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Incontrolável 1 - Kdaisies
Incontrolável 1 - Kdaisies
MAPAS
PRÓLOGO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
NOTAS
TRILOGIA INCONTROLÁVEL
SOBRE O AUTOR
LUO EDITORA
MAPAS
Esta história acontece em um país fictício localizado na América do Sul.
Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Sua copa podia ser vista há muitos quilômetros e seu tronco era tão
denso que seria preciso um vilarejo inteiro unido para abraçá-lo.
Suas raízes eram tão grandes e profundas, tão intensamente
atreladas ao solo, que nada ao redor podia florescer.
Todavia, do outro lado do mundo, nos lagos, uma ameaça que não
precisava da terra era a única capaz de sobreviver longe do domínio
do Teixo. Tomando os vastos caminhos de água frias e obscuras, a
Lótus controlava tudo, brilhosa e desejada, a mais rica e bela. Ela
não precisava consumir nada e prosperava tão forte quanto o Teixo,
permitindo que a vida na água a fortalecesse.
Aquela raiz desgarrada, achou ali sua fonte de vida e viveu mutando-se
em si mesma: era Teixo, mas se alimentava demais da água da
Lótus. Morte e vida em uma só raiz.
Chegou um ponto que não era mais Teixo. Mas tampouco era Lótus. A
raiz havia se metamorfoseado e, sem saber exatamente o que era,
tomou um rumo em um meio termo de terra e água.
Da lama, um pequeno broto nasceu, e aquela raiz se revelou uma
roseira. Seus espinhos eram tão afiados que nenhum predador
poderia desafiá-los, suas folhas eram tão serrilhadas que qualquer
um temia se aproximar. Era elegante e frondosa por ser alimentada
pela Lótus, mas mortal e implacável por descender do Teixo.
Muito tempo depois, dessa roseira finalmente floresceu uma Rosa tão
linda que não havia ninguém no mundo que não a desejasse. E da
terra, à beira do lago, a Rosa e a Lótus se apaixonaram
perdidamente, fazendo duas forças improváveis se unirem por amor.
A bala acertou seu alvo pelas costas, cortando o vento como uma flecha
sibilante.
Logo em seguida, em uma fração de segundo, houve um caos de outros
tiros precisos no grande salão: seguranças que haviam chegado bem a tempo
por um corredor de acesso paralelo tinham como alvo o homem que agora
estava no chão. Os Aliados, ao centro, recuaram defendendo-se da investida
inimiga repentina e, rapidamente, abateram os que haviam chegado com
facilidade.
Gabriel havia feito o disparo sem que ninguém soubesse.
Ele sentiu sua vida se esvair com um suspiro tenso antes de cair no chão
do corredor deserto onde estava, a perna muito ensanguentada do ferimento
aberto de outrora não doía tanto quanto tentar respirar — aquela,
definitivamente, era a pior parte. Um tremor intenso e frio preencheu seu
estômago dolorido graças ao corte profundo que também sangrava muito.
Sua visão ficou turva enquanto encarava o teto pálido. O moreno
conseguia ouvir a correria e as pessoas gritando no salão, reconhecia a voz
de Carla, de Thiago e, finalmente, a voz que mais ansiava ouvir. Refletia
enquanto a consciência o deixava devagar: que sorte que não havia sido
atingido por um tiro no conflito que ele mesmo havia começado. Já tinha
ferimentos demais e sem dúvida não suportaria mais um.
Ele apertou o próprio abdômen sem largar a arma com que havia
atirado e sorriu de canto fracamente, aliviado por ter acertado seu alvo antes
dos outros.
— O que aconteceu?! — Carla exclamou enquanto recuava checando se
não havia restado nenhum inimigo vivo. Voltou-se para um dos Aliados em
seguida, imperativa: — Mandem o outro esquadrão entrar agora! Deve ter
mais seguranças! Limpem todos os andares até encontrarem ele!
— O primeiro tiro veio de lá! — Thiago gritou correndo em direção ao
corredor onde Gabriel tentava manter-se acordado.
Felipe apontava a arma para o homem que foi atingido primeiro, à sua
frente. Mesmo sem saber quem havia efetuado o disparo que o derrubou,
estava muito satisfeito em vê-lo caído ali, em cima do símbolo que mais
odiava cravado no piso ao centro do salão. O ruivo o encarou com desprezo
e engatilhou sua arma, preparado para matá-lo.
— Você queria tanto que eu fosse um vilão. Eu não me importaria em
ser um agora — o ruivo murmurou friamente.
— Felipe! Aqui! — Thiago gritou desesperado, chamando sua atenção,
e se ajoelhou ao lado de Gabriel. Retirou a arma de sua mão, mostrando-a ao
ruivo que estava no centro do salão. O moreno tremeu semi-inconsciente e
grunhiu, forçando-se a permanecer acordado. — Ele está aqui!
Felipe voltou a travar a arma, guardando-a no coldre. Seus olhos
afundando em agonia agora que via Gabriel sangrando muito no chão.
Sentia que seu coração havia parado, fazendo sua carne estremecer
muito fria e causando aquela sensação perturbadora de desmaio.
Em seguida, encarou com ódio o homem à sua frente, o culpado de tudo
aquilo. Chutou a face alheia com força e o deixou para trás, correndo na
direção do rapaz que definhava no corredor.
Gabriel tremia muito enquanto o frio se espalhava por seus membros,
não conseguia mais pressionar o ferimento quente em seu abdômen e sua
perna formigava pegajosa. As mãos de Felipe o seguraram com força,
repentinamente, o que o fez abrir os olhos devagar.
— Foi ele que fez o disparo! — Thiago disse puxando o telefone
apressadamente.
Ele discou exigindo reforços enquanto Carla comandava os assassinos e
atiradores a limpar a área no grande salão e manter possíveis novas
investidas distantes daquele corredor. Os outros três corredores de acesso
foram ocupados pelos novos esquadrões Aliados que agora invadiam a
mansão, dominando-a.
Thiago passou a fazer um garrote apressado na perna de Gabriel, o
telefone ainda apoiado com o ombro.
Silêncio.
O moreno sorriu fracamente sentindo as mãos desesperadas de Felipe o
tocando e apertando a vazão do sangue com urgência. Tudo parecia turvo e
distante como gotas caindo ao longe, pingando uma a uma dentro de uma
catedral, a alvura do ambiente tornando quase impossível manter-se com os
olhos abertos.
Felipe gritava por ajuda e insistia que ele ficasse acordado ao mesmo
tempo que dava ordens a todos ao seu redor, furioso e confuso. Gabriel
engoliu com dificuldade o sangue que insistia em querer engasgar sua
respiração, não queria demonstrar fraqueza.
Fitou o suor e a sujeira no rosto do homem que o segurava, seu cabelo
escarlate muito escuro e denso como sangue vivo colando em sua pele de
porcelana. Os olhos dourados brilhavam insanos, cheios de ódio e desespero
puro. Gabe sentiu sua respiração falhar, deitado nos braços quentes dele e,
com a mão trêmula, tocou na mão que pressionava fortemente sua barriga
lacerada.
O ruivo tremia, as lágrimas escorrendo descontroladas em sua face suja.
Ele que sempre fora calmo e controlador, preciso e cauteloso, sentia mais
uma vez o poder do incontrolável e o medo o consumia.
— Me perdoa! Me perdoa ter te metido nisso! Gabo, não dorme! — ele
disse rouco, pressionando mais a ferida. — Vai ficar tudo bem. Olha pra
mim, meu gatinho arisco... Por favor! Não dorme!
Ele se voltou para o salão gritando muito alto, desesperado:
— CADÊ A PORRA DO CARRO?!
As mãos sujas de sangue se entrelaçaram e o ruivo voltou a fitar o
homem que combalia. O tempo gotejava lento, insistente e exaustivo na
noite muito quente e abafada. O barulho e o silêncio formavam linhas
confusas nas mentes feridas.
— Mandão pra caralho — Gabriel murmurou.
Felipe apertou os olhos gemendo, ouvir aquilo o destruía
completamente.
“Nem nos meus mais problemáticos sonhos ou nos meus piores
pesadelos eu poderia imaginar a sensação de ser tão intensamente dominado.
Exaustivamente demandado e possuído até ser forçado a perceber que não
comandava mais nada em mim.
Sem descanso, seu desgraçado, você não saiu da minha mente nenhuma
vez! Nunca! Não sei exatamente em que momento pensei que estava em paz
antes de sentir o teu cheiro e ouvir sua voz.
Talvez eu estivesse mesmo muito iludido e frustrado tentando me
proteger, porque eu só experimentei paz no segundo que você me tocou”
Gabriel pensou.
Sua mente parecia muito confusa e delirante agora, sabia que já havia
pensado isso antes, mas não tinha certeza quando. Sua única certeza era que
a sensação associada àquela lembrança era de melancolia e separação.
Ele queria poder falar, falar tudo que sentia. Falar tudo que não
conseguiu por ser muito estúpido. “Eu realmente queria conseguir te dizer
que eu sou seu. Que eu sempre fui seu, Felipe. Eu queria poder ter dito antes
o que eu nunca disse. Eu deveria ter dito…”
Ele arfou puxando o ar com força, sentiu uma náusea com aquele
movimento e balbuciou algo incompreensível. Felipe chorava suspendendo-
o com a confirmação de que já podiam partir e passou a levá-lo com
velocidade em direção ao carro do lado de fora. A paisagem, que mudava
enquanto se deslocavam, já era apenas manchas na visão do outro.
— Não se esforce! Aguenta firme! Aguenta firme, Gabo.
Eles entraram no veículo apressados. O ruivo o arrumava com agonia
em seu colo no banco traseiro, cobrindo-o com sua jaqueta de couro que
estava jogada ali. Thiago, que estava na direção, acelerou arrancando
enquanto Carla fazia inúmeras ligações gritando ao seu lado, no carona.
— Lipe… — Gabriel conseguiu murmurar finalmente.
— Não se esforce. Vai fi-
— Eu te amo — ele disse com suas últimas forças, puxando o ar
nauseante novamente antes de perder a consciência.
Todos emudeceram, o choro soluçante e atormentado de Felipe ecoando
em um lamento mórbido. Era a primeira vez que havia ouvido aquelas
palavras dele
CAPÍTULO I
Aproximadamente um ano antes...
✽✽✽
Josh e Ron permaneciam ao lado do bar, o mais isolado possível do
público da boate, e receberam Gabe que ainda tentava controlar o coração
disparado em sua garganta. Estava sedento. Josh aplaudia muito empolgado.
— Eu nunca canso disso! Metade desses caras querem que você sente
na cara deles e a outra metade quer sentar na sua cara, isso é incrível! —
Josh riu alto enquanto entregava a garrafa de água para o amigo, o qual se
sentou em uma cadeira encostada à parede. Ron assentiu discretamente
apoiando-o.
— E eu quero que todo mundo se foda igualmente — o moreno
resmungou enquanto bebia toda a água, seu pescoço suado escorria.
Debruçou-se para frente apoiando os antebraços nos joelhos enquanto
recuperava seu fôlego. — Ah, e obrigado por ter pegado as turmas da manhã
hoje, eu realmente tive que ir ao centro fazer o pagamento dos funcionários.
O loiro negou com a cabeça e balançou as mãos para que ele não se
preocupasse.
— Tudo bem, você sabe que o karatê e a academia são tudo para mim.
Eu não me importaria nem de assumir todas as turmas. Você que deveria
considerar largar a administração e a faixa de uma vez e se dedicar ao que
realmente é importante para você — ele disse apertando o ombro do amigo,
aproximou-se mais piscando os olhos azuis profundos e indicou o centro da
boate que à essa altura já voltava ao seu estado normal e eufórico de festa —
Aquilo ali é o que você realmente gosta de fazer, Gabe. Por que insiste em
ignorar isso?
O outro bufou encarando o chão.
— A academia era importante para o meu pai, eu já disse — ele
murmurou. Ron suspirou trocando um olhar com o noivo, era melhor não
insistir naquela discussão. Josh rolou os olhos:
— Eu tenho certeza que tudo que o tio Valter queria era que você
fizesse o que te deixa feliz de verdade.
Gabe bagunçou o próprio cabelo contrariado.
Há anos, Gabriel e Josh ensinavam karatê na academia que fora do pai
do moreno e também dançavam juntos no clube de Lizzo. Haviam se
conhecido na adolescência e naqueles dez anos de amizade Gabe sempre foi
o mesmo: resoluto e cabeça dura. Com a morte de Valter, seu pai, ele havia
piorado muito, desdobrando-se em administrar a academia, lecionar a arte
marcial e ainda coreografar, ensaiar e dançar ali — o que no fundo, ambos
sabiam que era a única coisa que realmente queria.
Antes que o moreno pudesse retrucar, Lizzo se aproximou seguida do
fotógrafo ruivo. Ela era muito mais alta que todos e cintilava usando um
vestido de paetês furta-cor perfeitamente ajustado ao seu corpo, os cabelos a
conferindo mais cinco centímetros de ondas loiras artificiais de uma lace
perfeitamente armada. O homem assustador que a acompanhava mantinha
seus olhos deslizando entre Josh e Gabriel, analisando-os, quando a loira
agarrou o rosto de Gabe com seus dedos longos repentinamente, emanava
um cheiro doce intenso.
— Gabe, amorzinho! Nossa, eu sempre fico tão orgulhosa em te ver
dançar. Garoto, você precisa me ensinar a rebolar desse jeito. Essa bunda
linda é de tirar o fôlego! — Lizzo disse abusada, rindo alto, suas mãos com
unhas muito grandes e decoradas apertando suas bochechas. Gabriel sentiu
seu rosto esquentar muito envergonhado e cerrou mais ainda as sobrancelhas
em uma expressão brava.
Ela se voltou para o ruivo ao seu lado, simpática, e apontou para os
rapazes sorrindo.
— Felipe, esse é o Gabriel, o Josh e o Ron. E o Gabe aqui é a minha
jóia rara que você viu se apresentar ainda agora. Ele que me ajuda a dar um
rumo nos meninos da casa! Eu não sei o que faria sem esse gatinho raivoso!
O Josh aqui dança com os meus filhotes também... — Agora ela estava
muito empolgada tagarelando animada, falava sem parar. Felipe
cumprimentou Josh e Ron com a cabeça, seus olhos parando friamente em
Gabriel. O moreno por sua vez revirou os olhos novamente
desdenhosamente. Lizzo se dirigiu aos rapazes na sua frente prosseguindo
sem parar:
— Ah, meninos, e esse é meu amigo Felipe. Ele é fotógrafo e eu pedi
que ele tirasse umas fotos do clube. Ele trabalha com um amigo meu no
jornal! Vamos conseguir um espaço ótimo de divulgação na primeira página.
Josh bateu palmas alegre em uma exclamação, ele estava sempre
exultante. Lizzo comemorou a empolgação em resposta e voltou a tagarelar
sobre seu plano para divulgar o clube ainda mais nas redes sociais, além de
aproveitar o engajamento da matéria no jornal.
Josh e Ron a ouviam com atenção tentando acompanhar a energia da
dona do clube. Enquanto ela permanecia falando, Gabriel encarava
desconfiado o homem em pé à sua frente que devolvia a encarada,
provocativo. O moreno sentiu um arrepio de excitação percorrendo sua
espinha.
Em uma fração de segundo, Felipe passou a fitar Josh e Ron muito
próximos e mudou sua aura bruscamente, sorrindo simpático pela primeira
vez e evitando o olhar inquisidor do moreno. Ele se aproximou de Josh,
piscando galante, seus dentes perfeitos reluzindo num sorriso sedutor. Sua
voz rouca fez Gabriel recuar um pouco surpreso e sem ar, era grave e
intensa, mas não estava falando com ele:
— Então você também é dançarino aqui? Será que eu posso tirar uma
foto sua? Eu achei seus olhos… muito lindos — ele disse fazendo mais um
movimento em direção a Josh, dessa vez avançando como se fosse tocá-lo.
Todos se moveram em um lapso: Ron puxou o loiro seriamente pela
cintura e Gabriel, que estava sentado, levantou em um salto posicionando-se
na frente do amigo interceptando a abordagem. Lizzo se assustou com toda
aquela reação repentina e Felipe sorriu malicioso, ignorando Gabriel que o
encarava de perto. Fitou o casal sonsamente:
— Desculpa, eu disse algo errado?
Josh encarou Ron tranquilizando-o e finalmente tentou afastar Gabriel
de sua frente rindo sem graça:
— Relaxa, Felipe. Meu noivo aqui e meu amigo são dois ciumentos.
Um silêncio constrangedor se fez.
— Já sei! Tirem uma foto vocês três juntos! — Lizzo concluiu tentando
aliviar a tensão daqueles olhares. Felipe assentiu de leve dando de ombros.
— Vamos, Vamos! — ela insistiu balançando as mãos a fim de dissipar a
atmosfera hostil.
Os rapazes concordaram, com exceção de Gabriel que ainda apertava os
olhos raivosos para o ruivo, muito perto. Seus rostos estavam tão próximos
que o menor conseguia sentir sua respiração. Felipe o encarou sorrindo
provocativo, também sentia o calor vindo da pele alheia e seu cheiro:
tropical e levemente adocicado. Reparou nos cabelos densos e negros
alvoroçados emoldurando a face arisca, os olhos de gato muito bravos e
selvagens o perfurando. Analisava-o com cautela, convidativo.
O ruivo finalmente recuou fazendo uma mesura singela com a cabeça,
como se desculpasse, enquanto Lizzo puxava o outro, insistindo para que
posasse para a foto com os amigos até que ele cedeu. A câmera foi
posicionada em direção ao trio: Ron relaxou lentamente e tentou sorrir assim
como Josh, mas Gabe cruzou os braços ao lado dos amigos e manteve a
expressão de raiva de sempre.
O fotógrafo fitava o moreno através do visor da câmera, seu corpo tinha
espasmos de ansiedade e seu coração batia com violência dentro do peito de
forma inédita. Sentia a excitação o consumir e, pelo rubor na pele do homem
que mirava, tinha certeza de que ele também não era indiferente. Gabe
encarou a lente como se pudesse fitar os olhos por trás daquela máquina, seu
corpo ardia de raiva: “aquele filho da puta deu em cima do Josh na frente de
todo mundo?” pensou possesso enquanto sentia descargas elétricas
percorrendo sua espinha.
O clique da câmera soou.
Josh sussurrou algo para Ron em um canto e Gabriel revirou os olhos
com desprezo, sentindo todas as suas defesas ativas, a raiva o consumindo
sem precedência. Felipe o fitava calmamente com um sorriso de canto.
✽✽✽
Quente e úmido.
Gabriel se via pelo reflexo no espelho do banheiro. Observava os
detalhes de suas sobrancelhas muito cerradas em uma expressão séria e
intimidadora, seus lábios desenhados rígidos em uma linha tensa. Seu cabelo
negro estava uma bagunça desordenada apontando para todos os lados e seus
olhos castanhos brilhavam.
Uma mão tatuada apareceu por trás de si e segurou o seu queixo com
violência fazendo-o sentir a parte interna de suas bochechas rasgar até
sangrar. Gabe gemeu. Sua expressão séria dissolveu-se pelo prazer com a
dor que sentia e então, finalmente conseguiu ver os olhos sombrios,
brilhantes e dourados, além do cabelo vermelho vivo, do homem atrás de si
que sorria sádico.
Sentiu um latejar entre as pernas enquanto a outra mão do ruivo invadia
sua blusa e, com as pontas dos dedos acariciava seu abdômen e mamilos
lentamente. O moreno arquejou fechando os olhos, arfava excitado e seu
coração batia muito rápido quando sentiu todo o corpo do homem atrás do
seu pressioná-lo contra a pia de mármore, o membro alheio muito rígido
contra suas nádegas...
O sol já havia levantado, aquecendo as ruas movimentadas, e sua
claridade invadia o quarto pelas frestas da cortina leve e esvoaçante quando
o homem adormecido teve um sobressalto.
Seus olhos se abriram repentinamente: acordou atordoado e sozinho em
sua cama. O coração palpitava na garganta e seu próprio membro pulsava
rígido, melando sua cueca debaixo do lençol. “Só pode estar de sacanagem”
ele pensou enraivecido. Gabe bufou afastando o sonho erótico e sem sentido
da mente e levantou-se para ir trabalhar.
Ele morava sozinho há 8 anos naquele pequeno apartamento que ficava
nos altos da academia que agora o pertencia. Antes disso não tinha a
intenção de viver em Tanrisa. A princípio, ele viera ali com a mãe apenas
para vender aquele imóvel onde funcionava a academia de musculação e
artes marciais que seu pai administrava em vida. Um negócio que Valter
manteve por anos mesmo que isso significasse viajar de carro por pelo
menos três horas para chegar lá e mais três horas para voltar diariamente.
Àquela época, aos 16 anos, presenciou pela primeira vez um treino de
karatê no qual conhecera Joshua Liam e, imediatamente, se apaixonou pelos
olhos azuis e o sorriso sempre otimista do loiro. Naquele mesmo dia Gabriel
insistiu para manter a academia e não a vender. Decidiu que queria aprender
a lutar para conhecer o divertido karateca que, depois, se tornou seu melhor
amigo.
A partir dali, Gabriel passou a fazer o mesmo trajeto cansativo de
ônibus várias vezes por semana, de onde morava desde que nasceu, Kilife,
para o centro da metrópole, Tanrisa, exatamente como seu pai. Até mudar-se
completamente aos 18 anos e seguir o que ele considerava ser uma
existência um pouco medíocre, mas feliz.
Trabalhar, estudar e cuidar de sua família, que ficou muito fragilizada
depois que seu pai morreu, tornou-se sua vida. Até mesmo o amor não
correspondido que sentia por seu melhor amigo era parte da sua rotina: ele
sempre tinha o controle de tudo.
Após o banho, o moreno se vestiu e passou o café preto indispensável.
Desceu despreocupadamente as escadas de ferro segurando sua xícara e
entrou na academia que já estava aberta desde mais cedo. Talita, a
funcionária da recepção, e outros funcionários cuidavam de tudo. Assim, ele
administrava as finanças, compras e pagamentos além da coordenação geral
do negócio. Fora isso, ele mesmo era sensei de karatê com Josh.
O moreno suspirou e cumprimentou a funcionária da entrada, além dos
outros personal trainers no caminho com sua expressão sisuda habitual. A
academia tinha o mesmo cheiro familiar de abafado e frio, suor e
equipamentos de sempre. Vasculhou o olhar pelo ambiente reconhecendo
cada mínimo centímetro do seu espaço, sua zona de controle, e finalmente
avistou Josh de quimono alongando-se na sala de artes marciais que ficava
no fundo da academia, depois de todos os aparelhos de musculação no
caminho.
Gabe caminhou devagar em direção àquela sala, que tinha uma
divisória de meia parede com o resto do ambiente, e mais janelões de vidro
que permitiam a visão do treino interno por todos que faziam musculação.
Como também, panoramicamente, a vista interna da academia toda. Ele
gostava de ficar de olho em tudo sempre.
— Bom dia — Josh disse animado enquanto se esticava, pronto para a
aula da manhã. Passou a alongar as pernas. O ar-condicionado deixava a
sala, ainda vazia, muito silenciosa enquanto que, do lado de fora, o
movimento na academia aumentava gradativamente.
Gabriel grunhiu e levantou uma mão em silêncio, bebeu seu café quente
devagar sentado no longo banco que ficava na lateral do tatame. Ele sentiu o
líquido quente devolvê-lo à vida enquanto observava as pessoas que
chegavam para cumprir seus itinerários de exercícios na área da musculação.
Josh riu baixinho compreendendo o sinal, seu amigo precisava sempre
do seu café antes de estabelecer qualquer diálogo pela manhã.
Gabriel permaneceu distraído bebericando do seu café lentamente. Lá
fora estava muito mais quente, o sol alto agora lutava para entrar pela
fachada de vidro espelhado e a música que vinha da área de musculação
soava abafada e isolada, diferentemente do espaço destinado às artes
marciais onde estava. Ali, o amplo tatame, os bancos e armários de ferro só
transmitiam paz. Utensílios para o treino se amontoavam em um canto mais
próximo à porta. Um bom potencial de agressão, porém quieto e silencioso.
