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AFETIVIDADE, CONVIVÊNCIA

EMOCIONAL E SEDUÇÃO:
estratégias pedagógicas na
prática dos professores?
Adir Luiz Ferreira

Assumir o risco ih sedução pedagógica é aceitar se


transformar no contato com o outro. È aceitar o deslum-
bramento diante do inédito de uma situação de ensino. É
colocar um pouco de alma, um pouco de espírito na mo-
notonia da rotina. É resistir a todos os constrangimentos
institíKionais. É recusar a repetição para se abrir a novas
maneiras de pensar e de fazer. É tentar assumir a posi-
ção de mestre, mostrando o prazer de fazer o que se faz.
Denis Jef&ey
A afetividade "interfere" na educação?
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Desde o ano de 2000, ainda no século passado (parece bizarro
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ esse "recuo" histórico tão marcante quanto artificial), sou profes-
133 sor no curso notumo de Pedagogia, criado com o belo propósito de
atender a demanda por ensino superior dos estudantes trabalhadores
Inconsciente e educação / Iniquitan de Oliveira Caminha (organizador). - Curitiba,
PR:CRV,2012.
que não teriam como frequentar os turnos diurnos. De início pro-
191p. fessores e estudantes sofriam muito com a falta de estrutura para as
Inclui bibliografia necessidades próprias do ensino notumo, como a precariedade do
transporte público no final das aulas, o horário e o espaço restrito da
ISBN 978-85-8042-476-8 biblioteca para consultas e empréstimos, a ausência de espaços de
1. Psicanálise e educação. 2. Psicologia educacional. 3. Inconsciente (Psicologia).
4. Professores - Formação. I. Caminha, Iraquitan de Oliveira.
estudo e de salas com computadores conectados, sem falar no des-
conforto das instalações nas salas de aula. Muitas dessas dificulda-
12-6822. CDD: 370.15 des melhoraram desde então, sem terem sido ainda completamente
CDU: 37.015.3 resolvidas. Em poucas palavras, apesar das visíveis melhorias na
última década, o contexto do ensino superior notumo na universida-
19.09.12 21.09.12 038927
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de onde trabalho exige de professores e alunos um esforço material estudantes, cobranças irritadas e exageradas de tarefas académicas,
e emocional considerável para atender os propósitos declarados de olhar constante para relógios e finalizações apressadas das aulas... Na
uma educação de alto padrão académico. linguagem dos estudantes, esse é o perfil do professor "estressado"
Apesar dessas dificuldades objetivas, o sentimento geral de apontado como o maior responsável pelo clima de desconforto emo-
camaradagem e as vivas expressões de alegria entre os grupos de cional e insatisfação pedagógica na sala de aula.
estudantes da Pedagogia, em sua grande maioria jovens mulheres Mesmo daqueles com uma formação avançada de doutorado
trabalhadoras em estabelecimentos comerciais, em serviços e em e estágios no exterior, nos campos da Pedagogia, das Ciências da
escolas, faz com que nos corredores e nas salas de aula predomi- Educação, das Ciências Humanas, entre outras formações, já ouvi
ne um ambiente cativante, crítico e otimista, de conversas, livros e frases de profundo desânimo e desgosto com relação aos estudantes
pessoas, que é quase frenético nos horários de inicio e fim das aulas, e à sala de aula. "Os alunos não querem saber de nada! À noite é
mas relaxado e barulhento nos períodos de intervalos. Professores e pior ainda, são completamente desinteressados e só vêm ás aulas
estudantes em movimento constante, além de imi pequeno grupo de para dormir e não ganhar falta. Eu não aguento mais isso!" Ironi-
funcionários de apoio, são os participantes com diferentes interesses camente eram impressões sobre turmas e pessoas com as quais a
e compromissos no colorido e intenso mimdo académico do ensino minha experiência era radicalmente oposta, com dinamismo didáti-
e da pesquisa. co e satisfação com os resultados alcançados... E a minha avaliação
Mesmo após mais de duas décadas de convívio cotidiano nos impressionista tem sido reforçada por indicadores quantitativos e
mesmos corredores e salas de aula, ainda sinto a renovação de ex- qualitativos, pois o curso notumo de Pedagogia da UFRN é um dos
pectativas positivas e a satisfação pessoal em entrar nas minhas tur- que apresenta baixos índices de evasão e está qualificado no Enade
mas e dizer: "Gente, vamos começar a aula!". Muitas vezes, sinto com resultados excelentes, o que é confirmado pelas altas taxas de
uma autêntica catarse pessoal, por vezes coletiva (quando a turma se aprovação dos estudantes nos concursos públicos das redes de ensi-
empolga com alguma atividade proposta). Oportunidade de exercer no estadual e municipal, além da boa imagem dos egressos nas esco-
o meu narcisismo intelectual ou atitude impulsionada por um idea- las da rede privada. Apesar de serem alvo de depreciações afetivas
lismo pedagógico, por vezes exageradamente otúnista? Para mim, o e da hostilidade emocional por parte de alguns professores, muitos
coração da resposta sempre esteve no sentido de contágio positivo dos alunos "desinteressados" parecem se transformar em pedagogos
que procuro imprimir nessa descarga emocional proativa diante dos competentes e bons professores...
estudantes, assim como na retroalimentação de reforço emocional Já ouvi muitos relatos afetivos, de prazer e de sofiimento, de
que as reações estimulantes da turma me provocam. professores e professoras, colegas educadores, especialmente do-
Porém, esse efeito eletrizante e prazeroso quando estou diante centes de crianças e adultos, por terem as suas ativídades ligadas ao
dos estudantes não é um sentimento compartilhado por todos os meus curso de Pedagogia (minha realidade profissional cotidiana), como
colegas professores. Para muitos de meus pares essa sensação agradá- formadores ou responsáveis por classes da Educação Infantil, dos
vel é conhecida e repetida constantemente com suas turmas, enquanto primeiros anos do Ensino Fxmdamental ou pela formação no nível
para oufros docentes, de forma nem sempre compreensível para mim, superior. É evidente que o estado emocional da pessoa do professor
a sala de aula é uma experiência de sofrimento, motivo de estresse é fiindamental para o desempenho da docência. Afinal, ser o forma-
constante e angústia inevitável. São tantos, tão comuns e evidentes os dor de pessoas é a definição social mais evidente da própria con-
sinais dessa ansiedade docente crónica. Semblantes contraídos, movi- dição de ser professor, uma pessoa responsável pela educação de
mentosrígidose tiques nervosos, rispidez na linguagem, interrupção outras pessoas.
