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VALSA Nº 6 - PEÇA EM DOIS ATOS

NELSON RODRIGUES

PERSONAGEM
SÔNIA, menina assassinada aos 15 anos.

(CENÁRIO SEM MÓVEIS. APENAS UM PIANO BRANCO. FUNDO (OLHA PARA OS LADOS E PARA O ALTO. LAMENTO MAIOR)
DE CORTINAS VERMELHAS. UMA ADOLESCENTE SENTADA AO Meu Deus, por que existem tantos olhos no mundo?
PIANO. VESTIDA COMO QUE PARA UM PRIMEIRO B’AILE. (SEM TRANSIÇÃO, FRÍVOLA E CORDIAL) Depois eu me lembro
ROSTO ATORMENTADO, QUE FAZ LEMBRAR CERTAS de tudo o que fui, de tudo o que sou.
MÁSCARAS ANTIGAS. MÃOS POUSADAS SOBRE AS TECLAS. AO
DO, O RUMOR DO BOMBO, QUE ACOMPANHARÁ TODA A (EM TOM DE PALESTRA) Então, o Dr. Junqueira chamou
AÇÃO. AO ABRIR-SE O PANO A CENA ESTÁ MERGULHADA NA mamãe e disse...
SOMBRA. APENAS UMA ÚNICA LUZ, INCIDINDO SOBRE O (ANDA COMO UM DESSES VETERANOS QUE TÊM UMA
ROSTO DA MOCINHA. E, ENTÃO, ELA EXECUTA UM TRECHO PERNA DE PAU, NUMA IMITAÇÃO DE MÉDICO)
DA VALSA 6, DE CHOPIN. SEU ROSTO PASSA A EXPRIMIR
PAIXÃO, QUASE O ÊXTASE AMOROSO. CORTA BRUSCAMENTE (EM APARTE) No tempo de mamãe usava-se espartilho,
A MÚSICA. ILUMINA-SE O RESTO DO PALCO. A MOCINHA rosa e de babado.
ERGUE-SE, SEM SAIR DO LUGAR. TERROR.) (FRÍVOLA) Mamãe está chorando...
MOCINHA (AUMENTANDO PROGRESSIVAMENTE A VOZ, ATÉ Papai, ao lado, nervosíssimo!
AO GRITO)
(NOVAMENTE APAVORADA) Mas que foi que aconteceu, ora
—Sônia!... Sônia!... Sônia!... essa?
(PARA SI MESMA) Quem é Sônia?... (FRÍVOLA) Dr. Junqueira diz.. (IMITAÇÃO DE VELHO)
E onde está Sônia? Desequilíbrio mental — he! he!

(RÁPIDA E MEDROSA) Sônia está aqui, ali, em toda a parte! Desequilíbrio mental! (NOVO PAVOR) De quê? Desequilíbrio
mental de quem? Não meu!
(RECUA) Sônia, sempre Sônia...
(NUMA REVOLTA) Não quero ser a primeira doida da família!
(BAIXO) Um rosto me acompanha... (FEROZ)
E um vestido... Já sei por que o Dr. Junqueira descobriu que eu estava doida!
E a roupa de baixo.... (INCERTA) Quem? Dr. Junqueira?
(OLHA PARA TODOS OS LADOS; E PARA A PLATÉIA, COM MEIO (PARA A PLATÉIA, BRUSCAMENTE DOCE) Dr. Junqueira, nosso
RISO) Roupa de baixo, sim, médico, sabe?
(COM SOFRIMENTO) transparente e sem costura... (TRANSIDA) Ele sempre me meteu medo, o Dr. Junqueira!
(COM MEDO, AGACHADA N’UMA DAS EXTREMIDADES DO (BAIXO, IMITANDO UM VELHO) vozes... Que idade você tem,
PALCO) O vestido que me persegue... he, he!
De quem será, meu Deus? (CORRE, ÁGIL, PARA A BOCA DE (PAVOR) Não! não!
CENA. ATITUDE POLÊMICA)
(IMITAÇÃO DE VELHO) 14 anos, já, é?
Mas eu não estou louca!
(IRRITADA) Não me toque!
(LÁ CORDIAL) Evidente, natural!...
(RESSENTIDA) Ele disse que eu estava doida porque
Até, pelo contrário, sempre tive medo de gente doida! comecei a ver coisas.
(AMÁVEL E INFORMATIVA, PARA A PLATÉIA) Na minha E ouvia, vozes caminhando no ar...
família — e graças a Deus — nunca houve um caso de
loucura... (APONTANDO) Via mãos, rostos e pés boiando no ar.