Involuntariamente, lembrou-se do sonho erótico que teve com o
fotógrafo da noite passada e desbloqueou o celular que trazia no bolso por
impulso. Com alguns deslizes de tela e buscas rápidas, através do perfil de
Lizzo, rapidamente encontrou o do ruivo. Arfou prendendo a respiração. A
foto de perfil não era seu rosto, mas sim a foto de uma montanha em tons de
preto e branco. Ao fundo, vários jogos de luz distorcidos das estrelas, como
se elas se movimentassem. Ele era o único Felipe que ela seguia. “Felipe
C.”. Era ele?
Seu coração acelerou ao clicar no perfil. Na descrição havia apenas a
indicação de uma exposição de fotografias intitulada “Incontrolável” e
muitas fotos incríveis de paisagens absurdamente lindas. Cenas chuvosas,
caóticas. Imagens distorcidas e experimentais com sobreposições dando a
impressão de tempo passando e movimento. Sombras. Vultos. Borrões
assustadores e simbólicos.
O moreno arfou mais uma vez vendo a qualidade das fotos, todas
extremamente sensitivas e intensas. Permanecia deslizando o dedo na tela
hipnotizado pelas fotografias e mordeu o canto do lábio com força até sentir
a ferida que tentava cicatrizar ali romper-se. Ele não ligou. Arregalou os
olhos sentindo suas pupilas dilatarem: havia encontrado a única foto de
Felipe naquela conta. Ele estava de perfil fumando em uma varanda, a franja
vermelha cobrindo o rosto perfeito e anguloso.
Gabe engoliu o café com dificuldade, a quentura do líquido ardendo
contra a ferida do lábio. Em contraste, sentiu um frio no estômago só de
lembrar daquele homem na sua frente, o sorriso sádico e provocador, o olhar
dourado que parecia querer invadi-lo. A forma como ele o encarava
enquanto dançava como se pudesse ler cada mínimo canto sombrio da sua
mente.
O moreno bufou. Também era inevitável lembrar de Felipe flertando
com Josh na noite anterior e percebeu que tudo aquilo, inclusive seu sonho
maluco, era causado, na verdade, por estar furioso com aquele homem.
“Quem esse imbecil pensa que é? Dando em cima do Josh assim do nada?
Ele nem o conhecia. Claramente o Josh e o Ron estão juntos, não é possível
que ele não notou. Babaca” ele sentiu seu rosto esquentar, o que o fez fechar
ainda mais sua expressão e as sobrancelhas.
Josh o olhou confuso.
— Nossa, eu sei que você não gosta de conversar antes do café, mas
nunca tinha visto você tão mal-humorado até depois de tomar — o loiro
comentou e riu divertido.
— Não é por causa do café. Eu só não acordei bem. Não gostei da
apresentação de ontem — Gabriel mentiu bloqueando o celular e o
abandonou ao seu lado, mal-humorado.
— O que?! Ah, para Gabe, a apresentação foi incrível. Todo mundo
adorou! Eles até preferem quando você se apresenta sozinho do que quando
dança com a gente! É óbvio que a maioria daqueles caras são doidos para te
pegar.
O menor revirou os olhos encarando o celular de novo. Queria voltar a
ver as fotos, mas controlou-se.
— Foda-se, não tenho interesse — Gabriel disse rudemente.
Lembrava-se nauseado do último cara com quem transara uns meses
atrás. Era mais do mesmo, sem graça e repetitivo: Gabe sempre assumia a
mesma posição de ativo e normalmente se decepcionava com algo rápido e
comum. Desistiu totalmente de sexo casual. Sentia-se estranho toda vez,
reprimindo-se e se limitando sempre quando tentava.
Odiava a frustração que o invadia sempre que acabava. Um vazio sem
fim.
— Eu te entendo. — Josh sentou no banco ao seu lado suspirando. —
Mas você sabe o que rolou comigo no passado então você entende porque eu
não curtia sair com qualquer cara antes do Ron.
Gabriel o encarou sombrio “eu era qualquer cara?” ele pensou,
refletindo-se em toda sua face. Josh entendeu instantaneamente a sua
expressão e engoliu em seco. O moreno sempre quis uma chance com o
amigo, mas nunca, em nenhuma hipótese, recebeu mais que amizade:
— O que quero dizer… — o loiro se corrigiu sem graça e apressado,
explicando-se: — é que você podia tentar conhecer mais pessoas, se
aventurar um pouco, tentar coisas novas. Você não é como eu que tive uma
experiência traumática. Você deveria, sei lá... Só... tentar. Nem que seja para
se divertir um pouco.
— Não quero me divertir. — Gabe bufou e encarou o celular de novo,
estava quase cedendo ao desejo de vasculhar mais um pouco naquele perfil.
Negou com a cabeça e se controlou de novo, habituado. — Eu tenho muito o
que fazer para perder tempo com isso. Relacionamentos e toda essa merda.
Não.
O outro suspirou pesadamente.
— É exatamente por isso que estou te falando isso, Gabe — Josh
retrucou. Parecia se sentir culpado pelo amigo se sentir sozinho e mal-
humorado. — Se tentar conhecer pessoas novas pode acabar... rolando algo
de verdade... Entende?
Josh olhou para cima contendo-se, já havia perdido a conta de quantas
vezes já havia insistido naquilo. Tentando tirar o melhor amigo de trás dos
altos muros que ele construiu ao seu redor, afastando todos de si,
bloqueando-se do mundo.
Ambos sabiam que um nunca poderia corresponder aos sentimentos do
outro, mas ainda assim, parecia algo complicado demais de se resolver. O
loiro massageou as têmporas e, de relance, viu o vulto rubro à entrada da
academia. Endireitou-se no banco e fitou o amigo que parecia absorto em
pensamentos agora encarando a xícara de café que segurava.
— Sem chance — Gabe ecoou entredentes.
— Não mesmo? Não tem mesmo nenhuma chance de você tentar, por
exemplo, sei lá… Conhecer aquele fotógrafo de ontem? Você parecia
interessado — Josh disparou empolgado. Gabriel revirou os olhos bufando,
seu rosto assumindo uma cor avermelhada intensa.
— Interessado em quebrar a cara dele — grunhiu.
— Hum, tem certeza? Eu te conheço há 10 anos, Gabe. Você
definitivamente parecia interessado nele. E ele em você.
— Ele estava interessado em você — Gabe retrucou, mais amargo do
que gostaria, encarando o amigo em seguida, mal-humorado. Josh deu uma
risadinha debochada e fez um movimento com a cabeça indicando a entrada
da academia.
— Será mesmo? Vamos descobrir.
✽✽✽
✽✽✽
— Esse cara quer ficar comigo por três meses? — Gabriel falou em voz
alta estarrecido, lendo tudo muito superficialmente, indo e voltando em
ansiedade. Sorria sem perceber.
Confirmou que precisaria dar devida atenção aos detalhes do
documento e o deixou de lado em cima de sua cama. Passou a preparar um
café quente que o fizesse ficar acordado e mais calmo, sentindo seu membro
formigar com a sensação fantasma das mãos grandes de Felipe. Já estava
rígido e pulsante de novo.
Ser controlado? Que ironia. Suspirou tentando relaxar.
O relógio ainda não marcava o horário avançado que costumava subir
para dormir depois de um dia inteiro trabalhando na academia, e estranhou a
sensação de clausura da própria casa. Por oito anos seguidos sentia aquilo:
trabalhava todos os dias, mesmo que sem necessidade, ensaiando no clube
da Lizzo com o grupo de dança e indo para casa exausto depois de um dia
muito cheio ou uma noite muito agitada de apresentações. Ninguém invadia
seu mundo, sua privacidade. Por toda sua vida, até então, Gabriel
permanecera tentando convencer a si mesmo que não necessitava de
ninguém.
Logo no início dos seus 20 anos, quando seu melhor amigo Josh se
percebeu apaixonado por Ronald Collins, Gabe foi tomado pela evidência de
que seu sentimento pelo loiro nunca seria recíproco. Passou, então, a
dedicar-se mais a cursos de dança avulsos até confirmar que não era o
suficiente para suprir sua necessidade. Àquela altura, mesmo que já
houvesse conquistado a faixa preta no karatê, cursou a faculdade de dança e
formou-se sem usar realmente o diploma para nada. O vazio permanecia ali.
Nada o solucionava.
Gabe ganhava seu dinheiro com a academia, treinava e agora dedicava-
se ao seu amor pela dança simultaneamente. Sentia-se independente. Sim,
independente era a palavra, já que estava sempre evitando o termo “solidão”.
Odiava a sensação de dormir e acordar sozinho, mas odiava mais ainda a
arrogância que lhe consumia, seu maior defeito. Estava certo de que
ninguém era bom o suficiente para ele.
De fato, Gabriel estava frustrado. Cuidar de sua família desde muito
cedo após a morte de seu pai o desestruturou: seus dois irmãos mais novos,
Jéssica e Luan, sempre foram barulhentos e arranjavam muitos problemas,
então ele precisava ser o responsável. Além disso, sua mãe havia sofrido
muito pela depressão após perder o marido e contava com o filho mais velho
incondicionalmente.
O moreno não tivera espaço para cometer erros. Precisava ser perfeito e
manter tudo sob controle. Assim, ao atingir a maioridade, depois que seu
irmão mais novo havia ido estudar no exterior e sua irmã passado a trabalhar
estabilizada, estendeu aquela necessidade compulsiva de cuidar das pessoas
ao seu redor a Josh, seu primeiro amor, e aos filhos que Lizzo amparava.
Sentia-se simplório, de fato. Por mais abalado que estivesse, nunca
demonstrava para ninguém. “Depender sexualmente de um cara assim é
patético. Ter um contrato...” ele pensava sentindo o cheiro denso do café
ocupar o cômodo com velocidade.
Finalmente, ele se sentou na cama com tudo que precisava e tirou a
camisa acalorado. Tomou um pouco do seu café e iniciou a leitura com
atenção, destacando com a caneta todos os pontos importantes, fazia notas
inconscientes em praticamente cada cláusula que lia.
Várias vezes voltava para checar se havia entendido certo, sua mente
levando-o a imaginar Felipe o dando ordens e punindo-o, ferindo-o com toda
sua força. Pesquisava um ou outro termo desconhecido na internet e ofegava
empolgado com os resultados, estremecendo inquieto e surpreso em como se
sentia ansioso por tudo aquilo.
✽✽✽
CARLA
“Eu te dei a informação que você queria sobre onde o cara mora e
você não apareceu na reunião de hoje como prometeu. O que mais eu
vou ter que fazer para você voltar?
O J. está ficando puto com os boatos do seu retorno e você sabe
como ele é irritante! Por favor Felipe, já se passaram três anos.
PRECISAMOS DE VOCÊ DE VOLTA NA CÚPULA.”
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“Talvez eu te dê trabalho.”
Felipe sorriu levemente e assentiu:
— Se eu me irritar de verdade, encerro o contrato e acabou.
Gabe o encarou provocativo e sorriu muito sensual dando de ombros.
“Não se eu acabar antes, não pense que só você sabe o que quer aqui”
pensou.
— Certo. Que seja. Agora, a parte do prazo… Três meses? Eu acho que
não vamos precisar de tanto. — Gabriel hesitou levemente e pensou que
queria apenas uma transa. Ia ser suficiente, supunha. E então acabava com o
contrato ele mesmo.
Os dois julgavam que estavam apenas com tesão um pelo outro e não
precisavam se alongar apesar de toda burocracia do contrato que o ruivo
fazia questão de ter. Felipe suspirou concordando pensando em algo
semelhante. O moreno prosseguiu passando as folhas e voltando:
— Aqui. Tem essa parte sobre o treinamento. O que exatamente é isso?
Felipe tragou lentamente.
— Basicamente vou te ensinar a ser mais resistente. Aguentar mais
tempo, aguentar mais forte.
Gabriel estremeceu com o tom de voz frio e pesado de Felipe e logo
começou a sentir-se irritado.
— Não preciso de nada disso. Eu aguento — ele disse, fechando a
expressão muito bravo.
Felipe sorriu levemente, gostava muito de vê-lo com aquele rosto
bravo.
— É o que veremos... Né?
Gabriel bufou contrariado e continuou correndo os olhos sobre suas
anotações.
— Hã... Os dois “garantem que não padecem de infecções sexuais nem
enfermidades graves”, sim meus exames estão em dia. Eu anexei tudo aqui
como solicitado e também já vi os seus. Tudo certo. — Felipe concordou
afirmando o mesmo. Por mais que Gabriel fosse um fã de sexo seguro, agora
que podiam checar antes que estavam saudáveis daquele jeito, aceitaria a
possibilidade de fazer isso sem proteção. — Agora, essas partes sobre você
ser meu dono. Eu ser propriedade. Te servir e fazer de tudo para te
agradar… — Gabriel falou tentando se controlar. Ele estava excitado e
levemente contrariado. — Talvez nem sempre eu vou querer te agradar.
Dane-se.
Felipe assentiu e riu.
— Você está dizendo que não consegue fazer o básico? — o ruivo disse
provocativo.
Gabe o olhou furioso. Tirou seu casaco xadrez sentindo calor. Felipe
encarava atentamente aquele corpo e o volume evidente na calça alheia.
— Estou dizendo que eu posso fazer, mas pode ser que nem sempre eu
esteja a fim de te agradar. Por quê? Você não consegue controlar alguém
com personalidade?
O ruivo tragou sentindo-se mais ansioso que nunca. Fez sinal para
prosseguir. Gabe mordeu o lábio e continuou olhando o documento.
— Ok. Aqui no apêndice 1 fala que o submisso tem que manter relação
sexual apenas com o dominador. Adicionei uma nota: “e o dominador só
pode manter relação sexual com o submisso”. Seria mais seguro, digo. Já
que eu optei por fazer isso sem proteção... — Gabe deu de ombros. —
Parece justo?
— Parece óbvio — Felipe disse enquanto debruçava-se na direção da
mesinha de centro, em busca do cinzeiro. Apagou o cigarro e olhou para
uma das portas fechadas, recapitulando se teria tudo que precisava no quarto
dos submissos para onde intentava levá-lo.
Ele lambeu os lábios ansioso. O moreno continuou:
— Ótimo. Ok. Eu concordo com todos os limites rígidos e adicionei
mais alguns, já defini tudo da escala do apêndice 3 também. — Gabe
entregou a folha para Felipe.
O ruivo pegou os papéis e analisou com cautela os seus limites,
lentamente: “Ele marcou aceitável todos os tipos de dor e castigo?
Interessante” pensou.
✽✽✽
CARLA
“A reunião da cúpula foi terrível, sem você aqui as coisas estão cada
vez piores. É sério. Os boatos estão se espalhando depois da sua vinda
aqui.”
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Gabriel respirou fundo sentindo sua pele suada e quente, ele cobriu a
claridade do sol com uma mão enquanto olhava para o céu lembrando-se de
tudo que fizera na noite passada. Ver a claridade passando pelos seus dedos
em feixes o fez lembrar de uma das fotografias de Felipe e instantaneamente
seu coração acelerou.
Seus olhos se fecharam em um segundo. Tentava entender como se
sentia, alguns traços de medo e culpa insistindo em invadir sua mente como
sombras geladas e tensas. Concluiu que não sabia exatamente como se
sentia, afinal. Felipe havia sido simplesmente incrível naquela noite, e não
estava com pressa para sentir tudo que ele tinha para oferecê-lo.
Por um momento, pensou em Josh dentro da academia e o que ele
pensaria ao vê-lo daquela forma: roxos e marcas em seu pescoço que não
podia esconder. Mesmo que tentasse antecipar qualquer comportamento ou
reação, Gabe simplesmente não se importava. A indiferença preenchendo-o
por completo.
Sentia os pontos exatos de seu corpo, onde havia sido marcado por
Felipe, queimarem levemente sempre que os mapeava mentalmente.
Lembrava-se do momento em que foram feitos e não conseguia evitar uma
sublime sensação de elevação e paz. “Isso é muito problemático? Gostar
disso tanto assim?” pensou suspirando o ar úmido “provavelmente ele vai
achar que eu sou maluco...”
Querendo ou não, havia sido Josh quem o apoiou a dar uma chance para
Felipe, mesmo sabendo dos antigos sentimentos do amigo. “Eu realmente
ainda sinto algo por ele ou só me acostumei a pensar que não existe ninguém
além dele no mundo?”.
Eram muitos pensamentos e poucas respostas.
O moreno bufou, frustrado, e entrou na academia. Falou com alguns
funcionários que trabalhavam e passou a definir ordens sobre os horários e
pendências do estabelecimento, focando no próprio trabalho. Percebeu que
alguns dos personals e pessoas que se exercitavam o olhavam duas vezes ao
perceber as manchas em seu pescoço e não conseguiu evitar sorrir de canto
sentindo a satisfação de ter aquelas marcas.
Sentia-se propriedade e isso era estranhamente satisfatório. Ao
contrário do que pensara, não se sentiu inseguro ou tímido. Aqueles olhares
chocados o faziam sentir-se privilegiado, como se fossem troféus a exibir.
Era prazeroso ver como as pessoas pareciam preocupadas e chocadas com
aquilo, no mínimo curiosas. Ele terminou de assinar algumas atas que Talita
o entregava.
— Ok, continue cuidando de tudo para mim, Tali. Vou para a classe da
manhã agora — disse friamente vendo-a encarar seu pescoço marcado com
os olhos atentos enquanto assentia.
Gabe caminhou diretamente para a sala de artes marciais ao fundo,
separada do resto do ambiente por várias janelas de vidro, e enxergou Josh.
Sentiu um leve embrulho no estômago, não sabia se pela ansiedade de ver
sua reação ou pela repulsa que sentia por si mesmo graças à fria indiferença
que o preenchia.
— Bom dia — Gabriel falou despreocupado ao entrar na sala
cumprimentando-o. Josh treinava a turma da manhã enquanto os alunos
permaneciam empenhados aos abdominais no chão do tatame.
O loiro virou-se para cumprimentá-lo.
— Ei, bom dia! Eu bati na sua casa hoje de manhã mas você não me
atendeu! Ensaiou até tarde ontem? — Josh disse ao sair do tatame e se
aproximar do amigo. Gabe retirava seu quimono do pequeno armário de
ferro no canto da sala quando o loiro finalmente se deu conta das marcas no
pescoço alheio. — Que merda...?!
Gabriel o olhou sombriamente. Preocupou-se tanto com aquela reação
que nem havia parado para pensar como ele mesmo reagiria.
— Quê?
— Meu Deus, você apanhou de alguém? — Josh perguntou preocupado
em sussurros e puxando a gola da blusa do amigo. Arregalava os olhos com
o número de marcas que via. — Não... Espera...
Gabe riu um pouco sem graça e empurrou a mão do amigo de sua blusa.
Ele saiu em direção ao banheiro do lado de fora da sala e o outro o seguiu
apressado.
— Não se preocupe, o outro cara vai pagar por isso — Gabe disse
decidido.
Dito isso, deixou o amigo boquiaberto falando sozinho e seguiu.
Apertava os punhos ao lembrar do ruivo sorrindo sádico e tremeu enquanto
se trocava. Pensava em Felipe e em como ele o subestimou na noite anterior,
fazendo-o sentir-se um completo inexperiente, enquanto tentava evitar expor
a ereção que as lembranças e pensamentos lhe causavam.
Josh encarou Gabriel durante todo o treino atentamente, a partir dali.
Ele não conseguia evitar transparecer a preocupação com o amigo cheio de
manchas espalhadas no pescoço e pulsos. “Mesmo que tenha sido
consensual, isso parece... Demais” Josh suspirou pensando enquanto
arrumava as luvas e os aparadores de chute que os alunos usaram no treino.
Gabe não parecia disposto a conversar ou explicar o que havia
acontecido e, por alguns segundos, o loiro considerou se havia errado no seu
julgamento sobre Felipe.
— Gabe... — Josh começou enquanto o amigo se preparava para sair da
sala para tomar água. O moreno parou esperando-o continuar. — Isso... Foi o
Felipe? Quer dizer... Vocês...?
Josh hesitava olhando-o.
— Não precisa se preocupar com isso — Gabe retrucou mal-humorado,
sua expressão muito fechada e sobrancelhas cerradas.
— Ele te bateu? — Josh perguntou confuso ao se aproximar,
aproveitava enquanto os alunos da turma da manhã já haviam ido embora.
— Digo, isso não parece ter sido algo prazeroso.
— Mas foi — Gabe disse friamente apertando muito os braços cruzados
no peito. — Já disse para não se preocupar.
— Então por que disse que ele ia pagar? Que tipo de...
Relacionamento...? Quer dizer, eu pergunto porque estou preocupado com
você. Eu sabia que ele queria transar com você, mas-
Gabriel se aproximou muito de Josh encarando o amigo de perto. Ele
esperou para sentir se seu coração aceleraria ou se sentiria algo pelo menos
próximo do nervosismo que experienciou há alguns anos atrás. Mas ali,
diante dele, estava apenas seu melhor amigo.
Silêncio.
Ele suspirou e pegou a mão de Josh com cuidado, segurando-o em um
cumprimento, sorriu levemente por trás da expressão sisuda.
— Eu nunca estive tão bem. De verdade, pare de se preocupar. Eu quis
isso — Gabe disse olhando-o com intensidade.
Josh recuou um pouco, desconfortável. Nunca o havia visto falando tão
sério. Às vezes sentia que mesmo que o conhecesse há tantos anos, sabia
muito pouco sobre seu melhor amigo, como se sempre tivesse acesso a uma
versão editada de si. Uma versão incompleta.
Ele tremeu rindo sem graça e empurrou o moreno de brincadeira.
— Se esse idiota te machucar para valer é bom que revide — o loiro
alertou enquanto voltava a organizar tudo para o turno da tarde. Os dois
trabalhariam o dia todo.
Gabe sorriu sentindo-se muito leve: “eu realmente espero que ele me
machuque para valer”.
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CARLA
“Thiago saiu em uma missão e eu ficaria muito mais segura se você
fosse com ele. Volte pra Ordem de uma vez, Felipe! Eu não aguento
mais lidar com o J. na cúpula!
COMO ESTÁ INDO COM O NOVO SUBMISSO?”
CARLA
“Na última reunião aquele imbecil direcionou mais de 20% do valor
bruto para sua ala burocrática ignorando todo o resto que compõe a
Ordem, Felipe!
Você sabe o que isso significa. Precisamos de você!”
RYU
“O senhor pediu que avisasse caso o J. se aproximasse dele.
Eles estão juntos agora. Parecem conversar. Os homens dele estão
cercando o lugar com a mira no rapaz, então estamos com J. na mira
também. Quais as ordens?
LOCALIZAÇÃO EM TEMPO REAL”
CAPÍTULO VII
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As ruas estavam alagadas ali também. O céu escuro formava uma
atmosfera assustadora e densa enquanto o vento frio ricocheteava contra as
folhas das árvores, e as gotas violentas da chuva caiam sem parar.
Pouquíssimos carros e pessoas circulavam nas ruas por conta do clima e
Gabriel xingava mentalmente. Estava completamente desconfortável,
encharcado e exaurido.
Odiava viajar de ônibus enquanto chovia porque sempre ficava em pé
durante horas no meio de uma multidão e, como agravante, estava muito
molhado e pegajoso pensando que quase todas as roupas que ele trouxe
como reserva em sua mochila também estavam inutilizadas por hora.
A chuva estava muito forte e molhou todo seu tecido penetrando-o e se
espalhando pelo conteúdo de sua bolsa. Ele fez um muxoxo enquanto fazia
sinal para um táxi. Nenhum parava. Todos ocupados.
— Que inferno! — ele exclamou chutando a água.
Nunca desejou tanto um abraço na vida. Necessariamente de alguém
em específico. Sentia-se desolado, estressado e decidiu ir andando na chuva
mesmo. O hospital onde sua mãe e irmã estavam não era muito longe dali,
afinal.
Agora seu corpo tremia por causa do frio enquanto ele tentava manter-
se aquecido, andando rapidamente. Sentia que seu guarda-chuva era uma
peça completamente inútil naquele momento, que mais o atrapalhava na
batalha contra o vento do que o ajudava a proteger-se.
Ele o fechou e disparou correndo na chuva, torcendo para que chegasse
o mais rápido possível, mas ainda passou quase meia hora naquela jornada
parando várias vezes embaixo de qualquer toldo ou marquise que
encontrasse.