abrupta da feia dos alunos, comentários irónicos e agressivos às inter- Tradicionahnente, os fundamentos e os procedimentos da
venções da turma, dificuldade em sustentar o contato visual com os prática cotidiana dos professores já foram associados a um direcio-
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namento vocacional quase religioso ou a luna espécie de arte ex- do docente imprime numa profissão que mescla de forma intensa,
perimental e intuitiva. Na vocação docente haveria a revelação pes- inevitável e contínua, a mente, o corpo e as emoções dos docentes e
soal de um talento especial como um componente autoexplicativo, as emoções dos estudantes com os quais interage nas relações socio-
enquanto na arte da docência veríamos o domínio experimentado pedagógicas e nas interações pessoais no ambiente de convivência
de técnicas e métodos inspirados pela criatividade, pelo bom sen- escolar. Há estudos recentes que destacam a docência como profis-
so e pelos resultados práticos. É evidente que os bons professores são de interações humanas, para qual a personalidade do professor
também já foram definidos pela combinação entre o talento para a é estruturante da própria organização social da docência, sendo a
docência e a arte profissional. Em todo caso, com essa abordagem, pessoa do trabalhador o meio fimdamental para o trabalho docen-
a pessoa do docente, ou seja, a personalidade complexa do profes- te em si mesmo. Nessa perspectiva do trabalho docente com uma
sor e sua intricada estrutura emocional e cognitiva, é negada como profissão de relações humanas vividas dentro de uma organização
objeto de estudo científico da profissão, por ser considerado assunto social, coloca-se:
meramente idiossincrático, ou sobretudo fruto da experiência prag-
mática e do cuidado artesanal, evitando, porém, um olhar científico (...) Queira ou não, o professor sempre será o único mediador
sobre o papel da personalidade e das emoções na vida profissional entre a organização escolar e os estudantes. Assumindo esse
dos professores. papel, é inevitável que ele interiorize subjetivamente as exigên-
Depois de refletir durante anos sobre isso - Qual seria a defini- cias objetivas de sua própria posição e as viva como desafios
ção mais objetiva para o que é ser professor? - adotei uma resposta e dilemas pessoais diante dos quíds irá desenvolver algumas
estratégias, como o superinvestimento em seu trabalho, com
que até pouco tempo me satisfazia, por seu sentido empírico e fun- os riscos de esgotamento que isso comporta, a fuga, o desin-
cional, assumidamente de inspiração etnográfica. Minha definição teresse, a renúncia ou a procura de um equilíbrio entre a vida
sintética era a seguinte: o professor é aquele educador profissional privada e o trabalho. (Tardif; Lessard, 2011, p. 268).
que entra na sala de aula e é a pessoa responsável pelo ensino e a
aprendizagem de conhecimentos específicos diante de um grupo de Ora, as estratégias desenvolvidas pelos professores, como su-
alunos. Mais tarde, acrescentei a essa definição, que o professor tem perinvestimento (projeção), fiiga (formação reativa), desinteresse
o papel de interagir de forma mediada entre a subjetividade de sua (anulação), renúncia (sublimação) ou distância entre a pessoa e o
própria personalidade e a da pessoa dos alunos e da turma como profissional (isolamento), são também mecanismos de defesa do
imia unidade social, utilizando-se de uma pedagogia orientada por Ego (Freud, 2006). Essa abordagem psicanalítica aplicada para a
um determinado conjunto sistematizado de conhecimentos teóri- vida cotidiana dos professores parece-me óbvio que o que se revela
cos e práticas objetivas. Contudo, vejo hoje essa definição como é o campo sensível da administração das emoções, no qual se obser-
sendo excessivamente operacional. E, como tudo que é exagerado, va a dinâmica afetiva e conflitiva entre a impossível ou muito difícil
ocultam outras tantas motivações e energias pessoais, outros tantos realização do princípio do prazer e a constante fiustração diante da
objetivos sociais e culturais implícitos, como o sentido moralista realidade. Nessa situação, seria compreensível a visão tradicional
(conselhos adequados e prescrições corretas para os jovens) e os que vê na resistência emocional aos estudantes, um forma de defesa
conteúdos conservadores (conformismo às instituições e repressão contra afetos, um ingrediente eficaz para o ofício docente. Aliás,
da sexualidade) recorrentes no discurso docente. Ocultações, para- esse distanciamento docente no senso comum é mesmo visto como
doxalmente, nem sempre assumidas, mas tão evidentes que envol- um traço característico dos professores "sérios". Essa imagem rigo-
vem as práticas socioeducativas e os sentimentos de ser professor, rosa da docência lembra imi comentário de Arma Freud, inspirada
combinando formação racional e investimento afetivo que a pessoa na "blindagem do caráter" de Reich, sobre o bloqueio à análise das
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operações defensivas do Ego como um fenómeno de defesa perma- se decidiram pela carreira de professores pela motivação de perma-
nente, com seus modos típicos: necer ou retomar à escola, ambiente psíquico e social marcante na
formação de sua personalidade, como reminiscência infantil ecoan-
(...) As atitudes corporais, como a rigidez; as peculiaridades do sobre o Self adulto dos professores e professoras.