(GRITA, EXULTANTE) Parente doido, não tenho! (CORRE PARA A BOCA DE CENA, QUASE FELIZ, NA ÂNSIA DE
FAZER A CONFIDÊNCIA DIVERTIDA) Uma noite, foi até
(SEM EXALTAÇÃO, HUMILDE E INGÊNUA) Só não sei o que interessante.
estou fazendo aqui...
De repente, descobri na parede do meu quarto,
(OLHANDO EM TORNO) Nem sei que lugar é este.
um rosto,
(RECUA, ESPANTADA; APERTA O ROSTO ENTRE AS MÃOS) Tem
gente me olhando! sempre o mesmo.
Um rosto que não saía dali!
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(RI) Fui acordar mamãe. (ATITUDE DE MENINA) Não admito que homem nenhum veja
minhas amígdalas!
Mamãe, vem, mamãe!
(BAIXO, A MEDO) Lá vem o Dr. Junqueira...
(IMITAÇÃO MATERNA) Mas que foi, minha filha? Você até
assusta! Seus passos na calçada...
(RISO, APONTANDO) Ali, mamãe! Depois na sala...
Ali, onde? Agora na escada...
(IRRITAÇÃO DOENTIA) Será possível que a senhora não veja, ah (ATITUDE DE PUDOR) Ele quer ver minhas amígdalas!
mamãe! (INFORMATIVA) Mamãe se atraca com o Dr. Junqueira. E tem
(LENTA E GRAVE) Mas ela não via. Nada, nada... um ataque.
E, então, mamãe se virou para mim. (IMITA OS DOIS) Minha filha está morrendo,Dr.!
Sua vontade foi gritar. Por que não grita? Calma no Brasil!
(EXASPERAÇÃO) Grite, mamãe, grite! Salve minha filha! Pelo amor de Deus, salve!
(BRUSCAMENTE DOCE) Recuou, assim. (SEM TRANSIÇÃO, RINDO) Uma bola, o Dr. Junqueira!
(GRITA) Mamãe, aonde a senhora vai? Um número!
Volte! (IMITAÇÃO) Minha filha escapa, Dr.?
Uma neblina, (MUDA DE TOM) Então, o Dr. Junqueira...
uma espécie de nuvem envolveu mamãe! (ESTACA, NA DÚVIDA; VEM À BOCA DE CENA) Aqui, alguém
conhece o Dr. Junqueira?
(RI, FEROZ) Ela se debatia dentro da neblina!
Porque eu, imagine,
(BAIXO) Eu sentia uma dor cravada na minha fronte!
eu guardei o nome,
(FAZENDO CORO PARA SI MESMA) Chamem a Assistência!
mas não me lembro de seu rosto e...(APERTA A CABEÇA ENTRE
Médico!
AS MÃOS)
Assistência!
Será mocinho?
Dr. Junqueira!
(SENTA-SE NO ALTO DA ESCADINHA QUE LEVA À PLATÉIA) É
Nossa Mãe! por isso que, às vezes, eu mesma, me julgo doida...
E afinal Dr. Junqueira vem? (NUM LAMENTO) Porque as coisas, as pessoas deslizam e
Dr. Junqueira vem ou não vem fogem de mim, como cobras.

Já vem! Já vem (BAIXO) Sei que, naquela noite, o Dr. Junqueira acudiu de
pijama e,
(ELA PRÓPRIA) Gritei.
por cima, a capa de borracha...
(BAIXO) Meus gritos se espalharam por toda a parte.
(ERGUE-SE, APONTANDO) Mas eu só vejo o pijama, a capa e
Meus gritos batiam nas paredes, nos móveis, como pássaros nada mais.
cegos.
(DESCE PARA A PLATÉIA) Agora mesmo.
(COMEÇA A CORRER, EM CIRCULO, COMO UMA MENINA)
Gente corria dentro de casa. O senhor, que está aí...

(CORO) Bacia! (ESCOLHE UM ESPECTADOR) Sim, o senhor!

Mas pra que bacia? Estou vendo seu paletó...

Claro! Bacia! E seus sapatos...

(EXORTAÇÃO DE CRIADAS) S.Jorge! S. Benedito! S. Onofre! Eles estão aqui...

(DE NOVO, INFORMATIVA) Eu própria me sentia adormecida... (RI) Posso tocá-los...

Adormecida entre gritos... Mas não vejo mais nada...

(GRITANDO) Afinal, esse Dr. Junqueira vem ou não vem? (IRRITAÇÃO) Como se não existissem pés nos sapatos.

(NOVAMENTE MENINA) Dr. Junqueira, (GRITA) Mas o senhor precisa ter rosto!

não quero! (PARA SI MESMA) Sei que as pessoas usam rosto...