Avistou o enorme hospital e entrou pelo hall muito iluminado pingando
muito, seus cabelos negros estavam desordenados e grudados em seu rosto.
Parecia que tinha mergulhado em uma piscina com toda sua roupa e havia
entrado ali logo em seguida. Todos o olhavam confusos.
Gabe foi até a recepção arfando muito, no seu limite.
— A minha mãe e irmã... — ele tentou dizer sem fôlego. A mulher da
recepção o olhava alarmada. — Minha mãe e irmã estão internadas. Eu sou o
responsável por elas.
— Qual o nome delas, senhor? — a moça perguntou lentamente.
— Dalila e Jessica Almeida — Gabriel disse apoiando o rosto no
balcão, ele ardia por causa da falta de ar que tentava controlar aos poucos.
A recepcionista digitou os nomes no computador diante de si e assentiu:
— Sim, elas estão aqui. Mas o senhor não vai poder subir desse jeito.
Gabriel a olhou intensamente. Seus olhos assumiram um modo
assustador, cobertos por uma névoa rubra de fúria.
— Como é?!
— Sinto muito senhor, mas não podemos permitir que o senhor entre na
enfermaria molhado desse jeito é perigoso e contra-
— Não me interessa, porra! Eu vim em um ônibus lotado, em pé por
quatro horas! Eu vim correndo da merda da rodoviária até aqui! Eu quero
ver a minha mãe! — Gabriel gritou muito alto chamando a atenção de todos
na recepção. Ele bateu no balcão com força e a moça recuou, assustada.
— Senhor, eu sinto muito! Talvez no máximo possamos lhe oferecer
uma toalha, mas... O senhor precisa se acalmar.
— ME ACALMAR É O CARALHO!
Gabriel gritava muito alto, tremendo de frio, seus lábios assumindo uma
cor arroxeada. Repentinamente, sentiu um puxão para trás e braços grandes
o envolveram. Ele arfou, completamente assustado com o que sentia, e então
ouviu, incrédulo, a voz conhecida muito grave e séria:
— Está tudo bem, obrigado. Ele vai se recompor e já volta — Felipe
disse friamente, fitando a mulher que o olhava tão chocada quanto o moreno.
Ele deslizou os olhos dourados para Gabriel, que o encarava boquiaberto, e
analisou todo seu rosto como se quisesse memorizar cada detalhe.
Felipe segurou Gabriel pela mão, em seguida, entrelaçando seus dedos
com força nos dele, o puxou firmemente, arrastando-o em direção ao
estacionamento do hospital. O moreno tremia por conta do frio e o maior
estagnou violentamente tirando sua jaqueta e jogando-a sobre os ombros do
rapaz.
— Vamos — o ruivo disse sem esperar uma resposta.
Prosseguiram. Gabe estremeceu sentindo o cheiro e o calor da peça que
agora o envolvia, esforçando-se para não chorar. Abaixou a cabeça se
escondendo por trás de seus cabelos encharcados. O homem o segurou de
novo mais intensamente levando-o em direção ao seu carro que estava recém
estacionado, ignorando todos no caminho.
O estacionamento era em uma área ampla e coberta na lateral do
hospital. Estava deserto ali, com poucos carros, o barulho da chuva do lado
de fora fazendo chiado perturbador.
O ruivo tirou a mochila alheia e jogou-a no chão. Em seguida, encostou
Gabriel contra o carro como um boneco de tecido, seus braços pendurados e
moles ao lado de seu corpo úmido, e abriu a porta do banco do passageiro
retirando uma toalha de sua mochila. Sacou a jaqueta de cima do moreno
jogando-a dentro do carro e começou a secá-lo.
— O que você está fazendo aqui? — Gabe quebrou o silêncio
perguntando com a voz rouca. Felipe hesitou sentindo as notas de tristeza
que permeavam o tom de voz alheio.
— Cláusula 15.1 dos deveres do dominador — Felipe disse friamente e
Gabriel riu com desgosto, lembrando-se imediatamente. Havia decorado
aquele contrato.
— “O dominador deve priorizar em todo momento a saúde e a
segurança do Submisso.” — Gabe disse mecanicamente sentindo-se doente
com aquilo.
Felipe não veio por ele, mas sim porque tinham um documento
assinado que o obrigava a cuidar dele. Ele estremeceu sentindo aquele
homem tirar sua jaqueta xadrez e camiseta encharcada e secá-lo como um
bebê. A brisa fria rodeando sua pele desnuda arrepiada e molhada.
— Você não podia ter tentado entrar em contato comigo, não é? Pedir
minha ajuda. Tinha que se meter em uma tempestade sozinho... — Felipe
resmungou enquanto enxugava os cabelos de Gabriel. O moreno o empurrou
com violência ao ouvir isso e sempre que o outro tentava tocá-lo de novo
recebia outro empurrão. — Para com isso eu estou tentando te enxugar!
— PARA COM ISSO VOCÊ! — Gabe gritou, sua voz ecoava pelo
estacionamento vazio. Apenas eles estavam ali. Permanecia de cabeça baixa,
a toalha cobrindo seu rosto. — Por que você tem que ser tão cruel, Felipe?!
Eu sei que nem tudo gira ao meu redor! Eu sei! Eu sei que eu sou só um
contrato para você! Eu sei que não devo me meter na sua vida! Mas por que
você tem que vir aqui só para ser rude comigo?!
Gabriel o olhou com os olhos marejados, seu rosto estava muito
vermelho e tenso. Estava muito perto de ultrapassar seu limite de cansaço e
dor. Ele cobriu o rosto sentindo muito frio. Felipe o observava insondável.
Seus olhos eram como muralhas intransponíveis e o moreno não fazia ideia
do que ele estava pensando ou sentindo.
— Por que você tem que ser tão cruel comigo?! Eu não tenho tempo
para lidar com isso agora. Eu não tenho tempo para esse jogo agora. Elas
precisam de mim, elas precisam de mim! Eu preciso estar bem por elas...
Latte. Latte — Gabriel resmungou suplicante e muito choroso limpando as
lágrimas que escorriam de seus olhos sem sua permissão. Suas mãos
tremiam muito.
Tentava subjugar tudo que sentia em um conflito intenso. Aquele
homem estar ali atrapalhava toda sua concentração e ao mesmo tempo era
exatamente tudo que ele mais queria. Felipe tremeu quando ouviu o menor
usar a palavra de segurança que indicava que estava próximo do seu limite
de resistência.
Gabriel sentiu seus joelhos fraquejarem quando Felipe o apertou em um
abraço firme. O cheiro amadeirado de cedro e cravo que vinham do ruivo
invadindo-o. Ele estava muito quente e o envolvia por completo, arfando.
O moreno conseguia ouvir o coração daquele homem batendo muito
alto e forte contra si e apertou a blusa dele, empurrando-o sem forças, apenas
para senti-lo puxá-lo com mais força para aquele abraço, impedindo-o de
fugir. Ele gemeu e o maior o empurrou mais contra o carro com seu corpo.
— Me solta — Gabriel murmurou fracamente. Tentava manter a
expressão brava em seu rosto enquanto apertava a blusa de Felipe o puxando
para mais perto.
O ruivo respirava pesado, deslizando uma das mãos pela cintura nua de
Gabe, enquanto a outra o segurava pelo pescoço. Ele o puxou em um beijo
muito quente e ansioso ocupando a boca do moreno com sua língua. Gabriel
gemeu como em um miado de prazer, abraçando-o e puxando-o mais para si.
Felipe também gemeu em agonia, fazendo suas pernas tremerem muito.
Os dois se beijavam intensamente enquanto a chuva castigava o solo do
lado de fora, estava frio e estranhamente escuro ali. O maior deslizou o rosto
pelo de seu submisso arranhando-o com barba por fazer, o membro alheio
respondendo imediatamente àquele estímulo, assim como todo seu corpo.
Felipe parou os lábios em seu ouvido e sussurrou muito baixo:
— Eu sinto muito, gatinho — implorou docemente, envolvendo-o com
todo seu corpo. Suas mãos acariciando-o muito com os dedos longos. Ele
segurou o rosto do rapaz com as duas mãos quentes o olhando nos olhos
muito perto. — Eu realmente sinto muito. Eu não deveria ter sido... Tão duro
com você.
Gabriel estremeceu e fez um som contrariado tentando fugir daquele
olhar intenso, mas foi segurado firme e beijado mais uma vez brevemente.
Inevitavelmente, o menor gemeu de novo, muito excitado e satisfeito.
Recompunha-se do acesso de choro e nervoso anterior lentamente.
O ruivo se deu conta de que o menor estava seminu e muito molhado e
xingou mentalmente pela sua irresponsabilidade. Largou-o em um instante e
abriu sua mochila tirando de lá a primeira camiseta que viu e a jaqueta de
couro, a qual jogou sobre seu próprio ombro. Vestiu-o cuidadosamente com
as duas peças em seguida.
Felipe o apreciou usando sua camiseta favorita e sua jaqueta sem
conseguir evitar uma expressão boba. O menor o encarava timidamente com
uma expressão muito brava, o cabelo malmente enxuto muito bagunçado ao
redor de seu rosto vermelho.
— Vamos, entra no carro e tira essa calça. Agora — Felipe mandou em
um sussurro, apontando para o carro.
— Você é mandão pra caralho — Gabriel reclamou e abriu a porta dos
bancos de trás. Felipe riu rouco, fazendo o moreno sentir um arrepio muito
bom.
Ele se sentou no banco com as pernas para fora do carro e Felipe
permaneceu de pé o observando atentamente, apoiando seu braço na porta
aberta. Gabriel tirou os tênis e lançou-os no chão do carro, abriu o fecho e o
zíper de sua calça e olhou provocativo para Felipe em seguida. Sem quebrar
o contato visual, Gabe se lançou para trás lentamente, deitando-se no banco,
e puxou a calça levantando as pernas de maneira muito sensual.
O ruivo arfou lambendo os lábios, a calça molhada deslizava pelas
pernas fortes e a cueca box preta marcava o contorno da bunda do moreno
em um ângulo incrível. O menor desfez-se da peça no chão do carro e se
apoiou nos cotovelos, uma das suas pernas dobrada no banco e a outra
esticada levemente aberta. Felipe cobriu os lábios com uma mão, contendo a
lascívia, enquanto o moreno o encarava com a respiração pesada.
— E então? — Gabriel disse fracamente e o outro considerou se deveria
transar com ele ali mesmo. O ruivo apertava com muita força a porta do
carro vendo a ereção de Gabriel dentro da cueca. O moreno sorriu um pouco
percebendo que sua pergunta havia soado ambígua. — Digo, o que eu vou
vestir agora, Felipe?
O homem recobrou a consciência e puxou o ar com força para fugir
daquela visão linda e hipnotizante. Ver aquele homem usando sua camiseta
favorita e sua jaqueta, apenas de cueca deitado no banco de trás do seu carro
com as pernas tão convidativamente abertas o atingiu como um raio. Ele se
afastou e passou a vasculhar suas calças.
— Não vão caber. Vê se tem alguma coisa seca na minha mochila —
Gabe disse prevendo que aquela busca era inútil e se deitou abraçando seu
corpo com aquela jaqueta quente. Queria dormir.
Ouvia Felipe se movimentar do lado de fora enquanto, dali, considerava
se deveria desculpá-lo. Ele sorriu bobo confirmando que já o havia perdoado
só de ouvir sua voz quando ele o abraçou no salão principal. Sentiu-se um
idiota. “Ele mesmo disse que veio aqui só porque isso é a obrigação dele
pelo contrato, não se iluda”.
O maior parou do lado de fora e jogou a calça de Gabriel sobre seu
corpo fazendo-o ter um sobressalto e olhar muito bravo para o ruivo. Ele se
vestiu sentindo que a peça estava um pouco úmida mas não totalmente
encharcada.
— Você não me respondeu — Felipe começou fracamente do lado de
fora, jogando as sandálias de Gabriel no chão para que ele calçasse. Fechou
a mochila dele e guardou-a no chão do banco da frente, fechando a porta em
seguida.
Gabriel saiu do carro e bateu a porta também, estava mais aquecido
agora:
— Não respondi o quê? — ele disse distraído, arrumando a blusa larga
em seu corpo e calçando as sandálias. Sentiu a aproximação de Felipe que o
envolveu em outro abraço quente e o abraçou de volta sem resistir,
enterrando o rosto em seu largo peitoral. Sorveu ao máximo o cheiro,
miando gostoso. Felipe sorriu satisfeito com aquele som.
— Eu quero saber se você me perdoa, Gabo.
Felipe segurou o rosto de Gabriel com as mãos novamente. O moreno
não o largou do abraço, cerrou suas sobrancelhas rudemente e fez um bico
bravo que causou um sorriso alheio involuntário. “Ele é tão fofo” o maior
pensou, sentindo o cheiro de óleo de coco de seus cabelos o invadir por
completo, um cheiro doce e suave como ele.
— Vai se foder — Gabriel falou muito bravo enfiando o rosto
envergonhado no peito do outro. — Eu sei que eu cruzei a linha. Se você não
quer que eu veja suas fotografias, que seja. Dane-se. Mas se me tratar assim
de novo eu vou te quebrar, não me interessa se temos um contrato. Apenas...
Não seja cruel comigo.
Felipe suspirou aliviado, abraçando-o e negando lentamente com os
olhos fechados. Não queria soltá-lo nunca. Não conseguia evitá-lo mesmo
que estivesse quebrando não só todas as suas regras de relacionamento com
submissos mas, todas as regras da sua vida. Não queria evitá-lo.
“O que você fez comigo, gatinho?” pensou novamente enquanto beijava
o topo de sua cabeça. Gabriel estremeceu sentindo aquele toque e enterrou o
rosto ainda mais em seu peito, apertando-o. Não entendia até que ponto
aquilo fazia parte do jogo sexual que era aquele contrato ou até onde era
realmente sincero. Não queria descobrir agora.
Silêncio.
— A sua mãe e sua irmã. Como elas estão? — Felipe perguntou
finalmente.
Gabriel o largou em um sobressalto, lembrando-se imediatamente onde
estava e o que estava fazendo ali. Ele fechou os punhos sentindo-se patético
e grunhiu muito bravo.
— Merda! Elas precisam de mim! Vamos! — ele disse saindo com
velocidade. O outro sorriu divertido.
Felipe o encarava usando a sua jaqueta enquanto se afastava, o cabelo
negro bagunçado como um verdadeiro astro do rock. Seu coração batia
muito rápido dentro do peito, sentindo-se sublime e ridiculamente egoísta.
“Se você ao menos soubesse o risco que corre estando comigo” pensou,
sofrendo muito.
O moreno estagnou encarando-o com aqueles olhos felinos, o cenho
cerrado realçando a força da sua feição agressiva. Parecia questionar por que
ele permanecia parado. Felipe arfou e o alcançou em uma corrida breve,
tomando-o pela mão e fitando-o de perto com seus olhos de dragão. Gabe
corou, desviando o olhar timidamente, e voltaram a andar depressa, as mãos
dadas em um aperto firme.
CAPÍTULO VIII
✽✽✽
Gabe abriu os olhos repentinamente, ouvindo passos ao seu redor. Ele
saltou sentando-se no sofá em que dormia. Havia acabado de amanhecer do
lado de fora e a chuva finalmente cedera, as pessoas começavam a circular
pelo hospital com mais frequência. Olhou ao redor confuso e viu Felipe se
aproximando segurando um copo de café e uma sacola.
O moreno sentiu seu coração acelerar vendo Felipe sorrindo de leve,
sua aparência destoando de tudo e chamando a atenção de quem passava.
“Nós dormimos juntos aqui?” pensou sentindo sua face esquentar muito.
Gabe tentou se recompor, fechando a expressão como de costume, e virou o
rosto para o outro lado timidamente. O ruivo o olhou de cima com as
sobrancelhas arqueadas, divertindo-se.
— Dormiu bem, gatinho arisco?
Gabriel emitiu um grunhido bravo em concordância e engoliu a saliva
sentindo-se faminto. O cheiro do café e do pão que ele havia trazido
invadindo seu pensamento.
— Come. Eu sei que está com fome. — Felipe o entregou o café, o qual
Gabe recebeu sem o olhar nos olhos, agradecendo com a cabeça.
— E você já comeu? — o moreno perguntou. O outro assentiu
confirmando. — E o médico? Apareceu para falar da minha mãe? — Gabe
devorava o pão e tomava o café, seu estômago roncava. Ele olhou para
Felipe que, por sua vez, o observava com aquele sorrisinho bobo.
— Eu perguntei à enfermeira, parece que sua mãe e irmã têm outro
médico responsável. O anterior precisou resolver uma emergência pessoal e
trocou seu turno de plantão com outra pessoa. — Felipe deu de ombros
sonsamente, fingindo nem imaginar a razão daquilo. — Parece que elas já
estão sendo avaliadas para a alta também. E sua mãe já está acordada.
Gabriel assentiu aliviado tanto com a notícia de que elas estavam bem,
quanto com o alimento que aliviava sua fome. Ele comeu em silêncio. Sentiu
um tremor, em breve veria sua mãe e Felipe estaria lá também. Terminou de
comer e respirou fundo bagunçando o cabelo, seu tique de nervosismo.
— Se minha mãe perguntar qualquer coisa, não responda nada. —
Gabriel o olhou suplicante e o ruivo sorriu divertido dando de ombros.
— Ela sabe sobre você? — Felipe perguntou um pouco tenso.
— Sobre eu o que? Sobre eu ser gay? — Gabe falou terminando de
comer com a expressão muito cerrada e o ruivo assentiu preocupado. Ele riu.
— Todo mundo sabe. Eu sou um péssimo mentiroso, meu pai notou quando
eu tinha uns 12 anos. O resto foi natural.
— E ela não tem problemas com isso?
— Ah, não. Ela só tem problemas com o fato de eu estar sempre
sozinho. — Gabriel deu de ombros fitando o ruivo que o analisava com seus
olhos frios. — Ela passou um tempo torcendo para eu ficar com o Josh.
Felipe suspirou ouvindo aquilo, sentia-se um intruso indesejado. Odiava
sentir-se tão deslocado naquela vida comum que o moreno tinha, odiava
mais ainda desejar tão intensamente fazer parte dela e deixar para trás toda a
sua própria vida turbulenta. Seguiram caminhando em direção ao quarto
onde Dalila estava.
— Se quiser eu posso te esperar aqui fora — o ruivo disse cabisbaixo.
— Não. Por favor, não saia do meu lado — Gabriel suplicou
tensamente. O maior foi consumido por um calafrio. “Ele quer que eu fique”
pensou repetidamente se deliciando com aquilo discretamente e assentiu.
O moreno bateu na porta do quarto e entrou ansioso, seguido dele. A
senhora muito dócil sentada no leito tinha cabelos curtos muito lisos com as
pontas alinhadas para dentro, castanhos e cheios de fios brancos. Os olhos
amendoados eram claros, conferindo-lhe uma expressão muito agradável e
amável. Ela sorriu muito feliz ao ver Gabriel e abriu os braços feliz.
— Filho! — exclamou. Gabe caminhou até sua cama e a abraçou
docemente enquanto Felipe observava próximo à porta. — Eu sinto muito
por essa confusão toda! Eu sinto muito mesmo que você tenha que vir aqui
por nossa causa. O médico disse que eu já estou bem, mesmo! E eu já sei
que a Jessica está arrumando confusão.
Gabriel grunhiu sentando-se ao seu lado na cadeira do acompanhante.
Ele a segurava pela mão preocupado.
— Não se preocupe com a Jess, ela está ótima! Não para de irritar todo
mundo como sempre — o moreno disse apertando as mãos frágeis de sua
mãe. — Como a senhora se sente? Lembra do que houve?
Ela fez um muxoxo e revirou os olhos exatamente como Gabriel fazia,
muito irritada.
— Eu tinha ido para a casa da Marlúcia tomar café e conversar como
sempre e daí recebi uma ligação dizendo que a Jess tinha sofrido um
acidente. Eu não sei, eu só senti uns tremores estranhos e um formigamento
e pensei que fosse desmaiar — ela falou muito tensa. — Daí eu vim para o
hospital por causa da Jess já me sentindo mal e acabaram me socorrendo. Foi
horrível porque eu nem sabia o que estava acontecendo!
— A senhora tem tomado seus remédios direito? — Gabe perguntou,
muito responsável, seu tom de voz incisivo. — E não tem se acabado em
besteiras, né? Eu sei que a senhora adora comer besteira escondida.
Dalila colocou a mão sobre o peito fazendo uma expressão de choque
como se não soubesse do que Gabriel estava falando e sorriu divertida.
Felipe permanecia os observando, sentia-se muito sortudo por ver aquela
cena que o preenchia de várias formas, o sorriso dela era muito semelhante
ao de Gabe, cheio de vida e muito bonito. Ela olhou repentinamente para o
ruivo com os olhos afiados, analisando-o, e voltou-se para o moreno
questionadora.
— E então? Não vai me apresentar? — Ela aproveitou a deixa para
fugir do assunto anterior.
Gabriel olhou para trás fitando Felipe, o qual permanecia estático ao
lado da porta.
— É... O Felipe. Felipe, essa é minha mãe, Dalila — ele disse muito
tenso enquanto o ruivo se aproximava lentamente.
O maior assentiu com a cabeça cumprimentando-a, seus cabelos
vermelhos arrumados para trás destacavam seu rosto anguloso. Dalila o
encarou e sorriu desconfiada apertando os olhos.
— É um prazer, querido — ela disse educadamente e ele assentiu de
novo respeitosamente, mudo. A mulher olhou para Gabriel provocativa. —
Como estão as coisas em Tanrisa? E a academia? E o Josh? — disparou.
Gabe já estava esperando por isso. Sua mãe torcia muito para que os
dois estivessem em um relacionamento e sempre desejava que seu amigo
Josh não estivesse com Ron. Ele suspirou chateado. Dalila encarou Felipe, o
qual desviou o rosto com uma expressão vacilante. Sua experiência sabia
exatamente o que aquele tremor e queixo travado do ruivo significava,
estava incomodado em ouvir o nome de Josh na conversa.
— Está tudo bem, mãe. A academia e todo resto — Gabriel disse
duramente.
— E quando vocês começaram a namorar? — ela perguntou
rapidamente, apontando para Felipe.
Os dois tiveram um sobressalto. Eles se entreolharam tensamente e
Gabriel começou a balançar as mãos em negativa. Felipe apertou os lábios
em uma linha tensa tentando manter-se distante, seu rosto aqueceu
involuntariamente.
Ele nunca havia se imaginado naquela situação. Já esteve em conflitos,
lutas perigosas normalmente envolvendo riscos de vida, mas aquela era de
longe a mais assustadora que ele já enfrentou. Engoliu com dificuldade.
— Não, não. Nós não... Nós não estamos nesse tipo de relacionamento.
A gente não é isso! Não somos, nós não estamos... — Gabriel disse
nervosamente gaguejando muito.
— Então não estão juntos? — ela insistiu despreocupada e olhou para
Felipe. Gabriel abriu a boca para negar, mas o maior respondeu mais rápido
olhando-a seriamente:
— Sim senhora, estamos — o ruivo disse.
Silêncio. Gabriel cobriu o rosto xingando todos os palavrões que
lembrou mentalmente. Dalila arqueou a sobrancelha e riu baixinho, satisfeita
com a determinação que emanava daqueles olhos cor de âmbar.
No momento certo, porém mais constrangedor, a médica entrou na sala
e cumprimentou a todos, sem entender a razão daquela tensão. Dalila aceitou
o desvio de assunto para ser avaliada. A médica fez algumas perguntas sobre
os sentidos da paciente e começou a examiná-la.
Gabriel se levantou aproveitando a deixa e aproximou-se de Felipe. O
moreno o encarou arregalando os olhos sem entender aquilo. “É a segunda
vez que ele diz que estamos juntos, que merda é essa?” pensou confuso,
sentia seu coração batendo muito rápido.
O maior deu de ombros friamente, fingindo não saber porque ele estava
tão tenso, sendo que ele mesmo mal podia suportar a náusea gélida que
perfurava seu estômago. A médica voltou-se para Gabe, que encarava Felipe
intensamente.
