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Apresentação

O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará


apresenta o seu periódico à comunidade científica. Como o primeiro número tem como eixo temático
os “Diálogos Científicos nos Estudos da Religião”, a Revista “Observatório da Religião” lança-se ao
público para revelar diversos olhares das muitas disciplinas que se ocupam com a religião. Para isso,
agregaram-se discussões sobre movimentos e expressões político-culturais de teor religioso no Brasil,
considerações teórico-referenciais sobre a religião no relevo das culturas antigas e, inclusive, suas
recepções críticas na modernidade europeia, além das muitas questões pertinentes aos departamentos
de estudos religiosos que tratam da literatura, política, ecologia e mística.
Como instituto de publicação científica do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião (UEPA), a Revista Observatório da Religião busca agregar pesquisas que tratam a religião a
partir de seus epicentros e, por isso, longe das marginalizações a aspectos de socialização, politização,
emancipação, racionalização, agregação humana etc. Isso ainda é mais importante quando essas
pesquisas são manifestas em regiões como a Amazônica que são multiculturais e nem sempre estão
dispostas ao processo uniformizador de cultura, razão e sociedade.
Além do compromisso com a ampliação e afirmação da Área das Ciências da Religião, a Revista
Observatório da Religião é um esforço para o crescimento quantitativo e qualitativo da produção
científica no Norte do Brasil.

Boa Leitura!

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Dados da Revista

Observatório da Religião – Revista Científica do Programa de Pós-Graduação em


Ciências da Religião. Ano I, n. 01, jan/14-jun/14. Periódico semestral. ISSN: ----------.

Universidade do Estado do Pará – UEPA


Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
Centro de Educação e Ciências Sociais

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Diretrizes para Autores

Normas Técnicas Para a Apresentação dos


Trabalhos

O candidato deverá respeitar todas as normas de diagramação aqui apresentadas ao


preço da reprovação imediata. Os trabalhos deverão ter no máximo 20 laudas (digitadas em
espaço 1,5, fonte Times New Roman 12, com as quatro margens sob a medida de 2,5 cm),
incluindo-se notas e referência. Os artigos submetidos deverão ser inéditos ou mesmo não
estarem submetidos a outras apreciações para fins de publicação.
A página de rosto deverá conter título do artigo, nome do autor, um resumo em
português e outro em inglês, francês, alemão ou espanhol (com, no máximo, 120 palavras);
palavras-chave em português e no outro idioma escolhido (mínimo de quatro e máximo de
seis); por ultimo, se deve registrar em nota de rodapé algumas informações sobre o autor.
Os artigos serão encaminhados para um parecerista escolhido pelos Editores que
produzirá um documento para fundamentar a decisão final do Conselho Editorial. A remessa
do artigo poderá ser feita exclusivamente via Internet para o e-mail já indicado no site da
Revista Eletrônica Observatório da Religião. Os autores deverão inserir no final do artigo, o
seu e-mail para futuros contatos da Redação ou dos leitores.
A Revista Eletrônica “Observatório da Religião” trabalha com referências bibliográficas
no corpo do texto. As notas no rodapé deverão ser excepcionais e a bibliografia deverá ser
apresentada no final do artigo, obedecendo-se às seguintes normas:
1. Os textos apresentados devem ter o formato de um artigo científico, de uma resenha
de livro cientificamente pertinente na área dos estudos da religião, ou uma comunicação
científica. Os artigos científicos serão prioritários para a avaliação de publicação, e devem ser
apresentados conforme os dossiês anunciados;
2. Ter um teor científico, e a sua introdução e o seu resumo deverão pontuar
minimamente a metodologia aplicada, os objetivos do artigo, a idéia ou a hipótese central
investida no trabalho;
3. As partes do Texto não devem ser numeradas;
4. O título deverá aparecer centralizado, em negrito, letras maiúsculas e fonte Times
New Roman 14. Subtítulos deverão constar em Times New Roman 12, alinhados à esquerda,
em negrito, com um espaço entrelinhas em relação ao parágrafo anterior e sem espaçamento
em relação ao parágrafo seguinte;
5. As notas, numeradas em ordem crescente e formatadas em fonte Times New Roman
10 e espaço entrelinhas simples, devem aparecer no rodapé do texto e ser reservadas para
observações complementares substantivas;

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6. As palavras que forem destacadas no texto devem vir em itálico, reservando-se as
aspas apenas para citações diretas no texto;
7. Citações com mais de cinco linhas devem aparecer com recuo no texto em fonte
Times New Roman 11, com espaço entre linhas simples e sem aspas;
8. A referência a autores deve ser feita ao longo do texto no seguinte modelo: (sobrenome,
ano, página); ex.: (Eliade, 1992, p. 65). No caso de títulos do mesmo autor publicados no
mesmo ano, adicione-se letras em ordem alfabética após a indicação do ano; ex: (Desroche,
1985a), (Desroche, 1985b), etc.
9. As referências bibliográficas ao final do texto devem constar com espaço entrelinhas
simples e seguir estritamente os modelos abaixo.

Livro:
BERGER, Peter. O dossel sagrado, elementos para uma teoria sociológica da religião.
São Paulo: Paulus, 1985.

Organização de livro:
TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Org.). As religiões no Brasil, continuidades
e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.

Capítulo de livro:
MONTERO, Paula. Religiões e dilemas da sociedade brasileira. In: MICELI, Sergio
(Org.) O que ler na ciência social brasileira. Vol. 1 (antropologia). São Paulo: Ed. Sumaré;
Brasília: ANPOCS/CAPES, 1999, p. 327-367.

Artigo:
SANCHIS, P. Inculturação? Da cultura à identidade, um itinerário político no campo
religioso: o caso dos agentes de pastoral negros. Religião e sociedade, vol. 20, n. 2, Rio de
Janeiro, 1999, p. 55-72.

Tese ou dissertação:
RADÜNZ, Roberto. A terra da liberdade, o protestantismo luterano em Santa Cruz do
Sul no século XIX. Tese (Doutorado em História), PUCRS, Porto Alegre, 2003.

Artigo na internet:
SMART, Ninian. The formation rather than the origin of a tradition. In: DISKUS, 1(1),
1993, p. 1. Disponível em: Acesso em: 27/04/05.

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Texto de jornal:
TOURAINE, Alain. O recuo do islamismo político. Folha de São Paulo, São Paulo, 23
set., 2001, Mais!, p. 13.

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Religião e Memória Cultural:
Reflexões sobre a obra de Jan Assmann

Antonio Carlos de Melo Magalhães1

RESUMO: O artigo sistematiza, apresenta e discute conteúdos centrais da teoria


do egiptólogo da Universidade de Heidelberg, Jan Assmann, que estabelece a re-
lação entre memória cultural e religião a partir do diálogo com a historiografia
de Halbwachs e a hermenêutica de Gadamer. Assmann defende a especificidade
da memória cultural em relação a outros tipos de memória, tomando a religião
como grande exemplo de constituição e sedimentação da memória cultural.

Palavras-Chave: 1. Memória Cultural; 2. Religião; 3. Hermenêutica. 4. Assman

ZUSAMMENFASSUNG: Der Artikel fasst zentrale Inhalte und Aspekte der The-
orie des Ägyptologen der Universität Heidelberg, Jan Assmann, zusammen, der
einen Dialog mit der Historiographie von Halbwachs und mit der Hermeneu-
tik von Gadammer führt. Assmann ist der Ansicht, dass das kulturelle Gedächt-
nis Eigenartigkeit bezüglich anderen Formen von Gedächtnissen hat. Assmann
wählt die Religion als überzeugendes Beispiel von Bildung und Entwicklung des
kulturellen Gedächtnisses aus.

Stichworte: 1. Kulturellen Gedächtnisses; 2. Religion; 3. Hermeneutik. 4. Assmann

Introdução

Jan Assmann, egiptólogo da Universidade de Heidelberg, tem se destacado como intér-


prete do tema da memória cultural, teoria que compreende teses das discussões historiográ-
ficas sobre a memória social, especialmente as de Maurice Halbwachs – ainda que para Ass-
mann a compreensão de memória social em Halbwachs se torna restritiva demais, por limitar
a memória ao seu aspecto vivencial e comunitário, deixando de lado a longa memória cultural
como secundária na categoria de tradição -, e a hermenêutica de Gadamer, constituída do
processo compreensivo do ser como linguagem, incluindo a dimensão da pré-compreensão
em todo ato compreensivo. Se estas são as duas bases teóricas mais importantes, Jan Assmann
supera-as (no sentido da Aufhebung hegeliana), tornando a religião um de seus focos temáti-
cos e desenvolvendo uma teoria que ultrapassa os limites dos trabalhos historiográficos sobre
memória social e oferece novas luzes ao trabalho hermenêutico sobre a religião.
1
Doutor em Teologia/Ciências da Religião pela Universidade de Hamburg, Alemanha. Autor de artigos e livros sobre
estudos de religião e sobre a relação religião e literatura. É docente permanente na Pós-graduação em Literatura e
Interculturalidade e professor do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Estadual da Paraíba.

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Se Gadamer parte do pressuposto que o ser, que é compreendido, é linguagem, para
Assmann o ser, que é lembrado, é texto. Se no primeiro o caráter do diálogo, compreensão, co-
municação é preponderante, no texto fundacional religioso se mantém este aspecto dialógico,
se destaca, porém, o processo em relação ao passado, tornando o passado um presente intrans-
ponível e interpelador permanente das vivências das comunidades religiosas. Texto religioso
nos leva a permanecer na companhia dos mortos, fazendo-os falar.
Isto porque se a linguagem é diálogo, compreensão, comunicação, o texto é uma re-
trospectiva de uma comunicação já dada e uma perspectiva em relação aos novos lugares nos
quais o texto e a comunidade religiosa se encontram. Os novos cotidianos são formados e lidos
também nas leituras e usos dos textos religiosos. Desta forma, o texto é central para a tarefa
permanente da memória de estabelecer uma ponte entre o presente e o passado.
Se a comunicação vive do diálogo, textos são complexas construções nos muitos in-
terstícios da tradição, incluindo a necessidade de preencher lacunas da memória, de criar um
passado epocal, de definir normas e referências de compreensão para as gerações futuras, de
preservar narrativas com o desaparecimento dos narradores iniciais. O diálogo se dá na ime-
diatez; o texto é transcendência dos tempos dos deuses e dos seres humanos.
Se a hermenêutica baseia sua atividade na compreensão do papel do texto na vida do
ser que lembra, a teoria da memória cultural pergunta pela constituição e pelas condições da
tradição do texto e pelas formas como o passado se oferece às nossas interpretações e quais
são os motivos que ele contém para que estas ofertas sejam possíveis. Desta forma, a teoria da
memória cultural define ser que procura compreender como um ser da memória. Por isto, a
memória cultural procura considerar a complexidade da relação texto-interpretação-passado
-presente-futuro. „A memória cultural é complexa, plural, labiríntica, abrange uma multidão
de diferentes memórias de pertença coletiva em diferentes tempos e espaços e retira destas
tensões e contradições a sua própria dinâmica (ASSMANN: 2004, 43)
As reflexões neste ensaio partem de suas mais importantes obras de Assmann, mas es-
tabelecem diálogos com outros autores, mencionados ou não em suas obras.

1. Memória cultural

A memória tem uma base dupla: uma neurológica e outra social (ASSMANN: 2004,
11). A memória é um fenômeno social e, em virtude disto, não se restringe a um aprofunda-
mento de nosso interior. Ela traz consigo uma estrutura socialmente determinada que nos
une ao mundo do grupo e da coletividade. Somente nos sonhos esta estrutura é relaxada, mas
mesmo aí ela pode funcionar com vetores de nossa pertença.
Nas bases da memória temos dois tipos: a memória episódica e a memória semântica. A
primeira se concentra nas experiências vividas, a segunda se manifesta no processo da apren-
dizagem. Enquanto a memória episódica se refere às vivências e experiências, a semântica se

RELIGIÃO E MEMÓRIA CULTURAL: REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE JAN ASSMANN • Antonio Carlos de Melo Magalhães
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baseia em tudo aquilo que aprendemos e que nos formou em nossas leituras. Na religião isto
assume um caráter ainda mais especial, pois ela é portadora de um campo vasto de experiên-
cias e de mnemotécnicas, tendo destaque no cultivo da memória episódica e da semântica.
Quer dizer: para Assmann, a religião é a experiência privilegiada que consegue reunir e dar
matizes próprios aos dois tipos de memória.
Lembrar significa sempre trazer à tona, dar destaque a coisas, pensamentos, aconte-
cimentos, preservar práticas e verdades, mas também negar, esconder, deixar rastros, tomar
decisões excludentes, selecionar. Daí que os fatores constitutivos da memória se tornam decisi-
vos no processo de socialização, sendo esta não somente uma base da memória, mas uma fun-
ção da própria memória. Se temos memória semântica é porque pertencemos a socializações
específicas, estas são possíveis porque a própria memória as exige e as fabrica.
O teórico da memória de pertença, isto que seria algo elementar na socialização, é Niet-
zsche. Assim como Halbwachs mostrou que o ser humano necessita de pertencimentos para
formar a memória, Nietzsche mostrou que o ser humano precisa de memória para estabelecer
os laços de pertencimento, com destaque para o papel da promessa naquilo que ele chamou de
“memória da vontade”. Para Nietzsche, o indivíduo previsível é aquele que amanhã saberá o que
ele prometeu ontem. A “memória da vontade” garante desejar o desejado e sempre continuar a
desejar o que no ontem foi objeto do desejo. Só assim o indivíduo, na compreensão de Nietzsche,
o ser humano se torna um Kulturmensch – um ser de cultura. O ser de cultura é para a filosofia
de Nietzsche um ser domesticado. As religiões se tornariam instâncias, manipulações simbólicas
e forças de ação responsáveis por meio de suas mnemotécnicas pela preservação de nossas dores
e cerceamentos, domando as energias de nossos corpos para que a memória da dor fosse preser-
vada, pois “somente aquilo que não cessa de doer, permanece na memória.”
Nesta apresentação sumarizada do pensamento de Nietzsche, o leitor pode perceber
uma compreensão bastante restritiva de cultura, como um compósito de normas, referências,
leis, modelos. Esta interpretação de cultura é equivocada pela limitação que ela apresenta,
pela penúria hermenêutica que ela revela, pois cultura também é o lugar de possibilidades, de
resistências, de formas de vida, de criatividade. Se a arte é parte constitutiva do fazer cultural,
nela temos um exemplo da criatividade que resiste às formas totalitárias da vida. Além disto, a
religião não é o espaço tão somente das modelizações epocais a partir de identidades fortes e
compactas, mas o lugar das vivências libertárias e das utopias obstinadas. Apesar disto, é im-
portante reconhecer o aspecto que Nietzsche nomeia como constitutiva do ser humano como
ser de cultura, pois, ao contrário do que poderíamos pensar, nem na consciência estamos to-
talmente sozinhos. A solidão, desejada ou não, nunca existe de forma absoluta. O outro está
irremediavelmente em nossas memórias, percepções, interpretações e interpelações.
Para além, portanto, da memória social com suas injunções e processos de socializa-
ções, é necessário pensar a religião a partir da relação entre simbólica e memória e ver nisto
um percurso alternativo para a compreensão do papel da memória na religião.

RELIGIÃO E MEMÓRIA CULTURAL: REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE JAN ASSMANN • Antonio Carlos de Melo Magalhães
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2. Ritos das memórias coletivas e conectivas

Assmann recorre a uma série de ritos antigos, assírios e egípcios, para a discussão sobre
os papéis dos ritos no desenvolvimento da memória coletiva e conectiva. “Os rituais encenam
o jogo do simbólico com o corpóreo ... a memória de pertença tem um caráter normativo e
obrigatório ....” (ASSMANN: 2001, 21). O ritual criado tem a função de que mesmo com pe-
quenas mudanças, o acontecido e sua interpretacão normativa estejam assegurados.
Em torno da importância dos ritos e de suas encenações o autor reconhece também o
papel fundamental da religião na consolidação da dimensão cultural e simbólica da memó-
ria:

Âmbitos amplos da vida cultural, em especial tudo aquilo que pertence à religião,
têm a tarefa de preservar viva uma lembrança, que não possui mais sua base no
cotidiano originário. Ritos religiosos são indubitavelmente a mídia mais antiga e
original da memória de pertença, que, por sua vez, gira em torno do vínculo e da
comunidade, que inclui mortos e espíritos (ASSMANN: 2001, 22)

O aspecto coletivo não pode estar dissociado do conectivo e vice versa. É importante
lembrar que esta memória não está relacionada simplesmente a acontecimentos históricos.
Nas culturas tribais, por exemplo, a memória não é aquecida pelos fatos históricos, mas pelos
mitos cósmicos. O autor segue um modelo de Claude Lévi-Strauss sobre a diferenca entre
a sociedade fria e quente. A sociedade quente usa a sua história passada para construir a
história futura. Já a cultura fria evita a memória histórica. Para esta é mais importante o mito
fundante e sua ritualizacão. Há uma versão destes rituais melhor transmitida pela palavra
inglesa re-membering, tornar a pessoa membro novamente de um acontecimento, de um
evento religioso. Em especial em culturas ameaçadas, este papel da memória é fundamental
para a preservacao da integridade simbólica e social de um povo.
Claude Lévi-Strauss já identificara em seus escritos, na diferença que estabelecera entre
sociedades “frias” e sociedades “quentes”, que alguns grupos de ritos podem ser orientados
pela ordenação cósmica, dando pouca importância à história, enquanto outros têm na história
sua base e seu fim. Enquanto os primeiros se contentam com certa adequação ao cosmos, os
outros lembram sua história para possuírem-na e fazerem-na.

3. A memória contra-presencial e o passado normativo: o caso Deuteronômio

Segundo o autor, há também uma mnemotécnica na forma de buscar lembranças des-


locadas dos lugares de origem, mas, que mesmo assim, podem servir como elemento funda-
mental na construcão da identidade. “A pessoa pode aqui falar de uma mnemotécnica ritual
e cultural, que está a serviço da memória de pertença e que tem o objetivo de representar e
estabilizar a identidade coletiva através de encenações simbólicas (ASSMANN: 2001, 28).

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O exemplo mais impressionante desta forma de técnica da memória a serviço da me-
mória de pertença é o judaísmo. Numa situação de ameaça política entre o século VII e o sé-
culo V a. C, os judeus estabeleceram a memória de pertença através de um caráter contrapre-
sencial da memória. Com isto, temos o desenvolvimento de uma técnica da memória peculiar
e fundamental para a compreensão dos aspectos religiosos da memória cultural.
O livro do Pentateuco, a longa pregação de Moisés, é um exemplo desta técnica da
memória. Há três aspectos a serem considerados: a) do ponto de vista do espaço, o povo atra-
vessa o Jordão, sai do deserto e entra na terra frutífera, b) no aspecto temporal, depois de 40
anos há uma mudança de geração, de pessoas referenciais; c) mudança da forma de vida, de
nômade para sedentária. De acordo com o autor: “Aqui, como algo especial na literatura mun-
dial, temos um texto diante de nós, cujo tema é ´rememorar` no sentido de Nietzsche. Aquilo
que não deve ser esquecido é, por um lado, a lei e, por outro, a história revivida do Êxodo do
Egito, que foi elevada à categoria de um passado normativo” (ASSMANN: 2001, 30). O texto
de Deuteronômio de 6 a 11 apresenta sete passos para a elaboração desta técnica da memória:
1) Decorar como forma de conscientização, escrever no coração; 2) Educação e conversação
rememorativa-reintegradora (remember); 3) Visibilizar através de marcas e sinais no corpo, 4)
Coleta e publicação. A lei deve ser escrita na pedra e tornada acessível ao povo, 5) Festas da
memória coletiva das quais deveria participar todo o povo, do menor ao mais adulto; 6); Tra-
dição oral. A poesia como codificação da memória escrita. Por fim, em sétimo:

Canonização do texto contratual (Torá) como base da memória literal. Canoniza-


ção significa uma intervenção na tradição, colocada agora sob uma seleção seve-
ra, que se torna, por sua vez, uma instância poderosa de veracidade e de vínculo,
estabelecendo um termo à corrente da tradição. Daqui em diante nada deve ser
incluído ou excluído. Do contrato se origina o Cânon (ASSMANN: 2001, 32)

O desenvolvimento desta memória cultural só é possível levando em conta o poder da


religião de estabelecer laços que operam na construção de uma identidade coletiva:

É sobre esta base da comunidade que o deuteronômio se mostra como uma


memória abrangente e diversificada. Aqui a questão não gira em torno somente
da pertença no sentido de uma aliança política, mas no sentido de fundamentação
de uma identidade coletiva, que une o indivíduo à comunidade da memória e
da aprendizagem. Aqui não são estão somente os vínculos do domínio, mas da
comunidade. Em virtude disso, a história ao lado da lei, a narrativa ao lado da
norma desempenham um papel tão importante. A história que é contada para
esclarecer e formatar a lei tem a função de um mito fundante, uma narrativa fun-
dante, que funda a identidade do povo de Deus liberto por Deus do Egito (ASS-
MANN: 2004, 33)

Aqui é estabelecida uma relação dinâmica entre memória cultural e memória da


pertença, revelando um poder soberbo da religião em nos marcar para a vida em suas diferentes
trajetórias, em seus variados contextos.

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4. Alcance da memória

Com a memória cultural se abre a profundidade do tempo, pelo fato deste não ser mais
compreendido em termos de um cronos limitado, antes conhece séculos e milênios. Se ficás-
semos presos ao que a pesquisa sobre a história oral majoritariamente defende em termos de
abrangência do tempo narrado pelas comunidades, que não ultrapassa 100 anos, estaríamos
longe da abrangência da memória cultural na relação com a religião. No fundo, a história oral
se concentra ainda na memória comunicativa e trata-se de uma memória de gerações num
relativo curto espaço e tempo na história das comunidades e dos povos. Mas as religiões co-
nhecem as falas dos mortos, guardam os oráculos, preservam as estórias e as muitas histórias
que formam as idéias e as mentalidades. As religiões são os primeiros grandes arquivos da
humanidade. Apesar da importância que pode ter a memória comunicativa nestes termos, é
importante ressaltar que a religião lida não somente com a memória comunicativa, mas que
vive da memória conectiva e coletiva de longa duração. “A memória cultural abrange, ao con-
trário da memória comunicativa, a origem, o remoto, o distante e, ao contrário da memória
da pertença coletiva, aquilo que não pode ser instrumentalizado, o herético, o subversivo, o
divisível”. (ASSMANN: 2004, 41)
Há uma diferença entre a forma como as memórias são cultivadas pelas sociedades
ágrafas e pelas sociedades da escrita. Estas, ao contrário das primeiras, constroem grandes e
complexos arquivos da memória, selecionam episodicamente ou epocalmente partes deles,
os instrumentalizam, interpretam, recitam-nos, mas sempre há algo mais nos arquivos a se-
rem descobertos, traduzidos. “Através da escrita a história se divide em duas fases: a fase da
repetição baseada no rito e a fase da interpretação baseada no texto” (ASSMANN: 2004, 54).
Talvez a história dos muitos textos não canônicos em torno dos chamados canônicos na lite-
ratura e na religião seja um exemplo de como as culturas escritas lidam com esta memória de
arquivo. Se a cultura é um palimpsesto, o texto é uma elaboração palimpsestica e os muitos
textos dos muitos arquivos escritos das sociedades são memórias que convivem em diferentes
graus de importância, de interesses, de conflitos, de possíveis harmonizações, de ocultamento
e desvelamento. O texto carrega consigo muitos textos em si. Alguns são mencionados, outros
submergem nas escritas, nas frases, na tonalidade, na intensidade da mensagem.

5. Memória e tradição

Neste sentido, é importante diferenciar memória cultural e tradição. Se esta vive na


transmissão e recepção de conteúdos mais ou menos autorizados, na memória cultural temos
este aspecto da tradição, mas também a capacidade de arquivar em larga escala conteúdos con-
traditórios e mesmo os conteúdos reprimidos, a voz dos perdedores, as práticas desviantes. Na
tradição, a tendência é que a memória reforce os conteúdos fundamentais. Na memória cul-

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tural, a tendência é de preservação das várias narrativas em sua circularidade e conflitividade.
A tradição é mais funcional; a memória cultural é mais coletora. A tradição seleciona mais;
a memória cultural arquiva mais. A tradição se concentra em certos aspectos doutrinários; a
memória cultural se concentra nas falas e dizeres das muitas origens e nos muitos percursos
de um povo e de uma civilização. A tradição se ocupa da religião visível; a memória cultural
preserva os escombros, os sussurros, os silêncios ao lado das visibilidades e dos discursos. A
tradição se forma em torno da pertença e os sinais de objetivação; a memória cultural se arti-
cula em torno da tensão entre o visível e o invisível.
Estar junto, participar, é a forma mais eficaz de participar da memória cultural em so-
ciedades ágrafas e as festas entram como ocasiões de efetivação deste estar junto. Festas e ritos
contribuem para a mediação e transmissão do conhecimento que assegura a identidade pela
reprodução da identidade cultural. A repetição ritual assegura a coerência do grupo no tempo
e no espaço. Através da festa como primeira forma de organização da memória cultural, o tem-
po das sociedades ágrafas se organiza em tempo do cotidiano e tempo da festa. Naturalmente,
isto é impossível sem levar em conta o poder da religião na sedimentação do sentido atribuído
ao mundo. Os ritos e os mitos traduzem o sentido da realidade. Sua observância, manutenção
e transmissão cuidadosa preservam o mundo no seu curso assim como a identidade do grupo.
A diferença em relação a esta forma de preservar memória se dá com a chegada do tex-
to e, mais do que o texto, com o estabelecimento do canônico, pois a canonização impõe certo
emudecimento dos rituais e das oralidades e, mesmo preservando a recitação, cria a figura do
intérprete. Para o autor, há duas formas originais de canonização: a da Bíblica Hebraica e da
Titripaka Budista. Todas as demais formas são prolongamentos destas duas. O passo mais im-
portante na formação do cânon é o ato do fechamento, pois textos canônicos não podem mais
ser complementados. A canonização se torna, portanto, um elemento decisivo de cerceamento
da tradição e da memória cultural. De certa forma, estabelece uma relação tensa com a tradi-
ção e muito mais com a memória cultural, apesar de se tornar um fator poderoso no desenvol-
vimento de ambas. O texto sagrado em si não necessita primeiramente de interpretacão, mas
de ritual e recitacão, mas o texto canônico impõe a necessidade de interpretação, porque este
texto precisa ser apresentado como superior a outros. De certa forma, o texto canonizado tor-
na o texto religioso um texto da cultura, ainda que sua intenção seja a de manter determinada
tradição ou instituição. A memória cultural que vive em torno dos textos sagrado-canônicos
vive o dilema de conhecer limites pré-estabelecidos, mas de nunca poder respeitá-los integral-
mente, seja pelo fato de trabalharem com o princípio da preservação ao lado do princípio da
transformação, seja pelo fato de conviverem com as interpelações advindas do confronto tex-
to-mundo, texto-textos, texto-intérpretes. O texto é parte de um mundo, ocupa espaços, lida
com outras escritas e vive dos interesses e conflitos dos intérpretes.
A interpretação dada ao texto não deve omitir que há textos culturais, que incluem
danças, ritos, símbolos, etc, e são justamente estes os que mais sofrem as mudanças com os
tempos. Os textos culturais são levados frequentemente nos corpos, e estes precisam de novas

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acomodações e espaços, novos desenhos e novas projeções performáticas. Nos corpos são ins-
critos códigos, mas neles habitam também os desejos, e estes são o conteúdo central dos gran-
des mitos das religiões. Os corpos ouvem doutrinas e aprendem danças, mas as danças não são
somente técnicas de repetição coreográfica, são expansões da própria vida em direção a várias
mensagens por meio dos ritmos, do tamanho do espaço para dançar, dos parceiros. O corpo
ouve e aprende, mas também olha e silencia. Diz e se contradiz. De certa forma, a preocupa-
ção que as religiões demonstraram com o corpo revela muito do que seja a sua concepção do
espiritual, da alma, do coração. O texto escrito emerge como extensão do corpo, mas também
funcionou como controle dos corpos cada vez menos dançantes e cada vez mais disciplinados.
Controlar o corpo é estabelecer o grande domínio no mundo da religião e da cultura.

BIBLIOGRAFIA

ASSMANN, Aleida. Erinnerungsräume. Formen und Wandlungen des kulturellen Gedäch-


tisses. München: C. H. Beck, 2006.

ASSMANN, Jan. Herrschaft und Heil. Politische Theologie in Altägypten, Israel und Europa.
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2001.

__________. Die Mosaische Unterscheidung. Oder der Preis des Monotheismus. München:
Carl Hanser Verlag, 2003.

__________. Moses der Ägypter. Entzifferung einer Gedächtnisspur. Frankfurt am Main: Fis-
cher Verlag, 2004.

__________. Monotheismus und die Sprache der Gewalt. Wien: Picus Verlag, 2007.

__________. Religion und Kulturelles Gedächtnis. München: C. H. Beck, 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Werke in Vier Bänden. München: Verlag das Bergland-Buch, 1985.

Recebido em 05/10/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

RELIGIÃO E MEMÓRIA CULTURAL: REFLEXÕES SOBRE A OBRA DE JAN ASSMANN • Antonio Carlos de Melo Magalhães
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A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ:
DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL1

Daniela Cordovil2

RESUMO: As religiões afro-brasileiras foram historicamente vítimas de forte repres-


são e preconceito por parte da sociedade brasileira. Atualmente, as lutas por direitos
da comunidade afro-religiosa incluem, mas transcendem, a busca por respeito à re-
ligiosidade em seus aspectos cosmológicos e ritualísticos. Algumas lideranças afro
-religiosas em Belém participam ativamente do processo político local. Este grupo
integra conselhos, freqüenta conferências e pressiona parlamentares e órgãos gover-
namentais em busca de projetos que valorizem a cultura afro-brasileira na Amazônia.
Este trabalho pretende traçar um histórico das formas de participação política e es-
tratégias de resistência desenvolvidas por afro-religiosos em Belém e apontar alguns
significados das suas novas formas de militância política para as reflexões teóricas a
respeito das relações entre Estado, Religião e Sociedade Civil na Amazônia.

Palavras-Chave: 1. Religiões Afro-Brasileiras; 2. Amazônia; 3. Resistência Reli-


giosa; 4. Religião e Política.

ABSTRACT: This article proposes a historical overview of “political participa-


tion” and “strategies of resistance” by african-religious in Belém (North Region,
Brazil). At the same time, this article collets some meanings about “new forms
of political activism” to the theoretical reflections about the relationship between
State, Religion and Civil Society in the Amazon region.

Key-Word: 1. Afro-Brazilian religions; 2. Amazon; 3. Religious Resistance; 4. Re-


ligion and Politics.

Introdução

Uma presença controversa dentro do campo religioso e político brasileiro são os afro
-religiosos. Em seus quase dois séculos de existência, as religiões de matriz africana no Brasil
chamaram atenção de estudiosos por seus aspectos identitários, ritualísticos e cosmológicos.
O comportamento político dos afro-religiosos, mesmo que muitas vezes deixado em segundo
plano nas análises, não foi esquecido nesse debate.
1
Versões preliminares deste texto foram apresentadas no Encontro Novas Faces da Pesquisa sobre Religião na Amazô-
nia, realizado em 2009, na XV Semana Acadêmica do CCSE/UEPA e na IV Jornada Acadêmica do Curso de Ciências
da Religião da UEPA, em 2010. Agradeço as contribuições dos meus interlocutores nestes eventos, em especial a
Profa. Angélica Maués, Profa. Anaíza Vergolino, Profa. Taissa Tavernard e Babá Luis Tayandô. Ressalto que as idéias
aqui apresentadas são de minha inteira responsabilidade.
2
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, Professora Adjunta I do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará.

14
Compreender a relação entre religiões de matriz africana e esfera pública é uma preo-
cupação de estudiosos que se debruçaram sobre o tema desde o século XIX. Neste período, o
principal pano de fundo da discussão era a questão de quais perspectivas de futuro no Brasil
de um grande contingente de população negra e mestiça. As perseguições policiais aos terrei-
ros de candomblé e outras matrizes religiosas africanas podem se compreendidas como a ten-
tativa da elite letrada de expurgar da sociedade brasileira a cultura e a religiosidade de setores
da sociedade tidos como menos “evoluídos”.
Nina Rodrigues, principal estudioso deste período, acreditava que as perseguições e
destruições aos objetos de cultos não iriam contribuir para a elevação da mentalidade su-
postamente primitiva dessas populações, por isso, recomendava a realização de um trabalho
educacional junto aos mesmos, para que abandonassem essas práticas ancestrais (NINA RO-
DRIGUES, 1959, 2004).
Seja no discurso dos antropólogos culturalistas como Artur Ramos e Edson Carneiro,
que fizeram da defesa das casas de candomblé, nos anos de 1930, uma bandeira de luta políti-
ca; seja em textos de estudiosos mais contemporâneos, que discutem a compatibilidade entre
os padrões de ética e formas de construção da pessoa no candomblé e o campo político brasi-
leiro, a preocupação em compreender a relação entre religiosidade africana e ação política está
presente (CORDOVIL, 2006). No entanto, ainda pouco foi escrito sobre um fenômeno mais
contemporâneo entre as formas de atuação política dos afro-religiosos: a organização destes
sob a forma de movimentos sociais, surgida após a Constituição de 1988.
Os movimentos sociais contemporâneos assumem as mais variadas expressões em ní-
vel mundial. Após a derrocada do mundo socialista, eles têm se configurado como a mais ex-
pressiva forma de resistência contra a globalização hegemônica e o capitalismo. O maior ícone
dessa resistência é o Fórum Social Mundial, surgido para se contrapor ao Fórum Econômico
Mundial de Davos. Devido a sua multiplicidade de projetos e composição, os movimentos
sociais contemporâneos ainda resistem a definições unívocas (GOHN, 2010). Os conceitos de
identidade e subjetividade (SANTOS, 2005) são ferramentas importantes para compreender
esses movimentos, por serem de espaços de afirmação de identidades étnicas, de gênero, de
geração e outras formas de pertencimento.
Os movimentos sociais ancorados em lutas identitárias foram chamados na literatura
especializada como Novos Movimentos Sociais para contrapô-los aos antigos movimentos
sociais, baseados em pertencimentos de classe e do mundo do trabalho. Um aspecto ainda
pouco estudado nesses novos movimentos sociais são aqueles organizados tendo como princi-
pal eixo o pertencimento religioso. As discussões a respeito dos novos movimentos religiosos,
ao contrário, tendem a acentuar o aspecto de pulverização identitária desses movimentos, que
reencantam o mundo do indivíduo como foco na sua experiência pessoal do sagrado, a partir
de diversos trânsitos religiosos, e que não constroem necessariamente um sujeito coletivo vol-
tado para organização política (CARVALHO, 1999; MACHADO, 2010, ORO, 1996).

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
15
No Brasil, a Igreja Católica, através da teologia da libertação foi a expressão religiosa
mais conhecida por sua atuação política junto a movimentos sociais (IOKOY, 1996). Atual-
mente, as igrejas neopentecostais e protestantes históricas lutam cada vez mais para ocupar a
esfera pública, geralmente por meio da política partidária (BAPTISTA, 2009).
Este texto propõe uma análise da forma como religiões de matriz africana têm sido
tomadas como eixo para a construção de um movimento social com características e um pro-
jeto político próprio, que tem por base aspectos da ancestralidade e da cultura produzidas nos
terreiros. Neste sentido, a reflexão se desenvolverá a partir da observação de um campo etno-
gráfico restrito, a cidade de Belém do Pará, e terá como objetivo compreender por quais etapas
passaram as lutas por direitos desses afro-religiosos na construção de um sujeito político e
como elas se configuram na atualidade. Para isso, será feita uma breve reconstrução histórica
da presença desses atores políticos na esfera pública local, a partir de pesquisas que se debru-
çaram direta ou indiretamente sobre esta temática.

1. Trajetórias de Lutas de Afro-religiosos em Belém: uma reconstrução


histórica

As expressões afro-religiosas foram alvo de intensa repressão política em todos os pe-


ríodos da história do Brasil. Para objetivos analíticos, classifico as formas de repressão e a
resistência engendrada por afro-religiosos em Belém em quatro períodos: 1) período colonial,
2) da abolição da escravidão à ditadura militar e fundação da FEUCABEP, em 1964, 3) da fun-
dação da FEUCABEP até a Constituição de 1988, 4) da Constituição de 1988 aos dias atuais.
A seguir, passo a tratar mais detalhadamente de cada um desses períodos.
A repressão às expressividades religiosas africanas no período colonial concentrou-se
principalmente na cristianização forçada de negros e negras trazidos como escravos para o
novo mundo. O principal espaço de resistência nesse momento eram as irmandades religiosas,
sociedades religiosas formadas por leigos, voltadas ao culto de um santo católico e apoiadas
pela Igreja. Pesquisas recentes sobre a organização social presente no interior dessas irman-
dades têm demonstrado seu importante papel como espaço de manutenção das práticas de
devoção religiosa trazidas pelos escravos da África. Viana (2007) aponta em seu estudo sobre
irmandades de pardos no Rio de Janeiro o conhecimento e a utilização de tradições religiosas
africanas, as bolsas de mandingas, entre os membros das irmandades, e também a frequência
desses irmãos nos rituais denominados Calundus, com fortes características africanas. Souza
(2002) também demonstra como o culto aos santos nas colônias americanas encontrava-se
impregnado de aspectos de devoção mágico-religiosa trazida pelos escravos da África.
Um estudo das características das irmandades religiosas no contexto amazônico pode
ser encontrado em Figueiredo (1994), as análises do autor sobre irmandades de negros de-
monstram a expressividade da devoção organizada por esse segmento na Amazônia colonial.

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
16
Segundo o autor, africanos e indígenas na Amazônia agrupavam-se em torno de irmandades
de pardos e de negros, onde estabeleciam o culto aos santos e era possível manter, no interior
do catolicismo popular, algumas de suas práticas de culto ao sagrado.
O segundo momento da repressão aos cultos de origem africana vai do início da Re-
pública e abolição da escravidão até o golpe de 1964. É caracterizado pela criminalização das
práticas religiosas africanas e indígenas, concomitante ao estabelecimento e cristalização em
Belém das principais tradições que irão formar o campo religioso afro-ameríndio na Ama-
zônia. Durante a República Velha, os pajés e curadores são invisibilizados na sua presença na
metrópole, no entanto suas práticas fazem parte de um repertório de saberes que compõem a
vida na urbe amazônica. Relatos sobre presença dessas matrizes religiosas em Belém podem
ser encontrados nas páginas policiais dos jornais, associando suas práticas ao curandeirismo
e charlatanismo e nos escritos de folcloristas e literatos, onde são vistos como sobrevivências
idílicas do passado do homem amazônico (FIGUEIREDO, 2009). Estes saberes irão juntar-se
com o conhecimento trazido pelos migrantes nordestinos, especificamente do Maranhão, para
compor a Mina paraense, ou Batuque, para os primeiros estudiosos do tema, uma religiosida-
de que congrega o culto aos orixás e voduns africanos, com o culto aos caboclos e encantados
(LEACOKS, 1972).
Nesse período, uma importante forma de luta contra as invasões de terreiros e prisões
de líderes religiosos era a “guerra mágica”. Uma forma de agir dos afro-religiosos onde estava
presente a ideia de que os encantados defenderiam, de modo mágico, seus sacerdotes e fiéis,
das investidas da polícia. Há relatos na memória dos afro-religiosos de episódios onde este
poder teria sido demonstrado. Como quando uma conhecida liderança afro-religiosa, ao ter
sua casa de culto invadida por policiais, teria dito que seu caboclo iria matar o delegado, e ela
iria urinar no seu túmulo, dias depois, o delegado veio a falecer e a mãe de santo cumpriu sua
promessa3.
Histórias como essa são depoimentos de um momento histórico em que afro-religio-
sos, desprovidos de quaisquer direitos civis, só poderiam contar com sua fé para defendê-los
contra os abusos das autoridades.
Ironicamente, a ditadura militar foi menos cruel contra os afro-religiosos. Após, o
golpe de 1964, sob convocação da Delegacia de Costumes, é fundada a Federação Espírita e
Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará (FEUCABEP), onde ela passa a atuar como
mediadora da relação entre os afro-religiosos e o Estado (VERGOLINO, 1976). Como aponta
Taissa Tavernard de Luca (2003), além de ser um órgão fiscalizador do funcionamento dos ter-
reiros, a FEUCABEP tinha um papel de guardiã da tradição e aglutinadora dos terreiros. Isso
porque a religiosidade de matriz africana no Pará caracterizou-se por não possuir um terreiro
de raiz, a partir do qual se ramificaram todos os outros. Segundo a autora, esse papel passou
a ser exercido pela federação, que exercia papel religioso, no controle do funcionamento das
3
Relato apresentado pela Profa. Taissa Tavernard de Luca em comunicação oral.

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
17
casas e verificação do conhecimento dos pretendes a sacerdotes, e civil, na mediação das rela-
ções com o Estado.
Nessa trajetória histórica que une os primeiros pajés e curadores da metrópole Ama-
zônia aos terreiros que se federalizam podemos encontrar como fio condutor as diferentes
estratégias empreendidas por estes grupos religiosos minoritários para sobreviver no interior
de um estado que se diz laico, mas onde os aparatos de poder privilegiam e apoiam as religio-
sidades de matriz cristã.
Dos anos de 1960 até o fim da Ditadura Militar, a união dos terreiros através da fede-
ração representa um momento de luta no interior do Estado autoritário, policial e repressor,
que não reconhece a existência da diferença cultural. Uma espécie de sindicalização da reli-
giosidade se configura numa estratégia viável de sobrevivência dos cultos, que se utilizam da
lógica da federação para reproduzir também seus saberes cosmológicos e religiosos. Como
último período da resistência entre afro-religiosos, tem-se o momento atual, que caracterizo
como de busca da cidadania, através dos mecanismos de democracia e da participação direta,
consagrados pela Constituição de 1988.
Os últimos anos têm visto surgir uma nova forma de participação política entre os afro
-religiosos, que não é especifica deste segmento, e que aqui caracterizarei por luta por direitos
políticos de terceira e quarta geração, que são os direitos culturais, de reconhecimento e de
participação, atingidos por meio da democracia direta. As formas de exercício da democracia
direta foram uma conquista dos governos populares e surgem de forma pioneira, no Brasil, na
prefeitura do partido dos trabalhadores em Porto Alegre (AVRITIZER, 2003, BAIERLE, 2000).
Caracterizam-se por uma forma de exercício do poder político onde os diferentes segmentos
da sociedade são chamados a opinar diretamente a respeito das políticas públicas realizadas
pelo governo. Em Belém, foram alavancadas pela primeira vez pelo prefeito do PT, Edmilson
Rodrigues, que governou a cidade entre os anos de 1997 e 2004 (FARIAS, 2004). Com a che-
gada do partido dos trabalhadores à presidência da República as experiências de Conselhos e
Conferências passam a ser realizadas nacionalmente, tendo impactos diretos, como procura-
rei mostrar, sobre as formas de participação política do segmento afro-religioso.
A seguir, passo a tratar de como os afro-religiosos tem começado a se utilizar dos ins-
trumentos da democracia direta e dos direitos humanos de terceira geração, como o direito
ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, em suas lutas por cidadania e legitimidade dian-
te do Estado, da mesma forma que se utilizaram das federações e do voto, instrumentos da
democracia indireta para cobrar seus direitos e a efetivação da liberdade religiosa no Brasil.
Com base nestes novos direitos proponho-me a refletir sobre as novas formas de participação
política dos afro-religiosos. Mostrarei como os afro-religiosos se encaixam no novo momento
da democracia brasileira, inserindo-se nos fóruns de discussão da democracia participativa e
contribuindo para a construção de uma nova cultura política de participação democrática que
se está buscando implementar no Brasil.

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
18
2. Novas formas de Participação

Em 1º de janeiro de 1997 tomou posse como prefeito de Belém do Pará Edmilson Ro-
drigues, o primeiro integrante do Partido dos Trabalhadores a governar a cidade. Na sua pri-
meira gestão como prefeito (1997 a 2000) Edmilson implementou em Belém o Orçamento
Participativo, forma de gestão em que representantes dos diversos setores da população opi-
nam na distribuição de recursos para políticas públicas.
No seu segundo mandato na prefeitura (2001-2004), o Orçamento Participativo evoluiu
para o Congresso da Cidade, espaço privilegiado onde se reuniam movimentos sociais e gestores
da prefeitura para discutir políticas públicas para além da gestão patrimonial, mas também ope-
rando a construção de políticas identitárias, voltadas para segmentos sociais minoritários (FA-
RIAS, 2004). Esses segmentos eram mulheres, negros, indígenas, jovens, idosos, homossexuais,
portadores de deficiência, etc. Dentro do movimento de negros e negras começou a tomar parte
nas discussões o segmento Afro-religioso, com demandas e referenciais identitários próprios.
A partir da experiência de militância política construída no interior do Congresso da Cidade,
tomou forma o movimento afro-religioso de Belém, na sua configuração atual. O diálogo entre
afro-religiosos e prefeitura caracterizou um novo campo de atuação na esfera pública para esses
líderes religiosos, que passaram a compor um setor da sociedade civil organizada através da fun-
dação de ONGs, organização em movimentos sociais, fóruns e conselhos.
Atualmente existe em Belém um conjunto relativamente extenso dessas associações,
institutos e ONGs lideradas por afro-religiosos e criadas com a proposta de lutar por direitos
e cidadania para esse segmento da sociedade. Neste universo farei uma breve apresentação de
algumas ONGs reconhecidamente atuantes no campo religioso afro-paraense da atualidade,
para em seguida traçar algumas considerações teóricas sobre o fenômeno. A primeira dessas
associações é a AFAIA, Associação dos Filhos e Amigos do Ilê Asé Iyá Omi Ofá Karé, criada
em 1987, pelo Baba Edson Catendê, liderança religiosa do candomblé de Belém. Descendente
do Terreiro do Gantois em Salvador, Catendê viu na criação da AFAIA uma forma de organi-
zar politicamente os filhos de santo do seu terreiro, para além do aspecto puramente normati-
vo identificado naquele momento com o trabalho realizado pela FEUCABEP.
Catendê relata que a tradição de associativismo entre os afro-religiosos vem do tempo
das irmandades religiosas e há uma um esforço da sua associação em resgatar essa histó-
ria. A AFAIA já realizou um encontro Norte e Nordeste de Irmandades Religiosas no Fórum
Social Mundial de 2009, em Belém. Também participou, junto com os representantes dos
povos indígenas, da abertura desta edição do Fórum Social Mundal. Para os coordenadores
da AFAIA, a associação é o “braço civil do terreiro”. Assim a AFAIA surgiu como uma forma
de atender necessidades e dinamizar as relações entre os próprios filhos de santo do terreiro.
Possui um bloco afro que desfila todos os anos no carnaval de Belém com a proposta de con-
gregar principalmente afro-religiosos. A associação já executou vários projetos com recursos

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
19
da Fundação Palmares, SEPPIR e Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. A associação
realiza cursos e oficinas, possui um grupo de teatro, e um projeto voltado especificamente
para o atendimento de mulheres, o Yiá Yónú, onde são realizadas oficinas de capacitação em
atividades produtivas e direitos humanos para mulheres da comunidade. A AFAIA é a mais
antiga das associações fundadas por afro-religiosos em Belém. Funciona num terreno amplo
e arborizado, onde estão o terreiro e seus assentamentos sagrados. Ao adentrar na associação
a sensação é de paz e afastamento do mundo cotidiano.
A criação da AFAIA ocorreu num momento bem anterior à chegada do PT a prefeitura
de Belém e pode ser considerada como um caso isolado no contexto político local, pois surge
da experiência de associativismo e de militância no movimento negro trazida de Salvador
pelo seu fundador. Com o desenrolar das ações voltadas para os afro-religiosos no interior da
prefeitura do PT, outras lideranças de terreiros foram buscar também a regularização de suas
casas de culto como associações4. Entre eles podemos citar: Baba Tayandô, sacerdote do Tam-
bor de Mina, que criou a ACAOÃ, Associação Cultural Afro-Brasileira de Oxagiã, Mametu
Nangetu, sacerdotisa do Candomblé Angola, que fundou o Intituto Nangetu de Tradição Afro
-religiosa e Desenvolvimento Social, e Mãe Nalva, do candomblé Ketu, que criou a ACIYOMI,
Associação Afro-religiosa Ilê Iyabá Omi. Estas associações surgiram a partir da experiência de
militância política adquirida pelos afro-religiosos no interior do Congresso da Cidade, onde
foi criada uma setorial para este segmento, que realizou dois Congressos, em 2002 e 20035.
Esta participação não se deu sem atropelos. Dentre os problemas enfrentados, é sempre
lembrado pelos afro-religiosos o fato de que imagens da Festa das Raças, evento realizado para
celebrar a ancestralidade africana no Palácio Antônio Lemos, sede da Prefeitura, foram veicu-
ladas em rede nacional em um programa de auditório, o “Programa do Ratinho”, onde o então
prefeito Edmilson Rodrigues era acusado de “macumbeiro” e os afro-religioso foram chamados
de “violadores de túmulos”, pois umas reivindicações destas lideranças era autorização para rea-
lização de rituais fúnebres de sua tradição em cemitérios, como fazem os membros de outras
religiões. Uma versão mais extensa dessa reportagem, com cerca de 15 minutos passou a ser
veiculada também na Rede Record como propaganda contra o prefeito do PT, já que estava-se
em ano eleitoral, em 2002. Até hoje os afro-religiosos caluniados pela reportagem lutam junto ao
Ministério Público do Estado do Pará por algum tipo de reparação, mas o processo está parado.
Em 2004 foi eleito para a prefeitura o candidato Dulciomar Costa, que atualmente encontra-se
finalizando seu segundo mandato. Toda a discussão do Congresso das Cidades foi interrompida
e os grupos mobilizados no seu interior passaram a encontrar novas formas de participação.

4
Para um estudo mais detalhado das trajetórias políticas dessas lideranças e algumas de suas estratégias de luta ver Rosa
e Costa (2011).
5
Neste mesmo período, pós Constituição de 1988, também surgiram associações, que não estavam ancoradas na exis-
tência de um único terreiro, mas tinha como objetivo concorrer com a FEUCABEP no papel de representantes dos
afro-religiosos como um todo, nas suas diferentes matrizes e tradições. Para um estudo mais detalhado dessas associa-
ções, ver Luca (2008).

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
20
Desde 2002, com o primeiro governo Lula, o Brasil tem dinamizado experiências de
democracia direta a nível federal, que tiveram início nos governos do PT em Porto Alegre,
no Orçamento Participativo. A criação de vários Conselhos Gestores onde se sentam a mesa
governo e representantes da sociedade civil tem sido uma prática cada vez mais ampliada dos
governos do Partido dos Trabalhadores, onde as lideranças religiosas tradicionais vem bus-
cando se inserir.
Seria impossível no curto espaço desse artigo dar conta da trajetória política e de parti-
cipação de todos esses afro-religiosos, cito então como exemplo emblemático dessa nova for-
ma de participação a trajetória de uma dessas Associações, a ACIYOMI. A ACIYOMI é uma
associação afro-religiosa liderada por Mãe Nalva, sacerdotisa do Candomblé de Nação Ketu.
Possui reconhecido trabalho na área de promoção a saúde e prevenção das DST/ AIDIS junto
a comunidades de terreiro. Relata que seu interesse nesse trabalho começou a partir do con-
tato com o terreiro de Pai Euclides, em São Luís, de onde veio sua mãe pequena. Ao conhe-
cer as ações da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, que realiza um trabalho
nacional nesta área, se identificou bastante com a temática e decidiu implantar uma filial da
Rede em Belém. Atualmente, além do trabalho com a prevenção, a ACIYOMI irá instalar um
infocentro, para atender a comunidade local por meio de um projeto com a SEPPIR.
O terreiro fica localizado no bairro da Terra Firme, uma área de Belém de grande vul-
nerabilidade social. Os computadores, mesas e cadeiras para o infocentro já foram entregues,
mas encontram-se ainda lacrados a espera do técnico que irá instalá-los. Por conta deste novo
uso do espaço, Mãe Nalva procura outra sede para o terreiro, o que irá separar as atividades
religiosas das da associação. Mãe Nalva também é conselheira do Conselho Nacional de Se-
gurança Alimentar e do Conselho Estadual de Saúde e se queixa da sobreposição de funções.
Seu trabalho na área de segurança alimentar, que também é realizado por outras associações
de terreiros, consiste na distribuição de cestas de alimentos, doadas pelo Ministério do Desen-
volvimento Social e Combate a Fome, através da SEPPIR. Recentemente estes órgãos governa-
mentais realizaram um mapeamento socioeconômico das comunidades de terreiro, com foco
em segurança alimentar. Mãe Nalva atuou como coordenadora estadual deste mapeamento,
na nação ketu. Além da presença em conselhos e na discussão de políticas governamentais, a
associação tem assento em fóruns da sociedade civil, como o Fórum ONG/AIDS e o Fórum de
Mulheres. Em nível nacional, as comunidades tradicionais de terreiros ou afro-religiosos tive-
ram assento no Grupo de Trabalho que elaborou uma Política para Populações Tradicionais e,
além disso, vem participando de várias conferências nacionais, como de cultural, saúde, meio
ambiente, mulheres, segurança alimentar, igualdade racial.
A prática das Conferências tem se tornado cada vez mais generalizada nos últimos anos
como uma forma de consulta à sociedade civil e para os movimentos sociais sobre a forma
como devem ser conduzidas as políticas públicas para determinados setor, que serve de tema
para a conferência, como por exemplo, educação, saúde, segurança pública, direitos humanos

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
21
e etc. O esforço de realização de Conferências acaba sendo uma grande mobilização em torno
de ideias e projetos que deverão compor as políticas públicas.
Tal comportamento como agente político só é possível diante de um novo modelo de
democracia, que consagre os princípios da democracia direita e onde as formas de participa-
ção cidadã nos destinos da comunidade sejam realmente respeitadas e ouvidas. Os espaços
de participação política direta possuem potencial promissor de crescimento e multiplicação,
desde que sejam incentivados e adequadamente operacionalizados. Para isso devem ser per-
cebidos por seus atores como uma esfera de demandas independente da política partidária,
o que muitas vezes não ocorre, sendo que as disputas políticas e entre partidos e candidatos
podem acabar encapsulando os fóruns de participação da sociedade civil, desvirtuando seu
verdadeiro papel mobilizador.
Em 2006, a chegada ao poder de mais uma governante petista, a nível estadual, nova-
mente dinamizou algumas esfera do governo no sentido de estabelecer canais de diálogo com
a sociedade civil, mesmo que para muitos dos afro-religiosos esses canais tenham sido consi-
derados insatisfatórios. Um marco dessa gestão para os afro-religiosos foi o tombamento pela
Secretaria Estadual de Cultura do único terreiro centenário existente em Belém, o Terreiro
de Mina Dois Irmãos, liderado pela sacerdotisa mãe Lulu. Na área da cultura também houve
outros avanços: uma das associações de afro-religiosos, o Instituto Nangetu, logrou estabele-
cer um Cine Clube no programa Cine Mais Cultura, do Ministério da Cultura, ação que vem
sendo replicada em outras associações de afro-religiosos.
Hoje, um número cada vez maior de lideranças de terreiros de matriz africana em Be-
lém busca legalizar sua casa de culto como uma associação para poder pleitear junto às esferas
governamentais políticas públicas de interesse para suas comunidades. A principal dificuldade
dessas lideranças, segundo suas próprias falas, tem sido a de encontrar um discurso unificado
através do qual possam coordenar suas lutas e demandas, pois reconhecem que já existem
avanços, mas esses encontram-se pulverizados entre as diferentes lideranças e espaços por eles
conquistados.