Não deixo ele olhar minha garganta! (SOBE A ESCADINHA, FAZENDO AS CONTAS) Cada perfil tem
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dois lados e... De mocinha,
(VIRA-SE, FEROZ, PARA A PLATÉIA E INTERPELA O MESMO senhora
CAVALHEIRO) Então, como é que o senhor não usa duas faces? ou menina!
(RI) Vamos salvar a menina, Dr.? (RI) No bonde, paga passagem para pequenas que ele
(INFORMATIVA) Agora, nunca viu.
o médico vai aplicar a injeção Até menina de colégio, imaginem!
intramuscular, (NOVO TOM) Saíram todos do quarto...
indolor... Papai, já sabe... (RETORCE O BIGODE)
Região glútea... De papai — engraçado —
(JOGO DE CENA NECESSÁRIO E FAZ A APLICAÇÃO) Pimba! só me lembro do bigode...
(PARA A PLATÉIA) Sedol. Bem, mamãe, chorando, coitada!
Calmante daqui. Papai acabou tendo que brigar!
Efeito rápido. (RETORCENDO O BIGODE) Você está fazendo um carnaval! Um
autêntico carnaval! Que diabo!
Tiro e queda.
(MÃE, MEU! LUA) Mas é minha filha!
(ANDANDO COM A TEÓRICA PERNA DE PAU) Agora, a doente
vai dormir. (NUM SOLUÇO DEFINITIVO) Uma menina que tem uns modos
tão bonitos!
(MÃE, MELÍFLUA) Tomara, doutor!
(RETORCENDO O BIGODE) Dr., e afinal...
(IMITAÇÃO DE VELHO) Deus é grande, he, he, Deus é grande!
(PERNA DE PAU) Caso sério!
(IMITA, AGORA, O PAI, RETORCENDO A PONTA DE UM
BIGODE) Agora, ela vai ficar sozinha! Como assim?
Todo mundo pra fora do quarto! O senhor até assusta!
Já. É o diabo!
(MUDA DE TOM) Sônia! Está insinuando o quê?
(ANGÚSTIA) o único nome de mulher, que eu guardei. (PERNA DE PAU) Acho, isto é, quer-me parecer...
Todos os outros desapareceram de minha vida. Aliás posso estar enganado...
(EVOCATIVA) Sônia, E que mais?
um nome que eu acho bonito, (PARA A PLATÉIA) Foi a idade!
quase branco... Foi o que?
(NUMA REVOLTA) Mas a mim, A idade! Cáspite!
Sônia, não, Vejam só!
(SÔNIA) a mim, tu não me enganas! Essa que é boa!
(OLHA AMONTRADA, PARA TODOS OS CANTOS) Sei que estás Dr., use de sinceridade!
em casa, em algum lugar da casa. . . (PERNA DE PAU) A menina tem 14 anos.
Talvez no meu próprio quarto... (MÃE) Quinze.
(CORRE PARA O PIANO E TOCA, EM DESESPERO, A VALSA N.º (PERNA DE PAU) Ou quinze.
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(MÃE, ESPEVITADA) Mas que é que tem?
Já sei! (JÁ NA BOCA DE CENA)
Ah algum crime?
Aposto que o Dr. Junqueira é velho.
Será que uma moça não pode ter 15 anos?
Desses velhinhos camaradas,
(PAI) Continue, Dr.
que põem colete.
(PERNA DE PAU) a passagem... A transição.
Usam monoculo,
(MÃE) Não entendi nada!
E tem asma!
(PERNA DE PAU) Sua filha era menina. Transformou-se em
(AFÁVEL) Ah, e só trata de mulher, o diabo do velhinho! mulher...
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(NUM CRESCENDO CARICATURAL) E houve o choque! O abalo! E uma brisa...
(MÃE) A idade! Acho que o senhor adivinhou, Dr.! Seria meu primo?
(FELIZ) Minha filha tem mudado muito! O senhor não faz uma Ou quem sabe se namorado?
idéia! (BAIXA A CABEÇA, COM PUDOR) Ou noivo?
(CORRE AO PIANO. EXECUTA TRECHO DA VALSA N.0 6) Foi, (COM MEDO) Não, não!
sim!
(MEIGA) Se eu tivesse namorado — ou noivo — ele estaria,
Um abalo muito grande. aqui, de mãos dadas comigo...
é por isso, que, às vezes, eu tenho certas esquisitices e vejo (GRITA) Noiva eu?
certas coisas. .
(INTERPELA A PLATÉIA) Mas de quem?
(DOLOROSA) Mudei tanto!
(DOLOROSA) Digam!
(SÚBITA EUFORIA) Antes, eu era uma menina...
(INTERROGA UMA ESPECTADORA) Eu tenho a face, as mãos, os
(CORRE PELO PALCO, TROCANDO AS PERNAS, COMO UMA olhos de uma noiva?
OFÉLIA LOUCA) E me sentia feliz.
(AJEITA OS CABELOS) Há uma grinalda, em mim, que eu não
Porém, agora... (INCERTA) Que foi que mamãe disse? vejo? Nos meus cabelos?
(MÃE) O que Paulo fez com minha filha, não se faz! (MAIOR DESESPERO) Uma grinalda atormentando minha
(CHORO SOFISTICADO) Não foi papel de homem! fronte?
(ATÔNITA) Paulo... Meu Deus, Paulo! (DESESPERO CONTIDO) Mas, então, terei de ser noiva de
alguém!
(PERNA DE PAU) Esse desgosto também contribuiu!
(RISO) E se eu fosse noiva de ninguém?
(DE NOVO, ATÔNITA) Desgosto, eu?
(DESESPERADA) Paulo e Sônia...
(FRÍVOLO) Mas eu não tive desgosto nenhum!
Quero-me lembrar dos dois...
A não ser,
E... (ESCANDALIZADA) Oh, Dr. Junqueira pagando a passagem
bobagem sem importância...
de uma menina de colégio!
(NOVO TOM) Tive, sim, um desgosto, agora me lembro...
(SENTA-SE AO PIANO E COMEÇA A VALSA N.0 6. DEPOIS,
Foi num domingo... BREVE TRECHO DA MARCHA NUPCIAL) Paulo é apenas um
Eu estava pronta para ir à missa, quando começou a chover... nome...

(MÃE, MELÍFLUA) Minha filha! (ERGUE-SE E FAZ UM GESTO COMO SE FOSSE APANHAR UM
NOME NO AR) um nome suspenso no ar,
Eu.
que eu poderia colher como se fosse um vôo breve. (COLHE O
(MÃE) Você não pode ir com esse tempo! VÔO)
Ah, não! Mas um nome vazio, sem dono.
Tenha santíssima paciência, mas eu não deixo! (CAI DE JOELHOS) Me proteja, minha Santa Teresinha!
(CHORAMINGANDO) Então, eu vou cometer um pecado! (CHORA) Eu não me lembro de nada,
O padre disse que não ir à missa é pecado!. a não ser de nomes...
(COM DIGNIDADE DRAMÁTICA) Chovia, sim... (PARA SI MESMA) Por isso, muitos têm medo de mim... E
E quando chove em cima das igrejas, os anjos escorrem ninguém me contraria... Porque estou num mundo...
pelas paredes. Sim, num mundo em que tudo que resta das pessoas são os
(FRÍVOLO) Esse foi o desgosto.. nomes.
(INCERTA) Outro que eu me lembro. . . Por toda a parte.
Não, só me lembro desse mesmo. (APONTA EM TODAS AS DIREÇÕES) Nomes, por todas as
partes...
(SEM TRANSIÇÃO, CRISPANDO-SE) Se o Dr. Junqueira quisesse
pagar a passagem do meu bonde, Descem pelas pernas da mesa...
eu não deixaria! Se enfiam nos cabelos...
(EVOCATIVA) Mas Paulo... (FEROZ) Eu esbarro neles, tropeço neles, meu Deus!
é um doce nome... (E, DE FATO, PARECE ESBARRAR E TROPEÇAR EM NOMES)