— O pior já passou, as duas estão muito bem. A senhora Dalila só
precisa ficar em observação de repouso o máximo possível, tomar suas
medicações e se alimentar bem. De qualquer maneira eu acho que as duas já
podem receber alta hoje.
Gabriel suspirou aliviado e olhou para sua mãe, a qual sorria alegre
também.
Depois da alta confirmada, Dalila conseguia andar tranquilamente para
fora do hospital ao lado de Jessica, que se sustentava em muletas, mancando.
Esta, por sua vez, continuava xingando pelo fato de os culpados pelo
acidente terem fugido e questionava aos quatro ventos como pagaria pelos
danos no carro.
A mais velha continuava mandando-a parar de falar, estapeando a filha
energicamente. O ruivo observava toda aquela situação se divertindo muito
enquanto Gabriel resolvia os documentos da alta ao seu lado. As duas os
observaram juntos e se entreolharam, conversando com os olhos.
O sol despontava tímido do lado de fora e apenas a voz da Almeida
mais nova ainda era audível, reclamando e xingando sem parar. Gabe
massageou as têmporas grato por tudo aquilo ter sido só um grande susto.
Felipe havia ido buscar o carro e o moreno pensava se ele iria lembrar de
colocar as roupas molhadas no porta-malas para que sua mãe e irmã não
vissem aquele grande caos jogado por todo canto. Ele podia imaginar a
situação e corou imediatamente.
— Então... Juntos? — Dalila começou sorrindo timidamente e Jessica
riu.
Gabriel engoliu em seco com a expressão muito fechada, tentando
evitar aquele assunto.
— Aonde ele foi? — Jessica perguntou olhando ao redor quase se
desequilibrando nas muletas.
— Está tudo bem por você andar de carro depois de ter sofrido um
acidente? — Gabriel perguntou, ignorando-a. Jess o fitou revirando os olhos.
— Eu não estou traumatizada nem nada do tipo, Gabriel. Não é como
se eu fosse para casa mancando daqui, né?
— Ótimo — Gabriel disse vendo Felipe aproximando-se com a BMW.
O ruivo desceu para ajudá-las e os três Almeida arfaram com a beleza
daquele homem, seu cabelo vermelho cintilando ao sol. Ele sorriu sem graça
convidando-as a entrar no carro. Gabriel segurou a irmã e indicou sua mãe
para que Felipe a ajudasse. Jessica protestou querendo ser levada por Felipe
e o moreno a mandou calar a boca, empurrando-a em direção ao veículo.
Ambas se acomodaram nos bancos de trás e Gabe no da frente, ao lado de
Felipe.
— Se você puder nos deixar em casa eu ficaria grato. Daí você pode
voltar para a cidade. E eu volto quando tudo estiver estabilizado — Gabriel
disse ao homem que assumiu a direção.
O ruivo negou com a cabeça, concentrado no trânsito, manobrava para
fora do estacionamento guiando-se pelas vias seguindo o GPS. As duas
ouviam com atenção no banco de trás.
— Não vou voltar sem você. Você não vai pegar mais nenhum ônibus.
O moreno corou, engolindo com dificuldade, e ouviu Jessica segurando
o riso atrás de si empolgada.
— Obrigada por nos levar, Felipe. E por cuidar tão bem do meu filho
— Dalila intrometeu-se docemente. Felipe assentiu sorrindo levemente. Ela
reparou no movimento dele e continuou: — saiba que mesmo que vocês não
estejam em um... relacionamento... todos que cuidam do meu filho com
carinho eu também cuido como filhos meus, então pode contar comigo!
Felipe sentiu um calafrio e um peso enorme em seu estômago. Ouvir
aquilo o acertou em cheio. Ele assentiu de novo, sentindo-se estranhamente
satisfeito. Ver aquelas cenas maternais entre ela e Gabriel, além de ser
chamado de filho, o aqueceu por dentro em um lugar que nunca foi tocado
antes.
Sempre que estava ao entorno de Gabriel sentia a leveza da redenção e
da vida comum. Queria muito, de forma egoísta, apegar-se a isso, aproveitar
cada segundo como se ele coubesse naquela realidade. Tremeu e apertou o
volante.
Dalila prosseguiu:
— Gabe, vocês deveriam voltar logo para Tanrisa. Eu já falei com a
Marlúcia e ela vai ficar com a gente até a Jessica tirar o gesso e eu estar
totalmente recuperada! — ela disse. Gabriel tentou argumentar dizendo que
ficaria para cuidar dela pelo resto da semana, mas sua mãe o cortou ali sem
cerimônias: — não ouse. A academia precisa funcionar, lembra?! Você
precisa voltar, entendeu? Fiquem só para almoçar e vão. Daqui podemos nos
virar.
Gabriel bufou e cruzou os braços irritado. Felipe o olhou de canto
apreciando-o contrariado com as bochechas infladas. Desejava tocá-lo todo
tempo, segurar suas mãos e senti-lo dormir em seu colo de novo. Não
conseguia parar de pensar na sensação reconfortante que tivera ao acordar
com aquele homem em seu colo, tão relaxado, dormindo profundamente. Era
uma sensação viciante.
Eles se aproximavam da casa de dois andares, estacionando diante dela.
Gabe olhou para a casa e assentiu, sentindo-se melancólico de repente. Todo
aquele lugar lembrava seu pai. Felipe ajudou Dalila a sair do carro dando-lhe
a mão enquanto Gabriel trazia Jessica, que reclamava sem parar. O ruivo riu
ouvindo os dois discutindo através do jogo do contrário atrás dele e Dalila
acompanhou o olhar divertido dele rindo também.
— Ah, filho. Eles sempre discutem com esse jogo bobo. Sempre foi
assim, falando o contrário todo tempo pela casa. Eu nunca sabia quando
estavam falando sério e quando estavam jogando — Dalila resmungou e
apertou o braço de Felipe. Ele a olhou muito atento. — E o Gabe é
exatamente como o pai dele, joga esse jogo bobo sem nem notar. Você
parece ser um cara observador, já deve ter reparado que ele tem essa mania
de se proteger de tudo.
Felipe sorriu bobo.
— Eu o entendo.
Dalila retribuiu o sorriso, muito doce.
— Eu gosto do jeito que você o olha, sempre cuidando dele — ela falou
baixinho, ouvindo os dois filhos brigando atrás de si enquanto caminhavam
devagar em direção à entrada da residência. — Mas também parece tão
melancólico e triste. Eu diria... Inseguro? Isso não combina com um cara
como você.
Ela riu divertida. Felipe corou pigarreando e desviou o olhar muito
tenso.
— Não temos nada realmente sério, senhora.
— Mas ele gosta de você, querido. E eu diria que você também gosta
dele — Dalila disse seriamente e o olhou instigando-o a confiar em seu
instinto materno. Felipe piscou timidamente tentando controlar seu coração.
— Cuide dele. Quanto mais você demonstrar como se sente, mais ele
também vai fazer isso, é como ele funciona.
— É tão transparente — Felipe ecoou.
Gabriel parou de discutir. Agora tentava ouvir o que os dois
conversavam diante de si. Os olhos felinos, afiados, deslizando da mãe para
Felipe. Dalila suspirou, dessa vez falando um pouco mais alto:
— Ah, eu espero que vocês continuem juntos por mais um tempo.
— Eu também — Felipe concluiu sem pensar.
Gabe abaixou a cabeça, muito corado, sentindo seu coração palpitando
intensamente.
✽✽✽
✽✽✽
A tarde estava amena e levemente abafada pela umidade excessiva da
chuva torrencial que açoitou o solo no dia e noite anteriores, enquanto a
estrada permanecia tranquila e livre de carros em direção ao centro de
Tanrisa.
Gabriel espreguiçou-se gostoso no banco do carona. Ele suspirou
aliviado por tudo aquilo não ter sido mais sério do que pensava e visou,
sorrindo bobo, um arco-íris tímido no céu. Aquela presença tão protetora de
Felipe durante todo aquele dia havia o deixado em um êxtase estranho de
alegria e tranquilidade. Sempre que o via conversando com sua família como
se fosse parte dela, sentia algo inesperado dentro de si.
Esforçava-se demasiado para colocar os pés no chão do seu devaneio
colorido: “é um contrato, não se iluda por favor” ele pensava apertando os
olhos para o lado de fora, sem conseguir conter sua felicidade. O silêncio
estava começando a incomodá-lo, uma música tocava baixo ao fundo e
Gabriel a reconheceu cantarolando. Felipe sorriu de canto discretamente,
dirigindo.
— Da próxima vez lembre-se de me mandar uma mensagem antes de
sair sozinho para resolver qualquer coisa no meio de um temporal — o ruivo
disse finalmente muito sério.
Gabe cerrou o cenho como sempre e grunhiu com raiva.
— Claro, da próxima vez tenha coragem para acabar com o contrato ao
invés de ser um cuzão estúpido comigo só para me machucar.
— Justo. — Felipe riu divertido.
Ele sentiu o sorriso desaparecendo aos poucos, lembrando-se que
precisava conversar com ele sobre isso, afinal. Silêncio.
— Eu realmente sinto muito. — Felipe suspirou e finalmente disse,
mantendo os olhos na estrada. Não queria ver a expressão do moreno. Ele
continuou: — eu não queria dizer aquilo de verdade. Bom, eu realmente...
Não estou acostumado com ninguém tão interessado pelo meu trabalho
assim.
Gabe deu de ombros, corando, e se ajeitou confortavelmente no banco
encarando o homem ao seu lado. Seu perfil era lindo e seu cabelo rubro
estava desalinhado, a barba por fazer o deixava mais maduro e muito
excitante.
O moreno passou a refletir se o seu dominador insistiria em continuar
apenas treinando-o sem tocá-lo quando chegassem. Queria passar as mãos
no cabelo dele. Queria beijá-lo.
— Problema seu se não está acostumado. Eu gosto das suas fotos e eu
não vou parar de ir vê-las — o moreno murmurou em seu tom muito bravo,
as bochechas infladas. Sua expressão mal-humorada fez Felipe sorrir bobo.
— Não é como se eu te obrigasse a falar sobre isso ou algo assim. Eu só
quero vê-las. Fico satisfeito só com isso. Assim como fico satisfeito só com
um contrato...
Os dois coraram em sincronia. Felipe tentou se recompor apertando
firme o volante. “Você sempre quebra minhas defesas sendo tão sincero
assim” pensou travando o maxilar. Ele assentiu concordando com a fala do
moreno.
— Mas, além disso, tem muita coisa sobre mim que você não sabe,
gatinho — ele murmurou hesitante. — E eu queria que nunca soubesse. Eu
só disse aquelas coisas porque estava preocupado com você.
— Isso é sobre aquele imbecil que veio falar comigo, não é? — Gabriel
falou muito calmo e o ruivo o olhou intrigado em um sobressalto. Voltou a
visar a estrada ansioso. — É... Pela sua reação é isso, eu imaginei. O que ele
é seu? Eu vi o símbolo no cigarro. Pensei que fosse coisa da minha cabeça,
que você tinha ido lá porque era uma exposição com fotos suas. Mas você
não vai às suas exposições, não é? E além do mais, você parecia saber que
tinha acontecido alguma coisa. Pensei que fosse porque eu estava com medo,
mas o cigarro dele... Eu reconheci na hora.
Silêncio.
— O que ele te disse? — Felipe perguntou friamente, desejava matar o
irmão com as próprias mãos. Gabe suspirou.
— Nada demais. Só foi um grande imbecil. Falou mal das suas fotos e
eu quase soquei a cara dele. Depois ele disse alguma merda sobre o tempo
ter acabado, fumou na minha frente e sugeriu que nos veríamos de novo.
Pareceu uma ameaça.
Gabriel tremeu lembrando daquele homem assustador, magro e muito
alto com olhos dourados. Felipe apertava o volante enérgico. Seu nariz
retesava com ódio e seus lábios tremiam como em um rosnado. “Ele o
ameaçou, isso é ruim” pensou tenso.
— Não se aproxime dele. Nunca — Felipe ordenou. Ele fitou o menor
incisivo. — Entendeu? Prometa para mim que não vai se aproximar dele,
Gabo.
— O que ele é seu? — Gabe perguntou curioso. Estava receoso com
aquele tom alarmante de Felipe.
— Promete, Gabriel.
— Eu não vou me aproximar daquele maluco porra, ele é um esquisito
e me dá calafrios. Eu prometo! Satisfeito?
Felipe grunhiu. Não gostava da ideia de Jonathan dando calafrios no
moreno nem que fossem de medo. Apertou mais o volante querendo xingar.
Não havia fumado todo aquele tempo e estava se sentindo ansioso de novo.
Sempre que passava o tempo com Gabe esquecia seu vício e o caos do seu
passado.
Um silêncio tenso permeou os dois enquanto a música tocava baixo no
fundo.
— Ele é meu irmão — Felipe disse por fim.
— Seu irmão?! — Gabriel o olhava chocado, quanto mais lembrava
daquele cara mais tinha a sensação de que eles tinham muito em comum. Ele
odiou aquela sensação. — E o que ele queria comigo? E como você sabia
que ele estava lá?
— É melhor não fazer muitas perguntas. Como eu disse, tem muita
coisa sobre mim que você não sabe. Quanto mais distante você ficar dele,
menos você vai saber sobre coisas ruins a meu respeito.
Silêncio.
— E se eu quiser saber as coisas ruins sobre você?
O ruivo grunhiu.
— Não vai dar. Não vamos poder continuar com o contrato assim. Eu
quero você distante disso. É... Perigoso. — Ele suspirou contrariado e
cansado.
— Perigoso para mim? Ou para você?
— Para você. Mas nós temos um contrato e eu não vou deixar que ele te
toque um dedo, não vou medir esforços para te proteger. Então acaba sendo
perigoso para mim também.
Aquela declaração fez Gabe estremecer da cabeça aos pés. Seu rosto
aqueceu a ponto de arder. Sentiu-se frágil novamente e odiava aquela
sensação. Não sabia exatamente o que pensar, sobre o que realmente
consistia o passado de Felipe, mas supunha que não era algo legal ou
comum.
Felipe por inteiro tinha uma aura de quem não era apenas um fotógrafo
como outro qualquer, tendo uma vida normal. Isso era como sua casa ampla
e vazia: sua sala de estar intocada, sua cozinha desnuda e as paredes cinzas
sem quadros. Tudo fazia mais sentido agora. O ruivo realmente tinha um
algo mais que Gabe sabia que existia desde o princípio, mas não tinha
certeza até aquele momento.
Tinha realmente algo mais: um quarto de espelhos, fotografias, pinturas
impressionistas, e seu eu verdadeiro encoberto. Tinha um passado que
parecia mais suspeito ainda. Mas não estava intimidado. Queria conhecê-lo
mais e mais, desvendá-lo e fazer parte de sua vida. Por mais que tentasse
sentir medo, não sentia. Não dele. Seu único temor era que ele se
machucasse.
— Não se machuque por minha causa, por favor — Gabe implorou
muito baixo.
Felipe riu divertido, quebrando a tensão.
— Ah, não se preocupe. Eu não me machuco, isso não acontece. Eu
quem machuco os outros, gatinho. Muito — o ruivo disse sadicamente, um
tom muito sombrio e assassino percorria suas palavras.
Gabriel arfou excitado com aquilo e o maior recuou, percebendo que
havia deixado escapar uma parte contida sua. Ele o encarou hesitante, mas a
expressão alheia era puro tesão. O ruivo negou com a cabeça, incrédulo, e
sorriu sensual voltando a encarar a via.
— O que? Era para eu ficar assustado? Porque eu realmente gosto
muito quando você fica agressivo — Gabe disse sorridente e passou as mãos
pelos cabelos lentamente. O Castro tentava focar na direção.
— Não me provoque, Gabo. Temos algumas horas de estrada pela
frente. Esqueça esse assunto e durma um pouco.
Gabe riu se enrolando confortável no banco, sonolento, e fez um
muxoxo.
— Você é muito mandão, eu já falei isso?
— Um par de vezes — Felipe concordou divertido. — E você é
incontrolável. Mas agora eu entendo o porquê. Sua família é bem
espirituosa.
— Ah, eu sinto muito por toda aquela cena vergonhosa. — O moreno
grunhiu com o rosto muito rubro. — Elas sempre foram barulhentas assim.
Eu tenho que controlar elas para não fazerem besteira toda vez. Parecem
crianças. Obrigado por ter fingido tão bem hoje.
O ruivo esboçou uma risada soprando incrédulo. “Fingir?” pensou
negando com a cabeça.
— Não foi nada. Eu me diverti e gostei bastante da companhia delas.
Apesar do susto que passaram, elas estavam muito bem-humoradas.
Gabe concordou com a cabeça e sorriu sem se conter, sentindo-se tão
bem que bocejou alongado. Ele estava muito relaxado.
— Felipe... Eu confio em você. Só… Mantenha seu irmão idiota longe
de mim, ok?
Silêncio.
— Sim. Eu vou cuidar de você, gatinho. Não precisa se preocupar —
Felipe disse finalmente, sorrindo de canto. Gabe assentiu com os olhos já
fechados. — Descanse. Você vai precisar de energia quando chegarmos.
A estrada parecia repetitiva e muito hipnotizante agora, fazendo o
moreno relaxar no banco. A música lenta tocava baixo, ocupando o carro
todo em uma sensação de tarde morna muito agradável. Ele sorriu e miou
ansioso, com as sobrancelhas cerradas, antes de pegar no sono enquanto
sentia o cheiro de Felipe o invadir.
“Eu sinto que gostaria de você mesmo que visse o seu pior lado... ”
Gabe pensou antes de cochilar. Não o julgaria, de fato, afinal, não era como
se ele mesmo não tivesse suas próprias sombras.
CAPÍTULO IX
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✽✽✽
VOCÊ
“Já acabou o turno e já posso ir para o ensaio. Venha me pegar,
‘mestre’.”
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Felipe tomou uma via larga que direcionava para norte, na direção de
Iapraq. Seguindo por aquela estrada havia um grande parque de reserva
ambiental onde muitas pessoas iam para fazer trilhas e passeios em família,
além de aventuras nas cachoeiras que ficavam embrenhadas nas muitas
árvores densas.
Lá, havia um chalé de decoração rústica no meio da composição
bucólica, elegante por dentro, mas muito simples e pouco frequentado. O
ruivo mantinha em mente o ambiente que descobriu uma vez quando foi
fotografar um casamento muito bonito que ocorrera ali. Lembrou-se
levemente corado das duas noivas trocando seus votos.
Àquela época, ele não compreendia as palavras que elas diziam uma à
outra apaixonadamente e debulhando-se em lágrimas. Até mesmo no
casamento de Carla e Thiago sentiu-se deslocado e estranho. O fato de ele
sempre ter sido domado pelo ódio nunca o fez perceber os relacionamentos
humanos da mesma forma. Sempre manteve seu pensamento focado no seu
único objetivo em vida, e quando o alcançou ficou tão perdido sem saber
quem era que havia perdido a razão.
Ele estacionou na entrada do parque. Afastou os pensamentos sombrios
que tentavam invadir sua mente vendo Gabriel arquear uma das sobrancelhas
ao descer do carro e cobrir o rosto para se proteger do sol, tentando enxergar
melhor. Ali havia um arco grande de madeira indicando a entrada do
ambiente campestre dali em diante. Não muito a frente depois de um
caminho entre as árvores estava o chalé.
Felipe havia saído do carro também e seguia em direção ao moreno pela
frente, atencioso em sua expressão confusa.
— Se vamos fazer aventuras pela floresta eu acho que essas roupas não
são as melhores. Eu deveria tirá-las aqui mesmo? — Gabe disse divertido,
abrindo um dos botões da blusa e exibindo um pedaço do peitoral marcado,
uma mordida perfeita de Felipe muito visível ali.
O ruivo avançou em sua direção, puxando-o pela cintura, e sorriu de
canto fazendo o rapaz fraquejar com o cheiro gostoso que vinha dele. Piscou
sensual para seu submisso e sussurrou cuidadosamente em seu ouvido:
— Não me provoque, gatinho. Ninguém te ouviria gemer, por mais alto
que fosse, de dentro desse carro.
Gabe tremeu apertando seu peitoral com a expressão cerrada, se aquilo
era uma ameaça para que ele parasse, apenas o atiçou mais ainda a continuar
o que estava fazendo. Ele empurrou o ruivo e deu de ombros. Viu o outro
rindo e pegando a bolsa da câmera de dentro do carro, e seguiu parque
adentro fazendo um sinal com uma das mãos indicando que deveria segui-lo.
O sol da manhã estava leve e o clima nublado, permitindo uma
sensação de frescor e muito vento, principalmente por causa das árvores e
paisagem verde refrescantes. Os dois caminharam pelo caminho de tijolos
alaranjados. Dos dois lados havia muitas árvores, plantas e relevos cobertos
pela relva. Algumas poucas pessoas caminhavam passeando, casais e idosos,
enquanto outras faziam piqueniques em clareiras conversando, crianças
pequenas brincando de bola descalças na grama.
Seguiram por mais um tempo, dobrando em uma esquina do caminho
de tijolos até ficar cada vez mais deserto. Um grupo de mochileiros foram
mata adentro em um sentido contrário ao deles conversando entre si. Agora
estavam sozinhos e, dali, pareciam perdidos nas trilhas muitas do parque.
Felipe seguia com as mãos nos bolsos da calça social olhando para
cima, os feixes de sol que passavam pela copa das árvores montavam uma
bela cena. Ele parou repentinamente e tirou a câmera da bolsa, montou a
lente nela e enrolou a alça de segurança em sua mão. Fez uma série de
ajustes rápidos e apontou a lente para cima distraidamente disparando.
Gabriel o encarava corando muito, era como se o presenciasse em um
momento muito íntimo, e sentiu um arrepio com as palpitações que a beleza
daquele fotógrafo causava. O ruivo olhou para a tela digital e sorriu
satisfeito, voltando-a para o moreno que viu o resultado: uma cena bonita
das árvores, a luz clara dando a sensação de movimento.
— Sua técnica é linda. As fotos que você tira são realmente incríveis...
— Gabe disse baixinho, sem pensar, dentro do peito a sensação pulsante e
sufocante. Corava sorrindo muito bobo — É realmente lindo como você vê o
mundo.
Felipe pigarreou timidamente e virou o rosto, sentindo-se
envergonhado. Guardou a câmera montada mesmo, em um encaixe perfeito,
desligando-a antes. A sinceridade com que aquele homem falava sobre suas
fotografias o afetava sempre deixando-o sem jeito, ele não sabia como
receber elogios.
— Vamos, precisamos comer.
O chalé era todo de madeira escura e cercado pela mata. Tinha um
telhado de forte caimento e beirais avançados, anguloso. Para chegar até a
entrada, havia duas escadas, em uma bifurcação curvada, que davam no
mesmo ponto no alto. Entre elas estava um chafariz de cerâmica esculpida
circular de dois andares, que jorrava água em um som agradável que se
mesclava com o que o vento fazia ao chacoalhar as folhas altas das copas das
árvores.
Gabe entreabriu os lábios vendo o lugar belíssimo com os olhos
brilhantes, não havia ninguém ao redor, parecia ser um tipo de oásis secreto
em meio àquele bosque. Subiram juntos por uma das escadas e o moreno
parou no meio do caminho, observando ao redor. Dali conseguia ver um
pouco mais além: os vários caminhos que a estrada de tijolos laranja levava,
muitas pequenas clareiras e pássaros voando em bando no céu claro e
levemente nublado.
Felipe o observava, deslizava os olhos pela pele castanha iluminada, o
belo perfil que admirava a paisagem causava nele uma sensação sufocante,
era como se estivesse se afogando naquela cena. Seguiram subindo devagar,
a entrada do chalé era aberta e todo o ambiente com mesinhas bem
decoradas e espaçadas. Sobre elas lustres de junco cru.
Felipe entrou seguido de um Gabriel que olhava ao redor encantado,
não havia quase ninguém naquele ambiente ventilado. Seguiram adentrando
o espaço e o ruivo acenou com uma mão para a hostess do restaurante. Falou
baixinho algumas coisas com ela antes que o rapaz o alcançasse, esse ainda
estava admirando o ambiente sem pressa, andando lentamente.