pessoais, como um sorrisofixo;o comportamento hostil, iróni- A respeito dessas motivações profissionais calcadas nas emo-
co e arrogante - tudo isso são resíduos de processos defensivos ções de um passado infantil, ouvi de uma aluna de Pedagogia um
muito vigorosos no passado, que acabaram por dissociar-se de relato muito expressivo de suas memórias de infância na escola.
suas situações originais (conflitos com pulsões e afetos) e evo- Contou-me que quando tinha 8 anos era uma menina tímida na sala
luíram para traços caracterológicos permanentes, a "blindagem de aula, mas que desejava muito chamar a atenção da professora,
do caráter" (Freud, 2006, p. 30). que lhe parecia ser afetuosa somente com suas alunas favoritas. Cer-
Um princípio do prazer sublimado ou racionalizado pelo Ego to dia, no caminho da escola, colheu uma papoula para entregar de
do professor, também pode ser transferido ou projetado para a rea- presente para a professora. Mas quando a mesma recebeu a flor,
lização na pessoa do outro do aluno. Rico campo psíquico e social reagiu de forma hostil e disse: "Sou alérgica a pólen!", e jogou o
para realizações, fantasias, idealizações, contradições, frustrações, presente no canto da mesa. Contrariada em seu intento de conquistar
efeitos não esperados, obsessões e desapego, dedicação e abandono a professora, ela manteve-se como a aluna tímida e calada o resto do
etc. Aí se enconfra o manancial de origem da satisfação ou insatisfa- ano e continuou assim por muito tempo em sua vida de estudante.
ção psíquica, do conforto ou desconforto emocional, da serenidade Hoje, agora ela mesma uma professora nos anos iniciais do Ensino
ou da angústia, da cahna ou da ansiedade, da alegria ou da infeli- Fundamental, tem especial atenção com relação às crianças mais tí-
cidade. Para alguns, fonte de imenso prazer pessoal, para outtos, midas da sala, dedicando a elas um cuidadoso trabalho de conquista
motivo de estresse intenso ou mesmo de experiências traumáticas. pedagógica. Concluiu a história afirmando que se sente bem sendo
No sentido psicanalítico geral, há sempre uma transferência trans- professora por poder "não fazer com os alunos o mesmo que fizeram
formada, por parte do Ego do adulto, das experiências da infância com ela na escola".
para a vida madura do presente. Isso vale para todo o processo de Essa projeção do Ego das professoras sobre as crianças, como
socialização, incluindo, é claro, a experiência escolar da infância transferência matemal racionalizada para "filhos provisórios", é
e da adolescência. Assim, o adulto professor de hoje traz a marca compreensível e em nada compromete o caráter súnultaneamente
da criança e do adolescente de quando ele foi aluno. Poderíamos objetivo e afetivo da posição da educadora. Nesse aspecto, já se di-
até imaginar que uma das motivações profimdas de se procurar a fiindiram críticas hiper-racionalistas e moralizantes à imagem ma-
profissão de professor é a busca de um reenconfro prazeroso ou de temal da professora de crianças ("Professora sim, tia não!") como
resolução de uma passagem dolorosa em um passado estudantil, o sendo uma constmção ideológica conservadora, negando o sentido
que pode soar esfranho pela ambiguidade. profissional e científico da função docente. Além do irrealismo e da
Muitos relatam que escolheram ser professores porque admi- ignorância sobre os mecanismos psicológicos da criança, que tende
ravam, isto é, tiveram algum tipo de experiência amorosa agradável naturalmente a identificar todo o cuidado e a atenção dos adultos so-
e recalcada, por algum ou vários de seus professores, ou pelas lem- bre si com o afeto matemal, trata-se, no fundo, de um recalcamento
branças prazerosas com o ambiente de camaradagem e cumplicidade da origem libidmal da própria afetividade investida pela professora
erótica com os colegas. Outros, ao contrário, passaram por vivências em sua relação pedagógica, isto é, racional e afetiva, com a criança.
escolares tão traumáticas que se sentiram atraídos em "revivê-las" Ao invés dessa crítica negadora dos fundamentos da personalidade
novamente para reenconfrarem seus elos de satisfação que foram da professora, uma análise equilibrada da adminisfração dessa ener-
perdidos nas memórias escolares. De um jeito ou de outro, muitos gia psíquica, do cuidado e do alimento, serviria como autoconhe-
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cimento e desenvolvimento pessoal para melhor compreender-se se ocultam em uma fantasia racionalizada de uma pessoa sem deslizes
como professora e fonnadora de pessoas. ou confradições, menosprezando a busca consciente de sua satisfação
Sobre a importância da afetividade na educação, surpreende emocional e dos alunos, evitando formas educacionais consideradas
que Paulo Freke, em sua obra Pedagogia da Autonomia: saberes "inadequadas", como o jogo de sedução pedí^ógica entre professor
necessários à prática educativa (1996), um texto focado nas exi- e a turma de estudantes, e negando à própria consciência profissional
gências profissionais e morais para a formação docente, trate apenas o reconhecfanento do narcisismo docente que o impede de ver que o
no final do livro da afetividade na relação com os estudantes, em- prazer no ensino e na aprendizagem possa ser uma experiência com-
bora este seja componente imprescindível do cotidiano profissional partilhada de crescimento.
