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CANCELAMENTO”:
CONTRIBUIÇÕES DE UM
OLHAR SOCIOLÓGICO
[ R ES U MO AB STR AC T RESUME N ]
DOI: https://doi.org/10.11606/extraprensa2022.194383
1. Existe uma “cultura do Toda vez que ouço alguém reclamar que
cancelamento”? Qual é o ‘o mundo tá chato’ e que ‘já não dá pra
seu aspecto diferencial em falar nada’ eu me pergunto se a pessoa
relação a outras práticas já ouviu falar na inquisição, no macar-
sancionatórias, para além de thismo, no Dops. Nunca deu pra falar
suas evidentes conotações e tanto, e é exatamente por isso que ela
intencionalidades políticas? tá ouvindo uma crítica. Quem fala em
cultura do “cancelamento” geralmente
tá tentando cancelar alguém1.
Há debates intensos na imprensa e
na sociedade sobre os códigos utilizados No grupo dos céticos, Thibault
frequentemente por ativistas nas redes Rabouin, afirma que a “cultura do can-
sociais #cancel #cancelled, popularizados celamento” é uma construção retórica de
estes na militância em torno dos movimen- setores da mídia conservadora e grupos
tos #Black Lives Matter e #MeToo, com políticos integrantes da direita estaduni-
maior destaque. dense, motivados pelo profundo incômodo
com a perda de poder e privilégios, com as
Não obstante, o termo “cultura do mudanças das redes sociais que possibilitam
cancelamento” tem sido empregado de que pessoas, antes sem voz, atualmente
maneira desregrada e com finalidades possam interferir na escolha dos assuntos
meramente políticas, sem o mínimo de relevantes da esfera pública (RABOUIN,
rigor científico, de modo que há dúvidas 2021).
sobre sua funcionalidade como questão de
pesquisa das ciências sociais, o que explica, Embora estejam presentes, sem
em parte, a demora no surgimento de um dúvida, conotações e intencionalidades
corpo razoável de trabalhos acadêmicos a políticas na origem deste conceito, resta
respeito do tema. saber se ele possui a potencialidade de
representar fenômenos sociais complexos,
Nesse contexto, alguns defendem a com a vantagem de ser uma nomenclatura
inexistência do “cancelamento” como fenô- retirada do próprio cotidiano, dos embates
meno social sui generis, isto é, dotado de ideológicos existentes na sociedade.
particularidades que o distinguem da mera
crítica dirigida a outrem. Assim manifes- Nessa linha de entendimento, a pes-
ta-se Gregório Duvivier, em sua coluna na quisadora Pippa Norris, da Universidade
Folha de São Paulo: de Harvard, em artigo intitulado: “Cancel
Culture: Myth or Reality?”, compreende que
Quem reclama que foi cancelado, geral- situações como esta representam um desa-
mente, apenas teve de lidar com críticas fio para as ciências sociais, no sentido de
– e achou chato. Ao invés de refletir sobre
a validade do que ouviu, prefere jogar a
culpa no zeitgeist. Em outros tempos cul-
paria a ‘ditadura do politicamente correto’ 1 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/grego-
rioduvivier/2020/07/cancela-te-a-ti-mesmo-e-ja-
ou a ‘patrulha ideológica’.
mais-seras-cancelado-por-outrem.shtml.
que seus negócios tenham sido atingidos, da reação das pessoas às suas posições
nem de que tenha sido afastada dos pro- e aos efeitos de ser cancelada em sua
gramas de televisão dos quais participava, vida pessoal e profissional. SAINT-LOUIS,
sequer houve indicativo de diminuição de Hervé, 2021. Livre tradução nossa).
sua presença nas redes sociais.