3. Conquistas de Direitos e Formas de Resistência de Afro-religiosos

Na chamada genealogia dos direitos humanos (SARLET, 2007), o direito de votar e ser
votado faz parte dos direito humanos de primeira geração, garantidos pela Revolução France-
sa e mais tarde consolidados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Os direitos
humanos de primeira geração são, além dos direitos políticos, o direito de ir e vir e o direito
a propriedade, chamados de direitos civis. Esses direitos são característicos do Estado Liberal
e pertencem apenas aos indivíduos. Como um segundo passo e um avanço em relação a estes
direitos, surgem os direitos humanos de segunda geração, ou direitos sociais, e sua garantia ca-
racteriza o Estado de Bem Estar Social. Neste tipo de ordem constitucional há uma preocupa-

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
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ção em garantir a todos, independente de classe, um trabalho digno, saúde, educação e outros
direitos que contribuem para a busca de justiça social em uma ordem econômica capitalista.
Segundo Carvalho (2002), no Brasil a ordem de conquista dos direitos foi bem diferen-
te da forma como se deu nos países de primeiro mundo. No Brasil, houve em primeiro lugar
uma ampliação dos direitos políticos, com a crescente universalização do voto, desde o Impé-
rio até a Nova República, movimento que não se interrompeu mesmo durante a ditadura mi-
litar, contexto onde os direitos civis estavam cerceados. Os direitos sociais surgem com a Era
Vargas e tentem a ser ampliados em contextos de regressão dos direitos políticos e civis, como
o Estado Novo e a Ditadura Militar. Após a Constituição de 1988 os direitos civis são os que se
encontram mais fortemente ameaçados pelo precário acesso à justiça e pela violência urbana.
Nesta genealogia dos direitos humanos pode-se pensar que as irmandades religiosas,
onde se inseriram negros e mestiços, garantiram no Brasil colônia as únicas formas de obten-
ção direitos sociais das quais a população teve acesso, como chama atenção Carvalho (2002).
As irmandades eram responsáveis pelos funerais, a assistência a saúde e até mesmo pela edu-
cação básica, neste período. Por outro lado, num contexto de escravidão era impossível pensar
em direitos civis ou políticos para esses grupos. Já no Império e República Velha, as classes
populares vêm regredir seu acesso a direitos sociais, porém amplia-se o direito a voto, mesmo
que esse direito apresente-se muitas vezes esvaziado de um significado de real participação.
No caso dos afro-religiosos havia nesse período um cerceamento estrito aos direitos civis, pois
mesmo que a constituição garantisse a liberdade de culto, esses religiosos eram perseguidos
na prática por charlatanismo, a pretexto de ideologias sanitaristas ou civilizadoras de gestores
comprometidos com um ideal de modernidade.
Os direitos humanos de terceira e quarta geração são característicos do momento atual
da democracia a nível planetário. Os direitos de terceira geração são chamados direitos de
fraternidade, pois sua titularidade não pertence aos indivíduos ou a grupos, mas sim a pró-
pria espécie humana como coletividade, trata-se do direito a um meio ambiente saudável, à
paz, a autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento e ao patrimônio histórico material
e imaterial. Esses direitos, para serem consagrados ultrapassam as esferas de poderes dos Es-
tados Nacionais, necessitando de esforços coletivos dos vários estados-nação, por isso muitos
deles encontram-se positivados em tratados internacionais (SARLET, 2007). Os direitos fun-
damentais de quarta geração são os de surgimento mais recente e pouco deles encontram-se
positivado em tratados, entre eles estaria o direito a democracia como o direito do cidadão de
participar direitamente das decisões políticas que influenciam a sua comunidade, a chamada
democracia direta (SARLET, 2007). São no interior dessas lutas por direitos que se articulam
muitos dos chamados Novos Movimentos Sociais.
Enquanto o principal instrumento democrático da República Federativa do Brasil foi
o voto, mecanismo de consagração da democracia indireta, alguns líderes afro-religiosos arti-
cularam suas redes de capital social para eleger representantes e mobilizar recursos dessa elite

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
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de governantes em direção aos seus interesses. O conceito de capital social significa utilizar-
se de redes sociais para mobilizar recursos simbólicos, materiais e culturais. As pessoas que
possuem capital social são líderes em suas comunidades. E as lideranças religiosas tem sido
grandes detentoras de capital social que, ordinariamente, mobilizam para fins políticos. Dessa
foram de participação, a história registra os inúmeros boatos do envolvimento e proximidade
entre alguns pais e mães de santo com políticos importantes, como por exemplo, o interventor
federal no Pará durante o Estado Novo, Magalhães Barata (VERGOLINO, 1976).
Essas formas de participação política, fluídas, identitárias em determinados momentos,
político-partidárias em outros, apesar de promissoras como formas de empoderamento, ainda
pouco convergiam para constituir um poder político efetivo para esses grupos dentro de um
cenário mais amplo.
A fundação da FEUCABEP contribuiu para organizar e mobilizar essas redes, no en-
tanto não havia como pleitear melhores espaços de cidadania para esses grupos, considerando
o momento de ditadura militar em meio ao qual ela foi fundada. Com o advento da redemo-
cratização, afro-religiosos no Pará e no resto do Brasil começam a aprender uma nova gra-
mática política, a gramática das ONGs e do associativismo político. Através dessa gramática
passam a atuar na esfera pública de maneira mais autônoma de que em outros momentos da
construção do estado brasileiro.

Considerações Finais

Procurei mostrar neste trabalho que os mecanismos de participação política utilizados pelos
afro-religiosos variaram no tempo e no espaço, no entanto, sempre estiveram atrelados à lógica de seu
momento histórico específico. Portanto, esses mecanismos são passíveis de modificações e avanços.
Durante muito tempo as práticas de perseguição policial aos terreiros de umbanda e
outras religiosidades afro e seu papel marginal na sociedade só permitiu aos líderes afro-reli-
giosos uma participação nas esferas políticas através de alianças com intelectuais e políticos,
buscando garantir seu espaço nas representações sociais da elite, como manifestações folclóri-
cas, dignas de serem estudadas e preservadas e assim evitar as investidas constantes da polícia.
Quando os sindicatos passaram a ser utilizados pelos trabalhadores de várias profissões
como uma forma de organização política em defesa de seus interesses, surgem as Federações
de Umbanda, como órgãos capazes de, nos moldes sindicais, defender e controlar os interesses
de seus associados, expedindo licenças de funcionamento aos terreiros, o que garantia de certa
forma, um status de legalidade.
Por outro lado, os líderes religiosos e as federações sempre foram procurados e busca-
ram apoio de políticos, com quem trocavam votos em busca da garantia de que teriam alguém
para defender seus interesses nas esferas de poder político. Tais práticas foram vistas como
mero clientelismo, entendido como algo negativo, já que torna aquele que negocia o voto

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
24
refém do político que elegeu (PRANDI, 1992). Essa forma limitada de participação política
ocorreria entre os afro-religiosos pela suposta predominância entre eles da crença em solu-
ções mágicas para problemas práticos, o que os impediria de atuar politicamente na sociedade
(MONTEIRO, 1994, MAGGIE, 2001).
O voto em bloco em determinados políticos, praticado por lideranças religiosas e suas
respectivas comunidades de terreiros, é apenas a concretização de uma das formas de partici-
pação possibilitadas pelo mecanismo da democracia indireta, em que a sociedade é governada
por grupos de interesse representados em uma assembléia, e cada grupo deve lutar por eleger
seus representantes. A corrupção deste mecanismo, na sociedade brasileira, muitas vezes se
deu pelo pouco empoderamento dos eleitores, que após a eleição não tinham maneiras de con-
trolar os mandatos de seus eleitos. Com o fortalecimento dos movimentos sociais, tal situação
tende também a regredir.
Os novos mecanismos de democracia direta ampliam o conceito de participação po-
lítica, que não fica limitada apenas ao momento do voto e das eleições. No antigo modelo da
democracia indireta, o eleitor transmite uma procuração de plenos poderes ao representante
eleito e pouco participa do processo de formulação e implementação de políticas públicas.
Por outro lado, a democracia direta, efetivada através de Conselhos e Conferências, e as novas
formas de associativismo permitem que os diversos grupos da sociedade civil estejam repre-
sentados e participem, em sua dinâmica, do processo de construção de políticas públicas.
A trajetória histórica de participação política dos afro-religiosos demonstra que estes
grupos têm estado atentos aos espaços de participação política estabelecidos no Brasil nas
últimas décadas, o que de certa forma se explica pela sua condição de vítimas históricas de
preconceito e discriminação por parte da sociedade envolvente. Os movimentos sociais a e
as novas formas de associativismo tem se mostrado um espaço florescente de construção da
cidadania por esses grupos e tendem a ser cada vez mais instrumentalizados. Pode-se entendê
-los, assim, como novos movimentos sociais com referências religiosas, conceito que os afasta
da identidade dos novos movimentos religiosos, compreendidos como aqueles voltados para
o indivíduo e para o reencantamento do mundo particular do sujeito. As práticas mágicas fa-
zem parte do tradicional referencial de sagrado das religiões afro-brasileiras, porém sua esfera
de atuação não exclui formas de organização política voltadas para a mobilização de sujeitos
coletivos que também são constitutivas dessa tradição religiosa.

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
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Recebido em 03/10/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

A ATUAÇÃO POLÍTICA DE AFRO-RELIGIOSOS EM BELÉM, PARÁ: DA GUERRA MÁGICA AO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL • Daniela Cordovil
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O DRAMA DA VIDA SEVERINA:
E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO

Eli Brandão da Silva1

RESUMO: O texto apresenta uma leitura da obra Morte e Vida Severina:


Auto de Natal Pernanbucano, de João Cabral de Melo Neto, perspectivando o
nascimento de severino como revelação poético-teológica da esperança que
sufoca o desespero, como ponte plurifacetária entre teologia e literatura. O
poema-obra cabralino é ilustra a complexa relação interdiscursiva entre o
literário e o teológico, por meio do palimpsesto bíblico; entre discurso teológico e
discurso literário, relação transdisciplinar; e entre linguagem poética e linguagem
teológica, encontro da metáfora com o símbolo.

Palavras-chave: 1. Literatura; 2. Teologia; 3. Esperança; 4. Evangelhos; 5.


Símbolo.

ABSTRACT: This text offers a reading of the work Morte e Vida Severina:
Auto de Natal Pernanbucano, by João Cabral de Melo Neto, viewing the birth of
Severino as the poetic-theological revelation of hope that suppresses despair, and
the multifaceted bridge between theology and literature. This discussion seeks to
present the Cabralino poem – work as a sample of the complex relation: between
literary text and theological text, revelation of the Biblical palimpsest; between
theological discourse and literary discourse, transciplinary relation; and between
poetic language and theological language, the encounter of metaphor and symbol.

Keywords: 1. Literature; 2. Theology; 3. Hope; 4. Gospels; 5. Symbol.

Introdução

No cenário brasileiro dos últimos anos, observamos uma crescente produção de


trabalhos resultantes de estudos que procuram interpretar as diversas relações operadas no
seio das culturas e no interior dos textos, dentre os quais destacamos os que enfocam o diálogo
intercultural envolvendo literatura e teologia. É no contexto deste mais específico debate que
o presente trabalho concentra o seu foco, empreendendo leitura da obra MORTE E VIDA
SEVERINA: AUTO DE NATAL PERNAMBUCANO, de João Cabral de Melo Neto.

1
Graduado em Letras e Teologia, Mestre em Teologia, Doutor em Ciências da Religião, Professor Efetivo da Universidade
Estadual da Paraíba, no Depto. de Letras e Artes. Ensina componentes curriculares na área de Literatura e Teoria
Literária no Curso de Graduação em Letras, no Mestrado e Doutorado em Literatura e Interculturalidade (PPGLI),
onde orienta estudantes e coordena projetos na interface Literatura/Teologia/Filosofia. Coordena o NEFITEL - Núcleo
de Estudos Filosóficos e Teológicos pela Literatura e o Grupo de Pesquisa LITTERASOFIA - Hermenêutica Literária
em diálogo com a Filosofia e a Teologia. E-mail: elbrandy@uepb.edu.br

29
O poema cabralino divide-se internamente em 18 cortes que antecipam o curso da
narrativa. Separando o Auto de Natal propriamente dito do restante da obra, contamos 12
cortes, simetricamente atualizados por seis monólogos e seis cenas, dispostos alternadamente.

No primeiro monólogo, Severino retirante faz sua auto-apresentação


e nos demais medita sobre as cenas que se lhe apresentam. A narrativa segue
linearmente, alternando monólogos / cenas, constituindo a tensão dramática, que,
progressivamente, vai se condensando até o clímax, momento em que há uma
interrupção da narrativa e o Auto de Natal é encaixado. A divisão neste trabalho
respeita a ordem em que estão dispostos os monólogos e as cenas, fazendo um
peculiar agrupamento, tendo em vista o objetivo da leitura.

1. Ensaiando entrar no texto


O texto é como uma partitura musical e o leitor como o maestro que
segue as instruções da notação. (...) compreender não é apenas repetir o evento
do discurso num evento semelhante, é gerar um novo acontecimento, que começa
com o texto em que o evento inicial se objetou 2

O tecido-obra-objeto em estudo reclama método de leitura compatível com sua


complexa e híbrida configuração. Por isso, o caminho proposto reflete complexa convergência
engendrada no interior do poema, cuja dinâmica representa o próprio objeto funcionando.
A leitura de textos literários ou teológicos requer análise e interpretação. A proposta
aqui se desenvolve amalgamando contribuições da teoria da transtextualidade3, de Genette,
da semântica discursiva de Maingueneau, conjugadas na esteira da teoria da interpretação
de Ricoeur. Não será, portanto, uma leitura rigorosamente transtextual, pois possui degrau
semântico-discursivo e hermenêutico. Mas pode ser entendida como espécie de hermenêutica
transtexto-discursiva, entendendo que a identificação de qualquer relação hipertextual
implica interpretação. Reconhecer relação contratual entre dois ou mais textos implica pré-
conhecimento dos envolvidos. Neste sentido, diz-se que “o leitor que partilha da cultura do autor
tem, necessariamente, um intertexto mais rico” 4. De modo que a leitura ou reescritura de um
auto de natal, necessariamente, evoca os seus textos fundantes, os Evangelhos. Prosseguimos,
então, na convicção de que “a obra pode ser concebida e julgada do ponto de vista de qualquer
dos valores nela contidos” 5.

2
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. Porto: Porto Editora, 1995,p.121.
3
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982. Genette define a trans-
textualidade como tudo o que coloca um texto em relação manifesta ou secreta com outros textos e distingue cinco
modalidades específicas de diálogo transtextual, que, ao mesmo tempo, são aspectos de toda textualidade. Ele enumera
os tipos numa ordem crescente de abstração, de implicação e de globalidade: Intertextualidade, paratextualidade, me-
tatextualidade, hipertextualidade e a arquitextualidade.
4
RIFFATERE, 1989, p.41
5
MUKARÓVSKY, 1981, p.128,169,170

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
30
Por interpretação, entendemos na esteira de Ricoeur a polaridade explicação /
compreensão numa “dialética complexa e altamente mediada”, que se refere a duas fases de
um único processo. Primeiro por meio de movimento da compreensão para a explicação e,
segundo, numa inversão, da explicação para a compreensão. Inicialmente, a compreensão é
uma conjectura, captação ingênua, porém não completamente arbitrária, do sentido do texto
como um todo. O segundo momento é explicação da estrutura, que tem em vista mais rica
compreensão. A explicação operacionaliza-se por meio de procedimentos interdiscursivos e
hipertextuais. O terceiro momento, apoiado nos anteriores, é uma interpretação, aplicação como
resultado de certa apropriação. A compreensão é que uma hermenêutica literária deve assumir,
tríplice tarefa: compreender, explicar e aplicar, à semelhança da aplicação da pregação após
exegese bíblica, do veredicto após exegese jurídica6. Leitura, então, em três etapas: conjectura;
análise; e interpretação.

2. Paratexto7 tagarela

O deus, cujo oráculo está em Delfos, não oculta nem revela: ele indica.8

Só se deve entrar no texto através dele mesmo. Aqui, a porta será o título e o subtítulo
da obra, elementos ostensivos que funcionam como chave de acesso imediato ao texto,
constituindo-se sintagmas identificadores que funcionam como “iscas” de metatextos críticos,
revelando aspectos da arquitextualidade9 da obra.
O paratexto principal da obra é tagarela, pois apresenta forma mista, compreendendo
elementos “temáticos e remáticos”10. O título, MORTE E VIDA SEVERINA, tematicamente,
refere-se à dialética, persistente em toda a obra, Morte como convite ao desespero e Vida
como convite à esperança; enquanto o subtítulo, AUTO DE NATAL PERNAMBUCANO,
rematicamente, refere-se ao gênero dramático, na forma singular do Auto. O título denuncia
a tensão, essência do dramático, que alimenta o ritmo cênico de todo o drama, qualificando e
intensificando a sina que marca os personagens, através do modificador “Severina”, indicador de
severidade. O subtítulo, além de se confessar religioso, Natal, apresenta-se como representante
de uma forma típica: Pernambucano.

6
RICOEUR, 1995, p. 296
7
Segundo tipo de transcendência textual do texto da teoria da transtextualidade de Genette. Dentre eles: o título, o sub-
título, intertítulo, prefácios, posfácios, avisos, notas marginais, epígrafes, ilustrações, além de outros sinais acessórios
que asseguram ao texto um envolvimento, um comentário, oficial ou oficioso.
8
Heráclito.
9
Quinto tipo de transcendência textual, o mais abstrato e o mais implícito. Refere-se às relações do texto com normas
conceptuais e categoriais que regulam a ordenação textual, aos gêneros e sub-gêneros da literatura. GENETTE, 1982,
p. 12.
10
Dois tipos dominantes, com modulações e modalidades de transição: os temáticos se referem ao conteúdo do texto; e
os remáticos, se referem às características de natureza quase sempre arquitextual. GENETTE, 1972, p.75..

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
31
Os autos designavam na Idade média toda peça curta e equivalia a um ato que viesse
a integrar um espetáculo maior e completo, relacionando-se tematicamente aos mistérios
ou às moralidades11. No Auto cabralino, temos a combinação de aspectos das duas referidas
modalidades, visto que a dicotomia teológica dos mistérios é substituída, como observa
Nunes12, pela dialética Vida & Morte, que conserva não só a temática dos mistérios, mas
também a função didática das moralidades. Outro dado na complexidade configurativa do
Auto cabralino é a relação entre este e os autos de devoção e de conversão13
A obra sugere um palimpsesto. O Auto cabralino parece dissimular e subscrever textos
da tradição do pastoril pernambucano, dos autos medievais dos Evangelhos de Mateus e Lucas,
fundadores da tradição natalina indicada pelo título.

3. Severino e seus enigmas


Somos muitos Severinos / (...)/ iguais em tudo e na sina14

Observando o paratexto que introduz este primeiro monólogo “O RETIRANTE EXPLICA


AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI” constata-se configuração de síntese da obra, anunciando
uma espécie de monólogo-hipótese. As referidas indicações do paratexto de abertura sugerem
que na seqüência da narrativa se saberá quem é o retirante e qual o seu propósito. O retirante se
auto-apresenta: “O meu nome é Severino”. Severino é o seu nome. Mas a identidade de alguém
não é apenas o seu nome. O nome, de fato, identifica e com ele as pessoas se identificam, sendo
um símbolo. O nome é apenas uma entre outras formas de representar a identidade. Além do
nome de registro, alguém pode ser identificado, por exemplo, por sua profissão: pela família, pelo
lugar de nascimento, pela religião. A identidade pode ainda ser definida como um “processo-
metamorfose”15, como algo a ser construído ou como algo a ser decifrado.
A intuição que temos é a de que Severino vai se apresentando a retalho: “não tenho
outro de pia”. Ele, agora, parece querer se identificar de forma apofática, através do menos,
algo recorrente na poética de Cabral16. A falta de sobrenome que o distinga familiarmente

11
Nos mistérios, temas retirados da Bíblia para transmitir ao povo a história, os dogmas refletem o conflito do homem,
em face do Bem e do Mal; do Pecado e da Graça; da Salvação e da Perdição eterna, entre outros. Nas moralidades,
temas retirados da vida concreta objetivam analisar e criticar os costumes, por meio de personagens que representam
abstrações personificadas de vícios e virtudes humanos, em face de certa visão de mundo.
12
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1974.
13
Zagury chegou a essa conclusão, após análise do Auto da Mofina Mendes e do Auto de los Reyes Magos, na busca de
identificar as raízes de Morte e Vida Severina na tradição ibérica. Zagury, 1991
14
Os fragmentos da obra Morte e Vida Severina aparecerão sem indicação de pagina.
15
CIAMPA, 1987, p.129
16
Barbosa (1975, p.113), referindo-se a Cão sem Plumas, procura mostrar que a intensidade da negatividade cabralina
se revela ainda maior na medida em que aquilo que, ironicamente, se nega ao sujeito: cão/rio, é o que tem mais valor
no léxico. Para NUNES (1974, pp.88-89), a negatividade de Severino se revela na medida em que este “nomeia tudo o
que é vinculado, pela igualdade do anonimato, à dialética morte / vida”. Já Secchin (1983, p.107) procura mostrar que a
dialética do menos, presente em toda obra cabralina, expressa-se através da relação entre a palavra esvaziada do poema
e o espaço sócio cultural – carente e desfalcado – que ela incorpora.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
32
acrescenta algo ao seu nome. Não ter “outro de pia” não é apenas um menos em sua identidade,
mas também a revelação de sua identidade religiosa: é um cristão. Ou, pelo menos, fica claro
que foi batizado nesta tradição. Na seqüência, parece não conseguir êxito em acrescentar a si
algo mais que o distinga dos demais homens, pois:

Como há muitos Severinos, / que é santo de romaria,

Seu nome não é suficiente para distingui-lo dos demais, pois ele pode ser confundido
com os santos de romaria. Mas esse anonimato amplia sua identidade, pois essa identificação
pode se associar a certa sina de caminhante religioso, que ora vai carregado pelo curso do
rio, ora vai carregando outros para um lugar sagrado. Por causa da possível confusão de sua
identidade coletiva, Severino acrescenta:

deram então de me chamar / Severino de Maria;

Atentemos para as figuras que surgem. Maria, isoladamente, já é novo acréscimo a


sua identidade: tem mãe, cujo nome é Maria. Trata-se de nome riquíssimo de sentido e de
referência: é o nome da mãe de Jesus. Ora, isto é mais para sua identidade. Aqui o vemos, de
alguma maneira, identificado com o próprio Jesus: seja como seu irmão, outro parente ou
discípulo, seja com sua sina. Ser filho de Maria o enriquece, mas parece ainda dizer pouco:

como há muitos Severinos / com mães chamadas Maria, / fiquei sendo o da


Maria / do finado Zacarias.

Como Maria também é também a mãe de muitos Severinos, ele precisa acrescentar
o nome do pai: Zacarias. Zacarias não é um nome qualquer, seu pai é homônimo do pai de
João, o batista. Por essa razão, cria-se mais um enigma. Pressupomos que os Evangelhos estão
necessariamente contidos e semi-apagados no “Auto”, e que podemos lê-los no texto atual
como por transparência, pois um texto pode sempre camuflar outros, sem, contudo, jamais
dissimulá-los completamente17.
Sem pretensões de realizar interpretações totalmente fantasiosas que não encontrem
plausibilidade no texto, mostraremos como, gradativamente, o nível temático dá sentido ao
figurativo e o narrativo, do mesmo modo, ilumina o temático. A recorrência do tema subjacente
às figuras vai, desse modo, tecendo a unidade da leitura.
Nos Evangelhos, os antropônimos Maria e Zacarias não são figuras isoladas, mas
formam rede relacional, onde as figuras se articulam para produzir determinado efeito. Se em
lugar de Maria e Zacarias tivéssemos Benedita e Fabiano, o sentido sugerido seria outro. Como
a interpretação de um texto não se reduz à mera apreensão de figuras isoladas, mas, sim, à
identificação das relações que entre elas se estabelecem e à avaliação da trama que constituem,

17
GENETTE , 1982, p. 12.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
33
curiosa é essa associação. Isto porque nos evangelhos Maria é esposa de José e Zacarias é
esposo de Isabel. Esta aparente confusão com os nomes dos personagens dos Evangelhos nos
desafia a encontrar o sentido da nova relação estabelecida, visto que Maria é a mãe de Jesus
e Zacarias é o pai de João, o batista. Parece, portanto, claro que o nosso Severino, através dos
antropônimos paterno e materno, estabelece dupla relação com os Evangelhos: por parte de
Maria, com Jesus; e, por parte de Zacarias, com João, o batista.
Na seqüência da narrativa, Severino ainda em busca de mais acrescentar a sua
identidade, reconhece que tudo quanto disse “ainda diz pouco”, pois Zacarias foi também
um antigo coronel. Buscando distinguir seu pai do seu homônimo, acrescenta sua identidade
toponímica: é pernambucano do sertão, de um lugarejo vizinho a Paraíba, o que poderia
suscitar dúvida preconceituosa e milenar: pode vir alguma coisa boa da Serra da Costela?18.
Severino é, antes de tudo, insistente. Percebendo que “ainda diz pouco”, pois na serra
havia muitos severinos, através de recurso sinestésico, identifica-se com a Serra “magra e
ossuda”, revelando mais um aspecto de sua complexa identidade: é semelhante a sua própria
terra porque dela foi formado.
Inicialmente, Severino era só ele mesmo e, por isso, a 1ª pessoa do singular; depois, ele
é também os outros e, por isso, a 3ª pessoa do plural. Agora, Severino assume sua identidade
expandida e, por isso, utiliza a 1ª pessoa do plural, pois esta inclui as demais. É como se
confessasse: “meu nome é legião porque somos muitos”19. Embora essa sina pareça refletir um
estado demoníaco, conjectura-se que ela possua também dimensões messiânicas.

Somos muitos Severinos / iguais em tudo na vida (...)/ iguais em tudo e na


sina

Iguais na constituição física e frágil; iguais, também, porque é uma vida que,
dialeticamente, contém a semente-flor-fruto da condição severina, abrigo de permanente
ameaça de morte; iguais, ainda, porque é uma missão ou sina difícil.
Severino é filho de Maria e de Zacarias; é semelhante ao solo de que foi formado; é
representante da vida e da sina do seu povo; enigma, em relação às narrativas dos Evangelhos.
Identidade coletiva, mas também identidade pessoal, na medida em que no todo está a parte e
na parte está o todo, pois aquilo que o iguala aos outros também é ele.
O tema foi surgindo por intermédio das indicações paratextuais e do primeiro monólogo.
As figuras foram se juntando, sugerindo a concretização do tema do Natal. Para além da
anônima generalidade que identifica o herói com uma vida típica de retirante, exemplarmente
filho da severidade, a sua identidade excessiva é quem conduz nossa leitura. As figuras não
podem ser interpretadas isoladamente e nem superficialmente. Por isso, ressaltamos não o
fracasso do Severino em apresentar sua identidade pessoal, mas o sucesso alcançado pela

18
Análoga depreciação foi feita a Jesus. “Poderá vir alguma coisa boa de Nazaré?” (João 1:46).
19
Resposta do endemoninhado à pergunta de Jesus – Qual é o teu nome? (Marcos 5:9).

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
34
identidade excessiva construída. Severino é uma “metáfora viva”. Um personagem com excesso
de sentido e de referência.
Concluindo sua auto-apresentação, Severino acrescenta:

- Mas, para que me conheçam / melhor Vossas Senhorias / e melhor possam


seguir
a história de minha vida, / passo a ser o Severino / que em vossa presença
emigra.

Severino iniciou este monólogo dizendo:

O meu nome é Severino...

Agora, no final, conclui:

Passo a ser o Severino...

No início da auto-apresentação, “o meu nome é Severino” foi-se revelando como muito


pouco e, por isso, Severino passou a dizer cada vez mais sobre si.
Agora, no final do primeiro monólogo, em “Passo a ser o Severino..”. o sentido foi
ampliado pelo enigma gerado pela sua já confessada identidade coletiva, anônima. Uma
confissão que pode ser entendida como: Passo a ser o Severino com muito mais e em processo
de ser ainda mais. Um Severino-retirante-profeta que traz consigo uma sina comum aos
sujeitos coletivos que representa. Severino é um e muitos, como o rio e todos os inumeráveis
Severinos que do Sertão deságuam nos mangues do Recife; é o que nomeia tudo o que é
vinculado, pela igualdade do anonimato, à dialética morte/vida20, “um severino Severino”21.
Sua identidade inclui a de um retirante nordestino, mas a extrapola. A obra de João Cabral,
como observa Barbosa22, embora transporte sempre marca da concretude regional, seu valor
está mais no tratamento dado aos temas e procedimentos poéticos do que apenas como fonte
de documentação regional. Por isto, mais do que um representante do retirante, ele incorpora
aspectos do homem universal, na medida em que simboliza os que em busca da vida, da
esperança, emigram de qualquer parte do mundo, de qualquer estado e em qualquer época.
Em face do contexto do Natal, a tagarelice do paratexto principal da obra e o sentido
extravagante da identidade do Severino propuseram alguns enigmas:
Qual a relação entre o Auto de Natal Pernambucano e os Evangelhos? Qual a relação
entre Severino e Jesus? Qual a relação entre Severino e João, o batista? O Severino que vai
conduzir esta viagem é um personagem híbrido, que tem um eu expandido, complexo e

20
NUNES, 1974, p. 88-89.
21
CIAMPA, 1987, p. 22.
22
1986, p. 107.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
35
composto: poético e teológico; pessoal e coletivo, um sim-não e um ainda-não, uma espécie
de João-Severino. O paratexto deste primeiro monólogo parece ter conseguido cumprir a sua

sina, pois o personagem apresentou-se não só como indivíduo, mas também como símbolo de
coletividade, como enigma e como ação que prossegue.

4. Predestinação: conjectura transtextual


Ela tem tal composição
E bem entramada sintaxe
Que só se pode apreendê-la
Em conjunto: nunca em detalhe23

A conjectura, teologicamente e teleologicamente, pode ser chamada de predestinação


transtextual, por se apoiar em indicações paratextuais e em figuras e temas.
Os autos de natal, peculiarmente, jamais configuram drama de caráter trágico. Ao
contrário, por serem peças curtas integrantes de um espetáculo maior, configuram sempre
um certo tipo de peça-mito de caráter celebrativo. O poema cabralino, entretanto, possui um
duplo caráter: o trágico e o celebrativo. Na primeira parte, configura-se um drama de caráter
trágico. Nele, a tensão dramática progressivamente se condensa até o ponto mais alto, mas
não se consuma em tragédia, pois, no momento nefasto, abre-se uma segunda parte, na qual
ocorre o encaixe do Auto de Natal propriamente dito.
Assim, pressupomos que o primeiro auto – o drama trágico de Severino – exerce no
conjunto da obra a função de prólogo alongado do Auto. Tal disposição ressalta o caráter
simbólico do nascimento do menino como esperança para o drama trágico da existência.
O drama trágico do Severino, sua tensão entre vida e morte, mais do que o símbolo
da condição humana de um povo regionalmente localizado, tem uma extensão que alcança
a dimensão humana em sua universalidade. Pressupomos que a primeira parte do Auto – da
auto-apresentação até à cena do salto – é uma alegoria do drama da existência humana. E que
o encaixe do Auto de Natal no momento exato da consumação da tragédia humana conquista
sentido profundamente teológico. Isto porque, tratando-se de um auto de natal, nem é possível
o texto configurar-se sem dissimular os prototextos teológicos fundantes da tradição natalina,
nem se pode conceber que qualquer leitor que compartilhe da cultura ocidental cristã não
relacione o menino que nasce como alusão ao Jesus dos Evangelhos de Mateus e Lucas.
O palimpsesto funciona como chave na leitura de dois ou vários textos em função
de um outro. Um texto é palimpsesto quando inclui, reveste e incorpora outros textos24.
Pressupomos que a obra cabralina é palimpsestos de palimpsestos. E que entre o “Auto de Natal
Pernambucano” e os Evangelhos estabelece-se uma relação hipertextual, por transformação,

23
MELO NETO, 1999, p. 294.
24
GENETTE, 1982, p. 452.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
36
sendo o “auto” o hipertexto e os Evangelhos seus hipotextos. Como as relações entre eles não
se apresentam como relações contratuais explícitas, faz-se necessário desvendar as marcas dos
hipotextos dissimuladas no texto atual.
Conjecturamos que o Auto cabralino é palimpsesto e possui em comum com os
Evangelhos a configuração discursiva => o nascimento de uma criança; e o núcleo sêmico
=> símbolo da esperança. A esperança gradativamente destruída e o desespero de tal modo
intensificado instaura um simbolismo de sentido apropriadamente teológico.
Será, portanto, leitura em travessia para os Evangelhos, seguindo o curso da narrativa
poética, numa alternância metodológica, entre semiótica literária, semântica e hermenêutica;
entre o discurso teológico e o discurso literário; entre o hipertexto e o hipotexto; entre Morte –
como o grito do desespero - e Vida, como convite à esperança, numa dialética que pode muito
bem ser traduzida pela tensão criada entre o desespero-semente e a esperança-semente.
O caminho segue o desespero brotado que vai crescendo e a esperança teimosa que
vai emudecendo a cada cena. A esperança teima em se fabricar, mas o desespero insiste em
ser fatal. Caminho, portanto, marcado pela contínua tensão dramática, que prossegue em
alternância progressiva e convergente até o clímax.
A conjectura suspeita que o nascimento da criança metamorfoseia poeticamente o
desespero em rito celebrativo da esperança, tema por excelência teológico, estabelecendo um
reencontro25 entre a revelação da poesia26 e a revelação da teologia.

5. No caminho do rio-severino
Vou andando lado a lado
de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando27

A viagem do Severino é fuga da morte imposta pela própria vida Severina, que cedo é morrida
ou matada; fuga do desespero, que é a morte da qual não se pode morrer28.
Seguindo o rio, seu caminho de fuga é também o de busca de vida, de esperança. Ao
retirar, Severino não deseja simplesmente abandonar o Sertão. Ele deseja fugir das ameaças de
morte, mas também chegar a Recife, seu destino, onde as águas se tornam abundantes, onde a
vida é presumivelmente mais vida. A cidade passa a ser mais do que ponto de chegada, torna-
se símbolo de sua esperança. Com isto, a pretensão de chegar ganha um novo sentido, pois
sua fuga também passa a representar mais do que a defesa da vida. Chegar a Recife representa
também um voto de confiança à esperança que teima fabricar mais vida.

25
Poesia e teologia nasceram no mesmo berço mítico.
26
“A poesia é a iminência de uma revelação”. BORGES, s.d.
27
MELO NETO, 2000, p. 121.
28
KIERKEGAARD, 1980, p. 201.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
37
Sua viagem, portanto, segue marcada pelo malogro recorrente e pela esperança
ressurgente. Cada morte presenciada testifica a vida sobrevivida, portanto a esperança ainda
não totalmente consumida pelo desespero fatal. Cada conjunto cena-monólogo revela a
dialética morte-vida, desespero-esperança, fundadora, mantenedora e plenificadora da tensão
dramática da obra. Nas cenas, a morte vai, progressivamente, condensando-se, desvelando
o trágico, ao tempo em que, simetricamente, nos monólogos, a esperança de Severino vai
se tornando impotente para combater o desespero fatal. O desespero cresce e a esperança
se despede no último par cena-monólogo. Mas, diferente dos outros pares cena-monólogo,
no diálogo entre Severino e seu José, mestre carpina, a dialética morte-vida revela sua maior
intensidade: o desespero mortal domina o retirante; a esperança de vida malogra em sua fala,
mas ressurge na fala do mestre carpina.

6. A morte se apresenta e a esperança vacila

Logo no início de sua viagem-fuga em busca da vida, Severino se depara com a morte. O
diálogo entre Severino e os “irmãos das almas” que carregam um defunto vai revelando gradativamente
o rosto da morte, seus agentes e os seus efeitos.

A quem estais carregando/ irmãos das almas, ? / (...) A um defunto de nada,


(...)/
E sabeis quem era ele ? / irmãos das almas, ? / (...)/ Severino Lavrador, /
mas já não lavra.

A morte que se apresenta ao Severino reduz o outro humano a “um defunto de nada”.
No diálogo, é como se as respostas dos irmãos das almas às perguntas de Severino fossem
gradativamente revelando que o que é próprio da vida severina é a morte, que esta é a morada
para onde cada um, gastando as suas horas, viaja. E, deste modo, a morte se apresenta como
uma castração que impede o ser humano de continuar construindo a sua identidade. Ele não
poderá mais acrescentar nada ao seu ser, restando-lhe apenas um indício negativo do que ele
foi em vida: “é Severino Lavrador, mas já não lavra”.
A morte revela-se como renovo perante ele, como raiz duma terra seca, como a
paisagem física e humana que ele tanto conhece. A primeira paisagem, a Caatinga mais seca e
a terra magra e ossuda sempre mais extinta, que “não dá nem planta brava”, mas que assegura
a morte de fome um pouco por dia; a segunda, a ganância insaciável dos coronéis, que garante
a “emboscada antes dos vinte”. Seja pela morte morrida de fome, de fraqueza e de doença; seja
pela morte matada, por uma “ave-bala”, soltada, “voando desocupada”. A morte matada aqui é
obra dos que têm a ganância do poder político-econômico; dos que, ao se sentirem ameaçados
em seus interesses, não hesitam em soltar as “filhas-bala”.
Na seqüência, a morte não o abandona e parece querer definitivamente acompanhá-lo
até o Recife, pois se reapresenta não só como símbolo de sua última morada - o cemitério,

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
38
destino final do defunto-severino - mas também como o seu próprio caminho – “Toritama
é minha estrada” - o que revela a sua inequívoca identidade com a sina de morte. Severino
não tem plena consciência da situação e quer prosseguir. Sabe apenas que “é muito longa
a viagem e a serra é alta” e presume que mais sorte tem o defunto, que não fará na volta a
caminhada. Fortuna apenas aparente, pois se, por um lado, quem morre não sente mais a
ameaça da morte; por outro, também não pode mais ter esperança. Ao se apresentar, a morte
fez vacilar a esperança.
No segundo monólogo, imagens religiosas diagramam o roteiro monótono do
empreendimento de viagem de Severino até Recife:

Antes de sair de casa/ aprendi a ladainha / das vilas que vou passar
na minha longa descida. / sei que há vilas grandes, / cidades que elas são ditas;
sei que há simples arruados, / sei que há vilas pequeninas, / todas formando um
rosário cujas contas fossem vilas, / todas formando um rosário / de que a estrada
fosse a linha. /Devo rezar tal rosário / até onde o mar termina.

A configuração do rosário é análoga à justaposição dos monólogos e cenas da


composição da obra. E o conjunto ladainha / rosário29 representa, sinteticamente, o roteiro da
viagem de Severino: por um lado, a monotonia; por outro, as sucessivas etapas a cumprir. Este
componente religioso do seu percurso leva Severino a concluir que a última conta do rosário
apenas poderá ser rezada quando chegar a Recife. Confessa, entretanto, que não julgava que
seria tão difícil seguir o monótono caminho do rio:

Vejo agora: não é fácil / seguir essa ladainha

Isto porque, observando lugares secos de água e secos de vida, “lugares onde o pé se descaminha”,
a esperança de Severino vacila e, tomado por esse espírito, ele lamenta:

Pensei que seguindo o rio / Eu jamais me perderia: / Ele é o caminho mais certo,
De todos o melhor guia. / Mas como segui-lo agora / Que interrompeu a descida ?

Severino percebe que a dificuldade do seu empreendimento vai se tornando ainda maior pelo
fato do rio ser também Severino:

É tão pobre que nem sempre / Pode cumprir sua sina / E no verão também corta,
Com pernas que não caminham.

Não podendo, provisoriamente, contar com o seu caminho-guia, o rio30, símbolo de sua
esperança de mais vida, as indicações dos símbolos religiosos que orientam as estações de sua via patética

29
Enfiada de 165 contas, correspondentes ao número de 15 dezenas de ave-marias e 15 padre-nossos.
30
O rio é o símbolo da esperança, é caminho, é guia e é o ponto de chegada. João, o batista, realizou sua missão batizan-
do às margens do rio Jordão. No Cristianismo, o batismo é rito de iniciação a uma nova vida, mas também, dialetica-
mente, símbolo de morte.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
39
ficam também sem efeito. A personificação do rio em face da desertificação física e humana pode aqui
ser apropriadamente chamada de “liquidificação do homem e humanização do líquido”31.
Severino não pode contar com o rio, pois este interrompeu o seu curso; nem com o
rosário, pois o seu sentido falhou junto com o rio, gerando a desorientação. Nem a religião
nem a natureza podem ajudá-lo. Surge, desesperada, a dúvida:

Tenho que saber agora / Qual a verdadeira via

Somos remetidos aqui, interdiscursivamente, a outro Severino, também filho de


Zacarias, quando nas malhas do poder político-religioso e sob a ameaça de morte, teve dúvida
sobre a verdadeira via, o verdadeiro Messias, e enviou dois dos seus discípulos a Jesus para
perguntar-lhe: “és tu mesmo o messias ou devemos esperar por outro?”32.
Quando nem as circunstâncias naturais, nem os símbolos da religião podem ajudar, a
decisão mais sensata é desistir ou deixar emaranhar o fio da linha. Severino não deseja voltar,
mas sabe que precisa urgente de solução. Mais do que a necessidade da fuga e mais do que o
desejo de chegar a Recife, agora, a questão é assumir com a vida o combate contra a morte.
Desorientado, Severino não tem com quem se comunicar e são vários caminhos que
diante dele se multiplicam. Um, entretanto, à distância, parece agradável:

quem sabe até se uma festa / ou uma dança não seria?

7.A morte festiva e a esperança reflexiva

A positividade aparente se dilui. Não é festa, mas um velório onde pessoas cantam
excelências33 para um defunto. Severino está outra vez diante da morte e a consciência de sua
condição severina se aprofunda. A morte desta vez aparece revestida de um certo tom festivo.

Finado Severino, / Quando passares em Jordão / E os demônios te atalharem


Perguntando o que é que levas... / Dize que levas cera, / Capuz e cordão
Mais a virgem da Conceição.

O encadeamento das figuras “Jordão”, “passar” e “demônios” revela percurso figurativo que
remete a percurso análogo nos Evangelhos, pois a travessia do rio e a imersão no rio têm o sentido
idêntico de passagem para outra vida34. O percurso temático desta cena sugere que, implícito ao
canto das excelências, está a tradição teológica na qual a reza de encomendação da alma do morto
se fundamenta. Segundo o preceito, o morto deveria levar consigo alguns símbolos religiosos para
exorcizar os demônios que surgissem e para garantir o cuidado divino no outro lado da vida. Mas,
enquanto a reza se processa, do lado de fora, ouve-se uma paródia ao canto que vem de dentro da casa.
31
SECCHIN, 1983, p. 109.
32
Lucas 7:19.
33
Cantiga de velório em uníssono, sem acompanhamento instrumental.
34
ELIADE, p. 240-244.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
40
Dize que levas somente / Coisas de não: / Fome, sede, privação.
(...)/ Dize que coisas de não, / Ocas, leves: / Como o caixão, que ainda deves.

O contracanto que parodia as palavras dos cantadores, no fundo, contesta o princípio teológico
que fundamenta aquela tradição religiosa. O conteúdo parodístico apresenta um combate aos
demônios por uma via negativa – “coisas de não” – que denuncia a inutilidade do preceito teológico
e insinua que, como não serviram para defender o defunto-severino, não serão úteis após a morte.
As figuras concretas apontam para um realismo tão severino que, por isso mesmo, é mais eficaz na
exorcização dos demônios do que a mera repetição do credo. O sentido místico da cerimônia é rebatido
parodisticamente, como observou Costa Lima35, em duplo sentido: dentro da cena, paródia à reza;
fora dela, paródia a uma certa lírica que prefere caçar o etéreo ao invés de apontar a densa privação da
contingência. A esperança não encontra fôlego na reza parodiada pelo discurso da realidade imanente
e do pessimismo, de modo que Severino reflete sobre a suspensão ou continuidade de sua viagem. A
reza indica que o morto já está decidido a atravessar o Jordão:

- Uma excelência / Dizendo que a hora é hora. / - Ajunta os carregadores


que o corpo quer ir embora

Mas a paródia replica e secamente indica o imanente destino do defunto:

- Ajunta os carregadores... / ... que a terra vai colher a mão.

Severino está cansado e reflete sobre sua caminhada até então.

- Desde que estou retirando / só a morte vejo ativa, / só a morte deparei


e às vezes até festiva; / só a morte tem encontrado / quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte / foi de vida severina36

Suas inquietações ameaçam a sua esperança, que, anelando por ver, nutre-se do que não ver;
que, para continuar sendo esperança, precisa manter algo em mira:

Na verdade, por uns tempos, / Parar aqui eu bem podia / E retomar a viagem
Quando vencesse a fadiga. / Ou será que aqui cortando / Agora a minha descida
Já não poderei seguir / Nunca mais em minha vida ?

Em face de sua reflexão retrospectiva e prospectiva, Severino tem três alternativas:


continuar, suspender temporariamente ou interromper definitivamente a sua caminhada e
voltar. A primeira significa levar adiante o seu projeto; a segunda mantém a tensão da dúvida;
e a terceira, voltar, talvez o imobilize para sempre. É uma séria decisão, análoga a uma certa
Severina, ao fugir da cidade condenada a ser destruída por fogo e enxofre37, pois “olhou para

35
Costa Lima 1968, p.321.
36
(aquela que é menos / vivida que defendida / e é ainda mais severina / para o homem que retira).
37
“Então o Senhor fez chover do céu enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra”. Gênesis, 19: 24.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
41
trás e ficou convertida em uma estátua de sal”38. Pode-se aqui ouvir o eco de uma fala restritiva
de Jesus-severino: “Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o reino de
Deus”39. Recife é a cidade santa e a Caatinga seca é a cidade condenada.
Severino suspende a decisão temporariamente, mantendo, assim, a chama do desespero
acesa, pois precisa de pão, precisa arranjar trabalho.

8. A fome de pão e a fome de esperança

O paratexto que abre o monólogo deste conjunto é enigmático: “DIRIGE-SE À MULHER


NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATA-SE DE QUEM SE SABERÁ”. Severino vê uma
mulher na janela. Ela se distingue das demais pessoas do lugar, pois, não sendo rica, “parece
remediada”. Ele se aproxima dela e lhe dirige a palavra. O fio de sua conversa não se embaraça
e ele tece precisamente a malha de sua intriga: tem fome de pão e sede de trabalho. A resposta
imediata da mulher é positiva: há emprego. Mas a vaga se restringe aos que possuem uma certa
competência. Severino prontamente se candidata. O diálogo vai se tornando cada vez mais
dramático, pois, enquanto apresenta suas habilidades como lavrador, pastor de gado e serviçal
dos engenhos, tudo que fora possível aprender em sua condição severina. A mulher, numa fala
cruel e satírica, vai repropondo questões que patenteiam a inutilidade do seu currículo, até,
provocadoramente, perguntar:

- Mas isso então será tudo / em que sabe trabalhar ? / Vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá ?

Severino reiteradamente traduz sua condição severina e sua disposição incondicional:

- Deseja mesmo saber / O que eu fazia por lá ? / Comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.

A mulher, considerando a hipótese de Severino possuir uma outra habilidade, sugere


sociedade: “trabalhávamos a meias”. Como não é compreendida por ele, numa fala sintética e
lancinante, ela revela sua profissão, única forma de defender a vida na região: semear a morte.

vivo de a morte ajudar. / (...)/ sou de toda região rezadeira titular. / - Como
aqui a morte é tanta, / só é possível trabalhar nestas profissões que fazem / da
morte ofício ou bazar / (...) farmacêuticos, coveiros, / doutor de anel anular / (...)
Só os roçados da morte / compensam aqui cultivar.

Só a morte é produtiva. E, neste caso, apenas a custo do sacrifício da vida. A fome é a


morte aludida, que aqui se dissimula. Na fome, não vemos a morte por inteiro, mas apenas a

38
Gênesis 19:26.
39
Lucas 9:61.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
42
experimentamos “um pouco por dia”, pois ela se disfarça no trabalho, símbolo do pão, da
produção de vida, da sobrevivência, pois ali só é possível trabalhar ajudando a morte.
Para viver, Severino precisa de pão; ele tem fome de pão. Mais do que pão, ele precisa
da força da esperança para continuar buscando o pão, a vida. Por isto, sua fome passa a ser
outra: fome de esperança. Ouve-se aqui um eco profético: “Eis que vêm os dias, diz o Senhor
Deus, em que enviarei fome sobre a terra; não fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir
as palavras do Senhor”40. Como a única palavra religiosa que lhe chega vem da Severina-
rezadeira e se apresenta como a encarnação da morte, sua desilusão se aprofunda.
Prosseguindo, ele chega à Zona da Mata. A fome de esperança é tamanha, que pensa
em interromper a viagem, pois julga ter chegado à sua “terra prometida”. Se, diante da morte
recorrente, sua esperança vacilara e refletira sobre a continuidade ou não de sua busca. Se o
realismo da paródia à reza abatera o seu ânimo e a Rezadeira o desiludira, agora, a paisagem
verde e feminina da região amplifica-se no coração de nosso herói, beirando o ilusório:

- Bem me diziam que a terra / se faz mais branda e macia / quanto mais do litoral
a viagem se aproxima. / Agora afinal cheguei / nesta terra que diziam.
Como ela é terra doce / para os pés e para a vista. / Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.

Severino, filho de uma terra seca, de repente, está diante da água. Naquela situação, a água
simboliza a esperança de vida eterna:

Vejo agora que é verdade / o que pensei ser mentira. / Quem sabe se nesta terra
Não plantarei minha sina ? / Não tenho medo de terra / (cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço / contra a piçarra da Caatinga / será fácil amansar
esta aqui tão feminina.

Enquanto seus olhos não percebem tudo, Severino mantém a esperança:

Decerto a gente daqui / jamais envelhece aos trinta / nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;

9. A morte condensada e a esperança desiludida

A morte não dá trégua e agora se apresenta no funeral de um lavrador. O golpe violento


e fatal dado outra vez pelos que controlam as estruturas de poder. Mais um Severino é vítima.
Sua morte foi motivada pelo fato de lutar por justiça social:

- Não é cova grande, / é cova medida, / é a terra que querias / ver dividida.
- É uma cova grande/ para seu pouco defunto, / mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

40
Amós, 8:11.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
43
Este é o terceiro funeral que se interpõe entre Severino e o seu caminho de esperança.
Desde o Sertão até aqui à Zona da Mata, a morte é sempre a mesma. Não só são muitos
Severinos, mas também são muitas as mortes encomendadas. Severino toma consciência de
que para a morte não há limites geográficos e que a condição de vida severina está presente
tanto onde há trabalho, quanto onde não há; que ela é mais opressora quando a religião
se alia ao poder político, tornando-se deste um apêndice. Fica também claro que a justiça
que o Severino tanto buscara ao reivindicar os seus direitos somente pode ser alcançada na
morte, recebendo-a como cova, na medida exata: “nem largo, nem fundo”. Até em medida
maior do que reclamava: “é uma cova grande para tua carne pouca”. Fala irônica que evoca,
intertextualmente, um dito popular – “a terra dada não se abre a boca”41.
A biografia do morto vai sendo contada satiricamente pelas falas alternadas dos amigos.
De privação em privação, a morte acaba por se constituir uma superação da privação pela
privação absoluta da vida. A condensação da morte atinge também ironicamente os símbolos
religiosos já referidos, que, agora, revelam pela morte sua verdadeira natureza infrutífera e sua
impotência para guiar Severino em seu caminho ou depois da morte.

- Na mão direita um rosário, / milho negro e ressecado. / Na mão direita


somente
O rosário, seca semente. / Na direita, de cinza, / O rosário, semente maninha.
Na mão direita o rosário, / Semente inerte e sem salto.

E, por fim, o inexorável destino em seu aspecto mais universal:

- E agora, se abre o chão e te abriga, / Lençol que não tiveste em vida.


- Se abre o chão e te fecha, / dando-te agora cama e coberta.
- Se abre o chão e te envolve, / como mulher com quem se dorme.