Observava os arranjos de flores e samambaias em longos e largos vasos
de mármore em cantos estratégicos e sorriu de canto, timidamente, vendo
que agora, de uma das mesas mais distantes de todos, Felipe indicava para se
sentarem. Dali podiam ter uma visão panorâmica do parque sem serem
atacados pelo sol diretamente.
Sentou-se com a expressão cerrada, fingindo mau humor, e cruzou os
braços diante do corpo. Mordia as bochechas por dentro, evitando sorrir,
sentia-se estúpido e embevecido. Desde o primeiro dia juntos Felipe sempre
o havia levado em lugares lindos que ele adorava, e lembrou inevitavelmente
do café igualmente rústico e muito bonito o qual foram no primeiro
encontro.
— O que foi, não gostou? — Felipe perguntou enquanto tirava o blazer
e posicionava-o sobre um canto da mesa de madeira polida e envernizada,
ficando apenas com a camiseta branca fina, os braços fortes, um deles todo
coberto pela tatuagem do bravo dragão, expostos. Colocou também a bolsa
da câmera ao lado do casaco negro.
Gabe umedeceu os lábios fitando seus antebraços e desviou o olhar para
a janela muito ampla e sem vidro, ao seu lado, dando de ombros.
— Eu gostei. É bem arejado — disse sem graça quando o garçom se
aproximou, servindo a mesa aos poucos, enchia-a com todo tipo de comida.
Posicionou uma xícara de café preto diante de Gabriel e outra na frente de
Felipe. Várias opções de bolos e pães, patês e outros quitutes que fizeram o
moreno sentir seu estômago roncar em protesto. No dia anterior não havia
jantado depois do dia muito cheio e estava vacilando pela fome que sentia.
Salivava ansioso.
Felipe sorriu e indicou a comida. Comeram em silêncio sentindo a brisa
matinal e aproveitando a música leve que tocava muito baixa ao fundo. O
som de água, folhas, vento e piano, tudo parecia uma mescla de sensações
leves e românticas que faziam o moreno sentir vontade de dançar.
Literalmente seu corpo pendia de um lado para o outro de olhos
fechados enquanto ele tomava o café preto, sentindo-o recompor suas forças,
o líquido doce aquecendo sua boca. Estava feliz de um jeito que nunca havia
experienciado antes, como em um sonho.
O ruivo o observava com uma das mãos apoiando seu queixo, um
sorrisinho de canto satisfeito com o que via. Em um lapso, abriu a bolsa da
câmera retirando-a de lá novamente, apontou-a com precisão para o moreno
e disparou algumas vezes fazendo o outro recuar com a expressão arisca.
— Que porra, Felipe?! — Gabe protestou batendo a xícara no pires
timidamente.
O ruivo riu e olhou o resultado da fotografia muito sorridente, Gabriel
definitivamente era o homem mais bonito que ele já havia visto, em qualquer
ângulo ele ficava atraente e muito belo. Desligou a câmera e a colocou ao
seu lado dando de ombros.
— Quê? Eu gosto de fotografar cenas bonitas — ele disse e tomou um
bom gole de seu café, olhou-o através da xícara de porcelana com os olhos
dourados. Tinha certeza de que havia visto uma sombra de um sorriso tímido
ali.
— Por que trouxe sua câmera, afinal? Não vai trabalhar só mais tarde?
É algum evento que tem que cobrir? — Gabe questionou com os braços
cruzados.
— Sim e sim. Mas a razão pela qual eu te trouxe aqui vai precisar dela.
— O ruivo puxou a carteira de cigarros do bolso e segurou um deles com a
boca, acendeu-o em seguida tragando devagar. Era o aroma suave de cravo
que faltava para Gabriel sentir o prazer completo com aquele ambiente. —
Já tem um tempo que eu queria fotografar aqui nesse lugar, queria testar
algumas técnicas.
Gabe recuou surpreso. Sentia-se extremamente honrado e feliz com
aquilo, já que poderia presenciá-lo fotografando. Disfarçou um sorriso bobo
e virou o rosto discretamente, a brisa forte e morna fazendo-o sentir o tecido
de linho roçado em sua pele.
Eles terminaram de comer em silêncio e o moreno se espreguiçava
gostoso sentindo-se revigorado e pronto para mais um dia. O ruivo se
levantou o chamando para irem depois de vestir o blazer escuro e posicionar
a bolsa em seu ombro, a câmera preparada em sua mão.
Saíram descendo as escadas. Gabe tentava evitar a sensação
desconfortável e amiudada de Felipe sempre pagar tudo quando saíam. Pelo
visto ele já havia feito tudo rapidamente antes mesmo que ele percebesse,
bufou mal-humorado seguindo-o por um dos caminhos que levavam mata
adentro na estrada de tijolos.
— Sabe eu também tenho dinheiro, eu posso pagar pelas minhas coisas.
Tudo bem que eu ficaria quebrado comprando esse tipo de roupa aqui, mas
pelo menos comer bem eu posso bancar — Gabriel resmungou sem graça,
chutando uma pedrinha que cortava seu caminho, reclamava mal-humorado
e o ruivo riu rouco com aquela cena.
— Não me leve a mal, mas é um hábito. E também... Faz parte do
contrato eu fazer esse tipo de coisa.
— Ah, é, o contrato de novo. Sim... — Gabriel falou. Naqueles
momentos normalmente ele esquecia disso, que tinham um contrato.
Felipe estava com ele por causa de um fetiche sexual de dominá-lo e
parecia fazer questão de sempre o lembrar disso de alguma forma. Tudo
aquilo era uma ilusão com um prazo certo para acabar. Sentiu seu coração
batendo dolorosamente em um aperto e suspirou sentindo-se desconfortável
repentinamente.
Felipe parou cobrindo o rosto, percebeu a besteira que havia falado e
suspirou xingando mentalmente por sempre acabar falando coisas que
pareciam magoar Gabriel. Na realidade, não sabia como fazer as coisas que
queria para aquele homem sem se basear no contrato. Usando-o evitava
expor como realmente o desejava e seus sentimentos.
Ele olhou ao redor apreciando a vista, angustiado, e pegou o moreno
pela mão rapidamente com uma ideia maluca que lhe ocorreu. Começou a
puxá-lo mesmo com os protestos questionadores do outro em direção a um
caminho que só ele conhecia. Continuaram andando rápido, quase correndo,
de mãos dadas, apertadas com intensidade.
Dobraram em uma esquina e foram parar em uma clareira circular de
tijolos alaranjados cercada de árvores altas. Não havia outra entrada ou saída
daquele lugar senão por onde chegaram. No centro havia uma estátua grande
de pedra talhada, a figura de uma mulher seminua coberta por um fino tecido
esculpido com perfeição ao redor de seu busto.
Ela parecia querer tocar o céu na ponta dos pés, um braço estendido e o
corpo angulado, a cabeça pendia para trás no que parecia um êxtase de
inspiração. Gabe arfou vendo o sol que entrava aos poucos ali iluminando a
mulher estática.
— Que... Lindo... — o moreno disse caminhando em direção a ela.
Esticou as mãos e tocou na pedra escura sentindo-a muito fria.
Felipe abriu o tripé e o ajustou no ângulo de frente para a figura
feminina. Após isso, começou a definir configurações na sua câmera:
— Preciso que me ajude em algo, pode ser?
Gabe se virou e o observou inclinando a cabeça um pouco na direção
do ombro, não sabia nada sobre fotografia para ajudar realmente em algo.
Esperou ali sendo mirado pela máquina que era encaixada no tripé pelo
ruivo. Eles se entreolharam, o fotógrafo e sua musa. A estátua de
testemunha. Felipe continuou:
— Acha que pode dançar?
Silêncio.
Gabriel sentiu seu rosto aquecendo rapidamente a ponto de doer, ele
visou o chão tentando respirar normalmente, sem sucesso. Enfiou as mãos
nos bolsos e abriu a boca algumas vezes sem conseguir formular uma
resposta. Sentiu a presença do ruivo que agora estava à sua frente.
Ele levantou a face alheia com as pontas dos dedos e se aproximou
abraçando-o. Respirava o cheiro doce que vinha de seu pescoço, o corpo
quente de Gabe automaticamente o envolvendo também. Os dois se
apertaram ali enquanto a brisa morna os envolvia.
— O que está acontecendo? — o moreno perguntou sibilante, sua voz
estava fraca. Ele apertou o rosto contra o peitoral de Felipe com força — Eu
ainda não acordei? O que você quer de mim, Felipe? Isso também faz parte
do contrato? É por isso?
— Você está cheio de perguntas desde ontem, gatinho... — Felipe
sussurrou rindo rouco, beijou o rosto corado de Gabe obrigando-o a olhá-lo.
Segurava suas bochechas com as duas mãos em conchas. — Eu prometo que
vou responder o que puder, sim? Agora, só por uns instantes, dance para
mim.
Ele o soltou deixando-o ali trêmulo e vermelho. Parou por detrás da
câmera e pegou o controle disparador dela para manipular quando iniciaria a
captura, assim evitando qualquer imperfeição na imagem final. Desejava
fazer um efeito fantasma de Gabriel dançando àquela luz e ansiava
observando-o, atento.
O moreno negou com a cabeça sorrindo bobo e virou de costas
respirando fundo:
— Não prometo grande coisa.
O ruivo iniciou a captura de longa exposição ativando o obturador
quando Gabriel começou a se movimentar no ritmo do vento. Não havia
música, apenas o som da natureza quieta e espectadora de sua dança
alongada, os braços serpenteando. Girava devagar. Suas pernas faziam
alguns passos livres enquanto ele se deslocava, seu corpo todo em sincronia
com o que sentia.
Passava as pernas à sua frente e a puxava em um ângulo agudo, seus
braços equilibrando-o. Em seguida, sentiu seu corpo pender e espiralar
devagar como fumaça para trás, retornando em um suspiro concentrado.
Dialogava silencioso com o que Felipe gritava dentro de si, seus sentimentos
em sincronia numa conversa longa e curta, paradoxal em sua poesia.
Os dois se entreolharam com a respiração descompassada quando Gabe
finalizou os passos simultaneamente ao momento que o outro acionou o
botão que finalizava a fotografia. Tudo que queriam dizer um para o outro
rodopiando como dentes-de-leão leves ao vento. Um fino e tênue elo
escarlate os ligando indefinidamente.
Gabriel percebeu que a fotografia já estava pronta e foi em direção ao
homem que o encarava estarrecido, o segurou com força puxando-o para um
beijo demorado. Eles se envolveram em um abraço quente, pressionando
seus corpos ansiosos, as forças do ruivo sendo despedaçadas pelas carícias
do menor, sedento e apaixonado, entrelaçados num só.
Mesmo fora do quarto onde dormiam, ainda se sentiam díspares do
resto da humanidade, arfando um contra o outro excitados como se
estivessem entre quatro paredes. O moreno o afastou com a expressão
cerrada e cruzou os braços de pirraça vendo o homem piscando com
dificuldade, atordoado pela dança encantadora e o beijo carregado de desejo,
sequioso.
— Você me deve algumas respostas — Gabriel disse em um tom bravo.
— Sim. Sim. Porque eu vi algo em você que não combinava com ele,
que merecia mais — o ruivo respondeu de um só fôlego.
— O quê?
— São as respostas para as perguntas que me fez ontem sobre o quarto
dos submissos.
O moreno bagunçou o cabelo irritado, não lembrava exatamente quais
eram as perguntas que encabeçaram aquelas respostas. Ele grunhiu e deu de
ombros.
— Vai me levar lá alguma vez?
— Para quê? — Felipe enfiou as mãos nos bolsos, tentando esconder o
quanto tremia. Desejava continuar aquele beijo por mais um tempo antes de
partir, mas ouvi-lo era tão prazeroso quanto.
— Bom, temos um contrato, né? Eu sou seu submisso e eu nem
conheço o tal quarto dos submissos. — O moreno fez um muxoxo
desanimado. — Tem algo de especial lá?
Felipe deu uma risadinha rouca.
— Não, gatinho, é um quarto desabitado comum. Combina com o resto
da casa. Eu prefiro você no meu quarto.
Gabe o olhou boquiaberto, sentia-se sufocado com a sensação doce de
ouvir aquelas palavras. Ele virou o rosto timidamente tentando controlar
toda aquela enxurrada de emoções. Estava profligado por aqueles
sentimentos.
— O que mais quer saber? Ainda temos algum tempo antes de eu ir. —
Felipe continuou puxando-o pela barra da calça cáqui. Não suportava ficar
sem tocá-lo. Envolveu-o, olhando-o de perto, a expressão felina fechada
como em braveza. Sorriu de canto satisfeito vendo-o vacilar em se manter
estável daquela forma tão relutante.
— Por que saiu da Ordem?
Silêncio.
Felipe prendeu a respiração e ficou pálido, sentiu o gosto da bile em sua
boca pelo terror de lembrar os acontecimentos que envolviam aquele fato.
Não sabia como falar sobre isso e nem sabia se conseguiria organizar através
de palavras tudo que aconteceu sem expor cada detalhe de sua vida desde o
princípio. Suas dores e demônios se agitando em meio às sombras que ele
continha e fugia diariamente.
Ele puxou o ar e apertou o homem que abraçava, servia para ele como a
âncora que o prendia ao presente e evitava que fosse transportado ao passado
sombrio e obscuro. As dores de outrora continuavam tentando
insistentemente, em risadas demoníacas, dominar sua mente. Pigarreou
vendo que Gabe o observava de perto, analisando cada uma de suas reações
amedrontadas e vacilantes.
— Eu... Concluí tudo que eu queria e precisava fazer através da Ordem
— Felipe disse fracamente, tentava focar em ser o mais objetivo possível e
expor o mínimo de como aquilo ainda o afetava. — É tudo que posso falar.
— Tudo bem. Não precisa falar mais nada sobre isso se não quiser —
Gabe sussurrou o abraçando forte, apertando-o como um porto seguro,
firmando-o em um momento diferente e melhor. Infinitamente melhor.
Queria ser para ele um ponto de recomeço tal qual aquele homem o era para
ele.
Teve um calafrio sentindo-o respirar fundo em meio aos seus cabelos
negros, esfregando o nariz ali em um carinho leve e muito bom como quem
agradece aliviado. Ficou um tempo apenas sentindo a brisa e o efeito torpe
de seus afagos lentos quando Gabriel o afastou um pouco e apontou para a
câmera com um sorriso de canto, timidamente. Pensou em uma forma de
quebrar aquele clima tenso que havia surgido por conta do assunto delicado.
— Hum, eu posso tentar?
— O quê? Fotografar?! — Felipe arqueou as duas sobrancelhas
sorrindo empolgado, o moreno assentiu cruzando os braços com sua
expressão brava de sempre e deu de ombros. O ruivo riu baixinho e retirou a
câmera do tripé ajustando as configurações. — Claro, que tipo de foto quer
tirar?
O ruivo o envolveu por trás e colocou-a nas mãos de Gabriel, passou a
faixa de segurança em seus pulsos e posicionou exatamente como ele
deveria segurá-la.
— Uma foto comum. Mas eu quero ficar com ela para mim, pode ser?
— o moreno perguntou em um sussurro, a presença de Felipe ao seu redor o
desconcentrando.
— Se você quem tirou a foto, ela é sua. Aqui, você olha pelo visor,
assim. — Posicionou a câmera diante do rosto nele, abraçando-o em um
contato doce, seus lábios roçando ao pé de seu ouvido. Gostava muito da
sensação de ensiná-lo a usar sua câmera, como se entregasse a ele seu
próprio coração para que manuseasse. Os dois estremeceram sentindo a
excitação que corria quente de um corpo para o outro. — Você viu algo
bonito no caminho que queria registrar?
— Sim. Algo lindo — Gabriel disse quando Felipe o largou com a
câmera em mãos. Girou o corpo e deu alguns passos para trás apontando a
câmera diretamente para o ruivo. O homem teve um sobressalto sem reação
com aquela mira repentina e virou um pouco o rosto timidamente, sorrindo
sem graça.
O som do disparo rápido como um bater de asas foi seguido do moreno
sorrindo muito ao ver o belo resultado na tela. Ele sorriu em direção ao
homem que agora cobria os lábios com as pontas dos dedos muito
envergonhado, seu rosto aquecendo e tomando uma coloração intensa e
vermelha.
— Se eu quem tirei a foto, ela é minha. Você que disse — Gabriel falou
rindo e apertando a pesada máquina entre seus dedos como se realmente
segurasse o coração pulsante e delicado o qual havia tomado posse.
✽✽✽
O sol estava à pino do lado de fora, mesmo que nada além de sua
claridade fosse realmente visível. Aproximava-se da hora do almoço no dia
nublado e abafado, e as pessoas circulavam pelas ruas. O final de semana
havia chegado e com ele a aura ansiosa e agitada para acabar os turnos mais
cedo, desejando aproveitar um bom bar e bebidas no fim do expediente,
festas e diversão merecidas.
Gabriel entrou na academia irritado, o cenho cerrado em um mau
humor iminente, e foi assaltado por Josh o cutucando na cintura brincalhão.
Ele emitiu um som de desgosto e fuzilou o amigo com o olhar irritadíssimo.
— Vai se foder! Não enche!
— Nossa, o que aconteceu?! — o loiro disse rindo. Sentou-se divertido
em uma das máquinas de musculação, esparramado. — Todo bem arrumado.
Não dormiu em casa. Chegou atrasado... Mas está mal-humorado. Tem
alguma coisa que não está batendo.
O moreno revirou os olhos lembrando que depois de saírem da manhã
agradável no parque, Felipe foi duro em ordená-lo a não sair da academia
para lugar nenhum durante o dia. Ele deixou claro que Jonathan não parecia
mais ter feito nenhum movimento perigoso em sua direção, mas ainda assim
era importante precaver e manter a atenção em suas intenções.
O irmão gêmeo do ruivo parecia particularmente interessado em se
aproximar de Gabriel por ele soar como uma ameaça que incitava Felipe a
retornar à Ordem. Além disso, após ele ter invadido um território declarado
como inimigo por causa do moreno e ter iniciado com isso um processo de
negociação que envolvia apenas aquele homem com os Barbosa, Jonathan
demonstrou estar cada vez menos satisfeito com aquele contrato dos dois e
muito mais atento ao submisso do irmão.
Isso era perigoso, uma vez que ele tinha à sua disposição homens
armados e, segundo Felipe, uma sede por sempre entrar em conflito com o
gêmeo. Odiavam-se, isso era fato.
A maior problemática da fala de Felipe, todavia, não havia sido a ordem
expressa para ele não sair de casa ou se expor, mas sim sua fala seguinte
sobre seu trabalho fotografando ocupar toda a tarde e o início da noite.
Após isso, ao invés de ficar livre, ainda precisaria reunir-se com Carla e
Thiago novamente para discutir todo o plano de negociação com a família
inimiga que o pressionava para explicar a invasão na semana anterior. Por
causa disso, Gabriel ficaria sendo vigiado pelos subordinados do ruivo e, a
pior parte: não poderiam ficar juntos naquela noite.
O moreno sentia-se imerso em uma estranha sensação de vazio que aos
poucos foi convertida em ira e irritabilidade só de pensar em dormir sozinho
em sua casa após os dias que havia passado junto de seu dominador.
Estressava-se intensamente toda vez que lembrava que ao final do dia não
estaria com ele.
Tocou com as pontas dos dedos na coleira em seu pescoço. “Que idiota,
até parece que estamos juntos de verdade ou alguma merda assim” pensou
corando, a manhã muito leve e agradável que tiveram invadindo sua mente e
amaciando seu humor um pouco.
— Ei! Você não é de acessórios... Quando começou a usar esse? —
Josh saltou de onde estava e se aproximou de Gabriel. Arregalou os olhos e
abriu muito a boca dramaticamente cobrindo-a com as duas mãos — Não!
Foi o Felipe que te deu? Meu Deus! Vocês estão juntos para valer? Gabriel!
Gabriel volta aqui!
Gabriel agora marchava rapidamente com o cenho cerrado, suas
bochechas estavam muito coradas e ardiam enquanto ele seguia em direção à
sala de artes marciais. Sabia que naquele dia em específico teria apenas uma
turma de karatê então teria um dia entediante e solitário pela frente. Pensar
na noite era torturante. O loiro o seguia correndo e azucrinando sua
paciência.
— Não, já disse que não estamos em um relacionamento — Gabriel
falou enquanto puxava seu quimono do armário de ferro, sentiu seu corpo
implorando por descanso. Ainda estava exausto do dia anterior. Talvez
tirasse um cochilo depois do almoço e não descesse mais para trabalhar. Não
lembrava mais como ele conseguia passar os seus dias tão sem graça só
vendo o tempo passar, consumindo-o pelo ócio e monotonia.
— Então por que ele te deu isso? É algum tipo de código entre vocês?
— Josh perguntou sorrindo muito, sua mente divagava entre várias
narrativas engraçadas onde Gabe era o animal de estimação do homem
assustador. Ficava corado pensando naquilo. — Ele te pediu em namoro?
— Não! Não estamos namorando, Joshua! — Gabriel o olhou mal-
humorado. O amigo recuou ouvindo o nome completo e fez uma cara de
ofendido, afetado e rindo.
— Mas bem que você queria que estivessem! — o loiro disse revirando
os olhos e se abanando freneticamente com as mãos.
O moreno levantou a mão fingindo que ia bater no amigo e o loiro
correu rindo na direção oposta. Gabe riu um pouco se sentando no banco
longo que ficava encostado na parede e defronte com o tatame, tirou a
coleira e a enrolou no pulso ajustando a fivela, não queria ficar distante
daquilo nunca, se pudesse não a tiraria dali em diante.
— É só... Complicado, Josh. Às vezes parece que ele gosta de mim...
Mas depois ele fala umas coisas, e age como se não fosse bem assim. Eu não
tenho certeza sobre como ele se sente. Isso está me matando — reclamou
baixinho, quase não havia som em sua voz mortificada e hipnotizada pelo
objeto que encarava. Josh se aproximou e o olhou muito sério do tatame com
os braços cruzados.
— Mas e você? Digo, você não é a pessoa mais aberta do mundo
também, não é? Você já falou como se sente? Talvez ele tenha a mesma
sensação que você.
O rapaz sentado não tirava os olhos da peça enrolada em seu pulso,
deslizava a ponta dos dedos na textura do couro grosso e bem costurado
sentindo seu coração batendo muito forte dentro do peito.
Havia passado tanto tempo apaixonado por Josh. Viu aquele sentimento
nascer e se perder, mesclando-se na conformidade do que nunca aconteceria
e esfriando até sumir dentro de si. Viu-se tentando se envolver com outras
pessoas, violentando-se, literalmente, cada vez que era dominado pela
frustração. Sempre se sentia errado e doentio com seus desejos e
necessidades sombrias.
Encontrou-se, contraditoriamente, ao estar perdido em meio a esse
caos: tornara-se autossuficiente e indiferente a qualquer outra pessoa que
tentasse se aproximar, justamente pela ideia de que nunca acharia alguém
bom o suficiente. Isso o tornou, indubitavelmente, arrogante. Desaprendeu a
dizer como se sentia porque não via necessidade em ser honesto sobre isso
com ninguém.
Felipe era para ele como um tiro certeiro de olhos vendados:
improvável, perigoso. Seus ossos doíam pelo sentimento assustador que
nascia com a sensação de queda constante quando percebia quão apaixonado
estava por aquele homem. Cobriu o rosto sentindo sua respiração
descompassada.
Sabia que ele também tinha suas razões para ter tanta dificuldade em se
expressar e, por isso, às vezes falava de forma a soar indiferente e frio
mesmo quando seus olhos gritavam o contrário. O ruivo era um péssimo
mentiroso, mas ainda assim um mentiroso. Tentava sempre que possível
evitar demonstrar o que realmente se passava em sua mente e,
principalmente, em seu coração.
Gabriel levantou-se em um salto segurando o quimono e afastou tudo
que pensava, sentindo a náusea forte que era causada por saber que não
conseguiria evitar aquelas ideias e suposições durante todo o dia, noite e
madrugada longe de seu dominador. Felipe era viciante, seu cheiro e voz, a
sensação do seu toque e sua risada: desejava-o imediatamente e em todos os
momentos.
Josh encarava o moreno que seguia para o banheiro sem respondê-lo e
negou com a cabeça: “o quanto vocês ainda precisam se machucar para
aprender a conversar?” pensou em um suspiro.