dos professores. É estranho que "Ensinar exige querer bem aos edu- De fato, a afetividade autêntica, que move a dinâmica emocio-
candos" seja o último tema do livro, aparentemente mostrando aos nal investida em qualquer relação pedagógica, está inevitavelmente
leitores, segundo essa hierarquia textual, que as expressões afetivas presente na prática dos professores. Porém, considerar o fenómeno
dos professores deveriam ser logicamente situadas após uma exten- emocional na educação, como acontece sempre que vislumbramos
sa compreensão social, cultural,filosóficae antropológica, como os riscos envolvidos nas experiências emocionais, desperta as an-
capacidades cognitivas necessárias aos educadores, mas com prece- gústias pela satisfação ou pela fixistração amorosa com o oufro e
dência sobre o campo afetivo. consigo mesmo, acionando simultaneamente as esperanças mais
O campo subjetivo dos afetos é reconhecido, porém visto para românticas e os temores mais inconscientes. Então, diante do tema
o exercício dos educadores como potencialmente prejudicial à ética sensível de reconhecer o trabalho das emoções, muitos educadores
e ao rigor pedagógico vinculados ao dever de professor. Como ad- preferem refiigiar-se nas fortalezas racionais dos parâmetros impes-
verte o autor: ; soais do profissionalismo e das competências técnicas, ou, ainda,
nas unposições de programas e projetos educacionais de qualifica-
Não é certo, sobretudo do ponto de vista democrático, que serei ção que buscam "corrigir" a subjetividade e a afetividade nas práti-
tao melhor professor quanto mais severo, mais frio, mais dis- cas dos professores.
tante e "cinzento" me ponha nas minhas relações com os alu-
nos, no trato dos objetos cognoscíveis que devo ensinar. A afe- A convivência emocional na prática dos professores
tividade não se acha excluída da co^oscibilidade. O que não
posso obviamente permitir é que a minha afetividade interfira Diferentemente de privilegiar uma abordagem política, técnica
no cumprimento ético do meu dever de professor no exercício e cognitiva para o bem-estar ou o mal-estar da atuação docente, ser
de minha autoridade (Freire, 1996, p. 159-60). professor pode ser considerado um trabalho essencialmente emocio-
nal, levando em conta a carga afetiva positiva ou negativa do pró-
Há nessa obra uma clara intenção moralizante (romântica?) ao prio educador e da interação com as emoções dos alunos. Ensinar
privilegiar a formação política e ideológica do professor e subestimar não se frata apenas de dominar conhecimentos escolares e adminis-
a afetividade que envolve as práticas docentes, o que é inevitável na frar competências pedagógicas corretas em sala de aula. Os profes-
interação humana em qualquer exercício profissional e mais ainda na sores são emotivos "seres apaixonados que se conectam com os seus
atuação em sala de aula, diante de estudantes de qualquer idade. Esse estudantes e preenchem seuti-abalhoe suas salas de aula com prazer,
moralismo corresponde a uma veemente idealização do professor, ci- criatividade, desafio e satisfação" (Hargreaves, 1998, p. 835). É bem
dadão perfeito, pessoa íntegra e exemplar, educador completamente diíimdida a imagem de educadores apaixonados por seu trabalho,
dedicado à ética do seu dever profissioml e imbuído de correção moral mas nem sempre se compreende o ensino como uma prática emo-
absoluta, agente racional e político de uma prática critica e reflexiva. cional, a qual fimdamenta a atuação social, cultural e psicológica do
Nessa perspectiva moralizante, as ambiguidades do Eu do professor professor em sua interação cotidiana com os alunos e colegas.
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Ainda que a dimensão emocional do trabalho do professor seja dos seus próprios sentimentos e diante da percepção das
levada em conta, ela também é muitas vezes representada como uma emoções do outro.
habilidade individual ou atitude pessoal, isto é, condição própria de 4. As emoções dos professores estão associadas a sentidos
cada um independentemente da formação académica recebida. Ou, morais: de forma consciente ou inconsciente, a atuação
em outro sentido, o incentivo ao uso das emoções positivas (ale- emocional dos professores é orientada por valores liga-
gria, otimismo e empolgação) por parte do professor já foi criticado, dos às diretrizes culturais que fundam o objetivo social
como sendo a celebração romântica de vm sentimento vocacional da educação escolar, mas é a diversidadefilosóficade
anacrónico diante dos atuais padrões técnicos e científicos da profis- grupos e a personalidade do professor que estabelece as
são. Em outras palavras, a atuação emocional dos professores é ge- cores afetivas para essa educação moral.
rahnente reconhecida como atributo subjetivo da pessoa do profes- 5. No ensino e na aprendizagem, a experiência emocional é
sor, ou pode, também, ser alvo de rejeição como expressão idealista contextual: as emoções de professores e estudantes acon-
ultrapassada em nome de imi racionalismo impessoal da profissão. tecem em um contexto social e político de ensino, no qual
Sem ingenuidade política ou incompreensão da esfera psíquica, a o fracasso ou o sucesso nas interações emocionais depen-
fimcionalidade pedagógica e a importância na formação docente dem de condições objetivas favoráveis, o que gerahnente
para o uso das emoções ainda não é objeto de muitos estudos. é menosprezado nos projetos de mudanças educacionais.
Nos campos da Sociologia da Educação e da Psicologia Social
que caracterizam a realidade da ação educativa, inspirando-se no Contudo, esses aspectos estão relacionados a uma compre-
citado estudo de Hargreaves (1998, p. 838), o estatuto e o papel das ensão positiva das emoções, enquanto comumente o fenómeno
emoções na prática dos professores e na vida em sala de aula podem emocional tem um sentido mais negativo para os professores, pela
ser compreendidos em cinco dimensões: predominância na vida coletiva do princípio da realidade em de-
trimento do princípio do prazer mais propício ao comportamento
1. Ensinar é uma prática emocional: a vitalidade do ensino antissocial. No aspecto biográfico da estrutura psicológica de cada
está na dinâmica de afetos e sentimentos, que motivam um, a intensidade do entendimento emocional expresso em sala de
ou impedem a fluidez nas atividades daqueles que con- aula também está ligada às próprias memórias emocionais experi-
vivem na experiência de ensino, ou seja, o uso das emo- mentadas como revivência de situações afetivas que foram positivas
ções é parte inevitável de qualquer experiência humana ou negativas no passado. Por exemplo, relações familiares amorosas
de convívio social. satisfatórias com os pais e irmãos, podem contribuir para um melhor
2. Ensinar e aprender envolve entendimento emocional: entendimento emocional com adultos e pares no convívio educa-
para a prática é preciso uma interpretação subjetiva com- cional. Entretanto, o efeito da proximidade ou do distanciamento
partilhada do significado das emoções que afloram nas pedagógico é diferente enfre professores e alunos, pois a autoridade
interações entre professor e estudantes, em que a compre- docente imprime uma relação assimétrica entre o Eu do professor,
ensão do outro tem fortemente um efeito tanto cognitivo visto como uma pessoa individualizada, e o Eu do aluno, visto como
como emocional. uma pessoa inserida e associada a um grupo social, a turma da sala.