A condição Severina intensifica a dor da vida e revela a tensão vida/morte, drama do gênero
humano, onde a morte a todos iguala. Nesta cena, a morte condensa-se e alcança sua maior extensão.
Este caráter mais universal da morte é expressamente indicado pelo pensador pessimista do livro de
Eclesiastes42: “todos somos pó, e ao pó voltaremos”.
A condensação da morte emudeceu sua esperança. Tem religião, mas ela não serve;
encontrou terra mais viva, mas a morte continua como ameaça, pois o sistema político-
econômico privilegia poucos. Está desiludido. Sua reflexão o conduz a se autojustificar:

O que me fez retirar / não foi a grande cobiça; / o que apenas busquei foi
defender minha vida / de tal velhice que chega / antes de se inteirar os trinta;

41 “Cavalo dado não se olham os dentes” (uma variante dentre outras).


42 Eclesiastes 3:20.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
44
O destino trágico começa a tomar conta de Severino. Como se sentisse culpa por algo que não
sabe explicar, algo que o transcende. Por isso, tenta explicar as razões de sua tímida esperança. Aquela
esperança que o assaltara quando, por um momento, vira a terra “branda, doce e macia”, onde não
envelheceria antes dos trinta, agora, está tão desiludida. Ele não consegue mais ver o futuro e confessa
que desejara apenas sobreviver. Desde o Sertão, passando pelo Agreste e a Caatinga até a Zona da
Mata, em relação à tensão morte/vida, nada difere. A diferença mínima está na forma de consumir o
viver.
Sua missão é chegar a Recife, mas o caminho que o conduz passa pela tensão vida/morte.
Na medida em que se aproxima da cidade, suas esperanças vão de tal modo emudecendo, que
a desilusão chega a um estágio em que o símbolo de sua esperança vai se metamorfoseando em
lugar de ameaça de morte. Assim, próximo da estação-última, está desiludido e na ante-sala
da morte. Busca se desembaraçar dos símbolos religiosos que inútil o acompanharam até ali e
decide apressar o seu passo, como se dissesse: é chegada a hora!

Sim, o melhor é apressar/ O fim desta ladainha, / Fim do rosário de nomes


Que a linha do rio enfia; / É chegar logo ao Recife, / derradeira ave-maria
do rosário, derradeira/ invocação da ladainha, / recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.

10. A morte profetizada e a esperança despedida

O herói desse drama trágico chega, finalmente, a Recife. Cansado da viagem, senta-
se para descansar ao pé da muralha de um cemitério e, sem ser notado, ouve atentamente
a conversa de dois coveiros. A cena é duplamente reveladora. Por um lado, por tratar-se do
cemitério, símbolo da última morada; por outro, pelo conteúdo da conversa dos homens.
O cemitério é um lugar simbólico: em seu silêncio, profetiza a morte como finitude, como
irremediável destino de todo ser humano; evoca o mistério do além da morte, evoca perspectivas
do sagrado43.
O diálogo dos coveiros vai revelando, ironicamente, o destino comum aos humanos.
Contudo os diferentes tipos de cemitérios locais de sepultamento reproduzem as diferenças
entre as classes sociais. Os ricos - os políticos, os usineiros, os banqueiros e os empresários
- são sepultados nas “avenidas do centro”, onde o movimento é como o “porto do mar”.
Os funcionários, os profissionais liberais e os operários são sepultados em “urbanizações
discretas, com seus quarteirões apertados”. “Os pobres vários” são enterrados no “subúrbio
dos indigentes” aonde chegam sempre em “comboio e onde não pára o vaivém”. A prosa dos
coveiros sobre “defuntos ininterruptos” revela a sina de Severino:

43
Se, por um lado, a morte pode ser entendida como o malogro absoluto, o ponto final de todo empreendimento humano;
por outro, pode também ser entendida – e mais freqüentemente – como o lugar de um novo nascimento, esperança de
passagem desta para outra vida menos severina.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
45
- É a gente retirante / Que vem do Sertão de longe. / - Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante. / - E que então, ao chegar, / não têm mais o que esperar.
- Não podem continuar / pois têm pela frente o mar. / - Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.

Fica evidente a precária situação dos que retiram do Sertão para o Recife. Sem casa, sem
trabalho, só resta sobreviver nos mangues dos rios. O símbolo de esperança se torna o símbolo da
desgraça. No mangue, vivem em favelas; do mangue retiram o alimento; no mangue lançam os seus
excrementos, que servirão de alimento para os caranguejos, que serão pescados para serem, outra vez,
alimento, reiniciando, assim, o mesmo ciclo. A miséria é tão funesta, que a profecia dos coveiros ganha
um tom ironicamente trágico para Severino:

- E da maneira que está / não vão ter onde se enterrar. / - Na verdade, seria
mais rápido e também muito mais barato / que os sacudissem de qualquer ponte/
dentro do rio e da morte. / - O rio daria a mortalha / e até um macio caixão de
água; (...)/ que levaria com passo lento / o defunto ao enterro final/ a ser feito no
mar de sal.

O enterro que lhe é oferecido em sua “terra prometida” despersonaliza os mortos, coisificando-
os. Aqui, o desespero de Severino se acentua ao máximo, pois ele pressente que a profecia do coveiro
prenuncia a privação de sua última morada:

- Não é viagem o que fazem, / vindo por essas caatingas, vargens; aí está o
seu erro: / vêm é seguindo seu próprio enterro.

Severino está condenado! Sua morte está profetizada! Ele buscava vida, mas confessa
que o que esperava nem era tanto:

Que ao menos aumentaria / na quartinha, a água pouca, / dentro da cuia,


a farinha, o algodãozinho da camisa, / ou meu aluguel com a vida.

Severino é a imagem do homem diante da morte, do homem solitário. Abandonado


pela religião e pela política, está ciente de seu destino trágico. Sua morte está predita: é um
homem morto, mas um morto ainda com vida. De modo que decide:

A solução é apressar / a morte a que se decida.

Severino despede a esperança e deseja que a profecia dos coveiros se cumpra. Isto porque,
diante da implacável força do destino, sente-se impotente para continuar combatendo e, por
isso, lança mão de uma espécie de introversão que, como diria Kierkegaard44, “não passa de
um escudo de orgulho que encobre uma fraqueza do desespero, que em longo prazo se tornará
insustentável”. Se Severino não se livrar desse escudo, não conseguirá sair dessa situação e a
loucura ou o suicídio tornar-se-ão válvulas de escape inevitáveis. Os golpes desferidos pela
44
KIERKGAARD, 1980, p. 228.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
46
morte atingiram de cheio a vida de Severino, que emudeceu a sua esperança e condensou o
seu desespero. Estamos, como diz Barbosa: “no momento crucial do auto: aquele em que a
esperança que movera as pernas do retirante começa a desvanecer-se por força e crueza de
uma situação social muito pior do que a esperada”45.
Limiar do clímax do auto trágico. No diálogo entre Severino e o Carpina, a tensão
dramática prossegue, revelando o instante mais demoníaco do desespero do retirante.

11. O convite da vida em face do salto da morte

Até aqui seguimos estrutura que compreendia pares de cena-monólogo, que,


dialeticamente, revelavam a tensão morte e vida. Nas cenas, a morte sempre evocando o trágico
destino da condição de vida severina e, nos monólogos, a esperança teimando se fabricar. Em
cada cena, a morte investia contra o que restava de esperança, ao mesmo tempo em que, nos
monólogos, a esperança de Severino ia definhando. Severino teve sua morte profetizada e
sua esperança despedida. Sem forças e entregue ao desespero fraqueza, não mais consegue
defender a vida, como o fizera no diálogo com a rezadeira. Está dominado pelo desespero. Mas
a esperança despedida por Severino, ainda não derrotada completamente, toma fôlego na fala
do Carpina, buscando combater o desespero que está prestes a afogar o Retirante. A esperança
só continua como possibilidade para Severino porque do outro não brota só a ameaça e a
morte, mas também a fala de esperança e o gesto de vida.
A conjectura indicou que, pelo fato de tratar-se de um auto de natal, os textos dos
Evangelhos de Mateus e Lucas estão necessariamente subscritos. Com o aparecimento da
figura de José, mestre carpina, a rede figurativa que remete aos Evangelhos se amplia, pois este
é homônimo de José, o carpinteiro, pai de Jesus. A atitude de seu José, mestre carpina, aqui,
é análoga à de seu homônimo bíblico quando, em situação idêntica, buscava fugir dos que
intentavam matar o seu filho, a vida e a esperança ainda não nascida. Ao lançar luz sobre os
enigmas propostos, a figura vai validando a conjectura.
O tema da morte como obstáculo à esperança, tão recorrente na história humana, encontra
uma simbólica expressão no diálogo entre Severino e o José, mestre carpina, um morador de um
dos mocambos, dentre os vários, situados entre o cais e a água do rio. O Carpina aproxima-se de
Severino e este inicia o diálogo, perguntando sobre a fundura da “água grossa e carnal” do rio. Ao
que o Carpina responde, literalmente, que, embora nunca tenha cruzado o rio a nado, a navegação de
grandes barcos indica que é fundo. A disputa entre os dois não se trava apenas no âmbito temático,
o do embate entre a vida e a morte, mas também entre as referências literal e metafórica, como
podemos constatar na fala de Severino, ao considerar inúteis as informações literais do Carpina.

para cobrir corpo de homem/ não é preciso muita água: / basta que chegue
ao abdome, basta que tenha a fundura / igual à de sua fome.

45
BARBOSA, 1975, p. 125.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
47
O Carpina, utilizando-se de um discurso de referência literal, redargúi:
Severino, retirante, / (...)/ sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte;
/ quanto ao vazio do estômago, / se cruza quando se come.

O verbo cruzar, utilizado duas vezes em sentido literal, é central no argumento do


Carpina. É aí que Severino se exalta um pouco e, retomando os termos utilizados pelo Carpina,
reelabora-os com outra referência:
Seu José, mestre carpina, / e quando ponte não há ? / Quando os vazios da
fome não se tem como cruzar ? / Quando esses rios sem água / são grandes braços
de mar?

José reconhece que, em relação às questões profundas do ser, a linguagem literal tem
limitações, pois, passa a incluir em sua fala a referência metafórica.
sei que a miséria é mar largo, / não é como qualquer poço: / mas sei que
para cruzá-la vale bem qualquer esforço.

O espírito de luta e sofrimento de José em defesa da vida é análogo ao de José e Maria


dos Evangelhos quando buscavam uma hospedaria onde o menino Jesus pudesse nascer. O
Carpina sabe das adversidades da vida, mas crê na possibilidade de sua superação. Não se
trata, portanto, de uma esperança contemplativa, mas sim operativa.
O diálogo prossegue e Severino indaga se, no seu caso, quando a força já morreu,
a melhor coisa não seria se entregar “ao puxão das águas”. O carpina rebate, insistindo no
combate ao mar daquela conversa, pois tal desesperança, em largas proporções, pode alagar
e devastar a terra inteira. Severino, irredutível, não crê que nada possa mudar o destino já
traçado, pois “acabamos naufragados num braço de mar miséria”. Mas José, persistente em
sua esperança, apropria-se da fala do retirante, transmudando o pessimismo em otimismo, os
braços acomodados de miséria em braços de luta:
Severino, retirante, / muita diferença faz / entre lutar com as mãos e
abandoná-las para trás, / porque ao menos esse mar / não pode adiantar-se mais.

Mas Severino, relutante, reafirma sua descrença na mudança do destino trágico. Neste
ponto, Severino não permite que o Carpina retome a fala e, duplicando46 a sua, ataca o seu
interlocutor com o realismo da miséria presente:
há muito no lamaçal / apodrece a sua vida ? / e a vida que tem vivido foi
sempre comprada à vista?

A fala serena do mestre carpina – “sou de Nazaré da Mata”- revela a firmeza de sua
esperança e convoca. A figura “Nazaré” é duplamente reveladora: reafirma identidade do
mestre carpina com José, o pai de Jesus, pois ambos procedem de cidades que têm o mesmo
nome47; identifica o Carpina com Severino, pois, sendo Nazaré da Mata cidade da Zona da
46
Este é o único momento do diálogo em que a fala de Severino ocupa doze versos de uma única vez.
47
“Subiu também José, da Galiléia, da cidade de Nazaré”. Lucas, 2:4.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
48
Mata, ele é também um retirante, entre outros tantos retirantes. A resposta de José ganha um
caráter tão patentemente alusivo, como se fosse o eco da fala de Jesus nos Evangelhos48:
a vida de cada dia / cada dia hei de comprá-la.

Para José, a questão não é a possibilidade ou não de comprar a vida “em grandes partidas”,
mas a de comprá-la sempre, todo dia, cada dia. Pois o que se compra “a retalho é, de qualquer forma,
vida”. Severino não tem mais esperança nem palavras para combater a fala de vida e de esperança do
carpina. Está mergulhado no desespero e completamente dominado. Aquele que antes quisera saber
qual a verdadeira via está, agora, inerte, condenado à morte.
Não conseguindo evitar que sua “cidade santa”, a sua “terra prometida”, se transformasse
em terra de “maldição”, está, agora, em agonia. Ele está à beira da tragédia ! Ele é a imagem do
trágico49:
Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa
final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a
explosão do mundo de um homem, de um povo, de uma classe.

O drama trágico de Severino é alegoria do drama humano, porque “o trágico só é


possível na obra de arte porque ele é inerente à própria realidade humana”50. Severino está por
um fio. Um passo o levará ao suicídio, pois “o trágico é uma situação-limite em que se rompem
todas as normas e anula-se a realidade humana” 51.
A fala final de Severino evidencia sua resignação em cumprir a profecia dos coveiros:
Seu José, mestre carpina, / que diferença faria / se em vez de continuar
tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida?

12. O nascimento de Jesus-Severino: festiva epifania


- De sua formosura / deixai-me que diga: / é tão belo como um sim numa sala
negativa.

A fala trágica de Severino é interrompida pela fala de uma mulher que, da porta do
mocambo de José, anuncia-lhe que seu filho “saltou para dentro da vida”. O tempo cronológico
fica, miticamente, suspenso e instaura-se um tempo festivo. Está encaixado o auto de natal; um
auto dentro do auto. O drama trágico do Severino foi interrompido por uma epifania.
O encaixe do auto no auge do desespero de Severino dá ao anúncio um sentido especial,
pois, para combater o desespero potência máxima, só a esperança em potência ainda maior. A
criança nascente, neste caso, não pode ser um menino qualquer nascido no mangue. Seu salto
para dentro da vida impediu que Severino desse o salto para dentro da morte.

48
“Não vos inquieteis pelo dia de amanhã (...). Basta a cada dia o seu mal” (Mateus, 6:34).
49
STAIGER, 1975, p. 147.
50
BORNHEIM , 1975, p. 72.
51
STAIGER , 1975, p. 148.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
49
Quem é este que tem o poder de impedir o desespero se consumar em suicídio? Quem
é este nascente que traz a esperança para os que lutam pela vida? Quem é este que converte o
drama trágico do humano em celebração?
O fato do anúncio do nascimento do menino produzir o efeito de interromper a tragédia
revela a extraordinária riqueza do simbolismo deste evento. Mais do que representante regional,
Severino simboliza o drama humano da busca de vida, de esperança. A resposta ao seu grito
de desespero não pode ser interpretada como nascimento de mais um Severino. O símbolo de
esperança só vem à tona porque se trata do Auto de Natal. O simbolismo aqui não advém da
interpretação de figuras isoladas, mas do encadeamento das mesmas, pois Maria, Zacarias e
José, alusivamente, remetem aos Evangelhos.
Por tudo isso, a análise, neste ponto, concentra-se na busca dos hipotextos evangélicos
dissimulados. Tal tipo de análise justifica-se pela autonomia que o auto de natal constitui e
pelo objetivo de demonstrar aqui um palimpsesto, um texto poético-teológico.

13. Anúncio: salto para dentro da vida

Auto de Natal Pernambucano Loa do anjo no Pastoril52

Compadre José, compadre, Pastoras, belas pastoras,


Que na relva estais deitado: Que na relva estais deitadas
Conversais e não sabeis Descansais e não sabeis,
Que o vosso filho é chegado? Que a luz do céu é chegada?

Estais aí conversando Estais unidas a Morfeu


Em vossa prosa entretida: No gozo da natureza ?
Não sabeis que vosso filho Acordai, se estais dormindo
Saltou para dentro da vida? Vinde ver nossa grandeza.

Saltou para dentro da vida O desejado das gentes


Ao dar seu primeiro grito; O Messias prometido,
E estais aí conversando; A nossos pais, tantos séculos,
Pois sabeis que ele é nascido. Pois sabeis que ele é nascido53.

Breve comparação entre os dois prólogos deixa entrever que um está dissimulado e
transformado no outro. Poder-se-ia projetar análise hipertextual, buscando-se no Auto
cabralino a tradição pastoril como hipotexto. Mas como o poema é um palimpsesto de
52
A Loa dos pastoris da tradição pernambucana remonta os teatros portugueses e espanhóis dos sécs. XVI e XVII. É uma
espécie de prólogo de dramas e comédias, cuja finalidade era captar a atenção, simpatia e participação.
53
COSTA, sd, p. 199.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
50
palimpsestos, a presente leitura delimita e se concentra na busca de outros hipotextos, as
narrativas do nascimento de Jesus, fundantes da tradição cristã dos autos de natal.
O anúncio do nascimento do menino é a ponte que liga os dois autos conjugados na
obra, ou seja, o auto-trágico ao auto-celebrativo, à peça-mito. Não fosse o salto para dentro da
vida em oposição ao salto para fora da vida, os autos estariam completamente separados. Isto
porque o sentido do auto-trágico se completa com o Auto de Natal, que, por sua autonomia
semântica, pode ser deslocado de um para outro contexto.
A luta do Carpina, em defesa vida pode ser entendida como análoga à luta de José, pai
de Jesus, quando, fugindo da ameaça de Herodes, procurava um lugar onde o menino Jesus
pudesse nascer. Observe-se que o Carpina, enquanto resistia à morte que se apresentava na fala
de Severino, intensa e fraternalmente lutava como quem cria numa promessa. De modo que
a notícia do nascimento da criança no exato momento do desespero mortal de Severino, não
só é resposta aos anseios do Carpina, mas também poder que impede a tragédia, revelando-se
como a vitória da vida e da esperança que teimosamente resistia.
As marcas dos hipotextos evangélicos transparecem na figura da mulher que sai do
mocambo e, festivamente, faz o anúncio do nascimento do menino, visto que ela encobre a
figura do anjo da anunciação de Mateus54 e de Lucas55. Em Mateus, além do anjo, o anúncio
faz-se por meio da estrela do oriente, inserindo, assim, elementos da natureza física como
instrumentos da revelação divina. Já em Lucas, a duplicação é dos receptores da anunciação,
pois não só a Maria as “boas novas” são anunciadas, mas também aos pastores, o que sugere
uma esperança que alcança também trabalhadores marginalizados.
No Auto cabralino, embora a anunciação seja breve, ela conjuga as tradições de Lucas
e Mateus, visto que amplia os agentes da recepção e inclui os marginalizados. A análise destes
aspectos no palimpsesto cabralino revela: uma diferença, pois o agente da anunciação não é
um ser assexuado nem um astro celeste, mas pessoa humana, mulher, pobre; e uma identidade,
pois o anúncio do nascimento de uma criança como símbolo de esperança.

14. Celebração: um hino à vida


O nascimento do menino é anunciado com tanta alegria, que contagia os moradores dos
mocambos do mangue, produzindo entre eles um clima de festividade. Em contraste com as precárias
condições de vida ali existentes realçam a força transformadora operada pelo nascimento. A louvação
dos vizinhos, dos amigos e das duas ciganas dão ao nascimento do menino amplitude cósmica, que
deixa entrever a louvação dos anjos de Lucas56:

- Todo o céu e a terra / lhe cantam louvor. / Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.

54
Mateus 1:20-21.
55
Lucas 1:30-31.
56 “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra; fraternidade entre os homens.” Lucas, 2:14.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
51
O contexto pobre do menino Jesus – “envolto em panos numa pobre manjedoura57” – é
substituído por um mocambo do mangue e os efeitos de solidariedade se estendem à natureza
física e à humana, que, irmanadas, reverenciam e louvam o menino. Embora os efeitos pareçam,
ironicamente, insignificantes, no contexto de miséria, são extraordinários: “o mau-cheiro da
lama não voou” e cada casa se metamorfoseou “num mocambo sedutor”. O “milagroso” se
revela no plano da imanência, como uma “encarnação do divino” naquela condição miserável
de vida e nas limitações naturais. O rio, por exemplo, “que jamais espelha o céu”, transmuda-
se – “hoje enfeitou-se de estrelas” - para, alusivamente, mostrar a figura que, numa “revelação
natural”, guiou os magos ao local onde nasceria Jesus. A cena seguinte mostra “pessoas” que
trazem presentes para o menino nascido:
- Minha pobreza tal é / que não trago presente grande: / (...) que coisa não
posso ofertar: / somente o leite que tenho / para meu filho amamentar; (...)/ que
não tenho presente melhor: / que não tenho presente caro: / (...) que pouco tenho
o que dar.

Neste ponto, vê-se como por transparência os dois Evangelhos: a figura dos magos de
Mateus e a dos pastores de Lucas. Os magos ofertaram presentes caros58 e os pastores nada
tinham para ofertar59. Nos dois casos, na abundância de presentes e na sua falta, temos a alusão
ao discurso das posses, representado na alusão à riqueza e à pobreza, respectivamente. Aqui,
o Auto de Natal outra vez conjuga as duas tradições evangélicas, ou seja, a riqueza, expressa
pelos presentes ofertados pelos magos e a condição de pobreza, expressa na figura dos pastores,
transformando-as. Embora no Auto cabralino os presentes caros dos magos sejam substituídos
por presentes simples e de necessidade imediata, o aspecto de serem presentes de grande valor
permanece, pois os presentes, aparentemente sem grande valor, representam o que de melhor
as “pessoas” possuem. A grandeza dos presentes, neste caso, é análoga à grandeza da oferta da
Viúva60 que deu tudo quanto tinha e à da dádiva do rapaz que ofertou os pães e os peixinhos61
para saciar a fome de uma multidão. A retirada das figuras nobres – magos - do cenário do
nascimento do menino, não só introduz aspecto popular à celebração natalina, mas também,
simbolicamente, exclui a figura dos representantes da classe dos que queriam impedir o
nascimento do menino.
A fraternidade, conseqüente do nascimento do menino, expressa, por pessoas da comunidade
é tamanha, que nem a ironia de algumas falas – “mamando leite de lama conservará nosso sangue” -
consegue ofuscar o espírito de irmandade gerado.

57
Lucas 2:7.
58
“Ao verem a estrela, grande alegria. Entrando na casa, viram o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adora-
ram; e abrindo os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro incenso e mirra.” Mateus 2: 10-11.
59
Aqui, percebe-se um aspecto da transformação hipertextual operada entre Lucas e Mateus.
60
“Jesus viu os ricos entregarem suas ofertas; viu também uma pobre viúva dar duas moedas de insignificante valor; e
disse: Em verdade vos digo que esta pobre viúva deu mais do que todos; porque todos deram daquilo que lhes sobrava;
mas esta, da sua pobreza, deu tudo o que tinha para o seu sustento.” Lucas, 21:1-4.
61
“Está aqui um rapaz que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas que é isto para tantos?” João, 6.9.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
52
Na cena seguinte, duas ciganas profetizam o futuro do menino. Nos Evangelhos o aspecto
intercultural é salientado pela figura dos magos62. Mas, na obra cabralina, tal aspecto transparece na
figura das “ciganas”, que transforma e encobre a figura dos magos de Mateus. Observando a relação
que se estabelece entre as “ciganas” do Egito e os magos do oriente, percebe-se uma diferença e uma
identidade. A identidade reside no aspecto intercultural; a diferença reside no tipo de estrato sócio-
econômico e no gênero que as ciganas representam. Se por um lado elas são representantes de uma
camada social pobre e são mulheres; por outro, os magos, diferentemente, representam uma classe
social elevada63 e são homens. Além disto, de um modo bastante peculiar, as ciganas desempenham
função análoga à função religiosa do profetismo do anjo de Mateus64, visto que o nome do menino
é relacionado à sua identidade e missão. Como em Lucas os magos de Mateus são substituídos
pelos pastores, a relação entre as ciganas e os pastores estabelece dupla identidade e uma diferença.
Identidades porque, do mesmo modo que os pastores, as ciganas são pobres e, após verem o menino,
saem a anunciar coisas a respeito dele; a diferença é que são mulheres65.
A primeira cigana profetiza que o menino assumirá plenamente a condição humana:
será um Severino entre Severinos. Crescerá como crescem todas as crianças do lugar, aprenderá
as primeiras as primeiras lições de vida com os anfíbios, com as aves e com outros animais,
e será um pescador66 nos mangues. A segunda cigana anuncia que o menino progredirá. Da
lama dos mangues passará à graxa da máquina. A mudança revela poderosa potencialidade de
melhoria de vida:

- vejo coisa que o trabalho/ talvez até lhe conquiste: / que é mudar-se
destes mangues daqui do Capibaribe/ para um mocambo melhor/ nos mangues do
Beberibe.

Embora irônica, a mudança simboliza a potência da vida, semente do salto, esperança


que, embora severina, abre brecha através da qual se revela o poder que impede que a existência
severina seja absolutamente determinada pelas circunstâncias externas adversas.
A última cena: “VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES,
ETC.”

62
Os magos do Oriente representam, no nascimento de Jesus, a presença de membros de uma outra cultura.
63
“Então Herodes chamou secretamente os magos, e deles inquiriu com precisão acerca do tempo em que a estrela
aparecera; e enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino; e, quando o achardes,
participai-mo, para que também eu vá e o adore” Mateus, 2:7-8.
64
“Ela dará à luz um filho, a quem chamarás JESUS; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados. Ora, tudo isso
aconteceu para que se cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta.” Mateus 1:21-22.
65
Em Lucas, o anjo da anunciação aparece a Maria, mas não a José; em Mateus, o anjo aparece apenas a José.
66
A pesca remete simbolicamente à atividade de Jesus: “eu vos farei pescadores de homens.” Mateus, 4:19.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
53
15. Hino à vida; canto de vitória

Aqui o texto está completamente transformado. Não se vê nitidamente qual texto


específico ficou encoberto, mas várias alusões a Jesus podem ser vistas. Isto porque o nome
deste menino que salta para dentro da vida, impedindo a tragédia, transformando as relações
humanas e trazendo alegria para os pobres, em nenhum momento é mencionado. As indicações
mostram que é um Severino, mas os efeitos produzidos pelo seu nascimento revelam que ele
não é uma criança qualquer que nasce no mangue, como sugeriu Nunes67.
As duas partes deste canto profético anunciam que o menino é profundamente humano
e símbolo da superação da sina severina. Na primeira, sua identidade é apresentada em termos
de contraste entre sua visível fragilidade física e sua invisível beleza na potência superadora
da condição severina. Na segunda, a sua beleza é apresentada através de imagens que nos
remetem ao contexto de adversidade, de elementos em oposição, que salientam poeticamente
uma beleza profundamente humana, mas invisível aos olhos da cara.
A descrição começa mostrando que, por trás de sua aparência física franzina, há um
potencial profundamente humano latente.

- De sua formosura/ já venho dizer: / é um menino magro, de muito peso


não é, / mas tem o peso de homem, / de obra de ventre de mulher.

As descrições a seguir, “pálida”, “guenzo”, “enclenque”, “setemesinha”, indicam o estado doentio


e prematuro do menino. Apesar desta frágil condição, o salto qualitativo da vida já se anuncia na
belíssima imagem poética das mãos criadoras do que ainda não é68:

mas as mãos que criam coisas/ nas suas já se advinha.

A vida é descrita não só como resistência ao adverso, mas também como vitória. Como o
intérprete jamais se aproxima do que diz o texto se não viver na aura do sentido interrogado69, não se
pode deixar de ver aqui o canto de Maria, exultação por seu filho e canto de vitória do oprimido sobre
o opressor70. A criança nascida é força que teimosamente resiste contra as circunstâncias produzidas
por estruturas de poder injustas e opressoras:

- De sua formosura/ deixai-me que diga: / é belo como o coqueiro


que vence a areia marinha. / (...)/ belo como o avelós / contra o Agreste de cinza.
(...)/ belo como a palmatória / na caatinga sem saliva.

67
NUNES, 1974, p. 88.
68
Imagem semelhante é a do grão de mostarda: “O reino de Deus é como um grão de mostarda que, quando se semeia, é
a menor de todas as sementes que há na terra; mas, tendo sido semeado, cresce e faz-se a maior de todas as hortaliças
e cria grandes ramos, de tal modo que as aves do céu podem aninhar-se à sua sombra.” Marcos 4:30-32.
69
RICOEUR, 1978, p. 251.
70
“Com seu braço manifestou poder; dissipou os soberbos em pensamentos e corações; depôs dos tronos os poderosos,
e elevou os humildes. Aos famintos encheu de bens, e vazios despediu os ricos.” Lucas, 1:51-53.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
54
As imagens poéticas são de uma beleza singular. Mas a sugestiva imagem que segue não
só retoma a idéia do salto qualitativo, vitória da vida sobre a ameaça de morte, mas também
condensa todas as outras imagens de vitória, desdobrando-se ainda nas que seguem.

é tão belo como o sim / numa sala negativa.

Extraordinária, alegre e poderosa epifania! O novo que ressurge triunfa sobre as trevas
que ameaçam a vida, constituindo-se afirmação da vitória sobre o que no velho está morto. A
beleza ressaltada no menino é incomum. É invisível aos olhos físicos. Sua potência se revela
na resistência ao adverso:

Belo porque tem de novo / a surpresa da alegria. / Belo porque corrompe


com sangue novo a anemia. / Infecciona a miséria / com vida nova e sadia.
Com oásis, o deserto, / com ventos, a calmaria.

O rebento é símbolo da esperança que não se deixa afogar nos determinismos externos.
O poder que salta dentro e de dentro da vida se nega a ser consumida pela morte.
Mas quem é este menino? É um Severino palimpsesto de Jesus. Basta ser a criança
nascente num auto de natal, para ser alusivamente Jesus.
A força do símbolo do nascimento produziu um encontro singular. A poesia revelou
a potência da esperança como arma de vitória sobre a morte, pois o cenário do nascimento
remeteu aos Evangelhos, atingindo a dimensão simbólico-teológica. Isto porque a ação trágica
que desenvolvida em tensão contínua e progressiva até o clímax, com o encaixe do Auto de
Natal, não se consumou em tragédia, mas em celebração e conversão. De modo que foi o
nascimento da criança que não permitiu que a esperança moribunda morresse; que o desespero
fatal tragasse a existência severina. Aqui se engendra típica esperança, pois o nascimento de
Severino aponta para uma esperança não contemplativa, mas operativa. Esperança que não
permite reduzir Severino à “vítima de um destino cego e fatal, produto de forças adversas e
incontroláveis71”.
Não se trata apenas do nascimento de uma criança, mas da instauração do simbólico,
do mito da criança nascente. Nem importa saber se foi essa a intenção do poeta. Importa que
através da poesia o sagrado explodiu por entre a trama tecida, por entre a teia das tradições.
O menino é, portanto, um Jesus-Severino. Encontro de Severino com Jesus; encontro da
revelação poética com a teológica.

71
NUNES, 1974, p. 125.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
55
16. Explosão da vida: resposta ao convite da esperança
Podeis sempre aprender que o homem,
É sempre a melhor medida.
Mais que a medida do homem
Não é a morte mas a vida72.

O carpina retoma o diálogo com Severino que a tudo apenas assistia, “sem tomar parte
em nada”. Mas, desta vez, Severino apenas ouve a fala exortativa de José, mestre carpina. A
conversa interrompida com o anúncio do nascimento deixara a interrogação de Severino no
ar. Como o salto para dentro da vida triunfou sobre a ameaça do salto para dentro da morte, é
deste ponto que o Carpina retoma a prosa, convidando Severino à reflexão.
Este terceiro degrau hermenêutico segue a estrutura da obra, pois a fala do Carpina é uma
verdadeira aplicação da lição aprendida com o evento e a significação da vida nascida. Severino, que
retirara cheio de esperança, encontrou tanta morte em seu caminho, que seu desespero final reflete
bem sua frustração, sua impotência e sua descrença.
O encontro do Carpina com Severino e a interrupção do salto da morte pelo da vida deixa a
lição de que a vida é, necessariamente, defendida com palavras, mas que estas, isoladamente, revelam-
se impotentes para dar conta da complexa e profunda natureza da existência humana. José, que tentara
defender a vida apenas com palavras, aprende, agora, que, mais do que um discurso bem elaborado,
a resposta à questão do sentido da vida encontra sua mais potente expressão no simbolismo daquela
bem-aventurada epifania. A criança nascida é a encarnação da palavra de vida que estava latente na
fala do Carpina e a resposta ao convite da esperança implícita no desespero73 de Severino74. Naquele
nascimento, o verbo se fez carne e habitou não só naquele mocambo do mangue, mas também
em toda aquela comunidade, trazendo “novas de grande alegria75”, gerando um espírito solidário e
fraterno76 em todos, à semelhança do que ocorreu no nascimento de Jesus. A potência se fez ato, para,
teimosamente, prosseguir sendo potência, em contínua sucessão alternante:

- Severino, retirante, /deixe agora que lhe diga: / eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar / fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta, / se quer mesmo que lhe diga. / É difícil defender,
só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que vê, severina;
mas se responder não pude/ à pergunta que fazia, /ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.

72
MELO NETO, 1999.
73
Em Kierkegaard, esperança e desespero são termos dialéticos. Severino desesperado está num ponto-limite. Basta que
ele tome consciência de uma abertura, para que se inverta o seu desespero-fraqueza em desespero-desafio.
74
KIERKEGAARD, 1980, p. 232-233.
75
Lucas, 2:10.
76
“... apareceu junto ao anjo grande multidão celestial, louvando a Deus e dizendo: Glória a Deus nas maiores alturas,
paz na terra, fraternidade entre os homens” Lucas, 2:13-14.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
56
José está contagiado pelo entusiasmo e pelo espírito fraterno instaurado com aquela
nova vida severina nascida. Por isso, sente-se ainda mais convicto, pois testemunha que
“enquanto um homem permanece entre os vivos, há esperança77”. E, desta vez, o Carpina não
se prende mais aos detalhes na construção do argumento de sua exortação, mas apenas aponta
para a potência criada pela nova vida explodida.

E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida:


vê-la desfiar seu fio, / que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma, / teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena / a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão / como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.

Discurso teológico de eloqüência singular! A “nova vida explodida” é uma metáfora-símbolo


na qual toda obra está condensada. Ela aponta para a potência que se enraíza nas profundezas do ser
humano, para o inverso do desespero que motiva o salto da morte e é, ao mesmo tempo, a conseqüência
e a potência do salto da vida. A “nova vida explodida” remete para além da linguagem, ao mundo da
obra, à responsabilidade ética, revelando, como magistralmente observou Nunes78, a esperança de
que a implosão da vida Severina poderá transformar-se em explosão. Isto porque, embora a condição
Severina seja determinada de fora para dentro, a possibilidade da vida explodida é o testemunho do
caráter não permanente da severinidade.
A nova vida nascida, pequena, franzina, severina, resistindo à ameaça da “morte Severina”,
que ataca “em qualquer idade, e até gente não nascida,” teimosamente se fabricou, dando um salto
para dentro da vida, constituindo-se “nova vida explodida”, semente de um novo salto, potência da
afirmação de um “sim numa sala negativa”, amostra de que “a experiência da condição Severina é a
experiência de seu possível ultrapassamento79”.
O título e o subtítulo da obra sugeriram que os Evangelhos de Mateus e Lucas estariam subscritos,
como num palimpsesto. A auto-apresentação de Severino mostrou que são muitos Severinos e que,
nesta multiplicidade, estaria uma possível identidade entre Severino e João, o batista; entre Severino
e Jesus de Nazaré. Severino é, portanto, um tipo de João, pois vai conduzindo o leitor até Jesus, mas
também é o menino que nasce para a redenção dele mesmo e de outros tantos Severinos.
A viagem de Severino pode ser entendida, portanto, como uma alegoria do drama humano. O drama
dos que, cheios de esperança, buscam uma vida mais digna, mais plena, mas sempre esbarram nos agentes
da opressão e da morte. Assim compreendido, o caráter trágico da narrativa tem o efeito de intensificar o
símbolo do nascimento da criança e o encaixe do Auto de Natal deixa entrever que os Evangelhos estão não
apenas refletidos, mas refratados, transformados, de modo que transparecem apenas alusivamente.

77
Eclesiastes, 9:4.
78
NUNES, 1974, p. 89.
79
NUNES, 1974, p. 88.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
57
O anúncio do nascimento no poema, identicamente aos Evangelhos, dirige-se aos
pobres, aos que buscam vida digna. Os elementos mitológicos como o anjo e a concepção
espiritual de Maria são substituídos por elementos humanos: uma mulher anuncia a José que
seu filho nasceu. A revelação aqui é natural, humana, e aponta para uma esperança operativa.
Essa esperança, pelo caráter operativo e construtivo, reúne as dimensões política e teológica
fundindo-as, no sentido de Fromm80: “O objetivo da esperança não é senão uma vida mais
plena, um estado de maior vivência, uma libertação do enfado eterno, ou, para usar um termo
teológico, a salvação, ou, um termo político, revolução.” Esperança que não se constrói sem
sofrimentos, algo próximo ao espírito da poesia hebraica: “Os que semeiam em lágrimas, com
cânticos de júbilo segarão. Aquele que sai chorando, levando a semente para semear, voltará
com cânticos de júbilo, trazendo consigo os seus molhos81”.
A intensidade da ação dramática sobrevalorizou o nascimento do menino, dando-lhe
peso teológico. A alusão a Jesus reforçou os símbolos da comunhão espiritual, à semelhança
do que ocorre em toda peça-mito, mesmo na vertente mais secularizada, como diz Frye82.
Com o evento do nascimento, teimosamente, na moldura do cenário nordestino, teceu-se um
fio que produziu algo comparável ao que Eliade83 chama de “Irrupção do sagrado”.
O poético-teológico no nascimento de Jesus-severino transforma o sentido da
esperança. Não uma esperança para além desta vida, mas uma pequenina, que compra a vida
a retalho e, teimosamente, impulsiona a vida a se fabricar a cada dia. A esperança-semente da
“nova vida explodida” é uma abertura do ser; é a potência que testemunha que a vida não está
condenada ao drama trágico, que ela pode se tornar um espetáculo festivo, solidário, fraterno.

17. O palimpsesto Cabralino


Somos palimpsestos,
escritura sobre escritura,
esquecidas, apagadas,
mas indelevelmente gravadas
no tecido prontas a ressurgir,
se a encantação correta for feita84

Pode-se afirmar que o hipertexto passa por processos de transformação que se


apresentam como ampliação, redução ou substituição, podendo, numa mesma passagem,
acumularem-se os três85. No palimpsesto revelado no Auto de Natal Pernambucano apresenta-
se um exemplo dessa acumulação transformativa, identificada aqui como um fazer teológico

80
FROMM, 1980, p. 24.
81
Salmo 126:5-6.
82
FRYE, 1973, p. 278.
83
ELIADE, 1977, p. 11.
84
ALVES, 1987, p. 13.
85
GENETTE, 1982, p. 12-14.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
58
não normativo, como texto teológico de produção heterodoxa, como reescritura poético-
teológica. Hermenêutica hipertextual e uma relação transdisciplinar.

18. Uma leitura entre duas margens

No estágio das relações interdisciplinares, podemos esperar o aparecimento


de um estágio superior que seria transdisciplinar, que não se contentaria em
atingir as interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas
situaria essas ligações no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entre
as disciplinas86.

A reflexão até agora empreendida mostrou que, mais do que um encontro, trata-se,
antes, de um reencontro. Isto porque teologia e poesia nasceram no mesmo berço, cresceram
nos mesmos espaços sagrados e, num certo momento, foram expulsas por um mesmo decreto87.
Entre encontros e desencontros, entendidas como linguagens superadas na visão do científico-
objetivista do positivismo lógico, são desconsideradas do âmbito da “verdade”.
Após o movimento dos estudos teológicos e literários para a ciência, um segundo
movimento, já em curso, realiza-se. Trata-se do movimento da ciência para os estudos literários,
em busca de marcas literárias no imaginário das comunidades científicas88, e da ciência para os
estudos da religião, em busca da compreensão do complexo e universal fenômeno religioso. Se
a ciência, cujo ídolo é a objetividade, já ensaia um encontro amistoso e profícuo com a poesia,
o que se esperar de um reencontro entre duas irmãs gêmeas univitelinas?
O método de leitura utilizado nesta obra pode ser também utilizado no estudo de outras
possíveis relações, entre as quais dos textos literários com os textos históricos, filosóficos,
sociológicos, entre outros. Por isso, mais do que um encontro interdiscursivo e transtextual,
estabelece-se uma relação inter e transdisciplinar.

Considerações finais: uma ponte tecida com linguagem


Deus é símbolo que marca uma proibição de falar.
Onde ele se diz, estabelece-se um grande silêncio.
E sobre ele surgem as metáforas,
Que é um jeito de dizer o que não pode ser dito89

86
PIAGET apud WEIL, 1993, p. 30.
87
JAEGER, 1986, p. 673-674. Platão sustenta a superioridade da filosofia sobre a poesia e distingue: a filosofia conhece
a verdade e trata da essência das coisas; enquanto a poesia é teologia, desconhece a verdade e apenas cria ídolos. Não
há lugar, portanto, nem para poetas nem para teólogos em sua República.
88
COELHO, Eduardo Prado. Universos da Crítica. p.122. O autor aqui se refere à importância dos trabalhos de G.
Holton sobre a dimensão do imaginário, o lado irracional e subjetivo das revoluções científicas de T. Kuhn, que orienta
e condiciona o deslocamento atual do pensamento científico.
89
ALVES, 1987, p. 13.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
59
O homem é um ser que se diz na linguagem e, portanto, diz sua experiência enquanto
ser-no-mundo. E, como a religião faz parte da experiência universal do homem, é através dos
textos, dos símbolos e dos signos, da linguagem, enfim, que o homem também diz e interpreta
sua experiência com o sagrado. Como o sagrado é uma experiência simbólica e a poesia traz
à linguagem formas do homem experienciar o real que a linguagem comum normalmente
oculta. Pela linguagem poética o ser humano traz à linguagem o símbolo. A rede simbólica na
qual ficam depositadas as experiências profundas do ser humano apenas encontra a expressão
mais potente na poesia porque a “metáfora é a superfície lingüística dos símbolos90”.
A metáfora-obra Morte e Vida Severina é uma daquelas metáforas profundas, que, na
medida em que “chega à estrutura valorativa do ser, produz sentido e significação, levando o
humano a discernir e a se comprometer de tal modo, que todo o seu ser é afetado, determinando
o seu agir e seu existir91”.
Da obra poético-teológica de João Cabral, pode-se dizer que, nela, beleza e verdade
se uniram na metáfora-obra, por um lado, para buscar um “tempo perdido”92, como sugeriu
Proust93, por outro, para desvelar os possíveis humanos da vida que se alimenta da esperança,
para alusivamente revelar a figura de Jesus na criança nascente, testemunhando com Adélia94
que “a poesia é exatamente o rastro de Deus nas coisas”.
O palimpsesto revelou possíveis mundos da obra: a esperança de que a vida guarda
sempre uma semente-salto; a esperança de que cada “nova vida explodida” será, de novo,
potência de uma nova explosão; a esperança de que a vida resiste e insiste, apesar das condições
adversas; a esperança que alimenta o último fio da vida, impulsionando-a, teimosamente, a se
fabricar.
Diálogo entre textos, entre disciplinas; ponte tecida com a linguagem poética. Obra-
metáfora que, por excelência, opera a mímeses, assimila e traduz o símbolo, afeta o “ser-no-
mundo”, desdobrando diante dele um possível mundo e um possível “modo-de-estar-no-
mundo”.

90
RICOEUR, 1995, p. 115.
91
SEGUNDO, 1995, p. 191.
92
O tempo perdido, para Proust, é mais do que um mero passado, mas o tempo no estado puro, numa fusão de um ins-
tante presente e de um instante passado, o contrário do tempo que passa: o extratemporal, a eternidade.
93
PROUST apud GENETTE, 1972, p. 43.
94
ADÉLIA, 1996, p. 20.

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
60
BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, João A. As Ilusões da Modernidade. São Paulo: Perspectiva,1986.

BARROS, Diana L. P. de e FIORIN, José L. (Org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade:


Em torno de Bakhtin. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1999.

BORGES, Jorge L. A Muralha e os livros. Rio de Janeiro: Sabiá, s.d.

BORNHEIM, Gerd. A. Breves observações sobre o sentido e a evolução do trágico. In:


_________. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1975.

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COELHO, Eduardo P. Os Universos da Crítica. Lisboa: Edições 70, 1982.

ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Lisboa: Cosmos, 1977.

FROMM, Erich. A Linguagem Esquecida: Uma introdução ao entendimento dos sonhos,


contos de fadas e mitos. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1980.

GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Éditions du Seuil,


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MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes


& Editora da Unicamp, 1989

MELO NETO, João C. de. Morte e Vida Severina. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio
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RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. São Paulo: Loyola, 2000.

__________. Teoria da Interpretação. Porto: Porto Editora, 1995.

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Religião 29. São Paulo: Umesp, 2005.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

VV.AA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.

Recebido em 03/10/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

O DRAMA DA VIDA SEVERINA: E A EPIFANIA DA ESPERANÇA NO PALIMPSESTO CABRALINO • Eli Brandão da Silva
61
Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia
Antiga: As Bases de uma Religião

Fabrício Possebon1
Gracilene Felix Medeiros2

RESUMO: O homem moderno explica a religião através do transcenden-


te, atribuindo-lhe um caráter místico, abstrato, distante das práticas cotidianas.
Diante disso, propomo-nos ir ao passado da humanidade para observarmos e en-
tendermos como surgiram os primeiros momentos de religiosidade e comprovar
que esta ligação com o sagrado aconteceu proveniente de atos concretos, como
o ritual fúnebre. Este contato inicial permaneceu e difundiu-se, principalmente,
na Grécia antiga, civilização que tomamos como base para comprovarmos que o
mito e esta relação do homem com o divino surgem em virtude do concreto e não
ao contrário. Para esta viagem, nortear-nos-emos pela evolução da mente e pelo
túmulo, que é o símbolo do elo entre os vivos e o sobrenatural.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Mente; 2. Sagrado; 3. Religião; 4. Túmulo.

ABSTRACT: The modern man explains religion through the transcen-


dent, giving it a mystical, abstract character, remote from daily practices. Therefo-
re, we propose to go into the past of mankind to observe and understand how the
first moments of religiosity have emerged and prove that this link with the sacred
occurred from concrete acts, as the funeral ritual. This initial contact remained
and spread, especially, in ancient Greece, a civilization that we take as a basis to
prove that the myth and the relationship of man with the divine arise by virtue
of the concrete and not otherwise. For this trip, we will guide us by the evolution
of the mind and the tomb, which is the symbol of the link between the living and
the supernatural.

KEYWORDS: 1. Mind; 2. Sacred; 3. Religion; 4.Tomb.

Introdução
A humanidade, hoje, vivencia uma religião extremamente abstrata, intelectualizada,
com muitas doutrinas e códigos. Por isso, inquietamo-nos em fazer algumas perguntas: será
que sempre foi assim? Será que sempre fomos assim? E a nossa religiosidade, sempre foi
pensada, cogitada? E ainda podemos nos questionar mais, será que as primeiras civilizações
viviam sua religiosidade da forma atual? Será que a civilização grega, por exemplo, que

1
Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é Coordenador da Graduação (Licenciatura e
Bacharelado) em Ciências das Religiões e professor adjunto do Departamento de Ciências das Religiões, Centro de
Educação – UFPB. E-mail: fabriciopossebon@gmail.com
2 Mestre em Ciências das Religiões pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões do Centro de Educação
da Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Letras pela mesma Instituição E-mail: graci_cead@hotmail.com.

62
era muito avançada para sua época, vivia sua religiosidade da forma atual? Diante destas
indagações, propomo-nos a pesquisar este mundo antigo para respondermos a essas questões,
tentando dirimir um pouco as nossas dúvidas.
Na realidade, este trabalho é um convite para uma viagem a um mundo novo e
desconhecido, mas que já foi habitado e vivenciado por toda a nossa raça. Por isso, é um
convite também para conhecermos o cerne da religião. Contudo, para partirmos em busca do
cerne da religião, faz-se necessário ir até o início de nossa existência. Assim, vamos começar
nossa pesquisa a partir dos primeiros momentos do homem sobre a Terra, tendo como base
teórica as perspectivas assumidas por Steven Mithen3.
Os primeiros exemplos de nossa raça advêm de primatas, que têm um parentesco
distante das espécies de símios que encontramos hoje. Mas, na realidade, não vamos
abordar uma evolução biológica do homem, apesar desta fazer parte do tema que
trabalharemos, seremos objetivos, pois o que nos interessa nesse momento pré-histórico
é a evolução cerebral que o homem sofreu durante milhares de anos até atingir um ponto
propício para um entendimento mais panorâmico de si mesmo e do outro, proporcionando
a esse homem um contato com o religioso4. A vivência primeira do homem com o
sobrenatural partiu dos atos de sepultamentos seguidos de rituais fúnebres que atribuíam
uma característica de sagrado ao culto realizado. Esses atos tinham como símbolo o
próprio túmulo, que representava o espaço sagrado5 onde se encontravam aqueles que
já não mais pertenciam a esse mundo real e, portanto, podiam constituir um elo entre os
vivos e o sobrenatural.
Este estudo torna-se importante de acordo com a perspectiva de que esses cultos não
pararam na pré-história. Eles seguiram o homem durante toda a evolução das civilizações,
chegando à civilização grega em sua essência, e é a essa civilização que vamos dedicar nossos
estudos, tendo em vista o caráter importante dela para a humanidade. Assim, apresentamos
de forma embrionária a origem básica dos cultos e rituais gregos e, a partir dessa origem,
procuramos identificar os rituais fúnebres – originários dos primórdios da humanidade –
como expressões ritualísticas que caracterizam o início de nosso contato com o religioso e
que explicam as formações e criações dos mitos gregos, dentre eles, a origem dos heróis6.
Tomamos como referencial para explicar a nossa concepção de mito a teoria de Mircea

3
Steven Mithen, arqueólogo que desenvolveu estudos sobre a pré-história cognitiva.
4
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. Tradução Laura Car-
dellini Barbosa de Oliveira; revisão técnica Max Blum Ratis e Silva. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p.19.
5
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. Tradução Rogério Fernandes. 3ª ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010, p. 25-62.
6
BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica. Tradução de M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Serviço de
Educação/ Fundação Calouste Gulbenkian, 1993 [1977], p. 369-418.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
63
Eliade7, observando o direcionamento proposto por Jean-Pierre Vernant8 e, também, a ideia
de evemerismo9, que é mencionada na obra de Fernand Robert10.
Percebemos que o homem antigo, das primeiras civilizações, e o homem arcaico,
propriamente dito, pré-histórico viviam o ato religioso em rituais concretos e próximos do seu
cotidiano. Ainda, na Grécia antiga, esses rituais tornavam-se mais diários, pois estavam nas
pequenas realizações, mas também nas grandes festas, tais como na festa dos mortos. Como
diz Possebon: “A vida profissional, a ocupação com os afazeres domésticos, o lazer, a diversão, o
descanso, etc., são atividades que os gregos primitivos faziam como nós, todavia sempre tendo
presente o elemento maravilhoso”11. Assim, percebemos que o grego não diferenciava suas
atividades corriqueiras do divino, do sagrado, ao contrário, ele vivia a religiosidade constante
e continuamente, em todos os seus atos. Ainda acerca da vivência do sagrado no cotidiano,
Eliade afirma que:

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais


possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência
é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as
sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à
realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer
dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia12

De acordo com Eliade, “o sagrado equivale ao poder”13, e esse poder é representado


em toda sua força nos cultos primitivos e na civilização grega através do túmulo. Pois, é o
túmulo que dá um caráter de sobrenatural aos mortos e sendo mais preciso, é ele também que
aproxima o homem do divino e é por meio desse ser morto, dono do túmulo, que os vivos
podem estabelecer uma ligação com o além14. Na civilização grega, a posse do túmulo e o
culto aos mortos constituíram muitos dos mitos que fundamentaram toda a religião grega, por
exemplo, o mito dos heróis15.
Sabemos que nossa pesquisa não dará conta de expor todo o processo religioso da
pré-história e da Grécia antiga. Por isso, guiar-nos-emos através do ritual fúnebre, do culto

7
Mircea Eliade foi um Historiador das Religiões e desenvolveu um estudo acerca da relação do homem com o sagrado
por meio do rito, do espaço, do tempo e do mito. Cf. ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões,
p. 5.
8
É importante helenista que desenvolveu muitos estudos sobre a influência do mito e dos ritos na cultura grega e como
isso foi transmitido pela literatura.
9
“Evêmero” (c.330-c.260), que popularizou essa interpretação pseudo-histórica da mitologia em seu livro “A Inscrição
Sagrada”.
10
ROBERT, F. A religião grega. Tradução Antônio Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 04-05.
11
POSSEBON, F. Tò thaumastón: o maravilhoso. Introdução ao pensamento grego arcaico. João Pessoa: Ed. Univer-
sitária UFPB/ Zarinha Centro de Cultura, 2008, p. 09.
12
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. p. 18.
13
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: a essência das religiões, p. 18.
14
ROBERT, F. A religião grega, p. 04-05.
15
Idem, Ibidem.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
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aos mortos e, principalmente, da importância do túmulo16 que, desde sempre, é um norte para
este tipo de estudo. Pois, é através do túmulo que podemos identificar o ritual feito, o culto
que era praticado e a importância do morto para sociedade, e é essa força do túmulo enquanto
registro e detentora de informações, assim como, fonte de origem para muitos mitos, que nos
propusemos a mostrar, fazendo esta busca desde os sepultamentos na pré-história até as festas
e cultos aos mortos na civilização grega17.