A turma havia acabado de ser dispensada e fazia a reverência em
respeito ao tatame antes de sair dele um por um. Gabriel massageou os
próprios ombros olhando o relógio na parede: o dia estava passando muito
mais devagar que o comum, aquela aula parecia que tinha durado uma
eternidade, arrastando-se.
Mesmo que já estivesse entre o entardecer e o anoitecer percebia que a
madrugada seria muito longa revirando-se na cama, previa aquilo com
certeza de que seria um fato. Cada vez que treinava sentia menos vontade de
treinar. Queria dançar. Colocar para fora todos aqueles pensamentos
agonizantes em seus movimentos.
— Eu conheço esse olhar. Você está pensando em ir na Lizzo ensaiar,
não é? — Josh disse em um suspiro e o moreno desviou o olhar do relógio
da parede assustado. Era aquela a razão que fazia ele sempre confiar no
amigo sobre seus julgamentos: ele quase nunca errava, era realmente muito
bom em ler as pessoas e compreendê-las. — Se toda vez você se sentir
cansado assim aqui, deveria parar e ficar só na dança, Gabe. Eu já disse que
dou conta das turmas sozinho se eu me organizar. Não é porque treinamos
juntos desde sempre que precisamos continuar assim o resto da vida.
— Eu gosto do karatê, não é bem assim — Gabe falou bagunçando o
cabelo irritado. O loiro apertou os olhos analisando-o, sabia que ele não
estava bem.
— De qualquer forma, saiba que você é livre para só dançar se quiser.
Eu sempre te disse que deveria começar uma turma de dança aqui na
academia, ou só ficar na administração e focar em dançar só na Lizzo —
Josh incentivou empolgado. — Você sabe que eu não consigo parar com isso
aqui, eu amo lutar e você devia seguir o que ama fazer também.
Gabriel deu de ombros. Odiava aquela inédita sensação de reviravolta
cada vez mais constante na sua vida. De repente, ao se descobrir mais livre
por conta do relacionamento que estava envolvido com Felipe, sentia cada
vez mais necessidade de fazer as coisas que nunca havia feito por si mesmo.
Josh percebeu que o amigo não queria se aprofundar no assunto e
estalou a língua desistente, continuou:
— Bom, e o que vai fazer agora à noite? Está livre? — o loiro
questionou.
— Vou me trancar em casa e dormir. Por quê? — Gabriel falou fulo.
Estava acuado por causa de Jonathan e da superproteção de Felipe.
— Amanhã é aniversário da tia Sofia! Eu preciso comprar um presente
para ela. Eu queria saber se você pode me ajudar? — Ele fez um beicinho e
agarrou Gabe pelo braço, sacudindo-o em súplica — Por favor, por favor!
Vamos lá comigo? Eu sou péssimo em escolher presentes, você sempre
pensa em algo simbólico e marcante enquanto eu nunca consigo decidir o
que dar! Por favor! Diz que sim? Sim?
O moreno revirou os olhos, empurrando o amigo do toque excessivo. A
tia de Josh foi a pessoa que o acolheu e o criou como uma mãe depois que o
pai dele o expulsou de casa da pior forma possível. Ela era dona de um salão
de beleza e era a pessoa mais doce do mundo, a mãe de Gabriel e ela eram
amigas muito próximas.
— Não posso sair daqui. — Gabe estagnou sem saber exatamente como
explicaria aquilo a Josh. — Quer dizer... É melhor eu ficar em casa hoje.
Josh continuou insistindo sem perceber aquela fala, agarrando-o
novamente, e Gabriel teve uma ideia repentina: talvez se saísse só por um
instante com o amigo para o shopping, de carro, não poderia acontecer nada
demais. Felipe possivelmente nem saberia se ele fosse rápido o bastante para
entrar no veículo antes de ser visto por seja lá quem que o estava vigiando e
ir.
Pensou na possibilidade e sentiu seu coração martelando pelo medo de
ser pego pelo ruivo naquela desobediência. Também pensou que se isso o
irritasse suficientemente poderia acabar instigando-o a ir atrás dele. Corou
com a possibilidade.
Sentiu-se infantil com aquela tentativa de chamar atenção daquele
homem e concordou com o amigo contrariado já sabendo que o culparia
integralmente se algo desse errado. No máximo, pensava, o seu dominador o
castigaria como sempre, punindo-o pela sua rebeldia.
O moreno saiu da academia e subiu para sua casa pelas escadas
espiraladas do lado de fora, olhou ao redor procurando quem poderia vigiá-
lo e de onde. Não via nada de diferente na paisagem, as pessoas que
andavam despreocupadas pela rua eram tão comuns quanto os carros e todo
o resto.
Ele deu de ombros subestimando os seus protetores e o perigo que
poderia estar correndo, entrou na habitação pequena despreocupado, tomou
banho e vestiu-se pronto para sair. Guardou as roupas extravagantes que
havia ganhado de Felipe e colocou a calça larga de moletom cinza que
gostava, além de uma camiseta preta que colava em seu corpo e o casaco
xadrez.
Como seu allstar havia ficado na casa do ruivo, precisou usar o tênis
que havia ganhado mais cedo e deu de ombros pensando que ele era muito
bonito, afinal. A composição foi finalizada pela coleira negra que ele
colocou orgulhosamente no pescoço marcado, sentindo-se mais próximo de
seu dono assim.
Desceu olhando ao redor novamente e viu o loiro na entrada do
estabelecimento o esperando, ele havia tomado banho no banheiro da
academia e cintilava com seus trajes sempre claros e alegres. Josh sorria
empolgado, tagarelando sobre a festa surpresa que estavam planejando fazer
para a tia, no salão mesmo, e sobre os detalhes minuciosos da decoração que
ele estava empenhado em organizar com Joana, a irmã de Ron, e Guilherme,
seu primo.
Os dois entraram no carro cinza, Josh ao volante. Gabriel não conseguia
parar de pensar que estava novamente desobedecendo uma ordem expressa
de Felipe e apertou o celular entre as mãos, preocupado. Digitou uma rápida
mensagem enquanto sentia o amigo dirigindo em direção ao centro.
VOCÊ
“Eu sei que disse para eu não sair, mas o Josh precisa de uma ajuda
em algo e eu não pude negar. Sinto muito.”
✽✽✽
Você merece mais. Muito mais. Alguém que entenda o valor desse sorriso e de
seus presentes. Avise-o para voltar a fazer fotografias ruins e ficar longe da Ordem e
do meu sistema. Eu não vou ser benevolente na próxima vez.
— J.
J.
“O que eu deveria fazer com seu 0day desprotegido?”
✽✽✽
✽✽✽
MESTRE
“Assim que você estiver pronto para ir, um carro vai te buscar. Um dos
meus homens vai te levar em segurança”.
VOCÊ
“Só aceito a carona de outra pessoa contando que seja você quem me
busque mais tarde.”
✽✽✽
MESTRE
“Já está bem cheio. Não se preocupe com nada, você está seguro.
Estou aqui. Boa apresentação, gatinho.”
✽✽✽
✽✽✽
✽✽✽
✽✽✽
VOCÊ
“Faça o Barbosa permitir que o Draco saia dessa vivo e sem
nenhuma informação sobre a nossa negociação e eu vou ceder na
cláusula 20.
Você vai ter todos os territórios de volta. Daqui em diante eu
prometo controlá-lo e fazer ele desaparecer de novo para o plano
voltar como estava.
O que me diz?”
CAPÍTULO XVIII
✽✽✽
✽✽✽
O dia passou mais rápido do que o esperado. Gabriel e Josh haviam
combinado de irem juntos para o clube da Lizzo e, durante o caminho todo,
Gabe precisou ouvir o amigo comentando sobre sua aparência muito cansada
e aconselhando-o, repetidamente, a não se esforçar demais.
O moreno deu de ombros, descansando a cabeça pesada no vidro da
janela ao seu lado, dessa vez não discutiria contra a razão e não revisou a
coreografia durante o resto do dia. Escutava a música que dançaria no fone
enquanto via os rapazes conversando e rindo entre si ansiosos pelo Pride,
planejando as muitas coisas que ainda precisavam organizar para a festa.
Conforme as horas passavam, Gabriel sentia seu coração cada vez mais
apertado e ansioso, temendo com a exposição que se submeteria naquela
noite. Não conseguia comer ou relaxar e demorou mais no banho que o
comum, encarando a água esvair-se pelo ralo.
Fortes calafrios percorriam a sua espinha, mesmo que não
transparecesse através de sua aparência. Estava muito elegante com os
cabelos negros desalinhados e a coleira em seu pescoço, seu corpo forte e
sensual realçado pela transparência de suas vestes. Além disso, Josh insistiu
em marcar seus olhos com uma sombra escura para combinar com a
composição, fazendo um esfumado anguloso rente os cílios densos,
destacando seu olhar felino.
Gabriel estava verdadeiramente deslumbrante e corou um pouco ao ver-
se pelo reflexo. Enrolava o máximo que podia quando dispensou o convite
para descer ao clube, dizendo que revisaria a coreografia ali, na casa de
Lizzo. Os outros poderiam seguir sem ele para o ambiente já lotado durante
a noite que caía avançada.
Mal conseguia respirar agora.
Ficou em silêncio, no escuro, mordendo o lábio com muita força,
bloqueando e desbloqueando a tela de seu celular. Os olhos dourados do
homem na fotografia aberta pressionando-o ao seu limite. “Por favor,
entenda… Eu estou apaixonado por você, seu idiota.”
✽✽✽
✽✽✽
Felipe parecia preso ao chão e piscava vagaroso. Seus lábios eram uma
única linha reta e seu maxilar protestava, travado ao seu máximo, contendo a
emoção revolta que lamuriava dentro de si, rogando por liberdade.
Ele mal conseguia respirar enquanto era açoitado pelos calafrios que o
tomaram desde o primeiro momento que havia visto Gabriel ali.
Acompanhar os movimentos do dançarino era como ver uma pintura, uma
fotografia. Decifrar um poema ou ouvir uma canção. Havia interpretado cada
tremor, cada hesitação, cada passo.
Não podia negar para si mesmo. O que havia visto era a declaração
mais linda que já havia presenciado na vida. E ela havia sido para ele, só
para ele. Sentia que ia explodir de alegria. Estava estático pelo regozijo de,
pela primeira vez em toda sua existência, entender, mesmo que
minimamente, sobre como se sentia sem temer por isso. E sentia
reciprocidade.
Compartilhava da mesma emoção daquela coreografia, da sensação de
batalha e de derrota declarada. Estava entregue e desejava aquele homem em
sua vida verdadeiramente, caminhando ao seu lado, mesmo que não
soubesse de fato o que aquilo significava. Estava disposto a descobrir.
Carla parecia sufocada e olhou assustada para Thiago, que assentiu
satisfeito, observando o amigo. Ele sorriu e indicou o ruivo com a cabeça.
Felipe parecia congelado mesmo que todo alvoroço da boate já tivesse
voltado ao normal.
A morena apertou o ombro dele, puxando-o para sair do transe, e Felipe
a olhou com os olhos marejados e brilhantes, sem conseguir esconder nada.
Ela sorriu doce e apertou o braço dele mais ainda.
— Vai atrás dele, Felipe. Vai agora — ela disse firmemente.
O ruivo negou com a cabeça, tentava se mover, mas não conseguia.
Suas pernas tremiam muito e quase tropeçou tentando dar um único passo.
Negou com a cabeça de novo, os olhos vidrados.
Thiago segurou o outro ombro do amigo, ficando lado a lado com sua
esposa. Fitou os olhos cor de âmbar firmemente.
— Já chega de fugir disso. Todos aqui são testemunhas. Isso foi lindo,
Felipe. Esse cara é perdidamente apaixonado por você. E a gente consegue
ver que você sente o mesmo por ele — Thiago falou apertando o braço do
amigo.
Felipe engoliu com dificuldade. Suas mãos pareciam anestesiadas pelos
tremores que mais pareciam vibrações intensas. Seu corpo todo ardia.
Olhava para Thiago e depois para Carla tomando coragem e negou com a
cabeça de novo.
Cobriu o rosto com uma mão e riu rouco e baixinho em júbilo.
Memórias bobas e tão banais que compartilhava com Gabriel invadiam sua
mente em flashes macios como camurça. Estava nas nuvens enquanto sentia
os minutos passarem. Seus amigos o encaravam em expectativa,
incentivando-o a reagir.
— Vai logo, Felipe! — Carla repetiu animada.
O ruivo sorriu mais ainda com o peito tremendo. Enchia-se com um
fogo tenso de coragem. “Então era para isso que você precisava de
coragem…” pensou e riu, aceitaria aquela proposta. Aceitaria deixar suas
defesas caírem por ele porque sentia-se da mesma forma.
Ele estava prestes a avançar em correria atrás de Gabe quando seu
telefone vibrou repentinamente e insistente assim como o de Thiago. Os dois
se entreolharam tensos enquanto puxavam os aparelhos e visavam a mesma
mensagem urgente da equipe alfa responsável pela proteção de Gabriel.
RYU
“J. hackeou o sistema da equipe. Perdemos nossas comunicações e
visão. Ele está aqui!
ALERTA. ELE ESTÁ AQUI.”
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✽✽✽
A manhã havia despontado muito nublada, ouvia-se o barulho dos
carros e das pessoas que ocupavam as vias seguindo suas vidas
despreocupadas. Mesmo em dias ruins ou em dias comuns, a vida nunca
havia de parar.
Josh subiu as escadas segurando uma sacola com pães e outros
alimentos, não havia dormido bem à noite, preocupado com o amigo que
havia deixado ali na madrugada passada. Bateu à porta e o grande homem
ruivo abriu-a imediatamente, o cheiro de café recém passado emanava da
cozinha. Ele fez um sinal com o indicador sobre os lábios para fazer silêncio
porque Gabriel ainda estava dormindo.
— Eu trouxe comida. Como ele está? — Josh sussurrou entrando na
casa, entregou as sacolas ao ruivo. Viu que Felipe parecia muito cansado
com olheiras fundas e espiou dentro do quarto onde Gabriel parecia ainda
dormir deitado na cama. Felipe organizava tudo para levar café para ele na
cama.
— A febre abaixou no meio da madrugada. E depois ele dormiu bem.
Obrigado por trazer comida, me poupou de mandar alguém comprar — ele
respondeu espreguiçando-se um pouco em um bocejo, estava sem camisa e
seus músculos pareciam ter sido esculpidos em porcelana, sua pele muita
alva a ponto das veias esverdeadas se destacarem à luz da alvorada.
Josh desviou os olhos envergonhado, Felipe era realmente um homem
muito bonito e atraente.
— Ele ainda acordou ontem? Vocês conversaram?
O loiro caminhou em direção ao quarto e cruzou os braços quando viu
que o amigo levantava devagar e um pouco confuso com os sons da
conversa. Ele parecia perdido e um tonto, bagunçando o próprio cabelo.
Felipe assentiu, virando-se para a pia, e passou a preparar um pão para
Gabriel, já havia colocado o seu café e estava muito distraído e sonolento. O
moreno havia se levantado cambaleando e se apoiou no batente da porta
silenciosamente, observando o ruivo de costas em sua cozinha.
— Mais ou menos. Ele ainda está com raiva de mim — Felipe
respondeu à pergunta de Josh tristemente, sem notar que Gabriel o observava
da porta do quarto.
— Ele não parecia bem com raiva ontem. Mas pelo visto você quer
mesmo se acertar com ele, já que passou a madrugada toda cuidando dele. Já
decidiu o que você quer, afinal? Porque ele ainda acha que é só sexo — Josh
disse sorrindo.
Gabriel, que ainda estava muito sonolento, o olhou com os olhos
arregalados.
— Que porra você está falando? — Mexeu os lábios sem emitir
nenhum som.
O ruivo assentiu de novo e deu de ombros, apoiando-se na pia, abaixou
a cabeça e apertou os olhos. Não gostava de expor-se assim, mas estava
muito sufocado.
— Nunca foi só sexo para mim, Josh — Felipe murmurou enquanto
virava-se. Arregalou os olhos deparando-se com Gabriel parado à porta,
ouvindo tudo, e os dois se encararam profundamente. Outro flagra em menos
de 24 horas. Ele recuou um pouco, desviando o rosto corado.
Josh cobriu a boca rindo baixinho:
— Ah, entendi — o loiro falou para Felipe e voltou-se para Gabe. —
Bom dia, flor do dia. Pelo visto você está melhor e muito bem cuidado. Não
invente de aparecer na academia até não estar mais doente.
— Bom dia flor do dia, o caralho. Eu não estou doente, seu babaca. Eu
só precisava descansar — Gabriel retrucou. Ele viu a camiseta de Felipe
apoiada na maçaneta do quarto de onde saía e a pegou firmemente.
Caminhou até a direção do ruivo, empurrando-a no peitoral dele. — Vista-se
antes de receber alguém — sussurrou enciumado e um pouco corado.
Josh deu uma risadinha observando a forma como os dois se encaravam
e se preparou para sair.
— Pode até ser, mas ainda bem que o Felipe apareceu ontem ou a gente
ia acabar te dando dipirona ou te levado na marra para um hospital. — Josh
riu divertido. — Como eu te conheço há todo esse tempo e você nunca me
falou que é alérgico?
“Claro, ele leu as minhas anotações no contrato...” Gabriel pensou em
um sobressalto e encarou Felipe com os olhos arregalados. O ruivo pegou a
xícara em que havia se servido de café e, despreocupadamente, começou a
tomá-lo, encostado à bancada da cozinha com os braços cruzados, a blusa
pendurada sobre seu ombro largo. “Ninguém cuida de você como eu cuido”
Gabe lembrou das palavras de seu dominador na madrugada passada.
— Você sabe que eu quase não adoeço e odeio dar trabalho. Sei lá, eu
pensava que fosse uma informação inútil — Gabriel resmungou e deu de
ombros. O loiro riu de novo e assentiu abrindo a porta da entrada.
— Já que está tudo bem, eu estou indo então. E vocês dois...
Conversem. Até mais — ele disse entre risos e saiu.
Um silêncio tenso se fez entre o casal que se encarava na cozinha,
Felipe colocou a xícara sobre a bancada em um estalo. Não pôde se conter,
puxando o moreno pela barra da camiseta lentamente em sua direção.
O outro, por sua vez, não protestou aceitando o abraço morno que o
envolvia. A pele do ruivo tinha um cheiro muito bom e estava muito macia
ao toque. Gabe estremeceu em um miado baixo, enterrando o rosto em seu
peitoral enquanto Felipe beijava os cabelos negros alvoroçados em um
suspiro, uma das mãos dele checava em sua testa se ainda estava quente.
— Como está se sentindo? — ele perguntou baixo.
— Bem — Gabe assentiu e sussurrou, enquanto beijava o peito nu dele.
— Sobre ontem... — Felipe continuou.
— Tanto faz, já chega dessa merda. Eu já entendi que era tudo mentira
e eu não esqueci que você me prometeu que não vai mais falar aquelas
coisas. Cumpra com a sua palavra e ponto — Gabe retrucou, abraçando-o
firmemente. Os dois ficaram em silêncio.
O moreno se afastou um pouco e pegou a xícara que Felipe havia
colocado café para levar para ele na cama, sorriu um pouco e começou a
tomá-lo devagar.
— Depois que essa negociação acabar não vai precisar mais ver o
Jonathan de novo. Vai tudo voltar ao normal. Eu vou poder voltar com o meu
trabalho no jornal e não vai mais precisar se preocupar em ouvir as
baboseiras dele. Eu vou proteger você — o ruivo prometeu, ainda segurava a
barra da blusa de Gabe como se não quisesse se afastar muito.
O outro assentiu entendendo plenamente que era justamente esse o
problema que o gêmeo dele havia apontado na noite passada. Sentiu uma
angústia tensa em seu peito. “Eu não pertenço a esse mundo, então é claro
que ele sempre vai querer me proteger... O Jonathan está certo. Será que
realmente as coisas vão melhorar depois que essa negociação acabar? Se eu
continuar indefeso desse jeito, será que não teremos problemas maiores do
que o irmão dele?”, pensava em um lapso de insegurança. Afastou os
pensamentos tentando não expor aqueles pensamentos que o perturbavam.
Silêncio.
— Eu só tenho uma dúvida — Gabe disse olhando para o homem à sua
frente. Felipe inclinou a cabeça na direção do ombro, esperando-o
prosseguir. — Sobre nós, digo. Se não é só sexo... Se nunca foi... O que é,
afinal?
Felipe sorriu de canto e foi na direção dele lentamente, pressionava-o
contra a bancada com o corpo desnudo, a barra da calça era baixa e
convidativa com o volume evidente e inevitável desde que ficaram a sós.
Ele abaixou o rosto, mantendo os olhos presos nos de Gabriel, esfregou
o nariz em sua orelha, descendo pelo pescoço. Com a mão enfiou um dedo
entre a coleira que estava ali e o puxou por ela. Gabe gemeu segurando firme
a xícara com as duas mãos.
— Temos um contrato, gatinho, isso é fato. Até porque esse é o único
tipo de relacionamento que eu conheço. Mas além disso, e mais importante...
Você é meu — Felipe disse rouco. Beijou a base de seu pescoço e deu uma
chupada leve ali fazendo o moreno arrepiar-se intensamente. Ele subiu
deslizando o nariz pela sua pele, respirava o cheiro próprio que se mesclava
com o do café. Parou diante dele encarando-o de perto, seus lábios quase se
tocando. — E eu sou seu. O que mais eu poderia dizer?
Gabriel revirou os olhos em um suspiro aliviado e colocou a xícara na
bancada, as sobrancelhas franzidas. Ele fez um biquinho sorrindo de canto
provocativo quando jogou os braços ao redor do pescoço de Felipe.
— Nada. Eu estou satisfeito com isso por enquanto — Gabe concluiu
puxando-o mais na sua direção, quase beijavam-se agora muito próximos. —
Acabe de vez com essa merda de negociação porque eu não vou encerrar
com esse contrato só porque aquele babaca quer. Se eu ver a cara do seu
irmão na minha frente de novo, eu vou socá-lo não interessa quantos
atiradores estejam me mirando. Entendeu?
Felipe teve um calafrio com a ideia de ele ser alvejado e negou com a
cabeça.
— Não brinque com coisas sérias, Gabo.
— Ah, Lipe, brincar com coisas sérias é exatamente o que eu mais
gosto de fazer — Gabriel disse sem pensar e estagnou inseguro, nunca havia
o chamado daquela forma antes.
O ruivo apertou os olhos sentindo-se imensamente excitado com aquilo,
prendeu os lábios e puxou o ar com força. As suas mãos agarraram a cintura
de Gabriel quando ele avançou para beijá-lo. Mergulhou em sua boca
sentindo o gosto doce e único do café em sua língua.
— Me chame assim de novo — Felipe disse muito excitado através do
beijo ardente. O moreno gemeu envergonhado, negando com a cabeça.
Sorriam satisfeitos e muito bobos. — Por favor, só mais uma vez.
— Não! — Gabe retrucou o agarrando. O ruivo grunhiu mal-humorado.
— Por favor — sussurrou de novo enquanto beijava sua bochecha e descia
os beijos estalados e múltiplos pelo seu pescoço. — Por favor —, repetiu.
Ninguém nunca o havia chamado daquele jeito, por mais óbvio que
fosse. Ninguém tinha essa coragem. Felipe sentia-se único no mundo, uma
felicidade intensa o invadia aliviando seus músculos e relaxando toda a
tensão e medo que ainda restavam desde os acontecimentos da noite passada.
Gabriel o afastou com a face mal-humorada de sempre.
— Sai, eu vou tomar um banho antes de comer. A febre passou e eu
estou suado. Me larga.
Felipe obedeceu a contragosto e fechou a expressão, totalmente irritado.
Ele se encostou na bancada pegando sua xícara de volta e tomou um bom
gole do café tentando se acalmar. O moreno fugiu dali caminhando em
direção ao quarto lentamente, sentia os olhos dourados pesados sobre ele
quando virou, à porta, olhando-o provocativo em um convite sensual. Sua
voz era arrastada e muito rouca, manhosa, ele estendeu a mão na direção do
ruivo:
— Ei, Lipe, vem tomar um banho comigo.