3. Ensinar é uma forma de trabalho emocional: ensinar Na prática do professor é comum que, apesar das diferenças
pede sensibilidade emocional, mas demanda igualmente enfre os alunos da mesma turma, ele possa ter com alguns deles
um grande esforço mental e constante ajuste nas formas momentos de tensão e ansiedade, associando a turma, a partir dis-
de exprimir, sustentar e reagir emocionahnente, a partir so, a uma experiência desagradável e podendo desenvolver alguma
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forma de rejeição coletiva inconsciente. A incompreensão afetiva e bom humor e as brincadeiras constantes, o espírito de camarada-
a resistência emocional do professor interferem nas habilidades de gem e de comunicação simpática são meios efetivos de quebrar as
ensino do docente e nas capacidades de aprendizagem dos alunos. resistências e evitar o estresse das relações. Para o espfrito de edu-
Dar condições para que esse desentendimento emocional crónico cadores mais tradicionais ou para docentes principiantes e insegu-
não aconteça deveria ser uma prioridade educacional, mas de fato ros, a angústia é saber admiiústrar suas emoções de acordo com o
esse mal está presente em muitas escolas e salas de aula, como des- pressuposto pedagógico do distanciamento pessoal e em conformi-
taca Hargreaves: dade com os princípios éticos da profissão, geralmente valorizados
de maneira exagerada como utopia moral e idealização pessoal. Sob
Os professores frequentemente desconstroem a exuberância o ângulo do uso pedagógico explícito das emoções por parte dos
dos seus estudantes pela hostilidade, o conformismo entediado professores, concebe-se que o trabalho emocional dos professores é
pelo compromisso zeloso, a incerteza pela teimosia e o silên- também baseado no exercício constante do autoconhecimento e do
cio respeitoso pela resistência taciturna. Esses mal-entendidos autoconfrole das emoções. Quando um professor expressa um estu-
interferem seriamente com a capacidade dos professores para dado estímulo aos pequenos progressos de um alimo, em ocasiões
ajudar seus alxmos a aprender (Hargreaves, 1998, p. 839). nas quais o sentimento poderia ser de frustração; quando o docente
Diferentemente desse quadro sombrio de professores emo- mosfra-se paciente e cuidadoso com as críticas de pais, em momen-
cionalmente hostis com relação aos seus alunos, muitos docentes tos nos quais o impulso seria o de contrariedade diante da opinião
reconhecem o papel pedagógico estimulante do uso das emoções de leigos; manter-se calmo e gentil diante de reações hostis de alu-
positivas na interação em sala de aula. Esses educadores de muitas nos e de colegas é exemplo de uma elaborada prática emocional na
maneiras adotam seus métodos de ensino com base tanto nas exigên- vida dos professores. Isso significa que "as emoções dos professores
cias intelectuais como na satisfação das necessidades emocionais são de alguma maneira artificiais ou falsas, que os professores es-
dos estudantes. Com essa motivação, a condução educativa dotada tão somente atuando sem sintonia com eles mesmos?" (Hargreaves,
da consciência de prática emocional é orientada conscientemente 2000, p. 814). Ora, como todo professor acaba descobrindo, a ques-
para satisfazer o princípio do prazer do professor. Se o objetivo ex- tão central, nessas situações, é que o aprendizado do uso pedagógi-
plícito é o de satisfazer o ego do próprio docente, tal atitude também co das emoções não surge espontaneamente, como uma espécie de
visa provocar esse mesmo estímulo prazeroso nos alunos. Como re- talento pessoal natural. Ao contrário, é finto de um árduo processo
latou vividamente um professor sobre a sensação de ensinar: de reconhecimento da importância do trabalho emocional, iniciando
pelo confronto com a sua própria bagagem emocional, para que seja
Você já viu muita variedade e viu algumas formas agressivas possível desenvolver uma adequada prática emocional com os estu-
de ensinar. Eu gosto de ser visto. Eu gosto de ser ouvido. Eu dantes e com a sala de aula.
gosto de me mover. Eu gosto de estar seguro de que as pesso- Outra dimensão pedagógica fimdamental das emoções, pro-
as ainda estão comigo. Eu gosto de ficar excitado com o que posta por Hargreaves, é a de que elas configuram o que ele chamou
estou ensinando, mesmo que o assunto seja desinteressante de geografias emocionais da escolarização e da interação humana.
(Ibidem, p. 847). Defirúndo-as como "formatos espaciais e experienciais de proximi-
dade ou distância nas interações humanas e relacionamentos que
Enquanto para muitos educadores a seriedade académica atri- ajudam a criar, configurar e colorir os sentimentos e as emoções
buída à matéria deve acompanhar-se da sisudez pedagógica, para que experimentamos sobre nós mesmos, nosso mundo e o outro"
outros, a abordagem é exatamente oposta: a empatia atenciosa, o (Ibidem, p. 815). O mesmo autor (Ibidem, p. 816), com o objetivo
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de compreender mais profundamente e melhorar as condições de


ensino e aprendizagem, dividiu esses espaços para as experiências A sedução como estratégia pedagógica
emocionais nos seguintes campos da educação: Assumindo-se que a sedução visa à conquista amorosa do
outro como objeto de desejo, a relação pedagógica entre professor
• Geogr<2^s sociocM/íi/rais — referem-sc às diferenças de e estudante remete facilmente a imagem de um jogo de sedução,
cultura e classe que podem colocar professores de um mesmo que isso desperte a resistência moral em mentes puritanas.