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Até, quem sabe se... (INSISTE NO CANTO) Mora um anjo que...
(OLHA PARA OS LADOS) Talvez Paulo esteja, aqui, a meu lado... (E O QUE SAI DO PIANO É, AINDA, A VALSA) Valsa
amaldiçoada!
(SELVAGEM) Rindo de ...
(APERTA A CABEÇA ENTRE AS MÃOS) Meus dedos só sabem
(INCOERENTE) Não, Paulo, não!
tocar “isso”!
(PRAZEROSO) Me abraçando!
(COM DESESPERO) Valsa que me faz sonhar com Paulo e Sônia.
(SIMULAÇÃO DE ABRAÇO. EUFORIA) Ou beijando, quem sabe?
(SONÂMBULA) Uma Sônia translúcida e um Paulo esgarçado...
Até me admira, Paulo,
(COBRINDO O ROSTO E RINDO) Dr. Junqueira é doido pela
que você faça essa idéia de mim! Valsa n 6!
O quê? (DRAMATIZANDO UM VELHO) Ah, toca a valsa, minha filha,
Eu? pelo amor de Deus!

Ah, você não me conhece! (AVANÇA ATÉ À BOCA DE CENA) Paulo, eu te odeio,

Pois olhe: e por que, Paulo?

eu nunca fui à Quinta da Boa Vista. (NUM APELO) Que fizeste de mim, do meu rosto e dos meus 15
anos?
As outras iam,
(FEROZ) Se eu pudesse enterrar as unhas na carne macia do
me convidavam, teu pescoço!
mas eu, (SUPLICANTE) diz, ao menos, o que eu sou de ti?
que esperança! Noiva? Prima? Cunhada?
(RANCOROSA) Não venha, Paulo! (EXASPERADA) Que sou eu de ti?
(RECUA, ARQUEJANTE) Longe de mim, maldito! (TRIUNFANTE) Esperem, esperem!
(GRAVE E LENTA) Sejas quem fores, eu te odeio! (CORRE AO PIANO, E TOCA A VALSA N.0 6) Estou-me
(AVANÇA PARA A PLATÉIA) Odeio a um Paulo que não lembrando! Aos poucos...
conheço, que nunca vi... Mas... (PARA A PLATÉIA) Paulo cresce como um lírio espantado...
(ENCARA COM UM DOS ESPECTADORES) Se eu não conheço (DESENHA, COM UMA DAS MÃOS, O LENTO CRESCER DO LÍRIO
Paulo, ele poderá ser um de vós!... SIMBÓLICO)
(RI, CANTAROLA) Talvez um de vós seja Paulo... Vejo a testa,
(COM MEDO) Mas eu não vejo o vosso rosto... as sobrancelhas,
Nem o de ninguém aqui... os olhos,
(GRITA) E cada um de vós? o puro contorno dos lábios!
(PERCORRE E EXAMINA, FACE A FACE, CADA UM DOS ROSTOS (ESCAPA) Mas tua fisionomia está mutilada!
DA PLATÉIA) Tem certeza da própria existência?
(NUM LAMENTO) Faltam várias feições!
(GRITA) Respondam!
(COM DESLUMBRAMENTO) Agora te vejo de corpo “quase”
(BAIXO, COM UM RISO SURDO, FELIZ E CRUEL) Ou sois uma inteiro...
visão minha, vós e vossa cadeira?
(INCERTA) “Quase”,
(CORRE, CAMBALEANDO, PARA O PALCO. SENTA-SE AO PIANO.
COMEÇA A VALSA N 6) Não! porque eu me lembro de tudo, sim...

(EM DESESPERO) Não quero mais esta música! (SÚPLICE) Só não me lembro dos teus sapatos.

Qualquer uma, menos esta! De que cor,

(CANTAROLA) Nesta rua, nesta rua, Tem um bosque, Que se de que modelo eram?
chama, que se chama Solidão, Dentro dele, dentro dele, Mora (ENVERGONHADA, BAIXANDO A CABEÇA) E como não consigo
um anjo, etc. etc. etc. (DIZ O ETC. ETC. ETC. E FALA) me lembrar dos sapatos, tua imagem aparece descalça na
Vou tocar esta, que é mais bonita! (CANTAROLA) minha lembrança.