Um baque alto da xícara de Felipe na bancada se ouviu. Ele avançou no
moreno muito rápido, estava completamente possuído pelo desejo que aquilo
o causou. Segurou sua mão e o empurrou para dentro do quarto beijando-o
muito excitado.
— Gostoso — sussurrou quando o suspendia no seu colo. Ainda
precisava suá-lo um pouco mais antes de realmente permitir que tomasse um
banho.
CAPÍTULO XXI
✽✽✽
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✽✽✽
No dia seguinte, Gabriel tomava o café sentado no sofá sem tirar os
olhos do quarto que vivia trancado. Felipe, que estava ao seu lado, roçava os
dedos lentamente na coxa desnuda do moreno. Rodeava um dos roxos
densos que tinha ali, na parte mais interna onde ele havia mordido durante a
madrugada, e sorria bobo sentindo a textura daquela pele, distraído.
Gabe sentiu um arrepio com aquele toque e suspirou, indicando a porta
com a cabeça.
— Você realmente nunca vai me mostrar esse quarto? — perguntou
mal-humorado, seu cenho estava cerrado enquanto bebia seu café segurando
a xícara com as duas mãos. Parecia uma criança birrenta.
Felipe olhou para a porta fechada e deu de ombros. Ele se levantou e
colocou a xícara que segurava sobre a mesinha de vidro no centro da sala.
Esticou a mão na direção de Gabriel em seguida.
O moreno o encarou apertando os olhos na sua direção e colocou a sua
própria xícara ao lado da dele. Levantou ignorando a mão estendida e cruzou
os braços. Felipe riu daquela malcriação e foi até o quarto silenciosamente,
já havia tempo que não trancava aquela porta deixando-a sempre apenas
fechada para caso ele um dia simplesmente quisesse entrar. Segurou a
maçaneta e voltou-se para o submisso que o seguia enquanto a abria.
— Eu já disse que não é nada demais, Gabo. Mas se você quer... —
Felipe disse enquanto abria a porta.
Gabriel surpreendeu-se com o fato dela estar destravada e entrou,
curioso, no cômodo.
Era realmente um quarto como todo o resto da casa, acinzentado e
desabitado. As paredes pintadas em um tom pálido de marfim. Havia uma
cama grande de dossel com estrado vazado no teto bem parecida com a do
quarto de Felipe, mas havia algo de muito frio e indiferente nas cobertas
cinzas perfeitamente esticadas e intocadas sobre ela, além da ausência de
mesas de cabeceira.
De frente à entrada do quarto, a parede era toda coberta por espelhos do
teto ao chão que os refletiam dali, e a cama encostava-se nela. À direita
havia a porta que dava para o banheiro da suíte. Gabriel foi até ele e checou
brevemente que era comum, sem banheira, apenas uma ducha e pia com
armários. A única semelhança deste com o outro era os espelhos que,
igualmente, cobriam toda a parede.
Não havia nada nas prateleiras, tudo parecia limpo e claro como se
ninguém nunca tivesse usado aqueles cômodos conjugados. A parede à
esquerda era lisa e neutra enquanto que ao lado da entrada, havia uma
cômoda pequena feita de uma madeira pesada com quatro gavetas grandes.
Fora a primeira, todas as outras três estavam vazias.
Nessa primeira gaveta, estavam organizados vários chicotes e peças de
açoite, além de algemas e punhos de corda. Não eram os brinquedos que
normalmente Felipe usava com ele, tudo que era exclusivo de Gabriel estava
no outro quarto, sendo raras as vezes que o ruivo usou com ele utensílios que
já havia usado com outros submissos. Ele sempre fazia questão de oferecer a
ele tudo com exclusividade.
Gabe fechou a gaveta satisfeito e suspirou, caminhando em direção à
sacada ao lado da porta do banheiro. Era uma janelona de vidro idêntica à do
quarto ao lado, coberta por uma cortina cinza esvoaçante que bloqueava a
luz matinal.
Ele deslizou os dedos no tecido que rodopiava reparando no detalhe que
mais havia gostado naquele quarto: o chão era de madeira laminada e era
muito silencioso e lustroso. Sorriu um pouco enquanto deslizava os pés no
solo morno.
Diferente do quarto ao lado que era de porcelanato muito frio e
precisava do carpete, aquele ali não precisava de nada para ser
aconchegante. Era um piso perfeito para ficar diretamente nele.
— Esse quarto tem o piso perfeito para dançar. E o espelho também é
conveniente... Parece um pequeno estúdio de dança se tirar a cama —
Gabriel comentou distraído segurando firme o tecido. Felipe o observava
silenciosamente. — O sol da manhã bate aqui… Com certeza refrata no
espelho, quer ver?
Ele puxou as cortinas completamente, em um movimento rápido, e a
claridade entrou no cômodo. Pequenos feixes coloridos se projetaram no
chão e pelo pé da cama: parecia um show colorido e lindo de arco-íris,
alguns se espalhando nas pernas dele.
Felipe abriu um pouco a boca incrédulo, estava encantado. Em seguida,
o moreno caminhou sorrindo até a cama onde se sentou, ele bateu no espaço
ao seu lado convidando o homem que se aproximava devagar.
O ruivo se sentou e o imitou quando ele se deitou. Os dois ficaram
deitados, lado a lado, com as pernas para fora da cama, em silêncio,
encarando o estrado vazado do topo da cama de dossel. Alguns dos raios
coloridos se espalhavam pelo teto também.
Felipe sentiu seu coração palpitando, podia se lembrar das pessoas que
já havia trazido para aquele cômodo, a maioria apenas para suprir sua
necessidade de sexo violento ou apenas seu sadismo incontido e libertino.
Mesmo tendo estado ali com um par de submissos, nenhum deles nunca
havia falado sobre o piso. Ninguém parecia tão interessado em detalhes
sórdidos como a luz do sol e a beleza da refração dela pelo espelho.
— Eu nunca tinha visto... Esse quarto por esse ângulo — Felipe
sussurrou, ecoando seus pensamentos sem notar. Gabriel riu baixinho,
gostando daquele tom.
— Você deve ter trazido muitos submissos para cá — Gabriel falou
divertido e imediatamente se arrependeu, perdendo o sorriso que tinha na
face. Ele suspirou sentindo muito ciúmes, seu estômago doía com aquela
sensação ácida. — A Carla disse que você é o tipo de dominador que faz os
seus submissos te odiarem. Mas sinceramente eu tenho certeza que não é
bem assim.
Felipe engoliu em seco, estava incomodado com aquele assunto e um
pouco envergonhado. Gabe continuou depois de um tempo:
— Algum deles já pediu para voltar depois que o contrato acabou? — o
moreno perguntou apertando os olhos para o teto, encarava um dos pequenos
arco-íris trêmulo que cintilava ali.
— Hum, sim... — Felipe respondeu timidamente, com sinceridade. Sua
voz era fria, mas ele estava muito tenso com aquela situação.
Gabe deu uma risadinha amarga.
— Viu? Eu disse. É impossível não gostar de você. Mesmo que você
trate alguém mal, tem... Alguma coisa no seu olhar que sempre faz não
querer sair de perto de você.
— Eu não acho que seja bem assim. Normalmente ninguém queria ficar
realmente perto de mim antes... De você — Felipe retrucou devagar, ele
queria desfazer aquela ideia boba e idealizada de que ele era alguém bom e
admirado. Tentava se explicar fitando o teto com os olhos apertados. —
Sempre que pediam para reavivar um contrato, normalmente eram submissos
que estavam com o ego ferido por eu tê-los dispensado, ou simplesmente
obcecados pela imagem que inventavam de mim por boatos. Muita gente
achava que eu ia virar o grande líder então... Só começaram a querer se
aproximar quando isso começou a se espalhar.
Ele virou devagar e fitou o perfil de Gabe que ouvia concentrado a sua
voz, parecia muito imerso nos próprios pensamentos enquanto respirava
devagar e mordendo o lábio. Felipe analisava cada detalhe da pele castanha
perfeita e de seu nariz arrebitado destacando os lábios desenhados. Suspirou
apaixonado por aquele rosto lindo.
— Ainda acho que todos eles te amam. Parece que você fez algo
incrível o suficiente para te verem como herói — Gabe disse em um sussurro
e virou o rosto também, os olhos dourados o observavam de muito perto e
ficaram assim. Felipe sentia o ar fugir com aquela encarada e desejou beijá-
lo.
O ruivo negou com a cabeça devagar.
— Boatos. O que eu fiz foram coisas horríveis o suficiente para me
tornar um vilão... E ninguém nunca amaria de verdade um vilão, uma pessoa
realmente má.
Silêncio. Gabe apertou os olhos e sorriu olhando para ele.
— Sabe, eu sempre acabo pensando... O que é uma pessoa má, afinal?
O que é um vilão? Todos nós fazemos coisas boas e ruins o tempo todo,
Felipe. Não somos idealizados e perfeitos. Somos falhos. Até o conceito de
bom ou mau é falho. O que é bom para mim pode não ser pra você. O que é
mau para você pode ser ótimo para mim. — Gabriel voltou a olhar para o
teto, parecia muito reflexivo em seus pensamentos filosóficos. — Além
disso, isso de bem e mal varia com o tempo e com o espaço. Varia com as
pessoas e suas infinitas possibilidades, realidades e percepções. Não é?
O ruivo arqueou as sobrancelhas com aquela análise inesperada. Não
conseguia parar de olhar para ele.
— Isso significa que você acha que não existe bem ou mal? — Felipe
questionou em um sussurro.
— Não, não é isso. Definitivamente eu acho que existe algo mais ou
menos definido sobre isso. Mas não tem como afirmar que algo é totalmente
mau ou totalmente bom sem considerar muitas variáveis. Fora o fato que,
mesmo que haja a confirmação de que algo é bom ou ruim, não deveria
existir um julgamento definitivo disso. Para mim é muito óbvio que existem
sim coisas que são mais ruins que outras e isso é o que o senso comum faz,
mas não adianta de nada eu julgar tudo no mundo, todos do mundo, em
todos os tempos e realidades, segundo essa minha própria régua moral.
Tampouco adianta eu tentar me julgar para sempre baseado só nos erros que
eu cometi como se eu fosse feito só deles.
Gabriel puxou o ar e continuou falando, tagarelava sem perceber como
fez muitas vezes naqueles dois dias. Felipe adorava ouvi-lo, sua voz doce e
enérgica enquanto estava empolgado e concentrado. Era brilhante de tão
inteligente e complexo em suas opiniões sempre incisivas. O moreno
continuou:
— É por isso que não acredito em vilões, sabe? Isso depende tanto de
que lado da história estamos. E cada um age conforme o que sua realidade e
individualidade o direciona para agir. Faz o que acha mais correto e está
passível de cometer erros e se redimir. Todos merecem se redimir. Até o
mais atroz merece sua redenção nem que seja através da morte, é o que eu
acho. Mas quem é que pode definir que a morte é a forma certa de alguém se
redimir? Esse é o ponto. — Gabe virou de novo dessa vez com os olhos
apertados em foco, invadia Felipe através de suas pupilas dilatadas em
prazer. Falava firmemente e devagar. — Bem e mal, herói e vilão, e,
principalmente, o julgamento definitivo de destino fadado para cada lado
dessa moeda cruel é resultado da ideia triste de que temos alguém, ou algo
superior que nos julga, você não acha? Essa ideia está tão entranhada em nós
que acaba nos permeando, ficamos cegos achando que somos nós o juiz e o
algoz, que podemos definir, segundo os nossos parâmetros, o que é certo e
errado e qual a melhor punição para cada dissidente. Fazemos isso inclusive
com nós mesmos, um rio de julgamento.
Felipe estava corado. Não conseguia controlar o coração tão acelerado
que mal parava de piscar em nervosismo. Olhou para o teto a fim de fugir
daquela encarada profunda. “Como água, você invade tudo... tudo...” foi um
dos muitos pensamentos que ecoaram em sua mente atordoada.
— Mas... Existem erros imperdoáveis, Gabo. Coisas que nunca
deveriam ser feitas. — O ruivo pigarreou. — E nem sempre existe
julgamento para esses erros até eles caírem no esquecimento. E algumas
coisas são impossíveis de esquecer e perdoar. Tentando julgar podemos
acabar sendo piores que quem cometeu o erro no início. É um ciclo sem fim.
— Sim. Eu concordo, principalmente na parte do “tentando”. Estamos
sempre tentando, Lipe... — Gabriel falou. Percebeu o momento que ele
piscou devagar, suspirando, ao ouvir o nome dele sendo dito daquele jeito.
— Mas se formos pensar bem, talvez a justiça não exista, e sim, no máximo,
a aplicação de julgamentos baseados em uma regra moral e uma sombra
ética mais ou menos acordada pela maioria das pessoas. E é uma tentativa
passível de falha. Dentro dessa complexidade, fica muito difícil escolher
lados sem ceder à hipocrisia.
Gabe continuou olhando para Felipe, procurando o olhar dele que
agora, fugitivo, repousava protegido pelas pálpebras. O ruivo estava tão
corado que era possível ver a coloração que se misturava com a do cabelo
em todas as suas bochechas e até orelhas. Gabriel continuava falando
devagar.
— Você disse que ninguém amaria de verdade um vilão. Eu não sei
sobre as outras pessoas, mas eu acho que se apaixonar é diferente de amar.
Quando nos apaixonamos não temos escolha, é um sentimento arrebatador,
uma sensação. E ela passa, apesar de sempre poder ser reavivada. Agora o
amor... o amor é uma escolha. É justamente escolher reavivar a paixão,
manter-se apaixonado. E principalmente manter-se ao lado de alguém,
independentemente de tudo. — Gabe deu uma risadinha boba ao reparar na
coloração cada vez mais intensa naquele rosto que visava.
Felipe parecia surtar internamente esforçando-se muito para manter-se
na sua expressão fria e serena, seus lábios tremiam em uma profusão de
pensamentos atordoados e confusos. O moreno prosseguiu:
— Falando por mim, não acho que eu conseguiria evitar amar alguém
seja essa pessoa boa ou má. Ao amar não estamos aplicando regras morais.
Não somos inquisidores no amor. Julgamentos não cabem. Estamos sendo
guiados por uma força muito determinada de escolher dedicar-se para
alguém. Não é como se não tivéssemos opção, porque temos. Mesmo que
arrebatados pela paixão e toda a química cerebral que ela cria, temos opção.
Amar é muito mais que um conjunto de coisas idealizadas. É realmente
escolher caminhar ao lado de alguém. Isso exige dentre outras inúmeras
coisas, controlar e ceder... Não é? Então, se eu escolhesse amar alguém
definitivamente isso significaria que eu entendo sua visão de mundo e
compactuo com ela em algum nível. Isso me tornaria mau também? Aos
olhos de alguns, sim. Isso me tornaria vilão? Isso não importa. Se eu
escolhesse amar alguém... Definitivamente o faria até o fim.
Independentemente do que os outros pensassem de mim. Até o fim.
Felipe arregalou os olhos e virou o rosto devagar. Os dois se encararam
em silêncio por tempo suficiente para a claridade aumentar e depois reduzir.
Não falavam nada apenas deitados, mergulhados um no olhar do outro.
Quanto tempo seria preciso para tomar uma decisão tão importante? Na
realidade aquilo não importava, não era como se fosse uma escolha
definitiva. Não haveria julgamentos. Havia cumplicidade e nada mais.
O ruivo não conseguia evitar a sensação leve que o invadia. Sentia que
naqueles dias ele se perdoou nem que seja um pouco. E era reconfortante ver
o mundo ao lado daquela criatura. Era tão bom que não conseguia mais
supor como seria a vida como era antes, ou como poderia ser depois dele.
Era tão estranho e inédito que se sentia como uma criança galgando
primeiros passos em um caminho que não conhecia. E queria caminhar. Os
dois queriam caminhar, e essa era a escolha.
CAPÍTULO XXII
✽✽✽
✽✽✽
✽✽✽
Felipe estava checando se estava com todas as suas facas no lugar, a
munição extra nos bolsos e tudo mais que precisava encaixado no coldre da
perna, ao redor de sua cintura e até nos tornozelos. Havia colocado também
um coldre ao redor de seu peitoral forte, que fechava na altura do diafragma.
Escarlate, sua arma, estava posicionada sob o seu lado direito e duas lâminas
cruzadas nas costas.
Gabriel estava sentado no sofá encolhido, tentava ler sem sucesso o
livro que havia pedido a seu dominador, mas mordia os lábios e se pegava
sempre admirando o belíssimo e agressivo ruivo que continuava focado em
seu preparo.
Felipe parecia calmo e frio, como se aquilo fosse habitual ao extremo,
era um verdadeiro profissional. Eles trocaram um olhar demorado: o homem
ajustava a gravata em seu pescoço distraído naqueles olhos castanhos
enquanto o submisso deslizava devagar as pontas dos dedos sobre a coleira
em seu pescoço.
Carla e Thiago insistiam em revisar alguns detalhes sobre as
possibilidades de acontecimentos e procedimentos a serem tomados sem
prestarem atenção naqueles detalhes dos dois.
— Se eles mudarem o lugar da negociação, dê um jeito de nos avisar
imediatamente. Sair do comício sem dúvida é indício de que não será
pacífico. Faça marcações ou o que for, mas precisamos te encontrar onde
quer que você vá. Seu celular está com a localização ativa, não o perca —
Carla repetia.
— Carla, não é a primeira vez que eu vou em uma negociação. Já chega
— Felipe murmurou muito frio. Revirou os olhos desconsiderando a
preocupação desnecessária da amiga enquanto ela grunhia irritada. Thiago
havia saído para falar ao telefone, precisava orientar seu próprio esquadrão
sobre outras missões que ainda estavam pendentes. Felipe continuou com
dificuldade: — aliás, obrigado por ficarem para cuidar dele.
Gabriel havia voltado a tentar ler o livro. Estava com o cenho muito
cerrado e não conseguia ouvir o que os amigos conversavam na cozinha, eles
falavam muito baixo. Carla suspirou.
— Ele é nosso amigo agora, claro que ficaríamos. Aquele corvo
desgraçado do seu irmão não é doido de aparecer aqui. Vamos fazer ele ficar
quietinho enquanto você estiver fora — ela disse baixinho.
Felipe sorriu debochado.
— O Gabo... Quietinho. — Deu uma risadinha.
Não sabia como falar para seu submisso que uma negociação poderia
durar muito mais que um dia. Que o comício provavelmente era só uma
distração. Carla prosseguiu em sussurros evitando chamar atenção de
Gabriel:
— E então? Parece que vocês se acertaram e você foi sincero com ele
sobre como se sente. Finalmente acredita que merece mais que um contrato?
Felipe sorriu de canto timidamente.
— Hum, não — ele respondeu com seu tom indiferente, dando de
ombros. Carla soou um “Argh” de desgosto. Ele encarou longamente o
moreno sentado no sofá, que mordia o lábio perdido nos próprios
pensamentos, encarava o chão com os olhos vidrados e as mãos ainda
tocavam na coleira em seu pescoço. — Mas eu sou egoísta demais para abrir
mão dele. Então não se preocupe, eu vou voltar vivo... Eu tenho porque
voltar.
Silêncio.
— Escolher gostar de alguém sempre é um ato um pouco egoísta,
Felipe — Carla falou baixinho vendo Thiago que adentrava pela porta da
frente com os cabelos ondulados revoltos à altura do ombro, parecia cansado
trabalhando em dobro naqueles tempos. Ela havia acabado de descobrir um
fato sobre si mesma e nem sabia ainda como contar ao companheiro, seus
pensamentos estavam sobrecarregados com os próprios problemas, mas
ainda se dedicava para colaborar com Felipe. — Não temos certeza se somos
o melhor, mas queremos ser mesmo que a gente falhe. E normalmente
falhamos.
Thiago se aproximou e estendeu a mão para a morena. Ela aceitou
levantando-se da cadeira alta na qual estava sentada, indo em direção aos
seus braços.
— Vamos lá para fora, deixa eles se despedirem — Thiago sussurrou no
ouvido dela ao abraçá-la. Carla assentiu.
Felipe ficou em silêncio vendo-os sair em seguida. Ele suspirou quando
finalmente estava só dentro da casa com Gabriel, não queria partir. Não
queria deixá-lo ali.
Sabia que Carla estava certa em preocupar-se, Ganjo não faria uma
negociação pacífica. Ele estava com dados importantes e muito bem
organizados sobre o desvio do cartel da família dele e todas as outras
gangues que dividiam território com ele, sem dúvida, fariam um grande
alvoroço se soubessem daquela situação.
Depois que os Tyrone pararam de fornecer a segurança financeira e
toda a proteção que o nome daquela família impunha para os Barbosa, eles
ficaram muito mais vulneráveis a negociações. Antes, sob a asa da família
centenária, eles não temiam nada nem ninguém, poderiam fazer o que
quisessem que as outras gangues aceitariam sem nunca protestarem. O ruivo
contava com a vantagem.
Ele se aproximou do moreno e se sentou ao seu lado, encarando o livro
que ele carregava aberto diante de si. Sorriu de canto quando o moreno o
encarou, as pupilas dilatadas e brilhantes. Parecia se esforçar muito para não
chorar e mal conseguia manter sua face corriqueiramente arredia.
— Está gostando? — Felipe perguntou indicando o livro com um
movimento de cabeça. Gabe deu de ombros em um suspiro e fechou o livro
em um baque.
— Não. Você disse que era uma história de amor e a personagem
principal já começa morta. Isso é horrível, Lipe — Gabriel disse irritado.
— É claro que ela tinha que morrer, ela é uma heroína. Heróis sempre
acabam mortos.
Gabe arregalou os olhos para o ruivo, seu rosto assumiu uma cor pálida,
quase acinzentada. Ele engoliu em seco, desviando o rosto e Felipe suspirou
percebendo a gafe. Odiou-se, xingando mil palavrões mentalmente por falar
algo tão inoportuno naquele momento.
— Gatinho, é só uma história, sim? Eu vou voltar antes de você
terminar de ler — Felipe disse muito suave, sua voz era doce, um tom que
ele usava só com Gabriel.
Estava cada vez mais habituado a ser ele mesmo com o moreno e
sentia-se livre para isso. O outro, por sua vez, parecia sempre se agradar
quando ele falava rouco daquele jeito, medindo suas palavras com cuidado.
Cuidava dele em cada tom.
Gabe suspirou irritado e bagunçou o próprio cabelo em um movimento
frenético.
— Acho que demoro mais uns dois dias para ler, então venha antes de
eu terminar a metade.
— Antes de terminar o livro todo — o ruivo disse muito sério.
Gabe apertou os olhos na direção do livro e depois encarou seu
dominador. Havia entendido, mesmo sem ele dizer, que as coisas podiam
sim se complicar e que ele poderia demorar mais que o esperado.
Era algo que não precisava ser verbalizado. Compreendia que era um
mundo muito mais complexo que o que ele estava habituado e qualquer erro
poderia ser fatal. Abaixou a cabeça tentando fugir do assunto.
— Esse tal de Ganjo Barbosa… É com ele que vai negociar? Ele é
muito perigoso? Por que ele odeia sua família?
Felipe ponderou por uns instantes, apoiou o braço no encosto do sofá e
começou a deslizar a ponta dos dedos num roxo intenso que se destacava na
base do pescoço de Gabriel. O menor teve um calafrio com aquele toque e o
outro continuou acariciando ali, vendo-o corar gradativamente, as muitas
marcas que ele tinha em seu corpo lembrando-o a quem pertencia. O ruivo
permanecia sério, ainda formulando uma resposta.
— Ele odeia minha família porque os Barbosa sempre odiaram minha
família. Mas eles não são os únicos e nem os piores inimigos. Desde a
fundação da Ordem os Castro não se dão bem com... Os Tyrone, uma das
famílias que ajudaram a fundar a organização há umas centenas de anos atrás
— Felipe parecia repetir de cor e salteado aquilo que já conhecia a vida toda.
Falar aquele nome ainda era um pouco estranho e perturbador para ele. Para
Gabriel era tudo muito novo e ele prestava atenção com os olhos apertados
em foco total.
— Os Tyrone eram muito poderosos antes. Mas eles não queriam
obedecer às regras de convivência da Ordem e se separaram, criando o
próprio império deles. Eles protegiam três famílias que também acabaram
virando muito poderosas por causa deles. Uma delas era os Barbosa.
