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Abya-Yala: moda da esquerda que condena

colonização e mora em Paris

Talvez você sinta indignação diante das problematizações simbólicas do parquinho


de areia antialérgica da esquerda brasileira. Eu vou confessar que sinto mesmo é
inveja. Fui apresentada esta semana ao conceito de Abya-Yala, que seria o nome dado
à América Latina pelos povos originários. Tudo bem que a história não é bem assim
mas não importa, o importante é parecer moralmente superior.

Imagine o tanto de tempo livre que uma pessoa precisa ter para dar importância a
chamar a América Latina de Abya-Yala e ainda achar que o resto do mundo tem
inveja. Tem mesmo, de outra coisa, de tanto tempo livre e falta de ter de correr atrás
de dinheiro. Cheguei a dizer no Twitter que queria um marido para me sustentar em
Paris, mas fui advertida do erro. O pessoal tinha razão. Queria mesmo era pai
milionário para poder xingar a classe média diretamente de Paris.

A pergunta que não quer calar: onde foi parar Pindorama? Por que renomear para
Abya-Yala? Ah, eu fui atrás disso. Pindorama é como os tupis chamavam a nossa
terra antes da chegada de Cabral e uma ideia de Brasil original que já existe na nossa
cultura. Abya-Yala é como o povo das paradisíacas ilhas de San Blas, no Panamá,
onde se pratica turismo para gringo rico, chama sua terra. Ah, bom. Faz sentido.
Primeiro o hippie de boutique, agora o povo originário de boutique. Ou melhor, de la
Casa de Papel.

Esquece essa coisa de Tupi, Tupi-Guarani, esse povo que se dane porque é super
1990, né? Esquerda que é 100% parque de areia antialérgica retira todas as suas
referências culturais do seriado "La Casa de Papel", da Netflix. Meu pai era de
esquerda, militante sindical no ABC Paulista, ligado às comunidades católicas de
base. Graças a Deus ele se foi sem ver essa esculhambação toda. Avalia meu pai
vendo o povo cantar "Bella, ciao" porque virou modinha no seriado.

O hino antifascista Bella Ciao adaptado ao Brasil


E daí eu fiquei imaginando de onde foram arrumar como povo originário mais
representativo da América Latina os Guna Yala lá da reserva de San Blas, no Panamá?
Destituíram o povo Tupi e colocaram os Guna Yala no lugar sem avisar ninguém.
Coisa de gente rica, né? Não precisa nem pedir licença. Perguntei ao Professor Doutor
YouTube e adivinha em que seriado aparece esse arquipélago? Pois é! "La Casa de
Papel"! Então é erudito, é esquerda, é legal, danem-se os Tupis.

Eu achei bem interessante essa ideia de usar Abya-Yala para rejeitar o capitalismo.
Faltou avisar para o pessoal que criou a expressão, os Guna-Yala. É um povo que
ocupa um arquipélago de duas centenas de pequeníssimas ilhas no Panamá e se
tornou uma reserva, mas não ambiental. Só os povos originários podem explorar os
negócios ali. Já fui e recomendo. Se tiver amigo europeu com vontade de se sentir
aventureiro enquanto você quer o descanso de um resort, é perfeito. Fala que vai para
uma aldeia indígena, vai mesmo, o amigo fica feliz e você descansa.

Aqui vai uma coincidência pessoal. Quem me apresentou San Blas foi um cidadão
catalão que realmente acreditava estar vivendo uma aventura numa aldeia indígena.
Quem é que usou a expressão Abya-Yala, vinda de lá, para referir-se à América Latina
pela primeira vez? Isso mesmo, um catalão. Mas não é hetero, eurocêntrico,
capitalista, etc? Acho que foram absolvidos por terem Gaudí e Dalí. Deve ser isso.
Ganharam um free pass progressista, tipo o José de Abreu.

Quem é o legítimo representante dos povos originários que substituiu tantas


diferentes expressões que designavam a América Latina por Abya-Yala? Xavier Albó,
que é um antropólogo sério, sacerdote Jesuíta com inúmeros trabalhos científicos e
uma vasta experiência. Espera aí, mas não era um negócio contra colonização e
heteronormatividade? Não vamos complicar, né? Para quê falar de realidade se dá
para militar tão bem esquecendo esse detalhe?

O sacerdote não propôs mudar o nome da América Latina, a expressão foi usada num
sentido figurado em um texto antropológico falando da forma de integração dos
povos originários no México, Panamá e Guatemala do Século XXI. O texto escrito por
ele chama-se "Da América Latina à Abya Yala, o novo despertar indígena"
(https://www.ihu.unisinos.br/noticias/46847-da-america-latina-a-abya-yala-o-novo-
despertar-do-indigena). É uma longa análise sobre desenvolvimento, política,
organização social e mestiçagem.

Você sabe o que quer dizer literalmente Abya-Yala? A virgem já madura para ser
fecundada. Está certíssima nosso orgulho internacional Marcia Tiburi. Quem é contra
a estrutura patriarcal e a heteronormatividade tem mesmo é que usar essa expressão
tão empoderadora da mulher moderna, né? A ideia do jesuíta antropólogo nunca foi
mudar o nome, mas mudar a visão. A América Latina precisa de soluções próprias
porque tem uma realidade própria e vive um momento particular de desenvolvimento
social.

Ocorre que ler texto interminável, cheio de dados e fatos é chato. Ainda mais de padre
de esquerda. Tem pouco público. Quem lê porque é padre já fica chateado porque
discorda da visão política. Quem lê porque é de esquerda já passa raiva porque é
conservador e machista. Melhor pegar só a parte do Abya-Yala mesmo que todo
mundo gosta. Criou um novo vocabulário? Está criado um mercado. E dá para posar
de inteligente, de mais puro, de conhecedor das origens.
A primeira vez que se usou a expressão Abya-Yala numa manifestação política
referindo-se à América Latina, foi na II Cúpula Continental dos Povos Indígenas, em
2006 (http://www.cumbrecontinentalindigena.org/). Representantes de 64 etnias
indígenas decidiram passar a se autodenominar povo de Abya-Yala, são exatamente
da região pesquisada pelo jesuíta. O Brasil tem 305 etnias indígenas, 5 vezes o
público representado na conferência. Claro que isso não importa para a
intelectualidade brasileira que rejeita a colonização morando em Paris.

Vejo o dia inteiro um pessoal que guerreia, preferencialmente da Europa e via redes
sociais, conta o capitalismo, a colonização, a visão eurocêntrica, o patriarcado e a
heteronormatividade. Seriam estruturas que aprisionam todos, a única saída é
desconstruir tudo, não há como escapar. Quer dizer, deve ter uma carteirinha que dá
imunidade. Porque todos estão presos, menos o parque de areia antialérgica. Que
inveja dessa complexidade emocional de um comercial de Dollynho. Com isso,
boletos pagos e tempo livre eu faria vocês rirem muito mais, garanto.

Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef
Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do
presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança
e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do
Povo.

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