1. A Evolução da Mente e o Surgimento da Religião: simplesmente uma


manifestação do sagrado18

Que o homem surgiu na terra a milhares de anos e, desde então, passou por diversas
mudanças e que estas o conduziram até os nossos dias, todos nós já sabemos. Porém, muitos
desconhecem as alterações sofridas por nossa mente neste espaço de tempo.
A mente humana modificou-se a cada novo momento da nossa evolução até chegar
ao Homo Sapiens Sapiens, isto é, o homem que somos. Mas, o estágio humano que
desfrutamos é resultado de um processo longo e distante de nossa realidade. Os primeiros
surtos de inteligência surgiram através do Homo Erectus, que libera as mãos por tomar uma
postura ereta e, com isso, passa a ter um contato maior com o meio ambiente. Logo, há um
desenvolvimento do cérebro um pouco mais acentuado. Após o Homo Erectus, temos o Homo
Habilis que desenvolve o dedo em forma de pinça pela oposição do polegar e isso possibilita
um aumento cerebral19.
A evolução humana segue seu curso diante das grandes mudanças climáticas que
assolam a terra nesses primeiros milênios da história. Assim, chegamos ao Homo Sapiens
arcaico e ao Homem de Neandertal, este teve seus vestígios encontrados na Europa e aquele
fora identificado na África e na China20. Este homem arcaico (Homo Erectus, Homo Habilis,
Homo Sapiens, Homem de Neandertal) desenvolveu as inteligências múltiplas, paulatinamente,
de acordo com a evolução da espécie humana e com as necessidades que eram impostas pelas
adversidades do clima e da própria Terra. No entanto, as inteligências desenvolvidas não fluíam
entre si, pois elas funcionavam, separadamente, no modelo de um canivete suíço21. O homem
arcaico utilizava de maneira isolada as inteligências fundamentais para sua sobrevivência.
16
BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica, p. 369-380.
17
Para esta busca utilizamos: MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da
ciência. BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica.
18
Mithen utiliza em sua obra A pré-história da mente o termo religião para designar este contato do ser humano com o
transcendental. No entanto, como este conceito de religião institucionalizada não fazia parte do contexto dos tempos
mais remotos de nossas civilizações, optamos por usar em nossa pesquisa a expressão manifestação do sagrado ou
Hierofania, termo usado por Mircea Eliade em sua obra O sagrado e o profano, que também expressa o sentido de
contato com o sobrenatural.
19
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 186.
20
Idem, Ibidem.
21
Idem, Ibidem, p. 185-239.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
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Essas inteligências eram a inteligência técnica, a inteligência naturalista, a inteligência social
e a inteligência geral.
A inteligência técnica fora usada para a produção de ferramentas para a caça. As
primeiras delas ou os primeiros artefatos produzidos foram os Chopper’s, ferramentas
produzidas a partir dos seixos. Elas eram feitas pela aplicação de uma inteligência técnica, mas
não havia uma preocupação em relacionar essas ferramentas ao tipo de caça ou ao local onde
o animal seria caçado, etc. Então, percebemos que não ocorria uma união entre a inteligência
técnica e a naturalista. Pois, a inteligência naturalista proporcionava ao homem arcaico um
entendimento do ambiente no qual se encontrava e de tudo o que estava a sua volta, assim,
ele poderia se direcionar de forma mais precisa e caçar com mais eficácia. No entanto, não
encontramos a aplicação dessas orientações na produção dos artefatos e, consequentemente,
os resultados não foram os melhores.
A inteligência social pode ser compreendida como uma forma de inteligência presente
entre os humanos arcaicos, pois, entende-se que era essa que lhes proporcionava alguma
maneira de interação, direcionando-os nas atividades a serem desenvolvidas. Porém,
semelhante às outras inteligências, a inteligência social era aplicada de uma maneira isolada.
Assim, essas inteligências se apresentavam separadamente, fazendo com que o cérebro
permanecesse dentro de uma limitação, que impossibilitava o homem arcaico realizar novos
empreendimentos e ter a sobrevivência garantida.
A transição do Paleolítico Médio para o Paleolítico Superior é marcada por uma
explosão cultural. Esta ocorre quando as três bases da inteligência humana (a inteligência
técnica, naturalista e social) se fundem e proporcionam ao homem, meios de fazer uma
transformação no ambiente no qual está inserido22. A fusão entre as bases da inteligência
permitiu ao homem, que agora é o Homo Sapiens Sapiens (o homem moderno23), ter uma
fluidez cognitiva e uma compreensão simbólica, que é desenvolvida por meio da linguagem,
possibilitando-lhe um novo entendimento do seu mundo. A explosão cultural que ocorreu
desencadeou as primeiras manifestações artísticas e o aparecimento de expressões do sagrado
(da religião). Isso aconteceu devido à nova capacidade humana de representar, de abstrair, de
construir símbolos e de constituir, agora, uma cultura mítica.
É no início do Paleolítico Superior que este contato do homem com a divindade, com o
sobrenatural é instituído inicialmente24. Este fato é reconhecido por uma nova forma de sepultar
os mortos. O homem passa a produzir uma espécie de ritual para seus mortos mostrando,
com isso, que há uma abstração em relação ao ser que não está mais entre eles, e há também
um elo com esse ser. O processo de sepultamento, seguido de rituais, sinaliza uma alteração
no pensamento dos primeiros homens modernos em relação aos homens arcaicos. Porque,

22
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 262.
23
A partir de então, empregaremos esta expressão “homem moderno” referindo-nos ao Homo Sapiens Sapiens.
24
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 279-290.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
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em determinados locais habitados pelo Homem de Neandertal, foram encontrados alguns
corpos sepultados em covas, porém, não havia indícios de rituais fúnebres nem de objetos
depositados nas covas com os mortos, descaracterizando, assim, a realização do ritual25.
Portanto, é a partir dessa explosão cultural, advinda por meio da fluidez cognitiva, que o
homem passa a sepultar os seus mortos através de um ritual, ato que caracteriza a presença do
rito religioso e a presença dessa abstração do ente que partiu. Os primeiros homens modernos
passam a sepultar seus mortos, promovendo ritos fúnebres que utilizavam o totemismo com
carcaças ou imagens de animais sendo depositadas nos túmulos, caracterizando o morto com
peculiaridades do animal em questão. Essa visão é paradoxal ao antropomorfismo, que atribui
características humanas aos animais. Os objetos depositados nos túmulos identificavam
os rituais mortuários e mostravam que os primeiros indivíduos do Paleolítico Superior
acreditavam em seres sobrenaturais ou em uma vida após a morte, ou simplesmente, queriam
estabelecer um contato com o além26.
Este novo fato na história da humanidade determina a presença de uma ideologia religiosa,
tendo em vista que a religião em si, normalmente, é a crença em seres não-físicos27. Essas
ideologias frisam a existência de uma essência (alma – espírito) após a morte, a interpretação e
inspirações dos seres sobrenaturais, e que os rituais podem provocar mudanças no mundo natural.
Diante dessas informações, observamos que alguns sítios arqueológicos continham
registros desses rituais e apresentavam por meio da arte, seu culto ao transcendente, ao mundo
mitológico. Esses registros de pinturas e objetos que caracterizavam o ritual fúnebre vêm nos
informar que o rito era realizado por que as pessoas acreditavam no não-real. Mas, além disso,
vêm nos mostrar que a realização desse ritual não era da mesma forma para todos. Entendemos
que havia certa seleção para a realização deste ato fúnebre, utilizando mais ou menos objetos
para serem depositados no túmulo, destacando, assim, as pessoas que o recebiam como homens
importantes para sua comunidade e, ser-nos-iam, também, no contato com o sobrenatural28. A
ideologia religiosa também no Paleolítico Superior era direcionada pelo não-físico que rompia
com o conhecimento intuitivo do homem em seu aspecto biológico, pois os seres míticos que
eram projetados pelas nossas mentes possuíam um corpo humano que não estava preso as
limitações da humanidade. Contudo, algumas vezes, esses seres eram dotados de sentimentos
humanos. Essas características são percebidas principalmente nos deuses gregos e romanos.
Mas, estes sentimentos não podem ser avaliados no contexto dessas expressões de sagrado,
com índices qualitativos, como sendo bons ou ruins, pois tudo fazia parte do universo dos
deuses. São estes distanciamentos e aproximações com o ser sobrenatural que permitia uma
compreensão e uma ligação do homem com um ser superior.

25
Idem, Ibidem, p. 284.
26
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 264-268.
27
BOYER apud MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 279.
28
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 264-303.

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O registro religioso que ocorria nos túmulos, geralmente, era marcado pela presença
de carcaça de animais ou da representação desses, mas tratava-se sempre de um símbolo
totêmico. Destarte, observamos que foi necessária a união da inteligência naturalista com
a social para que houvesse os primeiros rituais nos sepultamentos e os primeiros símbolos
deixados nesses espaços caracterizando, por meio desses, o sobrenatural29.
Parece-nos de fundamental importância que os estudiosos das religiões compreendam
que essa evolução da mente humana possibilitou a fusão das inteligências múltiplas, liberando
uma fluidez cognitiva que levou o homem a um estado mental mítico, permitindo, assim, as
primeiras aspirações religiosas da humanidade.

2. A Simbologia do Túmulo30

O sepultamento em covas já era utilizado pelo Homem de Neandertal, no entanto,


não englobava esta percepção de sobrenatural que começa a surgir com o homem moderno.
Destarte, a prática ritualística de depositar objetos nos túmulos, caracterizando esses como
elos entre o mundo físico e o não-físico, ainda não existia para o homem arcaico. Foi no
início do Paleolítico Superior que o túmulo tornou-se o registro deste contato com o sagrado
e passou a guardar em si, concretamente, a ocorrência do fenômeno religioso.
À medida que o Homo Sapiens Sapiens foi se integrando ao mundo e passou a unir as
inteligências múltiplas, o culto aos mortos foi evoluindo. E essa evolução é percebida através
das alterações nos túmulos. Os sepulcros eram adornados anteriormente com carcaças de
animais, caracterizando um ritual totêmico, contudo, a esse ritual foi acrescido outros adornos
de contas, marfim, entre outros elementos, abandonando um pouco a percepção totêmica e
adotando um ato mais antropomórfico. Essas mudanças foram acontecendo gradativamente,
mas a importância religiosa do túmulo e do ritual fúnebre continuou se fazendo presente,
ligando o homem ao transcendente.
Este tipo de ornamentação dos túmulos podia ser observado com naturalidade na
Grécia antiga, onde o ritual fúnebre estabelecia a própria estrutura religiosa. Pois, os túmulos
na Grécia eram ambientes religiosos e ritualísticos, espaços sagrados nos quais havia o
contato do homem com a divindade. Esses túmulos continuaram sendo ornados com pedras,
madeiras, porém, cada vez mais carregados de simbolismo e mais transcendentes, levando a
pessoa ao deus. Os novos símbolos eram também representações de animais, mas nesse caso,
como já foi mencionado, não há a ocorrência do totemismo e, sim, do antropomorfismo, pois
os gregos atribuíam aos animais características humanas. Essas alterações nos sepultamentos
ocorreram após a união entre a inteligência social e a inteligência naturalista no início do

29
MITHEN, S. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência, p. 285.
30
O túmulo representa o elo entre o real e o não-real, dando um caráter divino e de poder àquele que o possui. Cf.
BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica, p. 395-396 e ROBERT, F. A religião grega, p. 04-05.

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Paleolítico Superior e permitiram ao homem moderno estabelecer uma ligação com outro ser
humano, registrando esse vínculo depois da morte por meio da utilização de adornos feitos,
geralmente, com restos de animais ou imitações desses nos sepultamentos.
A representação do túmulo como elo entre os homens e o além chegou à Grécia
carregada de ideologias religiosas. Ideologias essas que foram fomentadas desde o período
Paleolítico Superior. O túmulo não deixava de ser um registro social, pois a sua importância
ocorria de acordo com a influência da pessoa: quanto mais importante o indivíduo, mais
ornado o túmulo seria e mais simbólico seria o ritual.
Os primeiros túmulos se encontravam em cavernas, onde as pessoas depositavam seus
mortos ilustres por meio de rituais simbólicos. Já na Grécia antiga, os mortos eram sepultados
em um dado momento em sepulturas de cúpula ou câmara, porém, passaram a ser sepultados
em covas individuais. Alguns eram sepultados em pontos determinantes para a orientação.
Estes túmulos eram em forma cônica, constituído por montes de pedra e formavam a sepultura
de homem influente. Essas sepulturas eram ornadas com muitos objetos, muitos símbolos que
indicavam a importância do morto e seu destaque na comunidade31. Isso é confirmado por
Marily Simões Ribeiro, quando diz:

Os sepultamentos se mostram como locais privilegiados para se ler as re-


lações de poder, por meio da cultura material presente junto aos mortos, da pró-
pria construção do abrigo para a deposição do corpo, da prática escolhida para
a deposição do corpo e dos signos de poder presentes em contextos mortuários.
Especialmente a partir da década de 70, a perspectiva da leitura dos papéis sociais
e do reconhecimento das diferenciações nas estruturas da sociedade a partir dos
restos funerários continua produzindo frutos32

De acordo com a afirmação de Ribeiro, o túmulo constitui um espaço sagrado repleto


de significados simbólicos, mas também funciona como um norte cheio de dados sociais
sobre aquele que ali jaz. Além desta importância dada ao falecido pelos adornos depositados
em seu túmulo ocorre, também, de maneira geral, um destaque para todos os mortos que
é, em sua essência, o simples fato destes estarem mortos, isto é, os não – vivos tornam-se
também destaques pelo próprio poder exercido pela morte, que torna um vivo em um ser não-
físico, logo, sobrenatural. Portanto, esses indivíduos que desde a era do Paleolítico Superior
vêm sendo sepultados e ornados por meio de rituais fúnebres tornam-se parte do divino pelo
túmulo adquirido e, consequentemente, pelos rituais recebidos.
Destarte, o túmulo é o primeiro símbolo religioso que guarda a essência do sobrenatural,
do divino em si. Por isso, precisa ser ritualizado e cultuado devidamente. Este culto promove
a própria divinização do morto, tornando-o parte do sobrenatural e de certa forma, divindade.

31
ROBERT, F. A religião grega, p. 04-05.
32
RIBEIRO, M. S. Debates atuais da arqueologia: será que podemos falar dos mortos? In:__________. Arqueologia
das práticas mortuárias: uma abordagem historiográfica. São Paulo: Alameda, 2007, p. 122.

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Com isso, percebemos que o divino surge de algo concreto que transcende a percepção humana
e sua inteligência, criando um mundo simbólico, mas intrinsecamente ligado ao real.

3. O Ritual Fúnebre na Grécia Antiga

O culto aos mortos, na Grécia Antiga, assim como desde o momento da explosão
cultural sofrida pelo homem moderno, era algo sagrado que deveria ser realizado por diversos
motivos da ideologia religiosa, mas o que também norteava esses cultos era o medo do que
estava obscuro, distante, nos reinos infernais. A respeito desse receio dos vivos em relação
aos não-vivos, Vernant diz:

[...], durante a festa dos genésia, dos antepassados, no mês Boedromion


(setembro); porém, mais do que um ato de veneração diante das Potências supe-
riores, elas aparecem como o prolongamento temporário do cerimonial dos fune-
rais e das práticas de luto: trata-se, ao abrir para o defunto as portas do Hades, de
fazê-lo desaparecer para sempre deste mundo, onde ele já não tem seu lugar [...]33

A afirmação acima nos mostra que os rituais fúnebres eram realizados para direcionar
os mortos ao Hades34 e afastá-los do mundo real. Porém, esta não era apenas uma necessidade
dos vivos, pois, os rituais eram fundamentais para o próprio morto, como pode ser observado
no trecho abaixo:

Dormes, Aquiles, o amigo esquecendo? Zeloso era antes, quando me


achava com vida; ora, morto, de mim te descuidas, com toda a pressa sepulta-me,
para que no Hades ingresse, pois as imagens cansadas dos vivos, as almas, me
enxotam, não permitindo que o rio atravesse para a elas juntar-me. Por isso vago
defronte das portas amplíssimas do Hades35

De acordo com os versos acima, compreendemos a importância dos rituais mortuários


para que os falecidos entrassem no Hades. Este era um pensamento mítico do mundo grego,
que é exposto nesse trecho da Ilíada e, com isso, podemos constatar que para o homem da
Grécia antiga, o vínculo com o mundo real só era rompido quando o morto cruzava o rio do
Hades, mas este fato só ocorria através desses rituais.
O ritual mortuário dos gregos seguia a mesma ideologia dos primeiros Homo Sapiens
Sapiens, respeitando a estrutura social que deveria ser seguida e mantida. Nesse momento, o
mundo grego já adotara basicamente a sepultura individual, que passara a ser situada fora dos
limites das cidades. Dessa maneira, o ritual fúnebre seguia uma sequência específica.

33
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução de Joana Angélica D’Ávila Melo. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 46.
34
Hades era um deus grego, mas essa palavra também designava as regiões infernais para onde iam todas as almas.
35
HOMERO. Ilíada. Tradução em versos de Carlos Alberto Nunes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 344, (Canto
XXIII, Versos 69-74).

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
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O início do rito era o amortalhamento – o morto era lavado e vestido por mulheres,
depois a cabeça era cingida por fitas ou com uma coroa e era rodeado por mulheres que se
lamentavam. Essas lamentações eram indispensáveis. Esse momento do rito durava um dia e
nesse dia só haveria choro, dor e desespero da parte dos familiares que arrancavam os cabelos,
arranhavam-se, machucavam-se de todas as formas, expressando através desse momento sua
dor. Podemos ver um momento como este na Ilíada quando Príamo, vendo o filho, Heitor,
morto, atira-se aos excrementos dos animais em um sinal de sofrimento, maculando-se e
estabelecendo a desordem à sua casa.

Mancha-se a bela cabeça, desta arte, na poeira. Atirando o branco véu


para longe, os cabelos a mãe arrepela, ao ver o filho extremado, rompendo em
sentidos queixumes. O velho pai, também, solta gemidos de dor, e os do povo, por
toda a grande cidade, a lamentos e prantos se entregam [...] Dificilmente os do
povo podiam conter o monarca, que, desvairado, queria sair pelas portas dardâ-
nias. A rebolcar-se no esterco, fazia insistentes pedidos, por entre fundos lamen-
tos, chamando a um por um pelo nome: [...]36

Nesses versos percebemos as lamentações do monarca diante da voracidade da morte.


Ainda de acordo com a ideia do rito mortuário, veremos nos versos seguintes o cumprimento
dessa primeira etapa do ritual fúnebre, quando as mulheres vão lamentar e chorar ao lado do
corpo do guerreiro em questão:

Viu o cadáver, também, sobre o leito que os mulos traziam. Soam por
toda cidade seus gritos e tristes lamentos: [...] Logo que a régia imponente al-
cançaram, no leito esculpido foi colocado o cadáver; ao lado cantores se postam,
com o objetivo de entoar epicédios, a que dão começo cheios de unção e tristeza,
conforme aos queixumes das Teucras. Dá logo início aos lamentos, no meio das
Teucras, Andrômaca [...]37

Percebemos, através dos versos citados, que os textos literários faziam registros em
suas narrativas das práticas fúnebres do povo. Assim, identificamos no trecho acima a narração
do momento das lamentações como parte do ritual fúnebre. Após este momento do rito (as
lamentações), ocorria outra etapa que era o levar para fora, isto é, conduzir o morto para
fora do espaço da cidade, dirigindo-o até o local sagrado, onde eram sepultados os mortos.
Durante essa procissão, continuam as lamentações. Chegando-se ao local determinado do
sepultamento ou da cremação, ocorre o ato do enterro propriamente dito ou da cremação.
Quando o falecido era cremado, havia no local uma grande fogueira onde era depositado o
corpo, depois um parente recolhia os ossos. O funeral, em si, ocorre seguido por sacrifícios e
refeições fúnebres.

36
HOMERO. Ilíada, p. 340 (Canto XXII, Versos 405-415).
37
HOMERO. Ilíada, p. 376-377 (Canto XXIV, Versos 702-724).

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Os sacrifícios podiam ser efetivados pela entrega de oferendas ao morto em forma
de presente, sendo essas oferendas objetos representativos do falecido como, por exemplo,
armas, ferramentas de trabalho, jóias, roupas, etc. Mas, como na pré-história, também eram
depositados símbolos de animais, de divindades, etc. Havia também a destruição de objetos
e animais pertencentes ao morto, em sinal da sua perda e do sofrimento dos seus. Seguindo
a entrega dos presentes em sacrifício, ocorria o banquete, outro estágio do ritual fúnebre. O
banquete, em um período longo da antiguidade, era consumido e preparado ao lado da pira ou
do sepulcro do morto, mas em certo momento da história passou a ser preparado em casa e
consumido à mesa, onde as pessoas imaginavam que o morto se encontrava presente. Após o
banquete, aconteciam os jogos fúnebres38. Estas competições ocorriam para celebrar e honrar
o falecido, além de estabelecer uma função social, característica dos rituais mortuários, os
jogos também serviam para obtenção do prestígio, pois quanto mais honra recebia o morto,
mais importante este era39.
Registros sobre os jogos fúnebres podem ser encontrados em diversas narrativas como,
por exemplo, em um episódio da Ilíada:

Primeiramente, com vinho brilhante os vestígios apagam do fogo ingente,


que espessa camada de cinza formara; os brancos ossos do amigo, a chorar, em se-
guida, recolhem, em urna de ouro os colocam, cobrindo-os com muita gordura, e
a urna na tenda de põem, sobre a qual branco linho estenderam. Traçam, depois,
o contorno do túmulo à volta da pira, os fundamentos afirmam e a terra escavada
amontoam. O monumento erigido, dispõem-se a sair; mas Aquiles os Dânaos
todos detém para os jogos, fazendo assentarem-se, e manda vir dos navios os
prêmios, caldeiras e trípodes, [...]40

A realização dos jogos fúnebres foi descrita em várias epopéias. Como exemplificamos
acima com um momento narrado na Ilíada, temos também na Eneida41 a narração de outro
episódio envolvendo esses jogos.
Terminando as competições, o túmulo é marcado por uma pedra que funciona como
uma espécie de símbolo do morto. Depois do uso dessa pedra nos primeiros séculos, passou-
se a usar uma lápide decorada com pinturas e inscrições. Essas lápides devem ser lavadas,
oleadas durante as festividades em honra aos mortos. As lápides ou signos funcionam como
protetores dos mortos e os anunciam para a eternidade. Esse culto ao sepulto é contínuo,
mas ocorre de maneira frequente em datas determinadas, no terceiro dia, no nono dia e no
trigésimo dia após a morte do falecido, quando é determinado o fim do luto, ficando as honras

38
Os jogos fúnebres eram competições esportivas realizadas pelos parentes dos falecidos de prestígio, após o sepulta-
mento ou a cremação do corpo. Esses jogos serviam para restabelecer a organização social que fora abalada com a
morte do ente querido.
39
BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica, p. 374-377.
40
HOMERO. Ilíada, p.348, (Canto XXIII, Versos 250-259).
41
Eneida é uma epopeia clássica, produzida por Virgílio, poeta latino. No Livro V da Eneida é descrito os Jogos Fúne-
bres que Enéias realiza em homenagem à morte de seu pai Anquises.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
72
fúnebres (sacrifícios, banquete fúnebre e jogos competitivos) inseridas no calendário festivo
das cidades e ocorrendo, anualmente, na comemoração da festa dos mortos.
Os ritos fúnebres não estabelecem apenas um contato com o sobrenatural, mas no “[...]
culto dos mortos permanece o fundamento e a expressão da identidade da família. A veneração
dada aos antepassados é esperada também dos descendentes: da recordação dos mortos cresce
a vontade de continuidade”42. Portanto, os ritos fúnebres caracterizavam também um ato sutil
para a eternidade.

4. O Rito e o Mito: a perpetuação do pensamento religioso

Constatamos que o homem evoluiu bastante com a fusão das inteligências múltiplas.
Também entendemos que, a partir disso, iniciamos nosso momento mítico na Terra e passamos
a estabelecer contato com o divino. Mas, onde começa esse contato?
Baseando-nos nas informações citadas, compreendemos que a religião teve início com
os sepultamentos e rituais funerários. Então, nossos primeiros contatos com o sobrenatural
realizaram-se partindo de atos concretos, nos quais havia a manifestação do sagrado. Pois,
como propõe Eliade, “O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como algo absolutamente diferente do profano”43. Destarte, o homem estabelece uma
comunicação com a divindade por meio do ritual fúnebre, porque há neste a manifestação do
sagrado, a Hierofania44.
Fernand Robert cita, em sua obra45, a teoria do evemerismo que, por sua vez, justifica
a ocorrência dos mitos como narrativas históricas usadas para assegurar a realização do rito.
Então, segundo Robert, “a religião não está no que se conta, mas no que se faz.”46, e, portanto,
é “[...] o rito, que constitui a verdadeira origem do mito [...]”47. Ainda conforme Robert, o
mito apareceria como um meio de explicar o rito. Logo, percebemos que o nosso enigma é
entender essa relação rito x mito.
Desta maneira, as festas destinadas aos mortos, em honra desses ou simplesmente para
afastá-los dos que estavam vivos, assim como para que os falecidos abençoassem o mundo
dos vivos ou as festas que reproduziam rituais de colheita, de combates ou de grandes feitos
seriam justificadas por narrativas que definiriam toda a história inicial do rito. De acordo com
esta teoria, a fama dos heróis vinha desse tipo de construção mítica. Pois, teria início com o
rito fúnebre e o culto que se seguia a esse. Com isso, o falecido ganhava a fama após a morte
e o mito se materializava.

42
BURKERT, W. Religião grega na época clássica e arcaica, p. 380.
43
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões, p. 17.
44
Termo usado por Mircea Eliade para designar a manifestação do sagrado.
45
ROBERT, F. A religião grega, p. 04.
46
Idem, ibidem, p. 06.
47
Idem, ibidem.

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Burkert diz em relação a isso que “[...] Na utilização linguística posterior, o “herói” é
um falecido que exerce a partir do seu túmulo um poder para bem ou para mal e que exige uma
veneração adequada”48. Portanto, o herói, de acordo com esta afirmação, era um indivíduo de
destaque que a partir da força religiosa do túmulo e de seu culto, ganhava uma narrativa que
fomentava seu mito e o propagava por todos os cantos do mundo antigo.
No entanto, o mito do herói fora consolidado pelos grandes poetas da antiguidade
Homero49 e Hesíodo50, que narraram os feitos heroicos em campos de batalha, forjados nos
combates singulares. Dentre os heróis, estavam Aquiles, Ulisses, entre outros. Hesíodo sendo
mais didático estabeleceu a organização universal através do Mito das Raças Humanas e
situou o herói em uma idade específica, entre a idade de bronze e a idade de ferro, idade
dos homens como nós. Em consonância com Hesíodo, o herói seria uma raça superior aos
humanos normais, uma raça que nasceu em um tempo próprio e determinado, fazendo cair por
terra a teoria de que os heróis seriam os falecidos que se tornavam venerados a partir de seu
túmulo. Todavia, Vernant afirma que:

[...] Durante o século VIII, desenvolveu-se rapidamente o costume de


reaproveitar construções micenianas, funerárias em sua maioria, que estavam em
desuso havia séculos. Reformadas, elas servem de locais de culto para homena-
gens fúnebres prestadas a personagens lendários, [...] o culto dos heróis tem um
valor ao mesmo tempo cívico e territorial; está associado a um local preciso, um
túmulo com a presença subterrânea do defunto, cujos restos foram às vezes bus-
cados em regiões distantes para serem reconduzidos ao seu lugar [...]51

O papel determinante do túmulo mais uma vez se faz presente em nossa pesquisa. Como
Vernant expressa, muitos túmulos encontrados na Grécia que remetiam a épocas longínquas
foram direcionados a determinados heróis. Pois, esses túmulos, normalmente, pertenciam a
pessoas de destaque e, assim, surgiam narrativas acerca daquela pessoa, tornando-a um herói
ou um semideus. Com isso, voltamos ao sentido primeiro de nossa pesquisa de que é o túmulo
que garante ao homem status de divindade. O herói representava um símbolo protetor para
a região na qual seu túmulo se encontrava. Ele concentrava os rituais e os cultos fúnebres
voltados para si mantendo, desta maneira, uma aproximação com os indivíduos do local, visto
que o herói também morre. Mas, mesmo morrendo como os outros homens, os heróis estavam
acima dos nossos mortos, tendo em vista que o herói é detentor de proezas inimagináveis.
Assim, muitos túmulos foram encontrados e identificados como pertencentes a
determinado herói por reconhecerem, nesses túmulos, semelhanças do porte físico ou de
objetos usados pelo mesmo. Com isso, o herói passa a ser cultuado da mesma forma que os
mortos o são nas festas dos antepassados.

48
BURKERT, F. Religião grega na época clássica e arcaica, p. 396.
49
Homero era um “poeta” grego, um aedo, a quem foi atribuída a autoria da Ilíada e Odisséia.
50
Hesíodo também era um “poeta” grego, um aedo, a quem foi atribuída a autoria da Teogonia e Trabalhos e dias.
51
VERNANT, J-P. Mito e religião na Grécia antiga, p. 44.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
74
Entendemos que há muita discussão acerca da concepção de rito e de mito, e que este
impasse irá se perpetuar por muitos anos pois, para alguns, o mito é apenas uma fábula que
faz referência ao rito e, assim, por exemplo, o mito dos heróis seria uma narrativa fantasiosa.
Contudo, após citarmos as diferentes propostas em relação ao rito e ao mito, tomaremos como
parâmetro para fechar esta nossa ideia a teoria de Eliade que, por sua vez, nos apresenta uma
relação intrínseca entre rito e mito. Destarte, à medida que o ritual fúnebre se desenvolve e a
manifestação do sagrado permite um contato desse homem com uma experiência sobrenatural,
o rito e o mito vão sendo construídos proporcionalmente. Assim, o ritual, definido pela
concretude da Hierofania, é propagado pelo mito que “é pois a história do que se passou [...]”
e “[...] funda a verdade absoluta”52.
Logo, entendemos que não é possível desassociar o rito do mito, nem estabelecer qual
manifestação surgiu primeiro ou depois, porque os dois são complementos de uma mesma
experiência, a experiência religiosa. Tampouco atribuiremos ao mito um caráter de fábula
pois, como afirma Eliade, o mito é uma verdade a qual se soma a força sagrada do túmulo,
para instituir um conceito de religiosidade presente nas pequenas atividades da sociedade e
do cotidiano.

Considerações Finais

Compreendemos que se faz necessário conhecer a evolução da mente humana para


entendermos o homem que somos hoje. Já em relação à religião, esta necessidade torna-se
mais urgente. Ora, se não conhecemos a origem de nosso pensamento religioso, nem os atos
que determinaram a formação de nossas religiões atuais, como poderemos dissertar sobre o que
nos é completamente alheio? Pois, para compreendermos as variadas manifestações religiosas
da atualidade, precisamos entender a essência e a origem dessas. E, assim, identificarmos de
onde saíram essas formas de religiosidade, onde estão e para onde poderão nos levar.
Fazendo essa pesquisa, procuramos entender o cerne da religião, seu primeiro surto sobre a
Terra, a evolução necessária para isso e, principalmente, como isso foi vivenciado pelas primeiras
civilizações. Compreendendo todos esses tópicos, percebemos que a essência da religião, que foi
vivenciada desde a explosão cultural no Paleolítico superior, chegando à civilização grega, está
basicamente na execução dos ritos e cultos, principalmente nos cultos aos mortos e nos rituais
fúnebres. Logo, entendemos que esses atos seguidos da representação do túmulo fomentaram
toda ideologia religiosa da pré-história ao mundo grego e determinaram a origem dos mitos.
Concluímos que o surgimento dessa expressão de religiosidade desenvolveu-se a partir
do rito fúnebre que está diretamente ligado às narrativas míticas. Assim, o rito está preso ao
mito porque, simplesmente, os dois fazem parte da estrutura que constitui a manifestação do
sagrado. Além disso, são eles que permitem a perpetuação desse contato com o transcendente.

52
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões, p. 84.

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
75
Bibliografia

BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. Tradução de M. J. Simões


Loureiro. Lisboa: Serviço de Educação/ Fundação Calouste Gulbenkian, 1993 [1977].

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Tradução Rogério


Fernandes. Biblioteca do pensamento moderno. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

HOMERO. Ilíada. Tradução em versos de Carlos Alberto Nunes. Clássicos de Bolso. 5ª ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

MITHEN, Steven. A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da
ciência. Tradução Laura Cardellini Barbosa de Oliveira; revisão técnica Max Blum Ratis e
Silva. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

POSSEBON, Fabrício. Tò thaumastón: O maravilhoso. Introdução ao pensamento grego


arcaico. João Pessoa: Ed. Universitária UFPB/ Zarinha Centro de Cultura, 2008.

RIBEIRO, Marily Simões. Debates atuais da arqueologia: será que podemos falar dos mortos?
In:___________. Arqueologia das práticas mortuárias: uma abordagem historiográfica.
História Social. São Paulo: Alameda, 200, p. 119-140.

ROBERT, Fernand. A religião grega. Tradução Antônio Pádua Danesi. Universidade Hoje.
São Paulo: Martins Fontes, 1988.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução de Joana Angélica


D’Ávila Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Recebido em 03/10/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

Os Rituais Fúnebres da Pré-história à Grécia Antiga: As Bases de uma Religião • Fabrício Possebon / Gracilene Felix Medeiros
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FRONTEIRAS DO SINCRETISMO
Experiência religiosa indígena Guarani e
perspectiva cristã

Gustavo Soldati Reis1

RESUMO: Esse artigo procura analisar a possibilidade de interpretação


das relações de contato entre comunidades Guarani e o pensamento cristão,
a partir da produção sócio-antropológica e teológica em questão. Para além
dos paradigmas teológicos da inculturação e do inclusivismo, as “teologias
ameríndias”, exemplificadas em Manuel Marzal e Graciela Chamorro, podem
avançar nas possíveis implicações da noção de sincretismo para caracterizar a
raiz, tanto das experiências religiosas indígenas, quanto cristãs, principalmente
quando essas experiências radicalizam, hoje, aspectos profundamente plurais e
diferenciados, tal como os múltiplos encontros e desencontros entre indígenas
Guarani e Kaiowá e os pentecostalismos presentes nas aldeias do cone sul do
Estado de Mato Grosso do Sul.

Palavras-chave: 1. Teologia, 2. Hermenêutica, 3. Sincretismo, 4. Guarani


(Kaiowá), 5. Religião

ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the possibility of


interpretation from the contact relations between Guarani communities and
Christian thinking from social, anthropological and theological works. Apart
from the theological patterns of inculturation and inclusivism, the “American
indigenous theologies”, exemplified by Marzal and Graciela Chamorro, can move
forward the possible implications of the syncretism concepts in order to define
the origin of indigenous religious experiences and Christians mainly when these
experiences radicalize, nowadays, plural and different aspects, such as the multiple
ups and downs between Guarani and Kaiowá indigenous and the Pentecostalism
in the villages in the south of Mato Grosso do Sul.

Keywords: 1. Theology, 2. Hermeneutics, 3. Syncretism, 4.


Guarani (Kaiowá), 5. Religion

1
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Esse texto foi produzido,
originalmente, como resultado de um Colóquio no referido programa de doutorado. Posteriormente, parte do texto,
especificamente a “Introdução” e o “Item 1” foram incorporados, com as devidas adequações e atualizações, na tese
de doutorado intitulada “Ambiguidade como inventividade: um estudo sobre o sincretismo religioso na fronteira
entre a Antropologia e a Teologia” (2010). O autor, atualmente, é professor Adjunto I do Departamento de Filosofia e
Ciências Sociais e doPprograma de Pós-Graduação (Mestrado) em Ciências da Religião da Universidade do Estado
do Pará – UEPA, em Belém. E-mail para contato: gsoldatireis@yahoo.com.br

77
Introdução

“O ser humano, tal como o imaginamos, não existe”


Nelson Rodrigues2

A socióloga Cristina Pompa, em sua análise do contato entre os índios Tupinambás e


Tapuias com o projeto missionário católico no Brasil colonial, procura romper com alguns “lugares-
comuns” que, ontem e hoje, se fazem presentes tanto em análises antropológicas quanto históricas
(acrescentem-se, teológicas). Contra esses “lugares”, em primeiro lugar, rejeita-se o paradigma do
contato/conquista, seja do lado da “perda”, seja do lado da “resistência”, que “[...] traduzem oposições
binárias entre vencedores e vencidos, dominantes e dominados, e deixam para os povos nativos
apenas dois papéis, os de vítimas de aniquilação ou de mártires da conservação de sua cultura.
Num e noutro caso, o destino é um silencioso ou heróico desaparecimento” (POMPA: 2003, p.
22). Em segundo, é cada vez menos plausível o paradigma de “identidades puras originárias”
dos indígenas, que teria sido malograda pelo “projeto civilizatório” dos religiosos “brancos” e
conquistadores. Surge o que Pompa chama de “lógica mestiça”3, onde a resistência dos povos
indígenas frente aos enquadramentos a que foram submetidos, “[...] não se dá apenas em termos de
revolta, mas também de estratégias de mediação, de adaptação e reformulação de identidades, de
construção de novas formações sociais e culturais” (POMPA: 2003, p. 22). Portanto, no encontro
colonial, o que está em jogo é a construção de sentido do “Outro”, da maneira como as alteridades
envolvidas se reconstroem dentro de uma negociação das linguagens simbólicas.
A insistência, nesta introdução, nas palavras desta socióloga, é porque, de um
lado, estas reflexões também se aproximam das preocupações atuais de antropólogos que
pesquisam as culturas indígenas Guarani e, por outro lado, promove hipóteses importantes
para repensar, especificamente, as culturas Kaiowá a partir da noção de sincretismo religioso.
É importante pensar como estas populações Kaiowá reelaboram hoje, a partir de suas próprias
representações culturais, os muitos sistemas simbólicos cristãos que interagem com eles, da
forma como tomaram e transformam para si o que se apresentava como “outro”. Um dos
problemas é justamente identificar o “próprio” da cultura indígena Kaiowá hoje. Não é sem
motivo que o antropólogo Carlos Fausto, ao revisitar os percursos e percalços de uma possível
“religião guarani”, no contato com os muitos cristianismos missionários, indaga-se: “Como
os Guarani fizeram plenamente seu um discurso religioso que traz as marcas de um discurso-
outro? [...] Como é possível não ser o mesmo e continuar a pensar-se como si mesmo?”4.

2
Extraído de CASTRO, Eduardo V. de. O Nativo Relativo. In: MANA 8 (1), 2002. Rio de Janeiro: Museu Nacional/
UFRJ, p. 113.
3
Pompa toma essa expressão do historiador Serge Gruzinski em sua obra La pensée métisse [“O pensamento mestiço”].
Paris: Fayard, 1999. A obra de Pompa é Religião como Tradução. Bauru/São Paulo: EdUSC/Anpocs, 2003.
4
Cf. FAUSTO, Carlos. Se Deus fosse Jaguar: Canibalismo e Cristianismo entre os Guarani (Séculos XVI a XX). In:
MANA 11 (2), 2005. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, p. 401.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
78
E a Teologia, onde está nessas fronteiras? No que diz respeito ao tema do sincretismo
religioso indígena, a maioria dos antropólogos e teólogos parecem dar as mãos em um ponto:
a rejeição do termo. Seja de forma direta, ao atrelar à noção de sincretismo a ideia adjetivada
de uma “mistura” confusa de crenças, com perda das identidades envolvidas, seja de forma
indireta, substituindo o termo por outros, tais como, acomodação, assimilação e adaptação
de universos simbólicos, como se fosse dar maior legitimidade epistemológica aos termos do
discurso. No caso da teologia, em particular, os termos inculturação, inclusivismo e pluralismo
ainda têm certa proeminência, via estudos missiológicos e do chamado diálogo interreligioso,
para analisar os contatos interculturais.
Neste artigo, ainda que em caráter não exaustivo, a fim de semear algumas hipóteses
reflexivas, será apresentado, primeiramente, algumas percepções teológicas de análise de culturas
indígenas no pensamento de Manuel Marzal e Graciela Chamorro. A ideia é exemplificar os
percursos e percalços da leitura teológica de uma possível “religião indígena”. Manuel Marzal,
teólogo jesuíta e antropólogo, elegeu as culturas indígenas andinas, principalmente os Quéchuas
peruanos, como enredo principal de sua trajetória acadêmica e pastoral. A importância de
Marzal para os propósitos deste texto é que ele utiliza explicitamente o termo “sincretismo”
como categoria analítica para compreender as muitas interações que as comunidades ameríndias
andinas estabeleceram com o cristianismo. Já Chamorro, embora não trabalhe em sua teologia
com a categoria do sincretismo, especializou-se, em sua biografia intelectual, em viver as lutas e
realizações dos povos Guarani aqui no Brasil. Em um segundo momento, o objetivo desse artigo
é estabelecer, especificamente, um diálogo com a dimensão de análise sócio-antropológica das
comunidades Kaiowá, na interlocução com o antropólogo Levi Marques Pereira, na interação
destes mesmos Kaiowá com o “rosto” pentecostal do cristianismo presente em vários aldeamentos
indígenas no “cone” sul do Estado de Mato Grosso do Sul. Embora este antropólogo também
não trabalhe com a categoria de sincretismo, fornece importantes pistas para o diálogo.
Ao propor esse percurso, o artigo procura repensar a noção de sincretismo a partir dos
dilemas postos pelas referências teóricas estabelecidas, com o intuito de postular um olhar
para as interações religiosas entre cristianismos e povos indígenas, a partir das ambigüidades
e complexidades do discurso sobre a alteridade, algo que a categoria do sincretismo permite
aprofundar. De fato, pensar as ressignificações sincréticas é assumir que os indígenas, do
ponto de vista religioso, lembrando a epígrafe “rodriguiana” do início do artigo, não são tais
como os imaginamos ser. Mas isso não significa que não possam ser “imaginados”. Afinal,
as múltiplas histórias de contato entre as sociedades indígenas e não indígenas mostram que
“imaginar” é, também, estabelecer que as interpretações são relações de poder. Assim, o
sincretismo, por hipótese, “radicaliza” o discurso sobre as alteridades envolvidas em situação
de múltiplos contatos religiosos como parece ser, por exemplo, o contexto dos Guarani e
Kaiowá no Mato Grosso do Sul hoje. Se esses indígenas, tal como imaginamos, não existem,
é porque, paradoxalmente, existem de muitas maneiras.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
79
Por fim, a título de considerações finais, o texto ensaia breves possibilidades para a
teologia, especificamente, aproximar-se hermeneuticamente do problema das pertenças e
despertenças indígenas Guarani e Kaiowá na sua relação com o pentecostalismo, em torno
do sincretismo religioso. Se, com o antropólogo Massimo Canevacci, o sincretismo cultural
(e religioso, em particular) somente se estabelece na negação dos “asseios sintéticos” e
dos evolucionismos unilineares e progressivos, é possível começar a pensar o sincretismo
religioso indígena como um “movimento desejoso e inquieto” (CANEVACCI: 1996, p. 17),
propulsor da dinâmica religiosa das culturas ameríndias na atualidade. Este movimento forja
a construção de alteridades nunca negadas, mas nunca acabadas, mostrando que o ñande
reko marangatu (o nosso jeito [religioso] de ser)5 dos Guarani e Kaiowá contemporâneos,
talvez nunca se torne completamente “domesticado”, mas resguardado algo de “selvageria” e
“desordem”, em um constante refazer-se. Caminhemos, então.

1. Sincretismo indígena como inculturação e inclusivismo? Perspectivas


teológicas em torno de Manuel Marzal e Graciela Chamorro

O teólogo jesuíta e antropólogo Manuel Marzal, nascido na Espanha, radicou-se no Peru


desde o início dos anos 50 do século passado. Foi, durante 35 anos, professor da Faculdade de
Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Lima. Destacou-se como membro do
comitê acadêmico da Enciclopédia Iberoamericana de Religiões. Têm, dentre suas principais
obras, os seguintes textos: História da antropologia indigenista: México e Peru (1981), O
Sincretismo Iberoamericano (1985) e Terra Encantada. Tratado de antropologia religiosa
da América Latina (2002). Além disso, organizou a conhecida obra O Rosto Índio de Deus
(1988), onde contribui com o artigo “A Religião Quéchua Sul-Andina Peruana”, texto este
que é, na realidade, uma síntese de aspectos da obra O Sincretismo Iberoamericano6.

5
Tomo essa expressão de Bartomeu Melià em seu artigo A Experiência Religiosa Guarani em MARZAL, Manuel
(org.). O Rosto Índio de Deus, p. 293. Para Melià a expressão ñande reko indica uma realização cultural concreta
do povo indígena Guarani. É uma expressão que indica a coletividade, uma vez que o pronome ñande aponta para o
“nós” no sentido de inclusividade. Assim, “Ñande reko põe em relevo este aspecto de diferenciação cultural, que inclui
um tipo especial de organização social, uma língua e uma linguagem própria”, cf. MELIÀ, Bartomeu et. al. Los Paí
Tavyterã, p. 105. Já o teko marangatu, segundo Melià, indica o jeito de ser especificamente religioso dos Guarani
e Kaiowá, o que implica na “[...] reprodução, imitação, o reflexo do modo de ser dos deuses”, cf. Idem, Ibidem, p.
102. Esses “campos semânticos” já haviam sido estudados pelo jesuíta Antonio Ruiz de Montoya em seu clássico
Tesoro de la lengua guarani, obra esta de 1639. Todavia, é importante dizer que não há no léxico Guarani e Kaiowá
um termo que seria o equivalente específico para o nosso termo “Religião”. Um dos meus interlocutores indígenas
(da etnia Kaiowá) quando da pesquisa para a minha tese, em contato posterior à escrita desse artigo, disse-me que
o termo marangatu, mais do que significar “religião”, indica um modo de ser pleno, “eterno”, sem fim (no sentido
de maturidade). Isso não contraria a definição de Melià, uma vez que a reprodução do modo de vida das divindades
implica na busca desta plenitude. Pai Tavyterã são grupos indígenas Guarani paraguaios que têm, aqui no Brasil,
correlação com os Kaiowá.
6
Para maiores informações biográficas e da produção intelectual de Marzal, conferir no site: <http://www.webpages.
ull.es/users/fradive/confe/marzal> Acesso em 22/05/06.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
80
Marzal assume abertamente o que ele chama de “cristianismo sincrético indígena” para
caracterizar as experiências religiosas sul-americanas. Na análise que faz da religiosidade
Quéchua peruana, após o contato com o cristianismo, ocorreu um progressivo processo de
sincretização onde elementos (tais como crenças, ritos, formas de organização e normas éticas)
das duas religiões em contato (no caso, as expressões “nativas” Quéchuas e, sobretudo, o
cristianismo católico) se dialetizaram, formando uma “nova expressão religiosa”7. Para este
autor, quando duas religiões entram em contato podem ocorrer, pelo menos, três experiências:
A. Uma síntese, onde elementos das religiões em contato se fundem criando uma nova religião;
B. Uma justaposição, onde os elementos religiosos em contato simplesmente se superpõem
e ambas conservam suas identidades originais; e C. Um sincretismo que, não sendo fusão, é
a ascensão de uma nova religião com elementos formativos das duas anteriores que entraram
em contato. Assim, o processo indica que certos elementos que interagem dialeticamente na
“nova religião sincrética” podem desaparecer por completo, ou sintetizar-se com similares
da outra religião ou são reinterpretados, assumindo um novo significado. Marzal afirma que
isto não somente ocorreu com a religião Quéchua, mas também com a religiosidade Aimara
boliviana e os Guarani paraguaios e brasileiros, por exemplo8.
É importante ressaltar que os contatos entre os Quéchuas e os projetos missionários
católicos não aconteceram de forma contínua e homogênea. No século XIX houve, segundo
Marzal, uma espécie de “vazio” católico na cultura Quéchua após os séculos anteriores de
contato. Assim, os líderes religiosos autóctones tiveram que recorrer à sua tradição religiosa
original para redefinir “seu cristianismo”. De acordo com Marzal: “Esta liberdade, que não
tiveram em sua primeira evangelização, veio quando os referidos povos indígenas já haviam
sido fundamentalmente cristianizados e assim o resultado não foi a restauração radical das
religiões indígenas originais, mas antes a ‘indianização’ do cristianismo” (1989, p. 30). Este
fato é fundamental para Marzal pois, a partir daí, é que se instaurou definitivamente o processo
sincrético já afirmado, ou seja, este “cristianismo indianizado” seria, se bem entendido, a
“nova religião” sincrética que surge. Isso o leva à conclusão que o “rosto índio” de Deus não
se dá tanto através da inculturação promovida pelos missionários, mas pelo sincretismo dos
índios “[...] para tornarem mais compreensível a mensagem cristã recebida e para conservarem
certos traços religiosos autóctones duradouros” (MARZAL: 1989, p. 30). Mas antes de pensar
que Marzal prefere a categoria de sincretismo em detrimento do clássico conceito cristão de
inculturação do Evangelho, é preciso entender que o sincretismo é o caminho inverso ou o
outro lado da moeda dos processos de inculturação da fé. Assim, o que seria a inculturação para
Marzal? De forma simples, é possível entender a inculturação, nas palavras de Marzal, como

7
MARZAL, Manuel. A Religião Quéchua Sul-Andina Peruana. In: MARZAL, Manuel (org.). O Rosto Índio de Deus,
p. 198.
8
Para estas definições ver também REYNA, Carlos P. Cinema e Antropologia. Novos diálogos antropológicos na
interpretação de um ritual andino. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/reyna-carlos-cinema-antropologia.
pdf.> Acesso em 30/05/06.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
81
o esforço sistemático e consciente dos evangelizadores para traduzir a mensagem universal do
evangelho para as categorias culturais da sociedade evangelizada. Neste caso o sincretismo
seria o processo/resposta, através do qual, os evangelizados (os indígenas, no caso) procuram
reter seus próprios traços religiosos enquanto não se opuseram aos cristãos e revestir os traços
cristãos aceitos com as categorias religiosas autóctones/nativas9.
A partir destas idéias é salutar postular algumas questões para a reflexão. Estaria
Marzal sugerindo que o sincretismo é uma “repaginação” do conteúdo cristão frente a novas
formas culturais indígenas? Não seria isso mais “inculturação”, nos termos da definição, do
que sincretismo propriamente?
É possível perceber que essa compreensão de sincretismo em Marzal, pode ser
amplificada, em possíveis respostas às questões levantadas anteriormente, através do exposto
pelo teólogo e cientista da religião Antonio Magalhães, uma vez que o mesmo afirma que o
sincretismo é o “produto final” de um processo de anúncio numa mediação cultural específica
(ou seja, inculturação). Mas é importante que se diga que, em Magalhães, este produto final
gera novos “começos”, novos processos, nunca acabados. Isso significa que, posto dessa
forma, o que se chama de sincretismo foge do controle, tanto do missionário, quanto do
receptor da mensagem. De acordo com Magalhães: “[...] Deste confronto/diálogo surge uma
reelaboração da mensagem cristã a partir de mudanças, não somente nas suas formas, mas
também nos seus conteúdos”10. A possível crítica é que a alteridade indígena se justifica, nos
processos de inculturação, somente na capacidade que os mesmos têm de entenderem a fé
cristã dentro de seu universo simbólico, pois é o cristianismo que toma a iniciativa e inicia
o movimento, não tendo maiores preocupações com o fato de que o próprio cristianismo
é afetado e reelaborado pelas religiosidades indígenas. Haveria ainda, no pensamento de
Marzal, um sacrifício de sua “dialética sincrética” no altar do dualismo “sujeito (igreja e
missionários cristãos) e objeto (religiões e culturas indígenas não cristãs)”? Haveria ainda
resquícios de pensamento dicotômico entre religião cristã e cultura que coloca o evangelho
como uma realidade que chega “de fora” da própria cultura?11
É legítimo que Marzal se esforce para trazer para a discussão epistemológica e prática-
teológica a noção de sincretismo entre as culturas indígenas e o cristianismo. Não se deve

9
MARZAL, Manuel. Op.cit., p. 30. Aqui não se pretende entrar nas questões específicas em torno da noção de
“Inculturação” do Evangelho. Para este fim, é possível remeter a três textos que podem ser úteis: SUESS, Paulo (org.).
Culturas e Evangelização (1991); SUESS, Paulo. Evangelizar a partir dos projetos históricos dos outros. Ensaio
de Missiologia (1995); FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e interculturalidade (2007). Os textos do teólogo
católico Paulo Suess citados tratam também de questões indígenas.
10
MAGALHÃES, Antonio C. de M. Sincretismo como tema de uma teologia ecumênica. In: Estudos de Religião. São
Bernardo do Campo: UMESP, 1998, p. 68.
11
Seria sintomático que Marzal, em sua obra O sincretismo iberoamericano, após, na terceira parte, trabalhar com o
sincretismo religioso em perspectiva antropológica, chega ao ponto teológico que lhe interessa, na última parte da
obra, que é a discussão da inculturação da fé no nível das crenças, ritos, organização e conduta ética das religiosidades
por ele analisadas: comunidades andinas, maias e afro-brasileiras. Estaria o sincretismo visto em função ou preparação
para o advento da inculturação, ou seja, da hegemonia da fé cristã?

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
82
diminuir este mérito em um período histórico de produção teológica onde a categoria do
sincretismo não era muito empregada, principalmente em relação a populações indígenas.
Todavia, é importante insistir no fato de que o cristianismo que encontra as culturas indígenas
são muitos: cristianismos. E o inverso também se verifica. Quando os muitos catolicismos
e protestantismos encontram os Quéchuas e qualquer outra cultura indígena sul-americana,
não é possível que já encontrem estes indígenas “sincretizados” nos seus processos religiosos
e culturais? E as “faces cristãs” que encontram estas culturas indígenas não chegam
“sincretizadas”? Sincretismo não é, pois, interação e/ou “produto final” entre dois sistemas
religiosos que, antes do contato, eram estanques e “monolíticos”. Quem sabe o sincretismo
torna-se uma “metáfora” (enquanto recurso da linguagem que proporciona “corpo” às idéias
e discursos) para traduzir condições humanas religiosas em movimento que, desde sempre,
se vêem como múltiplas. Conquanto tenha sua valia, Marzal não deixa de se situar em
quadros tipológicos descritivos e explicativos que caracterizam o fenômeno sincrético, bem
presentes em algumas análises tanto antropológicas como teológicas. Para cobrir, justamente,
a complexidade e especificidade das interações religiosas, chamou-se o sincretismo de
“paralelismo”, “justaposição”, “síntese”, “adição”, “fusão”, “bricolagem”, “marronização”,
“hibridação” e outros conceitos dentro desta “dança das metáforas”. Certamente que esses
“tipos” são importantes, afinal, como afirma o antropólogo Sergio Ferretti:

O sincretismo pode ser visto como característica do fenômeno religioso.


