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Representatividade feminina no

sistema artístico precisa ser mais bem


avaliada
por Sylvia Miguel - publicado 21/03/2017 09:35 - última modificação 23/03/2017 09:42

Obra "O Banquete", da


norteamericana Judy
Chicago, foi citada no
debate
A história da arte no Brasil não poderia ser escrita sem as referências
fundamentais das grandes artistas mulheres. Tarsila do Amaral e Anita Malfatti
são as mais lembradas, seguidas por nomes como Lygia Clark, Lygia Pape,
Tomie Ohtake, Maria Bonomi, Regina Silveira, Djanira e muitas outras. Elas
têm espaço garantido não só na cultura, como muitas de suas obras estão
cotadas entre as mais caras em leilões internacionais. O espaço da mulher
brasileira nas artes parece um caso à parte no cenário mundial, já que em
países como os Estados Unidos, por exemplo, as mulheres tiveram de
conquistar não com poucas lutas o seu lugar em museus, galerias, mídia,
público e crítica.

A situação confortável das artistas no Brasil, porém, deve ser olhada com
cuidado, pois a aparente vantagem pode estar atrelada a uma perspectiva
histórica que não necessariamente reflete a atual situação desse campo, no
que se refere às novas artistas da contemporaneidade. O alerta foi dado pela
professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da
USP, Ana Paula Cavalcanti Simioni, durante o debate “Arte e Gênero”, que
integrou a programação da semana “Mulher com Arte”, tema proposto pelo
escritório USP Mulher como foco das atividades da Universidade este ano.
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Vídeo | Fotos
Realizado no IEA no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o seminário
organizado pelo IEA, pelo IEB e Museu de Arte Contemporânea (MAC) da
USP, contou com abertura e comentários do professor Carlos Roberto Ferreira
Brandão, diretor do MAC-USP e ex-diretor do Museu de Zoologia (MZ) da USP,
do professor Paulo Teixeira Iumatti (IEB-USP) e também do vice-diretor do IEA,
professor Guilherme Ary Plonski.
A participação feminina no campo artístico é temática que já ocupa décadas de
estudos, tendo ganhado força principalmente em países onde o feminismo é
mais forte e atuante. Para muitos críticos, a arte não é de fato um campo livre e
autônomo, mas um espaço determinado por instituições, sistemas e academias
de arte, patrocinadores e até alguns mitos, que começam a ser desconstruídos.
Carlos Roberto Brandão,
diretor do MAC
O MAC-USP, por exemplo, planeja uma exposição de obras produzidas só por
mulheres, com o objetivo de mostrar que gênero, materiais utilizados, partidos
artísticos e outras questões não estão expressos na obra, ou seja, independem
do fato do artista ser homem ou mulher. A exibição estará inserida numa
grande empreitada expositiva, já que o museu pretende mostrar ao público
quase todo o seu acervo – aproximadamente 10.500 peças.

Segundo Brandão, o MAC-USP está transferindo para o Ibirapuera todo o seu


acervo e vai expor grande parte dele, o que será um marco na história do
museu, afirma. “Entre as idéias curatoriais, uma delas é mostrar trabalhos
feitos por mulheres apenas, confeccionados em grandes formatos e com
materiais pesados como ferro, concreto e borracha. A intenção é mostrar que
não há diferença entre o conteúdo das obras produzidas por homens ou
mulheres”, afirma.

Brandão disse se orgulhar do fato da instituição que dirige possuir em seu


acervo não só uma quantidade razoável de artistas mulheres, como também
expor essas obras com freqüência. Entre algumas das coleções brasileiras
mais importantes, a do MAC é a que possui a maior presença feminina: as
mulheres são 29% da coleção (184 entre os 655 nomes).

Representatividade
Para Ana Paula Simioni,
do IEB-USP, a
perspectiva histórica não
se reflete na atual
situação das mulheres nas
artes
A professora Ana Paula Simione mostrou alguns indicadores do mercado de
artes e museus para exemplificar aspectos da sua apresentação.
Comparativamente à coleção do MAC, mostrou a presença feminina em
coleções como a Freitas Vale, que tem sete mulheres entre 113 nomes de
artistas (6,19%) do período Modernista. A Pinacoteca tem 321 mulheres entre
1588 nomes (20% da coleção); a de Inhotim possui 22 mulheres entre os 99
artistas (22,22%); e a coleção Mário de Andrade tem 22 mulheres entre 135
nomes (17%).