lado e estudantes e pais de outro, tomando-os estranhos e Efetivamente, buscar a realização pessoal através de experiências
incompreensíveis uns aos outros. afetivas intensas, que abrangem territórios emocionais conscientes
Geografias morais - referem-se aos propósitos e valores e inconscientes baseados em impulsos do Id em geral reprimidos, é
dos professores que podem estar de acordo apenas com tema de negações, racionalizações ou desvios do verdadeiro objeto
suas próprias razões, sem que existam mecanismos para do desejo. Ou seja, por trás da idealização cognitiva e moral dos
discutir ou resolver as diferenças. objetivos pedagógicos há a ocultação da expectativa instintiva que
Geografias profissionais - referem-se ao profissionalis- alimenta a dinâmica relacional entre o Ego do professor e o Ego dos
mo docente, definido conforme um modelo masculino estudantes. De forma invariável, encontra-se no âmago de qualquer
"clássico", distanciando os professores de seus alunos, interação humana alcançar a satisfação do princípio do prazer, ain-
prejudicando especialmente o ensino sob uma ética femi- da que regulada pelos controles sociais e morais do superego que
nina do "cuidado".
• Geografias políticas - referem-se às relações hierárqui- configuram as relações conflituosas e restritivas com o princípio da
cas de poder assumidas nas escolas e nas salas de aula, realidade. Esse empenho nos objetivos afetivos está instintivamente
as quais distorcem tanto os aspectos emocionais como baseado na satisfação de origem libidinal na natureza profimda do
cognitivos da comunicação entre professores e aqueles Id, revelando-se na expressão de seus próprios sentimentos (amor,
que os cercam. ódio, alegria, inveja, euforia, frustração) e que se investe nas reações
• Geografias fisicas- referem-se aos bloqueios às relações que ele provoca ou é reforçado, no sentido agradável ou desgostoso,
entre estudantes, professores e pais, quando encontros nas demonstrações de afeto que recebe de seus alunos.
ocasionais, fragmentados e formais, configuram-se como Essa ansiosa expectativa prazerosa propiciada pela educa-
interações desconectadas. ção de si, por apresentar-se como forma social aceitável de busca
do conhecimento, reveste-se tanto da realização intelectual quan-
A definição crítica dessas geografias emocionais para a reali- to da satisfação emocional, afetando a mais profunda dimensão
dade da educação, na qual se insere a atuação dos professores, traz psíquica de reconhecimento de mudança pessoal e de experiên-
a vantagem de ampliar a compreensão do fenómeno educacional cia intrínseca de bem-estar. Malgrado as dificuldades objetivas
para além de seu sentido cognitivo e moral, apresentando a dinâmi- para realizar as promessas do ensino e da aprendizagem, assim
ca afetiva movida pelo uso das emoções nas interações cotidianas como a constante falta de compensações materiais para o bom
no meio escolar, mas contextualizadas em condições culturais e desempenho escolar, as experiências de sucesso na educação car-
espaços educacionais concretos que são inextricavelmente produ- regam inegavelmente em nossa memória momentos inigualáveis
tos de interações sociais. Nessa óptica, as emoções nas pessoas de de prazer total, de instantes de euforia gloriosa. Primeiro como
professores e de alunos e nas escolas não são somente processos estudantes empolgados, depois como mestres experimentados;
psicológicos ou intersubjetivos, mas sim fenómenos totais dos su- nas formaturas de final de curso e nas defesas de mestrado e dou-
jeitos em contextos sociais. torado, nos sentimos flutuando em uma nuvem de puro deleite
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íntimo amplificado pelas demonstrações vigorosas de afeto por comimi ouvir-se, nas classes com adolescentes, casos de fentasias
parte de familiares, colegas, amigos e professores. relacionadas às supostas conquistas amorosas e libidinosas dos pro-
Quais são os limites (fronteiras morais) enfre a funcionali- fessores, havendo também muitos relatos de cumplicidade íntima na
dade pedagógica consciente do afeto e os impulsos da experiência relação professor-aluno.
amorosa (expectativa erótica) com o aluno e a turma como objeto Uma aluna contou-me que lembrava-se de que, na época do
inconsciente de desejo? Evidentemente, os limites são ftmcionais Ensino Médio,ela e a turma tinham uma "aproximação" maior
tanto pela necessidade racional de se ter consciência do sentido edu- com a professora de história, porque ela aproveitava-se (na opi-
cacional da interação emocional que está em jogo quanto pelo reco- nião de minha aluna) do fato de que todo adolescente gosta muito
nhecimento de princípios éticos para a prática legal da profissão, es- de falar de si para, com isso, conversar sobre a vida particular dos
pecialmente na educação de crianças e adolescentes. Já no ensino de alunos (namoro, família etc). Desse jeito, os estudantes sentiam-
adultos a prática emocional orienta-se sobretudo pelo sentido peda- -se mais à vontade com a professora e,segundo minha aluna, "ela
gógico íimcional da relação pedagógica enfre professor e estudante. fazia o que queria conosco". Tem-se aqui, de forma inequívoca,
Entre a sedução afetuosa na óptica do "cuidado" matemal, aplicada um exemplo do uso da sedução pelo professor, no papel de con-
à educação de crianças, e a sedução funcional pelo conhecimento, fidente íntimo que seduz a turma como ouvinte compreensivo de
usada com adultos, há a semelhança de estabelecer-se um vínculo de seus relatos íntimos e conquista, com essa facilitação afetiva, a au-
desejo enfre o educador e o educando. É evidente que na educação diência pedagógica de seus alunos. Nem todos concordariam que
infantil há o sentido da proteção, enquanto entre adultos a extrapo- os professores devessem permitir essa aproximação empática e re-
lação dos momentos educativos para relacionamentos amorosos não veladora dos conflitos íntimos e situações privadas dos estudantes,
signifique uma imoralidade ou um comportamento antiético, ainda entretanto é provável que essa identificação da turma com a pessoa
que isso cause confrovérsias nos mais fradicionalistas. Pode-se men- do docente tenha confribuído para aumentar o interesse dos alunos
cionar que Jean Piaget casou com Valentine Châtenay e Paulo Freire pelos conteúdos de história. De fato, na perspectiva pedagógica, o
casou com Ana Maria Araújo, as duas suas ex-alunas que se toma- professor pode seduzir por suas qualidades pessoais, isto é, carac-
ram parceiras na carreira científica de ambos, enfre oufros exemplos terísticas psicológicas ou profissionais, como o carisma, a tolerân-
de amores que nasceram da convivência de professores e estudantes. cia, o senso de humor, a sabedoria.