Isto não implica desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como os
demais elementos de uma cultura, a religião constitui uma síntese integradora
englobando conteúdo de diversas origens. Tal fato não diminui mas engrandece
o domínio da religião, como ponto de encontro e de convergência entre tradições
distintas12

Muito embora seja questionável a idéia de uma “síntese integradora” em se tratando de


sincretismo religioso, é plausível utilizar os conceitos acima para caracterizar a complexidade
das interações de “conteúdos (e não apenas formas) de diversas origens”, como afirma Ferretti.
Dando prosseguimento às análises serão apresentadas, agora, algumas perspectivas em torno
das idéias de Graciela Chamorro.
A teóloga, historiadora e antropóloga paraguaia Cândida Graciela Chamorro Argüello,
residente há vários anos no Brasil, após concluir seus estudos doutorais em Teologia, passou alguns
anos em Hamburgo, na Alemanha. Atualmente reside no Brasil, trabalhando na Universidade

12
FERRETTI, Sergio F. Sincretismo Afro-Brasileiro e Resistência Cultural. In: CAROSO, Carlos & BACELAR, Jeferson
(Orgs.). Faces da Tradição Afro-Brasileira. Religiosidade, Sincretismo, Anti-Sincretismo, Reafricanização, Práticas
Terapêuticas, Etnobotânica e Comida, p. 114. O próprio Ferretti categorizou vários tipos dentro dos processos
sincréticos na junção entre a descrição e a interpretação do fenômeno. Assim, Ferretti fala de um sincretismo de
“junção”, “mistura”, fusão”, “paralelismo”, “justaposição”, dentre outros. Cf. FERRETTI, Sergio F. Repensando o
Sincretismo. Estudo sobre a Casa das Minas, p. 90. Em perspectiva semelhante, só que no campo da Teologia enquanto
ato segundo às categorizações sócio-antropológicas, estão as idéias de BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder, p. 160-
1.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
83
Federal da Grande Dourados (UFGD), no Estado do Mato Grosso do Sul. Têm larga experiência
de convívio e pesquisa com comunidades indígenas Guarani13, mais especificamente com as
comunidades Kaiowá e Ñandeva do Mato Grosso do Sul e os Chiripá e Mbyá na região sul
do país. Foi o contato de vários anos com esses grupos, em torno de suas narrativas religiosas
e expressões de espiritualidade que ela procurou analisar teologicamente em sua tese doutoral
intitulada Papa tapia rete marangatu: que nossos corpos tenham sempre algo bom para contar,
publicada com o título A Espiritualidade Guarani: Uma Teologia Ameríndia da Palavra
(1998). Antes disso, sua dissertação de Mestrado em História foi publicada com o título Kurusu
ñe’ëngatu [A boa palavra da cruz]: Palavras que la historia no podría olvidar (1995)14.
Em sua “Teologia Ameríndia da Palavra” o próprio título “denuncia” seu objetivo:
ao partir da premissa de que a cultura e, em particular, a religião Guarani está centrada no
conceito-existência ‘palavra’, a autora, em seu texto, pretende “[...] descrever, a partir das
categorias indígenas e através da linguagem teológica, a experiência religiosa dos grupos
guarani e de considerar, com base na já mencionada preponderância da palavra nesses grupos,
a possibilidade de um diálogo entre religião indígena e cristã” (CHAMORRO: 1998, p. 13).
Eleger a categoria da Palavra (Ayvu) como eixo central da proposta não é nenhuma novidade
em se tratando das análises das comunidades Guarani. Esta perspectiva já se encontra
amplamente presente em estudos clássicos da cultura Guarani, tais como o texto Ayvu rapyta
[Fundamento da palavra ou palavra fundamental]: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del
Guairá, de León Cadogan e os textos de Bartomeu Melià15, autores estes que Chamorro não
esconde seu tributo. Assim, a novidade posta por esta teóloga é justamente tentar “sistematizar”
o campo semântico em torno dos muitos significados da “palavra” guarani, ou seja, entendê-la
em seus aspectos profético, mítico-cosmológico e sacramental (ritualização) em diálogo com
a revelação de Deus em seus temas já classicamente conhecidos: profecia, “teo-antropologia”,
criação, pecado, soteriologia e liturgia. Com isso, na análise teológica da interação entre uma
possível teologia guarani e a teologia cristã, pode-se afirmar:
13
Segundo a autora, os primeiros contatos com os indígenas no Brasil ocorreram nos idos de 1983 com as comunidades
Kaiowá na região de Dourados, MS. O envolvimento posterior com o CIMI (Conselho Indigenista Missionário)
e o GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) aprofundaram as perspectivas pastorais, teológicas e
antropológicas da autora. Cf. CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani, p. 13-5.
14
Quando da escrita desse texto ainda não havia sido publicado o texto de Graciela Chamorro intitulado Terra Madura.
Yvy Araguyje: Fundamento da Palavra Guarani, em 2008. Nesse texto a autora retoma a amplifica as idéias
fundamentais já expostas em A Espiritualidade Guarani.
15
Tais como “A Experiência Religiosa Guarani” In: MARZAL, Manuel (Org.). O Rosto Índio de Deus, (1988) El
Guarani: experiencia religiosa (1991) e seu clássico El guarani conquistado y reducido; ensayos de etnohistoria
(1986). O próprio Melià reconhece sua profunda dívida para com Cadogan onde, em entrevista “auto-biográfica”
afirma: “Para mim ele [Cadogan] era uma pessoa muito respeitável e grande, um grande pesquisador. [...] Acho que é
justo dizer que houve entre nós uma espécie de simpatia, amor à primeira vista!” [...] Deste modo estes pesquisadores
[referindo-se também a Kurt Nimuendajú] puderam desvendar o fundamento da cultura guarani, que é a religião. Além
disso, as obras menores de Cadogan tratam de outros temas que também são muito importantes porque contém dados
valiosos. Mas a grande experiência ficou registrada no Ayvu Rapita, de 1954. Hoje é um clássico da literatura e da
antropologia do século xx”. Cf. MALINOWSKI, Maria I. & BATISTA, Selma. Bartomeu Melià: Jesuíta, Lingüista
e Antropólogo. Os Guarani como compromisso de vida. Disponível em <http://calvados.cesl.ufpr.br/ojs2/index.
php/campos/article/viewFile/1641/1383> Acesso em 22/05/06.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
84
“Palavra” é o fundamento dos seres, a unidade vital, como pneuma e ruah
na linguagem do Novo e do Antigo Testamentos. Aplicada aos seres humanos,
“palavra” é análoga aos termos hebraico e grego nephesh e psychê, que designam
o indivíduo integralmente. Os seres humanos se entendem como palavra divina
sonhada e encarnada. A palavra é, assim, um tecido divino, comum entre os
humanos e as divindades. Mas a palavra é também a energia básica (o murmúrio)
que origina todos os seres. A irmã ou esposa interior, a alma. Ela é a categoria
que dá conta de explicar como se trama o modo de ser indígena, nas diversas
instâncias da existência e qual é a experiência que os Guarani fazem do sagrado16

E assim, ao traçar analogias temáticas com a teologia cristã, Chamorro vai construindo
seu exercício dialógico. Porém, é preciso perguntar-se, na leitura de seu texto, de qual teologia
guarani da palavra ela está se referindo. Claro que a resposta virá em torno das experiências
de fé míticas e ritualizadas das diversas etnias Guarani, nomeadamente: Kaiowá, Mbya e
Ñandeva. Certamente que a “teologia da palavra” pode ser um fio condutor que une estes
grupos Guarani. Mas mesmo sendo todos Guarani, é preciso pensar nas muitas especificidades
que estes povos guardam hoje (e guardavam) e em contextos amplamente diferenciados.
Assim, não há tanta segurança quanto à possibilidade da ideia de “sistematização” aplicada
às interpretações (teologias) que estes indígenas têm de sua relação com o sagrado a quem
eles aderem pela fé (outro termo a ser problematizado também). Pensando, por exemplo, nos
tipos de teologias que podem surgir do encontro entre os Kaiowá e os pentecostais atualmente
(conforme próximo item do artigo), estas aproximações ocorrem também, porque as
interpretações dos dados de fé “revelados” são fugidios, cheios de equivocidades, escapando
a certos enquadramentos sistematizadores.
Se for posta a pergunta pela “teologia indígena” é preciso perguntar-se, também,
qual teologia cristã entra no diálogo. Chamorro responde: “[...] Partindo de uma prática
antropológica que procura compreender o outro nas próprias categorias nas quais o outro
se entende, eu não poderia me aproximar teologicamente dos Guarani apenas pelo caminho
inclusivista. Também _ ou principalmente _ teria que fazê-lo pelo paralelismo. Nesse sentido,
a religião indígena é vista como algo cuja plenitude não depende de uma confirmação que o
cristianismo lhe possa conceder” (CHAMORRO: 1998, p. 20). Sem dúvida que na reflexão
sobre o “outro”, Chamorro tenta, de forma importante, resguardar sua alteridade e riqueza
própria (do “outro” indígena). O que ela chama de atitude “paralelista” ou “pluralista” é o
reconhecimento teológico de que todas as religiões conduzem ao absoluto, podendo ser vistas
“em paralelo”, em sua dignidade própria. Cada uma delas é plenamente dotada de condições
salvíficas sem a chancela cristã. Citando o teólogo indiano Michael Amaladoss em seu texto
intitulado O pluralismo das religiões e o significado de Cristo, Chamorro afirma que todas
as religiões são “teocêntricas” (incluindo as indígenas). Se há compreensão no raciocínio
exposto, o absoluto das religiões é nomeado pelo “theós”. Ainda que este termo possa ter

16
CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani, p. 195.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
85
caráter mais vago, o que não é o caso das nomeações das divindades indígenas Guarani,
não soa aqui certa “nostalgia” das nomeações sagradas de corte mais judaico e cristão? E o
sincretismo, conseguiria lidar bem com esses “centrismos”? É possível ilustrar com o seguinte
raciocínio dela: ao partir do fato de que a teologia guarani é uma profunda reflexão sobre a
vida e sobre o ser humano na sua significação divina, o que parece correto e desafiador, a
“palavra” guarani, o dizer-se como evento e existência é:

[...] ao mesmo tempo, metafórica e abstrata e, também, concreta e real.


[...] Nesse sentido, a profusão de divindades e espíritos tanto poderia ser um
recurso da ‘cosmogonia metafórica que personifica as formas do dizer’ quanto
um resultado da coabitação do religioso com o social. O esforço dos indígenas
por integrar suas divindades em um único sistema nos sugere que sua teologia
seja do tipo monoteísta inclusivo (CHAMORRO, 1998, p. 196).

Há uma percepção de que este esforço seja menos dos indígenas e mais da teóloga
em questão. Amparando-se no teólogo teuto-americano Paul Tillich ela vai afirmar que
“Deus” é o nome que é dado a tudo aquilo que nos preocupa de forma última. Assim, uma
afirmação é teológica se coloca a pergunta decisiva sobre a existência ou, em outros termos,
se coloca a existência em sua dimensão de decisividade (ultimacidade). Assim, os nomes das
divindades indígenas convertem-se em “metáforas” que tentam representar (Paul Tillich diria
‘simbolizar’) o fundamento, a “substância”, o incondicional que se “esconde” atrás das formas
culturais e religiosas, sua dimensão de profundidade17. Afirma, também, que as divindades
indígenas não perdem sua identidade própria para uma divindade exclusivista, pois elas estão,
metaforicamente, em uma “relação pericorética”, interativa, a modo da teologia das relações
trinitárias de Jürgen Moltmann18.
Sem dúvida que Chamorro tem todo o direito de partir destes referenciais teológicos
cristãos. Afinal, ela fala a partir e para o diálogo com o Cristianismo. Além disso, é muito
significativo refletir a linguagem metafórica como expressão das vivências religiosas indígenas.
Todavia parece que, no final das contas, acaba-se retornando para uma proposta inclusivista,
pois termina atestando as experiências religiosas e as teologias Guarani segundo paradigmas
teológicos cristãos. É o que parece quando, à pergunta “que teologia?” ela se ampara, além
destes teólogos citados, em Leonardo Boff, Karl Rahner e Rosemary Ruther. Assim, a pergunta
que se poderia fazer a ela é: até que ponto esses(as) teólogos(as) vão além de um inclusivismo
se todos(as) ele(as) estão centrados, cada um a seu modo, no evento Cristo? Fica a questão.

17
Muito embora a religião em Tillich não é “forma”, não é uma dimensão da cultura, mas o próprio fundamento/
substância de toda a cultura.
18
Teólogo alemão. Para Moltmann as pessoas divinas, na perspectiva cristã, ou seja, “Pai”, “Filho” e “Espírito”
interpenetram-se, estabelecem uma relação de reciprocidade contínua. Cada pessoa divina “esvazia-se” de si mesma,
pelo vínculo do amor, abrindo espaço para que o outro aconteça e manifeste-se. Essa interpenetração de amor, essa
diversidade em relação tão íntima que não descaracteriza a unidade, é o que Moltmann chama de relações trinitárias
em perspectiva pericorética (termo grego que produz a ideia de “envolvimento”, circundar-se plenamente um do
outro, interpenetrar-se).

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
86
Por outro lado, é possível refletir e perceber que Chamorro tem uma leitura “apaixonada”
da causa indígena no texto ora analisado, a ponto de enxergar na teologia Guarani da Palavra
as “chaves hermenêuticas” esquecidas (os “elos perdidos”) por uma teologia cristã que,
dogmática, fechou portas “[...] pela intolerância e por um certo tipo de teologia que fortaleceu
um cristianismo autocompreendido como organização eclesiástica monocultural e agressiva”
(CHAMORRO: 1998, p. 20). Não há dúvida que esse tipo de cristianismo afirmado pela
autora jamais se colocará em uma autêntica escuta e participação para com a riqueza religiosa
dos povos Guarani. Também é digno de nota o esforço dessa teóloga em mostrar que não é
somente a religião Guarani que se enriquece com o Cristianismo, mas o contrário também se
verifica. Mas será que não há, em teoria, o risco oposto, ou seja, que a “alteridade” teológica
cristã fique “tutelada” por uma teologia Guarani? Claro que toda produção teológica
depende, também, das condições históricas e políticas de sua produção. Nesse sentido mais
concreto e prático não é possível pensar uma teologia cristã, qualquer que seja, “tutelada” por
“teologias Guarani”, uma vez que, historicamente, o Cristianismo, em relação às religiões
indígenas, sempre foi hegemônico e dominante. O que se quer dizer com a crítica posta,
em outras palavras, é o seguinte: nos termos de uma hermenêutica teológica, o cristianismo
somente recuperará o que aparentemente lhe é próprio (experiência do respeito, do diálogo,
da reciprocidade e solidariedade) se passar pela “depuração” de uma teologia indígena? É
preciso ficar mais claro quando propostas inclusivistas e “paralelas” são horizontes de diálogo
ou se convertem em uma mea culpa por séculos de dominação religiosa.
É importante concordar parcialmente com Chamorro quando ela afirma que, nos vários
séculos de colonização cristã frente aos povos indígenas Guarani, somente estes últimos
estavam interessados no diálogo. A concordância é parcial porque é possível enxergar que
várias comunidades Guarani, seja no período colonial, sejam em períodos considerados “pós-
coloniais”, também não estiveram interessadas nesse diálogo. Todavia, este “desinteresse” não
deve ser visto de forma necessariamente depreciativa, pois pode muito bem traduzir criativas
reações a muitas imposições a que essas mesmas comunidades foram submetidas. Chamorro
enfatiza bastante certa “positividade” da religião Guarani que “nubla” um pouco as ambigüidades
religiosas destes povos. Assim, em uma raríssima menção ao termo, ela afirma que é necessário
que o cristianismo reconheça e assuma as “práticas sincréticas que estão na sua própria origem”,
a fim de que se estabeleça o diálogo (CHAMORRO: 1998, p. 198). A pergunta direta é: somente
o cristianismo deve reconhecer seu “fundamento” e práticas sincréticas? E a religião Guarani,
não se deve enxergá-la nesta perspectiva sincrética também? Chamorro não desenvolve este
aspecto. Muito embora reconheça o sincretismo nas origens de formação do Cristianismo, o
que não é pouca coisa, ainda que não extraia maiores implicações dessa afirmação. É possível
que estimule essa tarefa em seus leitores e leitoras. Reconhecer uma “originalidade sincrética”
implica, por exemplo, que os múltiplos contatos interculturais e religiosos se fazem muito mais
que o reconhecimento das diferenças de alteridade, mas de uma “alteridade das diferenças”, de
que a experiência religiosa é, em seu âmago, uma privilegiada testemunha.
FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
87
Assim, parece que o sincretismo (se mais descritivo, como em Marzal, se mais
“adjetivado”, como em Chamorro) não encontra maior espaço em uma antropologia e
teologia da religião indígena. Nesses autores a categoria de sincretismo possui autonomia
epistemológica, no máximo, para subsidiar o que realmente interessa: referendar processos
de inculturação da fé (Marzal) ou como “preparação” para uma atitude de “incluir” temas
clássicos da teologia cristã como referência última para o diálogo com a tradição Guarani
(Chamorro). Um ñande reko (jeito de ser) Guarani “sincrético”, pelo menos hoje, pode até
ser pressuposto por estes autores, mas será “superado” por análises que rejeitam o sincretismo
como categoria epistêmica própria, em função das categorias classicamente consagradas, do
ponto de vista teológico.

2. Cruzamentos sincréticos? Kaiowá e Pentecostais na fronteira religiosa

Neste segundo item do artigo, iremos fundamentar as discussões a partir da reflexão


teórica em torno de situações de contato religioso atuais envolvendo povos indígenas Guarani
e expressões cristãs pentecostais, a fim de exemplificar as implicações de uma possível leitura
destes contatos em torno de uma perspectiva do sincretismo. De fato, os dados a seguir não se
baseiam em uma etnografia do próprio autor do artigo, mas tão somente em reflexões sócio-
etnográficas de pesquisas já publicadas sobre os Guarani e Kaiowá no contexto das aldeias
do sul de Mato Grosso do Sul.
A região da Grande Dourados, no sul do Estado de Mato Grosso do Sul, conta com uma
população indígena Guarani em torno de 31.000 pessoas, dos quais aproximadamente 13.000
indígenas estão na reserva “Francisco Horta Barbosa” em Dourados, demarcada em 1917 pelo
antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio)19, reserva esta com cerca de 3.475 ha. A reserva de
Dourados é, hoje, a segunda maior do país em termos populacionais. A maior parcialidade de
indígenas nesta reserva corresponde aos Kaiowá e aos Ñandeva20. Convivem também com

19
Atualmente é a FUNAI (Fundação Nacional do Índio).
20
Cf. BRAND, Antonio. “O bom mesmo é ficar sem capitão”: o problema da “administração” das reservas indígenas
Kaiowá/Guarani, MS. In: TELLUS, ano 1, n. 1, 2001. Campo Grande: UCDB, p. 68. Brand baseia-se nas estatísticas
da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde). Como não há um censo oficial das populações indígenas no país, fica-
se com os dados de diferentes agências. Além das governamentais como a FUNAI e a FUNASA, temos os dados
do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e o ISA (Instituto Sócio-ambiental que, no específico das questões
indígenas, herdou o trabalho do CEDI _ Centro Ecumênico de Documentação e Informação). Dados atuais do site da
FUNAI apontam para uma população indígena total de 73.295 indivíduos em todo o estado do Mato Grosso do Sul,
não especificando os números das etnias. Já o site do ISA informa que a população Guarani no Brasil gira em torno
de 51.000 indivíduos. Para maiores detalhes ver o site oficial destas instituições: <http://www.funai.gov.br> e <http://
www.institutosocioambiental.org.br>. De acordo com Carlos Fausto, o termo Kaiowá ou Kaiová é uma “corruptela” de
Kaaguá que, por sua vez, significa “os habitantes [ou homens] da mata”, termo genérico pelo qual ficaram conhecidas
as populações Guarani que ter-se-iam mantidas irredutíveis ao sistema colonial. In: FAUSTO, Carlos. Se Deus fosse
Jaguar: Canibalismo e Cristianismo entre os Guarani (Séculos XVI-XX), p. 385. As populações Guarani atuais
estão divididas, no Brasil, em três etnias: Ñandeva, Kaiowá e Mbyá. Nesse artigo, quando se menciona o termo
Guarani, no que diz respeito ao Estado de Mato Grosso do Sul, é referente à etnia Ñandeva. Todavia, os próprios
indígenas Ñandeva do sul de Mato Grosso do Sul preferem se autodenominar com o termo Guarani mesmo.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
88
esses grupos Guarani nesta reserva indígena, outras etnias que não são da família linguística
Tupi-Guarani, como os Terena que, por sua vez, pertencem ao troco lingüístico Aruak.
A presença cristã e, mais especificamente, protestante e evangélica (com suas
respectivas teologias) entre os Guarani e Kaiowá da região de Dourados, começou a ganhar
força a partir de 1928 com a criação da “Missão Evangélica Caiuá” (MEC), administrada
pelas Igrejas “Presbiteriana do Brasil” e “Presbiteriana Independente”. Há, também, presença
Luterana e Metodista. Já os pentecostais e neopentecostais começaram a marcar presença
na reserva de Dourados em fins dos anos 70. De acordo com a antropóloga Katya Vietta é
possível perceber a presença de várias igrejas “neo” e pentecostais dentro e fora da reserva,
tais como: Deus é Amor, Assembléia de Deus, Congregação Cristã do Brasil, A Palavra de
Cristo para o Brasil, Só o Senhor é Deus, Cantores de Salomão, Pentecostal Indígena de
Jesus, Igreja do Evangelho Quadrangular e Igreja Estrela da Manhã, para citar algumas21.
Baseado nesses dados é inegável perceber que o cristianismo pentecostal é a expressão cristã
que mais se faz presente nas culturas religiosas Guarani e Kaiowá hoje. Se Antonio Magalhães
está certo ao afirmar que a “quarta face” do Cristianismo na atualidade é a face pentecostal,
então o rosto religioso Guarani e Kaiowá expressa muito bem este pentecostalismo22. Isso
não significa necessariamente desprezar as ações contínuas dos “protestantismos históricos”
em meio a essas populações indígenas. Mas no caso das aldeias de Dourados, a formação de
comunidades pentecostais ocorre não somente pelo crescimento dessas comunidades em si
mesmas, mas pelo deslocamento, descentramento de algumas dessas mesmas comunidades
que vão “ramificando-se” ao longo das aldeias. Além disso, a presença da cidade, muito
próxima às aldeias, facilita esses deslocamentos.
Não é nada fácil perceber as interações simbólicas entre os Guarani e Kaiowá com
os pentecostais e, mais difícil, nomear estas interações de sincretismo religioso. Do ponto de
vista da análise social e antropológica a dificuldade se estabelece, dentre outros fatores, por
que, de acordo com o historiador Antonio Brand e Katya Vietta:

Inicialmente, os cultos contavam com a presença de pastores não-índios,


mas, gradativamente, o espaço tem sido ocupado pelos Kaiowá e pelos Guarani, e
hoje são poucos os templos não conduzidos por eles. No entanto, não é muito fá-
cil precisar números, pois há uma grande mobilidade entre os freqüentadores das
igrejas, sendo que algumas pessoas já passaram por duas, três ou mais denomina-
ções diferentes. Desta forma alguns templos têm vida curta, podendo ou não ser
posteriormente reabertos. (...) essas igrejas tiveram, como portas importantes de
entrada nas reservas exatamente a atração de famílias para as igrejas construídas
na periferia das áreas e a realização de cultos durante os trabalhos nas usinas de

21
VIETTA, Katya e BRAND, Antonio. Missões Evangélicas e Igrejas Neopentecostais entre os Kaiowá e os Guarani
em Mato Grosso do Sul. In: WRIGHT, Robin M. (Org.). Transformando os Deuses. Igrejas evangélicas, pentecostais
e neopentecostais entre os povos indígenas do Brasil. Volume II, p. 241. Em minha pesquisa de doutorado apresento
uma relação mais atualizada da presença de Igrejas nas aldeias de Dourados, até 2009: cerca de sessenta e quatro
comunidades.
22
MAGALHÃES, Antonio C. de M. Uma Igreja com Teologia, p. 20.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
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álcool, cujos barracões pastores índios e não-índios freqüentam regularmente,
fazendo muitos adeptos23

O que chama a atenção nesta citação é a chamada “grande mobilidade” dos


indígenas pentecostalizados e suas múltiplas pertenças e despertenças, chegando a casos de
“desconversão” em relação aos movimentos pentecostais instituídos. A última parte da citação
insinua uma das principais justificativas do crescimento pentecostal, por exemplo, entre os
Kaiowá, segundo análises antropológicas e sociológicas (como as dos dois autores da citação
anterior), ou seja, que o pentecostalismo reorganiza o espaço social indígena desagregado por
diversos problemas sociais, tais como: violência, alcoolismo, suicídio, conflitos familiares,
dentre outros. O antropólogo Levi Marques Pereira é taxativo ao afirmar que a conversão
ao pentecostalismo é buscada pelos Kaiowá, porque esta mesma conversão cria condições
de recomposição da “parentela” (família extensa), instituindo formas de socialidade que
permitem que as pessoas se encontrem e se redescubram enquanto grupo24. Além disso,
Pereira afirma que os Kaiowá encontram na prática das crenças pentecostais certas homologias
com suas crenças e visões de mundo tradicionalmente Guarani, tais como a ênfase em uma
“cataclismologia”25, a figura do pastor indígena como o novo ñanderu26, ou seja, aquele que
faz a mediação com o sagrado, e a ênfase nos dons do Espírito, principalmente nas curas e na
revelação (PEREIRA: 2004, p. 299).
Ao especificar mais algumas questões, a partir de seus inúmeros trabalhos de campo
e interpretações etnográficas na reserva de Dourados27, Levi Pereira observou que nos cultos
pentecostais há freqüentes menções de espíritos “maus”, por parte dos pregadores, que
aparecem nas narrativas míticas e cosmológicas dos Kaiowá, levando-os a operar diversas
analogias com o texto bíblico. O interessante a ser destacado é que Pereira afirma: “[...]
A hierarquia das Igrejas pentecostais tem pouco controle sobre a hermenêutica implicada
nessas ‘traduções’, porque freqüenta pouco os cultos nas aldeias, não domina a língua e
porque os missionários kaiowás evitam aplicar esse recurso na presença das autoridades da

23
VIETTA, Katya e BRAND, Antonio. Op.cit., p. 241.
24
PEREIRA, Levi M. O Pentecostalismo Kaiowá: Uma aproximação dos aspectos Sóciocosmológicos e Históricos. In:
WRIGHT, Robin M. (Org.). Transformando os Deuses. Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os
povos indígenas do Brasil. Volume II, p. 299.
25
Todo um discurso e reflexão Guarani tradicional, sustentado miticamente, para uma noção de urgência da realidade,
de definitividade, ou seja, o tempo presente ruma para um fim catastrófico, a fim de que uma nova realidade possa
ser formada. Pereira encontra nesse discurso uma certa homologia com pregações mais “apocalípticas” oriundas dos
segmentos cristãos.
26
O termo, segundo Chamorro, pode ser traduzido por Nosso Pai ou Nosso Ancestral. No plano das narrativas míticas
e religiosas o Ñanderu abandona sua roça e sua mulher, que estava grávida, e desaparece do cenário da criação,
reaparecendo só no fim da história. No plano real das relações sociais e constitutivas da família extensa, o Ñanderu é o
chefe desta mesma família, notadamente o líder religioso. Pode ser considerado o “rezador” (expressão muito utilizada
na região de Dourados), o qual, pela “possessão” da palavra, assume funções xamânicas de representação do sagrado.
Cf. CHAMORRO, Graciela. A Espiritualidade Guarani, p. 218.
27
Embora o texto de Pereira citado anteriormente não restrinja suas análises tão somente à realidade da reserva de
Dourados, expandindo mais para a região sul de Mato Grosso do Sul.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
90
igreja (brancos)” (PEREIRA: 2004, p. 286). Além disso, para este autor, o que ele chama de
“maleabilidade” do discurso pentecostal, por estar mais aberto às idiossincrasias do pregador
e da congregação dos membros, confere importante elemento para a excepcional aceitação do
discurso pentecostal entre esses indígenas, ao contrário “[...] do tipo de pregação praticado
pela Missão Caiuá durante décadas, marcado pela forte ênfase doutrinária e disciplinar, dentro
do estilo racionalista de filiação calvinista” (PEREIRA: 2004, p. 287).
Porém, Pereira afirma que, em que pese a enorme aceitação do discurso e práticas
pentecostais, estar-se-á ainda longe de uma unanimidade nas análises e compreensão sobre
o papel do pentecostalismo junto aos indígenas Guarani e Kaiowá. Assim, Pereira detecta
o que chama de “fendas no edifício pentecostal” para designar as ambigüidades e as muitas
críticas ao ñande reko (jeito de ser) pentecostalizado. Muitas das críticas viriam de alguns
xamãs/rezadores tradicionais. Estes afirmam que os pastores pentecostais prometem resolver
todos os problemas (doença, briga de casal, feitiço, excesso de bebida), fazendo com que as
pessoas sejam atraídas por soluções fáceis, “[...] como a caça é atraída pela espiga de milho
que o caçador coloca em seu caminho” (PEREIRA: 2004, p. 295). Também críticas mais
“teológicas” se evidenciam, por exemplo: de que a responsabilidade pela onda de suicídio
é inteiramente dos “crentes”, que ensinam que o próprio Deus (no caso, Cristo) aceitou de
maneira resignada uma morte violenta. Obviamente que esta interpretação de uma “teologia
da expiação” não se aplica somente aos pentecostais. Por isso, não é incomum casos de
“desconversão”, para usar o próprio termo de Pereira.
Todavia é legítimo pensar que a “desconversão” implica em novas retomadas e
pertenças, transformando as “diásporas” religiosas dos Guarani e Kaiowá em algo bem mais
complexo. Como exemplificação, é possível remeter a uma fala colhida na obra “Canto de
Morte Kaiowá, história oral de vida”, organizada pelo historiador José Carlos Meihy, que
consiste em um conjunto de entrevistas, sob a forma narrativa, de diversos indígenas e não-
indígenas, focando o problema do suicídio na reserva indígena de Dourados28. Perceptível
é que na quase totalidade das entrevistas o problema religioso e, em especial, a inserção
dos pentecostais na referida reserva se faz presente. Mas um determinado indígena assim se
expressa:

[...] A Missão Kaiowá é da igreja presbiteriana e ela tem dado total apoio
ao índio e a sua família... Cada pessoa deve fazer a sua opção e nós não podemos

28
Estas narrativas contam com, aproximadamente, 20 anos, mas continuam, no que diz respeito às vivências religiosas,
bem atuais. Em que pese as críticas direcionadas a este texto, principalmente por parte de antropólogos que viram uma
espécie de “fetiche pelo documento” na intencionalidade dos autores. As narrativas colhidas foram fruto de algumas
semanas de trabalho de campo efetuadas pelos pesquisadores e pesquisadoras, o que levou os antropólogos a “torcerem
o nariz” para o que seria uma “fixação textual apressada” das narrativas, realizada pelos autores/historiadores. Outras
críticas direcionam no sentido de que o texto virou um “panfleto” defensor da causa indígena, elevando esses mesmos
indígenas ao posto máximo de vítimas, embora as ambigüidades do jeito de ser índígena transpareçam nas falas dos
mesmos, através de uma leitura mais atenta. Mas isso não inviabiliza, no juízo deste artigo (e nem por parte destes
mesmos críticos), a importância desta obra.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
91
falar para que eles sigam esta ou aquela religião... O fato de pessoas quererem pas-
sar a noite na igreja pentecostal traz problemas sérios para todos... Eu digo isso
porque já fui seguidor dessa igreja e conheço profundamente o que eles fazem... A
tradição religiosa dos índios é outra... estamos lutando para reviver a tradição de
nosso povo... Eu sou católico... vou à cidade rezar quando preciso, mas também
faço minhas rezas indígenas aqui na aldeia29

Para tornar a situação mais complexa, na página de apresentação do entrevistado, lê-


se: “[...] Há quem diga que ele não é exatamente índio e o colar e contas negras denuncia
seus envolvimentos com cultos de inspiração africana” (MEIHY: 1991, p. 71). Estaria aqui
um Sincretismo de múltiplas “pertenças” e “despertenças”? Esta situação, é possível afirmar,
não é incomum na reserva de Dourados30. Se, por um lado, o pentecostalismo é visto como
prática decisiva na recomposição da vida indígena Kaiowá, como afirma Pereira, por outro
é visto como um conjunto de experiências ameaçadoras a esta mesma vida. Se o indígena
da narrativa anterior em questão deixou o pentecostalismo, a questão não é tão somente o
“porquê”, mas quais as implicações de uma “despertença” que não se assume isoladamente,
mas se constrói lançando pontes para outras direções.
Quando o indígena se “des-converte” do pentecostalismo, isso não significa que ele
retorne necessariamente a uma vivência religiosa tradicional, nativa, até porque esta vivência
não esteve necessariamente ausente quando ele professava o pentecostalismo. Mesmo que
se fale em “retorno” a práticas religiosas tradicionais, este movimento nunca é unívoco, mas
“capilar”, difuso. A despertença pode qualificar uma proposta para se repensar o sincretismo
também, posto que ela sempre é relativa a uma experiência de busca de sentido (despertença a
quem, a quê?), “inventando” novas maneiras de se ser religioso. O “outro”, para o qual aponto
eu mesmo, torna-se sincrético. O possível sincretismo exposto na fala do indígena acima tem
que ser analisado em diversos níveis em que se dão as muitas apropriações e expropriações
simbólicas. Afinal de contas, entre o sincretismo falado (e teorizado) e o sincretismo vivido
há desníveis a serem considerados. Uma implicação para a discussão aqui é justamente essa:
o termo “sincretismo” (e seus “disfarces” mais bem “comportados” como “adição”, “fusão”,
“justaposição”, “inculturação”, “inclusivismo” e outros), por mais que evoque as “misturas”
e “aproximações” de universos simbólicos das experiências religiosas múltiplas envolvidas
no contato traz, consigo (embora a etimologia do termo não ajude), a necessária ideia das
rejeições, retomadas e disjunções típicas quando se lida com a pergunta pelas recomposições
de sentidos religiosos. O sincretismo, por hipótese, é a radicalização da ambigüidade “em
ato” da vida religiosa. É possível que seja nestes “desníveis” ambíguos o lugar em que a
antropologia e a teologia indígenas devam postar-se.
Em reforço e ampliando o raciocínio exposto no parágrafo anterior, para se repensar
a importância da categoria do sincretismo para o discurso teológico indígena, em particular,
29
MEIHY, José C. S. B. (Org.) Canto de Morte Kaiowá. História oral de vida, p. 78ss. Esta obra foi produzida
30
Como pude constatar, vários anos depois, em minha própria pesquisa de doutorado.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
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é colocar justamente a vivência religiosa (produção simbólica de sentidos) vista a partir do
que Levi Pereira chamou, anteriormente, de “fendas”. As traduções e ressemantizações dos
códigos simbólicos envolvidos se movimentam, no cotidiano, muito mais nas “rachaduras”
do que na imagem “tranqüila” e distanciada do edifício inteiro. O sincretismo torna-se uma
possível metáfora para a religião em movimento. Como afirma Massimo Canevacci (muito
embora com um otimismo exagerado), o sincretismo é “diaspórico”, “inseminação aqui e
acolá, uma fecundação dispersiva, uma disseminação desordenada” que rompe com as
imposições monológicas e as oposições binárias (CANEVACCI: 1996, p. 8).
O que a teologia precisa é sempre recolocar a pergunta pelo tema da “revelação”31,
enquanto esse caminho “desordenado” do humano com Deus (mas, na prática, cheio de
sentido para os que vivenciam sua fé), a partir de uma atitude hermenêutica e participativa
do poder metafórico que o sincretismo tem de conotar as experiências religiosas reais. Ao
levar em consideração os múltiplos contatos entre os Guarani, Kaiowá e pentecostais, é
preciso sempre lembrar da dificuldade (porque sempre se lida com sujeitos e atores religiosos
concretos) posta por aqueles que rejeitam já, de saída, o fato de caracterizar sua religião
de “sincrética”. Porém, o contato com as experiências religiosas Guarani e Kaiowá pode
mostrar para a Teologia que o pentecostalismo, visto a partir dos indígenas, não se torna
tão “assustador” e negativo quando “sincretizado”. Isso porque, como foi dito anteriormente
(a partir das idéias de Levi Pereira), as resignificações feitas pelos indígenas nem sempre
respeitam “cercas eclesiásticas”, embora elas existam e devam ser levadas em consideração.
É o jogo da ambigüidade. Se a teologia continuar insistindo na imposição destas “cercas” na
aproximação que faz das experiências religiosas indígenas, dificilmente será uma interlocutora
legítima. É importante afirmar isso, pois aqui reside outra implicação das discussões acerca
do sincretismo religioso. Ao revelar as múltiplas ambigüidades, uma leitura sincrética dessas
experiências religiosas mostra que os indígenas “pentecostais” sofrem, pelo menos, um
duplo estigma: se não bastasse o peso (pejorativo) de serem qualificados por sincréticos, o
próprio fato de serem pentecostais já se torna um estigma quando, na reserva de Dourados,
por exemplo, várias gerações de indígenas foram ensinados por um protestantismo (como
o da Missão Caiuá) que estigmatiza os próprios pentecostais. Isso gera um paradoxo: ao
mesmo tempo em que muitos indígenas assumem o discurso de setores religiosos cristãos e
de antropólogos contrários às manifestações pentecostais, ao mesmo tempo ressemantizam
esse discurso, haja vista que o pentecostalismo, antes de qualificar Igrejas e denominações
específicas (em um acento mais sociológico), denota um comportamento, um movimento
“sorrateiro” de leitura da realidade (atitude hermenêutica) que pervade muitas comunidades
cristãs indígenas. Um pentecostalismo que “bebe” em muitas fontes. Sincrético.

31
Como bem faz o teólogo e cientista da religião Afonso Ligório Soares. Uma de suas teses principais é: “[...] As variáveis
sincréticas são justamente o rastro que vai ficando ao longo do caminho da autocomunicação de Deus na história”. Cf.
SOARES, Afonso M. L. No Espírito do Abbá, p. 195.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
93
Considerações finais. Para continuar a reflexão

Em consonância do que foi afirmado no fim da seção anterior, é legítimo concordar com
Antonio Magalhães que, no que diz respeito a perspectivas teológicas, é melhor compreender
o pentecostalismo hoje como um movimento religioso, no sentido de maneiras próprias
de compreender a vivência dos fiéis com Deus, movimento este que perpassa, inclusive,
outras expressões de fé cristãs, do que enxergar o pentecostalismo como um conjunto de
denominações ou organizações religiosas uma ao lado das outras (MAGALHÃES: 2006, p.
55)32. A ideia de “movimento” mais como uma construção metafórica do que como um “tipo
social” de institucionalização do religioso. Assim é que o pentecostalismo se “movimenta
sincreticamente” entre os indígenas Guarani e Kaiowá, criando novos espaços de produção
de sentido. Não é difícil perceber que as análises sócio-antropológicas priorizam a visão do
pentecostalismo como função reguladora das crises sociais indígenas. Esta leitura não deixa
de ser pertinente, mas a Teologia pode colocar outras questões, para além do inclusivismo
e da inculturação, tais como: se as religiosidades “nativas” também têm esta função
reguladora, e se até mesmo o “protestantismo histórico” ofereceu esta recuperação social da
desintegração cultural (a Missão Presbiteriana Caiuá, por exemplo, sempre se notabilizou
por sua forte ênfase na educação, saúde e na assistência social dos indígenas), é preciso ir
mais fundo para perceber o porquê de certa “preferência” ao pentecostalismo hoje. Além
disso, esta análise sócio-antropológica e teológica ainda não dá conta de responder o porquê
que o pentecostalismo deixa, em alguns contextos, de cumprir com esta função reguladora.
Do ponto de vista teológico, é preciso analisar as transformações hermenêuticas posta pelos
pentecostalismos e ressemantizados sincreticamente pelos Guarani e Kaiowá, aos modelos
de teologia instituídos, modelos estes que, conforme nos inspira Magalhães, teimaram em
afirmar, a partir de uma visão conceitual e sistemática da doutrina, que o pentecostalismo e
as experiências de fé indígenas carecem, justamente, de teologia (MAGALHÃES: 2006, p.
58). Se for afirmado também, por hipótese, que o sincretismo é a linguagem metafórica por
excelência em problematizar a ambiguidade da religião, a teologia não pode apenas fazer um
inventário dos conceitos/categorias para onde apontam esta metáfora. Deve problematizar a
própria categoria da metáfora para o discurso teológico, levantando suas riquezas e limitações33.
Assim, a reinterpretação da dimensão pneumatológica da vida, a relativização da vida cristã
em comunidade, ao gerar novos modelos para além do excessivo “eclesiocentrismo” e uma
nova perspectiva, enquanto ressignificação da “palavra” como eixo-normativo do fazer
32
Magalhães faz uma menção explícita a Bernardo Morante em seu texto Na Força do Espírito: Pentecostalismo,
Teologia e Ética Social. In: GUTIÉRREZ, Benjamin F. & CAMPOS, Leonildo S. (Eds.). Na Força do Espírito. Os
Pentecostais na América Latina: Um desafio às igrejas históricas. São Paulo/São Bernardo do Campo: Pendão
Real/Ciências da Religião, 1996. O texto de Magalhães é o já citado Uma Igreja com Teologia.
33
Esforços neste sentido existem. É possível lembrar aqui as construções teológicas de Sallie McFague (por exemplo,
em sua obra Metaphorical Theology) e John Hick (em seu texto A Metáfora do Deus Encarnado). Também, em uma
perspective mais filosófica, Paul Ricoeur, em sua A Metáfora Viva.

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
94
teológico, podem ser algumas portas de entrada da teologia para o diálogo com o sincretismo
pentecostal indígena.
Certamente que o elemento da ambigüidade deve estar presente nas análises do ñande reko
(o modo de ser próprio, peculiar) Guarani e Kaiowá. Talvez o sincretismo hoje, ainda que com o
risco de sacrificar experiências identitárias tradicionais, seja a própria condição de possibilidade
do ñande reko desses grupos indígenas. Certamente que as contribuições de Marzal e Chamorro,
mostradas na primeira parte do texto, para uma Teologia indígena, é de muita importância,
principalmente quando, cada um a seu modo, recoloca a fundamental questão do protagonismo
indígena em formular seus próprios “planos epistemológicos” no que diz respeito à religião e fazer
dialogar esses “planos” com as epistemologias teológicas cristãs. Mesmo que corram o risco de
insistir em categorias como a inculturação (Marzal), onde o sincretismo fica subserviente, haja
vista que essa inculturação pode “instrumentalizar” a diversidade cultural indígena (sincrética) para
favorecer a missão cristã, gerando um “defeito de reciprocidade”34. Mesmo que se corra o risco de
um diálogo que fica, no final das contas, a reboque de uma proposta inclusivista (Chamorro), pois
o quadro de referência teológico coloca o cristianismo como o agente que “controla” a inclusão.
Todavia riscos há, também, nas leituras em torno do sincretismo.
A antropóloga Regina Novaes afirma que já é tempo de nos livramos de uma visão de
sincretismo “[...] enquanto eventuais e parciais identificações ou confusões entre elementos de
dois conjuntos religiosos, tanto quanto como simples processamento totalizante de produtos
culturais”35. Para esta antropóloga o sincretismo sempre será um encontro que modifica
crenças, crenças do “si mesmo como outro”, para lembrar Paul Ricoeur. Isto significa
continuar a insistência no caminho, mesmo diante das dificuldades epistemológicas proposta
pela idéia. Será o sincretismo mera descrição de movimentos religiosos ou a afirmação de que
os encontros/fusões necessariamente desemboquem em sínteses, nem que seja para afirmar a
continuidade do processo? É preciso ir adiante. Ao pensar com Novaes para aplicar à realidade
indígena estudada, dois erros precisam ser evitados nos estudos sincréticos, de certa forma,
retomando o que foi afirmado na introdução deste trabalho: 1. a impossibilidade de pressupor
um “tempo zero”, uma pureza anterior sem misturas e; 2. o ocultamento de assimetrias e
subordinações em nome da síntese/solução que supostamente caracterizaria os brasileiros
(indígenas ou não) (NOVAES: 2001, p. 201). A antropologia e a teologia devem dar as mãos
nesta tarefa para que o ñande reko sincrético possa traduzir alteridades fluidas e em constante
processo de “fazer-se”, sem cair em “identidades sincréticas absolutas”.
Este artigo quer, apenas, pontuar algumas possibilidades e, certamente, conta com
limitações nas análises dos referenciais propostos. Mas como todo exercício hermenêutico,
segue como processo aberto em busca de novos caminhos.

34
Cf. FORNET-BETANCOURT, Raúl. Religião e Interculturalidade, p. 43-4.
35
NOVAES, Regina R. Juventude e Religião: marcos geracionais e novas modalidades sincréticas. In: SANCHIS, Pierre
(Org.). Fiéis e Cidadãos. Percursos de Sincretismo no Brasil, p. 199.

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Recebido em 01/10/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

FRONTEIRAS DO SINCRETISMO - Experiência religiosa indígena Guarani e perspectiva cristã • Gustavo Soldati Reis
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LÓGICAS DE PODER: TENSÕES ENTRE ESTADO E IGREJA
NA BELÉM DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX
(1916/1940)1

Ipojucan Dias Campos2

RESUMO: O espaço cronológico deste ensaio localiza-se entre 1916


estendendo-se até 1940 e o espacial é o da cidade de Belém. Assim sendo, o seu
argumento central é o de compreender como a Igreja Católica e o Estado elaboraram
e puseram em prática suas estratégias de poder para dominar os institutos:
o da celebração do casamento e o da família na cidade de Belém das décadas
iniciais novecentistas. Deve-se imediatamente também avisar que as Instituições
jamais lutaram ou entraram em querelas agudas para mudar os significados de
matrimônio e de família, mas sim que os entreveros concentravam-se nas lógicas
de quem dominaria as importantes representações. Em conformidade com isso,
tanto Estado quanto Igreja Católica propunham-se a dar significados ao poder
e, neste caso, poder expressa as forças elaboradas a respeito dos institutos em
disputa.

Palavras-Chave: 1. Casamento, 2. Família, 3. Estado, 4. Igreja e relações


de poder.

ABSTRACT: The chronological space of this rehearsal is located among


1916 extending up to 1940 and the space is it of the city of Belém. Like this being,
his/her central argument is it of understanding as the Catholic Church and the
State elaborated and they put into their practice strategies of power to dominate
the institutes: the one of the celebration of the marriage and the one of the family
in the city of Belém of the decades initial novecentistas. He is due immediately also
to inform that the Institutions never struggled or they entered in sharp disputes
to change the marriage meanings and of family, but that the fights pondered in
the logics of who it would dominate the important representations. In accordance
with that, so much State as Catholic Church intended to give meanings to the
power and, in this case, to can expressed the forces elaborated regarding the
institutes in dispute.

Key-Word: 1. Marriage, 2. Family, 3. State, 4. Church and Relationships


of Power.

1
Originalmente este texto foi apresentado como uma das sessões de minha tese de doutoramento defendida em 2009
no Programa de História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Deve-se deixar evidente
que o texto, ora submetido, sofreu algumas mudanças quando comparado ao original. A tese esteve sob orientação da
doutora Estefânia Knotz Canguçu Fraga, a quem devo boa parte de minha formação intelectual, pois a relação orientador-
orientando foi de seis anos ininterruptos. Este artigo é inteiramente dedicado à memória do amigo Elesbão de Puquera.
2
Doutor em História Social pelo Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC / SP). Professor Adjunto I da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus
Universitário de Bragança. Professor do Programa de Ciências da Religião (PPGCR) da Universidade do Estado do
Pará (UEPA).

98
Introdução

Creando a familia legitima, o casamento legitima os filhos communs, antes


delles nascidos ou concebidos.
(Artigo 229, Dos effeitos juridicos do casamento. In: Codigo Civil dos
Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917)

O acto civil foi, originalmente, uma laicisação do sacramento. Era natural


que, atheisados a escola, o jury, os hospitaes, as constituições, fosse Deus expulso
do casamento. Basta considerarmos que o contracto legal surgiu de revoluções ou
demagogias em que da Egreja se separava do Estado (...).
(Perigos do civil. In: “A Palavra”. Belém, 29 de novembro de 1923, p. 01)

O caráter elementar deste texto é fazer o leitor compreender como a Igreja e o Estado
pensavam a elaboração de estratégias que trouxessem aos seus raios de domínio códigos
que fossem entendidos como legítimos frente ao casamento e à família, ou seja, refletir a
respeito das relações e condutas de poder que ambos fabricaram para ver com quem ficaria
a responsabilidade da formação da família moral é a problemática essencial que o presente
texto se propõe a refletir. Do mesmo modo, deve-se acentuar a maneira de refletir e a
velocidade com que as Instituições pensavam dominar a referida questão; acerca deste campo
o historiador compreende que elas se enfrentavam de maneira tão prodigiosa que aquando
do ataque de uma das partes, imediatamente a outra fabricava defesa e a colocava em prática.
Diante destes domínios em torno do casamento e família, ambos exigiam [de si] a construção
de ferramentas eficazes, porquanto estava em jogo representações da dita moralidade. Como
o leitor observará, o problema interpretativo que se impôs nunca se localizou na mudança do
que viria a ser casamento e família às Instituições em análise, porquanto as duas as pensavam
de forma semelhantes; assim o mesmo não está em saber se o Estado e a Igreja se preocupavam
com mudanças paradigmáticas. O problema se distanciou e sequer próximo passou sobre qual
delas saiu vitoriosa, então, o problema se circunscreveu na compreensão das fabricações e
condutas das táticas de dominação quando o assunto repousava na concepção da moralidade
e necessidade do casamento e família.
Para este fim analisar-se-á um conjunto documental como os periódicos católicos “A
Palavra” e a “Revista Quero”, bem como o manual “O divorcio” e a “Pastoral Collectiva das
Provincias Eclesiasticas de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo, Cuyaba e Porto
Alegre”, também foi interpretado um jornal laico, “Folha do Norte”. Usaram-se juristas da
época como Clovis Bevilaqua, Oscar de Macedo Soares, Lafayette Rodrigues Pereira, Tito
Fulgencio. Legislações que versaram da Colônia (Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia) passando pelo final do século XIX, 1890, (Decretos do Governo Provisório da República
dos Estados Unidos do Brasil) e chegando até 1916 (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil)
consideraram-se papéis de suma importância aos propósitos destas reflexões e, por isso, não

LÓGICAS DE PODER: TENSÕES ENTRE ESTADO E IGREJA NA BELÉM DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX (1916/1940) • Ipojucan Dias Campos
99
foram esquecidos, e, finalmente, lançou-se mão de um “auto de justificação de batismo e estado
de solteiro de Guilhermino Augusto Fernandes e Aurora Rodrigues de Azevedo”, 1913.
Estes são os documentos de onde emanou a concepção historiográfica de que tanto
a Igreja Católica quanto o Estado procuravam elaborar significados de poder aos institutos
do casamento e da família, ou seja, quem dominaria a união desejada normatizadora da
sociedade. Assim, os argumentos localizam-se na lógica que se tratava de relações de poder e
não em proposta de mudança de paradigma acerca dos significados do ato solene e de família.
Em relação ao casamento e à separação conjugal em finais do século XIX e nas
primeiras décadas do XX, observou-se que a recém instaurada República imprimia mudanças
que envolviam diretamente interesses da Igreja Católica. O decreto nº 181 de 24 de janeiro de
1890 que impôs a secularização do casamento e sua ruptura pelo Estado é um exemplo, pois
nele podem-se ver incursões sobre a família, o casamento, os filhos, as relações conjugais,
o separar-se. A respeito do enlace civil afirmava ser o único a legitimar a família e os filhos
anteriormente nascidos de um dos contraentes com o outro e que a sua quebra era igualmente
de responsabilidade do Estado republicano.3 Mas diante da interrupção dos laços conjugais as
leis, no decorrer do tempo, permaneciam com os mesmos ideais, como se observa na tabela
seguinte:

3
O decreto 181 de 24 de janeiro de 1890 secularizou, no início da República, o casamento e o divórcio que estavam
desde a Colônia sob o domínio da Igreja Católica. Sobre a separação conjugal, consultar: “Capítulo VII: dos efeitos
do casamento”. In: Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Primeiro fascículo
de 1 a 31 de janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. Sobre a secularização do casamento veja-se: SOARES,
Oscar de Macedo. Casamento civil: decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890 / comentado e anotado. Rio de Janeiro:
Garnier, 1895.

LÓGICAS DE PODER: TENSÕES ENTRE ESTADO E IGREJA NA BELÉM DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX (1916/1940) • Ipojucan Dias Campos
100
TABELA 1
RAZÕES PARA SE SOLICITAR SEPARAÇÃO DE CORPOS E BENS

COLÔNIA: CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA


BAHIA

1. Adulterio; 2. Apostasia e heresia; 3. Sevicias.


IMPÉRIO
Divórcio temporário: 1. Suggestões criminosas de um conjuge ao outro; 2.
Sevicias graves incididas contra a vida.
Divórcio perpétuo: 1. Adultério commetido por um dos conjuges.