Nesta rua, nesta rua. (MAS TOCA, CONTRA A VONTADE, A (NUM APELO) Por que não te calças, Paulo?
VALSA N.0 6) (SEM TRANSIÇÃO) Aposto que Sônia anda por aí.
Não é isso! (DOCE) Mas, Paulo, eu me lembro de ti e de mim. E de mais
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nada. Ah, sim, pois não! O meu punhal de prata...
Porém, duas pessoas não podem existir sem fatos. (PUNHAL DE PRATA) De penetração macia, quase indolor.
(NUM ESPANTO FELIZ) Fatos! (DOCE) E naquele dia, te inclinaste, Paulo...
Sim, é isso! Isso mesmo! (ERGUE O ROSTO, ENTREABRE OS LÁBIOS)... para um beijo
rápido.
(EXCITADA, PARA A PLATÉIA) Fatos...
(ESPANTADA) Mas Paulo!
Bem que eu sentia falta de uma coisa.
Não beijaste a mim!
Era deles, dos fatos!
(NUM SOPRO DE VOZ) A mim, não...
(FRENÉTICA) Que aconteceu entre nós, Paulo?
(NUM LAMENTO) Beijaste alguém, que não era eu,
Deve ter acontecido alguma coisa!
Eu que sou tua namorada
(SÚPLICE) Que fizeste, Paulo?
ou noiva!
(COM ENLEIO E VOLÚPIA) Me beijaste, foi, querido?
(RECUA, APAVORADA E APONTANDO) A mulher a quem
(FEROZ) Ou me traíste?
beijaste, ainda ficou de boca entreaberta...
(CULTIVANDO A HIPÓTESE) E quem sabe se com Sônia?
Eu vi pelo espelho, tudo!
(JÁ NO PIANO DÁ VIOLENTO ACORDE) Só não queria que fosse
(INCERTA) Mas quem foi, Paulo, quem foi?
com Sônia!
(NUM GRITO SELVAGEM) Sônia! Beijaste Sônia!
(FRÍVOLA E IRRESPONSÁVEL) E se já me beijaste,
(CORRE AO PIANO, TOCA, PASSIONALMENTE, A VALSA N.0
que seria hoje este beijo senão uma sensação perdida?
6, AO MESMO TEMPO QUE SOLUÇA DE ROSTO PARA A
(DESESPERADA) Porém, é que... PLATÉIA)
Fizeste uma coisa, sim,
(COISA) da qual não me lembro, FIM DO PRIMEIRO ATO
uma coisa,
não sei, SEGUNDO ATO
que me separa de ti e...
(CORO DINÂMICO) Ela é muito meiga! Uma boa menina. (MESMO CENÁRIO. DETRÁS DA CENA, O BOMBO, COM O SEU
Educada. OBSTINADO ACOMPANHAMENTO. A MENINA JÁ NÃO ESTÁ
Se é. NO PIANO. NO MEIO DA CENA, FAZ A SUA ENCANTADA
VIAGEM AO PASSADO. Ë, AGORA, UMA MENINA EM PLENO
(VIOLENTA) Sou, não sou? JOGO INFANTIL.)
(MACIA E PERVERSA) Mas ninguém sabe as ganas que tenho. Bento que o bento, ó frade! Frade!
(FEROZ) De te bater! Na boca do forno!
De te estrangular, Paulo! Forno!
(MELÍFLUA) Talvez sejas doce como um primo criado com a Virai um bolo! Bolo!
gente, mas...
Faremos tudo o que seu mestre mandar?
(LENTA) O punhal, que papai me deu de presente...
(ERRO DE PORTUGUÊS BEM ENFÁTICO) “Fazeremos” todos!
De prata.
(PARÓDIA DE UM DELIRANTE RISO INFANTIL. TRANSFIGURA-
(RÁPIDA E FEROZ) Eu cravaria em ti este punhal! (NO VESTIDO SE. LAMENTO) Não sei, meu Deus!
LIMPA O PUNHAL E O SUJA DE SANGUE)
Isto é, Sei!
(ALISANDO O VESTIDO, COM ENLEIO) Sabe, Paulo? Eu escondia
meu ódio, e o dissimulava dia e noite. Foi assim.