Em diferentes momentos da vida escolar a relação com os Relacionar a sedução com a Pedagogia compreensivelmente
professores aparece sob um prisma de sedução. No caso do Ensino desperta resistências éticas em muitos educadores. Afinal, associar
Médio, a interação emocional é mais próxima do sentimento dos uma palavra tão carregada de sentidos morais condenáveis com a
adultos, embora o adolescente ainda misture com emoções infantis. nobreza de propósitos da educação pode parecer um uso distorcido
Aí o professor compreende melhor a linguagem não verbal dos alu- de noções opostas, pois de um lado estaria a arte de enganar e cor-
nos. Entre adultos e adolescentes, é inevitável existir uma conexão romper e de oufro a verdade e o conhecimento. Mesmo que se trate
mais próxima de um aprendizado da sensualidade. Isto é, há mesmo de um uso pedagógico submetido aos prmcípios éticos da profissão,
um sentido de conquista do outro, por mais atenção e cuidado, como a conotação moral da sedução na prática docente provoca controvér-
reação afetiva diante do ambiente de sala de aula,que é coletivista e sias, pois a educação ainda sofre com o peso repressivo da herança
impessoal. É normal as pessoas quererem cuidado especial e mais religiosa. O ensino, na tradição brasileira, mesmo público e laico, é
ainda no período de exaltação da sexualidade, como acontece com identificado com a imagem moral do sacerdócio, com o sacrifício da
o período da adolescência. Então, chama-se a atenção com jogos de carne "impura" e da abstinência dos prazeres mundanos e pecami-
linguagem verbal e não verbal (roupas, atitudes e posturas) que são nosos. Até mesmo a racionalidade tecnocientífica da profissionaliza-
mais explicitamente sedutores do que os das crianças. Aliás, é muito ção docente, na base das políticas de qualificação de professores das
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Últimas décadas, não foi suficiente para apagar a representação mo- tanciamento cognitivo e emocional entre o professor e a turma. Isso
ralista do professor como "mestre espiritual" assexuado. Compreen- tomou-se quase ura ritual e uma marca pessoal, pelo qual sou cobra-
de-se que na relação docente com crianças recomende-se o cuidado do alegremente pelos alunos, e mesmo depois de anos, sou lembrado
educativo com o corpo dos alunos, em que os meios de sedução como o professor "que contava piadas". Também tenho recordações
aceitáveis para uso dos professores são dirigidos especialmente para de mestres que eram autênticos personagens atuando em sala de
os aspectos lúdicos das atividades e para a proximidadefísicaso- aula, atores de estudados maneirismos e evoluções para seduzir os
cializadora com colegas. Entretanto, é incongruente que na relação alunos com os conhecimentos apresentados. A sedução pedagógica
de ensino entre docente e estudantes adolescentes ou adultos ainda é um fenómeno social que começa com a presençafísicado sedutor
prevaleça a recomendação implícita de uma conduta marcada pela diante de seu público (a turma) e busca chegar aos conteúdos do
infantilização pedagógica que condena o desejo e a sensualidade. curso propriamente ditos. Logo, o corpo do professor se apresenta
Contrariamente à ideia religiosa de que a sedução é uma práti- como porta-voz do saber para atingir a inteligência dos estudantes,
ca moral condenável (como a serpente maléfica que faz Eva seduzir trazidos à dramaturgia da aprendizagem desenvolvida no palco que
Adão, condenando-os ao pecado irrecuperável), assim como ao en- é a sala de aula.
tendimento de que a sedução é uma atitude política negativa (como Assim sendo, a sedução pedagógica é também uma forma de
o candidato demagógico que seduz o eleitor ingénuo), a sedução encenação que, visando o conhecunento, segue uma sequência de
pedagógica não visa a sujeição da vontade e a dominaçãofísicado meiosfísicose simbólicos para encantar e provocar a imaginação
estudante. O objetivo da sedução pedagógica é desenvolver no es- dos alunos. Nimia adaptação das palavras de Jeffrey (2008, p. 7), os
tudante a sedução pelo saber, o que lhe permitirá descobrir-se como meios da sedução pedagógica seriam os seguintes:
ser autónomo com a aprendizagem provocada pelo ensino. Como
sintetiza Denis Jeffrey: • O corpo - como no amor, o corpo do professor exerce
uma influência inegável na ação pedagógica, com o olhar,
A sedução pedagógica não visa aprisionar os estudantes ao o sorriso, a postura, os deslocamentos, as mímicas, a voz,
professor, mas sim liberá-los dele. Nesse sentido, o valor da os gestos, as roupas, transmitindo impressões que podem
sedução pedagógica não decorre dos meios utilizados, mas si fazer com que uma aula seja interessante ou tediosa.
da intenção subjacente, do objetivo visado. Uma operação de >4//«gwage/M - além do corpo, a linguagem do professor
sedução em educação que chegasse apenas a reforçar os laços também tem papel decisivo na sedução, pela entonação,
de dependência entre o professor e os estudantes se trataria pela precisão e riqueza de vocabulário, pela clareza e ar-
somente de uma sedução amorosa e não teria muito efeito no ticulação de ideias, pelo poder de convencimento e uso
plano pedagógico (Jeffrey, 2008, p. 6).