Aparenta razoabilidade distinguir
É possível destacar a publicação os fenômenos por suas consequências, de
de matérias positivas a seu respeito na maneira objetiva, no sentido de que alguns
internet, poucos dias depois4. casos de “cancelamento” divulgados pela
mídia representam situações que efetiva-
Situação análoga foi verificada no mente repercutiram gravemente sobre as
caso de J. K. Rowling, escritora de livros finanças, vida econômica e alcance profis-
da série Harry Potter, como observa Hervé sional dos sujeitos atingidos, em reações
Saint-Louis da Universidade de Quebec: às suas atitudes e/ou opiniões proferidas,
enquanto outros, retratam pessoas que
In a June 2020 blog post where she spoke foram exclusivamente alvo de críticas,
out on sex and gender issues, Harry ainda que em número bastante superior
Potter’s creator J. K. Rowling (2020) affir- às habitualmente recebidas por um cidadão
med that her controversial position had comum, como ocorreram nos casos da Chef
probably led her to be cancelled four or Paola Carosella e de J. K. Rowling.
five times already. Unlike most people
affected by cancellation and cancel cul- 1.1. Uma tentativa de conceituação
ture, Rowling seemed at peace, defiant da “cultura do cancelamento”
and unfazed by people’s reaction to her
position and the effects of having been Isto posto, a fim de iniciar, com toda
cancelled on her personal and profes- a cautela exigida pela disputa política que
sional life (SAINT-LOUIS, Hervé, 2021). envolve o tema, ainda mais considerando
que se trata de fenômeno atual e em pro-
(Em junho de 2020, em uma postagem no cesso de maturação, este trabalho desenvol-
blog onde ela falou de questões de sexo verá singelas reflexões no sentido de tentar
e gênero, a criadora do Harry Potter, J. contribuir para a superação da absoluta
K. Rowling, afirmou que aquela posição indefinição conceitual instaurada em torno
controversa, provavelmente, já havia lhe da “cultura do cancelamento”.
causado quatro ou cinco cancelamentos.
Diferentemente da maioria de pessoas Simultaneamente, promove-se diá-
afetadas pelo cancelamento, ou pela cul- logo com os trabalhos acadêmicos existentes
tura do cancelamento, Rowling parecia sobre o tema, os quais são, em sua maioria,
em paz, desafiadora e confiantes diante de origem estadunidense.
políticas discutidas sob viés ideológico par- o digital influencer e seu público, marcado
ticular, dentre outras possibilidades. Nesse por laços de intimidade e confiança, com
sentido, há quem se utilize da denominação ampla e voluntária exposição de sua vida
nanocelebridades. privada, com a oferta não somente de um
conteúdo de entretenimento (programa,
Em uma comparação entre as celebri- show, evento etc.), mas principalmente,
dades tradicionais e as nanocelebridades, da própria imagem e da personalidade do
analisam Carles Pont Sorribes e Antoni influenciador, dos valores e da história de
Gutierrez-Rubi: vida de cada youtuber, que é o elo sedimen-
tador do vínculo especial que se cria com
La celebridad se construye como un indi- sua audiência. Cabe destacar:
viduo en el que se articula lo ordinario
y lo extraordinario. [...] Lo ordinario y lo A diferença entre um influenciador
extraordinario se refieren a aquello que el digital e uma celebridade é justamente
individuo tiene en común con los demás y o sujeito, o Eu. O influenciador digital,
a aquello que tiene de singular y propio y digital influencer, creator, ou a deno-
en último extremo de privado, puesto que minação vigente que for, é um sujeito
se supone que le es privativo y exclusivo. que preserva o seu Eu. Enquanto uma
[...] En todo caso, la naturaleza extraor- celebridade está distante, sob holofotes,
dinaria de la celebridad la convierte en traçando um caminho de sucesso que
un individuo-ídolo que es una hierofanía parece muito distante de quem os assiste
de la individualidad sagrada, de la idea no cinema ou na televisão, os influen-
divinizada de la individualidad diferencial ciadores digitais estão no Facebook, no
como eje de la religión de lo privado. […] Instagram, no Snapchat, em espaços
ocupados por “pessoas comuns” com
La confluencia de la religión de lo privado quem dialogam em igualdade. É por esse
con las tecnologías digitales e internet motivo, também, que revistas e sites de
ha dado lugar a una proliferación inusi- veículos tradicionais de mídia não têm a
tada de micro-celebridades (Senft, 2013), mesma reputação que os influenciadores
e incluso de lo que aquí se podrían deno- digitais. A proximidade desses sujeitos
minar nanocelebridades, una pandemia de seus públicos, de sua rede, a partir da
de millones de personas comunes y más o escrita íntima, do uso da primeira pessoa
menos desconocidas a nivel general que, a (no caso dos blogs, Instagram, Twitter) e
través de las redes, se pretenden conver- da pessoalidade cria uma aproximação
tir en individuos-ídolos para un entorno entre o criador de conteúdo e seus públi-
próximo de seguidores (SORRIBES & cos (ISAAF, 2016, pp. 46-47).