(CORDIAL E PROSAICA) Se bem que eu tinha muita insônia. (SENTA-SE AO PIANO. BREVE TRECHO DA VALSA Nº 6) Eu
estava tocando a Valsa, a pedido de alguém.
(INTENSA) Uma insônia cravejada de ódio!
(PARA A PLATÉIA) Foi, não foi?
(CORRE AO PIANO. VALSA N.0 6. ESPANTADA) Mas roubaram o
meu punhal... Então, esse alguém veio devagarinho, pelas costas... (GOLPE
NO PIANO)
(FRÍVOLA) Como?
E que mais, meu Deus? que mais?
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(FREMENTE) Não havia mais ninguém na sala. A música que Sônia tocava muito!
Só nós dois... (GOLPE NO PIANO) (DANDO UM ACORDE SELVAGEM) Mas eu não odeio Paulo!
(OUTRO GOLPE)
Mas então eu tive um mau pressentimento...
Eu disse que odiava?
Parei de to......
Mas, não, nunca!
A pessoa pediu: CONTINUE! CONTINUE!
Tudo não passou de um mal-entendido!
(TOCA E PÁRA) Gritava: MAIS! MAIS! MAIS! SEMPRE MAIS!
(TOCA E PÁRA) (IRRESPONSÁVEL) Pois se até gosto muito dele!
E depois... Tenho verdadeira adoração!
(PARA A PLATÉIA) Que aconteceu depois? (CORO ESCANDALIZADO) Adoração como?
(ESPANTADA) As lembranças chegam a mim aos pedaços... Ora essa!
Ainda agora, eu era menina. Depois do que ele fez!
(MUDA-SE EM MENINA. CORRE, PELO PALCO, TROCANDO AS Beijou outra!
PERNAS) Onde está a Margarida, olé, oh, olá? Eu bem!
(PÕE-SE DE JOELHOS PARA ESPIAR AS ÁGUAS DE IMAGINÁRIO (SELVAGEM) Odeio, sim, mas Sônia!
RIO – QUERO UM RIO DE SANGUE QUE PASSA NO MEIO DAS
PERNAS DELA) Vejo restos de memória, boiando num rio, (RODA O DEDO, AMEAÇADORA) Ah, se fosse comigo!
(APONTA O CHÃO) Num rio que talvez não exista... Porque fique sabendo que eu sou geniosa (FAZ VOZ DE
NORTISTA)
(RI, FELIZ) Passam na corrente gestos e fatos.
Nasci no Recife, bairro da Capunga! (GINGANDO, PLEBÉIA)
(APANHA NA ÁGUA INVISÍVEL, COM AS PONTOS DOS
DEDOS, ALGO QUE TEORICAMENTE GOTEJA) Eis um fato E tira o cavalo da chuva!
antigo. (DOLOROSA) Saibam que amo Paulo!
(APONTA PARA O AR) Vejo também pedaços de mim mesma (COM UNÇÃO) tão bonito que se eu pudesse...
por toda parte...
(NUMA DOÇURA MAIS INTENSA) vivia acendendo círios diante
(NUMA REVOLTA) Meu Deus, como era mesmo o meu rosto, dele.
meus cabelos, cada uma de minhas feições? (INQUIETA E SINISTRA) Mas Sônia não me larga.
(PARA UMA ESPECTADORA) Minha senhora, esqueci meu rosto Ela me espia!
em algum lugar.
(OLHANDO PARA OS LADOS) Agora mesmo..
(FEROZ) Mas eu não saio daqui,
(BAIXA A VOZ) Eu sinto os olhos de Sônia dentro de mim...
Não antes de saber quem sou e como sou.
(APANHA FIOS, QUE ESTARIAM ENROLADOS NAS SUAS
(ENSAIA UM RETORNO À INFÂNCIA) Onde está a Margarida... PERNAS) Sônia está neste momento...
(ESTACA. INSISTE) Onde está a Margarida, Olé, (RISO SOLUÇANTE) enroscada nas minhas pernas, como uma
(ESTACA NOVAMENTE) Acho que sou menina! (INCERTA) serpente de mil anéis!
Não, não... (NUM APELO) Tu, Paulo!
(CHEGA À BOCA DE CENA) Olé, Oh, Olá... Eu te peço!
Acho que sou mulher... (CHORANDO) Darling! Darling!
(ATITUDE) fumando numa piteira de âmbar... (ESTACA) Quem?
(NUM CRESCENDO DE ANGÚSTIA) Ou, então, Sônia!
uma senhora gorda que sofre dos rins, do fígado e se queixa de Ora veja!
azia! (COM DESPREZO) Imagine, Sônia! (FEROZ)
(MUDA DE TOM) Senhora, existem ou existiram espelhos? Falsa, falsíssima!
Ou, então, conheceis a água translúcida de um rio? (RÁPIDA) Os olhos,
Um rio, sim, onde meu rosto possa deitar-se entre águas? o sorriso,
(CORRE AO PIANO) Essa música, estão ouvindo? a cor dos olhos!
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(VALSA N. 6) Era a paixão de Sônia! (EXULTANTE) Tudo, em Sônia, não presta,
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Juro! (SARDÔNICA) Ah, não! Que esperança!
(CORRE À BOCA DE CENA) Até eu soube de um caso... (CRUEL) Prefere o marido de alguém!
Não sei se alguém me contou ou se eu mesma vi... (INFORMATIVA) Tem horror de rapaz nojo!
(FEROZ) Eu mesma vi! (COM DESPREZO) Só pensa e sonha...
Com estes olhos que a terra há de comer! (VELA O ROSTO, COM PUDOR) com homem feito!
(CORO ÁVIDO) Viu, é? (SEM TRANSIÇÃO, COMEÇA A PULAR AMARELINHA)
Interessante!
Conta!
(EVOCATIVA) Até outro dia...
Ah, conta!
Outro dia, é modo de dizer...
(TONS DIFERENTES E CARICATURAIS DE SÚPLICA) Mas olha que
é segredo! Há coisa de um ano...
(INTENCIONALMENTE LENTA) Pois Sônia... (RI, FELIZ)... Sônia ainda brincava de amarelinha. Que ótimo!
(FRÍVOLA)... tem um caso... (ESTACA) Margarida... Onde está... Oh...
(DEIXA CAIR A BOMBA) COM UM HOMEM CASADO! Margarida...
(PAUSA) Que tal? (LENTA E DESCONFIADA) Olá.
(COCHICHOS ESCANDALIZADOS) O quê? (FRÍVOLA E ÁGIL, COMEÇA A JOGAR AMARELINHA) Sônia de
