p(t)). Ou seja, estaremos agora pro-
curando por uma trajetória no espaço de fase e não no espaço de configurações.
Para encontrar essa trajetória, vamos novamente considerar pequenas vari-
ações em torno de uma trajetória arbitrária,
(q(t), p(t)) → (q(t) + , p(t) + ˜).
A ideia principal é novamente a de que podemos encontrar a trajetória cor-
reta fazendo com que todos os termos de primeira ordem nas perturbações se
anulem2 .
1 Aqui, para simplificar as equações, vamos nos restringir ao caso de uma partícula movendo-

se em uma dimensão. O desenvolvimento para o caso de N partículas em 3 dimensões, em


que há 3N posições qi e 3N momentos pi segue de forma análoga.
2 Este é a ideia do cálculo variacional apresentada na aula passada.

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Vamos lá, então. Começamos reescrevendo a equação (20):


Z tf Z tf  
d
S= dt (pq̇ − H(q, p)) = dt p q − H(q, p) .
ti ti dt
Vamos agora fazer as variações:
Z tf  
d
S= dt (p + ˜) (q + ) − H(q + , p + ˜) .
ti dt
Agora, vamos expandir H(q + , p + ˜) em Taylor e manter apenas os termos até
primeira ordem em  e ˜:

Z tf  
d ∂H(q, p) ∂H(q, p)
S= dt (p + ˜) (q + ) − H(q, p) −  − ˜ .
ti dt ∂q ∂p

Rearranjando:
Z tf    
dq dq ∂H ∂H d d
S= dt p − H + ˜ − − + p + ˜ . (22)
ti dt dt ∂p ∂q dt dt
Nesta expressão aparece o seguinte termo:
Z tf
d
dtp .
ti dt

Vamos integrar esse termo usando a fórmula de integração por partes:


Z tf tf Z tf
d dp
dtp = p − dt .
ti dt ti ti dt

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O primeiro termo nesta expressão se anula,


tf
p = (tf )p(tf ) − (ti )p(ti ) = 0,
ti

pois as variações na trajetória têm seus pontos inicial e final fixos: (ti ) =
(tf ) = 0. Portanto, a integração por partes resulta em:
Z tf Z tf
d dp
dtp = − dt .
ti dt ti dt
Substituindo na equação (22):
Z tf    
dq dq ∂H ∂H dp d
S= dt p − H + ˜ − − −  + ˜ ,
ti dt dt ∂p ∂q dt dt
ou

Z tf      
dq dq ∂H ∂H dp d
S= dt p − H + ˜ − − + + ˜ .
ti dt dt ∂p ∂q dt dt
Como estamos interessados apenas nos termos até primeira ordem nas variações
 e ˜, podemos desprezar o último termo nesta expressão, ficanco com:
Z tf     
dq dq ∂H ∂H dp
S= dt p − H + ˜ − − + . (23)
ti dt dt ∂p ∂q dt
A trajetória correta descrevendo a evolução do sistema é aquela para a qual
os termos lineares em  e ˜ se anulam. Temos que ser cuidadosos aqui, poir
como visto acima as quantidades q e p são tratadas como variáveis indepen-
dentes. Desta forma, as variações  e ˜ também tem que ser tratadas como
independentes. Isto nos nos dá duas condições que têm que ser satisfeitas:

∂H dp
+ =0
∂q dt
∂H dq
− = 0. (24)
∂p dt
A trajetória (q(t), p(t)) que satisfaz essas duas condições é a trajetória correta
que minimiza a ação e, portanto, a que descreve a evolução do sistema. Essas
equações são exatamente as equações de Hamilton (equação (15)).
Resumindo:
• Na formulação hamiltoniana da mecânica clássica, descrevemos a evolução
de um sistema como uma trajetória no espaço de fase.
• Isso exige que eliminemos a velocidade q̇ em favor do momento p. Quando
fazemos isso nas equações que definem o formalismo lagrangiano (equa-
ções (3) e (4)), obtemos as equações de Hamilton (equação (15)).

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• De maneira alternativa, mas equivalente, podemos começar usando a ação


e escrevendo-a em termos de H ao invés de L (equação (20). Usando
o cálculo variacional para encontrar a condição que uma trajetória no
espaço de fase (q(t),p(t)) deve satisfazer para minimizar a ação, obtemos
novamente as equações de Hamilton.

O seguinte diagrama ilustra as relações entre as formas de dedução discutidas


nesta aula e na passada:

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