GUTIÉRREZ-RUBI, 2020, p. 34).
Não se pode deixar de notar, contudo,
Em segundo lugar, e talvez a carac- que essa aproximação da celebridade com
terística fundamental para o interesse a audiência envolve uma série de riscos.
das empresas em estabelecerem parcerias Em se tratando do estabelecimento de
comerciais com essas novas celebridades, um relacionamento efetivo e afetivo, não
temos a questão do relacionamento entre imaginado como outrora, abre-se espaço
Para agravar esse cenário, todos esses Além de reforçar a impressão de que o
problemas de relacionamento repercutem toque de midas das celebridades é capaz de
economicamente, em regra, somente para atuar para resolver desequilíbrios sociais e
uma das partes, a saber, para a celebridade ambientais (NASH, 2008), o engajamento
que, caso seja mal sucedida na gestão do social pode trazer ganhos econômicos
relacionamento com seus fãs, poderá sofrer significativos às estrelas. Em diálogo com
relevantes prejuízos de ordem financeira, Bourdieu (1980) e Heinich (2012), Bruno
a partir da diminuição das vendas de seus Campanella chama a atenção para a forma-
produtos, do encerramento de seus pro- ção do que denomina de “capital solidário”
gramas, shows, atividades de entreteni- (CAMPANELLA, 2014, p. 721). De acordo
mento, o que resultará, inevitavelmente, na com o pesquisador, este tipo de capital
redução de oportunidades de campanhas “transmite uma capacidade do indivíduo
no mercado publicitário, chegando-se ao de se fazer visível na mídia, conjugada com
ponto, inclusive, de tornar-se irrelevante sua disponibilidade de sustentar publica-
para o público, de cair no esquecimento. mente atitudes moralmente exemplares
acerca dos grandes desafios de seu tempo”
Por outro lado, para além das difi- (idem, p. 737). Esse valor adicionaria uma
culdades relativas à gestão da própria dimensão qualitativa ao “capital de visibi-
imagem em situações polêmicas da vida lidade” (HEINICH, 2012, p. 46), forma de
pessoal expostas nas redes sociais, as cele- capital social que define a celebridade e que
bridades devem atender às demandas de está relacionada à sua capacidade de ser
fãs que passam a exigir delas engajamento notada midiaticamente. Em alguns casos,
e ativismo associados a causas sociais que esse reconhecimento poderá ser convertido
são relevantes para a audiência10, o que em capital financeiro a partir do vínculo
demanda a aquisição de novos conhecimen- entre celebridades e organizações que dese-
tos atinentes a assuntos alheios às ativida- jem mostrar-se alinhadas a tais discursos11.
des profissionais da celebridade.
Provisoriamente, sustenta-se
que é pressuposto para a efetivação
do “cancelamento” a colaboração de
uma ou mais empresas, bem como a
dependência econômica/profissional
do “cancelado” por vínculo de subordi-
nação ou parceria comercial com estas [TA M IRES DE A SSIS L IM A M A RTIN S]
empresas, de modo que, motivadas pela Unesp-campus Marília, mestranda em Sociologia,
divulgação das ações censuráveis supos- participa do grupo de pesquisa: Grupo de Estudos
tamente praticadas pelo sujeito “can- em Pesquisa Pedagógica e Cultura Científica
celado”, as empresas poderão romper o (GEPPECC). E-mail: tamires.martins@unesp.br
vínculo existente, e, inclusive, após o
“cancelamento”, ver-se-á o sujeito em [A N A PAUL A CORDEIRO]
condição de desesperança em ser con- Unesp-campus Marília, professora orientadora do
tratado novamente, ao menos no curto departamento de Didática, é líder do grupo: Grupo
prazo, para o exercício de sua atividade de Estudos em Pesquisa Pedagógica e Cultura
econômica-profissional. Científica (GEPPECC). E-mail: a.cordeiro@unesp.br
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