REPÚBLICA: DECRETO 181 DE 24 DE JANEIRO DE 1890

1. Adulterio; 2. Sevicias ou injuria grave; 3. Abandono voluntario do


domicilio conjugal e prolongado por dous annos continuos; 4. Mutuo con-
sentimento dos conjuges se fôrem casados ha mais de dous annos

REPÚBLICA: CÓDIGO CIVIL DE 1916

1. Adultério; 2. Tentativa de morte; 3. Sevicia ou injuria grave; 4. Abanbono


voluntario do lar conjugal, durante dois annos contínuos, 5. Mutuo consentimento
dos conjuges, se forem casados por mais de dois annos.
A tabela foi elaborada a partir dos seguintes documentos: Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia feitas, e ordenadas pelo illustrissimo, e reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da
Vide, bispo do dito Arcebispado, e do Conselho de sua Majestade: propostas, e acceitas em o Synodo
Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro,
1853. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito de familia. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889.
Decretos do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil. Primeiro fascículo de 1 a 31 de
janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.

Tomando-a como base, desde a Colônia, as razões da separação conjugal permaneciam


inalteradas ocorrendo somente sutis acréscimos e supressões quando se compara um período
com o outro, por exemplo, a apostasia e heresia4 presentes no período colonial deixaram de ser
motivo no Império; já na República foram introduzidos abandono voluntário do lar conjugal

4
Significavam a entrada de um dos consortes para outra religião ou blasfêmia contra os sacramentos da Igreja
Católica. Veja-se: Livro I, Título XXII das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo
illustrissimo, e reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, bispo do dito Arcebispado, e do Conselho de
sua Majestade: propostas, e acceitas em o Synodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de
1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro, 1853.

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se prolongado por dois anos consecutivos, mas também se nota que o adultério e sevícias
permaneceram no decorrer do tempo. O mútuo consentimento, segundo Maria Beatriz Nizza
da Silva, não é contemporâneo da República – surgiu no início do século XIX – e para a autora
os divorciantes passaram a preferi-lo em virtude de ser mais barato e rápido processualmente.5
Divórcio e desquite promoviam somente o fim da sociedade conjugal; o casamento, como
vínculo perpétuo, dissolvia-se apenas com a morte de um dos cônjuges. Desta maneira, como
disse Lafayette Rodrigues Pereira,6 o divórcio “admitido” pela Igreja Católica impossibilitava
segundas núpcias em vida de um ou outro consorte. Jurisconsulto e Igreja compreendiam a
família na forma de um núcleo que deveria ser amparado em todas as circunstâncias.
Matrimônio e separação conjugal permaneceram pois inalterados, ou seja, com a
secularização continuaram os ideais de família católicos. De tal sorte, eles – já com o Estado
separado da Igreja – indiferenciavam-se da legislação anterior [sob o domínio da Igreja], isto
é, os vínculos permaneciam indissolúveis e sem nenhuma chance de segundo casamento. Nas
primeiras décadas do século XX, com a aprovação do Código Civil Brasileiro, em 1916, os
sentidos do casamento e separação permaneceram imóveis, pois a nova legislação afirmava,
no artigo 229, que o matrimônio criava a família legítima e no 315, assegurava que as
núpcias, quando celebradas, somente se dissolviam pela morte de um dos cônjuges.7 Se as
leis republicanas “conseguiram” secularizar o casamento e a ruptura da convivência a dois,
é de suma importância não generalizar o fato. Em outras palavras, a secularização realizada
pelo Estado conseguiu apenas retirar das mãos da Igreja o poder exclusivo sobre a união
e o desligamento ou não dos vínculos conjugais. Então o Código Civil guardou a tradição
da lei anterior impossibilitando ainda o divórcio e consequentemente as segundas núpcias.
No entanto há a considerar que os movimentos para a implementação deste novo ideário
desenvolveram-se ao longo do tempo em diferentes lugares da rede social, escreveu Keila
Grinberg.8
Prezado leitor, em conformidade com isso, dedicar-se-á às lutas pelo poder travadas
pelo Estado e a Igreja na cidade de Belém das primeiras décadas do século XX.

5
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “O divórcio na capitania de São Paulo”. In: BRUSCHINI, Maria Cristina & ROSEMBERG,
Fúlvia. (Orgs.). Vivência: história, sexualidade e imagens femininas. São Paulo: Brasiliense, 1980, pp. 151 / 194. Ao
contrário das pesquisas realizadas por Nizza da Silva para a São Paulo colonial, as ações por mútuo consentimento não
foram as preferidas pelos desquitantes na cidade de Belém entre 1916 e 1940. Assim, dado importante a ser dito é que,
mesmo menos burocráticas e mais baratas, localizaram-se apenas sete processos desta natureza no Cartório Sarmento
do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
6
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito de familia. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889.
7
Sobre os sentidos legais do casamento a partir de 1916, vejam-se os artigos 229 e 315. In: Código Civil dos Estados
Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
8
GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

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1. Igreja e Estado: Estratégias de Dominação

Por entender o casamento como perpétuo e indissolúvel, a Igreja Católica conseguiu


que o divórcio não constasse tanto na legislação de 1890 quanto nas seguintes – Código Civil
de 1916 e em duas Constituições, as de 1934 e 1937 – com o argumento de que impossibilitava
a vida em comum, sendo fonte de perturbações e causa permanente de escândalos; tolerava
apenas o desquite, que promovia a separação de corpos e bens conservando os vínculos
matrimoniais.9 De tal sorte dois princípios, a Igreja conseguiu que permanecessem nas leis
da República: a indissolubilidade matrimonial e consequentemente a inexistência do divórcio
perpétuo, o que significava que o Clero não se dava por vencido e atacava de maneira sistemática
a secularização da ruptura conjugal bem como o casamento civil. Este, por exemplo, era
taxado de mero contrato entre os homens, que terminava ao sabor dos ventos e não tinha a
misericórdia de Deus.10 Como indicado acima, no início do século XX um conjunto de leis
promulgadas pela República versava ante a formação da família dita legal e a este respeito a
Igreja Católica jamais ficou alheia, isto é, de todos os modos possíveis buscou envolver-se nos
nevrálgicos assuntos, seja influenciando diretamente as legislações, seja publicando matérias
opositoras ao divórcio, união civil e mesmo ao Estado, autor das novas regras do direito de
família. Em 1923, interpretava que o governo não podia intervir no caráter da família e o
acusava de estar colocando “o carro adeante dos bois”, uma vez que os lares eram instituições
anteriores ao Estado. Para o Clero, a intervenção neste assunto fazia enfraquecer a idéia de
nação, pois esta nascia de um conglomerado de lares os quais de época imemorial foram de
responsabilidade de Deus, logo da Igreja.11 A estratégia católica era bastante sagaz, porquanto
articulava e expunha a público a concepção de que quanto mais o Estado se envolvia com a
família mais conseguia debilitar o país. Todas as artimanhas eram utilizadas: a função de Deus,
a da família, a da nação e a do casamento.
Como o fortalecimento da nação era assunto de extrema importância para o Estado, a
Igreja buscava formar cadeias sociais argumentativas a este respeito. Ainda em 1923, a Instituição
colocava-se frente-à-frente à República mesmo quando tentava inverter as acusações, pois
afirmava que os defensores da lei do país acusavam “o Clero de chamar o acto civil casamento
do diabo, matrimonio da Maçonaria, consorcio do tinhoso”, mas o que acontecia, segundo a
sua leitura, era que os católicos estavam cansados de ouvir os bacharéis e doutores, escrivães
e juízes “gritarem contra a união sacramental, que dizem extincta desde a Republica, despida
de qualquer utilidade em caso de heranças, e mantida pela ganancia dos padres”.12 Segundo o
Clero, tais lutas em torno do conúbio tinham como única razão desalentar a já frágil lógica de

9
“A Palavra”. Belém, 01 de janeiro de 1917, p. 02.
10
“A Palavra”. Belém, 29 de novembro de 1923, p. 01.
11
Idem.
12
“A Palavra”. Belém, 20 de dezembro de 1923, p. 02.

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nação e a disputa não levaria a nenhum lugar que não fosse a ruína do povo brasileiro. A Igreja se
reorganizava e reagia como podia às investidas do Estado, quer dizer combatia vigorosamente a
situação provisória em que a laicização esforçava-se em lançá-la. Assim, contra as tentativas de
caracterizá-la enquanto Instituição de menor importância, o Clero escreveu diversas pastorais,
aumentou o número de dioceses, buscou melhorar a qualidade do ensino e da própria formação
do corpo eclesiástico, criou algumas associações religiosas (Apostolado da Oração e Filhas de
Maria) e fundou inúmeros jornais; em Belém, por exemplo, circularam entre 1890 e 1930:
“Semana Religiosa do Pará” (1889 / 1890), “A Palavra” (1910 / 1941) e “Revista Feminina Laica
Quero” (1939 / 1942). Eis algumas articulações realizadas pela Igreja que visavam a preservação
dos valores morais da família, aliás esta questão foi uma das suas metas prioritárias para conter
o que compreendia ser a elevação do “sentimento da desordem em marcha no país”. Estes
movimentos devem ser compreendidos como um conjunto de medidas que visava o avanço
da influência do catolicismo; desta maneira, mesmo não negando a existência de dificuldades
enfrentadas pela Igreja no período citado, os argumentos desta sessão em nada se alinham à
tese da “acomodação católica”. Enfim, o interregno da Proclamação da República até ao início
do governo de Getúlio Vargas foi importante para o catolicismo que conseguiu fortalecer-se
política e socialmente, graças a atitude da hierarquia católica no que diz respeito à sua posição
enquanto articuladora de poder. Na década de 1920, para a cidade do Rio de Janeiro, Ralph
Della Cava observou como o apostolado laico foi importante contra as concepções divorcistas,
o anti-clericalismo e o ateísmo e que o objetivo não era o de dominar o Estado, mas sim o de
nele intervir por meio dos seus fiéis.13 Para a cidade de Belém entre 1939 e 1947, Liliane do
Socorro Cavalcante Goudinho, interpretou o movimentar do laicato feminino católico em
um momento em que a Igreja procurava reafirmar a sua importância política e ideológica no
cenário nacional.14
Isso acontecia em virtude das autoridades seculares compreenderem ser a família
por elas formada a pilastra central da nação porque produzia a honestidade, a moral e a
disciplina; a Igreja também atuava no seio da sociedade e fazia questão de deixar claro que
sem a força moralizadora do seu rito matrimonial ocorreriam indelevelmente a dissolução
da família e da nação, uma vez que o núcleo familiar católico sempre elaborou as bases do
povo brasileiro. Assim, tanto o Estado quanto a Igreja percebiam as intenções um do outro no
bojo da sociedade e por isso apressavam-se em oferecer-lhe conjuntos de códigos (mesmo em
vários pontos convergentes) que fossem compreendidos coerentes ou ditos à época, morais.

13
Para aqueles que queiram manter contato com uma longa análise sobre as teias políticas, sociais e ideológicas tramadas
pela Igreja Católica na política brasileira, não devem deixar de consultar: MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e
a política no Brasil (1916 / 1985). São Paulo: Brasiliense, 2004. Há também a se acentuar que uma longa bibliografia
especializada vem se esforçando no argumento de que se por um lado a Igreja Católica mantinha-se conservadora
diante de alguns pressupostos como o do divórcio perpétuo, por outro ela via com bons olhos a participação laica
feminina na defesa dos seus pressupostos como o do casamento enquanto sacramento.
14
GOUDINHO, Liliane do Socorro Cavalcante. Mulheres em ação ... (católica): Belém (1939 / 1947). Dissertação
apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP). São Paulo: Mimeo, 2005.

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As duas Instituições dialogavam o que lhes convinha, contudo não se pode esquecer que elas
se encontravam entre os valores idealizados e os comportamentos dos indivíduos e, se por um
lado as suas normas sociais poderiam influenciar um enorme número de pessoas, por outro
seria arriscado descartar a potencialidade dos que transgrediam tanto os códigos eclesiásticos
quanto os do Estado. Dessa maneira em diversos momentos elas utilizaram ferramentas
similares quando o assunto tratava da ordem familiar, mas há a observar que, mesmo com
as aproximações e distanciamentos, o que se revelaram foram disputas amplas e tensas pelo
poder de quem iria definir o futuro moral e político da família brasileira, logo da nação.
A respeito do não isolamento da Igreja nas primeiras décadas novecentistas, bom
exemplo concentrou-se nas discussões frente ao casamento como contrato e sacramento.
Em pastoral coletiva publicada em 1915, afirmava-se que “(...) o contrato civil é uma simples
formalidade que, sem nada acrescentar ao valor do sacramento do Matrimônio, vem
enfraquecer-lhe o vínculo ou atingir-lhe a essência, vem apenas garantir os direitos temporais
da família já constituída, ou a constituir-se pròximamente de acôrdo com a legislação divina e
eclesiástica (...)”.15 Reforça-se aqui a argumentação de que, mesmo separada do Estado, a Igreja
mantinha relações de força e influenciava a sociedade. Participava também dos jogos políticos
e atuava por meio da imprensa e de pastorais nos debates sobre o Código Civil Brasileiro, no
sentido de que preservasse seus ideais de vida conjugal percebidos como coerentes. Mesmo
digladiando-se, as Instituições compreendiam as alianças como fundamentais à nação, daí a
importância em fazê-las indissolúveis. Estas concepções eram reforçadas por juristas como
Tito Fulgencio que afirmava: “fazendo que um cônjuge seja a carne e o osso do outro, dahi
a sua forma monogamica, unica, conforme a natureza moral e o destino do homem, que
satisfaz a felicidade e ao fim social do casamento – perpetuidade da especie. Estes caracteres
indeleveis do casamento, que são o apanagio do homem entre os seres animados, communicam
forçosamente ao casamento a perpetuidade e por tanto a indissolubilidade. O divorcio gera a
polygamia, condemnada e repellida”.16 O jurisconsulto católico ajudou a que permanecesse no
Código Civil a indissolubilidade matrimonial. Clovis Bevilaqua, outro representante da Igreja
nas leis do país, afirmava que em decorrência das pressões políticas feitas pelos representantes
do Clero na Câmara dos Deputados a proposta de imposição de segundas núpcias na vida civil
brasileira não foi aprovada para já figurar no Código de 1916.17 Ainda segundo Bevilaqua, em
1901, quando se discutia o projeto do Código Civil na Câmara dos Deputados, pela preferência
entre desquite e divórcio, antidivorcistas – M. F. Correia, Alencar Araripe, Andrade Figueira,
Coelho Rodrigues, Gabriel Ferreira, Guedelha Mourão e Lima Drummond – e divorcistas –

15
Pastoral Collectiva das Provincias Eclesiasticas de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São Paulo, Cuyaba e
Porto Alegre. Rio de Janeiro: Typ. Martins de Araujo, 1915, p. 126.
16
FULGENCIO, Tito. Do desquite: theoria legal documentada – processo jurisprudencia nacional. São Paulo: Saraiva
& Companhia, 1923.
17
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952, p.
267.

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Anísio de Abreu, Fausto Cardoso, Adolpho Gordo, Carlos Perdigão, Vergne de Abreu, Sá Peixoto
– enfrentaram-se arduamente.
Com o Código Civil de 1916 nenhuma transformação expressiva ocorreu no âmbito
da prática matrimonial. A República não promoveu modificações profundas na família, aliás
apenas algumas terminologias mudaram, o que reforça a conjectura de que se pretendia a
reafirmação do ideal conjugal que há séculos a Igreja difundia. Então a questão que se impõem
é a de que, se diante de relações de força a República conseguiu tomar para si [secularizar]
o matrimônio, por que as mudanças localizaram-se somente nesse ponto? Por que não
avançaram no interior dos significados práticos do casar-se?
Tem-se assim que a idealização católica de casamento e família permanecia nas leis
civis, entretanto a exclusividade da celebração do matrimônio não mais lhe pertencia. Com
o decreto-lei nº 181 de 24 de janeiro de 1890, quem desejasse constituir família legal teria
necessariamente de passar pelas leis republicanas. A Igreja Católica perdia parte da força que
há muito tinha diante da constituição do ideal de família legítima, higiênica e indissolúvel, pois
as legislações seculares buscaram “neutralizar” seu expressivo poder no interior da sociedade
que ameaçava o Estado como força hegemônica. Em busca de dirimir esta representatividade,
um dos primeiros movimentos do regime republicano foi o de promover a secularização do
casamento, repita-se.
Mas no início do século XX, o que era exigido para casar diante das autoridades civis e
católicas? A habilitação às núpcias apresentava-se – se contempladas todas as fases – um rito
prolongado, o que exigia dos nubentes grande parcela de paciência. O percurso das formalidades
civis iniciava-se por meio da apresentação de documentos ao oficial de registro. O direito de
família exigia: certidões de nascimento ou de batismo para provar a maioridade; em caso de
menoridade os tutores ou responsáveis teriam de assinar documento autorizando o casamento; a
apresentação da “declaração de estado”, a qual detalhava a vida civil dos noivos, se eram solteiros
ou viúvos, maiores ou menores, filiação legítima ou natural, se tinham filhos e se foram casados
e, finalmente, o depoimento de duas testemunhas que confirmassem conhecê-los e declarassem
não existir impedimento de espécie alguma – como a proximidade parental – ao casamento; essas
testemunhas poderiam ser parentes ou quaisquer estranhos. Com os documentos apresentados
pelos pretendentes a marido e mulher, o oficial de registro dava prosseguimento ao rito com
os proclamas de casamento mediante edital público que seria fixado em lugar ostensivo e
reproduzido na imprensa, onde a houvesse. Se decorrido prazo de 15 dias e sujeito algum se
opusesse ao consórcio, os pretendidos cônjuges eram informados pelo oficial de registro de
que estavam habilitados ao casamento no tempo determinado de três meses imediatos.18 A
solenidade realizar-se-ia na casa das audiências ou, se consentido pelo juiz, em lugar público
ou particular, mas considerando toda publicidade necessária e portas abertas com a presença

18
Este parágrafo procedeu das leituras do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1917.

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de no mínimo duas testemunhas. No início do ato os nubentes eram novamente consultados
se permaneciam com o mesmo propósito no plano da livre e espontânea vontade. Em caso de
resposta positiva o enlace seria consumado nos seguintes termos: “de accordo com a vontade,
que ambos acabaes de affirmar, perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em
nome da lei, vos declaro casados”.19
Se os ritos civis apresentavam exigências documentais, sociais e morais aos pretendentes
à vida conjugal, a consumação da cerimônia religiosa católica não menos reclamava. A Câmara
Eclesiástica requeria para encaminhar o ato solene: proclamas; documento que comprovasse
a maioridade (nascimento ou batismo); caso fosse menor de 19 anos requeria-se autorização
expressa dos pais, tutores ou responsáveis; certidão de batismo e no mínimo duas testemunhas
que deporiam confirmando, por exemplo, que em tempo algum os noivos foram casados com
outrem; que havia viuvez de um dos pretendentes; que os candidatos à vida sob mesmo teto eram
solteiros e desimpedidos. Em 1907 o jornal “Folha do Norte” sob título “O arcebispado paraense”
pormenorizava o campo das exigências documentais: “proclamas, – certidões de baptismo de
ambos os contrahentes; – para os oriundos de outras dioceses, justificação do estado livre e
desempedido perante o parocho por autorisação diocesana; – para os extrangeiros justificação
na camara eclesiastica, instruida com o respectivo passaporte e em falta deste, justificação
perante o respectivo consulado; – certidão de obito ou justificação do mesmo perante o parocho
por autorização diocesana, quando um dos contrahentes fôr viuvo; – dispensa pela camara
ecclesiastica, havendo impedimentos; – licença pela camara ecclesiastica quando o casamento
tenha por motivo justo, de ser celebrado fora do lugar, tempo e hora legaes”.20 Os pretendentes
à vida em comum compareciam à paróquia e confirmavam sobre os Santos Evangelhos,
diante do padre, informações para além das prestadas pelas testemunhas: se era (m) filho
(s) natural (is) ou legítimo (s) e as filiações paterna e materna. Realizados estes necessários
trâmites, os depoimentos das testemunhas e dos justificantes chegavam aos representantes
da Igreja – cônegos, padres, párocos – para serem finalmente julgados, pois em instância
anterior [habilitação documental] considerava-se que “os depoimentos de fls. são contestes e
estão de pleno accordo com as declarações dos justificantes e as alegações da petição inicial
sou de parecer que os presentes autos sejam afinal julgados”.21 Em conformidade com todas
as habilitações documentais, a Igreja autorizava a legitimação da vindoura família. Diga-se
legitimidade em sentido desejado estrito, porquanto desde logo se insistia que o matrimônio
não seria temporário, mas até que a morte os separasse. Neste momento, os cônjuges estavam
mais do que orientados acerca dos códigos, parâmetros e normas sociais a serem cumpridas
diante de Deus e da sociedade. Observa-se assim, que as escalas de força não devem ser

19
Consulte-se, artigo 194 do Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1917.
20
“Folha do Norte”. Belém, 16 de setembro de 1907, p. 01. Também foi consultado o Código Canônico de 1917.
21
Autos de justificação de batismo e estado de solteiro de Guilhermino Augusto Fernandes e Aurora Rodrigues de
Azevedo, 1913.

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apreendidas como diálogos que objetivassem transformações nos padrões matrimonial e
familiar, e sim que elas localizavam-se diante da mudança de paradigma do local do próprio
poder, isto é, quem dominaria os institutos.
Os ritos do Estado e da Igreja eram, ideologicamente, os que formavam – segundo o
Código Civil e os mandamentos da Igreja Católica – a família dita moralmente legal. Não havia
outro meio regular para compô-la. Então, os candidatos a constituírem estavam impelidos a
tais possibilidades. Entre 1890 e 1940 inúmeras leis seculares que discutiram a ordem familiar
fizeram-se presentes bem como várias ações católicas; desta maneira tanto o Estado quanto o
Clero buscavam fortalecer a tutela que exerciam perante a sociedade justamente para ver quem
melhor dominaria a ordem familiar dita higiênica. É claro que ambos os planejamentos sociais
utilizaram a prática do convencimento, mas não se deve ignorar que também tiveram elementos
coercitivos: por um lado o Estado, durante certo período – de 1890 a 1934 –,22 afirmava ser apenas
o casamento civil que formava a família legal, por outro a Igreja, que propagandeou durante bom
tempo ser o civil casamento temporário, apenas um contrato que ignorava a presença de Deus;
ato em que o fim era o desquite, coisa do tinhoso. Até por volta da década de 1930, quando
aconteceu uma reaproximação entre Estado e Igreja, inquestionavelmente as duas Instituições se
enfrentaram incisivamente diante dos significados bem como de quem dominaria a vida conjugal
dita legal; diante desses confrontos, o Clero encaminhava sua atuação política tomando como
pilastra um evidente alinhamento com os seus fiéis, ou seja, mobilizar os católicos contra os
posicionamentos das leis seculares [de casamento civil e separação] passou a ser uma das bases
de sua política para se contrapor aos anseios do Estado. As implicações desse posicionamento
podem ser notadas na mudança de sentido das matérias publicadas no periódico “A Palavra”;
dito de outro modo, na medida em que o Estado avançava ou buscava avançar em assuntos antes
de competência católica, como o casamento e a separação, a Igreja valia-se do referido jornal
para questionar, por exemplo, a validade das núpcias civis e conseqüentemente a legitimidade da
família formada a partir deste enlace.
Enfatize-se que até a Constituição de 1934 (legislação que também reconheceu o
casamento religioso como válido), a República estabelecia que o consórcio perante a autoridade
cartorial seria o único apto a promover a legalidade da família e é neste sentido que as referidas
leis seculares corroboram com o argumento de que o ideal de família monogâmica que há
séculos era propagandeado pelo Clero permanecia no interior da legislação republicana. De
tal modo, mesmo com a secularização do casamento e separação de corpos e bens, os ideais
de conjugalidade mantiveram-se, porquanto a Igreja conseguiu medir forças com o Estado em
relação à família e às ações práticas que afetavam o seio das tramas cotidianas. Tem-se nesse
caso a tríade que aparece nos discursos de modo inseparável [Estado, Igreja, família] sobre os
sentidos do assunto, uma vez que se precisava formar idealizações, condutas e limites capazes
de conferir um conjunto de significados que fossem apreendidos específicos à sociedade.
22
A Constituição de 1934 também passou a reconhecer as núpcias religiosas como a que formava a família legal.

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Em inícios do último século, vê-se que o regime republicano buscava ainda ganhar a
simpatia da população brasileira e neste sentido a aprovação do primeiro Código Civil, em
1916, trouxe certa instabilidade ao regime, uma vez que as relações de força frente à temáticas
como casamento, família, divórcio e desquite, novamente vieram à tona e envolveram
necessariamente segmentos da sociedade como a Igreja Católica. O matrimônio permanecia,
desde a Colônia, como ato para toda vida, isto é, dissolvia-se apenas por meio da “morte de um
dos conjuges”.23 O Código de 1916 trouxe leves e inexpressivas mudanças, como sejam a troca
da terminologia divórcio por desquite, permanecendo a indissolubilidade matrimonial como
antes. Mudavam-se nomenclaturas, sem que houvesse transformações substanciais no sentido
prático do casar-se e separar-se. O que estava acontecendo era uma luta entre Estado e Igreja
na busca de conseguir maior influência e dinâmica no interior das leis que se formavam, visto
que o direito de família trazia disposições que envolviam tensões múltiplas, e onde interesses
de um e outro grupo social promoviam disputas acirradas que se localizavam na atuação dos
jogos de poder e envolviam aspectos da vida familiar que predominariam até o próximo direito
de família. Assim, o ideal de a família constituir-se em legítima e higiênica apenas a partir do
casamento válido era forte, tanto que as articulações contrárias ao divórcio mantinham como
principais argumentos a desagregação familiar e a da moral pública e privada.
Itere-se que o ideal de ser o lar ambiente moralizado era desejo das duas Instâncias de
poder, porquanto as defesas da unidade familiar e doméstica, da moralidade pública e privada
e da monogamia, eram princípios basilares observados nas obras de diversos juristas da época.
Assim sendo, seria interessante confirmar a argumentação de que as escalas de poder entre
a República e a Igreja Católica eram grandes, ainda que o ideal de casamento convergisse
para razões comuns: o monogâmico-indissolúvel. As lutas estabelecidas localizavam-se em qual
poder seria o responsável em constituir a família legal. O matrimônio era o centro nevrálgico
disputado tanto pela República quanto pelo Clero. Este, com a perda do monopólio da celebração
indissolúvel / monogâmica / legal, não se sentia confortável frente às solenidades cartoriais;
por isso instava em que a única contribuição que o consórcio civil trouxe à sociedade foi o
exacerbamento da imoralidade.24 A idéia de que o ato solene religioso católico deveria ser
mantido como o formador da família não era rara e as estratégias e argumentos para dar-lhe
importância apresentavam-se solidamente arraigadas na sociedade. A este respeito, afirmava
o jurista Clovis Bevilaqua: “(...) Sob o ponto de vista social, da organização da vida humana
sob a direção da ethica, é, realmente, este o objectivo que tem a lei, regulando a união dos
sexos, depurando os sentimentos, reprimindo as paixões, providenciando sobre o futuro da
prole, cercando de respeito a familia, sobre a qual repousa a sociedade civil. É a intervenção
do direito, na sua funcção organica e santificadora, que differencia a familia legitima, da
familia natural, e de quaesquer agrupamentos inconsistentes ou ephemeros, que as mesmas

23
Artigo 315, inciso 1º. In: Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.
24
Sobre estes assuntos consultar: “Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.

LÓGICAS DE PODER: TENSÕES ENTRE ESTADO E IGREJA NA BELÉM DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX (1916/1940) • Ipojucan Dias Campos
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necessidades physiologicas reunem e dissolvem”.25 Iterava-se a importância do matrimônio na
sociedade. Importância que sempre retorna a um eixo: a moralidade e a ordem social. Tanto
no entender da Igreja quanto no do Estado, o conúbio procurava ditar regras de convivência e
norma e assim era compreendido como necessidade moral, uma vez que nele se vislumbrava
a longevidade e conseqüente prevenção frente às separações conjugais; contudo não é difícil
conseguir exemplos de que esta desejada premissa não conseguia circunscrever a todos, visto
que liberdades e desejos sempre se faziam sentir no cotidiano, ou melhor dito, as imagens de
família, casamento, homem e mulher balizadas em referenciais cristalizados, como se queria
impor, encontraram resistências por quem não entendia como coerentes estas dimensões às
suas vidas.
No interior das tensões em curso, a revista “Quero” publicou sob o título, “A família
Cristã,” em abril de 1940, alguns posicionamentos que versavam a respeito do assunto. Afirmava
que “A família cristã, isto é, a família que têm como base a indissolubilidade matrimonial
e é vivificada pela prática das virtudes cristãs, é, ao mesmo tempo, a verdadeira célula do
organismo social e do lar providencial, onde se prepara o verdadeiro cidadão (...)”.26 Neste
momento é coerente considerar que se existiam tensões entre Igreja e Estado, viam-se também
diversas proximidades entre os seus discursos, por exemplo, os que discorriam quanto à
indissolubilidade do matrimônio como espaço da moralidade. A Igreja Católica ajudava a
dar significado ao poder, porque mesmo perdendo a hegemonia continuava formando ideais
concernentes a ordem conjugal: poder e ordem faziam par perfeito para os representantes
do Clero novecentista. Segundo a revista, pode-se ler que as leis republicanas caminhavam
próximas às aspirações da Igreja; instigante exemplo neste sentido é quando afirma ser a família
cristã a que possuía a base da indissolubilidade matrimonial, em nada diferente do que trazia
o Código Civil que considerava dissolvido o matrimônio somente quando um dos consortes
morresse.27 Consegue-se penetrar, por meio de documentação da época, em complexas escalas
sociais por onde se revelava o funcionamento do poder que se encontrava não apenas no
direito, mas também na imprensa católica e no cotidiano.
Como se vem demonstrando, Estado e Igreja tinham um mesmo ideal de união bem
como de família, desta maneira qual era exatamente a briga travada pelas duas Instituições?
A disputa era em torno de quem dominaria esses institutos. Assim sendo, compreende-se
que o significado do matrimônio e da família deveria ser indissolúvel pois se organizava
como portador da tão desejada moralidade. A aliança entre um homem e uma mulher foi
política e estrategicamente pensada por elas justamente para procurar marginalizar todas
as outras representações possíveis de convivência. A pretensão era a de fortalecer a imagem

25
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952, p.
103.
26
“Revista Quero”. Belém, 20 de abril de 1940, p. 05.
27
Veja-se artigo 315. In: Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.

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exclusiva e legitimadora de que o casamento era o único a serviço da constituição de uma
família perene; de um lar providencial às relações sociais; enfim, de lugar “onde se prepara o
verdadeiro cidadão”. A Igreja, percebendo as mudanças que se operavam no Brasil da época,
preferiu manter seus princípios doutrinários e buscar sustentar a permanência de seus ideais
ante as núpcias, por exemplo. O sacramento do matrimônio permaneceu impávido diante
das propostas de mudança compreendidas como desordens morais e sociais, porquanto se
entendia que se colocava em xeque a família. O divórcio perpétuo e o consórcio civil eram
interpretados como transgressões que tinham como objetivo mudar esses valores o que não era
desejado pela Igreja, uma vez que havia a pretensão de se construir uma sociedade homogênea
que sempre caminhasse na presença dos pressupostos entendidos [por ela] como salubres; eis
por que negava as mudanças promovidas pela laicização, permanecendo com uma postura de
inegociabilidade em relação aos temas que há séculos combatia.28
A se considerar que por curto período a República “modificou” por duas vezes as
formas de separação conjugal e estes debates envolveram necessariamente a ordem familiar,
a Igreja Católica apresentava-se como força política expressiva; esta expressividade se fez
quando ela notou a existência da possibilidade da introdução do divórcio a vínculo no Código
de 1916, o que a fez iniciar campanhas contrárias por tomar a incursão como transgressora e
desviante. Em 1915, o Clero esforçava-se em combater o divórcio afirmando que era “illicito
ainda quando o casamento seja meramente civil. Estas palavras, escriptas como glosa a um
dispositivo do projecto, ainda em estudo, do Codigo Civil Brasileiro, que enumera um vago
erro essencial entre as causas annulatorias do chamado casamento civil, resumem em parte
quanto me cabe esplanar, tratando do casamento como contrato, e concluir que, ainda isento de
qualquer interferencia religiosa o divorcio é illicito, por corromper e arruinar o próprio vinculo
conjugal, indestructivel por natureza”.29 Apreende-se que a Instituição sempre fez questão de
acompanhar de modo muito próximo os desdobramentos das discussões que envolviam o
casamento civil e a forma de ruptura da união conjugal que a República procurava impor. Este
cuidado acontecia pela razão de a Igreja saber que o Estado buscava espaço na sociedade, e
por considerar contraditórios os sentidos que se desejava impor à vida civil brasileira; então
colocava-se a todo momento na condição de defensora do que compreendia como os interesses
morais e sociais da sociedade de tal sorte que não era raro encontrá-la tecendo comentários
contrários a respeito do consórcio civil, do desquite e do divórcio. Melhor dito era seu próprio
trabalho, porque não se pode esquecer que o tempo [primeiras décadas do século XX] exigia
elaborar estratégias que melhor influenciassem o cotidiano desse momento histórico.
As tensões entre a Igreja e o Estado avolumavam-se. Em 1915, eram acirradas as
discussões relativas aos artigos e incisos do Código Civil Brasileiro, e o periódico católico “A

28
AZZI, Riolando. “Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930 / 1964)”. In: MARCÍLIO, Maria Luiza.
(Org.). Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1993, pp. 101 / 134.
29
“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.

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Palavra” publicou uma brochura intitulada “O divórcio”, onde comentava as possíveis novas
diretrizes que se buscavam construir sobre as possibilidades da separação conjugal, isto é,
como o documento deixa entrever, a Igreja Católica colocava-se publicamente em sentido
oposto a determinadas incursões que a República pretendia impor à vida civil. Percebe-se que
os representantes do Clero novecentista influenciaram pontos que vinham balizar as relações
conjugais colocando-se, por exemplo, contrários ao fim do sacramento matrimonial. Desde
os mais tenros debates, era imprescindível dar significados ao poder mesmo que fosse preciso
utilizar estratégias antigas como a da indissolubilidade das núpcias.30 Neste sentido, os jogos
de poder não podem ser reduzidos e circunscritos ao âmbito das leis republicanas uma vez
que, com a tática política de procurar oferecer legitimidade aos discursos, a Igreja Católica não
se encontrava afastada nem desatenta aos fatos.
Concernente ao assunto da ruptura dos vínculos conjugais, a catolicidade compreendia
ser inconveniente permitir generalizações. Desta maneira dirigia-se ao divórcio de forma
direta:

é uma infecção purulenta. Que importa que este mal necessario venha por
contrapeso ao desafogo dos casamentos malsinados, a apagar o risco, já de si tão
gasto, entre as uniões civis e a prostituição, que outra cousa não é o casamento
temporário, o casamento por sessões, o casamento successivo, casamento provisorio,
o casamento intermittente, que em gestação a lei do divórcio encampa e autorisa?
Que importa que agindo como uma infecção purulenta o divorcio facilite, no dizer
de Clovis Bevilacqua, o incremento das paixões animaes, enfraqueça os laços da
familia, e essa fraqueza repercuta desastrosamente na organização social?31

A publicação revela já em seu título oposições precisas quanto à ruptura conjugal e


ao mesmo tempo defesa das relações familiares. Lastros da tradição encontram-se presentes
nas narrativas, visto que os sentidos dos vínculos sócio-conjugais eram o alvo dos debates.
Com efeito faziam-se jogos dos dois lados os quais, por apenas transformar a luta em discurso,
não se mostravam suficientes em enfrentar as ações que emanavam do cotidiano. Precisavam-
se montar circunstâncias práticas que viessem atuar decisivamente na vida em casal. As
respostas deveriam ser rápidas e coerentes àqueles que desejavam construir flexibilizações nas
vivências familiares, porquanto as táticas de política eram bem disputadas; por isso a relevância
da disputa localizava-se nas perspectivas que seriam inauguradas, isto é, trabalhava-se em
universo amplo e diverso, o qual exigia acurado senso de negociação. A família era como
campo minado que requeria cuidados especiais quando nele se entrava, ou seja, não eram bem
vistas e não se queriam permitir brechas a generalizações que pudessem colocar em xeque a
normatização e a moral familiar.

30
Em 24 de janeiro de 1890 a República recém instalada secularizou o casamento e o divórcio por meio do decreto
número 181. Este, durante 26 anos – entre 1890 e 1916 –, legislou sobre o direito de família. O referido decreto foi
substituído quando entrou em vigor o Código Civil de 1916, em janeiro de 1917.
31
“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.

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Rigorosamente a Igreja empreendia propaganda contrária às separações; desta
maneira, categorizar o divórcio como “infecção purulenta” era adjetivo primoroso contido em
seus contra-ataques. Esboçava-se de forma inteligível que para além da publicização de um
projeto que fazia incursões às relações conjugais, a matéria propalava os perigos que o Código
Civil representava à sociedade. As argumentações da Igreja estabeleciam diretas e eficazes
oposições aos campos que lhe causavam sobressaltos e nota-se que nas críticas, predicações e
adjetivações direcionadas às uniões civis, o Clero soube articular-se de modo coerente como
demonstram os posicionamentos do jurista Clovis Bevilaqua, que dão força aos pensamentos
da Instituição, por exemplo, os de que o divórcio sacrificava os filhos, pois seriam órfãos
de pais vivos.32 Tratava-se, desta maneira, de questões tensas que conduziam a dimensões
profundas e aceitá-las ou negá-las era dar um conjunto de sentidos e de tangenciamentos não
necessariamente convergentes. Com efeito, urdiam-se intrincadas tramas, as quais deviam
ser compreendidas como mais vastas do que à primeira vista se pudesse supor. Casar-se e
separar-se significava vicejar posturas e significados, tanto para a Igreja quanto para o Estado.
Reafirme-se que o catolicismo possuía o desejo de construir argumentos capazes de fazer com
que o maior número possível de relações continuasse a orbitar diante do seu modelo e lutava
por valores que legitimassem e regulamentassem normas e papéis familiares que ora eram
colocados em debate.
Pode-se observar aqui a grandeza desses jogos de força e que a Igreja Católica os
enfrentava com bastante desconforto. A separação conjugal, desde as primeiras discussões do
Código Civil, mostrou-se assunto controvertido, já que discorria ante aspectos do casamento
e da família. Mesmo o ato dissolvendo apenas a sociedade conjugal e deixando intactos os
vínculos matrimoniais, a luta perante em quais bases o desquite se assentaria foram intensas.
Por meio da Câmara dos Deputados, a Igreja Católica atuou contra a possibilidade da separação
a vínculo, não conseguindo porém deter uma parte do “mal”, embora – por ela – considerado
menor: o desquite. No entanto, é necessário enfatizar que o matrimônio e a família [no sentido
legal] permaneciam inatacáveis no início do século XX: o primeiro formava legalmente a
segunda e era percebido como indissolúvel. Neste sentido, havendo separação, outra união –
mesmo balizada em princípios afetivos – traria as marcas da ilegitimidade a pairar eternamente
sobre os membros deste novo núcleo familiar. Isto acontecia porque as alianças não poderiam
mostrar-se dissolutas ao conjunto da sociedade, uma vez que os laços sociais queriam-se bem
apertados para que não dessem lugar a interpretações dúbias.

32
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1952.

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Considerações finais: Significados de Poder

Em suma, a legislação republicana não conseguiu romper determinações seculares


em relação ao casamento e à família. De tal sorte, interpretou-se que os desacertos entre Igreja
e Estado foram-se avolumando e, ao mesmo tempo em que disputavam o gerenciamento
formal da família, convergiam às suas bases: monogâmica e higiênica. As divergências a
respeito destas temáticas davam-se no campo de como seria formado o suporte da família
monogâmica e do casamento indissolúvel, se na presença das bases religiosas ou sobre as do
poder secular republicano. Todavia, os códigos que prevaleciam naquele momento frente
às núpcias, à família e à separação não eram diferentes para o Estado e a Igreja. Entretanto
alerta-se que matrimônio e família não podem ser interpretados como espaço monolítico,
onde imperavam de modo absoluto as concepções da Igreja Católica ou as do Estado, como
se as suas aspirações fossem ouvidas e ecoadas de modo equânime no conjunto da sociedade.
Houve famílias constituídas fora dos laços matrimoniais.33
Refletir as lutas em torno do casamento e da família foram as pilastras deste ensaio.
Itere-se: lutas a respeito da secularização dos institutos, onde tanto o Estado quanto a Igreja
compreendiam serem os únicos competentes em matéria de ato solene, foi o foco que aqui
se procurou evidenciar. Com efeito, colocar em pauta de debate os paradigmas da união e da
família é desejar complicar qualquer lugar e qualquer ambiente, e isso aconteceu na cidade de
Belém das primeiras décadas do século XX. Entretanto, caro leitor, deves ser consciente de que
o verbo “complicar” também significa enriquecer em profundidade o objeto então apresentado.
É ampliar significativamente o horizonte das expressões históricas e historiográficas, enfim,
pode ser compreendido como o desejo incessante de unir elos, desejos e afãs de vidas, ou
melhor, é compreender como pessoas que fizeram movimentar duas firmes instituições
pensavam a própria maquinaria delas, ou, como elas deveriam se deslocar em sociedade.
Ora, eis a essencialidade das coisas ora apresentadas. Então, deve-se reafirmar que as lutas,
significados de poder ou mesmo escalas dele jamais se localizaram frente a mudanças do
sentido do casamento e da família, e sim a respeito de quem dominaria os desejados institutos
higiênicos e moralizantes. Assim sendo, não é demais expressar mais uma vez que as duas
lógicas que se digladiavam pelo poder lutavam em dar significados ao próprio poder, isto é, as
coisas nunca poderiam parecer soltas à sociedade que se desejava conquistar.
Todavia, versões diferentes foram dadas tanto ao casamento quanto à família. Muito
embora as interpretações aqui realizadas sobejamente tenham se concentrado no entendimento
do que viria a ser casamento e família legítimos, há a se considerar [às particularidades da
cidade de Belém] a presença de personagens sociais que pouco ou nada se preocuparam

33
A este respeito veja-se: CAMPOS, Ipojucan Dias. Para além da tradição: casamentos, famílias e relações conjugais
em Belém nas primeiras décadas do século XX (1916 / 1940). Tese apresentada no Programa de História Social da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC / SP. São Paulo: Mimeo, 2009.

LÓGICAS DE PODER: TENSÕES ENTRE ESTADO E IGREJA NA BELÉM DAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX (1916/1940) • Ipojucan Dias Campos
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com a ordem de constituição familiar entendida legítima pela Igreja Católica e o Estado, ou
seja, muitos agentes sociais preferiram forma familiar sem a presença do Estado e mesmo da
de “Deus”. Assim sendo, deve-se expor que no presente ensaio apenas tateou-se um pouco
uma aparte do todo, então, as proposições apresentadas são passivas a outros artigos, quiçá à
elaboração de uma obra a respeito e mesmo assim o assunto não se esgotaria.

Documentos

“A Palavra”. Belém, 01 de janeiro de 1917, p. 02.

“A Palavra”. Belém, 29 de novembro de 1923, p. 01.

“A Palavra”. Belém, 20 de dezembro de 1923, p. 02.

Autos de justificação de batismo e estado de solteiro de Guilhermino Augusto Fernandes e


Aurora Rodrigues de Azevedo, 1913.

BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1952.

“Capítulo VII: dos efeitos do casamento”. In: Decretos do Governo Provisório da República
dos Estados Unidos do Brasil. Primeiro fascículo de 1 a 31 de janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1890.

Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.

“Da Liga da Bôa Imprensa”. O divorcio. Belém: Secção de obras d`A Palavra, 1915.

“Folha do Norte”. Belém, 16 de setembro de 1907, p. 01.

FULGENCIO, Tito. Do desquite: theoria legal documentada – processo jurisprudencia


nacional. São Paulo: Saraiva & Companhia, 1923.

Livro I, Título XXII das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas
pelo illustrissimo, e reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, bispo do dito
Arcebispado, e do Conselho de sua Majestade: propostas, e acceitas em o Synodo Diocesano,
que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro,
1853.

Pastoral Collectiva das Provincias Eclesiasticas de S. Sebastião do Rio de Janeiro, Mariana, São
Paulo, Cuyaba e Porto Alegre. Rio de Janeiro: Typ. Martins de Araujo, 1915, p. 126.

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito de familia. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal,
1889.

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“Revista Quero”. Belém, 20 de abril de 1940, p. 05.

SOARES, Oscar de Macedo. Casamento civil: decreto nº 181 de 24 de janeiro de 1890 /


comentado e anotado. Rio de Janeiro: Garnier, 1895.

Bibliografia

AZZI, Riolando. Família, mulher e sexualidade na Igreja do Brasil (1930 / 1964). In: MARCÍLIO,
Maria Luiza. (Org.). Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil. São Paulo:
Loyola, 1993, pp. 101 / 134.

CAMPOS, Ipojucan D. Para além da tradição: casamentos, famílias e relações conjugais em


Belém nas primeiras décadas do século XX (1916 / 1940). Tese apresentada no Programa
de História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP). São Paulo:
Mimeo, 2009.

GOUDINHO, Liliane do S. C. Mulheres em ação ... (católica): Belém (1939 / 1947). Dissertação
apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC / SP). São Paulo: Mimeo,
2005.

GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916 / 1985). São Paulo:
Brasiliense, 2004.

SILVA, Maria B. N. da. O divórcio na capitania de São Paulo. In: BRUSCHINI, Maria C. &
ROSEMBERG, Fúlvia. (Orgs.). Vivência: história, sexualidade e imagens femininas. São
Paulo: Brasiliense, 1980, pp. 151 / 194.

Recebido em 28/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

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DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA:
DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ
(SEC. XVII/XVIII)

Jimmy Sudario Cabral1

Resumo: O artigo analisa o processo de historicização dos conteúdos


teológicos da tradição judaico-cristã realizados pela crítica histórica da religião
dos séculos XVII e XVIII. Compreendida como desconstrução do teológico-
politico, essa abordagem do fenômeno religioso possuiu como fundamento uma
metafisica humanista que teve como topos a historicização do núcleo fundante da
Revelação judaico-cristã. Essa dissolução/historicização de conteúdos teológicos,
dissolvidos na transitoriedade da cultura e da linguagem, provocou uma
superação do discurso religioso da tradição, reconhecendo na religião nada mais
do que um discurso acerca de mitos. Essa redução da religião a cultura, inaugura
e funda a modernidade.

Palavras-Chave: 1. Crítica da religião, 2. Humanismo, 3. Teologia Política,


4. Modernidade

Abstract: This article analyses the historicizing process of theological


contents of the Jewish-Christian tradition which was accomplished by the historic
criticism of religion in XVII and XVIII centuries. Taken as the deconstruction of
the theological political approach, this view of the religious phenomenon bears
humanistic methaphisics as a foundation that considered the historicization of
the founding core of the Jewish-Christian revelationas topos. This historicization
of theological content, embbebed in the transitory character of the language
and culture, has caused the overcoming of the religious speech of tradition,
acknowledging religion as nothing more than a mithological dicourse. This very
reduction of religion into culture launches and founds Modernity.

Keywords: 1. Religious criticism, 2. Humanism, 3. Political Theology, 4.


Modernity

Introdução

Como núcleo fundante do evento que anuncia a modernidade e proclama a existência


de uma humanidade adulta e “liberta” da religião, encontramos uma metafísica humanista2 que
foi responsável pela estruturação mental desse novo homem na modernidade. Com germes

1 Doutor em Sciences Religieuses pela Université de Strasbourg, França e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio de Janeiro – PUC/RJ. Professor Adjunto I do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Uni-
versidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, em Minas Gerais.
2 FAYE, E. Philosophie et perfection de l’homme. Paris, J.Vrin, 1998.

117
na Antiguidade, essa metafísica formou seu núcleo duro no Renascimento e encontrou na
Modernidade o apogeu e estabelecimento de seus cânones. Imerso nessa tradição, o homem
moderno encontrou seu consolo na contemplação religiosa de sua dignidade e estatura diante
da natureza e, lentamente, as marcas de um mundo religioso clássico foram sendo apagadas
por uma sécularisation/mondanisation3 – ela também religiosa – que tomou lugar nas mentes
e nos corações ocidentais, fazendo emergir uma paixão heroica por um homem que se
reconhecia cada vez mais vocacionado para a liberdade e para o conhecimento. Uma estatura
mental, elevada ao ápice de uma hibris hegeliana, forjou um mundo novo, configurado pela
engenharia mecânica de uma razão ordenadora.
A modernidade teve, sem dúvida nenhuma, uma força desconstrutiva que levou ao
esgarçamento toda metafísica clássica que oferecia sentido e viabilidade a um mundo pré-
moderno essencialmente movido pela experiência religiosa. A crítica ao que é próprio da
teologia judaico-cristã, ou seja, seu núcleo duro compreendido como revelação, teve com o
advento da crítica histórica moderna suas bases absolutamente comprometidas4. O aforismo
de Marx, tudo que é sólido se desmancha no ar, herda um topos definitivo na abordagem do
fenômeno religioso, que se caracterizou como um vasto processo de historicização da tradição
religiosa que se dissolveu na transitoriedade dos discursos e linguagens humanas, ou seja,
uma dissolução do divino que não percebe na religião nada mais do que um discurso acerca
de mitos5. Essa redução da religião à cultura – não me prendo aqui à heterogeneidade da
crítica da religião desse humanismo materialista – afirma-se como chave de compreensão
de uma metafísica humanista que, despreendendo-se do intratável da experiência religiosa,
compreendeu-a como autoprojeção humana com fins de sistematizar uma cultura filosófica
que seja capaz de absorver e assimilar de forma racional o núcleo dessa experiência, o que o
filósofo judeu Franz Rosenzweig observou acertadamente ser uma espécie de transformação
da questão religiosa em questão cultural6.