meias curtas...
E Sônia?
E os cabelos rolando sobre o silêncio das espáduas.
Virgem!
(CORDIAL) Sônia era menina, tão menina,
Nossa Mãe!
que, até, nós duas tomávamos banho juntas...
Que blasfêmia!
(AMÁVEL AINDA) Perfeitamente.
(CONFIRMANDO, FEROZ) Pois é,
E a toalha era só felpuda.
homem casado!
Eu gostava de ver as gotas,
Casadinho!
milhares, sim,
E isto é direito?
milhões de gotas nas costas, nos braços, de Sônia.
Claro que não,
Cada gesto...
evidente,
(RI, DIREITÍSSIMA) era uma catástrofe de gotas.
onde já se viu,
(CORTA O RISO) Pois eu,
essa é muito boa!
só gosto de namorado de minha idade.
(VAIDOSA) Eu, não,
Ou pouco mais velho, só.
Deus me livre!
(TERROR) Mas súbito a menina...
Homem casado, comigo, está morto. enterrado!
(ESTACA) O que foi que houve com a menina?
(SÚBITA ANGÚSTIA) Oh, Paulo!
(PARÓDIA MATERNA) Hem, Dr. Junqueira? Que foi?
(INCOERENTE) Além disso, eu não acharia bonito homem
casado! (PIGARRO, ANDAR DE PERNA DURA) Nada, nada. Coisa à-toa.
Homem casado não é bonito. (MÃE AFLITA) Mas Sônia anda triste.
(COM INVOLUNTÁRIA DOÇURA) Nem tem lábios meigos de Chora sem motivo...
beijar, Ou ri demais!
(INCERTA) Nem sombreado azul de barba! (BAIXA A VOZ) Deu para ter vergonha de tudo. De tudo,
(VEEMENTE) Eu preferia morrer! doutor!
(SOLENE) Jamais homem casado roçou meu corpo com a Uma coisa por demais!
fímbria de um desejo! (PIGARRO) A idade, minha senhora, a idade. A transição.
(TRANSFIGURANDO-SE EM MÃE DE FAMÍLIA) Mas por que Idade?
Sônia não namora menino de sua idade? (INFORMATIVA) Sônia tinha de 14 para 15 anos.
Tão natural, não é mesmo? 15.
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Ou 15. morte, tudo, a mesa e a dália.
Começou a ter vergonha de tudo. (PARA A PLATÉIA) Eu não mataria.
Dos próprios pés. Agora Sônia é diferente! (SEGREDA) capaz de tudo!
Seu coração palpitava, se ela via os próprios pés, (GRITA) Mas só elogiam Sônia.
(DOCE) frios e nus, sem meias e sem sapatos. E a mim, não.
(PUDOR) Pés despidos, meu Deus! Sônia é isso,
(EXCITADA) Tem mais, tem mais! Sônia é aquilo.
(VEM FAZER A REVELAÇÃO NA BOCA DE CENA) Tinha vergonha (IMITAÇÃO CARICATURAL) Sônia tem vocação para música,
dos móveis. piano, bordado.
Digo dos móveis descobertos, sem nenhum pano, nenhuma (PARÓDIA DO MÉDICO) Sônia precisa fazer operação de
toalha. amígdalas.
Portanto móveis nus. (DESPEITO) Eu também preciso, ora essa!
(SOFISTICADA) Quanta bobagem! Também quero tirar as amígdalas!
(GRITA SEM TRANSIÇÃO) Mas, e eu? E sei tocar Valsa n.0 6 direitinho.
Só se fala de Sônia! (CORRE AO PIANO E DÁ UM VIOLENTO GOLPE NO TECLADO)
Sônia já desejou a morte de alguém.
Eu própria só penso nela!
De quem?
Porém agora só vou falar de mim.
Dele, é lógico.
E de Paulo, também.
Mas quem é ele?
(NUM LAMENTO) Oh, Paulo! ainda não sei quem és.
Deve ser um homem casado. . .
Talvez meu primo, meu noivo ou cunhado,
Ou, então, Paulo!
mas sei que há entre nós os “outros”.
(CORRE PARA A BOCA DE CENA) Sim,
(COM ÓDIO) Os “outros” sempre existem,
desejou a morte de Paulo.
estão em toda a parte. . .
Imaginou Paulo morto.
Mas não..
(NUM SOPRO DE VOZ) Sonhou com um velório não sei por que
(BAIXO) Quem me separa de ti, deve ser Sônia.
muito branco.
(EM SEU FUROR) Eu sei que ela pensa em ti,
(DANÇA E SALTA, TROCANDO AS PERNAS) Sônia dança,
e fecha os olhos.
Sônia canta!
E se tranca no quarto.
(ESTACA) Dançaria até na câmara ardente de Paulo.
Para pensar em ti.
(LENTA) Quem sabe se, na dança, não tropeçaria num círio?
Até morta, pensará em ti.
(CORDIAL, AMÁVEL, MUNDANA) Mas num velório há sempre
(CORRE AO PIANO. VALSA N.0 6) Mas eu tenho meu punhal de um cafezinho.
prata.
Distribuição e alarido de xícaras e pires.
(FORA DE SI, EM PUNHA O INVISÍVEL PUNHAL) E se eu pudesse
Mais açúcar, madama?
apunhalar um nome,
(FURIOSA) Hipócrita! Mentirosa!
cravar neste nome um punhal.
(AMÁVEL) Bem.
Depois vê- lo agonizar aos meus pés.
Eu sei fazer muitas coisas.
(VEEMENTE) Se eu pudesse matar o nome de Sônia!
Declamo.
(ATÔNITA) Porém roubaram o meu punhal de prata.
Conheço não sei quantas receitas de bolos.
(SÚBITO MEDO) Que esperança!
(FELIZ) E, uma vez, cerzi uma calça de papai tão bem, que nem
Eu não mataria ninguém.
parecia.
Nem mesmo um nome, juro!
(CORO) Ela não desejaria a morte de ninguém.
(GRITA) Não há uma assassina em mim!
Nem de Sônia?
(BAIXO) Além disso, um defunto contamina tudo com sua
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De Sônia, talvez. (SENTA-SE, FEROZ, AO PIANO) Esta? (VALSA N.0 6) não, é?
Ótima idéia a morte de Sófia. (MAIS COCHICHO) Então, o assassino veio, devagarinho...