da língua, sendo o ensino, sobretudo, um ato de comuni-
Não obstante essa definição da sedução pedagógica como ação cação e de interação.
educativa do professor e não como conquista sentimental da pessoa • As atividades - um jMofessor pode seduzir os estudantes
do professor, a sedução inclui também momentos de encantamento pela capacidade de síntese, pela variedade de atividades pe-
que preparam o corpo e a mente dos alimos para os conteúdos mais dagógicas, pelas questões e pelos exemplos, pelo uso de no-
árduos das disciplinas. Em meus cursos, por exemplo, sou conhe- vas tecnologias, pela escuta da turma, pela seleção de textos
cido por quase sempre iniciar as aulas com alguma leitura, história e conteúdos, pelo cuidado com os trabalhos de avaliação.
pitoresca ou brincadeira, para descontrair e quebrar a resistência de Os conteúdos - xrai professor pode seduzir os estudantes
comunicação, contribiiindo decisivamente para romper com o dis- oferecendo uma melhor compreensão dos conteúdos, por
seu conhecimento e suas explicações, pelo domínio dos
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conceitos, por interpretações estimulantes e esclarecedo- podem ser opostos, atendendo a lógicas claramente distintas. Os
ras, dirigindo-se aos alunos com inteligência, sensibilida- professores e estudantes, no campo de jogo que é a sala de aula,
de e mente aberta. desenvolvem movimentos e estratégias diferentes, nos quais se
mostram pequenos acertos, ações provisórias, resistências, mudan-
Porém, seria ingenuidade supor que somente o professor teria ças e desistências, conversas e adiamentos. Na projeção idealizada
a iniciativa e o controle do processo de sedução pedagógica, imagi- do professor, mas que nem sempre impUca seu engajamento sincero,
nando-se os estudantes como sujeitos passivos e inconscientes das o objetivo do ensino é a transformação dos alunos pela aprendiza-
estratégias de ensino e aprendizagem. Assumir a dinâmica da sedu- gem adquirida. Já na perspectiva dos estudantes, ganhar o jogo da
ção pedagógica significa que os participantes envolvidos entendem aprendizagem também pode incluir a trapaça e a dissimulação, pois
e aceitam as regras do jogo. Se, na pedagogia tradicional de outros o que interessa para muitos é receber os benefícios do jogo com a
tempos, predominava a figura autoritária e distanciada do mestre, menor aposta possível.
hoje o professor está mais próximo dos alunos e orienta-se sobre- De volta à compreensão mais complexa do significado da se-
tudo pela lógica democrática da negociação de papéis e ações. Na dução pedagógica, incluindo a sua dimensão utilitária e simbólica:
educação, como em outras interações sociais, essa lógica democrá- a conquista efetiva do objeto do desejo, que é o conhecimento, mas
tica trouxe também a angústia da incerteza em todas as dimensões que também pode ser representado pelas notas finais ou pelo di-
do jogo: objetivos, regras e jogadores estão em constante mudança. ploma de conclusão de curso. Afinal, "estaríamos enganados em
Mas quando há menos clareza na definição dos papéis, "mais os acreditar que a sedução é atributo exclusivo do professor, pois os
atores precisam se dedicar a imi exercício complexo de negociação alunos não são nada inocentes e também se entregam em manobras
em que entra uma parcela importante de artimanha, tanto na apre- parecidas" (Gauthier; Martineau, 2008, p. 13). Em outras palavras,
sentação de sua própria pessoa quanto na capacidade de adivinhar o a sedução também é usada pelos estudantes como uma estratégia de
outro" (Gauthier; Martineau, 1999, p. 17). sobrevivência académica, não sendo apenas um recurso pedagógico
iniciado e dirigido pelos professores.
Como em qualquer interação social, também na prática edu-
cativa os atores estão em negociação de entendimento e relação de Coda
trocas. A lógica da negociação democrática, que se aplicaria tam-
bém na relação professor-aluno, poderia ser apresentada na seguinte Sem idealizações racionalistas ou utopias morais, é preciso
formulação recíproca: se você disser o que quer receber de mim (e o compreender que a sedução é parte intrínseca das relações huma-
que quer entregar em troca), então poderemos negociar os termos da nas, carregando consigo a expectativa da conquista de um objeto de
relação (pedagógica, lúdica, cognitiva, académica etc), definindo, desejo potencialmente prazeroso, mesmo que nesse investimento,
assim, uma estratégia de convivência e as formas de novas nego- que é simultaneamente afetivo (amoroso), emocional (expressivo)
ciações. Observe-se que, de maneira explícita, não há a definição e sensual (prazeroso), tenhamos que conviver com o risco constan-
nem de um projeto definitivo nem de objetivos comuns: os fins e te da finstração em alcançá-lo. Malgrado seu objetivo cognitivo e
os meios estão entendidos como partes abertas de um permanente educacional, a dinâmica da sedução pedagógica não se contém em
processo de negociação. seus limites intelectuais e académicos, transbordando de maneira
Evidentemente, essa relação negociada de forças tomou a inevitável para o campo incerto da afetividade e da busca do pra-
sedução pedagógica um jogo mais complexo. Na óptica do realis- zer. Ao invés dessa incerteza alimentar a rejeição de se combinar o
mo político do jogo democrático, que inclui e aceita a convivência conhecimento ao prazer, associando-se o primeiro à mudança pelo
de posições divergentes, os objetivos do professores e estudantes sofiimento e o segundo à alienação pela indolência, poderíamos
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imaginar que a plenitude provisória do ser humano está na busca


prazerosa do saber. Essa deveria ser a prioridade de qualquer po-
lítica educacional, de todas as escolas e da prática dos professores.
REFERÊNCIAS
Não há educação sem interferência da afetividade, sem a força das
emoções e sem a sedução pelo conhecimento. GAUTHIER, C ; MARTINEAU, S. Imagens de sedução na pedago-
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