1. Humanismo e Crítica histórica – os tijolos da teologia materialista7

Como afirmou Henri Gouhier, muito se escreveu sobre o humanismo, e sua bibliografia
pode ser classificada como inumerável. Como humanistas – essa etiqueta que perpassa uma
vastidão de pensamentos desde o renascimento clássico – queremos classificar aqui aqueles
homens que antes de tudo eram amantes do grego e do latim, aos quais Montaigne reconheceu
como escritores de palavras humanas, em oposição aos teológos que ensinavam a “palavra de

3
MONOD, Jean-Claude. La querelle de la sécularisation, de Hegel à Blumenberg. Paris: J.Vrin, 2002, p. 17.
4
STRAUSS, L. Critique de la religion en Spinoza. Paris: Cerf, 1996,
5
PONDÉ, L. Do pensamento no Deserto. Ensaios de Filosofia, Teologia e Literatura. São Paulo: Edusp, 2009, p. 202.
6
PONDÉ, L. Do pensamento no Deserto. Ensaios de Filosofia, Teologia e Literatura. São Paulo: Edusp, 2009, p. 202.
7
Alusão ao segundo capítulo de ZIZEK, Slajov. Le Paralaxe, Fayard, 2008.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
118
Deus”8. Leitores apaixonados e ávidos pela antiguidade, leitores de “Lucrèce, Ovide, Horace,
plutôt que les Evangiles, Sénèque plutôt que saint Paul, Cicéron, plutôt que saint Augustin”9,
homens formados pela célebre escola do paganismo, que se embrenharam na sistematização e
proclamação de uma mística da dignidade humana, essa théologie naturelle que impregnou o
século XVII. O deslocamento e a negação da verticalidade como topos da experiência religiosa
evidenciou grande parte dos discursos humanistas desde o renascimento, caracterizando-se,
como diríamos hoje, por um antropocentrismo “qui, plus ou moins explicitement, structure
les visions humanistes du monde et de l’homme dans le monde”10. A descoberta dessa Virtu
dos antigos permitiu que o homem desse passos seguros firmados numa virtualidade natural
que se mantinha independentemente da religião revelada.
Dentro da tradição de pensamento que queremos evidenciar aqui, o conceito de
humanismo identificar-se-ia com uma “théorie philosophique qui rattache les développements
historiques de l’humanité à l’humanité elle-même, autrement dit: selon laquelle l’histoire de
l’humanité s’explique par l’homme sans recours à une puissance transcedente”11. Dentro da
tradição teológica do cristianismo, o humanismo cristão nos séculos XVI e XVII elaborou-se
a partir de um verdadeiro embate entre o pensamento de Agostinho – essa régua medidora
de ortodoxia – e o espírito do mundo, esse argumento renascentista que insiste em retirar as
marcas, ou sequelas, daquilo que, para o teólogo de Hipona, corrompeu e infectou toda a massa
de homens, diríamos, o pecado original – esse despedaçamento irremediável da natureza. O
desenvolvimento de um humanismo dentro da tradição teológica cristã, passou por essa re-
descoberta da natureza do homem e de sua dignidade, que, para essa nova tradição, não foi
completamente destruída pela queda de Adão, possuindo uma vontade não completamente
cativa capaz de fundar por si mesmo uma ordem autônoma da natureza. Essa théologie
naturelle, fruto também da descoberta do corpus aristotélico, implicou em uma verdadeira
revolução intelectual do pensamento cristão. Para Gouhier,

Il y a indiscutablement “humanisme chrétien” lorsque le christianisme


découvre un humanisme dans l’antropologie complémentaire de sa théologie,
c’est-a-dire avec un holle qui peut quelque chose par les seules forces de sa nature,
un homme dont, par conséquent, la nature reste relativement bonne malgré la
chute d’Adam, un homme qui, de ce fait, doit reconnaître une certaine continuité
dans l’histoire et recueillir les leçons de tous ceux qui ont bien usé de la raison
même sans la révelation. Cet humanisme chrétien, nous le trouvons dans l’ouvre
de saint Thomas sous sa forme la plus pure, car, là, sa justification est proprement
philosophique, non dictée ou téléguidé par une recherche d’une argumentation
apologétique qui mêle toujours au souci de la vérite celui de l’efficacité. C’est cet
humanisme de la synthèse albertino-thomiste que le futur fondateur de la religion

8
GOUHIER, H. L’Anti-humanisme au XVII siècle. Paris, J. Vrin, 1987, p. 15.
9
Ibid., p. 28.
10
Ibid., p. 82.
11
Ibid., p. 16.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
119
de l’humanité avait reconnu lorsque, dans le denier tome du Cours de philosophie
positive, il y voyait un “grand mouvement révolutionnaire”, une “grand révolution
intellectuelle”, marquant le commencement de la philosophie moderne avec, selon
le mot d’Etienne Gilson, “le premier système de vérités purement rationnelles
qu’ait engendré la philosophie occidentale”. La physique, la Métaphysique,
l’Ethique, la Politique d’Ariste ont montré aux deux maîtres dominicains ce que
peut l’esprit humain bien conduit sans le secours de la révelation. Il y a une nature
et celle-ci n’est plus seulement un système de signes qui, comme l’Ecriture mais
à sa façon, parlent de Dieu: les choses existent en elles-mêmes et doivent être
étudiées pour elles-mêmes. (…) la volonté éclairée par la raison est capable, sans
la grâce, d’atteindre son bien, ce qui est proprement la définition de la vertu; parmi
ces vertus, il y a la justice et il est permi d’envisager une cité gouvernée selon les
lois d’une politique raisonnable. Il y a donc une théologie naturelle, une morale
naturelle, une droit naturel (1987, p.33)

Esse humanismo cristão, ainda subordinado por um poder espiritual, marcou o


desenvolvimento de uma théologie naturelle que esteve presente em quase toda apologética
cristã no Ocidente. Essa descoberta da natureza, revelada pelos gregos e latinos, esteve na
base do desenvolvimento de uma metafísica humanista no Ocidente que se apresentou como
a grande instrutora do homem na história. Dentre os muitos vultos que formaram o topos
desse humanismo cristão, Erasmo de Roterdam foi um dos que frequentaram com paixão
as paisagens dos pensamentos grego e latino, absorvendo com absoluta genialidade estes
moluscos geradores de espírito crítico e de relativismo12. Entre 1516 e 1519 Erasmo publicou
sua crítica do Novo Testamento grego. Filólogo erudito, o teólogo de Rotterdan ofereceu os
primeiros ensaios de uma leitura crítica das Escrituras, dando início a uma crítica histórica
da tradição judaico-cristã, em que os textos bíblicos eram revisitados em seus originais com o
auxílio daquela que se tornou a ciência por excelência do Renascimento: a filologia. A partir
da Edição de Erasmo, a pesquisa bíblica alçou rumos para uma crítica histórica das tradições13.
Em forte oposição ao agostinianismo protestante de Lutero, Erasmo proclamou seu catecismo
humanista que reagiu ao pessimismo de tradição agostiniana, proclamando que a natureza
humana é congenitamente boa - e o é por si mesma - e inclina-se para o bem e não para o
mal. Erasmo precisa que “El perro nace para cazar, el pájaro para volar, el caballo para correr,
el buey para arar; el hombre, para amar la sabiduría y las buenas aciones”. Así puede definirse
la naturaleza del hombre: una inclinación, una propensión profundamente instintiva hacia el
bien”14.
Inspirada na virtu dos antigos, essa metafísica humanísta iniciou um processo de
superação da metafísica religiosa de tradição clássica, afirmando a dignidade do espírito
humano e cultivando com fervor religioso as letras da antiguidade greco-latina. Fruto de uma

12
FEBVRE, L. Le problème de l’incroyance au XVIe siècle. La religion de Rabelais, París, Albin Michel, 1947, p. 223.
13
CABRAL, J. S. Biblia e Teologia Politica. Rio de Janeiro: Mauad, 2009, p. 96.
14
FEBVRE, L. Le problème de l’incroyance au XVIe siècle. La religion de Rabelais, p. 221.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
120
revolução do pensamento e da tradição, o humanismo pode ser definido como um “mysticisme
de la noblesse humaine”, que esteve na base de todo pensamento moderno, um “mysticisme de
la grandeur humaine qui soutient l’homme de la Renaissance et l’humaniste”15. Citando ainda
Gouhier,

Humanisme signifie une certaine suffisance de l’homme, fût-elle relative


comme dans les humanismes chrétiens; tel serait le cas si, même pêcheur,
l’homme peut quelque chose, par les seules forces qui le font homme, raison et
volonté notamment. 2. Ce qui signifie: par les seules dorces de sa nature (…) La
suffisance que l’humanisme reconnaît est, en effet, celle de la nature. Or, à quoi
suffit-elle? Il s’agit pour la nature de se réaliser: sa suffisance signifie donc que,
dans certaines limites au moins, la nature est capable de reconnâitre et d’atteindre
son bien; autrement dit, elle implique une relative bonté de la nature. 3. Cette
nature de l’homme a ceci de particulier qu’elle se réalise dans et par une culture.
Ce n’est donc pas non plus par hasard que la notion de culture a toujours été liée
à celle d’humanisme. Concrètement, une culture n’a de sens que dans un contexte
historique déterminé. Les humanistes du XVII siècle comme ceux des deux siècles
précédents reconnaissent aux Grecs et aux Latins le privilège d’avoir bien connu
la nature de l’homme: leurs leçons représentent, encore aujourd’hui, ce qui est
vraiment fondamental dans la culture permettant à l’homme de réaliser sa nature.
(…) Suffisance, nature, culture, sont trois termes complémentaires (1987, p.27)

Suficiência, natureza e cultura são as bases que ofereceram sustentação a essa metafísica
humanista. Esse tripé alicerça toda superação da metafísica religiosa judaico-cristã, proporcionando
ao homem, na sua busca de verdade e fundamentos, que ele não mais se assujeite à crenças ou
práticas religiosas, encontrando na cultura e na razão natural o topos de discernimento da vida
e da política. A virtu pagã (grega/latina) substitui a ética judaico-cristã (Torah, Revelação), e
logo um humanismo libertino16 irá favorecer uma indiferença e um questionamento da religião
revelada, oferecendo, dessa forma, as bases materialistas da cultura no ocidente. Cultura e história
se tornam aqui o lugar onde a razão e natureza se realizam e revelam a dignidade do espírito
humano; essa natureza helênica espontânea, sabedoria e virtu socrática que não dependem de uma
ordem sobrenatural. Logo, esse humanismo poderá proclamar sua virtu materialista, se dirigindo
a “ces Dieux que l’homme a faits et qui n’ont point fait l’homme”17. Com os libertinos de séc. XVII
temos assim os primeiros fundamentos de um materialismo como crítica da religião judaico-
cristã. Refratários a todo pensamento religioso baseado na idéia de uma revelação, apresentando
a natureza como divindade soberana e guia benevolente, esses livres pensadores representam
uma torrente que ameaçou submergir o edifício religioso da cristandade:

15
RENAUDET, A. Au tour d’une définition de l’humanisme, Droz, 1945 p 2 apud GOUHIER, H. L’Anti-humanisme au
XVII siècle., p. 17.
16
Para isso ver, GOUHIER, H. L’Anti-humanisme au XVII siècle; MINOIS, Georges. Histoire de l’Atheisme. Paris:
Fayard, 1998; BAYLE, P. Dictionnaire historique et critique, Basle: Brandmuller, 1741.
17
La Mort d’Agrippinne, 1653, réédition 1654, Acte II, scène IV, extraits dans ADAM, Les libertins au XVII..., p.186
apud GOUHIER, H. L’Anti-humanisme au XVII siècle, p. 27.

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121
Les libertins de la seconde moitié du XVII siécle ont en fait deux maîtres,
Epicure et Lucrèce, qu’ils admirent à travers Gassendi. Il est remarcable que les
principaux propagateurs de ce renouveau épicurien, après le chanoine de Digne,
ont été des prêtres. Dès 1646, l’abbé Charles Cotin chante les louanges d’Epicure
dans sa Théoclée ou la Vrai Philosophie des principes du monde, tandis qu’en 1650
l’abbé Marolles propose une traduction du De Natura rerum de Lucrèce, en prose,
avec des notes louangeuses mais prudentes sur l’éternité des atomes. En 1669, le
franciscain Le Grand, dans son Epicure spirituel, fait du philosophe grec le modèle
de la vertu puritaine imité en cela par le pasteur calviniste Du Rondel, dans sa Vie
d’Epicure de 1679. En 1685, Jacques Parrain, baron des Coutures, produit
une nouvelle traduction de Lucrèce, en recourant à la fausse candeur: tout en
approuvant la physique du poète latin, il déclare que la simple foi chrétienne
suffit à rendre caducs le plus beaux systèmes matérialistes. Pour la forme, il
laisse subsister un Dieu face à un univers matérial autosuffisant et parfaitement
organisé, fonctionnant sans aucune intervention extérieure.18

O século XVII ofereceu as bases da crítica histórica e materialista da religião. O núcleo


desta crítica está na superação da idéia de uma verdade revelada, um colocar em causa dos
fundamentos da religião judaico-cristã a partir de uma crítica histórica das escrituras. A redução
materialista desloca assim a verdade da revelação para a verdade da natureza, identificando,
dessa forma, a crença dos modernos na suficiência da razão e na capacidade do homem de
encontrar sentido em si mesmo sem o socorro externo de uma revelação.
O processo moderno de dissolução da metafísica religiosa como atividade crítica e
histórica encontra na figura do filósofo judeu Baruch Espinosa (século XVII) uma expressão
significativa. Esse “franc athée”, segundo críticos de sua época, “qui ne croit point d’autre Dieu
que la nature”19, apresenta-se como um dos principais desconstrutores da metafísica religiosa
judaico-cristã. Sua identificação do núcleo fundante da revelação judaica – A Torah – como
construto histórico-cultural do povo judeu - teve como consequência imediata a identificação
de categorias e conceitos como Deus e Revelação a uma determinada ideologia religiosa que se
forjou no seio da cultura – no caso da Torah – do judaísmo antigo. Como núcleo estruturante
dessa plataforma crítica está a identificação do discurso religioso como ideologia, introduzindo
assim uma espécie de crítica teológico-política ao establishment religioso. Essa historicização
das tradições se revela como um núcleo desconstrutivo moderno que tem como alvo “toute
la tradition des écritures et aux institutions théologiques-politiques du pouvoir”20. Margel
captou bem essa essência da crítica moderna ao teológico-político, como resultado de uma
falsificação do sentido mesmo das escrituras, identificando o conceito próprio de revelação e
escrituras como originário de uma ideologia religiosa cultural:

18
MINOIS, Georges. Op. Cit., p. 224.
19
Ibid., p. 235.
20
MARGEL, Serge. Le silence des prophètes. La falsification des écritures et le destin de la modernité. Galilée, 2006, p.
24.

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D’ailleurs, un des grands événements critiques de la modernité serait
d’avoir reconstitué au coeur des Ecritures une veritable archéologie de la
falsification textuelle. Entre sa révélation et sa rédaction, l’Ecriture est falsifiée,
tronquée, biaisée par sa propre tradition. Son text est construit par différents
systèmes de deplacement, qui tendent à effacer des situations de crise ou
à les dissimuler en idéologies religieuses, en pouvoirs théologiques et politiques.
Comme l’a montré Spinoza justement, l’Ecriture, et en particuler le Pentateuque,
n’a pas été redigée par Moïse au temps de l’exil et de la destruction du Temple. Pour
Spinoza comme pour Freud, cette falsification n’a servi qu’au pouvoir des garants
de l’Ecriture. Un pouvoir de tradition, qui passe toujours par des redressements de
crise, donc par tout un processus d’identification symbolique et de transformation
textuelle dont il faudra analyser les différents procédés discursifs, rhétoriques et
poétiques. Il s’agit certes d’un pouvoir idéologique, théologique et politique, mais
aussi d’un pouvoir psychologique qui s’empare des représentations mentales et
imaginaires, des croyances collectives et individuelles, pour dominer le peuple
(MARGEL: 2006, p.24)

A superação de conteúdos e conceitos heteronômicos – Revelação/Torah/ Deus –


identificando-os a um processo de desenvolvimento histórico, a transitoriedade da cultura, ao
mito, demonstra o processo de racionalização dos conteúdos religiosos da tradição judaico-
cristã realizado pela modernidade. Esse processo antroponômico tem em sua base uma
sublevação política que funda uma nova ordem que possui o homem como medida. Esse
completo deslocamento de autoridade tem seus lastros fincados na consciência filosófica de
um ideal humanista que, a partir do século XVI-XVII, se estende por todo o Ocidente cristão.
Essa redução inaugura e funda a modernidade. Esse historicismo definiu toda abordagem
moderna da tradição judaico-cristã, fundando uma espécie de racionalização do conteúdo
religioso, dissolvendo-o numa filosofia religiosa que desloca a essência do discurso religioso
de toda autoridade revelada ou transcendente para a cultura. Identificada a um absoluto
antroponomismo que desde o renascimento descobriu na Grécia seus cânones teológicos, a
modernidade fundou-se numa metafísica humanista que, abdicando-se de toda positividade
teológica, transformou a teologia num arrazoado de discursos éticos e morais. A religião
das Lumiéres livrou-se dessa forma da pretensão de qualquer conhecimento sobrenatural, e
procurou elaborar uma teologia natural que desvendasse a natureza real do homem, distante
de qualquer revelação ou religião positiva, orientando-se por uma religião natural-racional
que guiaria o homem pelos caminhos da ordem e da justiça, o evangelho de Rousseau21. Essa
naturalização da teologia, como efeito de uma crítica teológico-política que desconstrói as bases
de uma autoridade religiosa das escrituras (Espinosa) e uma eleição do pensamento grego22

21
BOUGANIM, Ami. Leo Strauss. Athènes et Jérusalem, Ed. Nadir, 1997, p.23.
22
Partimos aqui da distinção fundamental entre Jerusalém e Atenas, feita por Leo Strauss: “Dans la pensée grecque, la
théologie converge d’une certaine manière avec la cosmologie, voire se confond avec elle, puisqu’elles portent, l’une et
l’autre, sur les corps célestes. La doctrine la plus séduisante, du moins celle qui a requis l’attention des penseurs juifs
mediévaux, présume d’un premier moteur qui se meut lui-même et commande le mouvement général de l’univers:
‘Donc, du mouvement qui est à la fois le principe de tous les autres, et le premier à se produire tant dans les choses qui

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como fonte de antropologização da teologia caracterizou toda abordagem da religião pelos
pensadores da modernidade. A saída do “obscurantismo” heterônomo da religião judaico-
cristã realizada pelos modernos caracterizou-se por uma tentativa humanista de superação
do “mito”, entendido como fundamento da tradição e do teológico-político. Essa libertação do
pensamento, uma espécie de propedêutica filosófica espinosiana que abre caminho para a livre
reflexão como ciência emancipada23, inaugura-se como questionamento da revelação que, por
seu caráter heteronômico, contradiz ela mesma a confiança do homem no caráter suficiente e
esclarecedor da razão.

Le premier principe de Spinoza est: “Je me repose absolutament sur


ce que l’entendement me fait percevoir et ne soupçonne pas qu’il me puisse
tromper” (Letre 21); en d’autres termes, il fait entièrement confiance en ce qu’il
saisit par l’intelligence. Cette confiance est “principe premier”, condition de tout
philosopher, elle est antérieure à toute arguentation déterminée. Il faut donc, avant
que la philosophie puisse entrer en action, que la croyance en la révélation, qui
met en question la confiance en soi de la raison, soit elle-même mise en question24

A crítica de Espinosa ao Pentateuco traduz esse sintoma de historicização e


questionamento da establishment religioso que compreende a narrativa fundante da tradição,
antes recebida como revelação, como um mito, e da forma de Freud em seu Moisés e o
Monoteísmo25 (Freud, 1990), desloca a autoridade do dado revelado colocando-o dentro
da transitoriedade banal das coisas humanas. Em sua constituição, a crítica da religião na
modernidade firma-se como desconstrução de toda arquitetura teológico-política do Ocidente,
fundada na autoridade da tradição judaico-cristã, afirmando a suficiência da razão como lugar
privilegiado e capaz de fundar valor e dirigir a vida. A crítica espinosana desvenda assim a
lógica do mito, que, privando os homens de paixão e imaginação, sacrifica-os aos desejos de
glória de reis e à vontade de potência de padres que “tyrannisent l’esprit des simples, en leur
présentant comme des oracles éternels un monde d’idées fausses, faisant passer leurs fictions
pour des témoignages de Dieu (SPINOZA: 2005, p.46). Essa historicização e crítica da religião
espinosana funda uma antropologia religiosa que compreende a religião como um produto

sont en repos que dans celles qui son mues, à savoir le mouvement qui se meut lui-même, de celui-là nous affirmerons
qu’il est, de tous les changements, le plus ancien et celui qui a le plus de dignité, tandis que celui sans lequel le passage
à un autre état provient d’une chose distincte et qui met en mouvement des choses qui se distinguent de lui, nous le
mettons à la premiere place’. (Platon, Les Lois X, 856b.) Aristote reprend cette thèse d’ ‘une âme du monde automatrice’
pour enclecher et perpétuer le mouvement éternel (générateur du temps): ‘Il doit y avoir un extrême qui meut sans
être mû, écrit-il, être éternel, substance et acte pur’. ( Aristote, Métaphysique XII, 7, 1072a 25.) Aristote, toute comme
Platon, incline à assimiler le Premier Moteur au Bien qui représente à la fois la cause finale de l’Univers et sa cause ef-
ficiente: ‘Le premier moteur est un être nécessaire et, en tant qui nécessaire, il est le Bien”. (Métaphysique XII, 7, 1072b
10). BOUGANIM, Ami. Leo Strauss. Athènes et Jérusalem, p.48.
23
STRAUSS, L. Critique de la religion en Spinoza, p.121.
24
Ibid, p.122.
25
FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (1939[1934-1938]). In:______. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1990.

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da vida e das paixões humanas que projetam formas de superstições, experiências parciais e
transitórias que coexistem, onde cada uma pretende ser portadora de uma verdade exclusiva.
Essa compreensão antropológica da religião compreende assim a história da teocracia judaico-
cristã no Ocidente como uma forma de superstição que foi declarada como religião oficial,
estabelecendo-se a partir de um poder político regulador que reprime severamente todas as
outras superstições pela ação violenta do Estado26.
A crítica histórica e o humanismo serão as bases mais sólidas da crítica moderna da
religião; essa encontrara no desenvolvimento de uma metafísica humanista os fundamentos
sobre os quais se erguera o projeto moderno da Aufklärung. Com Espinosa, inaugura-se a
crítica histórica do Pentateuco e sua abordagem historicizante das escrituras procura assimilar
seu conteúdo a partir das luzes naturais da razão. Assim, o filósofo coloca aquilo que foi
compreendido como revelação, como um objeto histórico que pode ser assimilado pela razão,
ultilizando, em sua exegese, os mesmos métodos utilizados pela ciência natural. O método,

ne diffère en rien de celle qu’on suit dans l’interprétation de la Nature mais


s’accorde en tout avec elle. De même en effet que la Méthode dans l’interprétation
de la nature consiste essentiellement à considérer d’abord la Nature en historien
et, après avoir ainsi réuni desdonnées certaines, à en conclure les définitions
des choses naturelles, de même, pour interpréter l’Ecriture, il est nécessaire d’en
acquérir une exacte connaisssance historique et une fois en possession de cette
connaissance, c’est-à-dire de données et de principes certains, on peut en conclure
par voie de légitime conséquence la oensée des auteurs de l’Ecriture27.

A eleição do pensamento grego constituiu assim o pano de fundo do desenvolvimento


histórico-teológico dessa nova tradição, o humanismo moderno, e a naturalização do eixo teológico
constituirão o dado fundamental que esteve na base do construto metafísico da modernidade. A
crítica à “vontade de potência dos padres”, revela o caráter de emancipação da filosofia religiosa
de Espinosa, que antecipa a lógica kantiana de uma “religião nos limites da razão” e inaugura uma
abordagem do fenômeno religioso que denuncia a positividade da religião que se funda sobre
o mito (Revelação) e se degenera, inevitavelmente, em uma superstição funesta. Em Espinosa,
temos já o claro esboço de uma metafísica humanista que fundou as bases de uma religião
natural como consequência e desdobramento do caráter emancipador da ciência e da crítica
histórica. Apresentando-se como sintoma de superação de velhos conceitos que concebiam o mito
como o fundamento heterônomo e ordenador da vida – tônus da dinâmica religiosa hebraica
que proclama a verticalidade da revelação e a experimenta como obediência da lei revelada de
Deus – a metafísica humanista proclama a emancipação do mito – revelação, lei, Torah – que é
radicalmente superado por uma autodeterminação soberana de um homem que se afirma a partir
de sua própria razão e natureza. O longo parágrafo de Leo Strauss merece ser lido.

26
BROWN, Peter. La vie de saint Augustin. Paris, Ed. du Seuil, 1971.
27
SPINOZA, B. Traité Théologico-Politique, p.63.

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La saisie du caractère “vulgare” de l’Ecriture, dans sa forme et dans
son contenu, la compréhension de sa non-scientificité, était en même temps la
conscience de la supériorité de l’esprit scientifique au regard de l’Ecriture (…)
N’est-ce pas cependant la scientificité en tant que telle qui si trouve mise en
question par l’Ecriture? L’Ecriture ne révèle-t-elle pas une autre raison de vivre,
une tâche tout autre que la science, à savoir l’obéissance à la loi révélée de Dieu?
Mais l’esprit que est persuadé qu’il connaît clairement le but de la vie et qu’il
dispose en toute indépendance des voies qui y mènent, cet esprit ne prête aucun
intérêt à quelque autorité directrice que ce soit et, partant, à l’Ecriture non plus.
Puisque la perfection de l’homme consiste por lui dans la liberté et la liberté
dans une autodétermination souveraine, il rejette comme une forme de servitude
l’attitude prescrite par l’Ecriture. Il méprise le principe moral propre à l’Ecriture.
Indifférent, non concerné, non troublé, mais sûr de son esprit, tel Spinoza se tient
face à l’Ecriture (…). Ce qu’il peut dire de mieux à la louange de l’Ecriture prise dans
sa totalité, c’est qu’elle n’enseigne rien d’autre, en rapport aux choses de la morale,
que ce que la lumière naturalle, qui est commune à toutes les hommens, enseigne
par elle-même (…). La conscience historique de Spinoza est conditionnée par
deux événements, qui sont indépendants l’un de l’autre, ou du moins dont le lien
est encore loin d’être clair: en premier lieu la constituition de la science nouvelle,
en second lieu la Réforme. La disparité des points de vue consécutifs à ces
deyx faits se montre dans l’application à l’Ecriture de la catégorie “ancien”, prise en
deux sens contraires et qui sont fonction, respectivement, de chacun de ces deux
points de vue: 1. – “les préjuges d’un ancien peuple” par opposition à la manière
de penser contemporaine qui reposent sur une intelligence rationnelle et une
expérience méthodique; 2. – “l’ancienne religion”, par opposition à la déadence
des Eglises d’aujourd’hui et à leur chute dans un culte purement extérieur, dans la
crédulité et les préjuges, dans une hostilité haineuse pour tous ceux qui pensent
autrement. Correspondent à ces deux significations opposées d’ “ancien”, les deux
significations que revêt chez Spinoza le mot superstition. “Superstition” veut dire
quelque chose de différent selon qu’on l’entend par opposition à la philosophie ou
par opposition à la religion. Dans le premier cas, la “superstition” est le produit
originaire de l’imagination et de la passion, d’une vie qui vient, avant la conquête
de la liberté intellectuelle et dont nous fera sortir le travail de la raison. Ainsi
entedue, la superstition «enseigne aux hommes à mépriser la raison et la nature»,
et à n’admirer et n’honorer que ce qui est en contradiction avec elles (TTP, p.138).
Dans le second cas, la «superstition» est la forme déchue de la religion originaire,
ancienne et vraie, forme suscitée par la volonté de puissance des prêtres. Elle se
révèle comme telle dans le caractère extérieur de la piété dans l’introduction de
cérémonies et de mystères toujours nouveaux (TTP, Préface p.23; TTP, p.138,
304)28.

Os fundamentos de uma religião natural que tem seu núcleo duro firmado na razão
como lugar de discernimento da verdade, firmada numa natureza humana suficiente que
tem em si mesma as luzes naturais capazes de estruturar a vida e a política, prescidem
inevitavelmente de qualquer fé revelada que se proclame como autoridade diretriz. “Razão”
e “Natureza” são aqui conceitos que elegem novo topos a partir de onde a vida e a política
podem ser discernidas, independentemente de quaisquer intransigências heteronômicas

28
STRAUSS, Critique de la religion en Spinoza., p. 307, 308.

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advindas de superstições religiosas que constitutivamente negam a liberdade intelectual e o
caráter emancipado da razão.

As lumieres religiosas e a Aufklärung como naturalização e culturalização


da tradição religiosa

O progresso da ciência, a evolução da cultura, acompanhados da revolução filosófica


que foi o racionalismo moderno, solidificaram as bases de uma metafísica humanista sobre
a qual se ergueu a tradição da Aufklärung. Natureza, razão e cultura, essa trindade moderna,
ofereceram à tradição das luzes uma base sólida a partir da qual se construiu um mundo
erguido sobre a imanência. Os quadros mentais racionalistas que abrem a expansão do
século das luzes (XVIII) estão estreitamente vinculados ao renascimento e a antiguidade
humanista, prosseguindo e aprofundando em quantidade e em qualidade a tradição
humanista em detrimento da tradição religiosa29. Opondo de forma estanque natureza e
revelação, fé e conhecimento, o humanismo moderno destronou impiedosamente o crer pelo
saber, desassociando a ordem propriamente cognitiva das atitudes humanas das verdades
da religião. Associando a revelação à banalidade da vontade de poder dos padres, ou a uma
determinada expressão da tradição de um povo culturalmente determinada, o núcleo forte
da crítica da religião na modernidade reduziu e absorveu a questão religiosa como um dado
cultural que deve ser absorvido e criticado por uma razão esclarecida. A historicização da
tradição religiosa (Spinozismo), a perda do caráter normativo da revelação e a consequente
relativização do dogma que foi, por sua vez, dessacralizado, fez com que a noção de verdade
perdesse inevitavelmente seu caráter de imutabilidade, originalmente fixada pelas normas da
religião. O antropomonismo dos modernos, sedimentado por uma metafísica materialista que
legitimou o caráter de suficiência da imanência, proporcionou uma confiança inquebrantável
do homem em si mesmo30, desviando seu olhar do céu para fixá-lo irresistivelmente na terra
dos homens. Essa virada antropológica potencializada por uma consciência histórica, que
compreendeu a experiência religiosa clássica como projeções imaginativas de homens do
passado, colocou a linguagem religiosa da revelação dentro da balbúrdia das coisas humanas,
assumindo plenamente um pensamento “d’évacuation des mythologies et des préjuges”31.

La vague de désintégration qui déferlait en premier lieu sur la religion,


était propulsée par un formidable mouvement de reconstruction de la pensée
et l’action, implicant avec la révision des méthodes l’intronisation de valeurs
nouvelles à partir desquelles on a pu parler de la construction d’une “internationale

29
MINARY, Daniel. Le problème de l’athéisme en Allemagne à la fin du « siécle des lumières ». Paris: Annales Littérai-
res de l’Université de Besançon, 506, 1993, p.59.
30
BARTH, Karl. La théologie evangelique au XIX siécle. Labor et Fides, Gêneve, 1957, p.14.
31
MINARY, Daniel. Le problème de l’athéisme en Allemagne à la fin du « siécle des lumières », p..65.

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de l’honnête homme” dans l’Europe des Lumières. Pour ce qui concerne notre
question, il apparaît que ces valeurs, dès lors qu’elles penchaient vers leur prope
suffisance, étaient en mesure le cas échéant de mettre la religion, voire Dieu, en
situation de superfluité. D’inspiration bourgeoise par l’idéal de sécularisation qui
les animait, ces valeurs se distinguaient par leur signification oppositionnelle, par
leur vocation immédiate à affranchir la pensée du despotisme féodal et religieux
– tant sous le rapport de l’homme que sous le rapport du monde. Elles obéissaient
à un réexamen du statut et de la destination de l’homme en corrélation avec
un mode de vie fondé avant tout sur la conscience profane de l’efficacité en ce
monde32.

Essa dessacralização dos valores teve também como consequência a superação do


teológico-político que caracterizou as relações entre trono e altar no medievo e legitimou o
vasto poder religioso presente no conjunto constituído pela Igreja, Estado e a Universidade,
estrutura de poder que determinou a vida política e as consciências na Europa durante mais de
um milênio. Fundada sobre a positividade da natureza humana, a crítica da religião das lumieres
promoveu um processo de dessacralização da religião judaico-cristã, uma desconstrução dos
fundamentos teológico-políticos que sustentavam as ortodoxias católicas e protestantes. A
mensagem antropocêntrica do racionalismo ascendente da Aufklärung se inscreveu como
oposição radical à versão feudal da religião cristã. Desde os seus inícios, a crítica da religião na
modernidade possui uma raiz política, como tentativa obstinada de dessacralizar essa ilusão que,
para os homens da Aufklärung, não esteve a serviço da emancipação do homem, ao contrário,
legitimava um despotismo que tem em sua raiz um “Deus que é um sultão, um désposta e um
tirano”33. Desmistificar essa ilusão é desconstruir as bases de todo estado reacionário. Essa
revolta insuflada da consciência profana contra a religião institucionalizada caracterizou a
virada antropocêntrica e a fundação de novos valores na modernidade, colocando abaixo todas
as tradições fundadas no poder religioso em nome de valores gestados dentro de uma tradição
humanista que tinha o homem como sua medida e fundamento. A eliminação de categorias
como revelação, sobrenatural, milagres (já questionados por Espinosa) apresenta-se como um
a priori hermenêutico de um racionalismo que ocupou um lugar privilegiado na maioria das
consciências emancipadas da Europa do século XVIII. Os homens da Aufklärung, lançados
numa busca incessante da natureza humana e da natureza das coisas, reconheciam no mundo
empírico o seu verdadeiro campo de ação, renunciando a busca de um além terreno que era
fruto de uma consciência religiosa carregada de um pessimismo acerca da imanência. A aposta
na natureza e a redução materialista caracterizou dessa forma as mentalidades, fazendo com
que as atividades humanas não fossem mais absorvidas por uma preocupação religiosa, mas
impregnadas da dinâmica da vida e de como torná-la melhor, descobrindo na razão e na ciência
a força norteadora do espírito humano. Em um mundo emancipado da religião, o que importa

32
Ibid, p.66.
33
NEUSCH, Marcel. Aux sources de l’athéisme contemporain. Le Centurion, 1993, p. 21.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
128
é viver, e da melhor forma possível, «étendre la sphère des connaissances, sans limites et sans
s’inquiéter d’un au-delà problématique: cette philosophie relègue à l’arrière-plan la mystique du
salut»34. A ascensão de um homem burguês, cultivado pelos diversissements de uma sociedade
que se auto-reconhece como promotora dos mais altos ideais de civilização, tradutora da virtu
dos antigos e amantes dos clássicos, não consegue reconhecer nos ideais da tradição religiosa
nada mais do que uma ilusão de espíritos baixos. Para esse novo homem, “la tâche à remplir,
c’est justement de cultiver nos intérêts tout humains, de nous aménager une société commode et
prospère, et d’être heureux le plus possible par le commerce et l’industrie. Qu’est-ce que ce Dieu
qui nous commande d’oublier tout cela? Un divertissement”35, afirmou Voltaire.

Que l’homme cesse donc de chercher hors du monde qu’il habite des êtres
qui lui procurent un bonheur que la nature lui refuse: qu’il étudie cette nature,
qu’il apprenne ses lois, qu’il contemple son énergie et la façon immuable dont elle
agit; qu’il se applique ses découvertes à sa propre félicité et qu’il se soumette en
silence à des lois auxquelles rien ne peut le soustraire36.

Essa exclusão antroponômica do sobrenatural teve na crítica histórica da religião seu


eixo fundamental. Sua crítica radical do monoteísmo, a desconstrução das bases das escrituras
e o amplo processo de naturalização e historicização do núcleo da religião judaico-cristã
procurou sobretudo demonstrar que o cristianismo era um fenômeno humano, demasiado
humano, profundamente enraizado dentro da história, descaracterizando assim qualquer
papel do sobrenatural.
A Aufklärung na Alemanha, essa pátria religiosa que gestou os mais impiedosos
iconoclastas, desempenhou um papel fundamental na crítica da religião na Europa. Um aspecto
importante a ser sublinhado foi a recepção do pensamento de Espinosa, que determinou com
mais força a vocação religiosa panteísta e materialista do espírito nórdico37. Caracterizando-se
pela fronteira tênue de uma teologia natural que procurou harmonizar razão e revelação, um
equilíbrio entre “l’Aufklärung ascendante et la tradition religieuse s’établit au cours de la première
moitié du dix-huitième siècle sous l’effet des vertus conciliatrices de la penseé de G.W. LEIBNIZ
(1646-1716) et surtout de Ch. WOLLF (1679-1754)”38. Essa adequação à causa racionalista foi a
palavra de ordem do pensamento religioso na Europa do século XVIII, promovendo uma forte
redução da religião aos critérios de uma razão esclarecida, tendo como consequências práticas –
no caso da Alemanha – uma profunda renovação do sentimento religioso que evoluiu entre uma
naturalização da ideia de Deus a uma divinização da natureza39.

34
MINARY, Daniel. Le problème de l’athéisme en Allemagne à la fin du « siécle des lumières », p. 69.
35
NEUSCH, Marcel. Aux sources de l’athéisme contemporain., p. 23.
36
Ibid, p. 21.
37
LUBAC, Henri de. Ouvres complètes, IV. Paris: Cerf, 2006, p.336.
38
MINARY, Daniel. Le problème de l’athéisme en Allemagne à la fin du « siécle des lumières », p.89.
39
Ibid, p.73.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
129
La religion fut essentiellement réactualiséé selon les critères du
rationalisme, et ce, avec de nombreuses variantes dont le déisme apparut déjà
comme un aboutissement audacieux. Il permettait en effet de satisfaire dans
une assez large mesure aux aspirations rationalistes du point de vue de la
religion. Comme le dit F. VENTURI à propos de l’Angleterre, le déisme était un
“mythe religieux adapté à l’époque newtonienne, à l’âge des grands découvertes
scientifiques, mathématiques, physiques, à l’affirmation dans tous les domaines
de la loi naturelle. A sa façon donc, il exprimait l’anxiété (et aussi l’apaisement)
d’une époque où la science dominait les esprits des hommes. Le déisme finit
par être en Allemagne aussi le compromis marquant entre l’idée de Dieu et
l’éclaircissement des esprits, et il eut sa place dans l’internationale déiste de cette
époque. S’il donna lieu parfois à la confrotation agressive d’unecer taine
raison non seulement avec la Révélation mais même avec toute théologie, il se
montra modéré dans l’ensemble et l’Allemand put ainsi se rendre complice sans
trop de craite de la mort d’un Dieu, alors qu’il fut plus réticent à proclamer
la mort de Dieu. L’Aufklärung mit ainsi le christianisme en position de faiblesse, le
répudia même pour rejeter le principe de la transcendace et reconnaître à la
rigueur le Dieu immanent du panthéisme ou plus explicitament l’inexistence de
Dieu40.

Sabe-se que o espírito crítico do protestantismo na Alemanha foi uma das principais
alavancas da crítica histórica da religião da Europa. Essa segunda reforma, de caráter
profundamente racionalista, experimentada pelo protestantismo em solo alemão ofereceu
um processo de dessacralização do cristianismo que marcou todo pensamento filosófico e
religioso da Europa até o século XX. Forçosamente comprometido com o espírito crítico da
Aufklärung, essa tradição moderna do cristianismo avaliara com crivo crítico toda tradição do
cristianismo histórico. Em oposição à ortodoxia protestante, esse protestantismo apresentou
três caracteristicas fundamentais: a primazia da moral sobre a doutrina; o tratamento histórico
crítico das escrituras; a contestação do dogma41. Podendo ser considerado quase como um
spinozismo com rosto cristão, essa tradição de pensadores alemães tem como inspiração uma
filosofia humanista que desestabiliza o caráter normativo das escrituras, retirando dela todo
seu caráter transcendente, não reconhecendo – como fruto dessa nova consciência histórica –
nada que não esteja impregnado pela perecividade e historicidade das coisas humanas.
Os anseios por uma religião natural e a adaptação da religião cristã ao racionalismo
desencadeou uma verdadeira implosão do núcleo proposicional do judeo-cristianismo. Os
esforços de uma teologia natural de carater apologético que buscou manter um equilíbrio entre
razão e revelação não conseguiram conter a crítica historicizante de todo núcleo proposicional
revelado. Importante perceber o acentuado distanciamento daquilo que é próprio do judaísmo,
como marca do encontro com os gregos e sua religion de la raison42, reconhecendo no cristianismo
a possibilidade de superação da verticalidade, dado sua natural vocação para a secularização
40
Ibid, p.86.
41
Ibid, p.101.
42
GAUCHET, Marcel. Le désenchantement du monde. Gallimard, 1985, p.282.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
130
e antropologização dos conteúdos de sua tradição. Essa dessacralização da religião revelada
marcou a crítica religiosa radical iniciada pelas lumieres franco-anglaises, promovendo um
movimento aparentemente anti-téologico que buscou fundar as bases do cristianismo dentro
de uma ética secularizada e uma política progressista43. A crítica da revelação e do seu caráter
sobrenatural, considerado por muitos pensadores como “uma relíquia de superstição judia”44,
possuiu como marca uma naturalização do cristianismo e seu consequente rompimento com
o Judaísmo – essa “plus grossière des religions”, para Schopenhauer, que “rebaixou a natureza
a algo exterior e a privou do divino”, como escreveu Hegel.45
Essa ruptura com a tradição judaica clássica marcou os fundamentos de uma
culturalização e naturalização da religião pela Aufklärung alemã que dissolveu o núcleo
revelado da religião na cultura, compreendendo esta como um processo de realização do que é
próprio do cristianismo. Essa “mondanisation”, est comprise comme “incarnation”, dans l’ordre
temporel-politique, de principes jusqu’alors affirmés sous une forme religieuse (chrétienne),
c’est-à-dire abstraite”46. A aposta na possibilidade de uma religião natural e suficientemente
independente de conteúdos sobrenaturais, um espinosismo de rosto cristão, fará frente contra
todo esse “mosaismo” que produziu o divórcio entre espírito e natureza e impediu o homem
de conduzir a si mesmo sem o socorro exterior de uma revelação.
O combate entre razão e revelação, tomado forma como historicização das religiões
positivas, marcou toda a crítica da religião do século XVIII e revelou o núcleo estruturante da
abordagem da religião pelos homens da Aufklärung: a existência de uma metafísica humanista
que procurou sacralizar a natureza como forma de superar uma política e uma moral fundadas
em conteúdos sobrenaturais, aproximando-se assim de uma forma de panteísmo espinosiano
de rosto cristão. Dessa forma, a crítica da religião do século XVIII, fundada na historicização de
conteúdos considerados revelados, agora enraizados dentro do seu contexto histórico, ou seja,
dentro da banalidade perecível das coisas humanas, reduziu o núcleo da tradição, compreendido
como revelação, em cultura, fazendo do signo “Deus” um construto cultural sem qualquer
dimensão de verticalidade, compreendendo, dessa forma, o específico da experiência religiosa
como linguagem contingente de um homem religioso, incapaz de emitir qualquer discurso
fundado na verticalidade de uma lei sobrenatural. Essa crítica da religião vai ser o terreno a
partir do qual se moverá toda a abordagem do fenômeno religioso realizado pelos cavaleiros da
modernidade dos séculos XIX e XX47, demonstrando a força impiedosa e iconoclasta da crítica
histórica da religião, que fez de cada um de nós homens e mulheres modernos.

43
MONOD, Jean-Claude. Infinité, immortalité, secularisation: contitution et retraduction du contenu de la religion chré-
tienne chez Feuerbach, In. SABOT (éd.). Héritages de Feuerbach. Press Universitaires du Septentrion, 2008, p.146.
44
MINARY, Daniel. Le problème de l’athéisme en Allemagne à la fin du « siécle des lumières », p.116.
45
LUBAC, Henri de. Ouvres complètes, p. 339.
46
MONOD, Jean-Claude. La querelle de la sécularisation, de Hegel à Blumenberg, p. 30.
47
FOUCAULT, Michel. « Nietzsche, Freud, Marx », In Dits et écrits, Gallimard, 1994.

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
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STRAUSS, L. La critique de la religion chez Hobbes, PUF, 2005.

ZIZEK, Slajov. Le Paralaxe, Fayard, 2008.

Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

DA REDUCÃO CRÍTICA DA RELIGIÃO COMO CULTURA: DO HUMANISMO A AUFKLÄRUNG ALEMÃ (SEC. XVII/XVIII) • Jimmy Sudario Cabral
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TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE
PRODUÇÕES ATUAIS

Josias da Costa Júnior1

Resumo: No processo de autocrítica da teologia cristã que reconheceu


sua associação com a opressão patriarcal e com um monoteísmo rígido que
resultou em transcendentalismo, revelou-se também sua postura antiecológica.
Hoje a ecologia é um desafio para a teologia, pois é um convite para que o
conhecimento seja arrumado de modo diferente. Assim, o objetivo desta
contribuição é examinar a relação entre teologia e ecologia através dos pensadores
do processo, das ecofeministas e do teólogo alemão Jürgen Moltmann.

Palavras-chave: Teologia, ecologia, Jürgen Moltmann, Teologia do


Processo, ecofeminismo.

Abstract: The process of self-examination Christin theology has


through, which involved accepting its association with patriarchal oppression
and with a rigid monotheism that resulted in transcendentalism, also laid bare
its anti-ecological stance. Today ecology is a challenge to theology, since it is an
invitation for knowledge to be arranged in a different manner. Thus, the propose
of this contribution is to examine the relationship between theology and ecology
through comparing the approaches of process thinkers and eco-feminists and the
German theologian Jürgen Moltmann.

Key-word: Theology, ecology, Jürgen Moltmann, Process Theology,


ecofeminism.

Considerações iniciais

É inegável que o tema ecológico não está restrito aos círculos de debates dos
ambientalistas, mas faz parte das preocupações de outras áreas do saber, como as Ciências da
Religião. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é examinar a relação entre teologia e ecologia
em variadas produções teológicas. Com isso, farei uma breve leitura da teologia do processo,
do ecofeminismo e da teologia de Jürgem Moltmann.
Fazer teologia hoje significa reconhecer que tudo está relacionado reciprocamente. A
nova concepção da cosmologia, da física, da ecologia contempla um universo como tecido
dinâmico de acontecimentos que se interdependem; não existe uma propriedade fundamental

1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará; josiasdacosta@
gmail.com.

134
deste tecido, mas todas são derivadas das propriedades das outras partes. Com isso, novos
nomes e conceitos devem ajudar a teologia a aproximar-se da realidade.2

1. Relação entre teologia e ecologia: dificuldades, desafios e possibilidades

A relação entre teologia e outras disciplinas tem sido, muitas vezes, negligenciada.3 Quais
os pressupostos científicos, filosóficos que sustentam e sustentaram os discursos teológicos
ao longo de muitos anos? Pode-se dizer que a necessidade de a teologia oferecer respostas
urgentes contribuiu com a não explicitação dos tais pressupostos científicos e filosóficos, e
assim a lacuna continua.
O ecológico se apresenta à teologia muito mais como um desafio do que simplesmente
um objeto. Vale dizer que a ecologia é entendida como crise ambiental e como ciência. É
comum as mídias e as pessoas em geral tratarem “ecológico” e “ambiental” como sinônimos.
No entanto, na ciência o ambiental é relativo ao ambiente; e o ecológico, por sua vez, é um
pensamento científico dentro da biologia, que é uma outra ciência.4 Era assim que entendia o
criador da expressão, Ernst Häckel, no século XIX.5 Portanto, há duas posições que formam
dois pólos de entendimento acerca da mesma questão. Uma é de uso vulgar e a outra de uso
científico (Biologia). Entretanto, o campo semântico foi ampliado com as famosas ecologias de
Félix Guattari: ambiental, social e mental.6
Voltando à questão da relação entre teologia e ecologia, cumpre mencionar duas
dificuldades. A primeira dificuldade é de cunho teórico. Ecologia e ética,7 ecologia e Bíblia,8
ecologia e sociologia,9 ecologia e política,10 apenas para citar algumas expressões, revelam áreas
de pesquisas diferentes, além de sugerirem fundamentações teóricas também diferenciadas.
Nosso olhar aqui, se voltará somente para a teologia e ecologia, que já indica a opção por uma
linha de pesquisa.
A outra dificuldade está na perspectiva conceitual, pois não é suficiente conceber uma
teologia ecológica apenas conjugando os dois termos: “teologia” e “ecologia”. Conceber uma
relação entre teologia e ecologia somente conjugando os dois termos de modo enunciativo não
é suficiente. É necessário repensá-los a partir de uma perspectiva crítica. Apenas empregar e/
ou (re)empregar conceitos antigos de “natureza” e de “teologia” para o estabelecimento das

2
MCFAGUE, Sallie. Modelos de Deus. Teologia para uma era ecológica e nuclear. São Paulo: Paulus, 1996, p. 19.
3
KERBER, Guillermo. O ecológico na teologia latino-americana: articulação e desafios. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 26.
4
Ibid., p. 25-27.
5
Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, p. 147.
6
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
7
FERRY, Luc. Le nouvel ordre écolgique. L’arbre, l’animal et l’homme, Paris, 1992.
8
REIMER, Haroldo. Toda a criação. Ensaios de Bíblia e ecologia. São Leopoldo: Oikos, 2006.
9
LÖWI, Michel. Ecologia e socialismo. Col. Questões da nossa época. São Paulo: Cortês, 2005.
10
LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


135
formas de uma teologia ecológica é ficar no meio do caminho de um estudo interdisciplinar
e é o mesmo que não fazer teologia ecológica. Entendemos aqui que uma teologia ecológica
deve apresentar os termos “teologia” e “ecologia” de tal modo juntos a fim de que forneçam
uma perspectiva crítica desde uma avaliação da herança da cultura ocidental e da tradição
cristã.
Mesmo com essas dificuldades, lembramos que a teologia cristã reivindica a sua
palavra acerca de tudo que envolve o ser humano. Com isso, a ecologia em seus múltiplos
entendimentos também se tornara alvo de interesse na reflexão teológica. Na vasta literatura
que se pode encontrar em perspectiva ecológica para uma leitura dos vários aspectos da vida,
existe uma busca para interpretar o modo mais correto de tratar o meio ambiente, ou como
fazer um “bom uso da natureza”11. Isso significa que a ecologia tem servido para interpelar
criticamente a postura do homem moderno. Uma crítica que implica questionamento dos
pressupostos antropológicos (antropocentrismo) e éticos desse homem moderno, fazendo
emergir, assim, a reivindicação de um novo paradigma.12
Falar da relação entre teologia e ecologia também nos impulsiona a colocarmos em
relevo a singular importância que a teologia cristã teve na contribuição da construção do
paradigma do homem moderno. Ao fazermos tal afirmação, dizemos ainda que a teologia
cristã contribuiu de modo positivo e negativo na formação do homem moderno, à medida que
observamos o grande desenvolvimento tecnológico às custas de uma impiedosa destruição
da natureza. Isso fez com que a teologia cristã também se tornasse alvo das críticas feitas ao
relacionamento do homem moderno com seu ambiente, natureza.13 Nesse sentido a relação
entre teologia e ecologia é também uma relação tensa, de interpelação, já que sobre a primeira
recai a acusação de pertencer a uma tradição causadora da destruição do meio ambiente.
A relação entre teologia e ecologia deve também provocar uma ampliação do interesse à
questão ambiental. A ecologia já não é apenas tarefa da ciência, dos ecologistas, dos engenheiros
do meio-ambiente. Essa abertura significa um importante alargamento do tratamento da
questão ambiental a partir de uma visão que quer ultrapassar a compreensão reducionista
do mundo, quando deste foi mutilada arbitrariamente qualquer dimensão de abertura ao
mistério, à afetividade, à transcendência. Para os estudos da teologia é interessante refletir na

11
Cf. LARRÈRE, Catherine. Du bom usage de la nature. Pour une philosophie de l’environnement, p. 16-17. Sua tese vai
ressaltar a ideia de que não se pode utilizar a natureza sem antes estabelecer os critérios do seu uso, mediante o cuidado
ético.
12
Paradigma aqui entendido como um modelo básico interpretativo da realidade. Significa “toda a constelação de crenças,
valores, técnicas etc. partilhados pelos membros de uma comunidade determinada”. Cf. KUHN, T. A estrutura das
revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 218.
13
Um artigo famoso, e sempre muito citado, defende a ideia de que os ambientalistas deveriam romper de modo radical
com a herança judaica e cristã, a fim de serem coerentes, pois são essas tradições as grandes responsáveis pela destruição
da natureza. Nesse artigo, o principal argumento utilizado para colocar a tradição judaica e cristã no banco dos réus
está na exacerbação, do tipo antropocêntrico e insensível, do texto bíblico “dominai a terra” (Gênesis 1.28). Cf. WHITE
JR, Lynn. The historical roots of our ecological crisis. In.: Science, n. 155, 1967, pp. 1203-1207.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


136
ecologia como impulsionadora da crítica aos pressupostos antropológicos e éticos do homem
moderno, uma vez que os problemas ambientais – também chamados de crise ecológica –
interpelam os fundamentos da civilização moderna, a saber, a ciência, o individualismo, a
autonomia, a industrialização, o consumismo, a técnica, a urbanização. A crítica recai sobre
a compreensão do ser humano como medida de todas as coisas, pois isso estabeleceu um
distanciamento – também podemos chamar de oposição – entre o ser humano e a natureza.14
Encontramos essas e outras dificuldades e também desafios que se interligam, se interagem,
se completam, no campo teórico e prático, quando buscamos relacionar teologia e ecologia.

2. Teologia e ecologia: leitura a partir da teologia do processo

John Cobb, um dos mais significativos representantes desse pensamento, apresenta a


teologia do processo como produção teológica que se desenvolve a partir do pensamento de
Alfred North Whitehead.15 Para Cobb, o pensamento do processo se apresenta contrário às
práticas dominantes da vida moderna, além de ser uma alternativa aos dualismos alma e corpo,
espírito e natureza, mente e matéria, indivíduo e coletivo. Ter uma fala relevante na situação
contemporânea é um desafio e, segundo Cobb, a teologia que mais adequadamente se apropriou
das contribuições do pensamento do processo é chamada de “Teologia do Processo”.16
Segundo Cobb, a preocupação de Whitehead está voltada para conceber o mundo
como um organismo, sem depender de uma concepção da física newtoniana, isto é, de um
modelo mecânico. A filosofia whiteheadiana tem como característica o processo. Ou seja, a
realidade não é estática, imóvel, separada e substancial, mas é dinâmica, está em processo.
Assim, segundo Cobb, a filosofia de Whitehead é um organismo (“philsophy organism”), e
o mais significativo na idéia de organismo é que a existência de cada ente deve ser vista na
relação com seu meio ambiente. Cobb desenvolve esse aspecto com o biólogo australiano L.
Charles Birch e o chama de “modelo ecológico”.17 Esse modelo, segundo ele, concede à ciência
biológica um lugar privilegiado em relação aos modelos substancialista e mecanicista. Além
disso, o modelo ecológico é o que melhor se alinha à física contemporânea ou nova física18.