Segundo Ana Paula, as obras de algumas artistas brasileiras estão entre as


mais caras do mercado brasileiro. Não só isso. Entre as obras mais caras em
leilões internacionais, três são das brasileiras Lygia Clark, Beatriz Milhazes e
Adriana Varejão.

Considerado o mercado internacional em geral, os índices mostram uma


crescente participação feminina no mercado e em museus nos anos recentes,
comparado à década de 1970. “A partir do ano 2000, as mulheres têm
apresentado uma representatividade em acervos e visibilidade no mercado em
torno de 22%. Mas não tem sido um progresso linear e constante. E apesar da
maior inserção, elas ainda ocupam uma posição minoritária no mercado
internacional”, constata Ana Paula.

Portanto, os números mostram que o Brasil pode ser um caso à parte quando o
tema é a mulher nas artes. Porém, o cenário aparentemente favorável pode ser
apenas uma primeira impressão, na opinião de Ana Paula. “Muitas das artistas
bem sucedidas no mercado nem sempre desfrutam de boa colocação nos
espaços museais. Ou seja, o valor de mercado nem sempre migra para uma
valorização cultural ou outras instancias de legitimação da cultura. E o mercado
da arte não se resume a ser artista. Há outras posições em museus e galerias
que ainda não são ocupados por mulheres”, disse.

Outra questão é que nem sempre a representatividade em coleções significa


visibilidade, pois há muitas obras de artistas brasileiras pertencentes a acervos
importantes como do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), ou a do
Centro Georges Pompidou, em Paris, que no entanto, nunca foram expostas,
compara.

“Sendo assim, a análise precisa ir além dos números. É importante incluir


critérios numéricos e etnográficos para chegarmos a uma abordagem mais
qualitativa. Saliento que mulheres como Tarsila e Anita tiveram sucesso num
país que nunca foi e nunca será moderno, pois não completamos o ciclo
moderno e já entramos no pós-modernismo. Então vejo nisso uma percepção
histórica, de uma determinada geração em dado momento, em que nosso
Modernismo foi construído sobre mitos históricos. Mas pergunte para a nova
geração de artistas, as que hoje têm algo como 20 anos de idade, qual a
percepção delas sobre gênero ser ou não uma questão para entrarem no
sistema da arte”, questiona Ana Paula.

Por outro lado, Ana Paula lembrou que a tradição feminista nos Estados Unidos
abriu mercados no campo artístico, mas a arte feminista nem sempre é aceita.
“A obra mais cara de Lygia Clark, por exemplo, não têm nada de menção a
gênero ou qualquer cunho feminista e nesse ponto parece haver um rechaço
desse tema nas artes”, compara.

“Embora a globalização artística se coloque como democrática, com um


discurso de que haveria espaço para todos, verificamos que isso não é
verdade. Os artistas mais bem sucedidos estão nos centros globais, como
Nova York, Inglaterra, Berlim e Paris. A China é um caso à parte, pois vem
crescendo numa velocidade impressionante. Então o mercado é
profundamente desigual e o país onde o artista nasceu ou onde ele constitui
sua nacionalidade tem peso para sua inserção nesse mercado. Da mesma
forma, as mulheres têm uma relação menor e são menos bem pagas. É um
mercado profundamente generificado”, disse Ana Paula.

O professor Plonski lembrou a luta da artista feminista norte americana Judy


Chicago, criadora da obra “O Banquete” (“The Dinner Party”). Exposta no
Brooklin Museum de Nova York, ganhou repercussão internacional e até hoje é
uma das mais visitadas do mundo. A obra traz representações sexuais
femininas e expõe um mosaico triangular que rememora mulheres que fizeram
história.

Plonski ressaltou a importância do debate lançar múltiplos olhares sobre o


tema. E lembrou uma frase de Judy Chicago: “Não foi trivial para que mulheres
pudessem entrar nos museus e ficassem nas paredes, sem estarem nuas”,
lembrou.

Imagens: 1: Neil R/Flickr. 2 e 3: Leonor Calasans/IEA-USP

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