(LENTA E GRAVE) Mas Sônia não morrerá. Pelas costas...
(EXULTANTE) Há-de morrer, sim! (ÁVIDA) Que mais?
Farei promessa! pelo amor de Deus, que mais?
(GRITO) Alguém gritou? (SINISTRAMENTE) Não havia mais ninguém na sala.
Não. Só os dois.
Gritou, sim! Os dois, sim.
Foi, não foi? Um grito!... A vítima ia ao seu primeiro baile...
(APAVORADA) Um grito parecido com um que eu conheço. Tinha um vestido branco, de lantejoulas prateadas, véu nos
ombros...
Mas não pode ser.
E parece que teve um mau pressentimento, porque...
(MEDO AINDA) Foi coincidência.
(GRITANDO) Continue!
(INCERTA) Engraçado, tão parecido com o meu próprio grito.
(BAIXO) Porque parou a música... Sei, sei!
(IMITAÇÃO DE COCHICHO DE COMADRE) Que foi? que foi?
Então, o assassino pediu...
Uma moça.
(CORRE PARA O PIANO) Mais, mais!
Mataram uma moça.
(VALSA Nº 6) Sempre mais!
Onde?
(NOVO TRECHO) Sempre, sempre!
Uma moça.
(FRENESI) Mais forte!
Novinha. (BRUXA)
(O PIANO QUASE VEM ABAIXO) E a vítima continuava.
Não é a primeira que morre.
Não ia parar nunca.
(LENTA) Um homem casado matou!
Então... (PAUSA. DEIXA O PIANO)
(ESPANTO E EUFORIA) Casado?
O assassino mergulhou o punhal de prata nas costas da moça.
Marido de outra mulher?
Mesmo ferida,
(CORO) Casado, sim!
a vítima quis continuar tocando e, (DOIS ACORDES AINDA)
No civil e no religioso.
Gritou?
Com filhos.
Gritou.
Tinha uma mulher muito boa!
Sei.
(BRUXA) Dizem que...
Mas não deu muita confiança à morte,
(CORRE, DESESPERADA, EM CÍRCULO) Dizem o quê? Quero
saber o que dizem! porque ia tocando mais.
Preciso saber! Porém, a cabeça desabou sobre o teclado...
(COCHICHO) Parece que a vítima... (GOLPE NO TECLADO) Quando apareceu gente,
(GRITA) Vítima, não! Sônia já estava morta.
o nome! (GRITA) SÔNIA!
quero o nome! (BAIXO) Sônia, disseram Sônia?
(CHEGA À BOCA DE CENA, APELA PARA A PLATÉIA) Alguém (COCHICHO) Sônia, sim, como não? Aquela menina.
sabe o nome? Uma que tocava muito bem.
quem sabe, diga, pelo amor de Deus! E sabia francês.
Eu não quero nada demais, apenas o nome! Natural.
(CHORANDO) E o que é um nome? Estudou nos melhores colégios.
(NOVO TOM) Pois dizem que a vítima estava tocando uma (MEU LUA) Incapaz de matar uma mosca!
música..
(TRANQÜILA E CRUEL) Morreu.
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Enfim, morreu. Agora Paulo está puro de ti.
Mas eu não estou satisfeita. E eu queria que ninguém te visse mais.
Nada satisfeita. Nem as flores do caminho.
Pelo contrário... Que teu perfil de morta passe por entre lírios cegos!
(OLHA PARA OS LADOS) Seu enterro deve ter sido muito (NUMA MALDIÇÃO MAIOR) E onde quer que estejas,
bonito. odiarás tua lancinante forma terrena.
E ela própria também, porque as mortas são uma simpatia. (CORO DE COMADRES) O pai está que nem doido!
(SOFISTICADA) Digo isso, De amargar!
porque manda a boa educação. E a mãe?
(OSTENSIVAMENTE HIPÓCRITA) Uma virgem morta entre A mãe é bacana. Teve 15 ataques!
flamas.
(BÊBEDO, COM O TÍPICO SOLUÇO) Sabe o que me invocou?
(FEROZ, SEM TRANSIÇÃO) Larga minhas pernas, Sônia.
(AVIDEZ) Que foi? que foi?
(LENTA) Tu já morreste.
(BÊBEDO) É que, mesmo ferida, mesmo com o punhal
Teus olhos estão cegos dentro de mim. Maldita! enterrado nas costas.
(NUM APARTE MELÍFLUA, PARA A PLATÉIA) feio falar mal dos (SOLUÇO) ...a vítima ainda queria continuar tocando.
mortos.
Vocação, ora essa!
(FEROZ) Teu vestido,
(COMADRE MELÍFLUA) Nessas ocasiões, eu tenho muita pena
sim, teu vestido de lantejoulas prateadas, de quem fica!
já não me persegue mais! E eu de quem morre.
(NA BOCA DE CENA) Escondeste tua maldade de todos! (SOFISTICADA) Mas nem tem comparação. Eu, hem!
Teu rosto, ninguém o conheceu. Claro! Porque quem fica chora...
(HIRTA) Usaste uma face doce e altiva que não era a tua. E o defunto?
(MAIS PAIXÃO) Só a morte viu o teu rosto verdadeiro e último. O defunto nem sabe que morreu!
(SELVAGEM) Dançarias, não? (SÔNIA CORRE AO PIANO. VALSA N.0 6. E GRITA DENTRO DA
Dançarias, se Paulo morresse? MÚSICA) Sempre! Sempre!
Pois eu danço também!
(CORRE NO PALCO E PÁRA PARA FAZER A PARÓDIA DAS FIM.
COMADRES) Viram o assassino?
Quem?
O assassino!
Que coisa!
Completamente gagá!
Médico instruído!
Competente!
(COMENTÁRIO CARICATURAL) Os velhos hoje em dia são os
piores!
(CHAMANDO OS OUTROS) Vamos espiar, vamos?
(CRUEL) Está ali, deitada,
a menina que iludia a todos.
(COMO SE REZASSE) Parecia uma jovem santa, branca e sem
mácula, tão frágil e tão fina.
(COMADRE) Eras boa demais para este mundo!
(HIERÁTICA) Vai-te!

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