Felipe suspirou, não sabia se devia continuar contando sobre aquilo,
mas também se sentia muito bem em compartilhar com Gabriel sobre algo
tão crucial em sua vida. Ele ficou em silêncio por um tempo e logo
prosseguiu, deslizando os dedos pela costa do moreno, invadia o vão entre a
camiseta e sua pele:
— Além dos Barbosa, os Tyrone protegiam os Genovise e... Os
Maranzano. — Felipe pigarreou. O nome daquela última família o irritava
profundamente, quase tanto quanto os Tyrone em si. — Então todos eles,
historicamente, odeiam o sobrenome Castro que eu tenho. A minha
existência é uma ameaça à deles desde sempre, mas isso só piorou com o
tempo. Eu... piorei bastante as coisas.
Gabe tremeu com o toque que o acariciava distraidamente, olhava nos
olhos dourados de Felipe e o sentia distante, ocultando coisas que não
poderia falar ou simplesmente não queria. “Talvez ele não esteja preparado
para dar mais detalhes...” pensou enquanto deixava o livro de lado.
Puxou a mão livre do ruivo e entrelaçou na sua apertando-o
firmemente. Os olhos dele pareciam ter sido tragados de volta à realidade
quando fitou a sua mão apertada na de Gabriel, tremeu olhando para o
homem que o observava com uma sobrancelha arqueada. Felipe sorriu de
canto, acalmando-o.
— Eles não são mais poderosos assim como eram. Dos Barbosa, só o
Ganjo está vivo. Os Genovise têm bandeira branca declarada e oficialmente
vivem em Zona Neutra, a família não se envolvia muito em conflitos e é a
mais neutra desde sempre, consequentemente é a que tem mais integrantes
vivos. E os Maranzano... Bom, só restou um filho da puta que era sortudo
demais por ser maluco. Acabou se salvando que nem o parvo do Auto da
Barca do Inferno, pelo simples fato de ser parvo — Felipe disse
sombriamente. Tudo aquilo parecia um enigma para Gabriel.
— E os Tyrone? — Gabe perguntou. Felipe o encarou com o olhar
sádico, uma chama estranha e assustadora ardia no fundo da menina dos
olhos dilatada.
— Todos mortos.
Gabriel suspirou. “Você os matou não foi?” ecoou na mente dele, mas
jamais perguntaria aquilo. Sabia a resposta. Ela estava estampada naquele
olhar assassino. Queria temê-lo. Uma parte sua muito animalesca sentiu que
deveria verdadeiramente recear aquele predador ao seu lado.
Porém, nada sentia senão uma paixão intensa e arrebatadora. Um
cuidado demasiado e bobo. E medo de perdê-lo. Muito medo. Sabia quem
ele era e não era uma pessoa má. Não ao seu ver. Confiava tanto nele, tão
plenamente, tão absurdamente que queria mesmo era protegê-lo de tudo e
todos.
Sentia-se privilegiado por ouvir sua voz doce e rouca cantarolando ou o
acalmando, vê-lo galgando devagar para expressar melhor seus sentimentos,
poder admirar a coloração intensa que assumia seu rosto quando ele estava
envergonhado. Queria aquilo só para si de forma egoísta e quase infantil, não
queria que mais ninguém visse ou tocasse. Era só dele.
Se Felipe era um monstro, era o seu monstro. E Gabriel sentia-se pronto
para também se tornar um monstro se fosse necessário para mantê-lo seguro.
— Eu sinto muito. Eu não consigo parar de sentir que é culpa minha
você ter invadido um território inimigo e agora ter que colocar sua vida em
risco para resolver essa porra. Não consigo parar de pensar que se você não
tivesse um contrato comigo você não estaria nisso — Gabe começou em um
tom irritado, parecia realmente raivoso, mas por dentro sentia-se pesado e
em culpa.
Felipe negou com a cabeça veemente, estava muito sério apertando a
mão dele. A outra que acariciava seu pescoço o agarrou ali segurando-o
firmemente na nuca, obrigando-o a olhar para si. Doía e Gabe gemeu
sentindo prazer com aquilo.
— Eu fui porque eu quis, Gabo. Eu sabia dos riscos e eu os assumiria
de novo se precisasse. Você está proibido de se sentir culpado, entendeu?
Gabe revirou os olhos em tons de irritação com deboche e Felipe
apertou os dele considerando como o puniria por aquilo no futuro.
— Um — ele ecoou em um sussurro muito assustador, marcando o ato
rebelde de seu submisso como um que realmente o irritava. Gabriel sorriu de
canto.
— Mandão pra caralho — ele sussurrou e se aproximou de Felipe
devagar, olhando-o provocativo com um sorrisinho safado. Ele parou muito
perto do rosto impassível de seu dominador, havia se soltado de sua mão e
deslizou as unhas pelos seus braços fortes. Ainda tinha a base do pescoço
cativa pelo ruivo que o apertava ali como um gato. — Já que eu não posso
sentir culpa só porque o meu mestre me proibiu, talvez eu me sinta melhor
se eu deixar você bem irritado e te obrigue a voltar logo só para me punir.
— Não brinque comigo, gatinho — Felipe retrucou, seu tom o
provocava a fazer exatamente o contrário.
— O que eu poderia fazer que realmente te irritasse? — Gabriel ecoou
como se estivesse pensando. Apertava os lábios e os olhos olhando ao redor
refletindo muito. Felipe sentia o seu cheiro tão de perto inebriando-o, queria
beijá-lo, ele grunhiu.
— Gabo… — ele alertou muito grave.
O moreno arregalou os olhos como se tivesse tido uma ideia muito boa.
— Já sei, talvez eu deva ir embora para minha casa e desobedecer a
essa sua ordem idiota de me prender na sua casa enquanto você não está.
Felipe largou o pescoço dele e o segurou pelo queixo com muita
violência, olhava-o agressivo e ardendo em desejo.
— Não ouse sair da merda dessa casa, Gabriel. Me obedeça. Só dessa
vez escute o que eu digo e colabore. Isso não é um capricho, é a merda da
máfia.
O moreno riu divertido, sentindo seu queixo doer. Foi empurrado
repentinamente e Felipe estava em cima de si, pressionando-o contra o
encosto do sofá. Invadiu sua boca em um beijo cálido e ardente, muito
sedento. Sentia o piercing de sua língua estimulando a sua própria enquanto
ele apertava mais o seu maxilar com a mão.
Gabriel jogou os braços ao redor do pescoço alheio apreciando, muito
excitado, aquele toque rude e grosseiro. Gostava como ele era agressivo e
intenso, muito mais pesado e maior que o comum com aquelas vestes táticas.
Queria tirar tudo dele. Queria que ele o fodesse ali mesmo, não hesitaria se
ele desse o mínimo indício que o faria.
Com a mão livre, o ruivo apertou levemente o membro rígido de seu
submisso contra o tecido fino de sua bermuda. Esfregava estimulando-o ali
em uma carícia ansiosa. Gabe rebolava na mão dele segurando-o pelo
pescoço e puxando-o para si, queria sentir seu peso e sua força do jeito que
mais gostava.
Felipe parou repentinamente e se afastou, jogando-se pesado no sofá, ao
seu lado. Se não parasse, ele não iria à negociação alguma.
— Se você fosse um negociador como o Thiago sugeriu, esse seria um
momento perfeito para você tomar minha arma ou me matar sem pensar duas
vezes porque eu estava muito vulnerável. Viu? — Felipe resmungou
brincalhão e Gabe arfou corado, sentindo-se excitado.
— Talvez eu devesse ter feito isso agora para não te deixar ir. Só que eu
só te mataria de tanto foder, se é que isso é possível.
Felipe corou e cobriu o rosto timidamente, rindo rouco de nervoso.
Gabe se ajeitou e apertou os olhos na direção do ruivo, com um tom
ameaçador e afetado de ciúmes:
— Espera, é esse tipo de negociação que você vai entrar agora? O
Ganjo é algum tipo de cara gostoso ou alguma merda assim? Olha para
minha cara, caralho, não me diz que ele é mais gostoso que eu! Não me faça
virar a porra de um assassino, Felipe. Eu não divido nada do que é meu.
O homem riu mais alto e muito divertido. Ganjo Barbosa era um
homem de meia idade, baixo e com quase cem quilos, a imagem dele na
cabeça de Felipe fazia-o rir descontrolado em uma crise. Aquelas risadas
altas destoavam completamente de sua aparência sombria com aquelas
vestes e armas todas.
Carla e Thiago entraram na casa ouvindo as gargalhadas estrondosas e
descontroladas, Gabriel ria também apreciando o som que definitivamente
mais amava no mundo. O casal se aproximou trocando olhares, nunca
haviam visto Felipe rindo tanto.
— Perdemos alguma piada? — Carla perguntou.
— Ah, não. Nada demais. Vocês já viram aquele filme? “Meu
dominador é um babaca”? Ou será que esse é a porra de um livro também?
— Gabe retrucou.
Felipe cobria o rosto com as duas mãos, não conseguia parar de rir cada
vez mais. Carla começou a rir também e até Thiago riu mais da cena inédita
daquele homem que conhecia a vida toda do que da frase sem sentido do
submisso. Nem parecia que antes eles vivenciavam uma atmosfera de
expectativa, medo e despedida.
Gabe cruzou os braços com o cenho cerrado, sua expressão mal-
humorada fazia o ruivo perder o rumo daquelas risadas. O maior o puxou e o
beijou entre um sorriso largo enquanto recebia empurrões e vários protestos.
— Eu estou falando sério, caralho! Mudei de ideia nessa porra! Eu não
vou para casa, vou ficar aqui! Mas vou passar o tempo todo que você estiver
fora treinando para usar essas facas em você quando voltar se ousar ficar
com outro cara! Para, Lipe eu estou falando sério! — gritava irritado contra
os beijos muitos que recebia.
Carla corou e cobriu a boca em uma risada surpresa arregalando os
olhos na direção de Thiago.
— Acho que devíamos ter ficado lá fora mesmo — o homem disse
baixinho à companheira, entre risinhos.
CAPÍTULO XXIII
✽✽✽
O grande salão central da mansão dos Tyrone era alvo e tão iluminado
quanto um sol, os quadros com os rostos dos antepassados que carregavam
aquele nome fitavam eternamente estáticos os dois homens parados sobre o
símbolo da árvore de teixo do solo.
Alberto sorriu largamente e abriu os braços provocativo.
— Você está perdendo seu tempo, Castro. Se veio aqui tentar me
convencer a reduzir as taxações dos cartéis da Ordem de novo, pode ir
embora. Não vai acontecer. Kilife é minha.
Ruan suspirou e enfiou as mãos nos bolsos da roupa requintada e
obscura, tinha sua expressão pétrea e distante de sempre, o olhar baixo e
indiferente.
— Você é infantil, Alberto. Se continuar colocando pedágio e
dificultando o escoamento da minha mercadoria para dentro de Artemísi
você sabe que eu posso bloquear o seu escoamento para fora, pelo mar. Não
dificulte. — Sua voz tinha um tom inegavelmente cansado e indisposto, não
queria mais perder tempo com a infantilidade daquele homem. Alberto riu.
— Você se acha tão superior, não é? Sempre se comportando como se
eu precisasse de você.
Ruan deu de ombros indiferente sem alterar sua expressão fria. Não o
olhava nos olhos. Não olhava nos olhos de ninguém. Nunca.
— Você precisa.
Alberto fez uma expressão de choque e apontou para o homem. Riu
amargamente e balançou o dedo na direção dele. O mais alto, por sua vez,
permaneceu imóvel e imponente. Enquanto o Tyrone parecia mesclar-se com
o ambiente em seus trajes elegantes de tom claro e acinzentado, que
realçavam os olhos azuis quase cinza, Ruan destoava de tudo: vestia-se de
preto da cabeça aos pés, os olhos castanhos profundos e densos tanto quanto
seus cabelos de mesma cor perfeitamente alinhado para trás.
O som de passos ecoou, vindo de um dos quatro corredores que davam
acesso ao salão, cada um em uma esquina do cômodo. Ruan virou a cabeça e
estagnou sentindo seu sangue gelar, Alberto também encarou a mulher que
vinha em sua direção lentamente sorrindo debochada como sempre.
Ela tinha os densos cabelos loiros sobre seus ombros e espaldas, usava
a jaqueta de couro de sempre e jeans surrado além de botas pesadas e
barulhentas, a camiseta branca semitransparente maior que ela ainda
permitia marcar os seios fartos e o sutiã de renda atraía o olhar.
O Castro a acompanhou com o olhar suando frio, esforçava-se além do
normal para permanecer com sua expressão indiferente mesmo que seu rosto
insistisse em assumir uma coloração rubra. Ele encarou aqueles olhos
dourados estarrecido, como era linda. Não conseguia evitar.
A proporção da sua beleza estava para o quanto também era perigosa. A
mulher mascava um chiclete fazendo barulho e soprou um uma bola de
goma que estourou alto, tocou na arma na sua cintura como um aviso: não
me encare demais.
Ruan pigarreou e virou o rosto em respeito. Ela estagnou ao lado de
Alberto e cochichou algo em seu ouvido. Sorriu provocativa para o homem e
recuou para trás do seu chefe, dando mais uma encarada pesada no outro que
ainda evitava voltar a olhá-la.
— Olha só, eu acabei de ficar sabendo algo interessante. Enquanto você
está aqui tentando me convencer a recuar, a Moretti te nomeou como
sucessor oficial dela e te deu mais poder ainda além do de vice-líder, Castro.
Ruan apertou o cenho e virou o rosto surpreso na direção de Alberto. O
outro riu com aquela reação e prosseguiu:
— Ah, vai me dizer que você não sabia? Eu deveria te parabenizar pelo
seu futuro cargo?! Depois eu que sou infantil. É claro que a Raquel vai
querer que você assuma o lugar dela. Seu alcance financeiro e o que você
tem feito na integração com os colaboradores táticos levantou a sua moral,
você acha mesmo que eu vou recuar agora, Ruan?!
Silêncio.
O Castro desviou os olhos de Alberto direto para a mulher loira que
permanecia encarando-o com um risinho debochado de canto, mascava o
chiclete analisando todo aquele homem da cabeça aos pés. Ele corou,
constrangido, e desviou o rosto de novo: “Como ela sabe disso? Quem é essa
garota?”.
O Tyrone riu e bateu palmas divertindo-se.
— Eu te conheço a vida toda, Ruan. Eu sei o que está pensando. Quer
saber como minha atiradora conseguiu essa informação, não é? Que tal eu
fazer uma charada, se você acertar eu digo como a Lótus Dourada descobriu.
— Não me interessa — Ruan o cortou, estava cansado dos jogos idiotas
de Alberto. Ele sempre levava toda aquela guerra como uma brincadeira de
criança. “Lótus Dourada?” ecoou em sua mente acelerando seu coração. —
E pare de enviar essas merdas de jogos para eu decodificar, isso é
imbecilidade. Negocie como um adulto.
O Castro avançou sobre Alberto como se fosse atacá-lo e, por instinto, a
atiradora sacou sua arma, intrometendo-se no caminho. Ela apontou a pistola
engatilhada direto na direção do peito do homem pouca coisa mais alto que
si.
Ruan apertou os olhos em sua direção, intimidador, e segurou
firmemente as mãos da mulher a ponto de pressionar o cano de ferro contra
seu coração. Apertava os dedos dela corajosamente enquanto a encarava. A
loira sorriu abertamente e permaneceu firme.
— Não pague de corajoso, Ruan. Se eu mandar, ela atira — Alberto
alertou de trás da mulher. — Não brinque com a minha Lótus.
Diana permanecia estática e agressiva, pronta para puxar o gatilho.
Ruan deu uma risadinha sem graça e arqueou uma sobrancelha olhou na
direção do seu inimigo, brevemente.
— Lótus? — ele desdenhou e então a encarou. Olhar nos olhos das
pessoas era difícil, mas olhar nos olhos dela era absurdamente fácil. — É o
símbolo da minha família e nem por isso eu precisei me esconder atrás disso.
Eu não tenho medo de pessoas sem nome. Codinomes servem para quem
tem medo de assumir quem são.
Ela não parava de sorrir provocativa. Levantou o queixo e estourou
mais uma bola de goma contra os dentes. O som estalado e consecutivo
ecoando por todo o espaço. Era debochada, divertindo-se muito com aquilo.
O Castro voltou-se para Alberto, o qual agora ria forçadamente.
— Ah, certo. Então, “Ruan” é quem você é? UAU, que nome
intimidador. UAU.
Ruan suspirou exausto, largou as mãos da atiradora, mas não se moveu.
Enfiou os punhos trêmulos dentro dos bolsos e permaneceu encarando o
Tyrone.
— Se permanecer dificultando o escoamento da minha mercadoria para
dentro de Artemísi, seus barcos no porto de Iapraq vão afundar. Isso é um
aviso — ele disse friamente por fim. Ouviu a loira à sua frente arfar baixinho
e a fitou sorrindo levemente de canto.
O homem recuou um passo e depois outro, desgrudando-se da ameaça
dela lentamente. Virou-se para ir embora, mas antes de partir girou os
calcanhares e apontou para Alberto.
— Ah, e não, Alberto. Não é do Ruan que você tem que ter medo. É do
Castro.
Ele fez uma mesura de despedida para o inimigo e Alberto deu uma
risada amarga e incrédula, sem notar a última olhada pesada e sedenta entre
a sua própria atiradora e aquele homem elegante.
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Existir era mesmo doloroso e ela sabia disso desde sempre. Sabia que
amava, sabia que esse era seu principal e pior erro. Havia jurado que não
amaria ninguém além dela mesma. Tinha que ser forte graças à dor que
havia visto ao seu redor durante toda sua vida. Crescer nas ruas era mesmo
um inferno, ainda mais para uma mulher. Para uma mulher bonita era uma
sentença de morte.
Precisava ser forte, maior, melhor. Precisava de dinheiro, de poder, de
qualquer coisa que afastasse tudo e todos. A fragilidade não era uma opção
para quem quer que quisesse sobreviver naquelas condições. E ela não era
frágil.
Mas era algo pior: era leal. E amava um homem poderoso demais que
estava consumido por um medo infundado. Amava o fruto que colheu
daquele amor e faria qualquer coisa para proteger as únicas três criaturas que
um dia prezou.
Diana chorou mórbida enquanto era ferida, invadida e xingada. Quantas
culpas ela levou? A quantos pecados e misérias ela foi associada? Tudo
estava sobre ela. Todos estavam sobre ela. Não sentia mais o próprio corpo.
Pensava apenas nos filhos, como se os visse em uma luz dócil e muito
clara que cintilava através das lágrimas: o pequeno Jonathan parecia com o
pai, o tufinho escuro sobre sua cabeça arredondada, centrado e silencioso,
mal chorava e era muito dócil e amoroso.
Felipe parecia com ela, escandaloso por tudo e sorridente ao extremo,
vivia no colo e parecia um sol com os cabelos loiros alvoroçados
engatinhando explorador. Lembrou-se deles dormindo abraçados a ela,
envolvidos em seu colo quente e protetivo; e dos olhinhos cada vez mais
dourados de ambos, os quais lembrariam eternamente os dela para Ruan.
Quanto tempo levou? Não sabia. Morreu assim. Sozinha no cômodo
escuro e fétido, os cheiros de fluidos, suor e sangue em uma cena trágica e
doentia. Não estava ali naquele lugar sombrio. A luz havia tomado uma
proporção imensa, criando uma cena que existia apenas em sua cabeça
delirante. Sentia o cheiro do café da Baba, via a bela paisagem bucólica que
rodeava a Fortaleza, a casa de veraneio dos Castro. Ouvia a risada rouca de
Ruan e sentia seus beijos quentes.
Como era linda a visão daquela residência onde havia vividos os
melhores momentos de sua vida, o mundo nem parecia existir depois da
grande montanha que a escondia. Ela amava aquela montanha e tinha muitas
pinturas dela. Diana amava pintar.
Naquele sonho, seus bebês engatinhavam livres pelo carpete ensolarado
em uma prenuncia de um futuro feliz, onde os veria crescer, aprender a andar
e, tão logo, correr.
Ensiná-los-ia a ler, a cantar, a dançar, a viver. Estaria com eles dali em
diante por toda a eternidade os envolvendo e os amando. Estaria presente
quando se rebelassem, nas tristezas da vida, quando amassem pela primeira
vez e tivessem seus corações partidos. Os consolaria e daria conselhos como
uma mãe deveria fazer.
Diana via isso, enquanto sentia as lágrimas frias escorrendo de seu rosto
inerte. Mesmo que não estivesse mais presente, ainda sim estaria, seu
espírito os protegeria.
Sua lua solitária e seus dois pequenos sóis. Amava-os mais que tudo.
Ela podia ouvir suas vozes quando pudessem falar e sabia que diriam que a
amavam, seriam para ela a família que nunca teve e a esperança em
prosseguir. E esperança era a última sensação que viria a sentir, não medo.
CAPÍTULO XXIV
...
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continua...
NOTAS
[1]. No Karatê Shotokan, kata é uma sequência de movimentos individuais de técnicas de ataque
e defesa que, dentre outras coisas, tem como objetivo desenvolver as aptidões psicológicas e físicas
para um combate real. Cada movimento tem sua interpretação, além de um tempo e aplicação.
[2]. É um provérbio italiano que, literalmente, significa “melhor um ovo hoje do que uma galinha
amanhã”. Significa que ele deve aproveitar o que tem no presente e não arriscar com um futuro incerto
e perigoso.
[3]. Eu não decidi. Eu te amo apesar de mim mesmo. Você me afasta de quem eu fui, sabe o que
eu quero dizer? Eu não sou santo. Não tenho fé para perder, só para ganhar. Pelo menos eu posso
sonhar
[4]. Ou podemos ficar nesta pista sozinhos. Basta dizer a palavra e pronto. O passado está
retrocedendo para que possamos seguir em frente
[5]. Se der errado (não olhe para trás). Eu me tranquilizo, eu sempre soube (não olhe para trás).
Pelo menos foi real.
[6]. Podemos ser livres se quisermos (não olhe para trás, continue, não olhe para trás). Sim,
podemos ser livres se quisermos
[8]. Shotokan é um dos estilos de karatê que tem como objetivo valorizar mais o lado desportivo
e físico visando promover o desenvolvimento pessoal.
[11]. “Ignore-o”
TRILOGIA INCONTROLÁVEL
Gabriel é um jovem dançarino e instrutor de karatê que se vê assinando um
contrato de dominação com Felipe, um fotógrafo misterioso.
Deveria ser só um contrato, mas eles cada dia mais se libertam, dando
espaço para o amor que cresce entre eles no meio de uma guerra de uma
organização mafiosa.
A partir daqui todos os caminhos são dolorosos, mas toda dor é apenas uma
ilusão.
Se Gabriel soubesse desde o início quem ele mesmo era, teria sido diferente?
Ou se apaixonaria por Felipe da mesma forma?
E agora, ao descobrir que seu lar é muito maior do que pensava, cercado pela
maior organização mafiosa do continente e uma guerra centenária entre a
Lotus e o Teixo, ele terá que enfrentar muito mais que seus desejos sombrios
para florescer como a Rosa que sempre esteve predestinado a ser.
A partir daqui todos os caminhos são dolorosos, mas toda dor é apenas uma
ilusão.
SOBRE O AUTOR
KDaisies
Alter ego de um autor irrelevante que existe no mesmo plano que seus
mundos e personagens.
LUO EDITORA
omos como a Lua que guia e ilumina suas histórias favoritas até
S
você.
VISÃO
Ser referência nacional no mercado literário voltado a comunidade
LGBTQ+, onde nossas histórias e livros lindos, carregados de
representatividade diversa, possam fazer com que essas pessoas se sintam
acolhidas, agregando bem-estar e empatia à sociedade.
VALORES
Prezamos pela experiência completa que nosso leitor terá adquirindo nossos
livros. Isso inclui desde a personalidade que cada livro carrega em seu
design o tornando único, até a satisfação gerada no cliente quando ele recebe
além do livro que ele comprou, a nossa dedicação e carinho investidos em
atendê-lo de forma humanizada e com respeito, em todas as etapas do
processo de compra.