14 O pensador considerado o responsável pela criação da estrutura conceitual para a ciência do século XVII e considerado
o pai da filosofia moderna é René Descartes. Para uma visão geral da magnitude da mudança de perspectiva nas
ciências ver Fritjop CAPRA, O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix,
2006, p. 19-69.
15 Sua obra mais famosa, até o momento, não foi traduzida para o português. WHITE, Alfred North. Process and reality,
an essay in Cosmolgy, MacMillan, Nova York 1929.
16 COBB, John B. Process Theology and an Ecological Model. In.: Cry of the enviroment. Rebuild the Christian Creation
Tradition, p. 329.
17 BIRCH, Charles e COBB, John B. Jr. The liberation of life, p. 42; COBB, John B. Process Theology and an Ecological
Model. In.: Cry of the enviroment. Rebuild the Christian Creation Tradition, p. 330.
18 Para uma apresentação sintética das características da nova física pode ser encontrada em CAPRA, Fritjof. O ponto
de mutação, p. 70-91.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


137
A perspectiva assumida por Cobb, com seu modelo ecológico, valoriza uma
postura de apreciação de todos os seres vivos numa tentativa de superar o utilitarismo
consagrado pelo modelo mecânico, que tem o ser humano no centro e medida de todas as
coisas (antropocentrismo). Isso significa alargamento e desejo de mudança: de uma visão
antropocêntrica para a ecológica. Segundo o autor que estamos acompanhando aqui, chega a
ser um choque para quem se acostumou com a visão anterior, a insistência do pensamento do
processo no ser humano como parte de um inclusivo ecossistema.
O modelo postulado por Cobb tem desdobramentos significativos. Nessa perspectiva,
um aspecto que é central na teologia do processo é a doutrina de Deus. Cobb segue Charles
Hartshorne, que foi quem mais desenvolveu esse aspecto do pensamento do processo.
Segundo Cobb, no teísmo clássico Deus se caracteriza como substância imutável, enquanto
que a teologia do processo o vê como a mais perfeita exemplificação do modelo ecológico.
Essa divina perfeição não significa que Deus seja autocontido ou insensível ao sofrimento e
à dor, mas aberto, receptivo e responsivo. Com isso, Deus também é constituído por relações
com todas as coisas, e essa relação expressa o amor.
Ainda segundo Cobb, com frequência o teísmo clássico falou do poder de Deus, de
modo que se assemelhava a um tirano ou a um ditador. Nesse sentido, guerras e terremotos,
por exemplo, expressam a vontade de Deus. Como consequência disso, muitos também
colocaram-se contra esse Deus, inclusive os teólogos do processo. Porém, eles não chegam a
afirmar que Deus é impotente e que ele é apenas encontrado no sofrimento, embora esteja ali.
Deus também pode ser encontrado no sorriso de uma criança que brinca, na alegria, na arte.
Nesse sentido, a teologia do processo afirma que o poder perfeito de Deus não é coercivo,19
mas persuasivo. Deus respeita a liberdade humana e se arrisca em confiar no poder humano,
pois o potencial para o bem e para o mal surgem juntos.
Finalmente, enfatizamos que a preocupação de Cobb é dar conta da natureza de Deus
e do determinismo,20 e neste último, Cobb demonstra muito cuidado em observar que o papel
de Deus em cada entidade real é influencial e não determinante.
Como já dissemos, a teologia hoje precisa de conceitos que possam adequadamente
fazer sentido diante das exigências deste momento histórico do pensamento humano,
marcado por profundas transformações em diversos aspectos.21 Um conceito que serve de
elemento articulador para a realização de uma teologia que contemple a questão ecológica é
o panenteísmo. Segundo Jay Mc Daniel,22 esse conceito foi cunhado do século XIX por K. F.
19
COBB, John B. Process Theology and an Ecological Model. In.: Cry of the enviroment. Rebuild the Christian Creation
Tradition, p. 333.
20
Ibid.
21
Sallie McFague chamou de “era ecológica e nuclear”, que é o subtítulo de sua obra Models of God: theology for an
ecological, nuclear age. Usaremos a edição em português: MCFAGUE, Sallie. Modelos de Deus: teologia para uma era
ecológica e nuclear. São Paulo: Paulus, 1996.
22
MC DANIEL, Jay. With root and wings. Christianity in an age of ecology and dialogue, Orbis, Mova York 1995.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


138
C. Krause (1781-1832) e significa “tudo em Deus”. Mas Mc Daniel chama-nos a atenção para
o fato de que nos últimos anos, dentro das preocupações ecológicas, o termo passou por uma
mudança conceitual. Segundo ele, tal conceito agora está implicado a um modo ecológico
de pensar Deus. Ao mesmo tempo em que Deus e a criação são distintos, Deus é entendido
de modo intimamente ligado à criação e vice-versa. Portanto, Deus se caracteriza como tal à
medida que está mais ligado à sua criação.23
O panenteísmo, então, afirma a presença de Deus na criação, mas não apenas isto. Para
os panenteístas um cristianismo ecológico pode se valer de múltiplas imagens de Deus, não
apenas pessoais, mas também para além delas. Deus pode ser “ele”, como também pode ser
“ela”. Isso sugere que as imagens não devem ser particularizadas, pois a fixação das imagens
divinas pode se caracterizar como uma forma de idolatria. Em vez disso, o que se deve fazer é
aceitar imagens que sejam tolerantes às necessidades dos outros de imaginar Deus de variadas
formas. Com isso, se Deus pode ser visto de modo pessoal, o panenteísmo se aproxima da
Bíblia, pois para os panenteístas, assim como para muitos autores bíblicos, Deus é, de algum
modo, parecido com uma pessoa, contudo, sem se localizar no tempo ou no espaço. Para Mc
Daniel, é como se as criaturas fossem células num imenso corpo. Este corpo é o universo
e Deus é o sujeito vivente a quem o corpo pertence. O sujeito não está fora do corpo, pois
também é igual ao corpo. Ele é a alma do universo. A unidade do corpo que anima o vivente.24
A vida divina não significa somente algo que tenha semelhança com uma pessoa, mas
alguma coisa parecida com Jesus de Nazaré. Todavia, isso não quer dizer que Jesus seja o
único caminho que conduz a Deus, mas que na compaixão e no perdão é que se pode ver em
Jesus, sobretudo quando a compaixão e o perdão são alargados na figura de um Cristo todo-
compaixão. É aí que se pode penetrar no coração do Divino. É assim que o termo “Cristo”
pode ser usado como um nome-título para Deus, e com isso o corpo de Cristo seria todo o
universo, e não somente a igreja cristã.

3. Teologia e ecologia: leitura a partir do ecofeminismo

O tema do universo como corpo de Deus foi trabalhado pelas teólogas ecofeministas.
Segundo Mc Daniel, o conceito de Cristo cósmico é utilizado por Sallie McFague para nomear
a Deus presente na história da criação. Deus se identifica com o sofrimento de todos os seres
vivos deste mundo e quer o bem-estar de todos, assim como Cristo também.25 De fato, a metáfora
do universo como corpo de Deus foi pensado e aprofundado por Mcfague. Na obra Modelos
de Deus, ela nos oferece uma complementaridade dos modelos de Deus para esta era ecológica

23
Ibid., 97.
24
Ibid., p. 99.
25
Ibid., p. 100.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


139
e nuclear, ao sugerir uma Trindade de “Deus como mãe”, “Deus como amante”, “Deus como
amigo”.26 McFague tem o cuidado de esclarecer que essas imagens são modelos, metáforas,
portanto, não é descrição.27 Com isso, ela quer dizer que Deus não pode ser identificado
diretamente com os modelos – ela trabalha com analogia e não com correspondência –, mas
esses modelos ajudam a compreender outros aspectos de Deus que foram ocultados pelas
concepções e nomeações das teologias tradicionais.
McFague destaca que o modelo de mundo como corpo de Deus é uma metáfora com
implicações muito significativas para a teologia tradicional, já que renova a linguagem sobre
Deus.28 A primeira implicação estabelece uma forte distinção do modelo de Deus como rei ou
modelo monárquico.29 Nas imagens do modelo monárquico, Deus está separado do mundo,
no ponto mais alto, de modo inatingível, com poder e domínio. Já na metáfora proposta por
McFague, o mundo é o lugar de Deus, o espaço das suas atividades, o amado de Deus. A outra
implicação é que a imagem do mundo como corpo de Deus é panenteísta.30 O conhecimento,
a ação e o amor de Deus adquirem outras conotações na metáfora do mundo como corpo de
Deus. Ele conhece o mundo de modo imediato. Deus age em e através do complexo processo
evolutivo físico e histórico cultural; Deus toma conta do mundo, mas ao mesmo tempo ele
está em perigo; Deus ama os corpos; o mal é responsabilidade de Deus. Deus sofre e goza com
cada criatura.31
A teologia de Sallie McFague é claramente feminista, pois baseia-se na experiência que
as mulheres têm de Deus e de mundo, a fim de descrever a relação de Deus com o mundo.
Ela faz isso servindo-se da doutrina da Trindade. Não desenvolve uma doutrina de Deus, não
afirma que Deus é. A proposta central é redefinir como Deus se relaciona com o mundo.
Outro aspecto que deriva da visão panenteísta é o elemento da compaixão. Com
vistas a um acento não antropomórfico na concepção teológica, os panenteístas enfatizam o
cosmomorfismo. O antropomorfismo fica por conta da compaixão, que é uma potencialidade
humana específica. Rosemary Radford Ruether afirma que a compaixão por todos os seres
vivos plenifica o espírito humano e acaba com a ilusão de separação. Segundo ela, nesse
momento é possível encontrar o centro gerador (a matriz) de energia do universo que dá
sustentabilidade a dissolução e a recomposição da matéria, como um coração que conhece o
ser humano melhor do que o próprio ser humano conhece de si. Ela concorda com os teólogos

26
MCFAGUE, Sallie. Modelos de Deus, p. 133-247.
27
Ibid., p. 105.
28
Quem também renova a linguagem ao desenvolver uma Trindade de “Sofia-Espírito”, “Sofia-Cristo” e “Sofia-Mãe” é
JOHNSON, Elizabeth. Aquela que é: o mistério de Deus no tratado teológico feminista. Petrópolis: Vozes, 1995, p.
183-271.
29
MCFAGUE, Sallie. Op. Cit., p. 135.
30
Ibid., p. 108.
31
Ibid., p. 134.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


140
do processo sobre a consciência que lembra, olha e reconcilia todas as coisas.32 A consequência
é que Deus está na criação e ela está em permanente processo. Não foi um evento ocorrido no
passado, mas acontece no presente e acontecerá no futuro.
Uma ênfase da perspectiva processual panenteísta e que foi aprofundada pelo
ecofeminismo é a tarefa curadora. A cura surge como contraproposta feminina ao domínio
masculino da criação. Nesse sentido, a cura da terra, que deve ser integral, é o objetivo do
ecofeminismo. Com isso, estão incluídos nesse processo sanador as relações entre homens e
mulheres e entre os seres humano e a terra. O relacionamento saudável entre seres humanos
e a terra exige uma nova espiritualidade e uma nova cultura simbólica. De igual modo,
para a criação de um mundo sanado é necessário uma articulação entre espiritualidade e
política.33 Ainda segundo Ruether, as clássicas narrações sobre a criação, o pecado,34 o mal
e a destruição do mundo estão embebidas de patriarcalismo e por isso devem ser (re)lidas e
(re)interpretadas.35

4. Teologia e ecologia: o pensamento trinitário de Jürgen Moltmann

Para Jürgen Moltmann, um dos mais importantes articuladores dessa relação entre
teologia e ecologia, a teologia cristã tem apenas um problema: Deus.36 Teologia ecológica deve
ser a afirmação de um universo conceitual teórico complexo que busca saber sobre Deus e
superar conceitos e edifícios teóricos que pensam Deus a partir de categorias de poder. Busca
superar a epistemologia monoteísta que privilegia o divino monarca absoluto, cujo objetivo
é construir uma doutrina sobre Deus que visa estabelecer a soberania e o senhorio de Deus,
concepções de Deus e do seu relacionamento com o mundo que, de algum modo, contribuem
para o fortalecimento da ideia do ser humano dominador.
Em Moltmann a ecologia não é o objeto de sua reflexão, assim como ela não dilui o seu
discurso teológico, que está fundamentado em referenciais eminentemente teológicos, e não
na nova cosmologia e na nova física, embora haja diálogo com elas. Ele não abre mão de Deus
como objeto da teologia. Busca no interior das tradições teológicas um conceito adequado para
articular o discurso sobre Deus de tal maneira que seja sempre relacional. A doutrina trinitária
configura-se como ponto de partida para essa reflexão teológica em perspectiva ecológica, cujo
32
RUETHER, Rosemary Radford. Gaia & God. An ecofeminist theology of Earth healing, SCM Press, Londres 1993, p.
253.
33
Ibid., 205-274.
34
Para Ruether, o pecado tem uma dimensão política, que não se limita às esferas individuais. O pecado é a aceitabilidade
ou colaboração com a injustiça, e a sua origem está localizada no sexismo. Sobre isso KROBATH, Evi. Pecado/culpa.
In.: Dicionário de teologia feminista, p. 387-88.
35
Ver a quarta parte “Sanidade” de RUETHER, Rosemary Radford. Gaia & God. An ecofeminist theology of Earth
healing, SCM Press, Londres 1993, p. 205-274.
36
Cf. MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica. Caminhos e formas da teologia cristã. São Leopoldo:
Unisinos, 2004, p. 31.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


141
conceito fundamental é a pericórese: circularidade da vida divina pela comunhão e unidade
das três Pessoas divinas. Esse conceito permite superar ideias hierárquicas, subordinacionistas
e autoritárias sobre Deus em benefício de compreensões relacionais, não hierárquicas. Assim,
Deus relaciona-se com o mundo, está na sua criação. Essa relação de Deus com o mundo
acontece numa circularidade dinâmica, em que Deus é importante para o mundo e a história,
assim como o mundo e a história são importantes para Deus.
A pericórese trinitária constitui o fundamento teórico para a compreensão ecológica
da criação. Está aí o centro da questão trinitária em Moltmann. Temos, então, a releitura da
pericórese a partir da tradição para desaguar numa teologia trinitária contextual. A pericórese
esfacela os rígidos esquemas hierárquicos da ordem da criação como velhos pergaminhos.
Há um elemento que é fundamental no círculo de comunhão das Pessoas divinas: o amor.
Essa comunhão se abre para além do círculo trinitário e inclui toda a criação. Comunhão
integradora, inclusiva, unificadora do Deus triúno é denominada por Moltmann de “Trindade
aberta”.37 Ela é “aberta” na abundância do “amor que proporciona às criaturas o espaço para
viverem a sua vitalidade e o espaço aberto para o seu desenvolvimento.”38 O que Moltmann faz
é pensar cada Pessoa da Trindade em movimento dentro das outras, de modo que o espaço
é concedido reciprocamente. Cada Pessoa é espaço de vida para as outras. Com isso, Deus
está no mundo assim como o mundo está em Deus. É a pericórese que define a sua doutrina
ecológica da criação.
Outro aspecto fundamental é o que se remete ao espírito cósmico e à consciência
humana. As diferentes formas de organização e modos de comunicação de sistemas abertos,
começando com a matéria informada até os sistemas viventes, do ecossistema da terra até
o sistema solar, nossa Via Láctea e as galáxias do universo. Os princípios organizacionais
do espírito estão em dois níveis. No plano sincrônico: autoafirmação e integração; no plano
diacrônico: autopreservação e autotranscendência.39 O espírito mostra uma tendência a
desenvolver sistemas abertos mais complexos em formas de vida simbióticas e na evolução das
formas de vida.
Percebemos aqui que optar pela ecologia evidencia implicações epistemológicas, pois uma
teoria da criação em perspectiva ecológica empenha-se para romper com o pensamento analítico
com sua dicotomia entre sujeito e objeto, esforçando-se para trilhar novo caminho nos processos
de aquisição do conhecimento.40 Esse novo caminho do pensar aponta para o abandono da
pretensão da razão de mimetizar o modelo da física moderna como modelo de ciência exata.
Esse modelo tem sido questionado, e no rastro desse questionamento Moltmann sugere que

37
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e reino de Deus. Uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 106-
107.
38
MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica, p. 268.
39
MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação, p. 10.
40
Cf. MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação, p. 2.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


142
o conhecimento deve ser adquirido de modo participativo e não dominador.41 A perspectiva
que se abre com uma teoria da criação com essas características é que ela está aberta a outras
racionalidades que não podem ser reduzidas somente à razão instrumental que caracteriza a
ciência moderna. Finalmente, o método sugerido por Moltmann tem o grande desafio de abarcar
diferentes racionalidades, com a inclusão do conhecimento científico e da sabedoria.

5. Teologia e ecologia: notas inconclusas

A teologia do processo, como vimos, está interessada na compreensão de Deus e oferece


para isso suas bases filosóficas. Além disso, mantém uma atitude crítica diante de alguns
aspectos da tradição teológica ocidental. Para os teólogos do processo, Deus tem relação direta
com o mundo. O ecofeminismo, por sua vez, reconstrói a imagem do modo de agir de Deus no
mundo, a partir da experiência que a mulher tem de Deus e do mundo, e também de Deus no
mundo. Tanto os teólogos do processo quanto as ecofeministas, em especial Sallie McFague,
entendem que o contexto para uma teologia ecológica é panenteísta. Assim, observamos
que nesses dois modelos descritos há um profundo interesse na imanência de Deus. Essa é a
afirmação de que Deus está no mundo; a afirmação dupla de que Deus está na criação assim
como a criação está em Deus.
Da perspectiva processual e do ecofeminismo, ambas panenteístas, emerge um
cristianismo ecológico que inclui na ideia de amor ao próximo tanto os seres humanos
quanto os não humanos. Jürgen Moltmann, por sua vez, revela preocupação de nível teórico
e epistemológico. Fica plasmado que a contribuição específica de Moltmann é a busca por
um discurso teológico eficaz, no nível social e político diante da realidade ecológica. A partir
daquilo que esboçamos sobre essas perspectivas, observamos que há um grande esforço
para afirmar a relação entre Deus e a criação. Emerge daí uma espiritualidade que integra
ser humano e natureza. A oportunidade de uma visão do mundo como um amplo espaço de
adoração, um santuário de celebração da vida onde grassa a harmonia entre todos os seres,
assumidas numa ética de profundo respeito à vida.42 Com isso, entendemos que a teologia
ecológica é caracterizada pela forte crítica à sociedade moderna e, consequentemente, às
teologias que se originaram na modernidade. Teologia ecológica, portanto, é teologia crítica.
Nas produções aqui analisadas perpassa uma epistemologia contextual, pois tem a exigência
do momento histórico em que se vive e são desenvolvidas a partir de contextos locais que se
conectam com o global. É a valorização do contexto em que são realizadas as experiências e o
conhecimento com abertura para articulações mais amplas.

41
MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação, p. 2-4.
42
Remetemo-nos aqui aos capítulos XXI e XXII de SCHWEITZER, Albert. Cultura e ética. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1953, p. 253-291.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


143
O século XX assistiu grandes progressos nos conhecimentos no âmbito das especializações
disciplinares. Um conhecimento com hiatos provocados pelo acento na ideia de especialização
que fragmenta contextos, globalidades e complexidades. A capacidade de percepção global
e preocupação com problemas fundamentais se perdem diante da fragmentação do global e
diluição do essencial devido ao esgotamento das dimensões em departamentos específicos.43
Conforme vimos em nossas breves análises, a teologia cristã em geral perdeu a
capacidade de olhar para o ser humano e para o mundo de modo que pudesse vê-los em suas
multidimensionalidades. Por isso, privilegiou algumas dimensões em detrimento de outras.
Nesse sentido, entendemos que para a teologia ecológica é imperioso articular o conhecimento
das partes com conhecimento das totalidades; o pensamento reducionista com o pensamento
integralista. Assim, a teologia ecológica deve ser inclusiva, deve fundir saberes em vez de
excluir, deve ser, enfim, dialogal.

Referências

BIRCH, Charles e COBB, John B. Jr. The liberation of life, p. 42; COBB, John B. Process
Theology and an Ecological Model. In.: Cry of the environment: rebuilding the Christian
creation tradition. Santa Fe, NM: Bear & Company, (S/D).
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo:
Cultrix, 2006.
FERRY, Luc. Le nouvel ordre écolgique. L’arbre, l’animal et l’homme, Paris, 1992.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
JOHNSON, Elizabeth. Aquela que é: o mistério de Deus no tratado teológico feminista.
Petrópolis: Vozes, 1995.
KERBER, Guillermo. O ecológico na teologia latino-americana: articulação e desafios. Porto
Alegre: Sulina, 2006.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1994.
LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC,
2004.
LARRÈRE, Catherine. Du bom usage de la nature. Pour une philosophie de l’environnement.
Paris: Aubier, 1997
LÖWY, Michel. Ecologia e socialismo. Col. Questões da nossa época. São Paulo: Cortês, 2005.

43
Para uma análise crítica acerca desse tema encontramos uma boa introdução em Edgar MORIN. Os sete saberes
necessários à educação do futuro. 9ed. São Paulo: Cortez. Brasília. Unesco, 2004, p. 35-46; Fritjop CAPRA, O ponto
de mutação. A ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 2006.

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


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MC DANIEL, Jay. With root and wings. Christianity in an age of ecology and dialogue, Orbis,
Mova York: 1995.
MCFAGUE, Sallie. Modelos de Deus. Teologia para uma era ecológica e nuclear. São Paulo:
Paulus, 1996.
MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica. Caminhos e formas da teologia
cristã. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
___________________. Trindade e reino de Deus. Uma contribuição para a teologia.
Petrópolis: Vozes, 2000.
___________________. Deus na criação. Doutrina ecológica da Criação. Petrópolis: Vozes,
1993.
MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 9ed. São Paulo: Cortez.
; Brasília: Unesco, 2004.
REIMER, Haroldo. Toda a criação. Ensaios de Bíblia e ecologia. São Leopoldo: Oikos,
2006.
WHITE JR, Lynn. The historical roots of our ecological crisis. In.: Science, n. 155, 1967, pp.
1203-1207.
WHITE, Alfred North. Process and reality, an essay in Cosmolgy, MacMillan, Nova York
1929.
RUETHER, Rosemary Radford. Gaia & God. An ecofeminist theology of Earth healing, SCM
Press, London, 1993.
KROBATH, Evi. Pecado/culpa. In.: Dicionário de teologia feminista. Petrópolis:Vozes, 1997,
pp. 387-88.
SCHWEITZER, Albert. Cultura e ética. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1953.

Recebido em 30/09/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

TEOLOGIA E ECOLOGIA: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE PRODUÇÕES ATUAIS • Josias da Costa Júnior


145
A MÍSTICA COMO A VERDADEIRA A ESSÊNCIA DO
CRISTIANISMO

Luigi Bordin1

RESUMO: Este artigo é uma apresentação de algumas teses


importantíssimas da mística cristã e uma revisão das principais ideias místicas
da filósofa Simone Weil.

Palavras-Chave: Mística, Cristianismo, Mística Judaica.

ABSTRACT: This paper is a presentation of some very important


theses of Christian mysticism and a review of the main ideas of the mystical
philosopher Simone Weil.

Key-Words: Mystic, Simone Weil.

Introdução

Walter Benjamin foi capaz de captar a derrota da religião tradicional vendo no


capitalismo triunfante uma nova forma religiosa (sacrílega) sem teologia nem fé, fundada
na idolatria do útil. Na verdade, o capitalismo se desenvolveu de forma parasita sobre o
cristianismo, substituindo gradualmente ao poder religioso o poder econômico em que vários
estilos de marketing tomam conta de tudo, também das celebrações, das devoções e de todo
o universo religioso. É a idolatria do mercado, que vai tornando-se mais e mais dominante
na globalização incrementando também a comercialização da religiosidade, banalizando
e aviltando o que há de mais sagrado no ser humano. Além disso, a religião é chamada a
legitimar a globalização para seus desmandos e apetites de dominação.
Hoje, na Europa, o cristianismo definha e, na América Latina, assistimos a uma enorme
expansão de religiões de satisfação de desejos que fazem da esperança cristã apenas uma força
para ajudar a satisfazer os desejos ocultando a verdadeira mensagem de Jesus em sua forma
radical. Trata-se de um cristianismo degradado que se tornou uma forma de superstição
imbuída de crenças e cultos onde o apelo não é dirigido à razão, mas aos sentimentos e
às emoções. A mística especulativa foi relegada, pela ciência positivista e cientificista de
hoje, do âmbito da razão ao âmbito da devoção e da piedade. Com isso, não só a mística
foi arbitrariamente desvalorizada, mas, também a própria filosofia. Com efeito, a filosofia
se tornou uma “razão instrumental” a serviço da técnica, como bem mostraram Theodor

1
Doutor em Filosofia e professor Adjunto IV na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

146
Adorno e a Escola de Frankfurt. Sem a experiência do espírito, o cristianismo (empobrecido)
tornou-se somente uma doutrina de bons sentimentos: um genérico humanitarismo, um
cristianismo que não possui um pensamento, mas só um sentimentalismo edulcorado, de mau
gosto, intolerável e de uma insuportável falsidade, em que a única dimensão possível é o útil
e o que psicologicamente serve. A experiência do espírito parece insustentável ao homem
contemporâneo que se tornou hedonista, materialista e consumista, e parece uma blasfêmia
à consciência devota, alienada em sua beatice, que não se dá conta de ser uma consciência
instrumental e servil em busca somente de sua consolação egoísta e narcisista.
Subsiste hoje uma religião que não quadra mais com a honestidade da razão. Trata-se
de uma religião feita de dogmas, crenças, de objetivações supersticiosas que, ao invés duma
experiência autêntica do divino, esvazia do senso comum palavras como “espírito” e “alma”.
Além de sua sobrevivência com mero caráter consolador, a religião se transformou numa forma
de superstição, enquanto a filosofia se tornou um mero ramo das especialidades acadêmicas,
senão um inócuo passatempo. Diante dessa situação, trata-se de proporcionar aos jovens uma
educação que faça com que eles – superando o narcisismo, o individualismo e o egocentrismo
da cultura de consumo e de mercado –, possam se abrir ao “sentido do outro”. Mas, para
isso, é urgente implementar neles a “inteligência” da fé (e não o sentimentalismo que denota
superstição), visando que cheguem à “experiência de Deus”. Por isso, como propõe Vannini,
faz-se necessário voltar à mística, que é o coração e a raiz viva de cada religião autêntica e a
base dum pensamento no sentido mais real, profundo e forte.
Em nosso ensaio, apoiando-nos em Marco Vannini, o maior estudioso italiano da
mística especulativa, defendemos a tese que o resgate da tradição mística pode levar a uma
profunda renovação do ser e do pensar na redescoberta da mística como a verdadeira essência
do cristianismo que, fora disso, descamba em formas religiosas alienadas e supersticiosas. Na
primeira parte do ensaio, estudaremos e debateremos o livro polêmico de Vannini: “Teses para
uma reforma religiosa”, focalizando, em especial, a fonte grega originária da mística ocidental
e a mística especulativa de Mestre Eckhart, vistas, também, como potentes e coerentes formas
de exercício da razão. Na segunda parte, nos deteremos, de forma mais substantiva e acabada,
sobre relação entre filosofia e mística em Simone Weil que, além de representar um ápice da
mística contemporânea, encarna um novo tipo de místico: aquele que atua numa sociedade
industrial de massa.

A MÍSTICA COMO A VERDADEIRA A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO • Luigi Bordin


147
PARTE I. A VIGÊNCIA DA MÍSTICA NUMA ÉPOCA DE CRISE E
DESENCANTO

A pertinência da grande mística especulativa hoje

Em suas “Teses”, Marco Vannini, na convicção de que o nosso tempo apresenta sintomas
duma verdadeira decadência de civilização e duma doença moral e comunitária, propõe como
única saída um retorno à tradição mística. As teses de Vannini surgem da convicção que nós
estamos, hoje, vivendo numa situação de profunda corrupção, no meio de um mal-estar difuso
e o alastrar-se de uma verdadeira e própria “doença moral” imputável a um declínio da religião
cristã que, como consequência, trouxe o fim de cada idealidade e da moral em si. Vannini,
porém, não pensa numa recuperação da religião cristã tradicional que, segundo ele, se tornou
uma forma de mentira e de superstição que deve ser (hegelianamente) superada. Propõe, ao
invés disso, um retorno à mística.
Conforme Vannini, remetendo-se nisso a Simone Weil, foram os filósofos gregos, de
Platão e o neoplatonismo, os grandes expertos da alma e só, graça a eles, existe “a experiência
espiritual” do sucessivo mundo cristão, que tem seu auge na mística de Mestre Eckhart no final
da Idade Média. Mais tarde, no século XIX, os grandes filósofos do idealismo alemão (Fichte,
Schelling, Hegel) sublinharam a parentela de sua filosofia com a espiritualidade mística de
Eckhart chamada, então, de Teologia Alemã. Hegel escreveu textualmente que aquilo que a
um tempo se chamava “místico” é o mesmo daquilo que ele chamava “especulativo”, ou seja,
a compreensão racional, dialética, da unidade dos opostos; compreensão essa, que faltava ao
intelectualismo modesto do Iluminismo e que falta, agora, à cultura positivista e cientificista
dos nossos tempos. Além de Hegel, o significado filosófico da grande mística medieval alemã
foi reconhecido também por Schopenhauer, que achava de trazer em sua filosofia, no essencial,
a mesma mensagem de Tauler, discípulo de Eckhart.

Os traços fundamentais da mística ocidental: dos gregos a Mestre Eckhart

Para os gregos antigos, o conhecimento da alma constituía a forma mais radical do


conhecimento de si. Para eles, a alma era conhecível só através de um saber (filosofia –
conhecimento) que coincidia com o ser (o absoluto, o infinito, o eterno, o sobrenatural). Mestre
Eckhart (1260-1327) foi a figura mais representativa da síntese entre a filosofia grega antiga
e o cristianismo e entre filosofia e religião: filosofia, enquanto exercício da razão que afasta
cada falsidade, cada mentira, não reconhecendo algum valor acima da verdade; e religião, no
sentido de orientação ao Absoluto (Deus). Eckhart foi o iniciador do grande movimento da
mística alemã caracterizada pela retomada da tradição neoplatônica e da teologia negativa e,
nestas bases, de um lado, reivindica a autonomia da fé, de outro, nega à razão a possibilidade
de chegar a uma concepção positiva de Deus.

A MÍSTICA COMO A VERDADEIRA A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO • Luigi Bordin


148
Segundo ele, Deus é a realidade verdadeira, e as criaturas não possuem nenhuma
realidade fora do divino. O homem, porém, tem, no “fundo da alma”, uma “centelha” do
divino a partir da qual pode encaminhar-se a Deus. Condição deste caminho é enxergar que
todas as coisas, e nós mesmos, somos um puro nada. O êxito dessa descoberta leva ao desapego
que, por sua vez, leva à experiência mística de nossa unificação com Deus.
A experiência mística é experiência da profunda união eu-Deus, na qual o eu, não é
mais o pequeno eu psicológico, e Deus não é o Ser Supremo todo poderoso e vingativo (que
encontramos também em certos trechos da Bíblia), mas o Deus que constitui o nosso real e o
nosso mais profundo “eu”. Não há um sujeito ou uma substância determinada que possa ser
definido como “eu”. Pelo contrário, o “eu” psicológico configura-se como um “nada”, já que se
perde numa quantidade infinita de conteúdos (volições, sensações, pensamentos) que mudam
continuamente, sem que se possa chegar a uma verdadeira identificação. Não é por acaso que
os mestres da mística, como Eckhart, ensinavam que, não tanto os livros, quanto a experiência
da vida do espírito propicia o ensinamento mais nobre.
Assim entendida, a mística nada tem a ver com o sentimento. O verdadeiro místico
possui um pensamento no sentido forte de “especulativo e dialético”, capaz de colher a
“unidade dos contrários”, num ato da inteligência que, de forma iluminada, tudo reconduz à
sua realidade própria, ou seja, à sua finitude. O místico não troca o finito pelo absoluto mas,
mantendo-se aberto à transcendência, vê o finito como ele é: um nada, mas, ao mesmo tempo,
o vê também penetrado pelo infinito, pelo sobrenatural (o absoluto, Deus).
A mística,pois, mais que à religião e à psicologia, se liga à racionalidade da filosofia; não
se confunde com a piedade, com a devoção; não se identifica com santidade e menos ainda
com a vida religiosa. Enfim, a experiência mística é a experiência radical da unidade profunda
do homem com Deus. Ora, segundo Vannini, tal experiência é absolutamente válida até o
presente. Sem essa, mergulhamos na alienação e na infelicidade, passando de uma aflição a
outra, segundo as circunstâncias, perdidos e confusos.

A sobrevivência dum cristianismo decadente no mundo contemporâneo

A mística, todavia, foi derrotada no século XVI por não ser compreendida e pela
obtusidade da teologia dogmática da Igreja daquele tempo. Dessa forma, a cristandade,
privada da verdade, entrou progressivamente em crise até o tempo presente. A marginalização
da mística, ocorrida no final do século XVII, teve a consequência do enorme e progressivo
desaparecimento do espírito do terreno concreto das ciências humanas.
Hoje nossa religião cristã e nossa cultura perderam “o conhecimento do espírito”,
confinando-o as névoas do mito ou ao caldeirão do psicologismo. Com isso, hoje, a religião se
configura mais como superstição ou como uma mitologia, onde a fé se torna pura crendice.
Com efeito, em nossas sociedades de consumo e de espetáculo, é o emocional e o sentimental

A MÍSTICA COMO A VERDADEIRA A ESSÊNCIA DO CRISTIANISMO • Luigi Bordin


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que permeia os cultos religiosos. O emocional e sentimental, porém, não pertence ao
conhecimento, mas ao desejo e à vontade e, pois, ao nosso pequeno “eu” psicológico, egoístico,
narcísico, que não deixa florescer o espírito. O amor, segundo a mística, é a divina potência
que se move em direção ao infinito e só do infinito se satisfaz, no momento que o próprio
querer (a própria vontade) desaparece.
O sentimentalismo não só constitui o elemento essencial das ideologias, mas também
das religiões-superstições, estendendo sua influência inclusive à mística que, muitas vezes
é banalizada e confundida com uma sopinha do coração. Um exemplo claro de religião-
superstição encontra-se hoje nos novos cultos neopentecostais que estão proliferando na
América e no mundo afora. Esses cultos e celebrações têm uma forte conotação emotiva e
neurótica e um escasso conteúdo teológico. Por isso podem levar milhões de pessoas a se
manifestarem com veemência, lançando um intenso apelo ao aspecto irracional de fé. É
comum, nestes cultos (ou shows?) o caráter de exaltação, onde o milagre ocupa o lugar da
liturgia. Estes pregadores protestantes eletrônicos, juntos aos padres cantores católicos, usando
a televisão, ajudaram o comercial de TV a realizar a quase infantilização da teologia.
Cercados de cantores e de pessoas excessivamente bonitas, tanto no palco quanto na
plateia, esses evangelistas oferecem uma religião simplista e teatral como qualquer show de
variedades de Las Vegas. Nenhum dogma, nenhum ritual, nenhuma tradição, nada disso é
chamado a sobrecarregar a mente dos espectadores, que devem somente responder ao carisma
do pregador.
Na realidade, hoje o mundo cristão, sobretudo nos templos dos neopentecostais, se
limita a fundamentar nos textos bíblicos (interpretados fora de qualquer séria exegese e
de forma excessivamente espiritualista) uma visão do homem, do cosmo e de Deus muito
genérica, onde Deus se ocupa pouco das coisas humanas e se limita a consolar. Trata-se duma
visão pretensamente cristã, (mas que de cristianismo tem somente a verniz) onde não existe o
espírito, pois não existe verdade, onde paira uma aura sentimental e retórica, capaz de inspirar,
algumas vezes, somente genéricos bons sentimentos. Estamos, pois, em plena decadência.
Em relação ao proselitismo dos evangélicos, o bispo metodista Paulo Ayres, numa recente
entrevista, lamentava a visão reducionista que as igrejas evangélicas têm sobre o que é missão,
visando mais a conversão individual e deixando de lado o serviço cristão aos necessitados, o
testemunho público e a práxis do evangelho.

A “morte da alma” e a perda de valores em nossas sociedades pós-cristãs de consumo

No lugar da mística especulativa e dialética está, hoje, a psicologia (ou psicolatria). É


esta que trata, agora, da alma. Sem o conceito de espírito de que não se tem mais experiência, a
psicologia reduz a alma só à psique. Mas a psique é outra forma da alma, é radicalmente egoísta
e condicionada pelo determinismo do espaço e do tempo. As mais profundas exigências do

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homem não são certamente satisfeitas pela psicologia. A modernidade (ou pós-modernidade)
se caracteriza pelo abandono do pensamento grego clássico e, pois, por separar o natural do
sobrenatural, relegando este último fora do homem.
O modelo do conhecimento das ciências exatas, que surgiu no século XIX com o
positivismo, foi passado também para as ciências humanas, provocando uma desconfiança
radical nas faculdades da razão. Passou-se, dessa forma, do conhecimento das causas a uma
simples coleta e correlação de dados. Caiou-se num relativismo que expulsou da reflexão o
conceito de Deus junto ao conceito do espírito. Sob a influência do marketing, da moda e
das mitologias, elaboradas pela grande mídia, a nossa sociedade pós-cristã reduziu-se a uma
sociedade de consumidores cheios de desejos desenfreados e de neuróticos vorazes de terapias
(também farmacológicas) para uma alma que não conhecem profundamente.
Palavras, como “virtude” e “honra”, desapareceram, ou quase, de nossa linguagem e
foram substituídas por outras como “útil”, “interesse”, “bem-estar”, etc. Ora, a solidariedade
e amor, sem virtude e honra, decaem num sentimentalismo vazio e falso, pois a honra está
ligada ao valor e à verdade e não há como existir o amor sem virtude e honestidade. É a
virtude a saúde da alma, como ensinavam os estóicos gregos antigos. A virtude se manifesta
no desapego e na abertura e na solidariedade ao outro, ao próximo e especialmente aos pobres
e aos oprimidos. É por esta razão que o cristianismo deve fundamentar-se na mística, pois só
a mística constitui a religião da razão. O espírito da mística é o mesmo da ciência: espírito
da verdade, da coragem (Kant). Por isso a mística e a ciência (não a ciência cientificista e
positivista) estão aliadas contra as superstições de cada tipo entre as quais as religiosas.

A mística como libertação da consciência

A história da mística é também a história da luta pela liberdade da consciência, e não


por acaso está cheia de intervenções da Inquisição, como testemunham as fogueiras em que
foram queimados os grandes místicos do passado como, por exemplo, Giordano Bruno. Não é
entre os psicólogos, mas entre os místicos que encontramos os mais honestos indagadores da
alma. São os místicos os verdadeiros psicólogos do profundo. Para os místicos, os conteúdos
psicológicos, os pensamentos, os desejos e os instintos não são, de forma alguma, essenciais
e constitutivos da verdadeira realidade do homem, mas unicamente do pequeno “eu”, cuja
natureza é uma vontade, absolutamente egoística, sempre em um incessante desenfreado
anseio de ser, de ter, de possuir. Por isso os místicos pregam o desapego. Com efeito, é a prática
do desapego que conduz o homem para fora da escravidão das paixões, fora do pequeno eu
psicológico, em busca da liberdade e do espírito. É a liberdade do espírito que aparece como
o verdadeiro ser do homem e de Deus que se configura não mais como um ente mas como
puro espírito. Tal é a experiência fundamental para o conhecimento de nós mesmos como
inseridos num espírito universal.

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A esse respeito, a descoberta do patrimônio religioso-filosófico do hinduísmo e do
budismo não é só uma moda, mas responde a uma necessidade de verdade que não está
satisfeita pelas religiões monoteístas. É neste terreno que as inteligências mais livres já há
tempo descobriram que a mística renana vai na mesma direção daquela que teve origem na
Índia, com resultados praticamente iguais no plano da experiência da verdade.

A presença de traços místicos em alguns grandes filósofos do nosso tempo

Schopenhauer e Nietzsche, além de sua originalidade, tornaram-se famosos pela força


corrosiva de sua “crítica negativa” à civilização burguesa do tempo, destacando-se de forma
surpreendente também por evidentes “traços místicos”, tanto que eles foram definidos por
Giovanni Faggin, outro grande estudioso da mística, como “místicos sem Deus”. Schopenhauer
foi o primeiro filósofo moderno a mostrar a via da mística no mundo ocidental, propondo,
como ética, o “desapego” e a “compaixão”. Quanto a Nietzsche, sua teoria do “eterno retorno”
não significa outra coisa que o “amor ao destino” dos estóicos e o amor para a vida em sua
totalidade que se expressa numa alegria que supera cada dor e que quer uma “profunda
eternidade”.
Mais próximo a nós, encontramos Ludwig Wittgenstein. Leitor atento de Schopenhauer,
de Silésius e dos poetas Tralk e Rilke, com simpatia por Agostinho, Wittgenstein extraordinário
filósofo da ciência, da lógica e da matemática, tinha a consciência que a solução do enigma da
vida estava fora do espaço e do tempo e do alcance das ciências lógicas e da linguagem. Com
efeito, para ele, a ciência da natureza, cujas regras são estudadas pela lógica, não tem nada a ver
com os valores e o bem. Para ele, como para Platão, o bem está acima do ser, fora do âmbito
dos fatos que são todos sob o domínio da necessidade. Acreditar em Deus significava, para ele,
compreender a questão do sentido da vida, isto é, ver que a vida tem um sentido e entender
que os fatos do mundo não são tudo.

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PARTE II. A REFLEXÃO MÍSTICA E RELIGIOSA DE SIMONE WEIL

Uma jovem mística na sociedade industrial de massa

Escritora, filósofa, estudiosa de política, pensadora, que em vida tinha recusado os


privilégios, Simone Weil encarna um novo tipo de místico: o da sociedade industrial de massa.
Não tem necessidade de se retirar num convento ou num deserto. Vive no meio do povo.
Participa, discute, escreve nos jornais e nas revistas dos sindicatos revolucionários. Empenha-
se a favor dos oprimidos, mirando à transformação das condições materiais e espirituais que
alienam o homem contemporâneo. Uma vida breve de extraordinária intensidade: trinta e
quatro anos de estudos intensos e de experiência de primeira linha na guerra civil espanhola e
na fábrica entre os operários.
Animada por uma ardente sede de justiça, Simone entra ainda jovem no movimento
sindical, aproximando-se ao pensamento marxista e envolvendo-se com a questão
revolucionária. Porém, dá-se logo conta do sectarismo, do dogmatismo da burocracia do
regime soviético a que estão ligados os partidos e os sindicados de esquerda europeus, e
começa a rever suas posições. Chega assim a constatar que a própria classe operária é um
instrumento passivo da produção, tanto no industrialismo capitalista quanto no socialista;
compreende, além disso, que o poder sufocante da burocracia moderna é ativo em campo
nacional, internacional, sindical e partidário.
Na experiência da vida de fábrica, Simone descobre que a situação de opressão em vez
de provocar automaticamente revolta, como afirmava a ortodoxia marxista, gera submissão e
escravidão. Entende, pois, que tanto o ideal revolucionário quanto o reformista são incapazes
de criar uma nova sociedade. Dá-se conta também do perigo das próprias revoluções, na
medida em que podem ser manipuladas pelos mais fortes em vista de seus fins, utilizadas
como fuga do real ou emprenhadas de um heroísmo cego, cruento e inútil.
Analisando a impotência da classe operária e a burocratização da sociedade
contemporânea, Simone Weil chega à constatação de que a sociedade moderna se tornou
incontrolável, não só por parte dos oprimidos, mas também dos detentores do poder. Muitas
vezes, a luta política gira ao redor de palavras vazias de conteúdo.Oprimidos e opressores
acabam participando da mesma mística perversa do poder que fundamenta cada sociedade.
Compreende que o mundo é dominado por mecanismos obscuros que fogem ao controle da
razão.

A filosofia como amor à sabedoria e a realidade como dura necessidade

Segundo Simone, a filosofia autêntica aspira, como em Platão, ao incondicionado, ao


Bem eterno que não está na ordem do conhecimento, pois nenhum valor deste mundo se

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identifica a ele. Com respeito a uma definição puramente acadêmica da filosofia, aquela de
Simone Weil, assumida como “amor da sabedoria”, desborda o campo da razão ocidental.
Para ela, a filosofia não consiste só numa pura aquisição de conhecimentos, mas numa
mudança de toda a alma. Não concebe a reflexão filosófica sem uma transformação essencial
da sensibilidade e da prática da vida, em particular na “aceitação da condição humana”
considerada como a única realidade significante. Trata-se, para ela, não só de “aceitar”, mas
também de “amar” a condição humana assim como ela é, com suas contradições, isto é: uma
realidade oposta e em contraposição aos nossos desejos.
Simone tinha absorvido profundamente a grande cultura grega de Platão, de Homero
e dos trágicos, dos estóicos, considerando Platão o cume de toda a espiritualidade do mundo
antigo e de suas culturas, onde descobriu e salientou intuições pré-cristãs, pois viu na sabedoria
contida nessas tradições a mesma sabedoria que se encontra no próprio Evangelho. Para ela,
crer significa aderir àquela parte de verdade sobrenatural que cada autêntica expressão humana
contém em si.
Simone Weil descobre como princípios constitutivos da existência tanto o equilíbrio e
a forma, quanto a desmedida e o excesso. Segundo ela, na existência nos encontramos numa
tensão dolorosa entre o desejo do bem e da justiça, constatando que, na terra, tais aspirações
são irrealizáveis. Apesar de tudo, não fica outra saída que consumar-nos nessa tensão, pois
até o fim não podemos deixar de desejar o bem, mesmo sabendo que cada bem terreno é
relativo e implica certa dose de mal. O sofrimento do homem justo consiste precisamente nesta
consciência que, mesmo procurando fazer o bem, acaba para fazer também o mal. É difícil
subtrair-nos ao mal, à força, à violência. Por isso o justo e o inocente, cuja imagem exemplar é
o Cristo, é destinado a sofrer. Cada justo vive o sofrimento desta contradição inevitável.

A experiência mística em Simone Weil: o verdadeiro real é o sobrenatural

A experiência trágica da desgraça revelou a ela não só a caducidade da existência, mas


também o limite do pensamento racional que não consegue dar uma explicação aceitável. Para
Simone, sem o contato com o sobrenatural, o ser humano está submetido às leis da gravidade:
ao “pesanteur”, à necessidade, ao mal e ao limite. Mas, paradoxalmente, é a experiência do
limite e do trágico que pode tornar-se uma abertura para que o sobrenatural se revele ainda
que por instantes.
Mesmo após o contato com o sobrenatural, o homem continua sujeito à condição
humana e suas contradições, mas, agora diferentemente de antes, sabe vê-las e contemplá-
las com desapego. Sua obediência à necessidade, ao destino se torna, agora, uma obediência
iluminada: a obediência do sábio. Este vê as verdadeiras relações entre as coisas e a necessidade
como a ordem do mundo e toda a realidade vem amada enquanto tal, pois, ao contato com o
sobrenatural, é possível vislumbrar o sagrado, a beleza e o mistério.

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O sobrenatural nos é dado não mediante as demonstrações, mas mediante a graça. A
faculdade que nos consente sintonizar com a ordem do universo, amando a necessidade, é o
amor que sabe intuir a relação entre o que é conhecido e o que resta desconhecido. Este último
é o elemento determinante que nos introduz no sobrenatural. Como para Platão, assim para
Simone Weil, “o verdadeiro real é o transcendente”. A experiência mística, para S.W, representa
a chave de cada verdadeira consciência e a chave de todos os conhecimentos e de todos os
valores.

A idolatria na cultura moderna e o perigo da imaginação descontrolada

Segundo Simone Weil, a cultura moderna, fundada na força e no poder, se caracteriza


pela falta de medida. Uma saída para esta situação está na imaginação.Todavia a imaginação
constitui uma indevida extensão do eu, dos seus apegos e dos seus desejos. Essa tem só a
aparência do pensamento, na realidade é só uma construção ilimitada de sonhos. A imaginação
não nasce duma busca racional (filosófica) da verdade, mas daquilo que liga o eu ao egoísmo,
às projeções e às pulsões instintuais, ela ignora os limites e não encontra nunca a contradição
que é o sinal da realidade.
A imaginação descontrolada é extremamente perigosa, pois pode favorecer projeções,
fuga da realidade, sonhos, delírios que, por sua vez, levam às idolatrias. Com isso, muitas
vezes, bens relativos são pensados e amados como se fossem absolutos. Entre os ídolos, os mais
perigosos são, primeiro, o nosso próprio eu (com suas projeções e identificações) e, depois,
o social, o coletivo, que Simone Weil, como Platão, chamava de “grande animal”: o ídolo por
excelência.
Com efeito, no ser humano habita o desejo de um bem infinito, na busca desesperada
de valores que o jogo da imaginação troca pelo social: então bens limitados e relativos, como
pátria, igreja, partido, etc., nos aparecem como lugares da transcendência. Neles, a voz do
grosso animal – o social – ressoa como se fosse a voz de Deus alimentando tantos outros
ídolos: o dinheiro, o prestígio, o poder, o sexo desvinculado do compromisso e do amor etc.
Também o amor pode se transformar em idolatria. Até a ciência e a própria arte acabam por ser
desejadas, não pelo valor a que remetem, mas em força do prestígio social que elas conferem.
Simone Weil distingue entre o “eu” transcendental puro e o “eu” escravo das paixões
e dos desejos, entre a imaginação que busca compensações e a imaginação que é guiada pelo
pensamento. Estava consciente de quanta força a imaginação é capaz de exercer sobre nós
e, pois, de quanto é importante “educá-la” e, sobretudo, de como é necessário abrir o eu à
inspiração que vem do alto, do sobrenatural para deixar espaço à “experiência” do belo e do
bem. Deriva daqui sua preocupação em distinguir o amor imaginário do amor real a Deus.
Para ela, a via de acesso ao sobrenatural passa através do sofrimento e do vazio,
suportados sem a busca de compensações. Isto requer atenção constante e o controle da

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imaginação. Mas, para realizar isto, precisa antes reencontrar as raízes duma antiga tradição
espiritual perdida, tornando transparente, também para as almas mais simples, os símbolos
– como poesia, beleza, a verdadeira amizade e a vida comum – que reenviam a uma ordem
cósmica e ao sobrenatural.

A fragilidade do amor humano e a necessidade do desapego

Para Simone Weil, nada de mais difícil que se realize a felicidade nas relações de amor.
Com efeito, a virtude que o místico exige de si mesmo é mais fácil de praticar daquela que
uma amante ou um marido aguarda de sua companheira e reciprocamente. Sabia que o amor
compartilhado é, muitas vezes, fonte de tantas ilusões. Quando pensava a uma carta que
poderia receber de um namorado, sabia bem que imaginava de encontrar todos os adjetivos e
demonstrações que ela mesma desejava colocar. Sabia que nisso uma espécie de engano, pois
o parceiro nunca se libera do seu egoísmo.
O amor místico e o amor humano são duas faces do mesmo sentimento. É um erro que
os jovens ignorem isso e se lancem ao amor humano, sem saber que exige certo heroísmo e
desapego contínuo, por isso o seu amargo fracasso. O amor sentimental e narcisista se reduz
a uma ilusão. Existem pessoas que vivem somente de sensações sendo material e moralmente
parasitas. A realidade da vida, porem, não é sensação, emoção e sentimentalismo, mas atividade
tanto no pensamento quanto na ação.
O amor significa sentir-se dentro da existência de outro ser, mas na condição que
não exista desejo, nem aquele que se define como volúpia. Com efeito, os prazeres sensíveis,
inocentes por si mesmos, contêm dois perigos: a corrupção e o abuso do poder sobre o outro.
Não se deve querer possuir pois, por natureza, todo amor é sádico. O aspecto humano do
amor é conferido somente pelo respeito. Existe só o amor, voluntário e desapegado, que
humildemente se preocupa com o outro.

A relatividade das verdades reveladas e o caráter híbrido da Bíblia

Para Simone Weil, a Revelação não é reduzível a um conteúdo formalizado numa


determinada Escritura a qual precisa acreditar e observar, pois esta é, antes de tudo, uma
experiência interior da realidade de Deus que se traduz numa multiplicidade de linguagens
diferentes todas igualmente inspiradas. Ocorre reconhecer também nas Escrituras reveladas
um valor relativo. Não se pode afirmar que essas sejam em cada caso expressões inspiradas.
Tudo depende da qualidade da inspiração.
Simone Weil vê nos ápices da cultura grega intuições pré-cristãs, como as vê também
em outras tradições. Especificando melhor: a noção de escritura revelada é assumida, por Weil,
distinta daquela escritura sagrada, reconhecida canonicamente no âmbito dum determinado

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credo religioso. Cada Escritura, enquanto escritura sagrada, constitui o patrimônio espiritual
duma determinada religião histórica e cada escritura deve ser posta sob avaliação da experiência
religiosa. Em relação à Bíblia, Simone observa nela duas concepções de Deus incompatíveis
entre si. De um lado, já a partir do Pentateuco, a concepção de um Deus como “Potência e
Força” e, correlativa a essa, a concepção de Israel como “povo eleito”, ambas incompatíveis com
o conhecimento, difuso no umndo antigo, em que Deus é o Bem e que cada bem autêntico
é de origem divina e sobrenatural. Daqui deriva, para Simone, o caráter hibrido da Bíblia até
a irrupção na história de Israel da pregação de Jesus centrada na recusa da força e, pois, na
concepção de um Deus que assume a condição de escravo.
Seguindo o caminho traçado por Jesus, também nós, segundo Simone, devemos chegar
à espoliação da Cruz, desligando progressivamente o desejo dos supostos bens deste mundo,
renunciado à existência do nosso pequeno eu egoísta, em outras palavras, renunciando a
existir separados de Deus. Os sinais da presença de Deus no mundo são, segundo Simone, o
amor ao próximo, a amizade, o amor à beleza.

A via negativa e o estado de espera

Diante ao mistério sagrado do universo, valem só a “espera”, a “atenção” e a “escuta”


da palavra que ressoa de significados. Simone busca tais significados nas grandes tradições
que expressam a seu modo o mistério do universo (os contos, os mitos e fábulas, os grandes
feitos dos heróis, a arte, a poesia e a música). Sobretudo ama os grandes trágicos gregos e
Platão. Lê também os pré-socráticos, os textos da mitologia antiga grega e egípcia, os escritos
dos gnósticos e dos cátaros, os grandes textos sânscritos do Hinduísmo (Bhagavad Gita e
Upanisad), alguns livros da Bíblia e os Evangelhos. Simone Weil optar por ancorar-se com o
coração e a mente na essência unitária das grandes religiões deixando de lado os dogmas, as
instituições, os grupos eclesiais, as proclamações. Sente a necessidade de atingir o divino pela
via negativa: aquela que resta secreta também à alma de quem busca Deus.
Sem o sobrenatural que a permeia, a realidade permanece incompreensível. A “espera”
é a única via que resta a quem reconhece com sinceridade o obstáculo da contradição e não
pretende dar a ela soluções paliativas. O que o homem pode fazer é desejar ardentemente,
permanecer imóvel, suspenso, na intersecção entre “necessidade” e “bem”, entre o mundo
e o inatingível, dispondo-se a receber mais que a procurar, na espera de um dom, de uma
iluminação, de um momento de luz. Segundo Simone, o próprio Deus se manifesta mais na
ausência do que na presença, mais pela via negativa que positiva.

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A exemplaridade de Simone Weil

O pensamento e a vida de Simone Weil permanecem uma inquietante provocação.


A ausência de uma filosofia sistemática bem como de uma estilização literária fazem dela
uma figura paradoxal. Imersa, na cotidianidade e na participação intensa aos acontecimentos
políticos e sociais, ela está, ao mesmo tempo, em posição de distância e de exílio, dentro e
fora do mundo. Faz a experiência de um total envolvimento e de uma total estranheza ao
mundo, permanecendo suspensa nesse dissídio dilacerante. Não se deixa tentar por pseudo-
escatologias e recusa como ilusão à própria ideia de progresso. Parece-lhe fundamental aceitar
a condição humana com suas contradições e a sua dura necessidade. Isto não salva, mas dispõe
à graça.
A sua vida e o seu pensamento constituem não só uma radical e poderosa crítica à
cultura moderna, mas também um desafio. A meditação dos seus textos é uma experiência
que não nos deixa neutros: nestes textos encontramos frases – e, às vezes, parágrafos inteiros
– que nos fazem perder a respiração graças à sua humanidade dilacerada e apaixonada (uma
tradicional característica judaica), graças a qualidade cortante de sua visão filosófica e social.
São textos que sempre nos solicitam e nos põem em questão.

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Recebido em 03/10/ 2012


Aprovado para publicação em 15/12/2012

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